UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
RUBEN MARCOS SEIDL
DA AÇÃO AFIRMATIVA COMO POLÍTICA DE INCLUSÃO
ACADÊMICA E SEUS LIMITES CONSTITUCIONAIS
SÃO PAULO
2007
2
RUBEN MARCOS SEIDL
DA AÇÃO AFIRMATIVA COMO POLÍTICA DE INCLUSÃO
ACADÊMICA E SEUS LIMITES CONSTITUCIONAIS
Dissertação apresentada à Universidade
Presbiteriana Mackenzie, como requisito
parcial para a obtenção do título de Mestre
em Direito Político e Econômico.
Orientadora: Prof. Dra. Monica Herman
Salem Caggiano.
SÃO PAULO
2007
3
RUBEN MARCOS SEIDL
DA AÇÃO AFIRMATIVA COMO POLÍTICA DE INCLUSÃO
ACADÊMICA E SEUS LIMITES CONSTITUCIONAIS
Dissertação apresentada à Universidade
Presbiteriana Mackenzie, como requisito
parcial para a obtenção do título de Mestre
em Direito Político e Econômico.
Aprovada em: ____ de __________________ de 2007.
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dra. Monica Herman Salem Caggiano
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Prof. Dr. José Carlos Francisco
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Prof. Dr. Manoel Gonçalves Ferreira Filho
Universidade de São Paulo
4
A:
Arthur Johann Alfred Seidl (in
memoriam).
O velho austríaco.
5
RESUMO
A Conferência Mundial contra o Racismo, realizada em Durban em 2001,
marcou uma nova posição do governo brasileiro em relação às políticas de
proteção a minorias e promoção da igualdade. Políticas de Ação Afirmativa, até
então tímidas, ganharam novo impulso e diversas normas foram rapidamente
promulgadas para suportá-las. Entretanto, muitas dessas normas acabaram por
fixar cotas raciais e sociais, ignorando o processo histórico em outros países,
marcadamente os EUA, onde cotas raciais foram consideradas inconstitucionais,
embora outras políticas menos contundentes de Ação Afirmativa ainda
continuam sendo promovidas. A pesquisa procura estabelecer limites das Ações
Afirmativas, levando em conta não apenas as experiências de outros países, mas
a própria formação do povo brasileiro e as possibilidades de promoção da
igualdade vis-à-vis a Constituição Federal.
Palavras chave: Ação Afirmativa, princípio da igualdade, direito constitucional,
dignidade da pessoa humana.
6
ABSTRACT
The World Conference on Racism that took place in Durban in 2001 shaped a
new position of the Brazilian government concerning its policies on minorities´
protection and promotion of equality. Affirmative Action policies, until then
timorous, gained a new drive and several laws were rapidly arranged in order to
support them. Nevertheless, many of these laws established fixed racial and
social quotas, ignoring the historical process in other countries, mainly the U.S.,
where racial quotas had been considered unconstitutional, although other kinds
of affirmative policies, somehow less belligerent, are still in place in North
America. This study seeks to establish legal limits for Affirmative Action,
taking into account not only similar experiences in other countries, but the own
formation of the Brazilian people and the possibilities of promotion of equality
vis-à-vis the Federal Constitution.
Key Words: Affirmative Action, principle of equality, Brazilian constitutional
law, dignity of human person.
7
SUMÁRIO
1
INTRODUÇÃO ................................................................................................. 09
2
BASE CONCEITUAL DA AÇÃO AFIRMATIVA.......................................... 12
2.1
A questão da temporalidade da Ação Afirmativa ............................................ 14
2.2
Ação Afirmativa e cotas .................................................................................... 20
3
ORIGENS DA AÇÃO AFIRMATIVA............................................................. 26
3.1
A Influência da Ação Afirmativa nos EUA na esfera internacional................ 26
3.2
Início das políticas ............................................................................................. 28
3.3
O caso Griggs..................................................................................................... 31
3.4
Desenvolvimento e aplicação prática da Ação Afirmativa............................... 33
3.4.1
O caso Bakke na Suprema Corte ......................................................................... 34
3.5
Declínio e alternativas ....................................................................................... 38
3.5.1
Os casos da Universidade de Michigan ............................................................... 40
3.6
Questões relevantes da experiência norte-americana ...................................... 44
4
EXPERIÊNCIAS PRÁTICAS DA AÇÃO AFIRMATIVA EM
UNIVERSIDADES NO BRASIL ...................................................................... 48
4.1
Aspectos raciais no Brasil e EUA...................................................................... 53
4.1.1
Aspectos da formação dos povos brasileiros e norte-americanos......................... 55
4.1.2
Classificações raciais.......................................................................................... 58
4.1.3
Visão bipolar e multipolar da classificação racial............................................... 63
4.2
Aplicações práticas em universidades............................................................... 65
4.2.1
Cotas na Universidade Estadual do Rio de Janeiro ............................................. 67
4.2.2
Cotas na Universidade de Brasília ...................................................................... 73
4.3.3
O sistema de bônus na UNICAMP....................................................................... 79
4.2.4
Análise comparativa dos casos práticos .............................................................. 81
5
JUSTIFICATIVAS TEÓRICAS PARA AÇÃO AFIRMATIVA .................... 85
5.1
A teoria da reparação........................................................................................ 86
5.2
A teoria da Justiça distributiva......................................................................... 89
5.3
Diversidade e Multiculturalismo....................................................................... 96
8
6
A QUESTÃO CONSTITUCIONAL.............................................................. 101
6.1
Panorama do princípio da igualdade nas prévias constituições brasileiras . 102
6.2
O princípio da igualdade na Constituição Federal de 1988 .......................... 104
6.3
O princípio da igualdade e a Ação Afirmativa............................................... 106
6.4
Limites Constitucionais da Ação Afirmativa.................................................. 109
6.4.1
A proporcionalidade como limite constitucional................................................ 113
6.4.1.1 Conformidade ou adequação aos meios............................................................. 114
6.4.1.2 Exigibilidade de meios menos gravosos............................................................. 116
6.4.1.3 Proporcionalidade em sentido estrito ................................................................ 118
6.4.2
A razoabilidade como limite constitucional ....................................................... 119
6.4.3
A objetividade como limite constitucional.......................................................... 121
6.5
A Educação na Constituição brasileira........................................................... 123
7
CONCLUSÃO ................................................................................................. 126
8
REFERÊNCIAS .............................................................................................. 128
9
1.
INTRODUÇÃO
O estabelecimento de cotas raciais como critério de seleção para ingresso
nas universidades estaduais do Rio de Janeiro em 2001, através da Lei
3.708/2001, sancionada pelo então Governador Anthony Garotinho, marcou o
início de programas legalmente estabelecidos para a inclusão acadêmica no país.
A medida, que reservava 40% das vagas para negros e pardos, causou imediata
polêmica porque alguns meses antes o mesmo Estado havia promulgado uma lei
que estabelecia reserva de vagas para alunos provenientes de escolas públicas.
Após a divulgação dos resultados do vestibular, houve uma avalanche de
medidas judiciais contra a medida, aliadas a implacáveis críticas na imprensa. A
verdade é que a sociedade não estava suficientemente informada e tampouco
preparada para programas de inclusão tão incisivos, como as reservas de vagas
em universidades públicas.
Durante muitos anos o Brasil assistiu silenciosamente aos movimentos
dos direitos civis norte-americanos que foram os grandes impulsionadores da
Ação Afirmativa naquele país. A começar pelos movimentos negros, seguidos
dos ativistas dos movimentos feministas, os diversos defensores das chamadas
liberdades civis provocaram uma profunda modificação na sociedade norteamericana, o que refletiu diretamente no Direito e nas decisões dos tribunais
superiores em relação à matéria. Apesar disso, o movimento teve de início
pouca influência no Brasil, vez que o país estava naquela época às voltas com
questões sociais diferentes, preso na armadilha da dicotomia de direita e
esquerda, liberalismo e marxismo. Somente após quarenta anos, as ondas de
influência chegaram aos portos pátrios.
10
As razões para o tardio despertar brasileiro para as Ações Afirmativas são
várias, mas é possível citar pelo menos três delas. A primeira razão importante
foi a necessidade da construção de um arcabouço legal que suportasse políticas
afirmativas. Isto só começou a ser feito com a promulgação da Constituição
Federal de 1988 (mais de vinte anos após a Lei dos Direitos Civis nos EUA),
que já nos seus artigos vestibulares estabeleceu os objetivos da República como
sendo, entre outros, a diminuição das desigualdades sociais e a promoção do
bem de todos, sem discriminações de qualquer forma. Além de demonstrar uma
forte preocupação com a cidadania e os direitos fundamentais, a nova
Constituição contrastou com as antigas cartas no sentido de estabelecer
objetivos programáticos para o país.
A segunda razão para o despertar tardio para as Ações Afirmativas foi a
necessidade de um ambiente político favorável.
A eleição do Presidente
sociólogo Fernando Henrique Cardoso contribuiu muito para isto. Tendo em sua
juventude estudado de maneira profunda a questão do negro no Brasil, o então
presidente deu os primeiros passos concretos de inclusão racial.
Foi em seu
governo que as primeiras medidas oficiais foram tomadas no sentido de
estabelecer políticas afirmativas para cargos públicos e licitantes do governo
federal.
A terceira razão foi a unificação e fortalecimento do movimento negro no
Brasil, cuja liderança acabou, a duras penas, conquistando importantes postos no
governo federal, principalmente após a eleição do presidente Luiz Inácio Lula
da Silva, conforme indica o professor de Antropologia da Universidade de
Brasília, José Jorge de Carvalho (2003, p. 68). Portanto, com um arcabouço
legal apropriado, aliado a governos simpáticos à causa, e uma liderança
11
politicamente expressiva de grupos de pressão, as Ações Afirmativas ganharam
um rápido e exponencial crescimento nos primeiros anos desta década.
Mas, a exemplo do que ocorreu nos EUA, a implantação dos programas
de Ação Afirmativa foi, e ainda está sendo, objeto de uma intensa polêmica que
envolve a sociedade civil, sociólogos, antropólogos, pedagogos e, naturalmente,
os operadores do Direito. Grande parte dos proponentes da Ação Afirmativa,
cuja história no Brasil apenas começa a ser delineada, concentra sua atenção em
uma defesa teórica do instituto, tanto jurídica como moral e filosófica. Uma vez
lograda a defesa teórica, os patronos da causa parecem julgar justificadas todas
as aplicações práticas advindas da base teórica.
Em nossa opinião, aí se
encontra um grande desvio.
Por essa razão, este estudo procura evidenciar que, embora a Ação
Afirmativa possa ser justificada teoricamente, tanto do ponto de vista jurídico
como do filosófico, existem importantes limites a sua aplicação prática.
Portanto, o objetivo desta pesquisa é estudar as principais aplicações práticas
das Ações Afirmativas no que concerne ao ingresso a universidades e seus
limites jurídicos e constitucionais. Para tanto, será necessária, além de uma
visão histórica das aplicações no seu país de origem, uma análise prática das
experiências pioneiras no país, contrastando-se com princípios e regras da Lei
Maior.
12
2.
BASE CONCEITUAL DA AÇÃO AFIRMATIVA
O binômio Ação Afirmativa surgiu pela primeira vez nos Estados Unidos
através da Executive Order (decreto executivo) 10.925 de março de 1961, dois
meses após o Presidente John F. Kennedy haver assumido a Casa Branca
(Cohen, 2003, p. 12). A medida tinha por objetivo o combate à discriminação
em cargos públicos e em empresas fornecedoras do governo, mas acabou por se
tornar um conceito de amplo espectro e, desde os meados dos anos 60, tem
recebido as mais variadas definições.
Chamada de discriminação positiva na
Europa, o conceito de Ação Afirmativa guarda em si um aparente paradoxo,
como bem observou o constitucionalista Manoel Gonçalves Ferreira Filho
(2003, p.72): “desigualar para criar igualdade”.
De fato, conforme também asseverou o Ministro do Supremo Tribunal
Federal, Marco Aurélio de Mello (2001, p. 163), as políticas públicas
tradicionais de proibição de discriminação, as chamadas políticas “neutras”, não
foram suficientes para atingir os objetivos republicanos da verdadeira igualdade.
Portanto, as Ações Afirmativas foram concebidas como iniciativas que vão além
da mera proibição de discriminar. Em suas palavras, “não basta não discriminar.
É preciso viabilizar as mesmas oportunidades. Há de ter-se como ultrapassado o
sistema simplesmente principiológico”.
No Brasil, a definição geralmente aceita de Ação Afirmativa provém do
aprofundado estudo realizado por outro Ministro do Supremo Tribunal Federal,
Joaquim Barbosa Gomes. Esse conceito tem sido freqüentemente citado em
estudos e ensaios acadêmicos sobre o tema.
Segundo o Ministro Barbosa
Gomes (2001, p. 40), Ações Afirmativas correspondem ao:
13
[...] conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório,
facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à
discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para
corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado,
tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de
acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego.
A definição acima tem a qualidade de ser, ao mesmo tempo, clara e
abrangente. Destaca que a Ação Afirmativa pode ser tanto compulsória (em
certos casos, por força de lei) como facultativa; de origem pública, ou privada.
De fato, inúmeras iniciativas para corrigir a desigualdade foram primeiro
tentadas pelo setor privado de forma espontânea. Um bom exemplo disto são as
várias organizações não governamentais (ONGs) que incentivam através de seus
esforços a promoção da igualdade para acesso às universidades públicas,
utilizando meios criativos, como cursos preparatórios especiais destinados a
minorias étnicas e aos economicamente carentes.
Entretanto, iniciativas
voluntárias e privadas pouco interessam ao Direito Público, que constitui o cerne
principal do presente estudo.
O que mais interessa ao Direito Público são as políticas cogentes de
Estado e também estas são o principal cerne de controvérsia sobre Ação
Afirmativa. Este ponto foi salientado pela pesquisadora da Michigan State
University, Vera Lúcia Benedito (2002, p. 74):
No início do século XXI, a idéia de formulação de programas e
práticas sociais que corrijam desigualdades históricas encontra fóruns
de receptividade em várias partes do mundo, seja nas Américas,
principalmente Canadá e Estados Unidos, Comunidade Européia e
países dos continentes Africano e Asiático [...].
Guardadas as devidas proporções, entre os vários países que adotaram
políticas de ações afirmativas emerge um ponto comum: são políticas
públicas, ou seja, políticas que emanam do Estado. Via de regra, a
adoção de ações afirmativas requer a existência de um Estado
politicamente forte que tenha a capacidade primordial de monitorar e
sancionar a implementação dessas políticas.
14
Portanto, embora a definição do Ministro Barbosa Gomes acima
mencionada tenha todos os méritos de abrangência, as Ações Afirmativas
realmente adquirem importância fundamental quando são feitas através de
políticas de Estado, o que necessariamente passa pela via legislativa. Assim,
Ações Afirmativas são primordialmente entendidas neste estudo como políticas
de Estado destinadas ao combate à discriminação e à promoção da igualdade
em diversos setores da sociedade, estabelecidas de maneira cogente através de
normas jurídicas, com vistas também a fomentar os valores da diversidade e
pluralismo. Se as Ações Afirmativas são efetivamente estabelecidas por normas
jurídicas, impõem-se necessariamente limites constitucionais a tais normas,
conforme os parâmetros fundamentais do Estado Democrático de Direito,
através do critério de aferição da constitucionalidade das leis.
2.1.
A questão da temporalidade das Ações Afirmativas
Em sua tese de doutorado recentemente apresentada na Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo, o professor Paulo Lucena de Menezes
(2006, p. 12) traz o seguinte conceito de Ação Afirmativa:
[...] medidas que, por meio de um tratamento jurídico diferenciado e
temporário, têm por escopo corrigir as desigualdades existentes entre
determinados grupos sociais e uma dada parcela da sociedade na qual
eles estão inseridos, desigualdades essas que, na maior parte das
vezes, são oriundas de práticas discriminatórias. [...] Os possíveis
destinatários dessas medidas também são muitos, embora predominem
os grupos raciais e étnicos, mulheres, idosos e portadores de
deficiência.
O conceito acima, além de envolver um grupo mais abrangente de
beneficiários do que concede a definição tradicional, mais concentrada em
gênero e raça, salienta um aspecto geralmente deixado de lado na maioria das
15
conceituações sobre o tema, a temporalidade. Essa questão tem sido abordada
apenas marginalmente por boa parte dos pesquisadores das Ações Afirmativas,
mas merece mais destaque por se tratar, pelo menos em primeira análise, de um
elemento essencial do instituto.
