DESEJO DE MODERNIDADE E VONTADE DE PODER: o sonho desenvolvimentista e o
projeto de criação da cidade-indústria de Ipatinga
Maria Isabel de Jesus Chrysostomo 1
Patrícia Gouveia 2
I
Uma Introdução: nosso campo discursivo
De forma introdutória, demarcarmos aqui certos deslocamentos e apropriações que
motivaram a realização do presente artigo. Sua argumentação tem como suporte um quadro
conceitual que vem alimentando a reflexão sociológica como um todo; e, em especial, a discussão
mais localizada sobre cultura, espaço e sociedade brasileira, no âmbito da reflexão ‘nativa’, ou
mesmo dos muitos estudos latino-americanistas que buscaram compreender e interpretar essa
experiência continental: o clássico debate em torno da díade modernidade vs tradição, e as
vicissitudes de um projeto nacional de desenvolvimento, num contexto histórico singular.
Respeitando os limites de um ensaio
3
- face à incipiência de uma pesquisa em curso, e
também ao próprio recorte espacial e temporal da investigação
4
- , nesta comunicação queremos
retomar as distintas apropriações do moderno (modernidade, modernismo e modernização) como
atitude imprescindível à compreensão do processo de formação do espaço urbano brasileiro; e mais
ainda, de nossa própria especificidade cultural, voltando-nos à totêmica pergunta sobre “quem
somos nós”, que fundaria as bases do pensamento social brasileiro (entender o Brasil para poder
explicá-lo).
Em linhas gerais, a pesquisa em andamento envolve diferentes níveis de interlocução
acadêmica, técnica e institucional 5, onde refletimos sobre formas de produção do espaço, atreladas a
1
Geógrafa, Ms. e Dra. em Planejamento Urbano e Regional - IPPUR/IJFRJ. Professora Adjunta e Coordenadora do
projeto Cidade, Poder e Formas de Planejamento, do Departamento de Artes e Humanidades - DAH/UFV
2
Historiadora. Ms em Sociologia Urbana - PPCIS/IJERJ e Dra. em Antropologia Cultural IFCS/IJFRJ. Coordenadora
Geral do Grupo de Pesquisa GEMAPP/CNPq e de sua Linha de Pesquisa ‘Experiência, Memória e Exclusão’.
Professora e Pesquisadora Voluntária, em Pós-doutoramento no Programa de Pós-Graduação em Economia Doméstica
(PPGED/UFV/|MG), pelo PRODOC/CAPES/MEC/DF.
3
Face à dimensão inicial da pesquisa e mais propriamente à característica de inacabamento própria à produção
reflexivas nas Ciências Sociais, consideramos que o termo ensaio expressa melhor o trabalho realizado. A este respeito,
cabe retomar o argumento de C. Geertz (1998), quem afirma que a condição experimental do conhecimento
interpretativo remete-se à sua natureza juvenil (Weber/compreensão), referendando o caráter inconcluso desta forma de
saber. Defende assim a construção do ensaio, por oposição ao tratado e à monografia, como uma forma mais adequada
de construir uma reflexão de orientação antropológica de base interpretativa (ibid: 63).
4
A referida pesquisa, intitulada Cidades, Planejamento e Poder, tem como proposta discutir determinadas
circunstâncias políticas, econômicas e sócio-espaciais, que concorreriam propositivamente à redefinição e à organização
de diferentes espaços; em especial, um processo inorgânico de conversão de dada região em cidade.
5
Dessas interlocuções cabe destacar ao menos duas delas. Em termos mais conceituais, uma aproximação entre campos
disciplinares afinados, o diálogo cada vez mais freqüente entre as ciências humanas e as sociais, representado pelo
um projeto de modernização político-econômico e sociocultural, à luz de uma experiência particular:
o processo de constituição do município de Ipatinga, emancipado em 16 de junho de 1954, e elevado
à categoria de cidade em 1964 6. Em face de sua densidade espacial e sociológica, esta cidade tornase ‘campo’; ou melhor, um campo de possibilidades reflexivas para desvendar as singularidades do
conflituoso processo de urbanização brasileira. Por isso mesmo, os dez anos de gestação desse
movimento de ‘tornar-se-cidade’; ou mesmo, cidade exemplar, parece-nos metafórica e
metonimicamente emblematizado pelo otimismo, esperança e desejo de modernização, característico
do governo de Juscelino Kubistchek de Oliveira, e seu convincente Plano de Metas (1956-61) 7.
Ipatinga e seus 42 anos de história, suas memórias projetadas na engenharia de homens e
empresas, sua orgulhosa modernidade tardia, vão se encarnando em rostos, gostos, praças, prédios,
de muitos tons, gêneros e cores. E mais, neste movimento, vão se delineando dimensões e elementos
que motivariam a criação de cidades (os agentes, os dilemas políticos e econômicos e a influência de
uma cultura européia?).
Em particular, inspiradas pela plasticidade e poética do lugar, discutimos o projeto
modernista de cidade, diretamente vinculado ao modelo nacional-desenvolvimentista da Era
Kubistchek. Propomos-nos a analisar os principais aspectos que caracterizaram o plano urbanístico
elaborado por eminentes arquitetos à época, coordenados por Lúcio Costa, com o intuito de
identificarmos o programa político e espacial que levaria à definição de um modelo de ocupação
para a futura cidade mineira. Discutimos também as circunstâncias político-econômicas e sócioespaciais que promoveriam a criação desse novo espaço industrial em Minas Gerais e sua futura
conversão em cidade, buscando refletir uma das características do processo modernizador do país
que se consubstanciou com a emancipação municipal. Outrora um distrito de Coronel Fabriciano, a
criação de Ipatinga implicaria na definição de regras de uso da nova circunscrição política e
administrativa instituída com o desmembramento de um território - intrinsecamente gerador de
cotejo entre Geografia e Antropologia. No plano mais institucional, uma interface estabelecida inter-departamentos
(DAH/UFV e DED/UFV), e com o Grupo de Pesquisa GEMAPP/PPGED/CNPq. O Grupo resulta de uma experiência
institucional acumulada pela GESTÃO COMUNITÁRIA: Instituto de Investigação e Ação social (GCIIAS). Desde
1990, mas somente em 2005 oficializado no ambiente acadêmico, alocado no PPGED/UFV, o Grupo tem se debruçado
na reflexão sobre possíveis experiências morais de desfiliação, concentrando esforços em três linhas de trabalho
(Experiência, Memória e Exclusão; Avaliação Dialógica, Subjetividade e Ação Social; Vida Cotidiana e Produção do
Espaço Urbano).
6
Esta emancipação está subcrista na Lei 2764.
7
Em sua plataforma eleitoral, JK definiria 31 metas indispensáveis à modernização e crescimento da sociedade
brasileira. Atuar sobre os principais indicadores de desenvolvimento urbano alimentaria este programa político
desenvolvimentista (taxa de mobilidade social e de analfabetismo, ampliação de emprego industrial), inclusive aqueles
que comprometeriam tal desenvolvimento, como educação, padrão comportamental da população, organização política e
estrutura fundiária. Nestes termos, as prioridades do Plano de Metas incidiram sobre seis eixos estratégicos (energia,
transportes, alimentação, indústrias básicas, educação e construção da nova capital).
polêmicas - e na produção de uma nova centralidade, que emergiria com a construção da
USIMINAS; uma das mais importantes usinas siderúrgicas do Brasil, e uma presença decisiva na
história e dinâmica da cidade.
Assumimos como pressuposto que a criação de uma cidade deslancha um amplo debate
sobre novas formas de constituição de poder, geradora por excelência de contra poderes, e de
grandes contradições. Algo que implicaria num arranjo social e político que está em permanente
sintonia (apesar de conflituosa) com o processo de construção de novas regras de uso dos espaços.
Portanto, a iniciativa de fundação de uma região industrial e sua futura transformação em cidade,
como foi o caso de Ipatinga, nos sugere a reflexão sobre quais os nexos políticos e institucionais que
promoveriam tal percurso e sua relação com o que se instituiu como modelo ideal de ocupação de
uma nova fronteira econômica e política do território nacional. Mais além, nos instigaria a buscar
compreender certas implicações desse processo nas diversas formas e modos de uso do lugar,
praticadas neste à época incipiente lócus urbano.
Demarcado o campo de reflexão, apresentamos então a estrutura desta comunicação,
evocando suas predisposições teórico-metodológicas e divisões argumentativas, concentrada em
cinco blocos que de forma breve passamos a explicitar.
Num cotejo inicial entre fontes secundárias e pistas empíricas, construímos uma
contextualização histórico-espacial, mapeando o conjunto mais amplo que articula a história de
época com a experiência nacional, para melhor posicionar a conjuntura de criação da cidadeempresa, e sua relação com o projeto desenvolvimentista em questão.
A partir desse histórico sobre o contexto geral e o governo JK, realizamos um debate
conceitual sobre as interpretações e os olhares sobre as cidades, notadamente a experiência
brasileira. Em particular, enfocamos as políticas de fortalecimento da região do Vale do Aço,
recorrendo à literatura acadêmica e à documentação de referência, como a análise de conteúdo do
Plano de Metas e de diversas outras fontes primárias, como o CEDEPLAR, as relatorias de governo
federal e estadual, em particular, as secretarias de estado e ministerial. Simultaneamente,
caracterizamos o mapa sócio-espacial da região, contemplando dados sociodemográficos, via
Coleção de Municípios do IBGE, as plantas e mapas regionais, os Boletins Geográficos de MG, a
Revista Municipal de Engenharia. Junta-se aqui a identificação de estratégias políticas de
“arrumação do espaço”, caracterizando os agentes envolvidos na discussão e as leis estaduais e
federais, afins.
