Bernardino, Joaze; Galdino, Daniela (orgs.) (2004) Levando a raça a
sério: ação afirmativ a e universidade. Rio de Janeiro: DP&A.
ISBN: 85-7490-294-2
256 p.
Gomes, Nilma Lino; Martins, Aracy Alves (orgs.) (2004) Afirmando
direitos: acesso e permanência de jovens ne gros na universidade. Belo
Horizonte: Autêntica.
ISBN: 85-7526-139-8
296 p.
Resenhado por Francis Musa Boakari
University of the Incarnate Word
This review is also available in English.
Fevereiro 26, 2007
Pedagogia do diferente: o poder transformador da educação - social e escolar.
http://edrev.asu.edu/reviews/revp51
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Estas duas obras chamam atenção para a mesma problemática: o racismo à brasileira.
Os dois conjuntos de autores providenciam fundamentação sólida e material tanto essencial
quanto propício ao contexto brasileiro, para viabilizar um engajamento necessário: a Pedagogia
do diferente.
Para o(a) leitor(a) brasileiro(a) atencioso(a), aquele(a) que incorpora a realidade do
mundo exterior ao seu olhar preocupado em entender o seu mundo local ainda neste início
do século XXI, os títulos das obras já apontam para o tema que não poderia escapar a
ninguém que acompanha o noticiário internacional; geralmente uma coletânea de notícias
sobre conflitos entre diversos grupos sociais cujos interesses, apesar destes se entrecruzarem
com possibilidades de se complementarem, servem de justificativas para todos os tipos de
tratamentos desumanos, e muitas vezes considerados bárbaros. Isto geralmente acontece
porque os membros destes agrupamentos estão expostos e assimilam informações,
deliberadamente distorcidas, uns sobre os outros. Sem se conhecerem de verdade, os grupos
deixam as inter-relações sob controle de presumpções e pré-noções conturbadas. Desta
maneira, os preconceitos ficam fortalecidos para construir os edifícios de desconfiança uns
aos outros. As alteridades também sofrem de sub-julgamentos conseqüentes. Estas
desconfianças e alteridades sub-julgadas por sua vez, alimentam discriminações com
conseqüências imprevisíveis. Se as causas principais dos problemas do século passado
explicavam-se por fatores de diferenças, neste século, tudo indica que as questões identitárias
e de co-identidades despercebidas continuarão a desempenhar este papel. Atrocidades, como
ataques terroristas em diversas partes do mundo, promovidas nestes dias por alguns grupos
que se diferenciam, baseadas em orientações religiosas (guerras das culturas), comprovariam
a validade da hipótese acima.
A questão das diferenças em suas manifestações (as significações) variadas,
especialmente nas conseqüências cotidianas, hoje faz parte da vida de todas as pessoas.
Hodiernamente poucos são os acontecimentos que não indicam que qualquer indivíduo que
vira as costas e se fecha contra as ondas das discussões, atividades, ações, e decisões acerca
daqueles que “são diferentes dele(a)”, está recusando ver a si próprio(a) porque “os(as)
diferentes” somos todos nós. É neste sentido que chamo atenção à uma Pedagogia do diferente
... para o consciente contemporâneo. Todo mundo é ser humano, mas há características naturais e
qualidades construídas que utilizamos para afirmar diferenças e erguer barreiras quando
decidirmos não priorizar as nossas semelhanças humanas. Através deste mesmo processo, as
pessoas constrõem suas identidades que as definem nas suas respectativas individualidades.
As identidades servem de pontos de referência necessários para se conhecer a si próprio com
a confirmação de outros em afirmarem que a sua identidade priorizada, combinam muito
bem com o que sabem de você. Em outras palavras, você é aquela pessoa quem você se
considera ser. Mas para servir de identidade aceitável, outros têm que concordar com tal
consideração, e assim, confirmam a sua definição de si próprio. Uma outra pessoa (o
diferente) ajuda um indivíduo a se conhecer melhor porque esta outra serve de parâmetro
comparativo. Assim, a diferença desempenha o papel fundamental de ser alicerce e
referência na construção das diversas individualidades que se apoiam nas múltiplas
identidades que todo indivíduo possui. Urge incorporar e trabalhar com as diferenças e
múltiplas individualidades (diversidade) em todas as suas dimensões para suscitar um
processo vital de uma Pedagogia do diferente.
Pensando bem nisto, para uma sociedade como a brasileira que não somente se
orgulha da sua diversidade rica em grupos raciais, étnicos, culturais, regionais, e indígenas,
mas também usufrui dos benefícios desta condição, os(as) autores(as) das obras citadas
acima oferecem um convite generalizado para o(a) leitor(a) se informar melhor sobre os
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diferentes como os(as) brasileiros(as) negros(as) e indígenas. As mulheres, em particular as
negras, se encontram nesta categoria do diferente por causa de mais de uma condição. Estas
publicações serviriam de boa leitura para quem não acredita que a “democracia racial” é um
equívoco na lógica do cotidiano de grande parte da população brasileira. Os dois livros
juntos também, contêm informações valiosas tanto para as pessoas que se fazem favoráveis
quanto para as que são contra as ações afirmativas (medidas compensatórias de cunho social)
voltadas aos grupos sub-representados, particularmente nas universidades públicas. Ali
contêm dados fundamentais para compreensão de algumas das razões explicativas da
realidade brasileira contraditória, histórica e atual. Se os(as) conscientes contemporâneos(as) não
assumirem as suas responsabilidades de cidadãos engajados(as) na construção de um Brasil
cuja essência é a diversidade, o país contrinuará a perder a brasilidade.
Para o(a) leitor(a) jovem, os livros têm detalhes que mostram a necessidade de se
envolver no “fazer de um Brasil novo”, uma sociedade em que todos são valorizados por
causa de suas competências e contribuições concretas. E, nas palavras proféticas de Martin
Luther King Júnior, [...] tenho um sonho que chegará um dia em que as minhas quatro crianças viveriam
numa sociedade onde não seriam julgadas pelas aparências, mas pelas personalidades e habilidades
evidenciadas. Luther King e outros acreditam na força da sociedade civil organizada que
desenvolveria uma sociedade meritocrática. Por sociedade meritocrática, estou me referindo
à uma comunidade, qualquer que seja o seu nível de complexidade, onde o mérito como
resultado de esforços próprios, é reconhecido como critério predominante para ter igual
acesso aos oportunidades e tipos de reconhecimento social. As expectativas e avaliações não
somente são claramente definidas, disseminadas e entendidas, mas são muito comparáveis
para todas as pessoas. Este tipo de sociedade é sempre preferível porque nela as pessoas
podem contribuir mais devido ao fato de que serve de espaço onde a criatividade, liberdade,
colaboração, dignidade e o respeito, são igualmente disponíveis a todos para enriquecer as
individualidades, e assim, melhorar toda a comunidade.
Que país é este?
Para o Brasil crescer, se juntar aos outros países do mundo contemporâneo,
competir com outros países com alguma possibilidade de sucesso razoável no contexto da
globalização, carece que os(as) brasileiros(as) se modifiquem. Contudo, para que isto seja
possível, uma primeira tarefa será de se conhecerem como realmente o são, no seu sentido
histórico e na sua realidade concreta e atual. Os textos dos dois livros ajudam enfrentar esta
responsabilidade através dos caminhos de uma Pedagogia do diferente.
Nos anos 50, a camada intelectual brasileira tentava definir o país como “país
civilizado”. Este grupo sentia uma necessidade inadiável de rotular o Brasil assim porque os
intelectuais daquele período pareciam entender que uma auto-definição nacional de
civilizado, iria automaticamente modificar o país, ou ainda melhor, fazer o povo moderno.
Os defensores desta intervenção de usar a palavra civilizada em referência ao Brasil,
poderiam ter esquecido que, analogicamente, não adianta se chamar uma flor de rosa se rosa
não for; tampouco em rosa vai se transformar. Um nome somente faz carregar o peso de seu
significado quando de fato se aplica essencialmente ao que está sendo nomeado. É um
indicador, muitas vezes singular, e é isto que determinaria a sua utilidade e relevância
histórica. Enquanto persiste a ausência de políticas acompanhadas por práticas
essencialmente voltadas à inclusão substantiva de quase metade de sua populacão, a classe
governante continuará tentando convencer a população que o país é aquilo que não é.
Destarte, o Brasil está sendo um país do futuro confuso porque permanece mergulhado no
seu não-conhecimento de si próprio.
