2014-03-04
Rendimento Básico Incondicional (RBI) – contextualização e formas de financiamento
António Pedro Dores
Professor Auxiliar com Agregação do Departamento de Sociologia e do
Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES/ISCTE-IUL)
1. Na ideia de propor o RBI conjugam-se diferentes vontades, a saber: a) promover
segurança para a vitalidade das pessoas, sem interferir nem no aspecto identitário
(ou de classe) nem no aspecto político (ou partidário) das opções de cada um@; b)
usar o sistema financeiro e, portanto o dinheiro, como instrumento para tal
finalidade; c) a universalidade da atribuição de condições suficientes para uma vida
digna; d) a atribuição individual do dinheiro, com eventual discriminação dos
menores de idade no montante a entregar; e) abolir o moralismo caritativo.
2. Espera-se, através da convergência de tais vontades numa política pública básica,
obter como resultados: a) abolição da pobreza; b) abolição do monopólio do acesso
a recursos por parte de certas categorias da população (homens, trabalhadores,
capitalistas, rendeiros, adultos) garantindo a todos e cada um recursos suficientes
para organizar uma vida pessoal independente; c) abolição dos mecanismos
institucionais e culturais de perpetuação da pobreza e da exploração dessa situação
por parte de uma indústria de reciclagem de pessoas apanhadas nessas armadilhas
sociais e políticas; d) abolição dos dramas emocionais do desemprego, substituídos
pela valorização da capacitação pessoal e social na altura da escolha de uma
actividade produtiva (o que reclama uma forte e profunda reestruturação dos
sistemas educativos); e) abolição do fornecimento gratuito de alimentos a crianças
com famílias, nas escolas ou noutras instituições; f) contributo para minorar as
situações de violência doméstica; f) redução das desigualdades de rendimento e,
com isso, redução das disfuncionalidades sociais directa e indirectamente
associadas (problemas de saúde, criminalidade, encarceramento, abandono e
outros maus tratos a crianças, gravidez juvenil, escravatura, assédio laboral, assédio
sexual, violações, abusos sexuais de crianças, etc.), conforme está provado ser o
caso com o trabalho de Wilkinson e Picktett, Espírito de Igualdade (Spirit Level no
original).
3. O RBI é uma proposta antiga e tem muitos outros nomes, consoante as diferentes
tradições que convergem neste tipo de propostas e neste tipo de objectivos. Não se
trata de um quadro político mas antes de uma plataforma política onde a
convergência das diferentes tradições se está a realizar, paulatinamente. A luta
contra o dogmatismo e o moralismo está não apenas na sua génese mas também à
sua frente. Os interesses corporativos – dos grupos económicos, dos diferentes
funcionalismos (públicos, privados e público-privados, dos sindicatos, entidades
patronais e outros lóbis, das autarcias), do patriarcalismo, da caridade, das
oligarquias, das culturas de colonialidade (culturas colonialistas retomadas pelas
elites das populações anteriormente colonizadas) – estão fortemente incorporados
nas sociedades modernas. Tais interesses têm-se mantido na era pós-moderna e
pós-colonial através da imposição de obscurantismos vários. Os segredos de Estado
denunciados pelo Wikileaks e por Eduard Snowden ou as prisões secretas da CIA,
são apenas exemplos. As vistas curtas das ciências sociais ao serviço de situações
institucionais e políticas decadentes e desumanas – de que os estudos em economia
e gestão são os casos mais flagrantes, dada precisamente a sua recusa em
apresentarem alternativas democráticas aos riscos de submissão às oligarquias
vigentes. Estes e outros obscurantismos servem para se considerar a oligarquia
compatível com a democracia e minimizar os estragos das denúncias populares do
mal-estar crescente.
4. Um dos problemas práticos para implementar o RBI é saber como financiar o
processo de distribuição universal e incondicional de dinheiro a cada pessoa. O que
se fará através de uma decisão do Estado executada através do sistema bancário,
que deixará na conta pessoal de cada um, todos os meses, uma quantia pré-definida
e igual para todos.
5. A primeira das formas de financiar o RBI apresentada no site “Revenu Base”
http://revenudebase.info/comprendre-le-revenu-de-base/financement/ trata de
substituir as actuais contribuições condicionais e para grupos sociais específicos
(como se fossem corporações mas de classe inferior – não recebem rendas, lucros,
salários, honorários, gratificações, cunhas, prendas, mas antes subsídios e
donativos) por direitos universais a um rendimento (cuja dignidade não foi avaliada
no trabalho apresentado).