Em seguida, nos debruçamos sobre as vicissitudes de um projeto de construção da cidade de
dimensões fortemente inorgânica. De posse dessa contextualização abrangente, focamos
propriamente nossa problematização, enfrentando um debate em torno dos projetos de urbanização e
das estratégias de domesticação da cidade (as propostas urbanísticas e suas diferentes concepções de
uso e funcionalidade do espaço; estratificação e controle social da cidade; as dinâmicas e
contradições entre modelo-ideal e cidade-real). Partimos da classificação das escolas do pensamento
urbanístico, os seus principais representantes e suas idéias sobre espaço - as concepções de projetos
modernistas e suas apropriações - , lançando mão de revistas especializadas, como o Boletim
Municipal de Engenharia, a Revista da Directoria de Engenharia e os impressos da Secretaria
Municipal de Engenharia. De forma crítica, caracterizamos as diferentes propostas urbanísticas de
ocupação da localidade, qualificando o conteúdo dos projetos e do processo de licitação (IAB e
CREA); em particular, o plano vencedor e suas propostas de ocupação da área.
Cotejamos um conjunto de prerrogativas simbólicas - as idéias, interesses e intenções - com
um corpo de ações e práticas - a realidade estruturada - , focando determinados dilemas de ocupação
do espaço expressos numa história menos “oficializada”. Recorremos à narrativa de personagenschave, como o técnico da USIMINAS, o Sindicato, os jornais locais, e setores sociais expressivos,
como as mulheres e os políticos locais. Lançamos mão de análise discursiva de políticos mineiros e
a identificação da influência destes na construção da USIMINAS, priorizando fontes como as Atas
da Assembléia Legislativa do Estado, os relatórios ministeriais, as memórias da empresa, o Jornal do
Comércio, e os discursos presidenciais.
Nesta perspectiva, buscamos qualificar os jogos de poder e suas estratégias de manutenção
de uma ordem urbana, através de documentação pertinente a órgão e instituições como Segurança
Pública, Assistência e Desenvolvimento Social, Habitação e Urbanismo e Departamento de Obras.
Em especial, analisamos a fala de lideranças políticas e suas propostas de desenvolvimento local
(partidos hegemônicos e a vinculação com a USIMINAS). E, também, apreendemos os principais
conflitos de uso (jornais e depoimentos).
Em suma, investimos na idéia de que a produção desse espaço urbano esteve vinculada ao
reordenamento e à expansão do poder político de Minas Gerais no cenário nacional, tendo em vista a
sua representativa produção siderúrgica e mineral, o que levaria a efetivação de mais um projeto
(um sonho) consagrando-se com a construção de um novo espaço político - a moderna cidade de
Ipatinga.
II
Um Breve Contexto: dourados sonhos de desenvolvimento.
“Bossa nova mesmo é ser presidente / Desta terra
descoberta por Cabral.
Para tanto basta ser tão simplesmente / Simpático,
risonho, original..
Depois desfrutar da maravilha / De ser o presidente do
Brasil,
Voar da Velhacap pra Brasília / Ver a alvorada e voar
de volta ao Rio.
Voar, voar, voar, voar / Voar, voar pra bem distante,
Até Versalhes onde duas mineirinhas valsinhas /
Dançam como
debutante, interessante!
Mandar parente a jato pro dentista / Almoçar com
tenista campeão,Também poder ser um bom artista
exclusivista / Tomando com Dilermando umas aulinhas
de violão.
Isto é viver como se aprova / É ser um presidente bossa
nova..
Bossa nova, muito nova / Nova mesmo, ultra nova!“
Juca Chaves
Os tempos JK, sem dúvida, representam uma época de muitas novidades, esperanças, apostas
e mesmo crítica social (como podemos atestar nesta criativa sátira musical), expressas na intensa
movimentação da sociedade brasileira, rumo a sua desejada modernidade. Vivíamos um período de
densidades e radicalizações ideológicas, manifestas em intensas articulações políticas. Voávamos
assim para bem distante, em busca de um novo tempo. Tempos modernos!
Portanto, qualificar e interpretar a dinâmica e velocidade da sociedade brasileira ao longo de
meados dos anos 50 exige muitas interlocuções, e um esforço de compreensão do contexto social
mais amplo, que ultrapassa as fronteiras de uma década, caracterizando o momento peculiar
conhecido como a ‘Era de Ouro’. Em termos globais, este contexto histórico-social singular
articularia continuidades, e relativas descontinuidades, com nosso momento nacional.
Os Anos Dourados tiveram como marco o Pós-guerra, abarcando aproximadamente três
décadas de gestação de uma verdadeira sociedade da afluência, dominada econômica e
culturalmente pela sociedade norte americana, seja na adesão ou mesmo no repúdio ao seu way of
life, que à epoca encarnava literalmente uma ‘Guerra Fria’. Num mundo dividido política,
econômica e militarmente em dois blocos, que deslocaria a velha Europa, assistimos ao crescimento
econômico e a transformações socioculturais de grande porte, orquestrados pela ideologia do
desenvolvimento; um termo de época que substituiria a noção de progresso, central na regulação das
relações internas e externas em todo um período anterior à crise da sociedade moderna, notadamente
o relacionamento intercontinental, sob o julgo da hegemonia européia.
Segundo um de seus melhores críticos, o historiador E. Hobsbauwm (1995), muitos seriam
os indicadores desses anos dourados, que sucederiam os difíceis tempos de conflito e escassez
(guerra), destacando em especial as grandes transformações demográficas (aumento populacional e
maior expectativa de vida, afluência de pessoas à cidade) e o crescimento industrial (modelo de
produção de massas, bens e serviços ampliados, emergência dos NIC’s).
Ao discutir uma série de características em níveis diferenciados, porém articulados 8, este
autor demarcaria três conseqüências centrais à compreensão da época. Primeiro, um conjunto de
transformações na vida cotidiana, face à incorporação de novas tecnologias agrícolas, industriais e
comunicacionais. Segundo, uma estreita relação entre pesquisas subsidiadas e crescimento
econômico, ampliando os ganhos e vantagens mercadológicas na disputa pela hegemonia
econômica. Terceiro, um fluxo de investimentos em tecnologias de capital intensivo, fundado na
concentração de capitais, no planejamento econômico, na redução e especialização da mão de obra e
na ampliação do mercado consumidor (id. ibid).
Do ponto de vista político, Hobsbauwm destacaria ainda o compromisso do Estado como
árbitro nas relações entre as distintas forças que movimentariam a sociedade. Nesta regulação, foram
priorizadas proposições em termos de seguridade e previdência, responsável pelo cruzamento muitas
vezes conflituoso e difícil equilíbrio entre o liberalismo econômico e a democracia social. Uma
dinâmica onde o executivo arbitraria sobre as Questões Sociais 9, reconhecido como o protagonista e
regulador da sociedade, capaz de promover o desenvolvimento e a modernização imprescindível à
mesma.
Em termos sociais, e mesmo sociológico, assistimos à afluência migratória para as cidades,
acirrando o fenômeno do êxodo rural, à ocupação de áreas urbanas irregulares e precárias à moradia
popular, junto à emergência de novos contingentes populacionais, e ao crescimento de muitas
profissões que exigiam nível secundário e superior. Essas transformações colocariam em cena
pública setores mais resguardados aos espaços domésticos, e de menor visibilidade social (como,
por exemplo, juventude, mulheres, trabalhadores, camponeses e pobres). Relativamente, estes
8
Tais como, as político-ideológicas (Guerra Fria), as econômicas (liberalismo, revolução tecnológica, transnacionalismo
e produção em massa) e as socioculturais (Revolução Cultural, Terceiro Mundo).
9
Conforme sintetiza Pierre Rosanvallon (2000), a ‘questão social’ é uma expressão criada no fim do séc.XIX, referente
às disfunções da sociedade industrial emergente. Hoje, ela se manifesta, sobretudo, no crescimento do desemprego e no
surgimento de novas formas de pobreza, que exigem um tratamento mais abrangente do que suas manifestações
objetivas, fortemente economicistas.
segmentos passariam a ter maior poder de barganha, priorizados na dinâmica político-eleitoral e
também como ‘objetos’ de reflexão da sociologia contemporânea; um conhecimento que no final
dos 50’ e início dos 60’ enfrentaria seu momento (crucial) de crise e diversificação (OLIVEIRA,
1995).