De fato, desde o princípio, os objetivos das Ações Afirmativas são de
corrigir uma situação indesejável ou incompatível com os ideais republicanos de
igualdade formal e material. Uma vez corrigida essa situação, não haveria mais
sentido lógico ou justificativa racional para que o instituto se perpetuasse através
do tempo.
A lógica acima tem sido adotada por diversos defensores da Ação
Afirmativa e se faz necessário citar alguns importantes autores. O influente
jurista Ronald Dworkin (2005, p. 438-440) elegantemente sustenta que as
políticas afirmativas se justificam como políticas sociais para a promoção da
igualdade entre os cidadãos e o alcance da diversidade cultural em uma
sociedade democrática, e que, uma vez atingidos esses objetivos, tais políticas
perderiam sua justificativa. A temporalidade, portanto, seria uma característica
intrínseca do instituto.
De igual modo, o já citado Ministro Marco Aurélio de Mello (2001, p.
164) sustenta que:
É preciso buscar-se a ação afirmativa. A neutralidade estatal mostrouse um fracasso. Há de se fomentar o acesso à educação [...] No
sistema de quotas, deverá ser considerada a proporcionalidade, a
razoabilidade, dispondo-se, para tanto, de estatísticas. Tal sistema há
de ser utilizado para a correção de desigualdades. Assim, deve ser
afastado tão logo eliminadas essas diferenças. (grifo nosso).
16
A temporalidade das Ações Afirmativas, como elemento intrínseco ao
instituto, é também encontrada em importantes tratados internacionais dos quais
o Brasil é signatário. Dentre elas destaca-se a Convenção Internacional pela
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial de dezembro de 1965,
adotada pela Assembléia Geral da ONU e ratificada pelo Brasil. Prescreve seu
artigo I, item 4:
Medidas especiais tomadas com o objetivo precípuo de assegurar, de
forma conveniente, o progresso de certos grupos sociais ou étnicos ou
de indivíduos que necessitem de proteção para poderem gozar e
exercitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais em
igualdade de condições, não serão consideradas medidas de
discriminação racial, desde que não conduzam à manutenção de
direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam
após terem sido atingidos os seus objetivos. (grifo nosso).1
Semelhantemente, prescreve a Convenção sobre a Eliminação de Todas
as Formas de Discriminação contra a Mulher da ONU de 1979, artigo IV:
1. A adoção pelos Estados partes de medidas especiais de caráter
temporário destinadas a acelerar a igualdade de fato entre o homem e
a mulher não se considerará discriminação na forma definida nesta
Convenção, mas de nenhuma maneira implicará como conseqüência,
a manutenção de normas desiguais ou separadas: essas medidas
cessarão quando os objetos de igualdade de oportunidade e
tratamento houverem sido alcançados. (grifo nosso).2
Depreende-se assim, tanto dos tratados internacionais, como da própria
justificativa para a adoção das Ações Afirmativas, que estas devem possuir um
caráter temporário e transitório. São medidas de exceção para correção de uma
situação indesejável e não um objetivo em si mesmo. Entretanto, esse caráter
intrínseco de temporalidade carrega consigo alguns problemas de certa
1
Disponível em Português no sítio da ONU em: <http://www.onu-brasil.org.br/doc_cs.php>. acesso em:
04/01/2007 às 15:20 Hs.
2
Disponível em Português no sítio da UNESCO em:
<http://www.unesco.org.br/publicacoes/copy_of_pdf/convdiscmulher.pdf>. acesso em: 04/01/2007 às 15:25 H.
17
complexidade. Esses problemas podem ser classificados em dois principais
tipos: de ordem teórica e de ordem prática.
Um problema de ordem teórica surge quando se analisam preceitos
constitucionais e normas infraconstitucionais que tratam da questão dos
deficientes físicos. 3 As normas que concedem proteção aos deficientes não têm
caráter temporário ou transitório, são permanentes.
Os deficientes físicos
constituem-se em uma situação sui generis dentro das políticas afirmativas
porque sua condição desprivilegiada não provém de discriminação passada, mas
é fruto de uma condição natural. Mesmo que nunca haja qualquer tipo de
discriminação aos deficientes, eles ainda estarão em situação menos favorável
em relação ao restante da população, justamente porque sua deficiência dificulta
a vida cotidiana em muitos aspectos. A questão de temporalidade, então, não
tem aplicação ao caso dos deficientes, que precisam ser amparados sempre.
Esse grupo se constitui em uma exceção ao caráter de temporalidade.
Por outro lado, o problema prático provém do histórico de quase meio
século de aplicação das políticas afirmativas.
Não se tem notícia de que
defensores do instituto se dêem por satisfeitos e proponham a eliminação das
Ações Afirmativas, mesmo após estas terem alcançado, pelo menos em grande
parte, os objetivos a que se propuseram. Os EUA são um bom exemplo desse
problema. Desde há um certo tempo, a proporção de estudantes negros em
universidades é próxima à proporção de negros na população geral 4, mas há
uma enorme resistência em se abandonar o critério racial como um dos critérios
de escolha para ingresso em universidades.
3
O Ministro Marco Aurélio de Mello (2001, p. 164) menciona como exemplos de Ação Afirmativa já dispostos
no direito positivo brasileiro, entre outros, o artigo 37, inciso III, da Constituição Federal e a Lei nº 8.112/90 que
instituem cotas para deficientes físicos em concursos públicos. Obviamente o dispositivo constitucional e a lei
não têm caráter temporário.
4
Fonte: US Census Bureau, www.census.gov/prod/2003pubs/c2kbr-26.pdf acesso em 15/01/2007, 19:12 Hs.
18
Uma boa ilustração dessa resistência é o recente referendo popular de
novembro de 2006 do Estado norte-americano de Michigan que acabou por
aprovar uma lei banindo qualquer critério racial nos processos de seleção para
universidades públicas. Organizações não governamentais pró Ação Afirmativa
rapidamente buscaram o judiciário alegando a inconstitucionalidade de tal lei. O
argumento básico para sustentar a ação é o alegado fato de que a eliminação de
critérios raciais nos processos de seleção iria diminuir a porcentagem de negros
e latinos nas universidades públicas. 5
Se o argumento acima for verdadeiro, torna-se possível perceber que,
embora a Ação Afirmativa no Estado de Michigan tenha logrado boa parte dos
resultados a que se propôs, criou-se uma dependência de tais políticas para se
manter a igualdade de oportunidades e diversidade racial nas universidades.
Essa dependência de políticas afirmativas, após várias décadas de sua utilização,
é incompatível com a temporalidade.
A necessidade de perpetuação das
políticas afirmativas sentidas na experiência prática, pelo menos no caso
analisado acima, leva a tecer considerações não apenas sobre a natureza do
instituto, mas também acerca da razoabilidade de sua aplicação, tema que será
retomado em capítulo posterior, quando da análise de limites constitucionais do
instituto.
Outro problema prático da temporalidade foi sucitado pelo filósofo
canadense Charles Taylor (1994, p. 40):
A discriminação reversa é defendida como uma medida temporária
que eventualmente irá equalizar as oportunidades e fazer com que as
5
Conforme publicado em:
<http://breakingnews.redstate.com/blogs/schraged/2006/nov/09/michigan_voters_approve_measure_to_end_raci
al_discrimination_in_college_admissions>. 22/11/2006; 14:50 Hs. Thomas Sowell (2004, p. 160-161) questiona
o argumento com dados objetivos: após cinco anos de abandono das políticas de inclusão racial nas
universidades da Califórnia, verificou-se que o número de negros matriculados no sistema universitário (total)
foi o mesmo do último ano de vigência das políticas afirmativas. No Texas, que também baniu o sistema de
preferência, a participação de negros teve um discreto aumento, após alguns anos.
19
antigas regras “neutras” possam vigorar novamente para não
privilegiar ninguém. Esse argumento parece ser razoavelmente forte
[...] Mas, ele não serve para justificar medidas que são necessárias
para o reconhecimento da diferença, cujo objetivo não é lograr o
espaço neutro de igualdade social (difference-blind social space)
porém, ao contrário, manter e cultivar a diferença, não apenas agora,
mas para sempre. Afinal, se estamos preocupados com a identidade
[cultural], então o que pode ser mais legítimo do que a aspiração que
essa identidade jamais seja perdida? (tradução nossa).
O autor desenvolve o texto acima no contexto da defesa do
multiculturalismo, uma das teorias justificadoras da Ação Afirmativa, como será
explorado com mais detalhes em capítulo posterior neste estudo. O que Charles
Taylor entende é que programas de discriminação positiva acabam por reforçar a
identidade cultural dos grupos a que beneficia, forjando uma consciência de
conjunto com aumento de sua auto-estima e reconhecimento do grupo como
especial pela sociedade em geral. A eliminação dessas políticas ao longo do
tempo acaba por se tornar um acometimento à identidade cultural e à
consciência do grupo que imediatamente se posiciona contrário a essa ameaça.
Dessa maneira, os objetivos de se lograr a diversidade racial ou cultural
em determinados espaços sociais estratégicos, como universidades, por
exemplo, acabam gerando uma expectativa de perpetuação das políticas
protecionistas pelos grupos beneficiados. Na prática, esses grupos identificam
as políticas afirmativas, não como a necessidade de lograr a igualdade de
oportunidades, mas como um reconhecimento e valoração do grupo pela
sociedade. É bem possível que esta seja a melhor explicação para a existência
de grande resistência em descontinuar políticas afirmativas em vários países,
mesmo após o alcance dos objetivos iniciais.
Em conclusão a esta seção, pode-se asseverar que a temporalidade deve
ser um elemento intrínseco das Ações Afirmativas, mas que essa questão, além
20
de comportar exceções, como é o caso dos deficientes físicos, encontra
importantes problemas de aplicação prática que não devem ser menosprezados.
Políticas públicas que, a princípio, devem ser transitórias, mas acabam por
se tornarem permanentes por haver uma geração de dependência, ocorrem com
certa freqüência.
provisórios.
O paralelo que pode ser traçado é a questão de tributos
Muitas vezes Estados criam tributos provisórios com certas
finalidades específicas, mas estes acabam por gerar uma dependência e, tão logo
o tributo seja aprovado, o caráter de transitoriedade acaba rapidamente sendo
abandonado.
A alegação de temporalidade ou transitoriedade torna-se apenas um
instrumento para subjugar as barreiras e oposições iniciais à aplicação da
medida e, uma vez vencidas, o provisório se transforma em permanente. O
exemplo clássico no Brasil é a CPMF – Contribuição Provisória sobre
Movimentação Financeira – tributo que criou uma forte dependência e hoje seu
caráter provisório apenas subsiste no nome. É inegável que as Ações
Afirmativas, embora sendo em essência políticas temporárias, têm a forte
tendência de criação de dependência e esse aspecto precisa ser levado em
consideração quando se propõe a aplicação prática de tais medidas.
2.2.
Ação Afirmativa e Cotas
A aplicação de cotas ou reserva de vagas sempre esteve bastante ligada ao
tema de Ações Afirmativas, e não raro os conceitos acabam sendo
indevidamente confundidos. Isto se deve ao fato de que as cotas foram a
estratégia de aplicação prática mais difundida das políticas afirmativas e também
as que mais geraram controvérsia. Entretanto, os conceitos não podem ser
fundidos, conforme atesta o Ministro Joaquim Barbosa Gomes (2003, p. 53):
21
No que concerne às técnicas de implementação das ações afirmativas,
podem ser utilizados, além do sistema de cotas, o método do
estabelecimento de preferências, o sistema de bônus e os incentivos
fiscais. [...] Noutras palavras, ação afirmativa não se confunde nem se
limita às cotas.
Apesar da devida distinção feita entre os dois conceitos, Ação Afirmativa
e cotas, este último apenas como uma das possíveis aplicações práticas do
primeiro, não são raros os defensores das ações afirmativas que consideram as
cotas como uma estratégia fundamental de aplicação das políticas afirmativas.6
De fato, muitas vezes estas formam a principal bandeira de defesa da Ação
Afirmativa e do anti-racismo, conforme argumenta o professor da UnB, José
Jorge de Carvalho (2004: p. 80):
Quando insisto no valor das cotas como mecanismo fundamental da
luta anti-racista, refiro-me à sua capacidade de desestabilizar e expor
o racismo acadêmico. A elite branca das Ciências Sociais sempre
pregou a necessidade de primeiro interpretar a realidade das relações
raciais para depois intervir sobre ela [...] O que sugiro, pelo contrário,
é que é preciso intervir primeiro para depois conhecer. No momento
em que intervimos, o sistema reage exibindo seus sintomas
recalcados. E pelo flagrante desses sintomas que podemos conhecê-lo
mais profundamente. (grifo nosso).
O texto acima parece defender justamente o caráter polêmico e aguerrido
das cotas raciais como uma das suas principais virtudes. Como será também
demonstrado em seções posteriores, o poder polêmico, beligerante e militante
das cotas faz com que estas sejam a principal escolha de aplicação prática das
políticas afirmativas no Brasil, principalmente para o movimento negro e certos
setores da academia que adotam a visão bipolar de classificações raciais. A
visão bipolar das classificações raciais é adotada pelas organizações mais
militantes da Ação Afirmativa e luta contra o racismo e se contrapõe à visão
6
Como exemplo, citamos o jornalista e pesquisador Carlos Alberto Medeiros (2004, p. 168); o professor de
antropologia da USP, Kabengele Munanga (2004, p. 48-58); e o professor de antropologia da UnB, José Jorge de
Carvalho (2004, p. 80).
22
multipolar de classificações, que admite uma série de nuanças entre o negro e o
branco, conforme explica o jornalista e pesquisador Carlos Alberto Medeiros
(2004, p. 62-69).
Esta questão será discutida com mais detalhes adiante, mas
por hora é necessário destacar que a visão bipolar da questão racial adota uma
postura de militância e confrontação, e é natural, portanto, que as cotas, com seu
aspecto polêmico, sejam mais convenientes à bipolaridade.
Cotas podem ser elaboradas por gênero, classe social ou, mais
freqüentemente, por raça e etnia. As cotas trazem problemas conhecidos, como a
inflexibilidade, beligerância e aumento das tensões raciais, conforme será mais
detalhadamente analisado nos capítulos posteriores.
Também é importante
lembrar que as cotas foram consideradas, depois de amplo debate na sociedade
norte-americana, como inconstitucionais e foram substituídas por outros
mecanismos de aplicação prática da Ação Afirmativa.
Até mesmo importantes defensores da discriminação positiva reconhecem
os graves problemas das cotas, como por exemplo, a antropóloga e ex-primeira
dama, Ruth Cardoso (1996, pg. 17):
As cotas, por exemplo, são uma parte da política de discriminação
positiva. Hoje já se tem uma avaliação mais coerente do seu efeito.
Políticas de cotas são bastante criticadas hoje. Elas não produziram o
que se esperava delas. Nas escolas, por exemplo, ou no trabalho, elas
produziram, às vezes, efeitos perversos que não eram previstos.
Uma das alternativas às cotas é o sistema de bônus a que se referiu acima
o Ministro Joaquim Barbosa Gomes. Esse método foi primeiramente aplicado
nos EUA, mais particularmente na Universidade de Harvard, como maneira de
se evitar os conhecidos problemas das cotas. O sistema de bônus consiste em
conceder pontos adicionais para determinadas minorias em disputas por vagas
em universidade ou concursos públicos. Assim, o sistema de bônus não reserva
23
um número fixo de vagas para os beneficiários e também evita o chamado twotrack system, ou sistema de duas pistas onde brancos e negros concorrem em
seleções diferentes.
No Brasil, esse sistema tem sido adotado principalmente no Estado de São
Paulo, onde começou com a Universidade de Campinas (UNICAMP) e depois
foi aplicado a outras instituições de ensino públicas, através do Decreto Estadual
no 49.602/05 que institui e disciplina o sistema de pontuação acrescida para
afrodescendentes e egressos do ensino público, para ingresso nas ETEs e
FATECs.
Vários são os benefícios do sistema de bônus em relação às cotas. Em
primeiro lugar, o sistema é muito menos polêmico e beligerante e isto pode ser
observado objetivamente com dados estatísticos. Por exemplo, no primeiro ano
de implantação de cotas raciais e sociais na Universidade Estadual do Rio de
Janeiro, houve mais de 200 mandados de segurança questionando o sistema com
vistas a conseguir a matrícula pelos preteridos das cotas, além de duas
representações de inconstitucionalidade perante o Tribunal de Justiça do Estado
do Rio de Janeiro e uma Ação Direta de Inconstitucionalidade perante o STF
(Silva, 2003, p. 59). Em contrapartida, não há notícia de tais ações judiciais
questionando o sistema de bônus da UNICAMP.