O estudos verifica, para a França, ter havido na primeira década do século XXI um
efeito contra redistributivo nas prestações sociais. Isto é: o efeito redistributivo, em
que os maiores rendimentos pagariam mais impostos de modo a que os menores
rendimentos pudessem ser complementados através da canalização de recursos dos
mais ricos para os mais pobres, organizada pelo Estado, diminuiu. Entretanto, o
sistema tornou-me extremamente complexo (cujos custos não são avaliados no
trabalho, mas serão importantes), difícil de auditar e pouco flexível, obrigando a
realidade (funcionários e beneficiários) a adaptar-se às possibilidades burocráticas,
favorecendo a corrupção (pois torna-se difícil de discernir a diferença entre
ultrapassar obstáculos burocráticos e tirar proveito da confusão). Em alternativa, o
autor propõe uma reorganização do sistema de forma a ser possível compreendê-lo
(desfavorecendo a corrupção), tornando-o mais igualitário e eficaz (combatendo os
incentivos ao ócio que o actual sistema de penalização das actividades de obtenção
de rendimentos estabeleceu). Prevê cotizações sociais proporcionais de 25% para
assalariados e 20% para os outros, 20% de imposto para todos os rendimentos e 1%
sobre o património (uma vez deduzidas as dívidas relativas à aquisição dos
mesmos). Para 2010 o RBI em França, nas condições testadas, permitiria a
distribuição de 192 euros por cada menor e 384 euros por cada adulto.
Neste trabalho refere-se a necessidade de intervenção ao nível dos mercados de
alojamento. Mas a segurança da vida das pessoas depende de sistemas de
transportes e de saúde, que merecem também especial atenção para efeitos do
bem-estar. Já ao nível do bem viver, o sistema educativo e a sua (a)versão à
educação ao longo da vida precisa de ser igualmente actualizado, perante as novas
necessidades e condições políticas a implementar com o RBI.
Mantêm-se financiamentos corporativos organizados pelo Estado, como os que
financiam reformas e desemprego, financiamentos universais para a saúde.
6. Esta proposta pode ser melhorada, se se admitir aprofundar a produção de receitas.
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Atingir um intervalo entre 425 euros e 750 euros mensais (adultos) permitiria a
verdadeira independência pessoal possibilitada pelo RBI. Isso significa aprofundar a
redistribuição do mecanismo, isto é, aumentar as contribuições, sobretudo dos que
auferem mais rendimentos.
Outra forma de encarar o problema é concentrarmo-nos nas subvenções não
contributivas (apoios ao emprego e à formação, bolsas de estudantes, subsídios
familiares, apoios ao alojamento), que deixariam de se justificar. Essa poupança, por
si só, poderia permitir, em França, uma distribuição de RBI no valor de 200
euros/adulto e 60 euros/criança.
Outra perspectiva ainda é organizar uma política de colaboração das pessoas na luta
contra a evasão fiscal em troca do RBI (todo o trabalho deveria ser legalizado e todas
as declarações ao Estado deveriam ser reais e estarem actualizadas, precisamente
como forma de financiamento do RBI; as pessoas poderiam passar a reclamar mais
sistematicamente as facturas reais dos seus consumos, para proteger o RBI). A a
contribuição social geral deveria aumentar. Eventualmente ligar o combate à fraude
e evasão fiscal com os níveis de contribuição social geral, baixando esta à medida
que seja possível maior rendimento fiscal, promovendo um incentivo político para a
monitorização da luta contra a corrupção.
Um sistema de transformação mais radical, que se funda na mobilização dos fundos
de reforma para o RBI, para não ser tão injusto como as políticas actuais, requereria
um período longo de transição, até que as últimas pensões deixassem de ser pagas.
A radicalidade sai pela porta pequena. Numa altura em que são precisas soluções
imediatas.
Uma linha de proposta de reforma do sistema financeiro do Euro passa pela
utilização dos cidadãos como meios de gestão da massa monetária. Em vez de
abandonar o controlo da massa monetária aos bancos – através da criação de crédito
– esse poder deveria passar a caber ao Banco Central. Ou melhor, o aumento da
massa monetária em circulação deveria ser canalizado para o RBI, permitindo o seu
aumento (variável), mas, ao mesmo tempo, um mercado financeiro mais estável e
menos susceptível a bolhas especulativas. Isso permitiria um RBI de talvez 150
euros adulto na zona euro com uma perspectiva de crescimento anual de 6% (se se
mantiver a tendência da última década).
Centrando-nos na política de solos, há outras possibilidades a explorar. Além das
diferenças de acesso ao solo, as injustiças situam-se também na circunstância da
valorização extraordinária de certos terrenos relativamente à desvalorização de
outros. Em termos sociais e demográficos, esse fenómeno de (des)valorização está
associado ao afunilamento cada vez maior do valor dos terrenos (e das pessoas) em
centros metropolitanos cada vez mais densamente povoados, em contraste com a
desertificação de outros territórios económica e geograficamente igualmente
habitáveis. A irracionalidade desta concentração de população tem sido impossível
de combater nas últimas décadas. Terras aráveis férteis e fontes de água potável
têm sido destruídas por urbanizações especulativas. Intervenções industriais
ecologicamente devastadoras (como na floresta) ocupam o território abandonado e
sujeito a destruição de valor (como nas “épocas de fogos”).
Um aspecto financeiro do problema refere-se à perspectiva de tornar a construção
urbana economicamente incluída nos processos de controlo social dos recursos
disponíveis, taxando os bens que doutra forma podem tender a ficar abandonados,
com prejuízo geral e sem benefício para ninguém, como é o caso das casas devolutas
em zonas de alta concentração urbana.