Junto à urbanização acelerada da América Latina, presenciamos uma correspondente
exaltação do desenvolvimento econômico-social como a solução à superação de um
subdesenvolvimento histórico, que adjetivaria nossa experiência continental. Momento em que o
debate nacional giraria em torno do paradoxo desenvolvimento vs modernização. Processos
articulados que, no entanto, se organizavam de forma dicotômica, a partir da absorção de
incrementos materiais (matéria-prima, equipamentos, capital, horas de trabalho) e de hábitos sociais
da Revolução Industrial, mas sem processar as transformações clássicas à dinâmica de
modernização, como o estabelecimento de uma ordem competitiva, o disciplinamento da força de
trabalho, o fomento e aplicação das transformações tecnológicas, a consolidação do Estado racionallegal, a revolução das consciências e a garantia das instituições democráticas (ibid.).10
Compreender e transformar o referido paradoxo seria tarefa particular da sociologia latinoamericana. Acerca disto, José de Souza Martins (2000), refletindo sobre as hesitações e contradições
de nosso padrão moderno, enfatiza que no período estudado as reflexões sobre a realidade
continental tiveram como paradigma essa dicotomia tradicional vs moderno. Esta, uma sociologia do
desenvolvimento alicerçada na idéia de conhecer e analisar a especificidade sociocultural da
América Latina, que teria como responsabilidade e função política monitorar e orientar o processo
de modernização necessário. Segundo Martins, no caso do Brasil, tanto quanto reconstruir nossa
identidade, tal perspectiva recairia particularmente sobre as formas de compreender uma série de
tipos nacionais (o pobre, o camponês, o trabalhador, o migrante, o negro), a cultura popular, e a
própria pobreza. Arquétipos importantes à argumentação em torno de quem seríamos nós; e,
especialmente, acerca de nosso tradicionalismo anômalo. Este, dentre outros, um mal que deveria
ser finalmente superado pela modernização (ibid.: 18). Esta, ainda que tardia, permitiria à nova
geração de intelectuais realizar o destino manifesto da Sociologia de época: sua dupla empreitada,
10
Segundo Ianni (1992), a história do pensamento brasileiro esteve marcada pelo fascínio com a questão nacional,
preocupação renovada na medida em se colocavam novos desafios para o Estado e a elite econômica e intelectual. A
intelligentsia brasileira, contaminada pelo ideário da modernização, utilizou-se de axiomas como o da ordem, equilíbrio,
civilização e progresso, propondo soluções políticas para a superação do atraso e subdesenvolvimento. Neste
movimento, firmaram-se as bases do pensamento liberal, positivista, evolucionista e darwinista, que evidenciavam “o
ecletismo, o anacronismo e o exotismo” dos principais postulados.
de diagnosticar e interpretar problemáticas pertinentes à realidade brasileira, e de conscientizar
sujeitos à ação, conjugando ciência e consciência.
Esse ideário desenvolvimentista seria emblemático nos tempos e ares do governo Juscelino.
Apesar do nacionalismo cobrir um período maior, de aproximadamente duas décadas, conhecido
como a “redemocratização do Brasil” (1946 - 1964), em nossa discussão focaremos a gestão de JK
por duas razões centrais. Primeiro, devido à dimensão do nacional-desenvolvimentismo, fundado
numa política econômica alicerçada em três bases: Estado, Empresa nacional e Capital estrangeiro.
Segundo, face à pecularidade desta política e deste contexto no processo de emancipação do
município de Ipatinga. Momento particularmente importante na guinada à industrialização
brasileira, que em suas nuances revelaria disputas e manobras para assegurar a hegemonia política e
econômica entre os principais estados do Sudeste.
O Brasil de JK fora alvo de grandes transformações, orgulhoso de sua incipiente
modernidade, cuja ressonância se expressava na euforia desenvolvimentista (manifesta em processos
como: construção do parque industrial, indústria de base, como a mineração, a extração petrolífera e
a siderurgia; racionalização da agricultura; planejamento regional; aporte de capitais estrangeiros;
ampliação mercado de consumo de bens duráveis; substituição das exportações).
Do ponto de vista interno, seguindo o movimento de reconstitucionalização, iniciado desde o
fim do primeiro governo Vargas (1945)
11
, as forças políticas coligavam-se para garantir a
composição nacional desenvolvimentista, via dobradinha partidária que aproximaria, em função do
getulismo, discursos e proposições antes apartadas, como o PSD e PTB. Tal aproximação
asseguraria a continuidade política e econômica com a tradição getulista, porém com prerrogativas
de modernização 12. Já externamente, outros arranjos encampariam uma atitude conservadora do país
no relacionamento internacional, expresso na Operação Pan-americana - OPA, na não adesão ao
Movimento de Descolonização, no alinhamento com a política externa americana e o Fundo
11
Apesar do nacionalismo abarcar um período maior, de aproximadamente duas décadas, conhecido como a
‘redemocratização do Brasil’ (1946 - 1964), focaremos aqui o governo JK por duas razões centrais. Primeiro, devido à
dimensão do nacional-desenvolvimentismo, fundado numa política econômica alicerçada em três bases: Estado,
Empresa nacional e Capital estrangeiro. Segundo, face à peculiaridade desta política e deste contexto no processo de
emancipação do município de Ipatinga. Momento particularmente importante na guinada à industrialização brasileira,
que em suas nuances revelaria disputas e manobras para assegurar a hegemonia política e econômica entre os principais
estados do sudeste.
12
Foi acirrada a luta eleitoral, dando vitória apertada de 33,8% dos votos à coligação PSD-PTB, que perderia
significativamente nos dois centros político e econômico nacionais (em São Paulo ganharia A. de Barros,
aproximadamente 867 mil votos, contra os 241 mil do terceiro colocado, Juscelino; similarmente, no Rio de Janeiro a
vantagem de A. Barros era de 67 mil votos, seus 266 mil votos contra os 199 mil de JK). Contudo, a referida
composição seria possível através da chapa Juscelino e Jango. O primeiro representando uma dissidência em seu próprio
Partido Social Democrático - PSD, de cunho fortemente desenvolvimentista. O último expressando uma linha de
continuidade na política varguista, fundada no ideário nacional-populista do Partido Trabalhista Brasileiro - PTB.
Monetário Internacional - FMI, e na concessão e vinda às indústrias estrangeiras, notadamente a
automobilística (FAUSTO, 2006).
Paul Singer (2001), ao analisar este contexto, discute que a estratégia dominante do governo
para se atingir o crescimento foi à implementação de um conjunto de medidas econômicas, que
visavam o controle do setor produtivo e da força de trabalho 13. Objetiva-se, mais além, diminuir a
dependência externa e fortalecer as bases econômicas, via política de substituição de importação
(1930-1980). Tal orientação, pensada também para conter a crise capital versus trabalho, se traduziu
em ações que buscavam acelerar a industrialização no país, através de investimentos em setores
considerados estratégicos.
Para Otávio Ianni (1991), é no desdobramento dessas políticas econômicas que podemos
identificar às origens da ideologia e da prática de planejamento no Brasil
14
. Neste processo de
“empurrar” o Brasil para frente, seu estudo identifica o papel assumido pelo Estado e Economia no
bojo das transformações na estrutura das classes e grupos sociais que ocorreram a partir de 1930 15.
Revela que a formação de uma tecnoburocracia estatal, agente central neste processo, se consolidou
na medida em que ocorriam transformações na estrutura de poder e na organização burocrática,
resultantes do modelo de crescimento adotado 16.
Demarcando o papel de um agente na política territorial, cabe assinalar a atuação do IBGE,
que conforme nos lembra Schmidt (2004), foi um dos órgãos que assumiu uma importante função
nesse processo de constituição do Estado burguês. Ou seja, o sistema de planejamento estatal
iniciado na era Vargas apoiou-se técnica e cientificamente nos estudos e propostas elaborados no
âmbito desta instituição. Nesta linha destaca-se, a chamada “Lei Geográfica do Estado Novo”,
promulgada em 1937, que obrigou todos os municípios a elaborarem mapas delimitando seu
13
Entre as medidas econômicas que o autor destaca como essenciais para acelerar o processo de industrialização
brasileira a partir de 1930 destaca-se a criação da Carteira de Crédito Agrícola e Industrial, instituição vinculada ao
Branco do Brasil, que foi estruturada com o fim de oferecer empréstimos de médio e longo prazos aos agricultores e
industriais. Destaca-se, também, as ações dirigidas a emergente “classe trabalhadora” no sentido de domesticá-la,
processo este que teria conduzido a promulgação das leis trabalhistas, a exemplo da CLT e a criação das indústrias de
base como a CSN, a Vale do Rio Doce, a Petrobrás, entre outras.
14
Décio Saes (1985) discorda de Ianni que foi somente a partir de 1930 que o Estado passou assumir tal papel. Em seu
texto argumenta que no final do século XIX constituiu-se a burocracia no Brasil, e esta representava uma das formas de
legitimação de um poder constituído por um Estado burguês em formação. Para o autor, com a função de unificar o povo
e a nação e impedir a organização da classe “explorada”, a nova racionalidade das instituições governamentais
demonstrava que estava se formando um Estado burguês ao final do período imperial.
15
É que para o autor: “É que a política econômica governamental pode ser considerada um momento particularmente
estratégico, nas relações entre o político e o econômico, como dimensões essenciais e encadeadas da sociedade.
16
Processo resultante da ruptura do Estado oligárquico e do fortalecimento do setor industrial, agente que passou a ter
hegemonia no conjunto do subsistema econômico brasileiro.
território até 1940 17, além dos inúmeros estudos de regionalização e rede urbana, pesquisas sobre
colonização, e aquelas relacionadas à implantação de novas cidades e infra-estruturas. Também
destaca, a importância da publicação, pela primeira vez entre 1956 e 1961, da coleção “Enciclopédia
dos Municípios Brasileiros” (1950 a 1968), do Atlas do Brasil (1959) e da Carta ao Milionésimo
(1960), produtos que além de se tornaram subsídios a inúmeros estudos desenvolvidos em diferentes
campos do conhecimento, auxiliaram a política de ocupação do território. Nesta perspectiva, o
conhecimento do território, viabilizado via estudos e pesquisas realizados no IBGE possibilitaram a
maior integração e controle do mesmo, o que auxiliou a proposta de desenvolvimento privilegiada
pelo governo.