No sistema de bônus, os pontos adicionados aos beneficiários não são
drasticamente altos e, portanto, não influem de maneira contundente no sistema
de mérito. O sistema de cotas, como será visto abaixo, muitas vezes exige
programas adicionais para manter o aluno na escola, uma vez que abre as portas
da universidade para alunos que não tiveram uma forte base educacional no
ensino médio ou até mesmo no ensino fundamental. Novamente citando o
24
vestibular da UERJ, em certos casos o sistema de cotas proporcionou o ingresso
de alunos com muito pouco preparo, conforme noticiou a Folha de São Paulo:
A segunda fase [do vestibular da UERJ], com provas discursivas não
era eliminatória. É por isso que em alguns cursos, estudantes [no
sistema de cotas] conquistaram a vaga apesar de terem feito apenas
quatro pontos sobre um total de 110 – caso da engenharia civil e
ciências biológicas.7
Outros tipos de aplicação das Ações Afirmativas são os incentivos fiscais
e sistemas de preferência. Os incentivos fiscais começam a ser aplicados no
programa federal PROUNE, ainda que de maneira um pouco tímida. Sistemas
de preferência são um leque relativamente amplo de possibilidades que evitam
adotar porcentagens fixas ou pontos, mas seguem um programa de metas ou
objetivos a serem cumpridos. Esses sistemas são atualmente os mais aplicados
nos EUA e parecem ser os mais sofisticados, porque conseguem evitar os
problemas associados aos outros sistemas, como a questão do mérito, a
inflexibilidade e a beligerância. Entretanto, são mais difíceis e caros além de
demandarem certa curva de experiência e aprendizado que a história das Ações
Afirmativas no Brasil ainda não possui.
Nessa mesma trilha de pensamento, apesar de reconhecer as dificuldades,
o professor Antônio Sérgio Alfredo Guimarães (2003, p. 80) do Departamento
de Sociologia da USP também aponta o caminho para o sistema de metas como
preferível às cotas:
O estabelecimento de cotas uniformes nacionalmente para negros nas
universidades públicas, tal como proposto em alguns projetos de lei
em tramitação no Congresso Nacional, não me parece a melhor
alternativa. [...]
O estabelecimento de metas temporais bem delimitadas de absorção
de negros por cada universidade pública deve desdobrar-se em
políticas e mecanismos concretos de flexibilização dos instrumentos
7
Disponível em <www1.folha.uol.com.br/folha/educação/ult305ul2540.shtml> acesso em 31 maio 2003.
25
de seleção, como, por exemplo, a ponderação dos resultados dos
exames de conhecimento, levando em conta a extração social e racial
dos candidatos. Ao Ministério da Educação cabe a tarefa mais
onerosa: garantir a expansão do número de vagas nas universidades
públicas. Tal medida é indispensável para quebrar o “jogo de soma
zero” que acirra a disputa de interesses entre os diferentes grupos
sociais e dificulta eventuais compromissos.
Em conclusão a esta seção, pode-se dizer que o sistema de cotas é a
aplicação prática de preferência para proponentes da Ação Afirmativa no Brasil,
principalmente para aqueles grupos mais militantes.
Entretanto, é possível
perfeitamente aplicar a Ação Afirmativa através de outras estratégias. A escolha
da estratégia de aplicação depende de variáveis bastante complexas, que vão
desde as motivações e justificativas para o instituto, até aos limites legais e
constitucionais que o sistema jurídico pode impor. Essas variáveis serão o
principal alvo de estudo em capítulos posteriores.
26
3.
ORIGENS DA AÇÃO AFIRMATIVA
Apesar de as iniciativas para proteger legalmente minorias terem sido
aplicadas em muitos países por um período considerável de tempo, as políticas
de Ação Afirmativa, conforme aplicadas nos EUA desde meados dos anos 60,
foram as que mais influenciaram as iniciativas ao redor do mundo. Thomas
Sowell (2004, p. 1 a 3), da Universidade de Standford, aponta em um trabalho
de análise de políticas de Ação Afirmativa em diversos países que já nos idos de
1840 sistemas de proteção legal para minorias étnicas foram implantados na
Nova Zelândia com base no Tratado de Waitangi. Igualmente, no Paquistão e
Índia sistemas de proteção legal e privilégio foram organizados desde 1949.
Entretanto, essas iniciativas tiveram pouca ou nenhuma influência fora dos seus
limites geográficos.
3.1.
A influência da Ação Afirmativa dos EUA na esfera internacional
Foi a experiência norte-americana, consagrando o nome de Ação
Afirmativa, que despertou o interesse de vários outros países. Sistemas de cotas
ou políticas mais abrangentes de Ação Afirmativa foram levados a cabo no
Canadá, África do Sul e Europa, inspirados de alguma maneira na experiência
norte-americana.
A Europa sofreu influência do movimento, entretanto, as políticas ali
implantadas divergem radicalmente da sua forma original.
As políticas de
discriminação positiva, como é conhecida a Ação Afirmativa na Europa, estão
bastante mais concentradas no gênero e na origem nacional e não na raça ou cor,
como é o caso norte-americano. Cotas raciais simplesmente não existem na
27
Europa, mas experiências com cotas para mulheres para cargos políticos foram
tentadas na França e na Itália. Entretanto, tais iniciativas foram consideradas
inconstitucionais, segundo o constitucionalista Manoel Gonçalves Ferreira
Filho8.
Também vale lembrar a desastrosa tentativa francesa de introduzir um
sistema de preferências raciais no exército com a diretiva do Ministro de Defesa
francês Jean-Pierre Chevènement, em 23 de maio de 1990, que procurava
estabelecer um sistema de discriminação positiva aos conscritos franceses de
origem árabe. A diretiva foi cancelada após grande repercussão do artigo do
oficial Jean-Pierre Steinhofer9 denunciando o sistema. A experiência européia
de Ação Afirmativa (ou discriminação positiva) tem pouco ou nenhum paralelo
com a recente aplicação da questão no Brasil, vez que a questão racial não é
central no antigo continente.
Por outro lado, o Brasil sente a influência direta das políticas de Ação
Afirmativa na América do Norte, não apenas pela inegável proximidade de
ambos os países em vários aspectos econômicos e sociais, mas também pela
atuação direta de fundações norte-americanas que têm aplicado um considerável
montante de recursos para a difusão do ideal no país.10
Dessa maneira, uma rápida análise do desenvolvimento das políticas de
Ação Afirmativa nos EUA se reveste de especial importância histórica, não
apenas para se entender a origem do movimento, como também para perceber e
avaliar melhor os erros e acertos de quase quarenta anos de experiência social e
8
Em palestra ministrada no VI Encontro Nacional de Direito Constitucional em São Paulo, de 18 a 20 de
setembro de 1997. Apud (Menezes, 2001, p. 150).
9
Referência <http://www.ump42.info/edito.htm>. Acesso em: 02/01/2007, 12:46.
10
A título ilustrativo, destacamos a Fundação Ford que tem financiado a publicação de livros, ensaios e
dissertações de caráter apologético da Ação Afirmativa, inclusive firmando um convênio com a Universidade
Estadual do Rio de Janeiro.
28
legislativa que foi enriquecida nos últimos anos com novas decisões da Suprema
Corte norte-americana.
3.2.
Início das políticas de Ação Afirmativa
Após a Guerra Civil norte-americana, conforme ressalta o professor
Melvin Urofsky (1997, p. 15) da Universidade de Virgínia, o Congresso daquele
país aprovou uma série de medidas legais de maneira a proteger os direitos dos
cidadãos recém libertos.
A décima quarta emenda constitucional norte-
americana foi fruto dessas medidas do Congresso e foi elaborada com o fim de
coibir as leis estaduais que porventura viessem a desrespeitar os direitos dos
negros libertados.
Entretanto, decisões da Suprema Corte após 1883,
capitaneadas pelo Ministro Joseph Bradley, interpretaram muito restritivamente
a décima quarta emenda de maneira a limitar quase completamente o seu
alcance como medida de proteção à igualdade aos negros. Com essas decisões
da Suprema Corte, o governo norte-americano praticamente não tomou nenhuma
medida para combater o racismo até a Segunda Guerra Mundial.
As origens das políticas afirmativas são geralmente apontadas com o
surgimento do New Deal do Presidente Franklin D. Roosevelt. O programa New
Deal do democrata Roosevelt significou algo mais do que apenas um plano
econômico para tirar o país da Grande Depressão, mas representou de fato, um
grande aumento da interferência do Estado na sociedade norte-americana. Em
um país que foi o bastião do liberalismo econômico, essa intervenção do Estado
foi apenas absorvida devido ao enorme dano que a Crise de 1929 ocasionou.
Em meio a essa maior intervenção do Estado na esfera privada, as
primeiras tentativas de inclusão forçada de negros em postos de trabalho foram
tomadas.
O problema era que muitas empresas que recebiam contratos
29
volumosos do governo (em especial a indústria bélica) se recusavam a contratar
negros, mediante ao comportamento da época definido pelo sistema Jim Crow.
A Procuradora do Distrito Federal, Roberta Fragosos Menezes Kaufmann (2006,
p. 3 a 19), explica que o sistema Jim Crow foi uma doutrina segregacionista
norte-americana, desenvolvida para justificar a divisão racial com bases legais,
que acabou sendo conhecida pela expressão separate but equal (separados mas
iguais).
A doutrina separados mas iguais foi uma construção jurisprudencial
que justificava a segregação dos negros, ao inferir que a separação das raças não
indicava necessariamente que uma raça era inferior a outra. Nesse contexto o
governo Roosevelt interferiu nas empresas contratadas pelo governo de maneira
a forçá-las a empregar negros, devido em parte às pressões populares que se
sentiam desconfortáveis por estar lutando contra o anti-semitismo nazista, mas
ao mesmo tempo praticando segregação aberta contra os negros.
Em junho de 1941 o Presidente Roosevelt emitiu a Executive Order 8.806
(decreto executivo) que proibia a discriminação na contratação de funcionários
por parte do próprio governo federal e incluía também as empresas que haviam
ganhado licitações com Estado, instituindo a Fair Employment Practices
Commission (FEPC), órgão fiscalizador das práticas de não discriminação na
contratação de mão de obra (Urofsky, 1997, p. 16).
Com uma maior participação do Estado na vida social e econômica
através do New Deal e uma crescente pressão popular pela diminuição da
segregação entre brancos e negros, estava criado o pano de fundo histórico que
culminou nas políticas afirmativas.
Em uma obra detalhada sobre a Ação Afirmativa dos EUA, o atual
Ministro do STF, Joaquim B. Barbosa Gomes (2001, p. 234) sugere que a
história do movimento nos EUA pode ser dividida em três fases distintas:
30
a) fase da indecisão, de 1970 a 1978;
b) fase da aprovação, de 1979 a 1989;
c) fase da paulatina desaprovação, de 1989 a 1996.
Embora esta divisão pareça didática, existem algumas observações a
serem feitas. Em primeiro lugar, é possível retroagir um pouco o período de
início efetivo da Ação Afirmativa para o governo Kennedy, que em sua
Executive Order 10.925 de 1961, utilizou pela primeira vez o termo Ação
Afirmativa em um documento oficial; ou ao governo Johnson que em 1965
exarou a Executive Order 11.246 que não apenas estabeleceu regras rígidas
contra práticas discriminatórias, como também colocou em prática políticas
verdadeiramente afirmativas na contratação de negros (Menezes, 2001, p. 88).
Ou ainda, pode-se apontar a Lei dos Direitos Civis de 1964 como um dos
marcos iniciais da Ação Afirmativa, conforme sugere Thomas Sowell (2004, p.
115), mesmo que as específicas cotas e outros meios práticos de aplicação das
políticas afirmativas tenham sido implementadas apenas na década de 1970.
Também é preciso atualizar um pouco a análise dos acontecimentos, uma
vez que a história obviamente caminhou após 1996 e uma importante e recente
decisão da Suprema Corte de junho de 2003 veio a enriquecer ainda mais a
questão, como será abordado abaixo. No entanto, qualquer que seja considerado
o início da Ação Afirmativa nos EUA, não há dúvidas de que o movimento
tomou considerável porte com o governo do republicano Richard Nixon que
assumiu a presidência em 1969. Conforme salientou a pesquisadora Vera Lúcia
Benedito (2002, p. 75) foi durante essa administração que o Departamento do
Trabalho expediu a ordem de no 4, que passou a requerer que as empresas
levassem em consideração a proporção de mão-de-obra negra disponível no total
da força de trabalho local.
31
Essa ordem teve origem no projeto de Arthur Fletcher que ficou
conhecido como o Plano Filadélfia (Menezes, 2001, p. 92). O projeto deveria
tornar em prática parte do Civil Right Act de 1964 [conjunto de leis que coibiam
o preconceito racial na educação e trabalho, com ênfase no tratamento
igualitário] e lograr a necessária consistência jurídica para enfrentar possíveis
questionamentos legais.
O Plano Filadélfia preconizava que os vencedores de licitações do
Governo Federal deveriam estabelecer programas de Ação Afirmativa, contendo
metas numéricas para minorias étnicas (não apenas negros), mas vedava a
fixação rígida de cotas raciais. Naquela época, as cotas raciais já eram adotadas
principalmente por universidades públicas estaduais como prática das políticas
de Ação Afirmativa. A insistência do Plano Filadélfia em vedar a rigidez das
cotas percentuais fazia parte da estratégia de proteger as políticas afirmativas de
questionamentos jurídicos e se deu também pela forte controvérsia que as cotas,
principalmente as raciais, estavam tendo no seio da sociedade norte-americana.
Os anos seguintes foram marcados por uma série de legislações que
estabeleciam políticas afirmativas, observando não apenas minorias étnicas, mas
também a questão das mulheres e deficientes físicos. Essas iniciativas acabaram
por dar origem a uma série exaustiva de questionamentos judiciais que, através
do devido processo legal, chegou à Suprema Corte Federal.
3.3.
O Caso Griggs
O caso Griggs v. Duke Power Co. (401 U.S. 424 – 1971) tornou-se
emblemático para a Ação Afirmativa por ser o primeiro caso envolvendo o
Título VII do Civil Right Act, a base legislativa do Plano Filadélfia. Os negros,
32
autores da ação, contaram com o valoroso apoio do Ministério da Justiça como
amicus curiae, isto em pleno governo do conservador Richard Nixon. Portanto,
acertadamente o já citado Ministro Barbosa Gomes (2001, p. 184) conclui que a
questão da Ação Afirmativa “transcendia a tradicional clivagem políticoideológica entre republicanos e democratas”.
A querela jurídica girava em torno do processo de admissão e promoção
de funcionários da Duke Power Co. que exigia um teste de Q.I. que geralmente
deixava os negros em situação desvantajosa. A desvantagem não ocorria por
fatores ligados diretamente ao teste, mas pelo fato de que o sistema
segregacionista da era da doutrina “separados mas iguais” obviamente preparava
melhor os brancos, com acesso a melhores escolas, que estatisticamente
superavam os negros nas promoções de maneira quase absoluta. Ao julgar a
questão, a Suprema Corte entendeu que o processo gerava uma discriminação
por impacto, isto é, havia certa injustiça no grau de aferição, mesmo que os
testes fossem iguais a todos. Por serem menos preparados por um processo
educacional segregado, os negros simplesmente não conseguiam posições de
destaque na companhia.
Esse julgado acabou por criar a “teoria do impacto adverso ou
diferenciado” (Menezes, 2001, p. 97) pela qual os autores de ações judiciais
poderiam comprovar a discriminação por meio indireto, através de simples
comprovação estatística. Ora, essa teoria balizou a idéia pela qual a simples
constatação estatística que as minorias raciais encontravam-se em desvantagem
econômica e social já validaria um sistema de proteção especial, o que é o fulcro
principal da Ação Afirmativa.
33
3.4.
Desenvolvimento e aplicação prática da Ação Afirmativa
Conforme observado, durante o governo Nixon, a Ação Afirmativa
ganhou firmes contornos. Thomas Sowell (2004, p. 125) credita às diretivas de
dezembro do Governo Nixon de 1971 o fundamento legal para a formação das
cotas. As diretivas esclareciam que “´objetivos e cronogramas´ significavam
´aumentar materialmente o emprego de minorias e de mulheres´, e que por
´subutilização´ se entendesse ´a menor existência de minorias e mulheres em
determinada categoria de trabalho do que se poderia razoavelmente esperar em
função de sua disponibilidade´”.
Esperava-se com essas diretrizes que os empregadores reconhecessem a
deficiência de utilização (o que seria a desproporcionalidade racial de
empregados). O ônus da prova era do empregador, o que deu um significativo
incentivo para que os patrões começassem a ajustar o seu sistema de
contratações de maneira a balancear o número de empregados em relação ao
universo racial do país.