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Brasil é um país que se destaca internacionalmente pelas características que tem,
quais sejam: o tamanho geográfico é maior que o dos Estados Unidos sem Alasca; possui um
terço da terra cultivável do mundo; o seu subsolo é rico em recursos naturais; a sua região
amazônica possui uma quantidade inumerável de plantas de valor incalculável e outros
espécies de seres vivos; está quase auto-suficiente na produção de petróleo; é o primeiro no
uso de combustível não petro-quimíco nos seus automóveis; e continua sendo uma liderança
na América do Sul. Em soma, esta riqueza natural tem contribuído em fazer a economia
brasileira a nona do mundo. Que Brasil é um “país rico”, para muitos, é uma verdade
indiscutível.
De sua potencialidade em recursos humanos, o Brasil pode se orgulhar,
especialmente quando se trata da diversidade dos origens de seu povo. Fora do Japão e da
Nigéria, o país mais populoso da África, no Brasil vivem os maiores contingentes de
descendentes japoneses e africanos. Também, há número considerável de pessoas de origem
libanesa, alemã, italiana, koreana, sem falar dos portugueses. Das populações indígenas
conhecidas, algumas tribos continuam se fazendo presentes e partilhando desse contingente
populacional brasileiro. Todos estes grupos têm trazido para o país, uma rica herança de
culturas, raças, etnias, tribos e comunidades. É esta grande variedade que faz o Brasil quase
tão diversificado como os Estados Unidos. Esta natureza das diversidades brasileiras é fácil e
notoriamente percebida em diversos lugares do país, como São Paulo, por exemplo. É uma
sociedade de uma rica diversidade complexa. A diversidade brasileira é reconhecida pelo seu
povo, e é muito grande e significativo o percentual de brasileiros que se orgulha desta
característica. Paradoxalmente, em termos de participação social, representação política e
ganhos econômicos, predomina a exclusão. O caso da população negra é o mais grave dentre
outros existentes. Os governos mudam e as leis anti-discriminatórias e da igualdade abundam
num oceano de diferenciações que amadurecem na marginalização ao ponto de fazer os(as)
negros(as) invisíveis porque recebem tratamentos como se fossem não-brasileiros(as).
O Brasil exporta aviões, carros, materiais bélicos, produtos agrícolas, agro-pecuários,
têxteis, e de couro. O país continua sendo rico com um povo empobrecido. Estudiosos
como Darcy Ribeiro coloca este dilema da seguinte forma: “Nós, brasileiros, nesse quadro,
somos um povo em ser, impedido de sê-lo. Um povo mestiço na carne e no espírito, (...)
massa de nativos oriundos da mestiçagem viveu por séculos sem consciência de si, afundada
na ninguendade ... lavada em sangue índio e sangue negro” (1995, p. 447).
No livro em inglês, O Presidente do Brasil por acaso: uma biografia (The accidental President of
Brazil: A memoir), com Brian Winter, o sociólogo e ex-Presidente, Fernando Henrique
Cardoso (2006), tinha concluído que para definir o Brasil, e entender as causas de seus
problemas estruturais e históricos, é preciso focalizar os estudos na situação dos(as)
brasileiros(as) descendentes dos(as) africanos(as). O maior entrave à construção de uma
sociedade brasileira grande e evoluída, em que predominem instituições democráticas e
práticas humano-éticas, é o conjunto das discriminações, em especial, contra as pessoas
negras. O sociólogo e ex-Presidente urge então, desenvolver atividades que visem frontal e
efetivamente combater o problema das desigualdades como ineqüidades, que de fato são.
Cardoso sugere que esta responsabilidade deveria ser executada através de programas
flexíveis. A fim de serem mais eficazes, tais programas precisariam ser criativos, inclusivos e
de abrangência nacional. De acordo com ele, são exatamente mecânismos deste tipo que
continuam em falta no país. Para finalizar, Fernando Henrique Cardoso argumenta que para
fazer com que o Brasil seja modernizado de verdade, chegou a hora para implantar planos e
programas que possibilitem atividades explicitamente voltadas à restituição concreta de
Levando a raça a sério/ Afirmando direitos
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direitos e oportunidades. Com isto, poderia combater as deprivações não-merecidas porque
ainda estão baseadas em critérios que discriminam membros de alguns grupos.
Octavio Ianni (1971), se referindo às revoluções brasileiras, afirmou que a classe
dominante se adiantava em conduzir “as revoluções” para prevenir que o povo as faça. No
Brasil, “as revoluções” aconteciam com a finalidade de justificar o modus operandi que
beneficia as elites de sempre. Há a necessidadade de que esta situação seja revertida porque
estas circunstâncias precisam ser modificadas. As idéias e atividades que formam a espinha
dorsal das Ações Afirmativas são os elementos de um processo de transformação que, em
última instância, trará benefícios para toda a população brasileira. Os livros que estão sendo
revisados aqui apresentam subsídios teórico-práticos que apoiam e fortalecem a realização
desta possibilidade.
Como explicar as Ações Afirmativas no Brasil?
O Programa Acões Afirmativas está sendo proposto e trabalhado ao mesmo tempo
por algumas instituições, particularmente as públicas. Estes esforços têm como finalidade,
remediar a ausência de medidas adequadas e douradoras para possibilitar que tanto
negros(as) e grupos índios se tornarem cidadãos dignos neste país tão negro e indígena, tão
múltiplo. As ações afirmativas visam implementação de políticas compensatórias de cunho
social, econômico, política e cultural com a finalidade de criar oportunidades para que os
dominados e excluídos possam usufruir melhor, as riquezas da sociedade. No contexto atual
brasileiro, estes mecanismos estão mais voltados à abertura das portas universitárias para a
população negra e outros que também, têm sido excluídos do ensino superior. A modalidade
mais direta, e daí mais debatida, destas ações afirmativas na universidade, é introdução de
cotas para alunos(as) negros(as) com garantia de se matricular depois de passarem no
vestibular. Como veremos nos dois livros sendo revisados, a reinvindicação do Programa das
Ações Afirmativas tem história, embasamento teórico, suporte metodológico e experiências
já acumuladas em diversas cidades e universidades do país.
A fim de melhor contextualizar a resenha, recorremos às explicações oferecidas na
Apresentação II, “Redefinindo os termos do debate sobre a democratização da universidade:
as experiências do Programa Políticas da Cor” (p. 17-32), escrito por Renato Emerson dos
SANTOS1 no livro de Nilma Lino GOMES e Aracy Alves MARTINS (2004). Este texto de
SANTOS ajudará o leitor captar a razão de ser do Programa das Ações Afirmativas
atualmente no ensino superior brasileiro. Estas explicações focalizando no Programa
Políticas da Cor na Educação Brasileira (PPCor), do Laboratório de Políticas Públicas da
Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), com apoio da Fundação Ford
(financiadora do projeto, 2002-2004), também dariam, subsídios necessários para entender
os laços entre os dois livros desta resenha.
O PPCor organizou o Concurso Cor no Ensino Superior em 2001, com objetivos de
“agregar experiências existentes, bem como fomentar a criação de novas iniciativas
destinadas a promover ações democratizadoras que estimulassem políticas institucionais,
e/ou governamentais orientadas ao combate das desigualdades étnico-raciais no ensino
superior brasileiro” (SANTOS, 2004, p.19). Esta oportunidade tinha também, o propósito de
fazer um levantamento de projetos e experiências relacionados às questões de “acesso e/ou
1
Os sobrenomes das organizadoras e colaboradores(as) do segundo livro desta
resenha estão todos em CAIXA ALTA a fim de distinguir este grupo do outro, responsável
pela primeira obra a ser logo resenhada.
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permanência de estudantes negros no ensino superior”. Dos 287 propostas submetidas,
foram aprovados com dotações, 27 oriundos de 16 Estados do país. Estas propostas vieram
de diversos segmentos da sociedade; derivados de movimentos/organizações de negros até
de orgãos públicos. Esta tentativa de ampliar o alcance dos esforços foi evidenciado pelos
tipos de projetos de acesso (11), permanência (09), ou duma combinação (07). Estes projetos
são descritos de modo sucinto, mas a riqueza de cada um na sua essência (SANTOS, 2004),
serviria de incentivo e de referência para se obter mais informações a respeito do assunto.