Afinal, para tornar o Brasil moderno era preciso, antes de mais nada, de conhecê-lo, unificálo, ou seja, a proposta de industrialização dependia da união física dos mercados, pois a absorção da
produção industrial somente poderia ser viabilizada com a ampliação do consumo interno 18. É neste
contexto que um novo espaço vai ser decifrado e, posteriormente, construído frente à implantação e
densificação de infraestruturas em vários pontos do território brasileiro 19. Neste processo, Santos
(2002) vai identificar a constituição do “meio técnico-cientifico” no Brasil, um movimento que
conduziria seletiva e hierarquicamente, a maior “fluidez e viscosidade” do território 20 e a
conformação dos “espaços de mandar e de obedecer” 21.
Sem dúvida, a política de construção de estradas
22
- um dos meios de desenvolvimento
considerados estratégicos para eliminar os chamados “pontos de estrangulamento” da economia - ,
associada aos investimentos direcionados a determinados setores econômicos, redefiniram tanto o
papel do Brasil na economia-mundo, como o arranjo sociospacial que se solidificou internamente,
em paralelo à constituição da sociedade de consumo (ORTIZ, 2001) 23. Assim, tal processo além de
17
Afim de subsidiar a coleta de dados que se realizaria pelo então Instituto Nacional de Estatística – INE, órgão que
mais tarde foi incorporado ao então Instituto Brasileiro de Engenharia e Estatística – IBGE.
18
O que, segundo Singer (2001), passou a ser logrado com a expansão das rodovias, opção considerada mais econômica,
já que não exigia inicialmente um volume abundante de capital como a ferrovia.
19
Redistribuindo o trabalho morto e o trabalho vivo no Brasil.
20
O autor considera as possibilidades, caracteristicamente seletivas, que as redes de circulação possuem para criar novos
espaços, hierarquias e redes, redefinindo as modalidades de uso e apropriação do território.
21
Tal processo, na concepção do autor, poderia levar aos seguintes questionamentos a respeito do arranjo espacial
privilegiado em cada contexto: porque algumas áreas apresentam mais infra-estruturas do que as demais? Qual a relação
da densidade viária com a densidade da população? Que relação existe entre densidade viária e economia internacional?
Qual o papel desempenhado pelas áreas que são conectadas? O poder de mando é deferido a entidades públicas e
privadas? Até que ponto, o exercício do poder regulatório por empresas e pelo poder público não é independente do
sistema de engenharia presentes em cada lugar?
22
Entre 1928 e 1955, a quilometragem ferroviária cresceu 16,5% e a rodoviária 304,8%.
23
O autor assinala que o crescimento da literatura e outras formas de produção artísticas estão vinculadas a consolidação
da burocracia do Estado. Ainda destaca na esfera da cultura o desenvolvimento de uma política de língua e a criação de
um sistema escolar nacional, o que sinalizaria um processo de racionalização progressiva do aparelho do Estado.
ter progressivamente promovido a unificação dos mercados outrora regionais, criou níveis de
dependência intra-regional, consubstanciando-se no fortalecimento da região Centro-Sul, e na
decadência da Nordeste 24. Configurou-se, dessa forma, uma nova divisão regional do trabalho que
paulatinamente tornou São Paulo motor da economia brasileira (OLIVEIRA, 1988 E SANTOS,
2002).
Apesar de central, não apenas no campo político-econômico as mudanças se projetavam, a
intensidade desses processos se revelaria também na efervescência intelectual e cultural que
provocava muito rebuliço e transformações. Em especial, processos como a ascensão e visibilidade
da classe média citadina, o fortalecimento do mercado interno de consumo, e, também, o
crescimento de uma cultura urbana (lazer, trabalho, moda, artes), alimentariam o mito de
modernização nacional. Um contexto democrático que permitiria o diálogo e relacionamento entre
instituições e movimentos diversos, e o nascimento de uma cultura individualista, voltada para o
desejo de gozar das benesses de uma vida moderna. Formava-se uma sociedade de massas, moderna
e cada vez mais dependente dos novos meios de comunicação, que clamava por bens de consumo e
culturais.
Em níveis artístico e intelectual, era um período de intenso questionamento e inquietação que
tanto produzia receio e conflitos, quanto se tornava fonte de inspiração e criação exponencial. Um
momento marcado pela vontade de transformação, fundada na valorização de nossa brasilidade, em
especial a cultura popular, e no desejo superação de tudo que se associaria ao nosso evocado atraso.
Esse espírito de época se encarnaria em muitos ambientes e estilos. Destes, cabe destacar
especialmente a ousada arquitetura modernista; o jeito Bossa Nova de ser, afinando ouvidos e
corações; a utopia combativa da União Nacional de Estudantes - UNE, vista na genialidade de seu
Cinema Novo e do Centro Popular de Cultura - CPC); a intensa articulação operária e organização
sindical, com seus muitos pactos e movimentação (Pacto de Unidade Intersindical - PUI e Pacto de
Unidade e Ação - PUA), que culminaria no posterior combativo Comando Geral dos Trabalhadores
- CGT; a missão civilizatória do projeto UNESCO, apoiando particularmente as Ciências Sociais no
Brasil, através do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais - CBPE e do Centro Latinoamericano de Pesquisas em Ciências Sociais - CLAPS, e do independente Instituto de Ciências
Sociais - ICS; a intelligentsia nacionalista, que terminaria por promover o programa
24
Entre os anos 1920 a 1940 a expansão da urbanização no estado de São Paulo é marcante (43%), no entanto no
interior, o processo de urbanização evolui de forma acelerada e atomizada, reforçada pelo movimento de capitais
mercantis locais e investimentos de companhias de energia e telefonia e meios de transporte, bancos e instituições de
ensino, etc. Assim, até o fim da Segunda Guerra Mundial, a base econômica da maioria das capitais era fundada na
agricultura que se realiza em sua zona de influência e nas funções administrativas públicas e privadas. (Santos, 2004).
desenvolvimentista de JK, do Instituto Superior de Estudos Brasileiros - ISEB e da Comissão
Econômica para a América Latina e Caribe - CEPAL.
Evocações à parte, um contexto onde presenciaríamos o aumento de nossas disparidades
sociais e regionais, que reeditariam as citadas ‘anomalias’. Conforme atestam os especialistas,
grande parte do mérito e popularidade de Juscelino, incidiu sobre seu aproveitamento das
circunstâncias históricas favoráveis à época que promoveria o avanço de sua plataforma nacionaldesenvolvimentista,
atraindo
capitais
estrangeiros
para
fortalecer
nossa
industrialização
(BENEVIDES, 1979). Contudo, enfrentaria muitas ambigüidades e vicissitudes que tensionariam o
projeto nacional desenvolvimentista
25
. Um movimento que projetaria uma crise econômico-
financeira e político-social para a próxima década, colocando em pauta grandes temas nacionais,
acirrados nos deslocamentos e barganhas de poderes e contra-poderes que mudariam completamente
os ares e rumos da sociedade brasileira 26.
Enfim, imbricado nesses contextos e conjunturas históricas englobantes vão sendo gestados
programas, projetos e propostas de desenvolvimento que se expressariam também na construção de
cidades. Estas, passíveis de evocar em suas pontes, prédios, empresas, toda euforia e orgulho de
crescimento nacional. Ao mesmo tempo, de forma menos exaltada e mais intransparente, espaços
onde foram sendo talhadas, em sua gente comum, experiências e deslocamentos, muitas das
intempéries e vicissitudes de nossa conversão à modernidade. Afinal, se nunca fôramos, como então
seríamos modernos? 27
25
Destes, destacamos o recurso à administração paralela; ao capital estrangeiro, gerando uma dívida externa galopante e
déficit no balanço de pagamentos; a uma convivência controlada com a inflação, face à emissão de moeda para saldar as
dívidas e subvencionar os investimentos estatais, que desvalorizava o dinheiro e também os salários; à oposição política
e a prerrogativa de garantia das liberdades democráticas.
26
Neste contexto, por um lado, JK mantinha certo equilíbrio político, com forte base de apoio, mas com instituições
fracas. Por outro, incrementaria o debate nacional em torno de questões culturais e polêmicas políticas (a modernização
via capital estrangeiro e o endividamento externo, acirrando a discussão entre nacionalistas e entreguistas) (FAUSTO,
id. ibid).
27
Fazemos referência aqui à discussão de Bruno Latour, no livro Jamais Fomos Modernos, que recorre à noção de rede
para problematizar uma não-modernidade inerente a nossas práticas culturais. Isso significa dar um estatuto ontológico à
dimensão híbrida da experiência social; nem puramente modernos, nem inteiramente tradicionais. Seu argumento passou
a ter grande aplicabilidade em nossa reflexão acadêmica, em muitos e distintos campos disciplinares. Por exemplo,
Márcia Moraes recupera a discussão de Latour colocando que “vivemos num mundo povoado por objetos híbridos, nos
quais não conseguimos mais fazer operar as modernas práticas de purificação responsáveis por estabelecer as
distinções entre o natural e o social, o objeto e o sujeito. A soja transgênica, por exemplo, seria um objeto natural ou
social? Impossível delimitar estas fronteiras. Este objeto híbrido surgido das bancadas de um laboratório passa
atualmente por inúmeras traduções e deslocamentos se envolvendo em questões políticas, mercadológicas e jurídicas. A
noção de rede foi então apresentada por Latour como uma tese ontológica. Jamais fomos modernos porque jamais nos
encaixamos nas dicotomias que marcaram a modernidade. Nem natural nem social, somos como a soja transgênica,
híbridos sócio-técnicos. A noção de rede não é, para Latour, oposta à dicotomia moderna. Mas é aquilo que nos faz
passar ao largo destas dicotomias”. (http://www.necso.ufrj.br/Ato2003/MarciaMoraes.htm; acessado em 19/11/2006).