Paralelamente à situação dos empregos, as universidades começaram
também seus programas de inclusão forçada através do sistema de cotas raciais
para candidatos à admissão. Thomas Sowell (2004, p. 125) indica que nessa
época, muitos acusaram a adoção de cotas raciais como uma má interpretação ou
deturpação da Lei dos Direitos Civis de 1964.
A situação parecia bem definida a favor das cotas, o que incentivou a
adoção desse sistema por diversas universidades públicas estaduais, incluindo a
Universidade da Califórnia. Em 1974, Alan Bakke, um branco veterano da
guerra do Vietnam foi reprovado no sistema de seleção para a Escola de
Medicina da citada universidade que adotava um sistema de cotas raciais e
34
ingressou em juízo, com um processo que iria causar uma das mais importantes
decisões da Suprema Corte sobre a Ação Afirmativa e o sistema de cotas raciais,
que foi exaustivamente estudado por defensores e críticos da Ação Afirmativa.
De fato, até a recente decisão da Suprema Corte de 2003 nos casos da
Universidade de Michigan que serão analisados abaixo, o “caso Bakke” serviu
como decisão fundamental para os processos legais envolvendo os sistemas de
Ação Afirmativa para ingresso em universidades.
3.4.1.
O Caso Bakke na Suprema Corte
O Caso Regents of the University of California v. Bakke (438 U.S. 265 –
1978) tornou-se o caso clássico do movimento da Ação Afirmativa, ainda que a
decisão da Suprema Corte tenha sido extremamente dividida (cinco votos a
quatro) e a vitória apenas parcial. A lide chegou à Suprema Corte Federal
depois que a Suprema Corte Estadual da Califórnia julgou que o processo de
seleção e admissão da universidade citada era inconstitucional e feria a
igualdade por considerar a raça como principal critério de admissão. Os
Diretores da Universidade recorreram da decisão do tribunal a quo e o recurso
foi julgado em 1978.
A decisão da Suprema Corte é de grande complexidade porque, como
indica Paulo Lucena Menezes (2001, p. 100 – 101), não houve consenso nas
decisões. Quatro Ministros julgaram que o processo de admissão da
universidade era legal por fundamentos diferentes e, portanto, Alan Bakke não
poderia ser admitido. Outros quatro Ministros julgaram que o processo de
admissão afrontava o título VII do Civil Right Act e, portanto, o recorrido
deveria ser admitido no curso. A questão foi resolvida pelo voto do Ministro
Powell, que julgou ser o processo de admissão ilegal, mas ao mesmo tempo
decidiu que o quesito raça poderia ser um discrímen válido para programas de
35
Ação Afirmativa.
Dessa maneira, como o processo de admissão em pauta
utilizava-se de cotas numéricas, este foi julgado ilegal e Alan Bakke teve de ser
admitido na universidade.
O voto do Ministro Powell que acabou sendo a parte mais importante do
aresto da Suprema Corte tem sido exaustivamente analisado, inclusive o
Ministro Barbosa Gomes (2001, p. 104) avalia que essa “talvez seja a mais
discutida, comentada e criticada decisão da Corte Suprema dos EUA nas últimas
duas décadas”.
As duas questões mais importantes que foram aclaradas se seguem:
a)
Não havia impedimentos legais para se considerar raça ou cor como
critérios válidos para o processo de seleção se esse processo visasse a
atender um interesse governamental cogente (compelling governmental
interest).
b)
O processo de admissão da Universidade da Califórnia feria o Título VI
e VII do Civil Right Act de 1964 e o conjunto constitucional conhecido
como equal protection clause (igualdade jurídica), ao estabelecer cotas
raciais.
As cotas raciais, por sua rigidez e não-universalidade, não
atendem ao interesse governamental imperativo.
Desde essa decisão, a Ação Afirmativa abandonou o sistema de cotas
raciais por outros tipos de programa, fato salientado por Paulo Lucena de
Menezes (2001, p. 103):
... O Ministro Powell concluiu que o uso de classificação racial, no
caso específico, violava tanto o Título VI, como a equal protection
clause [da Constituição Norte Americana]. No entanto, como
36
mencionado, ele deu a entender que os programas de ação afirmativa
poderiam ser constitucionais, mesmo se levassem em conta algum
aspecto racial ou étnico, desde que esse não fosse o único critério
seletivo e desde que não fossem utilizadas quotas, metas ou
preferências inflexíveis. (grifo nosso).
Reproduz-se aqui parte do voto original do Ministro Powell de especial
interesse:
Pode-se considerar que a reserva de um número específico de vagas
para indivíduos de determinados grupos étnicos contribuiria para a
obtenção de considerável diversidade étnica no corpo discente. Mas,
o argumento da requerente que esta é a única maneira de servir ao
interesse da diversidade é seriamente falho. Fundamentalmente, este
argumento concebe erroneamente a natureza do interesse do Estado
que justificaria a consideração do discrímen de raça ou etnia. Não é o
interesse em simples diversidade étnica, na qual uma percentagem
específica do corpo discente é formada por membros de grupos
étnicos determinados, com a percentagem restante composta de um
agregado de alunos não diferenciados. A diversidade que forja o
interesse estatal imperativo engloba uma gama muito maior de
qualificações e características, das quais, origem racial ou étnica é
apenas uma delas, ainda que importante. O sistema de admissão da
requerente, concentrado em apenas diversidade étnica, impede, ao
invés de fomentar a obtenção da genuína diversidade.
[...] A experiência do processo seletivo de outra universidade que leva
em conta a questão racial para alcançar diversidade educacional
apreciada pela Primeira Emenda demonstra que o estabelecimento de
um número fixo de vagas para minorias não é um meio necessário
para obtenção daquele fim. Um exemplo esclarecedor é encontrado
no programa de admissão da Faculdade de Harvard:
[...] Para a admissão na Faculdade de Harvard, o comitê não
estabelece cotas para o número de negros, ou para músicos, jogadores
de futebol, físicos ou Californianos a serem admitidos em um certo
ano...
Nesse programa de admissão, o fator racial ou étnico pode ser
considerado um plus (valor adicional) entre as qualidades do
candidato, entretanto, ele não isola os outros candidatos para as vagas
disponíveis.
As qualidades de um determinado candidato negro
podem ser consideradas pela sua potencial contribuição à diversidade
sem que o fator racial seja decisivo... (Regents of the University of
California v. Bakke 438 U.S. 264 – 1978. Decisão do Ministro Powell,
parte V. Tradução nossa).11
11
Texto extraído no original inglês do Legal Information Institute da Universidade de Cornell no site:
http://www.law.cornell.edu/ acesso em: 26/06/2004, 11:20.
37
Parafraseando as palavras do Ministro Powell acima, o argumento que as
cotas raciais promovem a diversidade é seriamente falho. O sistema de cotas,
portanto, “impede, ao invés de fomentar a obtenção da genuína diversidade”,
justamente porque não garante uma diversidade abrangente, mas apenas a
diversidade baseada na questão racial, produzindo uma “subinclusão” ao
agraciar apenas um segmento da sociedade.
Desde a decisão acima, o sistema de cotas raciais nos EUA foi
abandonado dos processos seletivos das universidades americanas. O sistema
adotado desde então foi um sistema semelhante ao da Faculdade de Harvard,
mencionado pelo próprio Ministro Powell, onde o fator racial ou étnico é apenas
um entre outros fatores a serem considerados, mas nunca é único ou
preponderante.
Surpreendentemente, muitos dos defensores da Ação Afirmativa no Brasil
escolheram o árduo caminho das cotas raciais para a implantação do programa
(conforme será abordado abaixo), preferindo ignorar a experiência norte
americana.
Conforme alude o Ministro Barbosa Gomes (2001, p. 107), apesar do fato
de que a Suprema Corte deu ganho de causa ao autor da ação (Alan Bakke) e
determinou seu ingresso na universidade, a decisão de se considerar o discrímen
racial constitucional, desde que haja um interesse governamental imperativo foi
a questão mais importante na decisão judicial. De fato, a decisão do caso Bakke
forneceu uma base jurídica para programas de Ação Afirmativa, mesmo com
base no discrímen racial, observados os limites impostos nos votos dos
Ministros, dentre os quais se destaca a vedação de cotas rígidas.
38
3.5.
Declínio e alternativas
Após a decisão do caso Bakke, as universidades públicas norte americanas
tiveram de adaptar rapidamente seus processos seletivos de maneira a abandonar
o sistema de cotas percentuais e procurar a diversidade de uma maneira ampla, e
não apenas focalizada no fator racial ou étnico.
Ao mesmo tempo, cresceu a rejeição popular pelo termo “cota” e hoje os
defensores da Ação Afirmativa nos EUA cuidadosamente rejeitam tanto o termo
quanto o conceito, conforme observou o professor da Universidade de Harvard,
o brasileiro Roberto Mangabeira Unger (2003, p. 3):
Nos Estados Unidos, apenas os adversários das políticas de "ação
afirmativa" as descrevem como quotas. E o Judiciário vem impondo
restrições para assegurar que não funcionem como tal.
Alternativa mais eficaz e mais justa nos obrigaria a trocar os chavões
da pacificação pelos embates da transformação. O instrumento
principal é a identificação ativa dos alunos mais talentosos e aplicados
em todos os níveis do ensino público, com preferência dada não aos
negros, mas aos pobres.
Atualmente, o termo “cota” aduz imediatamente a sentimentos fortemente
negativos, tendo sido utilizado freqüentemente por opositores de políticas
afirmativas, como por exemplo, o atual Presidente George W. Bush que, de
maneira estratégica, menciona várias vezes a palavra para explorar sua forte
rejeição popular.12
A Ação Afirmativa veio a receber forte oposição durante Governo
Reagan, principalmente em seu segundo mandato, sofrendo diversos reveses
tanto no judiciário como no executivo de vários Estados Federativos, o que
12
Cf. Artigo Bush vai à Justiça contra política de admissão em universidade O ESTADO DE SÃO PAULO
<www.estadão.com.br/educação/vestibular/notícias/2003/17/112.hmt>. Acesso em: 31/05/2003 15:17 Hs.
39
marcou o início do período que o Ministro Joaquim B. Barbosa Gomes (2001, p.
234) chamou de “paulatina desaprovação” da Ação Afirmativa nos EUA.
O influente jornal The New York Times sumarizou os importantes reveses
da Ação afirmativa nos últimos anos da seguinte forma13:
18 de março de 1996 – Hopwood versus Universidade do Texas,
Faculdade de Direito. A Corte de Apelação do Quinto Circuito
anulou o sistema de preferência racial do vestibular da Universidade
do Texas, declarando ilegal qualquer preferência baseada no fator
racial. A decisão dessa corte foi contrária a decisão anterior da
Suprema Corte no caso Bakke que definia a diversidade como um
interesse imperativo do Estado.
5 de novembro de 1998 – Plebiscito 209 na Califórnia. Californianos
votam de maneira a proibir qualquer preferência baseada em raça,
gênero ou origem nacional nos processos de admissão para escolas e
postos de trabalho.
3 de dezembro de 1998 – Iniciativa 200 em Washington. Habitantes
do Estado de Washington votam de maneira a proibir qualquer
preferência baseada em raça ou gênero nos processos de admissão
para escolas ou para cargos públicos.
22 de fevereiro de 2000 – Iniciativa Flórida Única – A assembléia da
Flórida promulgou a parte educacional do projeto Flórida Única, do
governador Jeb Bush, que extinguiu qualquer consideração ou
preferência sobre raça nos processos seletivos para Universidades ou
contratos com o Estado.
23 de Junho de 2003 – Decisões sobre a Universidade de Michigan.
A Suprema Corte manteve o programa de Ação Afirmativa na
Faculdade de Direito da Universidade de Michigan, mas anulou o
sistema numérico de preferências raciais utilizado em cursos de
graduação. (tradução nossa).
Importante salientar que a paulatina desaprovação da Ação Afirmativa nos
EUA não se deu apenas por uma pretensa configuração conservadora da
Suprema Corte, mas em muitos casos por iniciativa popular e referendos,
13
AFTER 25 years a Road Map for Diversity on Campus. The New York Times. New York. 24 jun 2003.
Disponível em: <www.nytimes.com/2003/06/24/politics/24ASSE.html>. Acesso em 24 jun. 2003.
40
conforme os casos da Califórnia (o Estado mais populoso da união), Flórida,
Washington e Michigan. No Texas, os processos que utilizavam o fator racial e
de gênero como forma de seleção para universidades e cargos públicos foram
abandonados por iniciativa do Executivo e apoio do Legislativo, após várias
derrotas da Ação Afirmativa no Judiciário. Mais recentemente, em novembro de
2006, o Estado de Michigan também promoveu um referendo popular e o
resultado foi a proibição de qualquer sistema de preferências raciais para vagas
em universidades.
3.5.1. Os casos da Universidade de Michigan
Em 23 de junho de 2003 a Suprema Corte julgou dois processos em
separado, mas com certa conexão, visto que ambos tinham o mesmo pólo
passivo (Bollinger, representando a Universidade de Michigan) e versavam
sobre o mesmo assunto: a questão do fator racial nos processos seletivos de
admissão à universidade – casos Grunter v. Bollinger 02-241 (2003) e Gratz v.
Bollinger 02-516 (2003). O primeiro caso versava sobre uma candidata à escola
de Direito (nível de pós-graduação) da universidade e o segundo caso a respeito
do processo seletivo para todos os cursos de graduação.
O primeiro processo seguiu em linhas gerais a decisão anterior de Powell
no caso Bakke, já discutido, e foi recebido pelos proponentes da Ação
Afirmativa com certo alívio, uma vez que o movimento já estava em linha
descendente.
O Editorial do The New York Times14 do dia seguinte ao
julgamento expressou a opinião que a Ação Afirmativa havia “se desviado da
14
EDITORIALS: A Win for Affirmative Action.. The New York Times. New York. 24 jun 2003. Disponível em:
<www.nytimes.com/2003/06/24/opinion/24TUE1.html>. Acesso em 24 jun. 2003.
41
bala” com esta nova decisão da Suprema Corte que fora extremamente apertada
(cinco votos a quatro, como no caso Bakke).
A decisão da Corte nesse caso serviu para aclarar a decisão anterior no
caso Bakke, onde os votos conflitantes dos Ministros haviam deixado certa
dúvida, conforme já discutido acima.
Como pode ser auferido pela leitura do voto da relatora, a Ministra
O´Connor, a questão predominante foi a de manter uma diversidade no ambiente
escolar, não se curvando a teoria da reparação ou compensação, expressada por
votos de alguns Ministros no caso anterior (Bakke). É importante ressaltar aqui
que a Suprema Corte concluiu que o interesse imperativo do Estado ao se
utilizar do fator racial era fomentar a diversidade étnico-cultural, adotando a
teoria do multiculturalismo (ou diversidade) e não a reparação de fatos
históricos, como a escravidão ou o genocídio indígena que definem a teoria da
Justiça compensatória.
De fato, a grande contribuição dessa decisão da Suprema Corte foi aclarar
o que seria o “interesse governamental imperativo”, que não ficou
completamente transparente no caso Bakke, devido à diferença de fundamentos
dos votos dos diversos Ministros. O voto da Ministra relatora O´Connor é
profícuo em definir a posição do Ministro Powell no caso Bakke como
paradigma para a questão do discrímen racial, e faz uma interpretação detalhada
da decisão vinte e cinco anos anterior. Após chamar a decisão do Ministro
Powell de “pedra de toque para análises constitucionais a respeito de processos
seletivos que levam em conta o fator racial”, concluiu:
[...] pelas razões expostas abaixo, hoje endossamos o entendimento do
Ministro Powell que a diversidade do corpo discente é um interesse
42
governamental imperativo que pode justificar o uso do fator racial em
processos seletivos de universidades.
[...] Como parte de seu objetivo de “constituir uma turma que tanto é
excepcionalmente qualificada academicamente quanto amplamente
diversa”, a Escola de Direito [da Universidade de Michigan] procura
matricular uma “massa crítica” de alunos pertencentes a minorias.
[...] Como o Ministro Powell assegurou no caso Bakke, considerações
verdadeiramente individualizadas [sobre o critério de seleção], exigem
que o fator racial seja utilizado de modo flexível e não mecanizado.
De acordo com este mandado, universidades não podem estabelecer
cotas para membros de determinados grupos raciais ou colocar estes
membros em diferentes processos de seleção.
[...] O programa atual de seleção da Escola de Direito considera o
fator racial apenas como um fator entre muitos outros fatores, em um
esforço a forjar um corpo discente que é diversificado não apenas
etnicamente.
[...] Esperamos que em vinte e cinco anos o uso preferencial do fator
racial não será mais necessário para garantir o interesse [do Estado]
aprovado hoje.