Vale dizer que o citado Concurso foi muito importante, considerando a variedade
das experiências compartilhadas pelos participantes (organizadores, orientadores,
especialistas convidados, e bolsistas) nos seminários e outras atividades organizadas pelos
administradores da citada competicão acadêmico-educacional. Entretanto, três outros
acontecimentos contribuiram enormemente para a eclosão das ações afirmativas (SANTOS,
2004). Primeiro, em 2001, a Lei Estadual n° 3.708 que reservava 40% de vagas nos
vestibulares às universidades estaduais do Rio de Janeiro (UERJ e UENF) aos(as)
candidatos(as) negros(as). Esta legislacão, resultado de lutas e processos instituídos pelos
movimentos sociais organizados de longa data, também fez a questão das cotas, o eixo
central das discussões e preocupações para com a abertura do ensino superior público às
populações excluídas historicamente. O segundo fator marcante foram os preparativos para,
a participação na e as conseqüências da III Conferência Mundial das Nações Unidas contra o
Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata de Durban, África do
Sul, de 31 de agosto a 7 de setembro de 2001 (MUNANGA, 2004, p. 47-59). Um terceiro
elemento constitui-se da implantação de cursos pré-universitários populares, um movimento
iniciado no eixo Rio de Janeiro-São Paulo, mas que foi expandido para outras partes do país,
particularmente na década de 90.
Como mostram os dois livros, o maior benefício destes esforços foi reinvindicação
ao nível nacional, de implementação de um Programa de Ações Afirmativas para melhorar as
oportunidades de “acesso e permanência na universidade” do alunado negro. Esta legislação
terá efeitos para todos os(as) brasileiros(as) uma vez que tratar de raça ou grupo étnico, é de
fato, falar do Brasil histórico, o povo atual, e a sociedade do futuro que poderia ser
construído. Continuar a fechar os olhos e ouvidos à tal realidade através do discurso da
“democracia racial”, é tentar esconder esta discussão de si próprio como brasileiro(a). Lutas
contra projetos com finalidade de pelo menos reduzir as desigualdades sócio-econômicas e
históricas, como as Ações Afirmativas no ensino superior, comprovam que no Brasil, ainda
há indivíduos assim.
Brasil: qual a fundamentação da pedagogia do diferente?
Joaze Bernardino e Daniela Galdino (2004) organizaram uma obra que pode ser
considerada um marco na fundamentação das reflexões e discussões sobre o Brasil possível;
aquela sociedade de que muitos falam, mas que os grupos dominantes nunca deixam ser
construída; uma sociedade multi-cultural, étnica, racial, caracterizada por uma diversidade
aceita porque esta mesma é utilizada para enriquecer a construção de uma cidadania
especificamente brasileira, de reconhecimento universal. Além de encontrar referências à
obras clássicas e pérolas da producão científica sobre o racismo à brasileira dos últimos trinta
anos, ali, o(a) leitor(a) descobrirá que Levando a raca a sério: acão afirmativa e universidade,
contém elementos importantes e significativos para uma explicação crítica “das
desigualdades sociais brasileiras quanto na formulação de políticas públicas adequadas a este
fenômeno” com finalidade de “construir um país verdadeiramente democrático para todos,
onde a igualdade econômica possa estar combinada ao respeito à diferença” (p. 14). Os
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textos da coletânea também “propõem uma atitude ativa do Estado para o enfrentamento”
(p. 9) das desigualdades especificamente resultantes do racismo. Nesta luta, a participação
dos indivíduos, particularmente os da elite de projeção nacional, pessoas da população em
geral e grupos organizados (movimentos populares), precisa desempenhar o papel
motivador, pelejando e pressionando sistemática e continuamente. Sem este envolvimento
ativo, permanente, flexível, construtivo, e abrangente do povo brasileiro, estes esforços
continuariam se fazendo as “tentativas de sempre”, sem o êxito da concretização do
desejado ou reivindicado. Com isto, Brasil continuará sendo aquele país de um futuro sine die.
Bernardino e Galdino (2004) presenteam os seus leitores com a riqueza de alguns
dos textos e discussões oriundos dos Seminários Regionais do Programa Políticas da Cor na
Educação Brasileira (PPCor) realizados em Itabuna, BA nos dias 11 e 12 de novembro de
2003, organizado pela Prefeitura daquela localidade e sediado pela Universidade Estadual de
Santa Cruz (UESC), e, em Goiânia, GO, com o tema, “Universidade e ação afirmativa no
coração do Brasil”, realizado no período de 01 a 03 de dezembro de 2003. Como
participantes principais, tinham professores(as) e alunos(as) ligados(as) aos projetos do
PPCor, autoridades políticas e educacionais, estudantes universitários(as) e préuniversitários(as), militantes, profissionais liberais e profissionais da rede municipal da
educação de Itabuna.
Os organizadores do livro utilizam como critério de selecão dos textos para inclusão
nesta obra uma, “perspectiva de políticas valorativas (...) que, (...) tem como público
beneficiário não somente a populacão discriminada, mas toda a populacão” brasileira (p. 10).
Em outras palavras, esta obra, desde o título até as últimas palavras, propõe que, para melhor
conhecer Brasil, há que se comprender a evolução histórica de suas ideologia e prática
racistas que afetam, negativamente, mais de 47% da população nacional. Quando este
desafio for enfrentado sem falsas ideologias (discursos competentes para justificar o status
quo), aumentará a possibilidade de trabalhar em benefício de toda sociedade. O conhecer-se
pela via de se encontrar com, e conhecer o(a) outro(a) como pessoa, sempre é uma estratégia
que consolida o desenvolvimento social de uma sociedade; implicitamente argumentam os
autores do livro.
Levando a raça a sério... é uma obra composta de onze capítulos. Inicia-se com
explicações baseadas em teorias do racismo, na história nacional, e em outras experiências,
todas bem integradas e articuladas. Bernardino fundamenta a primeira parte da obra. Estas
explicacões perpassam por argumentos em prol de um “reconhecimento da igualdade e
correto reconhecimento da diferença” (2004, p. 33) porque no Brasil, este conceito ainda
não se fez prática comum; “[...] o novo é a demanda por um correto reconhecido
(reconhecimento?)” das diversidades (p. 33), em especial no “ensino, uma vez que todos podem
ser preparados para um mundo que de fato é diverso” (p. 36). A raça como conceito útil, foi
menosprezada nas ciências biológicas. Nas ciências sociais entretanto, tem se transformada
numa categoria potente para análise teórica e instrumento poderoso para atuação na
sociedade. Esta é a sociologização de raça que tem tido conseqüências devastadoras para o
Negro e toda a sociedade. A sociologização de raça e os resultados desta manipulação
deveriam ser adequadamente entendidos, assimilados e criticamente tratados como
instrumentos que sustentam as desigualdades incabíveis nas políticas públicas, afirma
Bernardino (2004). Vale ressaltar que tal tratamento mais conscientizado de raça deveria ser,
também, extendido para outros setores da sociedade, e introduzido nas intervenções sociais
desenvolvidas por outros(as) agentes.
No capítulo “Negros em movimento: a construção da autonomia pela afirmação de
direitos”, Valter Roberto Silvério (p. 39-69), demonstra que “O centro do argumento é que o
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Brasil havia se tornado um Estado sem, no entanto, ser uma Nação” (p. 45). Esta caminhada
tem perpetuado a marginalização ao “lugar de não-humanidade ou quase humanidade para
os não-brancos” (p. 39); pessoas da terra brasileira que não são, de fato, brasileiras! Deste
modo, existe “na atualidade um certo consenso entre militantes, ativistas e intelectuais
negros de que a problemática ‘racial’ brasileira deve ser revista”, (p. 43), precisando de “um
deslocamento da idéia de nação mestiça para nação multirracial”. (p. 43). É esta
racionalização que tem instigado muitos(as) negros(as) de diversas áreas profissionais, faixas
etárias, regiões, convicções religiosas, e condições de classe social a sustentar movimentos
sociais. Como estes movimentos têm se desenvolvido, as suas lutas e contribuicões
esclarecedoras em torno do “negro, a raça, a identidade negra e a ação afirmativa, em sua
modalidade mais polêmica, as cotas”, (p. 65) definem bem como os(as) negros(as) e
outros(as) brasileiros(as) simpatizantes, em vários períodos, com focus diferentes, tem
sustentado o dinamismo do desenvolvimento de uma independência (cidadania) “pela
afirmação de direitos” (p. 39).