III Uma Questão Pontual: as cidades e suas interpretações
Entendemos que todas as propostas urbanísticas representam uma projeção territorializada
das relações de poder, uma vez que o objeto da intervenção tem como propósito delimitar/redefinir
um novo espaço de vivência e produção - as cidades. Consideramos, portanto, que as idéias e
concepções de um plano urbano, apoiadas em um discurso de valorização/desvalorização dos
espaços
28
, têm em vista a apropriação material e simbólica do lugar. Compreendida como um
projeto socioespacial, tais espaços dão concretude as novas formas de agir, posto que é resultante da
construção de um território definido juridicamente, lócus de produção, de relações sociais, de poder,
e de um cenário centralizador de instituições de controle.
Mutatis mutandis, essa consideração pode ser aproximada da reflexão de M. Foucault - tanto
em “As Palavras e as Coisas”, onde analisa criticamente a gênese das Ciências Humanas 29, quanto
em Vigiar e Punir (1978), ao interpretar detalhadamente distintas formas de repressão (uma
execução atroz e um minucioso emprego do tempo e controle dos corpos impostos numa casa de
detenção) -. Afinal, ciência, planejamento, classificação, controle do tempo, espaço, corpos,
corações e mentes, têm mesmo tudo a ver com um projeto de cidade 30.
A partir dos discursos sobre a ocupação e remodelação das cidades e de diferentes áreas,
podemos identificar as bases da argumentação do Estado ou de grupos sociais, processo que
revelaria uma prática hegemônica de criação de novos espaços e manipulação dos papéis sociais.
Nesta linha, podem ser detectadas as estratégias dos intelectuais e políticos em viabilizarem os seus
projetos públicos, com o fim de disseminar um modelo de civilização e progresso. Este processo
demonstra uma política de indução quanto ao uso futuro dos espaços, que conduz ao domínio
territorial e à construção de uma identidade espacial. (MORAES, 2002 -2003).
Feitas essas considerações, passemos então a discutir como a partir do projeto de
modernização do Brasil, as cidades se transformaram dialeticamente no próprio discurso da
Modernidade. Neste aspecto, os múltiplos olhares direcionados a estes espaços, serão expressões
28
Segundo Moraes (2001), uma das estratégias empregadas neste processo é a atribuição de características negativas e
positivas a alguns lugares.
29
Nesta obra Foucault descreve dois movimentos do pensamento moderno: o clássico, e o outro que o
sucederia\superaria, o moderno. Contudo, afirma haver uma continuidade superficial entre essas epistêmes, alegando
que somente no nível arqueológico emergeriam as diferenças entre ambos sistemas de pensamento.
30
Cabe lembrar aqui que, segundo Foucault, a eficácia do processo disciplinar incide sobre sua capacidade de produzir
tipos de individualidades/subjetividades dotadas de quatro características (orgânica, devido à codificação das atividades;
genérica, face à acumulação do tempo; combinatória, devido à combinação das forças; e celular, fruto de determinada
repartição espacial (ibid: 150).
desse movimento de transformação social, que conduzirá a um novo modo de pensar e agir sobre os
sítios urbanos. Sobre este aspecto, Berman (1986:143) exemplifica as várias interpretações que dela
se ocuparão e que sobre ela atuarão as elites em diferentes contextos:
"Em outras palavras, dos olhares sobre a cidade, surge o urbano. Com os olhos de especialistas,
uns vêem na cidade um organismo vivo, um corpo doente cuja profilaxia para a cura é a
higiene e o sanitarismo; outros vêem na cidade um lugar de vícios, desordens e crimes cuja
solução depende da disciplina e da manutenção da ordem social por meio da vigilância e da
repressão policial; outros ainda, vêem na cidade um espaço desordenado e disfuncional
restando à engenharia e à arquitetura o trabalho de reestruturação estética e urbanização
política da cidade a fim de estabelecer a cidade modelo. Esses e outros agenciamentos do olhar
sobre a cidade culminam na produção de um saber, fazendo da cidade antes um espaço de
poder. A cidade, tomando de empréstimo um epíteto a Angel Rama (1985), é cidade das letras.
Letras, no sentido de signos, ou símbolo de um saber; letras que são a expressão de um
exercício do olhar e uma representação do poder".
Essa teia de significados, induzida pelos diferentes “olhares” e representações sobre a cidade,
assinala um movimento descrito por Barros (..), na qual tais espaços estruturaram-se a partir dos
discursos produzidos pela e para a Modernidade, podendo ser interpretado enquanto fenômeno e
processo comunicacional
31
. Compreendendo esta perspectiva como legítima para analisarmos o
papel de uma cidade, passaremos então a discutir as cidades, orientadas por este viés analítico.
IV Um Objeto Particular: os olhares sobre as cidades no Brasil
A transformação dos conteúdos dos lugares tem significativa relevância quando no Brasil se
consolidam as relações capitalistas, notadamente quando a burguesia industrial, preocupada em
produzir em larga escala vai se ocupar, juntamente com o Estado, de controlar e organizar a
emergente “classe trabalhadora”. Ou seja, quando a cidade passa a ser o lócus da atividade
industrial, concentrando infraestruturas e aglomerado populacional, fatores indispensáveis para a
produção de mais-valia 32. No entanto, o novo sentido da cidade moderna, não pode ser buscado
exclusivamente na expansão do capital, exigindo atenção para o processo de construção e
enunciação da consciência e do homem moderno. Neste aspecto, conforme lembra Barros (?), “as
31
Exemplificando este postulado Ribeiro (1996) coloca que “nos anos 20 (...), o debate entre os modernistas opõe duas
correntes formadas em torno da discussão de caminhos da nossa inserção nos novos tempos: de um lado, aqueles que
acreditam que a modernidade seria alcançada pela total incorporação do país à ordem urbana e industrial, para quem
o moderno era o mesmo que ser civilizado, cosmopolita, ou seja, estar atualizado com o mundo; de outro lado, os que
propunham que o caminho da modernidade passava pela descoberta da nossa brasilidade e da nossa temporalidade”
(p.19).
32
Até meados do século XIX e as 1 as. décadas do séc. XX, a cidade brasileira não se constituía no “lugar” privilegiado
da localização da indústria, ocorrendo tendência a um relativo isolamento da produção industrial.
artes, a arquitetura, o urbanismo e a ciência assumem o lugar de operadores deste duplo
movimento: a construção de uma identidade nacional e de uma consciência moderna”.
Marco Aurélio A. de Filgeiras Gomes (2005) afirma que no Brasil, o pensamento sobre a
cidade acompanhou as mudanças aceleradas, processadas nos diferentes espaços e na sociedade,
sobretudo a partir de 1930. 33 Tais idéias, construídas nas instituições acadêmicas e profissionais, e
difundidas pelas revistas de engenharia e de arquitetura, tiveram expressivo crescimento a partir de
então. Os principais espaços disseminadores do ideário modernista foram as Escolas Politécnicas do
Rio de Janeiro e São Paulo, bem como a de Recife, Salvador, Belo Horizonte, Porto Alegre,
difusoras das tradições da École Politechnique de Paris, da escola Alemã e americana. Além disso,
demarca no processo de transferência de idéias, o papel dos Congressos profissionais e dos estágios
e intercâmbios estabelecidos por importantes arquitetos brasileiros no exterior,34 Paralelamente as
discussões que se estabeleciam em torno da problemática do urbano, travavam-se lutas para a
regulamentação profissional, sobretudo a partir dos anos 50 e 60. E neste movimento, o autor
assinala o importante papel assumido pelo IAB, tanto como espaço difusor de novas idéias sobre
cidade, urbanismo e movimento moderno, como de luta para reconhecimento profissional.
Portanto, do ponto de vista dos discursos produzidos para as cidades no Brasil, o autor
assinala que foi durante a década de 1930 até cerca de 1960, que vai se consolidar uma cultura
urbanística moderna. No entanto, apesar das influências estrangeiras, nosso ideário modernista
apresenta características particulares, uma verdadeira “mistura”. Conforme argumenta o autor, a
formação do campo urbanístico revela o embate de diferentes projetos e idéias urbanísticas e, em
maior ou menos grau, as adesões/adaptações e influências das concepções sobre urbano e urbanismo
estrangeiras. Neste sentido, deve-se compreender a cultura urbanística no Brasil como sendo híbrida,
já que foi resultante de um complexo processo de agenciamentos, envolvendo diferentes grupos e
relações de poder 35.