[...] Em conclusão, a cláusula de proteção da igualdade (Equal
Protection Clause) não veda a utilização individualizada do fator
racial em processos seletivos de maneira a alcançar o interesse
imperativo de obter benefícios educacionais que fluem de um corpo
discente diversificado...
Extraído do voto da Ministra relatora O´Connor na decisão Grunter
vs. Bollinger 02-241 (2003), (tradução nossa).15
Vale ressaltar que o sistema de cotas raciais continuou vedado e que a
única excludente para justificar o discrímen racial, o chamado interesse
imperativo, é a obtenção da diversidade, esta entendida em termos universais, e
não apenas etnicamente.
O outro caso mencionado, ainda que semelhante, teve uma decisão
inversa por seis votos a três. É que o sistema de admissão da graduação da
Universidade de Michigan diferia do sistema da pós-graduação, este mais
individualizado. O vestibular da graduação consistia em um sistema de pontos
que atribuía automaticamente 20 pontos (de um total de 100 pontos mínimos
15
Texto extraído no original inglês do Legal Information Institute da Universidade de Cornell no site:
<http://www.law.cornell.edu/>. Acesso em: 26/06/2004, 12:20 Hs.
43
para aprovação) para membros de grupos étnicos “preferenciais” (negros, latinos
e indígenas).
Mesmo não sendo o fator racial preponderante (representava
apenas 20% dos pontos necessários à aprovação), a Suprema Corte entendeu que
esse processo era por demais “mecanizado” e assemelhava-se às impopulares e
banidas “cotas raciais”. Portanto, a decisão foi de extinguir qualquer sistema
numérico e não individualizado que levava o fator étnico em consideração. Até
os resquícios de cotas raciais foram fulminados por esta decisão, vedando-se
quaisquer sistemas numéricos para programas de seleção.
Apesar dessa decisão da Suprema Corte ter salvaguardado importantes
reclamos da Ação Afirmativa, em respeito ao Estado de Michigan teve eficácia
bastante limitada no tempo.
Em novembro de 2006 um referendo popular
aprovou a iniciativa de proibir quaisquer sistemas de preferência baseados em
raça para concursos de acesso a universidades no Estado, repetindo a
experiência de outros Estados norte-americanos, que foi preconizado pela
iniciativa californiana, conforme visto acima.
O influente periódico The Wall Street Journal assim noticiou o recente
resultado do referendo:
Os eleitores de Michigan aprovaram pela margem de 58% a 42% uma
medida que eliminará o discrímen racial como fator determinante em
admissões a universidades. Assegurar diversidade racial em
instituições de educação pública é um nobre objetivo. Entretanto, a
maneira como se alcança esse objetivo é igualmente importante. Darse preferência a qualquer grupo racial na tentativa de se assegurar a
diversidade é uma atitude discriminatória. Seria como tentar acabar
com a discriminação utilizando-se de mais discriminação. E isto não
faz o menor sentido. Um método incomparavelmente melhor para se
garantir a diversidade seria a substituição do fator racial pelas
condições sócio-econômicas dos candidatos e suas famílias. (tradução
nossa).16
16
Disponível em:
<http://breakingnews.redstate.com/blogs/schraged/2006/nov/09/michigan_voters_approve_measure_to_end_raci
al_discrimination_in_college_admissions>. Acesso em: 22/11/2006; 14:50 Hs.
44
3.6.
Questões relevantes da experiência norte-americana
A experiência norte-americana em relação à Ação Afirmativa foi refinada
por aproximadamente quarenta anos de aplicação de políticas públicas e
privadas, decisões judiciais, referendos populares e maturação da opinião
pública. Embora a maioria de seus proponentes defenda a continuação de tais
políticas, sob o argumento de que a abolição delas levaria à volta à situação
anterior, uma parcela importante da população já se manifestou contrária à
continuação da discriminação positiva através do sistema de consultas
populares, quer em plebiscitos ou referendos.
Também é importante salientar que o discrímen racial, quando utilizado, é
julgado pela Suprema Corte mediante o escrutínio estrito, onde há uma
presunção juris tantum de inconstitucionalidade e é apenas aprovado pelo
judiciário norte-americano quando há um justificável interesse imperativo do
Estado. No caso específico dos programas de admissão a universidades, o
interesse imperativo do Estado está em garantir a “genuína diversidade” que vai
muito além do fator racial, e este pode ser apenas considerado como um valor
adicional entre outros tipos de critérios, mas nunca o único ou predominante.
Outra questão que merece atenção é o fato de que a Suprema Corte, em
sua última decisão sobre a Ação Afirmativa, não entendeu que o interesse
imperativo do Estado era de compensar ou indenizar grupos que historicamente
sofreram discriminação ou segregação.
O interesse que pode justificar o
discrímen racial é a diversidade, tomada em seu sentido universal. Embora as
Ações
Afirmativas,
incluindo
a
discriminação
racial
positiva,
sejam
consideradas constitucionais nos EUA, limites foram impostos para sua
aplicação prática. Um importante limite é a proibição das cotas raciais ou
45
sistemas numéricos de preferência para uma minoria específica, assumindo que
a diversidade étnico-cultural, em seu sentido amplo, é o bem a ser tutelado pelo
Estado.
As cotas raciais, que no início da experiência norte-americana eram
predominantes, foram abandonadas paulatinamente, não apenas pelo seu aspecto
de beligerância, mas também por não conseguirem, muitas vezes, o efeito que
seus proponentes esperavam delas. Foi esta a conclusão que ninguém menos
suspeito chegou quando redigiu seu voto contrário à Ação Afirmativa no julgado
da Suprema Corte norte-americana visto acima, o caso Grunter vs. Bollinger 02241 (2003).
Trata-se do Ministro Clarence Thomas, um dos antigos
beneficiários do programa de Ação Afirmativa da Faculdade de Direito da
Universidade de Yale.
Em seu voto de 31 páginas contrário ao uso do discrímen racial no
processo de seleção da Universidade de Michigan, descreve o terrível estigma
do beneficiário de cotas, começando seu texto da seguinte maneira: “Devo
contestar a noção de que o sistema discriminatório da Escola de Direito [da
Universidade de Michigan] beneficia aqueles que são admitidos como resultado
dessa discriminação”17.
Prossegue, dizendo que os beneficiários de cotas ou
políticas afirmativas são “test subjects” (elementos de teste) e rotula a Ação
Afirmativa como cruel farse of racial discrimination (a farsa cruel da
discriminação racial).
Grunter vs. Bollinger 02-241 (2003), voto do Ministro Clarence Thomas. Texto extraído no
original inglês do Legal Information Institute da Universidade de Cornell Disponível em:
<http://www.law.cornell.edu/>. Acesso em 26 jun. 2004, 15:30 Hs. (Tradução nossa).
17
46
Os resultados sobre o impacto real da Ação Afirmativa no EUA são
objeto de uma disputa intensa, conforme bem assinala o já citado Professor
Thomas Sowell (2004, p. 129-120) da Universidade Stanford:
Embora constantemente se repita que o número de negros nas
profissões liberais e em outras profissões de nível aumentou nos cinco
anos seguintes à aprovação da marcante Lei dos Direitos Civis de
1964, é quase completamente ignorado o fato de que a quantidade de
negros que alcançou essas posições foi ainda maior nos cinco anos
que antecederam a aprovação daquela lei. [...]
Enquanto se pode discutir o papel da legislação e das políticas de
“oportunidades iguais” dos anos 60, tão bem exemplificado na Lei dos
Direitos Civis, o efeito das políticas federais de ação afirmativa que
começaram nos anos 70 é claramente menos sugestivo. Durante a
década de 1970, a taxa de pobreza entre as famílias negras caiu de 30
para 29%. Mesmo que todo esse único ponto percentual fosse
atribuído à ação afirmativa, ainda não seria parte significativa da
história da ascensão econômica dos negros, por mais crucial que se
queira pintar politicamente a ação afirmativa.
O mesmo autor prossegue nessa linha de pensamento demonstrando
efeitos por vezes drásticos de cotas raciais e sistemas de preferência em diversos
outros países, como Índia, Paquistão, Malásia, Nigéria. Em sua análise sobre as
cotas no Sri Lanka, Thomas Sowell (2004, p. 78 - 94) considera essa política
como sendo uma das causas de Guerra Civil.
É difícil chegar a uma conclusão final, conforme assinala Thomas Sowell
acima, de que a Ação Afirmativa com seu sistema de preferências raciais obteve
os resultados a que se propôs nos EUA ou ainda, se os resultados obtidos na
melhora de qualidade de vida dos negros norte-americanos guarda nexo causal
com a aplicação das políticas de discriminação positiva. Mas, a julgar pelo
recente desenvolvimento da questão nos últimos anos, é possível afirmar que a
balança virou definitivamente em contrário à Ação Afirmativa em seu país de
origem e o sistema demonstra estar em acelerado abandono. As causas para
47
tanto podem ser variadas, quer por já ter cumprido seus objetivos, ou por causa
de uma crescente rejeição popular, ou ainda por uma série de decisões judiciais
que limitaram consideravelmente o espectro de aplicação prática de tais
políticas. Como bem inferiu a Ministra da Suprema Corte Americana, em seu
voto no caso da Universidade de Michigan citado acima18, seria desejável e até
mesmo provável que em vinte e cinco anos as Ações Afirmativas nos EUA não
fossem mais necessárias.
18
Cf. infra, p. 36.
48
4.
EXPERIÊNCIAS PRÁTICAS DA AÇÃO AFIRMATIVA EM
UNIVERSIDADES NO BRASIL
Com a redemocratização do Brasil em meados dos anos 80 que culminou
na promulgação da Constituição Federal de 1988, novas idéias e perspectivas
foram aplicadas ao tema das relações raciais no Brasil. Marcos Chor Maio e
Ricardo Ventura Santos (2005, p. 182), cientistas sociais, bem indicaram que
nessa época, sociólogos brasileiros começaram a criticar a concepção, até então
aceita por influência do ciclo de pesquisas da UNESCO, de que o preconceito
racial seria um resquício da herança escravocrata.
Também criticaram a
concepção marxista da subsunção da categoria raça à classe social.
Manifestações racistas do grupo dominante não seriam sobrevivências do
passado, mas estariam relacionadas com benefícios simbólicos adquiridos pelos
brancos no processo de competição e desqualificação dos negros. Não haveria,
portanto, uma lógica inerente ao desenvolvimento capitalista que gerasse
incompatibilidade entre racismo e industrialização.
A seguir a esse período, o movimento negro contemporâneo colocou em
pauta a discussão de políticas de Ação Afirmativa no Brasil, inegavelmente
inspirado no movimento norte-americano que tivera seu ápice na década de 70.
Entretanto, as políticas de Ação Afirmativa apenas ganharam força quando
foram aderidas pelo Governo Federal quando da eleição de Fernando Henrique
Cardoso para a Presidência da República, já em meados dos anos 90.
A posição da Delegação Brasileira na III Conferência Mundial das
Nações Unidas de Combate ao Racismo, Discriminação Social, Xenofobia e
Intolerância Correlata, que ocorreu em Durban na África do Sul em 2001,
marcou a virada do posicionamento oficial do governo brasileiro, conforme
49
observaram os antropólogos da UFRJ Yvonne Maggie e Peter Fry (2002, p. 94).
A Delegação Brasileira encaminhou proposta que quebrou com a até então
tradicional posição republicana do “a-racismo”, propondo ações afirmativas em
favor dos negros.
Na verdade, já na segunda metade da década de 90, o Governo Federal
promovia uma série de debates sobre Ação Afirmativa.
Entretanto, como
observaram os já citados pesquisadores Maio e Santos (2005, p. 183), o governo
demonstrava uma certa hesitação:
De certo modo, a ambivalência de Fernando Henrique Cardoso
exposta em seu discurso sobre as políticas de ação afirmativa
permeará grande parte da atuação do seu governo. Não obstante uma
série de propostas tenha sido introduzida no PNDH, elaborado em
1996, quanto à valorização da população negra, inclusive com a
adoção de "políticas compensatórias que promovam social e
economicamente a comunidade negra", até meados de 2001 parte
significativa das metas do PNDH não haviam sido cumpridas.
Contudo, os atos mais simbólicos do que práticos do governo FHC
abriram espaço para que organizações da sociedade civil buscassem
definir e implementar políticas de ação afirmativa mediante projetos
voltados para a educação, mercado de trabalho patrocinados por
fundações filantrópicas internacionais, empresas, igrejas, etc.
No ano de 2001 o então Governador do Rio de Janeiro, Anthony
Garotinho, dentro do “espírito de Durban”, antecipou-se ao Governo Federal e
sancionou a lei estadual 3.708 que instituiu a reserva de quarenta por cento das
vagas em universidades públicas para negros e pardos no Estado. Essa lei foi
posteriormente regulamentada pelo Decreto Estadual 30.766/2002 produzindo
efeitos já no exame vestibular do ano 2002 com vistas ao ano letivo de 2003. O
sistema de cotas raciais estava definitivamente estabelecido em um dos Estados
mais importantes da União, o que foi seguido pelo Estado da Bahia, Distrito
Federal, Mato Grosso do Sul e Paraná, onde políticas similares foram adotadas
como parâmetro básico para a admissão de novos alunos nas universidades
públicas.
50
A política de implantação de cotas, por sua vez, tende a ser estabelecida
em nível federal, já que há estudos para tanto, patrocinados pela Secretaria
Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial do governo do
Presidente Luís Inácio Lula da Silva. Baseados nesses estudos, o Executivo
enviou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei 3.627/04 que institui cotas
raciais e sociais para o ingresso em universidades públicas no país.
Como o Projeto parece ser exíguo, é oportuno reproduzi-lo aqui:
PROJETO DE LEI 3.627/04
Institui Sistema Especial de Reserva de Vagas para estudantes
egressos de escolas públicas, em especial negros e indígenas, nas
instituições públicas federais de educação superior e dá outras
providências.
O CONGRESSO NACIONAL decreta:
Art. 1º As instituições públicas federais de educação superior
reservarão, em cada concurso de seleção para ingresso nos cursos de
graduação, no mínimo, cinqüenta por cento de suas vagas para
estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em
escolas públicas.
Art. 2º Em cada instituição de educação superior, as vagas de que trata
o art. 1o serão preenchidas por uma proporção mínima de
autodeclarados negros e indígenas igual à proporção de pretos, pardos
e indígenas na população da unidade da Federação onde está instalada
a instituição, segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística - IBGE.
Parágrafo único. No caso de não-preenchimento das vagas segundo
os critérios do caput, as remanescentes deverão ser completadas por
estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em
escolas públicas.
Art. 3º O Ministério da Educação e a Secretaria Especial de Políticas
de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República serão
responsáveis pelo acompanhamento e avaliação do sistema de que
trata esta Lei, ouvida a Fundação Nacional do Índio - FUNAI.
Art. 4º As instituições de que trata o art. 1º terão o prazo de duzentos e
51
quarenta dias para se adaptarem ao disposto nesta Lei.
Art. 5º O Poder Executivo promoverá, no prazo de dez anos, a contar
da publicação desta Lei, a revisão do sistema especial para o acesso de
estudantes negros, pardos e indígenas, bem como daqueles que
tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas,
nas instituições de educação superior.
Art. 6º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília,
E.M. Nº 025
O projeto tem o mérito de evitar a controversa via da Medida Provisória,
como era o desejo dos grupos pró Ação Afirmativa mais aguerridos, gerando
inclusive críticas de parte da academia pela escolha da via ordinária (Carvalho,
2004, p. 69).
Ele reserva cinqüenta por cento das vagas disponíveis em
universidades federais a egressos de escolas secundárias públicas, mas isto é
apenas um dos critérios. O segundo critério é que esses egressos de escolas
públicas sejam pretos, pardos ou indígenas, pelo critério de autodeclaração, em
igual proporção à porcentagem deles definido pelo censo do IBGE. Ora, como o
número de pretos, pardos e indígenas no Brasil, segundo uma pesquisa do IBGE,
é de 46,6% (variando de Estado para Estado)19 o número de cotas raciais vai ser
mais ou menos equivalente ao número de cotas sociais. O Projeto também
corrige algumas distorções dos sistemas atuais porque o primeiro critério é ter
freqüentado o ensino médio integralmente em escola pública, o que
indiretamente seleciona os mais economicamente carentes.
Torna-se claro assim, entender como a crítica internacional em Durban às
desigualdades aumentou a pressão aos órgãos governamentais e esse fato, aliado
à eleição do Presidente Lula, acabou por consolidar e fortalecer os grupos
políticos pró Ação Afirmativa, tornando possível a implantação prática dessas
políticas, conforme assinalou o professor da UnB, José Jorge de Carvalho (2004,
p. 68):
19
Síntese de Indicadores Sociais. IBGE: Rio de Janeiro, 2003, p. 227.