No terceiro capítulo, Sueli Carneiro (2004) discute “Raça, genêro e ações
afirmativas” ( p. 71-84). Esta discussão é de importância singular porque trata de um tema
que muitas pessoas continuam desconsiderando porque se recusam aceitar que a situação das
mulheres negras seja pior que a das outras mulheres brancas (e indígenas?). As
discriminações de natureza quadriplicada, de raça, classe social, genêro, e intra-genêro que
impedem um tratamento menos desumano da mulher negra, é problema cujo enfrentamento
se faz urgente. E, como bem mostra Sueli Carneiro, as políticas de “enfoque universalista”
(p. 71) podem ser necessárias, porém, se não levarem em conta, outros fatores também
condicionantes, criariam o “problema da focalizacão” (p. 75). Políticas universais geralmente
falham porque não contemplam, por exemplo, elementos tais como “as dimensões de
genêro, raça, e região” (p. 75), classe e fatores das culturas locais, por exemplo. Para a autora,
não se deve “considerar a reivindicação de cotas e políticas de ação afirmativa como
desqualificadoras do grupo negro. Essa mensagem escamoteia que a reivindicação por
políticas compensatórias representa, ao contrário de desqualificação, a afirmação de negros e
afro-descendentes como sujeitos de direitos, conscientes de sua condição de credores sociais
de um país” (p. 74). As experiências de exclusão sistêmica, sofrimento permanente, e
desumanização histórica da mulher negra brasileira especialmente nas áreas de saúde, ensino,
e mercado de trabalho, induzem a autora a exigir a configuração central das “variáveis raça,
classe e genêro” e relações intra-gênero nas “questões estruturais (...) desenho de políticas
públicas na sociedade brasileira,” (p. 83). Utilizando dados de levantamentos sociais, das
idéias e lições das lutas de movimentos de mulheres organizados, Carneiro sustenta que
“equalizar as condições de vida de mulheres brancas e negras, constitui o maior desafio que
as políticas públicas voltadas para a eqüidade de genêro devem realizar para impedir os
crimes contra a igualdade que são perpetrados cotidianamente (...) que fazem com que o
máximo de cidadania e respeito aos direitos humanos só possa ser desfrutado pelo indivíduo
que atender a 4 características básicas: seja branco, macho, rico e heterossexual” (p. 82).
Em “O sistema classificatório de ‘cor ou raça’ do IBGE” (p. 85-135), Rafael
Guerreiro Osório consegue desmistificar argumentos que têm sustentado perenemente a
ideologia da democracia racial e o papel conspiratório do IBGE no tocante à questão da
“auto-atribuição” racial. Osório didaticamente explica o desenvolvimento das classificações
raciais utilizadas pelo instituto sob consideração. O autor nos lembra também, que utiliza-se
a “heteroatribuicão”, onde outros atribuem o pertencimento racial do indivíduo. Deste
modo, uma coerência tem sido estabelecida entre os dois sistemas classificatórios (p. 87).
Acerta quando diz, “o propósito da classificação racial não é estabelecer com precisão um
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tipo ‘biológico’, mas se aproximar de uma caracterizacão sóciocultural local” (p. 113-114), e
os efeitos subsequentes. Tal esclarecimento é importante porque os termos preto, pardo,
negro ou moreno não abonam o “racismo de marca” preponderante no Brasil. A fluidez
entre “as linhas de fronteira que separam as três grandes zonas de cor, preta, parda e
branca,” (p. 112) no sistema classificatório brasileiro é muito adequado porque “basta saber
se, em seu contexto relacional, sua aparência a torna passível de ser enquadrada nessa
categoria (ou numa outra, explicacão deste revisor) para considerá-la uma vítima potencial de
discriminações, diretas ou estruturais” (p. 87). Neste sistema, a “tão desejada ‘objetividade
científica`” (p. 87) nem faria sentido porque o propósito no cotidiano é estabelecer
diferenciações a fim de tratar o não-branco desigualmente, e iniciar o processo de “uma
profecia auto-realizável” (p. 89) no tocante ao(à) discriminado(a). Baseados nos dados e
argumentos apresentados, Osório aconselha que, apesar da adequacão do sistema
classificatório do IBGE, é preciso muita reflexão para utilizá-lo para “alavancar vantagens
pessoais” (p. 133). Assim, como qualquer outro instrumento para leitura do social, o
melhoramento do método empregado pelo IBGE será muito bem-vindo, mas somente
depois de muito trabalho científico diligente, ele finalmente indicaria verdadeiramente o real.
Delcele Mascarenhas Queiroz (2004) está responsável pelo material no capítulo
seguinte. Usando dados quantitativos de cinco Universidades Federais (Rio de Janeiro-UFRJ,
Parana-UFPR, Maranhão-UFMA, Bahia UFBa, e Brasília-UnB), esta pesquisadora estabelece
justificativas para “O negro, seu acesso ao ensino superior e as ações afrimativas no Brasil”
(p. 138-156). Além de nos informar da urgência deste tipo de levantamento, os dados ajudam
a enterrar um dos mitos mais potentes na máquina que exclui os(as) negros(as) e outros(as)
não-brancos(as) do ensino superior, os “espaços sociais que representam as recompensas
materiais e simbólicas mais cobiçadas” (p. 139). Alertando para a gravidade da situação
apontamos para o fato de que os levantamentos foram feitas em instituicões públicas,
exatamente aquelas que deveriam disponibilizar mais equidade na estrutura de oportunidades
sociais numa sociedade democratizante. No Brasil, Queiroz mostra que de fato, o sistema de
acesso está organizado de tal forma que a ‘inclusão excludente’ é aceita como sendo
meritocrática. Contrário à crença generalizada de que os(as) negros(as) ‘não passam no
vestibular’, especialmente para as instituições de ‘ensino de graça, porque o governo paga
tudo’, os dados mostram um exemplo clássico de racismo institucional. Dos dados
conferidos fica evidente que mais alunos estão aprovados no vestibular que a quantidade dos
classificados.
Em outras palavras, alunos “são aprovados, mas perdem o direito de ingressar na
universide, em decorrência do limitado número de vagas oferecido pela instituicão” (p. 148149). Os resultados das análises do conjunto dos dados apresentados em tabelas altamente
esclarecedoras do perfil em que predominam brancos(as) nas categorias mais positivas,
mostram também que, para implementacão das ações afirmativas destacadas pelas cotas para
os(as) negros(as) no ensino superior, “não seria necessário reduzir as exigências do vestibular
existente hoje” (p. 149). Este sistema pode manter o padrão meritocrático moralmente
almejado pelas instituições, e ao mesmo tempo, contribuir concretamente para construção de
uma sociedade que premia os mais esforçados (merecedores) de forma sistemática e
contínua. Políticas voltadas também, ao bom desempenho nos outros níveis de ensino
público são indispensáveis para os(as) não-brancos(as), Queiroz avisa o(a) leitor(a). Como é
possível que de “743 estudantes negros, oriundos de escolas públicas, foram aprovados para
cursos altamente valorizados, mas apenas 167 foram classificados para esses cursos” (p.
149)? Afinal das contas, quem realmente perde quando um grupo de jovens que, apesar de
todas as dificuldades, consegue se preparar bem para a universidade, passam no vestibular,
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10
mas não podem se matricular para continuar a sua formação profissional? Estas são
perguntas silenciosas, como é o racismo no Brasil, que a autora destaca e coloca para o(à)
leitor(a).
No texto “Acesso à universidade: condições de produção de um discurso falacioso”
(p. 157-172), Daniela Galdino e Larissa Santos Pereira (2004), desenvolvem uma discussão
lúcida sobre a “violência, sobretudo ideológica, que vem compor a face de uma nação que, se
por um lado sempre ostentou grandes riquezas de sorte variada, por outro não tem
conseguido ocultar as marcas da intensa desigualdade social” (p. 157). Neste contexto, o que
predomina “é a naturalização da desigualdade” (p. 159), que explica “como se constituiu o
ensino superior no Brasil, enquanto um não lugar do negro” (p. 161). Depois de uma
discussão geral do poder como o capital histórico da elite branca e a sua manutenção pela via
do “binômio saber-poder”, discutem de que maneira predomina o ensino público como
fonte do discurso competente usado como instrumento eficaz de exclusão para com os(as)
negros(as). “A educação é um dos campos em que essa disparidade está presente, e o espaço
acadêmico talvez a expresse com maior intensidade” (p. 157-158). Considerando as suas
experiências da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), Bahia, as autoras explicam
como, numa sociedade rural de cacauicultores, a elite tem conseguido se-manter ‘no poder’
através de “estratégias de controle (...) de forma dissimulada – na maioria das vezes – e
também explícita” (p. 168). Sobre o projeto pré-universitário para negros e excluídos
(Prune), de Itabuna, Bahia, as pesquisadoras descrevem como este projeto de ação afirmativa
“promove uma formação político-pedagógica que ultrapassa o exame do vestibular (...)
facilitado a participação de estudantes e educadores (...)” Este é exemplo de “uma
alternativa viável de mobilização (...) para a implementação de políticas de acesso e
permanência de estudantes negros/negras” (p. 169). As autoras conseguem mostrar como as
ações afirmativas servem também, de espaços para colaboração dialogada do Estado com os
grupos organizados da sociedade civil no encaminhamento de intervenções de cunho sócioeducativo.