Discorrendo sobre o caráter híbrido que caracterizou o processo de “transferências” das
idéias urbanísticas no Brasil, sobretudo a influência exercida pelos Congressos Internacionais de
Arquitetura Moderna - CIAM’s e Le Corbusier, e particularmente, a Carta de Atenas, Feldman
33
Cabe ressaltar que o pensamento sobre as cidades brasileiras ficou expresso no desenvolvimento dessa temática em
outros campos do conhecimento, como a Sociologia e Geografia. No caso da Geografia, tais estudos tiveram amplo
desenvolvimento a partir da discussão sobre rede urbana, que também sob influência das escolas francesas, incrementou
estudos detalhados no interior das instituições acadêmicas e no IBGE, sobretudo a partir da década de 1950.
34
O autor assinala que no Congresso de 1940 “I Congresso Brasileiro de Urbanismo” revelou-se novas idéias de
planejamento integrado, que sugeria a criação de um Departamento Nacional de Urbanismo. Tais idéias foram
amplamente disseminadas nos anos de 1950 e 1960.
35
Nesta linha, cabe ressaltar, mas também relativizar, o papel assumido por Le Corbusier e os CIAM’s no
desenvolvimento de uma cultura urbanística.
(2005) discute alguns clichês amplamente difundidos na historiografia sobre o urbanismo no Brasil,
notadamente “aquele que afirma que a legislação urbanística se limita à separação das funções na
cidade” (p.73). Neste intuito, demonstra que nos CIAM’s, a maior preocupação dos arquitetos
modernistas era em dar respostas aos dilemas da vida urbana, uma abordagem entendida como
elementar para se compreender as principais vicissitudes da sociedade urbano-industrial.
Ao analisar o conteúdo dos CIAM’s, que ocorreram no período de 1928 e 1933, a autora
notou as diferentes abordagens adotadas ao tema legislação urbanística, identificando uma mudança
de concepção dos arquitetos sobre o caráter regulatório que a sociedade deveria assumir num mundo
marcado pelas transformações na Indústria, no Estado e no capital imobiliário. Neste processo,
argumenta que a idéia de urbanismo se metamorfoseia, o que revelaria a complexidade de diferentes
temas relacionados à vida urbana.
No que se refere ao processo de difusão dos postulados da Carta de Atenas no Brasil, afirma
que houve uma radical redução do conteúdo deste documento que foi construído ao longo dos
referidos Congressos. E neste sentido, incorpora-se no país, uma perspectiva limitada, na qual a
legislação passou a ser compreendida apenas como “técnica racionalizada para ordenar o espaço”, e
o zoneamento como o instrumento central das políticas de planejamento urbano
36
. Tal
deslocamento, difundido entre os anos 1930 e 1960, deixará alijada a dimensão política e social do
Estado na implementação de uma política de planejamento 37, questão que era central nas discussões
empreendidas nestes Congressos.
Luiz César Queiroz Ribeiro (1996), por seu turno, analisa a evolução das idéias e práticas do
urbanismo identificando os padrões de planejamento urbano historicamente elaborados para o
Brasil38. Neste movimento demonstra a maneira pela qual o tema “urbano” será representado pelos
intelectuais e como influenciará os modelos de planejamento urbano implementados em diferentes
contextos. Em linhas gerais, tais aspectos foram identificados nos seguintes contextos: a) Primeira
República (1880-1930) - um padrão filantrópico, higienista e objetivista onde as idéias sobre a
cidade - lócus da desordem - eram carregadas de negatividade, uma vez que ali habitavam as
“classes perigosas”; b) período Vargas (1930-1950), padrão higiênico-funcional, caracterizado pelo
deslocamento em torno das idéias urbanas, resultado de um novo diagnóstico sobre a sociedade,
36
Neste aspecto, assevera que a discussão sobre zoneamento realizada nos Congressos dos arquitetos, engenheiros e
urbanistas, se apropria de um viés calcado nas quatro funções básicas do ser humano, sem considerar o papel da
legislação urbanística de forma abrangente.
37
E de discutir a responsabilidade dos profissionais envolvidos em um projeto urbano e de políticas habitacionais para a
“classe trabalhadora”.
38
Compreendidos pelo autor como sendo: “um diagnóstico da realidade urbana, bem como a definição da forma,
objeto e objetivos da intervenção proposta”.
Estado e o papel que a cidade exerceria neste contexto
39
. No entanto, nos diagnósticos sobre a
cidade ainda mantinham-se um certo preconceito sobre tais áreas, provavelmente pela influência que
as oligarquias regionais exerciam; c) Era do Desenvolvimento (1950, em diante), a questão do
urbano passou a ser tema central para o desenvolvimento das políticas públicas. Ao longo desse
período, as várias representações e proposições sobre a cidade e o urbano revelavam visões e
ideários de Sociedade, Estado e Economia, o que levou ao desenvolvimento dos seguintes padrões:
técnico-burocratismo (substituindo os princípios organiscistas pelos funcionalistas, associadas às
propostas de racionalização administrativa, formuladas sob forte influência do planning americano),
o humanismo lebretiano (liderado pelo padre Lebret, articulava um movimento em prol da
democracia cristã nos anos 50 nos círculos católicos); a reforma urbana modernizadora (cujos
diagnósticos e propostas foram desenvolvidos pela esquerda brasileira, notadamente a partir de
1963, na qual se discutiram os problemas urbanos e habitacionais no Seminário sobre Habitação e
Reforma Urbana) e a reforma urbana redistributiva.(imbuída nas discussões sobre Abertura e em
torno da mobilização do Movimento da Reforma Urbana, se expressa a partir de 1980, tentando
resgatar o caráter redistributivo proposto na Reforma elaborada em 1963).
Diante desse intenso contexto de interesses e intenções, que alimentaria o debate sobre
cidade e modernização, de forma apenas propositiva, apresentaremos no próximo item, certos
discursos e histórias contadas sobre a cidade de Ipatinga, visando discutir o processo de criação
desta em 1964, como resultado/resultante de uma estratégia discursiva moderna, realizada pelos
novos grupos políticos dominantes; bem como interpretar as ações empreendidas por pessoas
comuns e lideranças locais sobre como estariam posicionadas nos circuitos da cidade.
V Uma Outra História: a moderna Ipatinga entre vozes silenciadas
Hino do
Ipatinga 40.
Município
de
Eu amo as manhãs douradas,
As manhas cheias de luz,
Sob as benções de uma cruz.
As Campinas verdejantes,
39
A gente brava que guarda
Pensamento senhoril
Do índio, do bandeirante
Para a glória do Brasil
Nesta linha, será dada ênfase a as políticas sociais, notadamente aquelas relacionadas ao campo do consumo
habitacional, tendo em vista a necessidade de conciliar os conflitos entre trabalhadores e empregados.
40
Letra: Maria Weber de Oliveira; música: Ana Lettro Stacks
Os ventos a soluçar...
O rio soberbo, gigante,
Peles várzeas a serpejar
Estribilho
Salve cidade ditosa,
Salve terra senhoril,
Jóia rara, preciosa.
No coração do Brasil
Eu amo as largas estradas
Serpentes a rastejar;
Os outeiros, as chapadas,
Florestas a murmurar
Amo o colosso gigante
Desperto no seio de Minas,
Erguido em massa possante
Na grandiosa Usiminas,
Amo teu nome, Ipatinga
Transbordando ao Oriente,
Levado da nossa História
Ao país do Sol Nascente.
Do progresso subiremos
Esta imensa espiral:
Com orgulho ostentaremos
Um nobre e puro ideal!
Salve, terra dadivosa
Voltada aos Céus divinais:
Estrela rara, formosa,
Fulgida em Minas Gerais!
Parte do que existe na cidade é signo, e o próprio ato de fundação de uma localidade reflete
uma construção discursiva que legitima e orienta sua materialização espacial. Podemos perceber na
letra do hino de Ipatinga que algumas de suas idéias revelam o processo de apropriação simbólica,
presentes no seu ato de criação: a necessidade de modernizar o Brasil e a região do Vale do Aço em
particular, o poder de uma empresa em dirigir o processo de expansão de uma cidade e os projetos
urbanísticos que se materializavam, em inúmeras obras de infraestrutura. O hino, neste sentido,
revela parte de um discurso, construído para a região e cidade que foi legitimado e oficializado pelos
diferentes agentes sociais, notadamente aqueles que se colocaram como protagonistas do processo
de emancipação da cidade. No entanto, como toda forma de representação, o hino da cidade
constitui-se num caminho para apreender os significados de uma história na qual lutas pelo domínio
e poder de uso de diferentes espaços, caracterizaram o seu processo de apropriação material e
simbólica. É no discurso das forças modernizadoras que propuseram e construíram a cidade
Ipatinga, e outras falas que foram silenciadas neste processo, que agora passaremos a discutir.
Na década de 1930, a região na qual a cidade de Ipatinga instalou seu sítio era habitada por
alguns posseiros, cujos terrenos foram posteriormente cedidos (?) e incorporados a um grande
patrimônio, que passou a ser de propriedade do Sr. Alberto Giovanni 41. Com a chegada na região da
companhia Belgo Mineira em 1934, que para lá migrou interessada em aumentar a sua produção de
carvão e assim abastecer suas usinas, localizadas em Monlevade e Sabará, as terras, outrora
ocupados por posseiros, passaram a ser alvo de disputas. Assim, visando expandir a extração de
madeiras e aumentar a produção de carvão, a Usina adquiriu a partir de compras, cessão e
apropriação, expressivas glebas de terrenos. Da ocupação e apropriação da área pela empresa,
participou o Sr. Alberto Giovanni, que conforme citamos, era grande proprietário de terras na
região. Tal processo contaria também com a participação do Estado, que recorreu aos seus aparatos
legítimos de violência (Weber, 1994), articulado com a empresa, o que engendrou muitos conflitos
locais
42
. Conforme podemos verificar no relato do Sr. João Batista Gonçalves no Jornal “O
Ipatingense”: “a empresa exercia forte pressão sobre os posseiros (...) e que o engenheiro enviado
pela empresa para desapropriar os posseiros “empregava seus bate-paus na parte mais populosa
da região”.