Trata-se de uma grande reforma fiscal, mas que por si só não seria suficiente para
financiar o RBI.
12. Para que possa ter algum significado sensível para o RBI, há propostas para estender
o conceito aqui aplicado aos terrenos a todo o património das famílias, incluindo
portanto bens imobiliários, mobiliários e financeiros. A vantagem seria a de
promover mais redistribuição do que os impostos sobre rendimentos, dadas as
maiores desigualdades de património do que de rendimento. Em França, uma
proposta avançada sobre o assunto daria para financiar 120 euro/adulto e 60
euro/criança.
13. Outra fonte de rendimentos com base no território é taxar as indústrias extractivas.
Essa prática redistributiva já se pratica no Alaska e no Irão. Poderia generalizar-se.
14. Outra fonte potencial seria a das taxas verdes, cobradas a partir dos consumos
industriais de CO2 e de materiais produzidos a partir de fontes de energia não
renováveis.
Em resumo: conforme as perspectivas, o RBI é mobilizado para a actualização do conjunto
dos sistemas de financiamento das prestações sociais com vista a inverter a cada vez menor
redistribuição, evitar a opacidade e facilitar a transparência das contribuições do Estado,
favorecer a justiça social e a prevenção de todo o género de problemas sociais induzidos
pela sua falta, tornar as populações parceiras das reformas financeiras com vista à
estabilização e pacificação das relações sociais, assim como das políticas de conservação da
natureza, equalizar os direitos naturais das pessoas à Terra e aos seus recursos, estimular as
populações a participarem no combate à economia paralela, à evasão fiscal e à corrupção.
Não será por falta de recursos ou de sentido social do investimento que o RBI será inibido.
Uma das principais fontes sociais de resistência a levar a cabo tais perspectivas é a ideia de
que será possível reverter a lógica política que tem vingado nos últimos 30 anos e voltar a
valorizar os empregos e carreiras garantidas pelo Estado. Um dia, pensa-se (sobretudo as
pessoas que viveram toda a vida na ideia de se identificarem com uma carreira para a vida,
associada a distinções sociais particulares e hierarquizadas) a precariedade laboral será
abolida e o Estado irá empregar toda a gente que seja necessário para realizar o desiderato
do pleno emprego, isto é, um mundo de assalariados politicamente irresponsáveis a nível
individual e representados por sindicatos ou partidos – eles próprios, claro, com carreiras
garantidas e permanentes ao serviço … de quem pagar melhor, segundo lógicas
meritocráticas pervertidas pelas oligarquias vigentes e por concepções formais e limitadas
de liberdade e democracia.
O RBI deverá, portanto, incluir expressamente a discussão da abolição de serviços de
controlo social do Estado, lá onde os direitos humanos eventualmente (não) são defendidos
– o que, na prática, quer dizer, onde os direitos humanos podem ser e são violados
quotidianamente. Isto inclui os serviços sociais, as formas de regulação das actividades da
sociedade civil – profissões, seitas, financiamentos das ONG´s, etc. –, as polícias, a justiça
criminal e a justiça administrativa. O que libertará mais recursos canalizáveis para financiar o
RBI. E responsabilizará as pessoas, cada pessoa, para se focar na organização das suas
próprias vidas e do meio social e ambiental que deverá construir para nele viverem, em vez
de deixarem ao cuidado das empresas ou dos Estados aquilo que estes, entregues a si
mesmos, já provaram não poderem fazer.
Uma das fontes de financiamento do RBI serão, pois, os cortes nas despesas dos Estados e
dos privados neste tipo de serviços que passam a ser realizados de forma mais efectiva e
eficaz directamente pelas populações libertadas e pelas escolas que devem suporte aos
processos de libertação espoletados pela disponibilidade de RBI – nomeadamente
criando-se sistemas integrados de auto-promoção de saúde mental, social e de
sociabilidades locais capazes de cumprirem aquilo que tem sido compreensivelmente
impossível às autoridades de controlo social, como a organização da luta contra a violência
doméstica e o abuso das pessoas mais frágeis ou temporariamente fragilizadas, em
particular através de sistema de monitorização proactiva de situações de risco. O que, por
sua vez, sem outros mecanismos, preveniria a criminalidade e o abuso das autoridades
contra as populações, cuja guerra interessa às oligarquias mas não interessa nem a paz social
nem aos defensores dos direitos humanos de todos os humanos.
Seria também do interesse do RBI e da economia social por ele financiada,
independentemente da economia capitalista e a de Estado e da especulação financeira,
organizar de forma voluntária a regulação da exploração dos bens comuns, como a água, a
energia, os bens alimentares, a actividade bancária, as contas do Estado, o funcionamento
da justiça, acesso à informação e à cultura, funções fundamentais para as sociedades actuais
e manifestamente falhadas no modo estatal e auto-regulado já experimentados até hoje. O
que seria feito através do voluntariado libertado pelo RBI a preços nulos e com eficiência
social melhorada pela independência que actualmente nem as entidades reguladoras nem
as ONG´s podem garantir.
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(RBI) – contextualização e formas de financiamento