O capítulo “Experiências de ação afirmativa: interlocução com o ponto de vista da
juventude negra”, escrito pelos Alecsandro J.P. Ratts e Adriane A. Damascena (2004, p. 173187) deve a sua importância não somente ao seu conteúdo próprio, mas também às reflexões
de alunos(as) que participaram do Seminário. O texto reproduz palavras deste alunado, como
também, algumas interpretações feitas pelos pesquisadores. Em outras termos, o que pode
ser entendido de um projeto do programa das políticas afirmativas a partir dos olhares de
alunos(as) e coordenadores(as), participantes deste mesmo? O conteúdo deste capítulo está
relacionado com os textos dos(as) alunos(as) do citado programa na UFMG, na última seção
do livro organizado por GOMES e MARTINS (2004), a ser discutido mais adiante. No
Seminário de Goiânia enfatizam o “seu aprender a aprender” como privilégio básico de seu
envolvimento com os projetos do PPCor. Os seus relatos sublinham o fato de que “no
campo das ações afirmativas, além de recursos financeiros e vontade política, é preciso
desenvolver tecnologias de inclusão” (p. 179). Os(as) alunos(as) não podem esquecer de
mencionar como os projetos das ações afirmativas se tornaram espaços de referência
acadêmica, educação social, e de orgulho para os seus participantes. O desenvolvimento de
atividades de extensão fez com que estes projetos também apoiem no desenvolvimento das
instituições em termos de manter o significado objetivo do tripê (ensino, pesquisa e
extensão) da universidade enquanto possibilitam “a tríade acesso, permanência e sucesso” (p. 185),
os pilares do Programa de Ações Afirmativas na Universidade. Neste sentido, é também,
prenúncio da essência do outro livro sendo discutido nesta resenha.
Levando a raça a sério/ Afirmando direitos
11
Uma das justificativas prontamente oferecida contra adoção de cotas para ingresso
da população negra na universidade, volta-se ao ‘fato’ de que cotistas não teriam a
capacidade intelectual, nem a disciplina acadêmica, para o desempenho desejável. Os dados
analisados por Wilson Roberto de Mattos (2004) comprovam o contrário. Sob o título
“Inclusão social e igualdade racial no ensino superior baiano – uma experiência de ação
afirmativa na Universidade do Estado da Bahia (UnEB)” (p. 189-216), o pesquisador mostra
com dados estatísticos “[...] que o sistema de cotas tem se mostrado acertado como um
eficaz corretor da desigualdade racial de acesso ao ensino superior, (...) na grande maioria das
vezes, os posicionamentos contrários têm sido motivados por ignorância ou, pura e
simplesmente, por preconceitos” (p. 193). Em relação a isto, falando de sistemas de verdade,
Foucault diz: “Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade: isto
é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros (...) o estatuto
daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro” (1982, p. 12). Com
isto como pano de fundo, é preciso enfatizar que o texto de Mattos também se destaca por
ter trabalhado com os primeiros dados objetivos acerca do desempenho de alunos cotistas
em comparação aos não-cotistas. Os cotistas têm níveis e tipos de desempenho que se
comparam favoravelmente aos dos outros alunos. Ao mesmo tempo, Mattos (2004) oferece
uma descrição com explicações detalhadas do processo, além dos procedimentos da
implantação de cotas na UnEB. Os capítulos de Delcele Mascarenhas Queiroz nos dois
livros complementam o material neste capítulo. A partir destas pesquisas e experiências,
muitas outras instituições de ensino superior podem aprender muito se houver a “vontade
política da sociedade brasileira – e a universidade tem um papel decisivo nessa luta –, em
acabar com a discriminação racial,” (p. 215). Transformar esta luta numa atividade
consciente, bem fundamentada e responsável (de cidadãos) constitui-se num dos objetivos
deste livro que é instrumento ideal para um aprender aprendendo, sobre as discriminações
que impedem as mudanças construtivas que o Brasil tem precisado durante os últimos tantos
séculos.
Dione Oliveira Moura trata do “Plano de metas para a integração social, étnica e
racial na UnB – relato da comissão de implementação” (2004, p. 217-228) no nono capítulo
do livro organizado por Bernardino e Galdino (2004). Este relato deve a sua importância
singular por descrever, também, as lutas para viabilizar o ingresso universitário de alunos(as)
negros(as) pelo sistema de cotas (aproveitando as experiências de Mattos da UnEB), e o
convênio entre a Universidade de Brasília (UnB) e a Fundação Nacional do Índio (Funai),
prevendo o ingresso de indígenas na universidade. A breve referência ao Programa de
avaliação seriada (PAS), “uma alternativa ao vestibular” (p. 219) é relevante porque de fato,
este sistema continua favorecendo os grupos historicamente favorecidos no ensino superior
brasileiro. Este capítulo serve como outro exemplo mostrando que para o êxito de projetos
ou atividades do Programa de Ações Afirmativas, e mais particularmente a garantia de cotas,
a colaboração contínua entre diversos grupos, entidades, organismos (públicos e privados) e
indivíduos é imprescindível. Isto é, as ações afirmativas servem como outro espaço para
aprender da cidadania enquanto as pessoas se fazem cidadãs.
O décimo texto, elaboração de Indaiara Célia da Silva, discute o “Currículo e
diversidade cultural na escola Grapiúna” (2004, p. 229-240), da Prefeitura Municipal de
Itabuna, Bahia, que se destaca pelas tentativas de reduzir o distanciamento entre vida e
escola, trabalhar um currículo de resistência, e desnaturalizar os racismos. O currículo em
questão está centrado nos participantes porque, “são as pessoas que a integram que estão em
fases diferentes de desenvolvimento, em ciclos diferentes de vida que precisam ser
considerados na sistematização do processo educativo” (p.229). Numa ótica de
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multiculturalismo crítico, insere-se a organização da Rede Municipal de Ensino de Itabuna
que colabora e incorpora o Núcleo de ações afirmativas pela negritude (Naane) na instituição
de “uma política de formação continuada (...) estruturada nos aspectos da formação vertical e
formação horizontal” (p. 237). Estão envolvidos todos os profissionais/funcionários ligados
ao sistema escolar do município, e ainda pretendia envolver alguns pais. É muito
esclarecedor saber como o reconhecimento da natureza multifacetada da discriminação racial
serve de força motriz da escola Grapiúna, e através do Naane, desenvolve atividades de
educação formal e não-formal. A pesquisadora aqui descreve bem um experência em que o
Estado viabiliza uma formação integradora baseada na realidade de uma comunidade inteira.
O último capítulo, “Estratégias pedagógicas e abordagem racial” (p. 241-251),
apresentado no Seminário Regional do PPCor – Universidade e ação afirmativa no coração
do Brasil, e escolhido para o volume, Levando a raça a sério... –, trata do tema da “exclusão”,
um dos favoritos nos movimentos sociais dos anos 80. Neste capítuo, Marly Silveira (2004)
enfatiza a complexidade do “fenômeno da exclusão (que) é tão vasto que é quase impossível
delimitá-lo: ‘excluídos são todos aqueles que são rejeitados de nossos mercados materiais ou
simbólicos, de nossos valores’” (p. 242). Acreditando no poder do saber escolar, e
considerando que “a ‘exclusão’ da população negra é a ‘fratura exposta’ da sociedade
brasileira” (p. 245), a necessidade da “inclusão social pela via escolar (...) ‘escola inclusiva’”
(p. 243) levou a autora a desenvolver a “idéia de educação para a igualdade” (p. 243). Assim,
com o racial no centro das preocupações, Silveira discute estratégias para efetivação de
políticas pedagógicas voltadas à um sistema escolar multicultural que considere as diferenças
no bojo da sociedade brasileira não como justificativas para tratamentos negativos ou
privilegiados, mas como elementos imprescindíveis na construção da cidadania; e estes como
parte do conjunto de uma Pedagogia do diferente.