Um outro agente que mais tarde ocupou a região, acirrando os conflitos pela posse e
propriedade dos terrenos foram os empreiteiros responsáveis pela ferrovia Vitória Minas
43
. Na
mesma leva migraram para a região 300 baianos, contratados para auxiliar a construção da estrada
de ferro, protagonistas de um episódio dramático que se encerrou com a morte de 299 destes
migrantes. Após um mês de estadia, esses trabalhadores foram acometidos por uma epidemia que
assolava a região, agravada em função das péssimas condições de vida e infra-estrutura. O impacto
desse evento ajudaria a construir uma memória social daqueles muitos invisíveis, silenciados pela
História oficial. Porém, conforme podemos constatar, uma canção composta em homenagem a estas
vítimas, projetaria no tempo a visibilidade e voz dessas personagens.
Cantiga Popular
Coitado dos baianos
Não sabem de sua sina
Vêm morrer de febre
41
Chegando em Inhapim
Começaram a trabalhar
Na lagoa do Roque
Conta a Revista Ipatinga (1984) que o primeiro desbravador da região era um “caboclo” cujo nome era José Fabrício
Gomes - 1a pessoa que foi registrada como nascida em Barra Alegre, antigo Água Limpa, região na qual se instalou a
futura cidade de Ipatinga. (op. cit.)
42
Conta a Revista Ipatinga, que chegou na região o Sr Joaquim Gomes da Silveira Neto, fiscal do Estado, mas também
Superintendente da Belgo Mineira, com o objetivo de desapropriar os terrenos anteriormente habitados por posseiros.
Informa também que tal processo ocorreu de forma violenta e que muitos dos posseiros resistiram.
43
Estes, segundo a Revista de Ipatinga (1984), se estabeleceram com o fim de retirar lenha das matas para a fabricação
de dormentes.
Na estrada VitóriaIMinas
Foram logo se acampar
Chegando em Vitória
O especial Taí
Embarca baiano, embarca
Para a estação de Inhapim
Os mosquitos da febre
Nas barracas faz zum zum
Dos trezentos baianos
Morreram
Morreram, só ficou um
Chegando em João Neiva
Era hora de almoçar
O lastro desencarrilhou
Tiveram que pernoitar
Nessa perspectiva, a história da construção dessa estrada, ainda por ser resgatada, permite-nos
dimensionar processos instransparentes e subrepitícios dos mecanismos de dominação, como, por
exemplo, as precárias condições de vida dos migrantes e demais trabalhadores da região, o desprezo
dos governantes e a exploração exercida pela empresa aos trabalhadores e suas famílias. Segundo o
depoimento apresentado a Revista de Ipatinga de um dos enfermeiros que atuou na região naquele
período: “existiam por baixo da linha férrea, no trecho do Vale do Aço, mais ossos que dormentes
da estrada” (p.3-4). Também José Orozimbo, em depoimento no jornal “O Ipatinga” dizia em 1942
que: “a febre maltratava tanto os trabalhadores e suas famílias que a Belgo julgou por bem criar
um ponto de emergência, o qual recebia diariamente a média de 40% acometidos da moléstia”44.
Os episódios dramáticos vivenciados pelas primeiras famílias sugerem um controle quase
absoluto das empresas no processo de construção dessa região, e a sua capacidade de criar, sob seus
auspícios, um território, cujas regras eram fixadas a partir de interesses hegemônicos. Este, e outros
agentes hegemônicos, articulados com o Estado foram responsáveis pela transformação na estrutura
fundiária da região do Vale do Aço e da cidade de Ipatinga, e, nesse sentido, são pistas para melhor
compreendermos o “desenho” adquirido pela área.
Como revelam alguns documentos e
depoimentos de moradores antigos, a estrada Vitória-Minas mudou por várias vezes o seu traçado
em função de problemas, ou para otimizar o transporte de mercadorias e pessoas. E nesse
movimento, além de muitas vítimas, a empresa teve que se apossar, nem sempre de forma não
violenta, de terras outrora ocupadas por posseiros
44
45
45
. Conforme discutimos, a expansão da
O contágio com a doença ocorria no local denominado “Lagoa do Roque”, cuja cantiga popular faz referência.
Tendo iniciado a construção da Usiminas, o traçado da estrada foi alterado em função das demandas da empresa.
propriedade da empresa Belgo Mineira também ocorreu da mesma forma, ou seja, o seu patrimônio
foi constituído às custas de desapropriações violentas, com a conivência do Estado.
E nesse intrincado processo de ocupação, o lugarejo, anteriormente denominado de Barra
Alegre, foi paulatinamente sendo povoado até se transformar em Distrito em 25 de maio de 1950 46.
Ali, a vida econômica local baseava-se na produção de arroz, feijão e toucinho, que tanto abasteciam
o singelo mercado endógeno, como eram vendidos para outras localidades, além de serem
comercializados aos tropeiros que paravam na região. O Distrito de Ipatinga, criado em 1953, estava
vinculado ao município de Coronel Fabriciano e até 1958, constituía-se numa vila com cerca de 300
habitantes e 60 casas, sem rede de água, esgoto e energia elétrica, além de grande precariedade de
transporte urbano. No entanto, com a iminência da instalação da USIMINAS, um novo cenário
passou a ser pensado e significativas transformações ocorreram na região em função desse processo.
VI A Empreitada da Usina: o “homem-usiminas” e a cidade de Ipatinga
A instalação da empresa, no outrora Distrito de Ipatinga, e a futura emancipação da cidade
foram eventos que resultaram em lutas e conflitos, envolvendo lideranças locais, governo do estado
de Minas e representantes políticos do município de Coronel Fabriciano. De um lado, havia por
parte dos moradores do antigo Distrito, reclamações da atuação dos representantes políticos de
Coronel Fabriciano, acusando-os de não privilegiarem o lugar com obras de infraestrutura. De outro,
os interesses de alguns agentes, em função da iminência da instalação da USIMINAS, que prometia
empregos, valorização dos terrenos e, principalmente, recursos monetários para a cidade, através dos
seus impostos. Estes fatores, sem dúvida, podem explicar a efusão do debate entre as lideranças
locais e o movimento em prol da futura emancipação 47.
A idéia de instalação da Usina resultou de um movimento envolvendo diferentes grupos
políticos mineiros, que em 1956 se consolidou com o apoio da União e do governo do estado de
Minas
46
48
. Conforme apontado na contextualização (item 2), estava vinculado
à política de
O crescimento da população da região foi incrementado a partir da instalação da Belgo em 1937 e da estrada de Ferro
Vitória-Minas desde 1922. Estas trouxeram para região carvoeiros e tropeiros, que se misturaram aos pequenos
fazendeiros da localidade.
47
Este ponto será apreciado posteriormente quando realizarmos as análises das Atas da Câmara de vereadores da cidade
de Coronel Fabriciano e demais documentos do Distrito de Ipatinga que registram os conflitos de interesses envolvendo
a criação da cidade.
48
Cabe ressaltar neste processo a atuação do então ex- governador de Minas Gerais e atual presidente da República
Juscelino Kubitschek, que juntamente com outras lideranças regionais, argumentava a necessidade de fortalecer a
região, uma vez que a mesma apresentava vocação para a instalação de uma indústria siderúrgica. Nesta linha vale
também destacar o argumento da localização da CSN no Rio de Janeiro, enfatizando de se privilegiar Minas nesta
ocasião.
desenvolvimento, sobretudo a partir da década de 50, quando a economia brasileira “reelabora as
condições de dependência do país” se integrando definitivamente ao circuito do capital
internacional, sob hegemonia dos Estados Unidos. Nesta linha, ampliação do aço, ou seja, a
expansão da siderurgia, torna-se condição sine qua non para o crescimento de nossa indústria, fato
que autoriza Juscelino a mobilizar grande volume de capital para a viabilização deste projeto.
Os motivos da escolha do lugar para instalação da empresa vinculavam-se à presença de
minério na região e a existência de uma estrada de ferro - a EFVB
49
. A existência desses dois
fatores locacionais possibilitariam aos grupos mineiros viabilizarem o seu projeto, que era
consolidar o estado de Minas Gerais, como pólo siderúrgico do país 50. Com este o intuito ficou
estabelecido à participação do governo do estado de Minas pelas Leis estaduais no. 1.658, de 1o de
outubro de 1957 e 2.325, de 7/01/1961, que asseguraram a participação do estado no aumento do
capital da Usiminas, no limite de 20% 51.
Negociações realizadas com grupos japoneses interessados em participar do empreendimento,
resultaram na assinatura de um acordo Brasil-Japão, que estabeleceu os pontos básicos da
cooperação técnica e financeira entre os governos (estadual e União) e os grupos privados. Como
resultado, os estatutos para a criação da empresa foram alterados na Assembléia Geral realizada em
20 de janeiro de 1958, elevando-se o capital para três bilhões e 200 milhões de cruzeiros. 52 Em
fevereiro de 1962, o capital social da empresa foi ampliado para o valor de 18 bilhões de cruzeiros.