52
O Brasil foi obrigado a apresentar uma proposta de ações afirmativas
na Conferência de Durban, principalmente como resposta não somente
às demandas do Movimento Negro, mas também às pressões da
comunidade internacional. [...]
A relação do governo com os grupos minoritários assumiu um perfil
singular e sem precedentes na nossa história republicana. No caso
específico do Movimento Negro, que fez crescer sua agenda de
reivindicações e sua capacidade de mobilização ao longo das décadas
de 1980/1990, desde 2003 muitas das suas principais lideranças fazem
parte agora do governo. Essa chegada ao poder foi algo planejado
pelas lideranças negras, que se concentrara em participar das lutas
sindicais e em afiliar-se aos partidos de esquerda, sobretudo ao Partido
dos Trabalhadores (PT). Então, pela primeira vez na história do País,
em um certo grau, uma parcela dos negros está no poder: as suas
lideranças políticas.
Como conseqüência, o início desta década foi marcado por diversas
iniciativas estabelecendo cotas raciais e sociais em diversos Estados da União,
fato que acabou gerando forte controvérsia, tanto nos meios acadêmicos como
na mídia. Paulo Lucena de Menezes (2006, p.189) observa que em meados de
2006 havia pelo menos 16 universidades públicas brasileiras com programas de
cotas raciais ou sociais e que a tendência é de um crescimento extremamente
rápido dessa forma de aplicação de políticas afirmativas, independentemente da
aprovação do Projeto de Lei retromencionado.
Boa parte da controvérsia gerada pode ser debitada à escolha da aplicação
prática da Ação Afirmativa, especificamente à implantação de cotas raciais,
seguindo a preferência dos movimentos mais militantes que agora conquistavam
espaços importantes no governo Lula. A opção pelo sistema de cotas, tanto
utilizando critérios sociais (proveniência de escolas públicas), bem como raciais
(para negros e indígenas), parece ter ignorado as experiências negativas que este
tipo implantação de políticas afirmativas experimentou em outros países, mais
marcadamente nos EUA. Conforme visto no capítulo anterior, após alguns anos
de forte celeuma, abandonou-se o sistema de cotas nos EUA e adotaram-se
53
outras estratégias de aplicação da Ação Afirmativa, como sistema de bônus e o
de
preferências.
Entretanto,
grande
parte
dos
ativistas
pró
Ação
Afirmativa no Brasil fez claramente a opção pelo sistema de cotas, como
salienta o professor da UnB, José Jorge de Carvalho (2003, p. 198): “O coletivo
de professores dos NEABs [Núcleo dos Estudos Afro-Brasileiros] é unânime em
considerar que as cotas devem formar uma parte central das políticas de ação
afirmativa, tão discutidas atualmente” (grifo nosso).
A euforia da era pós Durban, aliada à subida ao poder de parte da liderança
negra, consagrou o sistema de cotas, mimetizando a experiência americana dos
anos 70, mas sem exercer o devido cuidado nesse transplante de idéias. As cotas
raciais hoje são consideradas o instrumento fundamental do movimento negro e
outros grupos políticos identificados com a luta por preferências raciais. 20
4.1.
Aspectos raciais no Brasil e EUA
Ao
optar
pela
estratégia
de
aplicação
das
Ações
Afirmativas
predominantemente através das cotas, conforme analisado acima, escolheu-se
copiar, pelo menos em parte, a experiência norte-americana, mas sem levar em
conta dois aspectos importantes: (a) a evolução das estratégias de aplicação da
Ação Afirmativa nos EUA, e (b) a devida contextualização necessária no Brasil,
em razão da drástica diferença das relações raciais entre os dois países.
20
Para se fazer justiça, é necessário aclarar que a defesa das cotas não é unânime no Movimento Negro,
conforme observou o professor Ahyas Siss (2003, p. 132). Alguns se opõem à medida por considerar que ela
seria apenas “tapar o sol com a peneira”, uma vez que não reduziria as igualdades. Entretanto, a grande maioria
dos ativistas vê nas cotas um objetivo principal de atuação, conforme anotado acima.
54
Não se pretende aqui fazer uma crítica aos movimentos que apoiaram a
adoção de cotas raciais no Brasil como maneira de combate à desigualdade,
apenas por terem mimetizado um conceito estrangeiro. Isto seria um excesso de
nacionalismo e uma crítica com pouco fundamento. Inspirar-se em experiências
estrangeiras não é necessariamente errôneo e, muitas vezes, é até necessário
fazê-lo.
O problema fundamental é que se foi buscar justamente uma
experiência já testada, utilizada e descartada no seu país de origem. Assim,
propõe-se um transplante jurídico de um órgão já corrompido, negando-se a
aprender com a experiência histórica integral de outros povos.
É bem verdade que nem todos os proponentes da Ação Afirmativa no país
defendem as cotas raciais como a melhor maneira de sua implantação. Alguns
até mesmo enxergam a confusão dos dois conceitos (cotas e Ação Afirmativa)
como uma forma que a mídia encontrou de minar o movimento, conforme
escreveu o professor Ahyas Siss (2003, p. 146):
Assim, como no O Estado de São Paulo, e na Veja, as políticas de
ação afirmativa aparecem reduzidas às políticas de cotas numéricas
inflexíveis. Neste e noutros veículos aqui analisados, as políticas de
ação afirmativa são concebidas enquanto políticas de cotas percebidas
como nefastas, estigmatizadoras de seu público alvo, além de lesivas
ao princípio do mérito individual. [...]
Novamente foi perdida, pela imprensa, uma oportunidade excelente de
dar visibilidade à discussão sobre a necessidade e validade ou não de
elaborar-se e implementar-se aqui, políticas de ação afirmativa
racialmente diferenciada e adequada ao nosso contexto.
O problema que o professor Ahyas Siss não abordou é que as cotas raciais,
mesmo sendo inflexíveis, como ele mesmo reconheceu, transformaram-se
efetivamente no principal alvo da luta pela Ação Afirmativa (conforme
demonstrado acima) e acabaram sendo a principal via de implantação das
políticas no país. Portanto, o que a imprensa noticia não é apenas uma visão
55
ideológica, mas efetivamente a realidade imposta pelos grupos militantes que, ao
assumir importantes posições no governo, lograram implantar a sua concepção
de Ação Afirmativa, às vezes pela via legal. Hoje, a grande maioria das normas
jurídicas que tratam das Ações Afirmativas para ingresso em universidades,
tanto estaduais como federais, fazem a opção pelas cotas numéricas, com a
honrosa exceção do Estado de São Paulo, que optou pelo sistema de bônus.
4.1.1.
Aspectos da formação dos povos brasileiro e norte-americano.
A primeira grande e visível diferença das relações raciais no Brasil e
EUA, constitui-se, sem dúvida, na questão da miscigenação. A mescla de povos
na origem do brasileiro é um aspecto marcante, conforme observou o
antropólogo Darcy Ribeiro (2004, p. 133), um dos fundadores da Universidade
de Brasília (UnB):
O surgimento de uma etnia brasileira, inclusiva, que possa envolver e
acolher a gente variada que aqui se juntou, passa tanto pela anulação
das identificações étnicas de índios, africanos e europeus, como pela
indiferenciação entre as várias formas de mestiçagem, como os
mulatos (negros e brancos), caboclos (brancos e índios), ou curibocas
(negros com índios).
Só por esse caminho, todos eles chegam a ser uma gente só, que se
reconhece como igual em alguma coisa tão substancial que anula suas
diferenças e os opõe a todas as outras gentes.
E sobre a diferença entre a valorização das uniões inter-raciais entre o Brasil e
EUA comenta:
Com efeito, as uniões inter-raciais, aqui, nunca foram tidas como
crime ou pecado. Provavelmente porque o povoamento do Brasil não
se deu por famílias européias já formadas, cujas mulheres brancas
combatessem todo o intercurso com mulheres de cor. Nós surgimos,
efetivamente, do cruzamento de uns poucos brancos com multidões de
mulheres índias e negras. (Ribeiro, 2004, p. 225).
56
Essa tese antropológica de Darcy Ribeiro, ainda que vista por alguns
como neofreyreana (Medeiros, 2004, p. 59), foi confirmada objetivamente por
estudos científicos, levados a cabo pelos geneticistas Sérgio Pena e Maria Catira
Bortolini (2004, p. 6):
Em resumo, estes estudos filogeográficos com brasileiros brancos
revelaram que a imensa maioria das patrilinhagens é européia,
enquanto a maioria das matrilinhagens (mais de 60%) é ameríndia ou
africana. Evidencia-se, assim, um padrão de reprodução assimétrico
(homem europeu com mulheres indígenas e africanas), o qual está de
acordo com o que sabemos sobre o povoamento "pós-descobrimento"
do Brasil. Em 1552, em carta ao rei D. João, padre Manuel da
Nóbrega relata a falta de mulheres brancas no país e pede que elas
sejam enviadas, para que os homens "casem e vivam [...] apartados
dos pecados em que agora vivem". A coroa portuguesa tolerava
relacionamentos entre portugueses e índias desde o início da
colonização e até passou a estimular ativamente casamentos desse tipo
por meio de um Alvará de Lei promulgado em 4 de abril de 1755 pelo
Marquês do Pombal. Acredita-se que a idéia de Pombal era povoar o
Brasil, garantindo sua ocupação territorial. Mas essa política, bastante
liberal para a época, não foi estendida aos africanos. Contudo, sabe-se
que, na prática, os relacionamentos entre portugueses e africanas
persistiram em altos níveis.
Essa situação tem enorme contraste com a colonização norte-americana
onde a relação sexual inter-racial era considerada crime nas principais das 13
colônias originais (Higginbotham, 1978, p. 40). O mesmo autor também aponta
para o fato de que a Suprema Corte norte-americana apenas considerou
inconstitucionais leis que proibiam o casamento inter-racial em 1967, quando
pelo menos 16 Estados da União ainda vedavam esse tipo de casamento. Se for
verdade que houve algum tipo de miscigenação entre brancos e negros nos
EUA, esta não foi significativa e a separação física das raças sempre foi um
elemento preponderante na formação dos americanos do norte.
57
A miscigenação de raças na formação do brasileiro, que mais tarde se
desenvolveu e formou efetivamente um povo, foi apontada pelo antropólogo
Gilberto Freyre (1969, passim) como uma importante contribuição cultural do
Brasil à humanidade e ficou reconhecida pelo conceito de “democracia racial”.
Entretanto, conforme observou o sociólogo Antônio Guimarães (2002, p. 109), o
conceito de “democracia racial” de Freyre foi fortemente criticado, tanto por
movimentos negros como por sociólogos de inspiração marxista que
consideravam que “democracia racial seria apenas um modo cínico e cruel de
manutenção das desigualdades sócio econômicas entre brancos e negros,
acobertando e silenciando a permanência do preconceito de cor e das
discriminações raciais”.
Embora a “demonização” de Freyre e da democracia racial tenha sido
rejeitada por parte importante da Academia (Guimarães, 2002, p. 57), ela
aparece ainda viva em muitos autores, especialmente àqueles ligados ao
movimento negro ou a outros movimentos anti-racistas. 21
Críticas menos severas e mais realistas enxergam na democracia racial seu
lado positivo e não apenas uma ideologia de dominação que pretende esconder o
preconceito racial, conforme salientou o professor Antônio Sérgio Alfredo
Guimarães (2002, p. 110) da Universidade de São Paulo:
[...] devemos ver na “democracia racial”, também um compromisso
político e social do moderno Estado republicano brasileiro, que vigeu,
alternando força e convencimento, do Estado Novo de Vargas até a
ditadura militar. Tal compromisso consistiu na incorporação da
população negra brasileira ao mercado de trabalho, na ampliação da
educação formal, enfim, na criação das condições infra-estruturais de
uma sociedade de classes que desfizesse os estigmas criados pela
escravidão. A imagem do negro enquanto povo e o banimento, no
21
São vários os autores que denunciam a “democracia racial” como um perigoso mito que alegadamente serviria
para acobertar as práticas racistas dissimuladas no Brasil. Ver, por exemplo, Carlos Alberto Medeiros (2004, p.
48 a 57); José Jorge de Carvalho (2004, p. 64 a 67); Ahyas Siss (2003, p. 138 a 144).
58
pensamento social brasileiro, do conceito “raça”, substituído pelos de
“cultura” e “classe social” são suas expressões.
Já nos EUA, a formação do povo foi marcada por uma divisão profunda
entre as duas raças majoritárias, os brancos e os negros. Na América do Norte, o
fosso aberto entre as raças era concreto e manifesto, contando com o auxílio do
aparato legal, conforme observou a Procuradora do Distrito Federal, Roberta
Fragoso Kaufmann (2006, p.7):
O ódio que se originou do fosso racial nos Estados Unidos implicou a
formação de duas comunidades distintas, a partir da segregação
institucionalizada, qual seja, incentivada e patrocinada por meio de
políticas de segregação públicas e promovidas por meio de leis, de
decisões administrativas e da jurisprudência. Por meio dela, os negros
foram proibidos de freqüentar as mesmas escolas que os brancos,
proibidos de ter propriedade, de casar com brancos, de votarem, de
testemunharem. Não podiam dirigir nas mesmas estradas, sentar nas
mesmas salas de espera, usar os mesmos banheiros ou piscinas, comer
nos mesmos restaurantes ou assistir a peças nos mesmos teatros
reservados aos brancos. Aos negros, era simplesmente vedado o
acesso a parques, praias e hospitais.
Observa-se, portanto, uma profunda diferença das relações raciais entre os
dois povos.
Do lado norte-americano, nota-se o desenvolvimento de duas
comunidades em paralelo, havendo uma notável divisão entre elas, divisão essa
garantida por um aparato jurídico institucional. Do lado brasileiro, embora a
discriminação existisse e se mantivesse dissimulada, as comunidades se
mesclaram.
A aplicação das Ações Afirmativas nos EUA nunca teve de lidar com a
questão da miscigenação, e a classificação racial naquele país nunca representou
um problema prático para as várias estratégias de aplicação das políticas
afirmativas, sejam elas cotas, sistemas de preferência ou bônus, justamente
porque havia uma clara distinção entre os dois grupos e a figura do mestiço era
desconhecida, ou, pelo menos, ignorada como realidade. Mas, o transplante
59
jurídico das cotas para o Brasil, já na sua primeira tentativa, deparou-se com a
questão da miscigenação. Conforme observaram os geneticistas Sérgio Pena e
Maria Catira Bortolini (2004, p. 9), em uma pesquisa científica bem elaborada,
87% dos brasileiros têm ao menos 10% de ancestralidade genômica africana e
na região Sul, por exemplo, mais de dois terços (72%) dos afrodescedentes
consideram-se brancos. Se o critério norte-americano de classificação racial
fosse adotado no Brasil, poucos seriam considerados brancos.
Portanto, a
grande maioria dos brasileiros pode se declarar Afrodescendente com certa dose
de razão. E assim concluem os geneticistas:
É neste contexto que se insere este trabalho, pois procura mostrar que
os afrodescendentes são em número bem maior do que aqueles que
aparentam ser por suas características físicas, chegando ao número
impressionante de 146 milhões de pessoas. Procurou-se também
demonstrar que muitos dos que se identificam como negros
apresentam uma proporção significativa de ancestralidade européia.
Dessa maneira, não é nada surpreendente que existam confusões e
problemas relacionados aos critérios adotados para definir quem deve
ser beneficiado pelas políticas de ação afirmativa no Brasil. (Pena;
Bortolini, 2004, p. 10).
4.1.2.
Classificações Raciais
Além da miscigenação, outra grande diferença das relações raciais no
Brasil e nos EUA consiste no fato de como são feitas as classificações raciais.
Esse assunto já foi bastante explorado pelas Ciências Sociais, mas se faz
necessário um breve relato sobre o tema.
Uma boa parte das pesquisas sobre esse assunto faz referência a Oracy
Nogueira, que apresentou um estudo no XXXI Congresso Internacional de
Americanistas, ocorrido em São Paulo entre os dias 23 e 30 de agosto de 1954.
Após várias versões, o estudo foi publicado como livro em 1979, com o título
60
Tanto preto quanto branco – estudos de relações raciais, hoje de difícil acesso
(Praxedes, 2003, p. 1). Nesse estudo, Oracy classifica o preconceito racial em
dois tipos, o preconceito racial de origem e o preconceito racial de marca. O
preconceito racial nos EUA seria do primeiro tipo, devido a fatores históricos de
como as comunidades negra e branca se desenvolveram em separado. Já o
segundo tipo seria o praticado no Brasil. Esse conceito dual de discriminação
acabou se tornando bastante difundido, principalmente quando se faz o
paralelismo das relações sociais em ambos os países.