Este último capítulo serve a dois objetivos interdependentes. Em primeiro lugar, as
idéias defendidas, experiências descritas e atitudes advogadas são todas parte da Pedagogia do
diferente, um processo de educação social entrelaçado com a escolarização. É isto que é
educação para a igualdade de todos numa sociedade multi-étnica, cultural e racial. Sendo
uma atividade integrada, a Pedagogia do diferente trata das discriminações entre- e intra-gêneros
como preocupação muito importante.
Em segundo lugar, o texto final do livro organizado por Bernardino e Galdino
(2004) fornece um sumário da fundamentação teórico-metodológica da obra toda.
Estabelece ao mesmo tempo, um ponto de partida para entender uma Pedagogia do diferente
que já está sendo desenvolvida pelos(as) participantes do Programa de Ações Afirmativas na
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Algumas das experiências deste programa
na UFMG integram o segundo livro desta resenha que se inicia agora.
Como se pode desenvolver uma pedagogia do diferente?
O segundo livro organizado por Nilma Lino GOMES e Aracy Alves MARTINS
(2004), prioritariamente trata de apresentacões feitas durante o 1° Seminário Nacional Ações
Afirmativas realizado no dia 20 de agosto de 2002, na Faculdade de Educação, UFMG.
Contem 37 textos cuja variedade é didática. Há textos teóricos, outros de fundamentacão
sócio-histórica, e ainda os de relato de experiências elaborados por professores (convidados
e da UFMG), monitores, e alunos ligados ao Programa na UFMG. Todo o conteúdo está
voltado à disseminar “as impressões, os desafios, as dificuldades, as vitórias e o sonho de
uma equipe de professores(as) negros e brancos e de alunos e alunas negras que apostam na
construcão de uma universidade realmente pública e que acreditam que essa universidade se
tornará cada vez mais pública à medida que aprender a reconhecer e valorizar a diversidade.
Levando a raça a sério/ Afirmando direitos
13
Essa aposta não se reduz aos meios universitários, mas estende-se para toda a sociedade” (p.
10). E daí, para todo mundo de todos os setores da sociedade.
GOMES e MARTINS (2004) organizaram os trabalhos de um grupo de
brasileiros(as) que continuam acreditando que a sociedade brasileira pode ser transformado
pelo engajamento de todos em atividades de educação social. Iniciar, ou ainda melhor, dar
continuidade à esta colaboração no ensino superior é vital uma vez que as conseqüências
destes esforços chegarão à toda sociedade de diversas maneiras, através de vários agentes
sociais, pelos caminhos culturais, e organizações político-econômicas. O livro descreve e
explica as bases, expectativas, e modus operandi de uma experiência voltada para a
democratização do ensino superior como ampliação da porta de entrada na luta para
construir aquela sociedade brasileira desejada pela maioria, cada vez com melhores
oportunidades para todos, especialmente para os(as) mais marginalizados(as).
As autoras dividem a obra em seis seções com 37 capítulos. Nas apresentações, há
discussões sobre os “Tempos de lutas e tempos de desafios” (p. 9-15) e “As experiências do
Programa Políticas da Cor” (p. 17-31), como pano de fundo do significado do Programa na
UFMG e do Concurso Cor no Ensino Superior, já discutida a sua relevância, servindo de
instrumento para uma formação não somente para o mercado de trabalho (cursos de
graduação), mas para ativamente participar na produção de conhecimento (cursos de pósgraduação). Isto é, possibilitar uma formação que objetive o “empoderamento” (p. 23) de
membros dos grupos historicamente excluídos.
Na segunda seção do livro, encontra-se mais informações para ajudar a desenvolver
“um diálogo profícuo” sobre o “Programa Ações Afirmativas na UFMG: uma proposta
corajosa” (p. 37-45) com implicações para outros projetos em outras instituições do país.
Nesta mesma linha de esperança engajada, os Professores Kabengele MUNANGA e José
Jorge de CARVALHO respectivamente discutem os fundamentos sócio-políticos e culturais
para uma “[...] defesa de cotas” (p.47-59) e “Ações afirmativas como base para uma aliança
negro-branco-indígena contra a discriminação étnica e racial no Brasil” (p. 61-96).
Categoricamente comprovar que a demanda de cotas para negros(as) porque são os(as)
altamente sub-representados(as) historicamente, como também, coerentemente, sugerir
formação de associações que integram membros de diferentes grupos étnico-raciais para
combater as discriminações, são ‘idéias inovadoras’ precisando de atenção especial porque
são produções brasileiras adiantadas por pesquisadores que conhecem bem o Brasil.
Ademais, são proposições semelhantes à outras que já estão sendo implementadas em outras
sociedades multi-étnicas-raciais como a África do Sul, os Estados Unidos, México e
Colômbia, entre outros.
Na terceira seção, trata-se das “Ações afirmativas no contexto brasileiro” (p. 97-143).
São abordadas experiências de outras instituições (PUC/MG) e do Projeto Geração XXI
desenvolvido desde 1999. Este último reúne várias entidades não-governamentais para
integralmente assistir “21 jovens, suas famílias, suas escolas e a comunidade [...]” acreditando
na “diminuicão das desigualdades raciais [...]” pela via de “investir no potencial, na riqueza
humana e não na pobreza, na carência” (SILVA, p. 119). Esta colocação dá maior
sustentação às atividades das Ações Afirmativas. Investir no futuro do Brasil essencialmente
passa por programas voltados ao resgate da humanidade pelo apoio integrado à juventude do
país. No outro capítulo, QUEIROZ (2004) utiliza os dados estatísticos já mencionados no
quinto capítulo do outro livro, para “objetivamente” mostrar que há “uma sobrerepresentação dos brancos e uma sub-representação dos negros na universidade, mesmo nos
Estados em que estes são a maioria expressiva da população, como a Bahia e o Maranhão”
(p. 143). Enquanto os(as) poucos(as) negros(as) estudam em cursos de baixo prestígio social,
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os brancos estão mais representados nos cursos de alto prestígio. Dados como esses
apontam para a reprodução do capital sócio-cultural. Muitos já pensavam assim; e agora,
com dados quantitativos de cinco universidades federais (UFRJ, UFPR, UFMA, UFBA,
UnB), podemos dizer com maior confiança que a situação se confirma: é bem assim mesmo.
A seção em seguida contém textos relacionados à “Experiência de aprender a
ensinar: reflexões dos professores” (p. 145-203). Nestes capítulos, além de ler sobre a
natureza do programa na UFMG e das reflexões elaboradas pelos(as) docentes engajados(as)
nele, podemos aprender sobre seus desafios, conquistas, criatividade e coragem para
trabalhar com o novo. Através de atividades como desenvolvimento de cursos para a
formação científica básica, projetos de outras formas de assistência-colaboração, este grupo
de professores confirmam alguns fatores de muita valia para as ações afirmativas na
sociedade brasileira. Não há somente mulheres e homens trabalhando juntos, mas também,
docentes negros(as) desenvolvendo atividades de cunho sócio-cultural e educativo com
colegas brancos(as). Colaborações destes tipos, especialmente quando se concentram na
populacão negra brasileira, é estratégia não muito comum entre pesquisadores do social
brasileiro. Para alguns destes(as) professores(as) não-negros(as), não foi fácil engajar-se num
programa de apoio para alunos(as) negros(as). Colocações como estas apontam para esta
problemática que se faz comum – “[...] mas me interrogava: quem sou eu (uma professora
branca) para falar sobre questões raciais?” (p. 189), pergunta MARINHO (2004). Para
GOUVÊA, “ser branco no Brasil” (p. 181-188) faz com que a situação do segmento da
população brasileira negra se torna “um problema de outros”, um tema que não deveria ser
de interesse dela (e de outros membros de sua raça e classe?), porque o “racismo sempre foi
tomado como uma categoria estranha ou inadequada para pensar as relações raciais no
Brasil, para os grupos brancos” (p. 182). Para estes, participar do ensino superior, assim
como ocupar posições de destaque em outros espaços sócio-políticos, é considerado “meu
lugar ‘natural’de inserção, fruto de meu mérito individual” (p. 185). Esta mesma linha de
pensamento está colocada assim: “A questão racial já era uma preocupação minha há mais
tempo, mas era uma realidade um pouco abstrata” (DAYRELL, p. 171). Para os(as)
docentes, o que se pode perceber de seu envolvimento do Programa é que “Não se trata
realmente de uma participação num projeto de formação em que eu, a professora, estou
formando um grupo de alunos. É, [...] processo de formação em que estamos aprendendo a
conviver de uma forma diferente, (...) outra convivência, um caminho para conviver, onde
essas tensões possam realmente ser modificadas” (GOMES, p. 151-52). Esta formação
colaborativa envolvendo pessoas brancas e negras, docentes e discentes, enuncia o seguinte
recado vital: que as discriminações e racismos silenciosamente destruitivos não são
problemas só das vítimas diretas, mas, acima de tudo, são do Brasil todo. Induzir a sociedade
a pensar o problema étnico-racial como problema social brasileiro que está precisando ser
enfrentado pela “nação”, também constitui-se duma educação social; uma verdadeira
Pedagogia do diferente. O valor dos textos nesta secão consiste em lembrar ao(à) leitor(a) da
importância de uma “aprendizagem emocional” (GOMES, p. 149) como condição
imprescindível no desenvolvimento dos projetos de ação afirmativa.