Este, passou a ser constituído pela união de seis organizações brasileiras (60%), governo do estado
de Minas (23,95%), Cia. Vale do Rio Doce S.A (9,0%), Cia. Aços Especiais Itabira- ACESITA
(0,8%), Cia. Siderúrgica Nacional (62,0%), Banco Mineiro da produção Hipotecária e Agrícola do
estado de Minas Gerais e Banco de Crédito Real de Minas (0,85%) e pequenos acionistas (0,14%).
A criação de uma cidade planejada na localidade teve como propósito abrigar a força de
trabalho para atender demanda da USIMINAS, tendo em vista o número limitado de mão de obra na
região. Neste sentido, a experiência de Ipatinga nos sugere a discussão sobre as formas de controle
socioespaciais estabelecidas a partir dos interesses de um setor econômico. Uma nova problemática
urbana que emerge a partir do processo de industrialização de uma localidade, e das novas
modalidades de “arrumação” do espaço. Mas além, incita-nos a discussão sobre as estratégias de
49
Havia também a presença da ACESITA, instalada em Timóteo, distrito de Coronel Fabriciano, em 1944.
Segundo informações do Folheto Publicitário (1944), o capital empregado para instalação da empresa era de
Cr$5.850.000,00, subscrito e realizado por empresas privadas, capitalistas e industriais do estado de Minas Gerais, na
qualidade de uma sociedade pioneira. Tal capital tinha como objetivo proceder estudos técnicos para a instalação de uma
sociedade siderúrgica integrada para a fabricação de produtos planos.
51
Para tanto o governo do estado deveria utilizar os recursos do Fundo de Siderurgia”
52
Este capital foi inteiramente subscrito na 1a etapa da instalação da empresa.
50
controle dos grupos dominantes com o fim de “domesticar” a força de trabalho e consolidar o seu
projeto econômico.
Neste cenário recriam-se ou se requalificam os idéarios, relacionados à
limpeza, a higiene, a beleza e a funcionalidade, sendo o planejamento da área, um dos instrumentos
a partir dos quais tais projetos irão se casar. A cidade de Ipatinga insere-se de duas formas nesta
nova cena urbana: como um espaço de controle e cenário de modernidade. Neste aspecto, não foge a
regra das demais cidades-empresas criadas no Brasil, posto que foi gestada para criar uma nova
ordem, e mesmo de um poder disciplinar.
De acordo com R. Monte-Mór (1999), a cidade de Ipatinga resultou de um projeto urbanístico
“minucioso” e abrangente, elaborado pelo arquiteto Hardy Filho. Este, no memorial apresentado
para sua construção, afirmava que a cidade deveria acompanhar o crescimento da indústria, portanto
ser flexível, dinâmica e capaz de acompanhar o econômico e demográfico para a localidade.
Discutindo conceitualmente o seu projeto com o de Brasília, advogava a existência das matrizes do
urbanismo modernista, assinalando as características tipológicas que o identificava, tais como a
monumentalidade, uma trama urbana elaborada com o fim de direcionar o crescimento futuro da
cidade e hierarquias funcionais.
De acordo com a Prefeitura Municipal de Ipatinga (1991), inicialmente pretendia-se separar
completamente a cidade da USIMINAS - a cidade planejada - do seu entorno social. Neste aspecto,
pensou-se em criar unicamente condições para a sobrevivência e controle pela empresa do grupo de
trabalhadores treinados com o fim de operacionalizar a indústria. Fruto dessa política, centenas de
japoneses - mão de obra qualificada - vieram morar na cidade 53.
“Condicionada pela localização e layout da planta da siderúrgica, pelo rio Piracicaba e
pela EFVM, a cidade é concebida de forma linear, na qual os bairros residenciais são ligados
por eficientes vias de circulação que circundam a usina (...) Dentro de cada bairro, há uma
homogeneidade na arquitetuta das edificações e na inserção sócio- econômica funcional dos
seu habitantes, ou seja, há bairros para os chefes e quadros superiores, para operadores, para
mão-de-obra não especializada. O espaço urbano projetado reproduziu, na cidade, as relações
funcionais e de poder no âmbito das relações de trabalho.” (p.29).
A cidade linear, planejada, “dos homens produzidos em série”, conforme afirma a Prefeitura
(op. cit.), reproduz as mesmas divisões do ambiente do trabalho. É, neste sentido, uma extensão da
fábrica: “um pátio onde estacionam máquinas fora do seu horário de uso” (p.23). Cria-se neste
cenário a figura do “Homem-Usiminas” e uma “Cultura Usiminas”, na qual o cruzamento de valores
morais são acionados para consolidar uma imagem de empresa cordial; a velha cordialidade à
53
Em 1966, o governo brasileiro assume a tarefa de operar a usina, com a transferência de responsabilidade para os
brasileiros.
brasileira 54. Uma imagem, que é reforçada por outros “textos” e “contextos”, tais como os discursos
das lideranças locais, do hino, bandeiras, nomes de ruas e praças. Uma imagem que é finalmente
cristalizada na arquitetura, que tem como projeto utópico levar o progresso para a localidade.
VII Ipatinga hoje: o dilema cidade real e cidade ideal
Gostaríamos de concluir nosso texto projetando esses campos, interesses, objetos e histórias,
buscando compreender Ipatinga hoje, para que possamos melhor “habitá-la”. De certa forma, sua
realidade econômica e sua trama social tornam explícita uma política que privilegiou determinados
setores, locais e regiões, em detrimento de outros 55. E, mais ainda, revelam um processo na qual o
confronto entre sonho e realidade se cruzam: a cidade emancipa-se, surge a prefeitura, o sindicato, o
comércio, as escolas e clubes, as instituições filantrópicas, os grupos sociais excluídos solicitando
maior visibilidade, a igreja, a organização política, o Partido dos Trabalhadores... E nessa
emaranhada rede de relações socioespaciais, a cidade torna-se de “quartzo”.
Apenas para demarcar melhor sua posição, dados recentes fornecidos pela Fundação João
Pinheiro demonstram a importância capital da cidade de Ipatinga para a região do Vale do Aço, e
para o ambicioso projeto político de Minas, de cada vez mais estreitar-se com o poder, em níveis
que extrapolariam seus limites regionais.
Está localizada na região do Rio Doce, que possui 102 municípios, dos quais apenas 6 incluindo Ipatinga - concentram 75% do PIB - cerca de seis bilhões de reais. É o sétimo município
em termos de participação do PIB estadual - 2,47% , sendo o produto industrial o quinto maior do
estado, respondendo por 2 bi1hões e 215 mil reais. Segundo dados do IBGE, a cidade apresenta uma
população de 221.800 habitantes vivendo majoritariamente nas áreas urbanas, em atividade
comerciais (maior parte) e de serviços. Devido a sua vinculação ao setor industrial, o comércio e os
serviços são também concentrados nas áreas que apresentam maior dinamismo econômico.
Pensada em termos de uma cidade aberta desde sua concepção, Ipatinga cresceu muito mais
do que o planejado. E as marcas desse crescimento, cujos caminhos pretendemos analisar, estão
expressas em sua paisagem, mais concretamente naquilo que passou identificar o espaço
ipatinguense: “a cidade espontânea” vs a “cidade planejada”.
54
Antonio Cândido, prefaciando S. B. de Holanda, num clássico à interpretação do Brasil, demarcaria os atributos
inerentes a nossa cordialidade: a dimensão aparente da sociedade, incapaz de impor-se ao sujeito e de estruturar
radicalmente uma ordem coletiva; a ambigüidade de um individualismo particularista, mediante uma lei que cerce e
contrarie interesses individuais e a falta de habilidade e vocação para engajar-se num objetivo exterior (2000, p. 17).
55
A aglomeração urbana do Vale do Aço, estruturada em torno do dinamismo das siderúrgicas ACESITA e USIMINAS,
tem apresentado crescimento desde a década de 1940. Neste aspecto, a implantação das duas siderúrgicas tiveram um
papel central no crescimento e diferenciação econômica e social nesta região.
Bem, esta ambigüidade nos sugere alguns questionamentos que vão alimentando nossa
vontade de saber, incitando-nos à colocação de diversas e distintas questões que se encontram
sempre no reduto da cidade. Afinal, até que ponto Ipatinga representa a conquista de um território,
como símbolo da imposição de um projeto de organização social? De que forma o projeto
urbanístico da cidade contribuiu para definição de uma identidade espacial? Mas também para a
profunda segmentação do espaço da cidade? Como a luta pela condição de emancipação pode ter
contribuído para a definição de novas lógicas centro-periferia? Em que medida as “classes
populares” estiveram representadas no processo de emancipação? Onde se esconderia hoje a
pobreza dessa orgulhosa cidade? Em quais lugares encontraríamos os nexos e paradoxos de sua
modernidade? Ou melhor, em quais instâncias se abrigariam determinada experiência e dada
memória de exclusão?
Enfim, esse elenco de questões vai se configurando em problemáticas reflexivas que têm nos
instigado a percorrer novos trajetos e vislumbrar outras paisagens, em muitas idas e vindas à
Ipatinga.
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Gomes (2005) afirma que após a década de 1930 a 1960 desenvolve