O preconceito de origem é mais aberto e segregacionista. Provém da era
Jim Crow conforme já explanado acima. É o preconceito praticado com bases
legais onde os dois grupos raciais (brancos e negros) não se misturam, vivendo
separadamente. Já no preconceito de marca, o negro e branco convivem juntos,
muitas vezes se misturando, mas mesmo assim o negro é discriminado como um
cidadão de segunda categoria. A diferença dos dois tipos de discriminação seria
que uma é mais aberta e a outra mais dissimulada, mas os efeitos são perversos
em ambas as formas.
A discriminação chamada “de origem” gerou o método de classificação
racial que os EUA adotaram após o fim da escravidão. Como a sociedade
americana era segregada, métodos mais objetivos de definição raciais tornaramse uma necessidade jurídica, desde que a mera aparência do indivíduo não
poderia servir como uma base sólida e mais objetiva de distinção. Assim, o
método escolhido foi o da ancestralidade, estabelecendo um sistema birracial,
sem lugar para classificações intermediárias.
Conforme observou Roberta
Fragoso Kaufmann (2006, p.19):
Dessa forma, nos Estados Unidos, seriam consideradas negras as
pessoas que possuíssem quaisquer ascendentes africanos, mesmo que
estes fossem antepassados longínquos. Em alguns casos, o Judiciário
61
Estadual limitou a fixação da ascendência em trinta e dois graus; em
outros, em dezesseis e até em oito graus, mas, como regra geral, não
havia limitação. Tal critério tornou-se conhecido como a regra da
uma gota de sangue, ou one drop rule. [...]
Enquanto o critério da aparência é feito subjetivamente, o critério da
ancestralidade procura aspectos mais objetivos para classificação. [...].
Implementou-se nos Estados Unidos uma sociedade birracial, ou seja,
uma comunidade na qual somente havia a possibilidade de a pessoa
ser enquadrada como branca ou como negra. Não havia a categoria
dos morenos, dos mulatos, ou dos pardos, como no Brasil. (grifos no
original).
No Brasil, ao contrário dos EUA, não houve um sistema jurídico
institucional que determinasse a separação racial.
Portanto, um sistema
elaborado de classificação racial nunca foi realmente necessário. Além disso,
como houve um grau importante de miscigenação, o sistema adotado foi aberto,
dando espaço para diferentes níveis de tonalidades de pele. No Brasil, nunca
houve um sistema birracial, embora ninguém negue que o preconceito racial
existiu e continua existindo, de diferentes formas.
Na história mais recente do Brasil, o IBGE
22
adotou uma forma de
classificação racial (ou por cor) que envolve 5 tipos possíveis: brancos, pretos,
pardos, amarelos e indígenas. Essa forma de classificação por cor tende a evitar
a infundada crença em raças biológicas ou genéticas, crença essa conhecida pelo
jargão técnico de racialismo.
Como critério adicional, o IBGE adota a
autodeclaração, deixando exclusivamente para o indivíduo a escolha de julgar a
qual grupo social (raça) pertence.
De fato, a idéia de raça humana com bases biológicas foi uma elaboração
da Antropologia antiga que hoje é condenada pelos antropólogos modernos.
Entretanto, esse conceito ultrapassado, difundido pelos primeiros cientistas
22
Cf. IBGE. Síntese de Indicadores Sociais. Rio de Janeiro, 2003.
62
sociais europeus, ainda mantém seus resquícios na sociedade atual, conforme
bem observou o conhecido antropólogo Lévi-Strauss (1993, p. 328-329):
Quando procuramos caracterizar as raças biológicas através de
propriedades psicológicas particulares, afastamo-nos da verdade
científica, quer definindo-as positivamente, quer negativamente. [...]
Mas o pecado original da antropologia consiste na confusão entre a
noção puramente biológica de raça (supondo, aliás, que, mesmo neste
terreno limitado, esta noção pudesse pretender à objetividade, o que a
Genética moderna contesta) e as produções sociológicas e
psicológicas das culturas humanas.
Na verdade, existe hoje um consenso de que raças humanas no sentido
biológico simplesmente não existem, subsistindo apenas uma consideração
social de etnia, que não está ligada a traços genéticos ou biológicos. Este é
também o entendimento do Egrégio Supremo Tribunal Federal que já se
manifestou em uma importante decisão que reproduzimos parcialmente a seguir:
EMENTA: HABEAS-CORPUS. PUBLICAÇÃO DE LIVROS:
ANTI-SEMITISMO. RACISMO. CRIME IMPRESCRITÍVEL.
CONCEITUAÇÃO.
ABRANGÊNCIA
CONSTITUCIONAL.
LIBERDADE DE EXPRESSÃO. LIMITES. ORDEM DENEGADA.
[...]
3. Raça humana. Subdivisão. Inexistência. Com a definição e o
mapeamento do genoma humano, cientificamente não existem
distinções entre os homens, seja pela segmentação da pele, formato
dos olhos, altura, pêlos ou por quaisquer outras características físicas,
visto que todos se qualificam como espécie humana. Não há
diferenças biológicas entre os seres humanos. Na essência são todos
iguais. 4. Raça e racismo. A divisão dos seres humanos em raças
resulta de um processo de conteúdo meramente político-social. Desse
pressuposto origina-se o racismo que, por sua vez, gera a
discriminação e o preconceito segregacionista.
[...]
HC 82424 / RS - RIO GRANDE DO SUL. HABEAS CORPUS.
Relator: Min. MOREIRA ALVES.
Relator p/ Acórdão: Min. MAURÍCIO CORRÊA.
Julgamento: 17/09/2003 Órgão Julgador: Tribunal Pleno.
Publicação: DJ 19-03-2004 PP-00017 EMENT VOL-02144-03 PP00524
63
O conceito de raça humana, portanto, é fluído e depende do sentimento de
pertença que o indivíduo possa ter em relação a um grupo e não de
características biológicas ou mesmo do fenótipo.
Portanto, tentativas de
classificações raciais de indivíduos que desprezam a autodeclaração fogem tanto
a padrões científicos como ao direito fundamental desses indivíduos de
expressarem sua própria identidade cultural, levando a considerações
importantes sobre a dignidade da pessoa humana.
Esse aspecto será mais
explorado abaixo, quando da análise do sistema de cotas implantado pela UnB.
4.1.3.
Visão bipolar e multipolar da classificação racial
Ensina-nos o jornalista e pesquisador Carlos Alberto Medeiros (2004, p.
62), em um trabalho de cunho acadêmico, a diferença entre os dois principais
critérios de classificação racial:
Na área de pesquisa que aqui nos interessa, um dos aspectos em que
esse tipo de bias pode estar presente é na definição das categorias
raciais, em particular na oposição entre a perspectiva tradicional, dita
multipolar, de um continuum de classificações baseadas em tonalidade
da pele – reais ou imaginárias -, e a visão bipolar, defendida pelo
movimento negro e por setores da academia, especialmente os que se
dedicam à pesquisa quantitativa.
O autor prossegue para descrever que a visão multipolar é creditada aos
adeptos da teoria da democracia racial, que estaria associada à ideologia do
branqueamento, enquanto que a visão bipolar é a única que faz uma análise justa
das relações raciais no Brasil, denunciando o fosso de desigualdade racial entre
brancos e negros. Para os adeptos da visão bipolar, devem ser consideradas
apenas duas classificações raciais, a branca e a negra, sem espaço para
categorias intermediárias. Os pardos são considerados negros e devem ter uma
64
atitude de luta e confronto em face à opressão da elite branca. A ênfase na
miscigenação é descartada de plano como reminiscência do mito da democracia
racial. A visão bipolar aproxima-se muito do conceito norte-americano one
drop rule, que foi visto acima.
Entretanto, o problema da visão bipolar, além de adotar uma postura de
militância e confrontação racial, é que ela tenta simplesmente ignorar a figura do
mestiço como identidade própria, quando não despreza o próprio conceito,
conforme pode ser percebido no seguinte texto do professor José Jorge de
Carvalho (2004, p. 79) da UnB:
Poderíamos acrescentar aqui a ambivalência esquizofrenizante da
autodeclaração do Ministro Gilberto Gil, logo no início do seu
mandato em 2003, como um “negromestiço”. Ao emitir essa
definição contraditória, coloca milhões de negros brasileiros que o
admiram também em uma injunção psíquica de duplo-vínculo. Por
um lado, admiram-no enquanto negro, grande artista, modelo de
sucesso e auto-estima raríssimo entre os membros de sua comunidade.
Por outro lado, o mesmo Gilberto Gil avisa que não é negro e nega a
oferta de identificação que ele mesmo emitiu para seus irmãos negros
ao se declarar mestiço, isto é: sem nenhuma identidade racial
confrontadora, alguém famoso que não incomoda, atitude bem ao
gosto dos brancos racistas. A ideologia freyreana dos “antagonistas
equilibrados” e da democracia racial é aqui mais uma vez usada na
contramão de um momento político de afirmação da comunidade
negra brasileira, extremamente importante como o atual, e justamente
por um músico (negro?) brasileiro mundialmente famoso.
Nota-se nas palavras acima que a auto-identificação como mestiço é
considerada pelos defensores da bipolaridade quase como uma traição à raça
negra. A adoção da bipolaridade, portanto, é também a defesa da confrontação
racial, da busca pelo poder, adotando a classificação racial de origem norteamericana que não deixa espaço, nem tolerância para a miscigenação. Nesse
sentido, a crítica do professor da USP Antônio Sérgio Alfredo Guimarães (2002,
p. 57):
65
A tensão entre o movimento negro e a academia brasileira é também
grande quando se trata de identidade racial. Definindo “negros” como
todos os descendentes de africanos e identificando-os com a soma das
categorias censitárias “preto” e “pardo”, o movimento incorreu em
duas heresias científicas: primeiro, adotou como critério de
identidade, não a auto-identificação, como quer a moderna
antropologia, mas a ascendência biológica; segundo, ignorou o fato de
que, em grande parte do Brasil, a população que se autodefine “parda”
pode ter origem indígena e não africana. A pretensão de identificar
alguém como “negro” pela sua ascendência, ignorando o modo como
as pessoas se classificam ou traçam suas origens, deu margem também
a outras críticas: a de que o movimento negro tenta impor categorias
raciais [norte] americanas ao Brasil, e a de que professa a crença em
raças biológicas (racialismo).
A ideologia do movimento negro que, como afirma o texto acima, parece
adotar a crença no racialismo e, ao mesmo tempo, na bipolaridade, pode ser
sumarizada no neologismo, hoje freqüentemente utilizado, “afrodescendente”.
Este é um termo esculpido cuidadosa e ideologicamente para eliminar a
classificação oficial de “pardo” e fazer remissão a uma suposta ascendência
africana, de modo reforçar a falsa relação entre genética (ou ancestralidade) com
o conceito de raça. Na expressão, rejeita-se a incômoda referência à
miscigenação e busca-se ressuscitar a anticientífica noção de raças biológicas ou
genéticas. O fato de que esse neologismo tem alcançado muitas vezes o texto de
normas jurídicas, leva à constatação da influência política do movimento bipolar
no Governo e Legislativo, infiltrando sua ideologia racial na linguagem oficial.
4.2.
Aplicações práticas em universidades.
Tecidas as considerações acima sobre a questão racial no Brasil,
prossegue-se na análise das primeiras tentativas de aplicação prática da Ação
Afirmativa no país que acabaram tornando-se casos emblemáticos. A análise da
situação fática e dos problemas encontrados ajudará na identificação de
importantes limites que a Ação Afirmativa deve ter de maneira a não ferir os
66
princípios democráticos e a própria Constituição Federal, embora a questão da
constitucionalidade per se esteja reservada para o último capítulo deste estudo.
A escolha das três experiências abaixo (a aplicação de cotas no vestibular
da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, a aplicação de cotas nos processos
de seleção da Universidade de Brasília e o sistema de bônus da UNICAMP)
justifica-se por diferentes razões. O primeiro tornou-se emblemático, não só
porque foi a pioneira experiência de cotas raciais em um exame vestibular no
Brasil, mas também por causa dos problemas práticos de sua implantação que
exigiram uma série de reformas e mudanças do sistema em um período exíguo
de tempo. Adicionalmente, a publicação dos resultados desse vestibular no
início de 2003 catapultou a polêmica das cotas raciais para níveis muito
elevados, com ampla cobertura da mídia, e deu nova dinâmica ao debate
(Brandão, 2005, p. 62).
A escolha do caso da Universidade de Brasília se justifica porque, além
de ser a primeira universidade federal a adotar cotas raciais, é um caso sui
generis entre outros implantados em diversas universidades do país, por
concentrar-se exclusivamente na questão racial e também por ter abandonado o
critério de autodeclaração.
Finalmente, a escolha da análise do sistema de bônus na Universidade de
Campinas (UNICAMP) é profícua porque é um sistema diferenciado. Enquanto
a maioria das universidades que aplicaram modelos de Ação Afirmativa o
fizeram por via das cotas, a UNICAMP utilizou-se de bônus. O estudo desses
três casos, longe de esgotar o assunto da implantação da Ação Afirmativa no
país, poderá fornecer insights na formulação de considerações teóricas sobre o
limite que tais aplicações devam ter.
67
4.2.1.
Cotas na Universidade Estadual do Rio de Janeiro
A implantação de cotas para as universidades estaduais do Rio de Janeiro
(incluindo tanto a UERJ como a UENF) gerou desastrosos resultados em seu
primeiro ano de implantação. Isto ocorreu porque havia duas leis diferentes que
prescreviam diferentes tipos de cotas.
Em primeiro lugar, a lei estadual
3.524/2000 instituiu a reserva de 50% das vagas das duas universidades para
egressos que haviam cursado o ensino fundamental e médio integralmente em
escolas públicas situadas no Estado do Rio de Janeiro. Pouco tempo após a
promulgação dessa lei, o então Governador Anthony Garotinho sancionou uma
outra Lei, (3.708/2001) que reservava 40% das vagas para autodeclarados
negros ou pardos. De maneira a conciliar as duas leis acima, o governador
expediu o Decreto 30.766/2002 regulamentando as aplicações de ambos os
diplomas legais.
O aludido decreto criou o seguinte sistema: (1) em primeiro lugar,
preenchem-se as cotas de 50% referentes a egressos das escolas públicas; e (2)
compensando-se o número de negros e pardos que já foram agraciados no
primeiro lote, preenchem-se as cotas de 40% de negros e pardos. O restante de
vagas seria ocupado pelo sistema tradicional. Para se adequar ao Decreto, as
universidades tiveram de fazer duas provas separadas, uma apenas para quem
preenchia o critério de haver estudado em escolas públicas e outra para todos os
demais. Os dois tipos de prova, entretanto, tinham níveis iguais de dificuldade.
Quando os resultados do primeiro exame vestibular foram divulgados no
início de 2003, constatou-se que a sobreposição de cotas reduziu drasticamente o
número de vagas disponíveis pelo critério do mérito. O Promotor Estadual José
Marinho Paulo Júnior (2003, p. 1) observou que em certos cursos o número de
vagas disponíveis para não cotistas foi apenas 10% (e.g. curso de desenho
68
industrial na UERJ). No cômputo total, apenas 36,6 % entraram na UERJ fora
das cotas naquele ano. 23
Além do problema da distribuição das vagas e da sobreposição de cotas, a
marcante diferença entre as notas dos beneficiados e dos não beneficiados gerou
uma avalanche de críticas na mídia.
Em alguns cursos, os estudantes
beneficiados pela reserva de vagas ficaram com uma nota 11 vezes menor que a
nota mínima exigida para os demais vestibulandos. O caso mais grave foi
constatado na Odontologia, onde o último colocado pelo vestibular tradicional
fez 77,5 pontos de um total de 100 pontos, enquanto o último colocado cotista
alcançou apenas 6,2 pontos sobre o mesmo total.
24
Como não havia uma nota
mínima para cotistas, candidatos com notas pouco superior ao zero, como o caso
acima, foram admitidos.
Não faltaram também acusações de abusos na autodeclaração de pardo e
negro. Devido à suspeita de fraude na obtenção do benefício das cotas, o
Ministério Público do Rio de Janeiro foi acionado e seus membros buscaram os
cientistas de maneira a comprovar as possíveis fraudes no processo seletivo por
cotas. A tentativa foi buscar um parecer pericial de que certos indivíduos não
pertenciam à raça negra ou à parda, mas esse caminho não prosperou, pois,
conforme atesta Rosana Heringer, do Centro de Estudos Afro-Brasileiros da
Universidade Cândido Mendes do Rio, “não existe forma objetiva de definir
raça”. 25
23
Conforme publicado na Folha de São Paulo, disponível em:
<www1. folha.uol.com.Br/folha/educação/ult305u12540.shtml>. Acesso em: 31/01/2003, às 10:43 Hs.