As duas últimas seções do livro tratam, em essência, da “Experiência de aprender ao
trabalhar: depoimentos dos monitores” (p. 205-251) e da “Experiência de aprender a
aprender: depoimentos dos alunos-cursistas” (p 253-276). De textos como, “O que é ser
negro no Brasil hoje” (OLIVEIRA, p. 215), “Ações Afirmativas: um bom caminha a
percorrer” (BRITO, p. 217), “Da identidade às Identidades: os passos de uma
(re)construção” (FERREIRA, p. 237), “Negros capazes contra a corrente” (MORAIS, p.
245) entre outros, o(a) leitor(a) encontrará interpretações desenvolvidas por este grupo de
Levando a raça a sério/ Afirmando direitos
15
alunos(as) sobre o poder transformativo das ações afirmativas. Dos(as) cursistas, só para
mencionar algumas de suas avaliações de experiência, depoimentos entitulados “Construindo
a Profissão” (DEUS, p. 255), “Trajetória estudantil: dificuldades étnico-raciais e escrita”
(PEREIRA, p. 259), “Refletindo o passado, o presente e o futuro” (MACIEL, p. 265) e
“Morre mais um neguinho” (JESUS, p. 267), indicam que os alunos concordam que
participar do programa na UFMG consiste em afirmar direitos, uma vez que o acesso e
permanência de jovens negros na universidade estão sendo positivamente influenciados.
O(A) leitor(a) é privilegiado(a) em analisar como estes monitores e cursistas
aproveitam os espaços do Programa na UFMG (como em outras instituições?), para
fortalecer a sua formação acadêmica, social, política e cultural. Contribuiu muito para esta
possibilidade “o fato de não ser uma proposta assistencialista, mas de colaboração na
formação de sujeitos dispostos a não mais reproduzirem um status quo” (SILVA, p. 251) de
marginalização excludente. Este sistema de exclusão sistêmica alimenta “A violência do
racismo (...) de forma a garantir uma normalidade etnocêntrica, que legitima a superioridade
de um grupo (...) e (...) justifica as desigualdades raciais” (SILVA, p. 249). A fim de combater
esta praga histórica, a sabedoria, criatividade, coragem, determinação, consciência de
cidadania (com responsabilidades para com a justiça social e os direitos éticos) dos(as)
participantes levam o(a) leitor(a) a ponderar “que a formação de núcleos, como o Programa
Ações Afirmativas na UFMG, firmados na concepção de políticas públicas específicas,
visando atender a um segmento étnico-racial que sofreu desigualdade na obtenção de seus
direitos enquanto cidadão, é uma prática necessária e honesta de se fazer, verdadeiramente,
democrática” (MEIRELES, p. 276). Um livro que relata a memória de um grupo pequeno,
mas com finalidades universais em sua atuacão permanente, não poderia terminar em
palavras menos desafiadoras, mas também, tão esperançosas para todos cujo discurso de
democracia é construído com base em pensamentos, atitudes, e práticas democratizantes em
todos os espaços de sua atuação.
O que faltaram nas obras?
Há problemas editoriais menores com os dois livros. Além de referências que não
aparecem nas listas referenciais, há citações que não seguem as normas da Associação
Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Há repetições, mas estas se devem à natureza
didática das obras. Entretanto, nenhuma das deficiências encontradas pelo(a) leitor(a), irão
diminuir o valor inestimável destas publicações. As posicões, sugestões, críticas, experiências
e avaliações contidas nestes livros são esclarecedoras, e as mensagens são claras e de fácil
comprensão. O que é preciso para se apreender a essência das mensagens dos autores é o
interesse de se informar a fim de tomar alguma posição nas discussões e debates sobre as
ações afirmativas no Brasil, particularmente através das cotas para o acesso universitário de
jovens brasileiros(as) da descendência africana. Medidas semelhantes focalizando a
população indígena fazem parte desta necessidade.
Inclusão, ou pelo menos, referências à outras experiências de ações afirmativas em
outras partes do país poderia ter fortalecido a mensagem implícita dos livros. Exigir
implantação de programas voltados para as populações ausentes dos bancos estudantis nas
instituições de ensino superior do Brasil é necessidade para os(as) negros(as) e para os povos
indígenas. Entretanto, há outros grupos, especialmente os brancos pobres, que também,
poderiam se beneficiar de programas que visam o acesso, a permanência e o bom
desempenho em cursos de formação profissional superior e programas de pós-graduação. As
ações afirmativas no ensino superior, como mostra o exemplo da Universidade Federal de
Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul, poderiam ser implementadas em suas variadas
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16
modalidades. O título de um artigo publicado em uma revista de grande circulação no Brasil
“Cota, sim, mas com mérito – Um programa gaúcho leva estudantes da rede pública à
universidade – e sem assistencialismo” (Camila Pereira, VEJA, 19 de outubro de 2005, p. 6364) já diz tudo sobre a modalidade da UFSM. Um exemplo como este pode mostrar como as
ações afirmativas poderiam ser utilizadas também, para afirmar como é unida a Federação
Brasileira nas lutas contra as discriminações e desigualdades, tanto na sua ubiqüidade quanto
na história do Brasil. O mais importante, como mostra os dois livros na essência de seus
argumentos, é implantar programas e projetos que garantam presença representativa e
participação ativa na vida universitária de toda juventude brasileira. Numa sociedade
caracterizada pelas diversidades horizontais e verticais, tais esforços precisariam contemplar
diferentes fatores que melhor acomodariam os diferentes grupos. No Brasil, não faltará
criatividade para desenvolver sistemas adequados às suas peculiaridades históricas,
sócioculturais e regionais.
Além de colocações correlatas, os autores esquecerem das populações quilombolas.
É imprescindível contemplar a inclusão deste grupo, também secularmente excluído, nas
discussões sobre as ações afirmativas no ensino fundamental e nas reflexões acerca das cotas
no ensino de terceiro grau. Muito pode-se aprender de suas experiências de luta e conquista
de espaços sóciopolíticos.
Entendemos que o Brasil, desde a sua formação, sempre tem sido um país pluriracial e multicultural.
Apesar do fato de que somente a história dos vencedores não negros e não indígenas tem sido
recontada sem emendas, chegou o tempo em que a História dos vencidos precisa ter voz e vez. Essa
necessidade é acadêmica, econômica, social e cultural. A mesma exigência é também política porque
sem entender a nossa História como povo, ficará cada vez mais difícil construir uma sociedade
integrada e meritocrática 2. Sem integração e meritocracia, ficará difícil vencer a competitividade que a
globalização apresenta. A fim de realizar esses objectivos, é necessário estudar a história, a cultura, a
realidade contemporânea dos grupos formadores da sociedade brasileira. Os habitantes das
comunidades negras rurais do Piauí e dos outros estados são importantes nesse sentido. As suas lutas
e forma de resistência oferecem importantes lições de como adquirir voz e vez depois de séculos de
silêncio e marginalização” (BOAKARI e GOMES, 2006, p. 52).
Muito sentido nas duas obras é da ausência de textos, ou pelo menos referências
consistentes, expondo idéias e posições opostas às ações afirmativas, especialmente na sua
modalidade mais politicamente correta, as cotas para pessoas negras em diversas instituições
públicas e organizações privadas. Entretanto, alguém poderia responder que o objetivo dos
dois livros erá de apresentar material para refletir sobre as ações afirmativas, e somente nas
dimensões positivas uma vez que outras idéias contrárias já estavam contidas nas entrelinhas
2
Por sociedade meritocrática, se refere à qualquer comunidade onde, na medida do possível,
todos os integrantes estão submeticos aos mesmos critérios objetivamente padronizados
para distribuir os bens materiais e simbólicos (riqueza nacional) de modo mais igualitário. A
realização de uma meritocracia social pode ser um ideal. Entretanto, transformar este ideal
numa possibilidade concreta é comparável à idéia freiriana da “esperança ativa”, que trata
não da passividade de esperar de braços cruzados, mas de continua- e incansavelmente lutar
para realizar o que parece impossível. Desenvolver uma sociedade onde a meritocracia
prática é a sua razão de ser, é possível quando todos os membros deste agrupamento estão
tratados como seres humanos porque cada indivíduo objetivamente tem igual acesso às
oportunidades. Devido às dificuldades de falar de entender o mérito unilateralmente, a
meritocracia deveria ser entendida em termos de possibilidades reais para melhor humanizar
as sociedades humanas.
Levando a raça a sério/ Afirmando direitos
17
dos textos. Além do mais, ter apresentado material relevante e suficiente de cunho teóricoprático para uma Pedagogia do diferente é suficiente em si.
É didático se lembrar que enquanto elaborava esta resenha (julho/agosto de 2006)
estava sendo encaminhado um baixo-assinado, “Manifesto em favor da Lei de Cotas [Projeto
de Lei (PL) 73/1999] e do Estatuto da Igualdade Racial (PL 3.198/2000)” para ser
encaminhado aos(às) Deputados(as) e Senadores(as) do Congresso Nacional Brasileiro. Esta
medida se deu por causa do “documento contrário à Lei de Cotas e ao Estatuto da Igualdade
Racial, enviado recentemente aos nobres parlamentares por um grupo de acadêmicos
pertencentes a várias instituições de elite do país (...) rejeitam frontalmente as duas Leis (...)
não apresentam nenhuma proposta alternativa concreta de inclusão racial no Brasil,
reiterando apenas que somos todos iguais perante a lei e que é preciso melhorar os servicos
públicos até atenderem por igual a todos os segmentos da sociedade”. Tal ação desses
‘cientistas brasileiros’ comprova existência de uma resistência sistemática à mudanças
favoráveis aos marginalizados (Teixeira, 2006), sempre com a mesma justificativa contida na
teoria de trickle down [a riqueza gotejando das elites para os(as) explorados(as),
empobrecidos(as) e sem nada]. Até hoje, faltam a esta teoria, comprovações generalizadas e
consistentes. Tudo indica que é um “discurso falacioso”, ‘conversa mole para botar o boi a
dormir’. Argumentos semelhantes continuam sendo empregados para desviar tentativas
sérias de viabiliar lutas contra o racismo (Kamel, 2006). Por exemplo, durante o período
militar, pessoal da esquerda (ainda marxistas?) argumentava que com a derrota do
capitalismo (e a volta das instituições democráticas), ‘todos os outros problemas menores’
como o racismo, seriam resolvidos. (Mas a história é testemunha do que aconteceu!) Da
mesma forma, alguns machistas engajados(as) nas lutas contra as discriminações querem nos
convencer que depois de resolver o problema do racismo, ‘os problemas das discriminações
entre e intra-genêros’ também desapareceriam. Ainda há gente pensante no Brasil capaz de
ver além da fumaça dos racistas que se vestem de intelectuais críticos e cientistas de uma
realidade que nada tem a ver com o real.
A leitura criteriosa destes dois livros em pauta, ajudaria na formação de cidadania,
como também, nas lutas para ajudar o Brasil crescer com integridade. Deste modo, pelo
efeito multiplicador, mais outros(as) se reconheceriam como participantes na consolidação
de uma sociedade formada por grupos étnico-raciais diversos. Tal reconhecimento só traria
vantagens quando um número crescente de brasileiros(as) aceitar a diversidade brasileira e
incorporar as implicações construtivas desta característica. Somente quando mais pessoas no
Brasil ficarem bem informadas sobre os racismos e as estratégias, conscientes e
inconscientes, que os sustentam será possível construir uma sociedade integradora de
todos(as) os(as) brasileiros(as).
“Ressalta-se que, ao cabo de todas as exposições, quem está buscando uma
fundamentação teórica sobre a temática das Relações Raciais e Educação será grandemente
beneficiado, se considerar a relevante bibliografia nacional e internacional utilizada,
abrangendo vários períodos sociohistóricos” (GOMES e MARTINS, 2004, p.14) presentes
nos livros. Além do mais, administradores de entidades públicas e privadas, sem excluir
profissionais de todas as áreas especialmente os(as) de todos os níveis do ensino, e acima de
tudo, as pessoas de todas as faixas etárias que ativamente fazem do cotidiano brasileiro o que
ele é, podem aprender muito destas leituras. Para o(a) pesquisador(a) que se preocupa em
comprender a sociedade brasileira, o Brasil explicitamente problematizado, aquele país
latente de que poucos se preocupam, uma leitura cuidadosa destes dois livros só poderia,
sem restrições, ser recomendada. São textos como estes das obras que o(a) iniciante, o(a)
mais adiantado(a), e o(a) especialista dos estudos brasileiros [e os(as) brasilianistas
http://edrev.asu.edu/reviews/revp51
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contemporâneos(as?)] facilmente usariam com bastante proveito porque quem fala são os(as)
brasileiros(as) que tentam apresentar uma sociedade do jeito que ela é quando se olha a
mesma de baixo (a infraestrutura marxista) para cima; de modo diferente daquele com o que
estamos acustomados, o Brasil do “racismo cordial” sem racistas! Os temas tratados nestes
livros gritam que não poderia haver nenhum “-ismo cordial”, nem o racismo tampouco o
“machismo” ou “sexismo”. Todas as formas discriminatórias matam os(as) discriminados(as)
de modo violentamente devagar! E enquanto as pessoas morrem, a sociedade fica morfando
na sua cumplicidade.
Estas ponderações têm como finalidade enfatizar a necessidade que todos os(as)
brasileiros(as) têm para se conhecerem melhor a si próprios; e os livros revisados servem de
boas referências para o engamento nesta luta de construir um Brasil novo. Este Brasil novo
será uma sociedade que se faz merecedora de toda a riqueza que possui porque
concretamente se esforça para investir-se de modo igual, ético, e racional para que os
segmentos da população nacional sub-representados quando se fala de condições sócioeconômicas, tenham as melhores oportunidades (eqüidade) num contexto progressivamente
igualitário. Os(As) que lutam pelas ações afirmativas nas suas diversas modalidades estão
exigindo esta nova sociedade, não somente porque é passível, mas porque é para o bem da
sociedade brasileira toda. Assim, não teríamos mais caçadores e caçados; mas todo mundo se
fará caçador, procurando mirar as deficiências para resolver o problema dos problemas do
Brasil, tal seja, a negação não-crítica das discriminações em suas manifestações mais brandas
- étnicas, raciais, regionais, sexuais e de genêro.
Uma leitura atenciosa das obras desta resenha pode, não somente confirmar o quão
imprescindível é uma Pedagogia do diferente para o Brasil, mas também, apontar caminhos que
viabilizariam a transformação do Brasil pela sociedade civil desenvolvendo atividades de
educação social e da escolarização, utilizando os espaços (existentes e a serem formados) nas
instituições públicas, organizações privadas, outras entidades e instâncias.
Referências
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CA: Allyn & Bacon.
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caracterização sóciocultural. Teresina: EDUFPI.
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Rio de Janeiro: Francisco Alves.
Cardoso, Fernando Henrique, Winter, Brian, (2006). The accidental President of Brazil: A memoir. New York, NY:
Public Affairs, Perseus Books Group.
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Friedman, Thomas L., (2005). The world is flat: a brief history of the twenty-first century. New York, NY:Farrar,
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Hanchard, Michael, (1999). Racial politics in contemporary Brazil. Durham, NC: Duke University Press.
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Miceli, Sérgio, (1979). Intelectuais e classe dirigente no Brasil. São Paulo: DIFEL.
Ribeiro, Darcy, (1995). O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras.
Teixeira, Jerônimo, (2006). Contra o mito da “nação bicolor”.Veja, Agosto, 16, p. 126-127.
Acerca do Resenhador: Francis Musa Boakari Ex-professor adjunto IV da UFPI,
Teresina, Piaui. Atualmente professor de educação internacional-comparada, estudos
Levando a raça a sério/ Afirmando direitos
culturais, e pesquisa educacional, University of the Incarnate Word, San Antonio, Texas,
Estados Unidos.
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