24
Conforme publicado no O Estado de São Paulo:
<www.jt.estadao.com.br/editoriais/2003/02/12/editoriais003.html>. Acesso em: 31/05/2003, às 11:02 Hs.
25
Em entrevista a O Estado de São Paulo < www.estado.com.br/editoriais/2003/02/16/ger012.html>. Acesso
em: 31/05/2003 às 15:03 Hs.
69
Além das críticas, as universidades foram questionadas com uma
enxurrada de mandados de segurança, buscando garantir a matrícula pelos
preteridos do sistema de cotas. Em vários casos, os impetrantes lograram êxito
em suas demandas, com a concessão de medidas liminares pelo Judiciário
(Brandão, 2005, p. 64). As leis de cotas também foram questionadas pela ADIn
2.858 ajuizada pelo SINEPE do Estado do Rio de Janeiro. Nessa Ação, o então
Procurador
Geral
da
República,
Geraldo
Brindeiro,
opinou
pela
inconstitucionalidade das leis, não por qualquer questão relacionada à Ação
Afirmativa, mas por vício de competência. Entendeu o ilustre Procurador Geral
que faltaria competência ao ente federativo estadual para legislar sobre a
matéria. Além disso, a medida estadual acabara por ferir a autonomia das
universidades que são livres para decidir sobre as normas de acesso.
Em função de toda a polêmica, dos resultados do vestibular e das duras
críticas que se seguiram, o Governo Estadual resolveu reavaliar a implantação
de cotas para universidades estaduais.
Convocou representantes da UERJ,
UENF e sociedade civil, dentre os quais figuravam também as conhecidas
ONGs de combate ao racismo. O resultado dessa revisão legislativa foi a lei
4.151 de 4/09/2003 que revogou ambas as leis anteriores citadas acima e
instituiu um sistema mais abrangente de cotas, de maneira a eliminar a
sobreposição destas. Pela nova Lei, as cotas ficaram assim distribuídas:
• 20% das vagas para alunos que cursaram o ensino fundamental e o
ensino médio integralmente em escolas públicas no Estado do Rio
de Janeiro.
• 20% para os negros, assim reconhecidos por autodeclaração.
• 5% para portadores de deficiência e outras minorias étnicas.
70
Com a revogação das leis anteriores a ADIn acima mencionada perdeu
seu objeto, porque naturalmente seria ilógico declarar inconstitucional uma lei
que já não mais vigorava. Entretanto, o mesmo sindicato acabou por promover
uma outra Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o nova lei (ADIn 3.197,
atualmente em trânsito no STF).
A nova lei tem o mérito de ser abrangente e inclusiva, isto é, procura
beneficiar um espectro amplo de minorias, não se concentrando em apenas uma
ou duas. Não pode essa lei ser acusada de subinclusão, por ter tido os cuidados
de abordar, além de negros, os desprivilegiados economicamente (pela via
indireta da exigência de haver estudado em escolas públicas), os portadores de
deficiência e “outras minorias”, deixando uma porta aberta a algum outro tipo de
minoria que se julgue discriminada ou não nivelada com a maioria da população
(não apenas os indígenas). Outro ponto positivo é a manutenção do critério de
autodeclaração, não sucumbido à tentação de instituir comissões julgadoras de
quesitos raciais. Entretanto, não faltam problemas na nova legislação.
Em primeiro lugar, cabe destacar que a ideologia da bipolaridade racial
foi infiltrada na reforma da legislação. Como bem observou o jornalista Ali
Kamel (2006, p. 54), “os pardos sumiram”. O fato é que o artigo 1o, II da nova
lei, menciona como beneficiários das cotas apenas “negros” e não “negros e
pardos”, como na antiga lei. Assim, se um autodeclarado pardo no censo do
IBGE desejar se candidatar às vagas reservadas na nova lei, ele terá que, desta
vez, modificar a sua auto-identificação e se dizer negro. Isto pode parecer um
detalhe sem importância, mas é nesses detalhes que a ideologia da bipolaridade
exerce seu poder, ao legalmente convencer um indivíduo, que se considere
mestiço, e esteja feliz com essa identificação, a mudá-la para se enquadrar em
um sistema maniqueísta de classificação racial. Novamente comenta Kamel
(2006, p. 54 - 55):
71
E o sumiço dos pardos não foi obra de nenhum conceito abrangente de
alguns pesquisadores que consideram que os pardos são negros. Foi
ato deliberado. Porque a mesma lei abre dois parágrafos para definir
coisas simples, um para definir o que entende por “estudante carente”
e, outro, para definir o que entende por “aluno oriundo da rede
pública”. Mas não há nenhum parágrafo para definir o que entende
por negro (poderiam, se quisessem incluir os pardos, explicitar, que,
para o legislador, “negros são a soma de negros e pardos”, mas não o
fizeram).
E, pior, acrescentaram um parágrafo, aceitando a
autodeclaração como forma de os negros se inscreverem, mas
ordenando que a universidade crie mecanismos para combater fraudes.
A experiência da implantação de cotas sociais e raciais no Estado do Rio
de Janeiro deixa algumas lições que podem ser aproveitadas para o pesquisador
das ações afirmativas no Brasil. Além das já acima anotadas, vale destacar que a
implantação de sistemas, tão polêmicos e beligerantes como as cotas raciais, tem
de ser acompanhada do devido cuidado e de ampla discussão com a sociedade
civil. A implantação, rápida e pouco planejada devido à pressão de certos
grupos sociais, levou o instituto ao descrédito. Os resultados pouco previstos,
chegando a levar à reserva de 90% das vagas em alguns cursos, fogem a
qualquer padrão de razoabilidade e ferem o princípio constitucional da
proporcionalidade, como será detalhado mais adiante.
Também se pode observar que a aplicação do critério sócio-econômico
por via indireta (proveniência de escolas públicas do Estado do Rio de Janeiro)
fere o princípio constitucional da igualdade, além de arranhar o pacto federativo.
É perfeitamente defensável a posição da aplicação do conceito de igualdade
material para se proteger ou mesmo tentar igualar cidadãos em situações
desiguais. Mas, ao discriminar cidadãos em situações semelhantes, fere-se a
igualdade. Como observou o professor Bandeira de Mello (1978, p. 49) em sua
clássica obra sobre o princípio da igualdade: “é agredida a igualdade quando o
fator diferencial adotado para qualificar os atingidos pela regra não guarda
72
relação de pertinência lógica com a inclusão ou exclusão no benefício deferido
ou com a inserção ou arredamento do gravame imposto”.
Não há justificativa racional para se tratar egressos de escolas públicas do
Rio de Janeiro de maneira privilegiada, prejudicando-se egressos de escolas
públicas de outros Estados. Se um aluno estudou dois anos em escolas públicas
fora do Estado, mas o restante do tempo do ensino fundamental e médio no Rio
de Janeiro, assim mesmo ele não poderá se beneficiar das cotas, porque a lei
exige que o candidato ao benefício tenha estudado integralmente em escolas
públicas no Estado do Rio de Janeiro. A lei, portanto, estabelece um sistema
discriminatório contra egressos de outros Estados, sem uma justificativa lógica
ou aceitável para tal.
Nessa mesma trilha de raciocínio, comenta o constitucionalista Manoel
Gonçalves Ferreira Filho (1988, p. 27):
Na verdade, ele [o legislador] viola a igualdade sempre que beneficia
desarrazoadamente determinadas categorias. E note-se – não se pode
diferenciar entre os homens senão de modo proporcionado às
diferenças entre eles. Ou seja, o princípio de igualdade subsume um
princípio de proporcionalidade, como reconhecem os alemães.
O problema observado pode ser creditado ao fato de que, nas complexas
negociações políticas que culminaram na promulgação das leis instituindo as
cotas, procurou-se inserir na legislação uma questão regionalista estranha ao
conceito de Ação Afirmativa.
Não faz o menor sentido propor uma
discriminação para favorecer quem estudou em determinado Estado da União e
essas tentativas são incompatíveis com o pacto federativo. Se todos os Estados
promulgarem leis semelhantes, isto contribuirá para o acirramento do
73
regionalismo em prejuízo à integração nacional, uma clara violação
constitucional.
Por último, os resultados finais do exame vestibular de 2002 na UERJ
serviram para demonstrar os efeitos desastrosos das políticas de cotas, que por
vezes só são sentidos depois da aplicação, conforme já mencionado acima.
26
Um candidato que, em um exame vestibular, consiga pouco mais de 6 pontos em
um total de 100 pontos possíveis obviamente não está preparado para o ensino
superior, principalmente quando, no sistema tradicional, e no mesmo exame,
outros candidatos conseguiram notas pelo menos dez vezes mais elevadas.
Esses resultados não apenas demonstram a falta de razoabilidade que as cotas
impingem ao sistema público de ensino, como também fulminam o sistema de
mérito, este conseguido a duras penas no processo de superação do ancient
régime no processo histórico que depurou o ideal republicano.
4.2.2.
Cotas na Universidade de Brasília
Se a implantação de cotas nas universidades estatuais do Rio de Janeiro
gerou uma forte controvérsia na mídia, a experiência de Brasília causou o
mesmo nível de polêmica, só que dessa vez nos meios acadêmicos. Isto foi
devido ao fato, conforme observaram Marcos Maio e Ricardo Santos (2005, p.
193), de que a universidade criou uma comissão de classificação racial,
utilizando-se de “critérios supostamente objetivos e científicos” e “apoiou-se em
uma cientificidade anacrônica e alheia aos preceitos da ciência contemporânea”.
26
Cf. infra, p. 15.
74
No ano de 2004 a Universidade de Brasília anunciou a implantação de
reserva de vagas para negros em todos seus cursos de graduação. O portal da
UnB na internet27 faz alusão específica que essa política é baseada no sistema de
Ações Afirmativas que por sua vez são colocadas em prática “em nome da
efetivação do princípio constitucional de igualdade”. Conclui por dizer que
essas políticas são o “resultado de esforços históricos dos Movimentos Negros”.
São reservadas 20% das vagas de cada curso de graduação da
universidade aos negros (os pardos, a exemplo da nova lei de cotas do Rio de
Janeiro, não são mencionados). Há algumas inovações no sistema de cotas,
como notas mínimas exigidas nas diversas matérias do vestibular e a vedação a
notas iguais a zero na prova de Língua Estrangeira. Essas inovações têm de ser
aplaudidas, pois parecem levar em conta as experiências do Estado do Rio de
Janeiro mencionadas acima.
Entretanto, a inovação mais polêmica foi a
instituição de uma comissão verificadora da declaração racial dos candidatos às
cotas, comissão que acabou ficando conhecida pelos críticos como “Tribunal
Racial”.
A ênfase na comissão de aferição surgiu pelo medo das fraudes ocorridas
em outros programas de Ação Afirmativa, como foi o caso na UERJ e no
Instituto Rio Branco. O receio dos idealizadores do programa era que as fraudes
ao método de autodeclaração pudessem implodir o programa, tornando-o de
difícil sustentação mediante a opinião pública (Maio; Santos, 2005, p. 187). É
provável que a forte reação da imprensa no caso carioca tenha motivado a opção
pelo abandono do critério de autodeclaração.
27
Disponível em: <http://www.unb.br/admissao/sistema_cotas/index.php>. Acesso em:: 11/01/2007, às 15:15
Hs.
75
Essa comissão foi instituída pela universidade de maneira a verificar,
através de fotografias digitais colhidas no ato da inscrição, a veracidade das
autodeclarações raciais.
Na comissão de cinco pessoas havia, além de um
antropólogo, membros de entidades ligadas ao movimento negro. Na verdade, a
UnB não foi a primeira universidade a estabelecer comissões de verificação.
Um ano antes, a Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul estabelecera seu
sistema de cotas exigindo uma foto tamanho cinco por sete dos candidatos às
reservas de vagas. Entretanto, a comissão de verificação não alegou critérios
científicos para a verificação, apenas se propôs a checar os fenótipos pré
determinados, literalmente definidos como “lábios grossos, nariz chato e cabelos
pixaim”, além da tonalidade da pele (Kamel, 2006, p.52).
Em Brasília, o principal critério de avaliação da comissão foi a análise dos
fenótipos através das fotografias digitais. Mas, o fato de haver um antropólogo
na comissão, sucitou inúmeras críticas nos meios acadêmicos, por haver um
pretenso cientificismo na classificação racial dos candidatos.
A polêmica
culminou na publicação de um Manifesto da ABA – Associação Brasileira de
Antropologia, que se reproduz parcialmente a seguir:
A pretensa objetividade dos mecanismos adotados pela UnB constitui,
de fato, um constrangimento ao direito individual, notadamente ao da
livre auto-identificação. Além disso, desconsidera o arcabouço
conceitual das ciências sociais, e, em particular, da antropologia social
e antropologia biológica.
A CRER-ABA entende que a adoção do sistema de cotas raciais nas
universidades públicas é uma medida de caráter político que não deve
se submeter, tampouco submeter aqueles aos quais visa beneficiar, a
critérios autoritários, sob pena de se abrir caminho para novas
modalidades de exceção atentatórias à livre manifestação das pessoas.
Nesse sentido, a Comissão de Relações Étnicas e Raciais (CRER) da
Associação Brasileira de Antropologia (ABA) externa a sua
preocupação não somente com os fundamentos que norteiam o
sistema classificatório dos candidatos, como também com as
76
repercussões negativas que o sistema implantado pela UnB poderá
produzir.28
Fica claro pela manifestação acima, que meios antropológicos para
classificar racialmente indivíduos não são mais aceitos pela comunidade
científica atual, e tampouco a Genética pode ajudar, conforme observaram os
geneticistas Sérgio Pena e Maria Catira Bortolini (2004, p. 10):
Tendo em vista a nova capacidade de se quantificar objetivamente,
por meio de estudos genômicos, o grau de ancestralidade africana de
cada indivíduo, pode a genética definir quem deve se beneficiar das
cotas universitárias e demais ações afirmativas? Prima facie poderia
parecer que sim, mas a nossa resposta é um enfático NÃO. (grifo no
original).
Tudo isso vem corroborar o que já foi discutido neste estudo
anteriormente e também foi declarado pelo Egrégio STF: a divisão de raças
humanas não segue um critério biológico, mas meramente político-social e não
há maneiras de se definir objetivamente a raça de um indivíduo que está ligada
ao sentimento de pertença que ele tenha a um determinado grupo social.
Portanto, a tentativa pseudocientífica de tentar classificar um cidadão em grupos
raciais pré-determinados constitui-se em um grave desvio, quanto mais em se
tratando de um concurso público de grandes proporções. O abandono do critério
de autodeclaração, longe de resolver eventuais problemas de fraudes, cria outros
problemas muito maiores, acabando por se tornar uma medida autoritária e
impositiva.
Mas, a polêmica também prosseguiu, uma vez que outra comissão foi
formulada de maneira a julgar os recursos interpostos pelos não aprovados na
28
Disponível em: www.abant.org.br/informacoes/documentos/documentos_028.shtml acesso em: 05/01/2007, às
14:02 Hs.
77
primeira fase de classificação racial. Dessa vez, a comissão tinha seis membros,
entre eles um antropólogo, um representante dos estudantes e três representantes
de entidades ligadas ao movimento negro, mais um sexto integrante não
identificado.
De forma a julgar os recursos, a comissão submetia os
inconformados a entrevistas.
Nestas, perguntas de cunho político foram
utilizadas, tais como “Você já teve alguma ligação com o movimento negro?”
(Maio; Santos, 2005, p. 189).
O que se pode perceber de plano é que, ao adotar uma comissão julgadora
de classificação racial, a UnB, apesar de haver tentado, não conseguiu convencer
a comunidade científica que seus métodos eram objetivos. Portanto, a comissão,
formada em boa parte por pessoas ligadas ao movimento negro, tinha muito
mais o aspecto de patrulhamento ideológico do que uma real busca por critérios
objetivos de seleção. Isto pode ser verificado, como observado acima, pelas
perguntas eminentemente políticas dirigidas aos recorrentes, como se participar
do movimento negro pudesse contribuir para a classificação racial de um
indivíduo. Também se pode perguntar qual é a legitimidade do movimento
negro de exercer tamanho poder, de definir quem pode ou não se candidatar a
determinados concursos públicos.
Dessa maneira, ao submeter os candidatos a sessões de fotos, filas
diferentes para negros e não negros para inscrição do vestibular e sessões de
perguntas de cunho ideológico-racial, a UnB, no afã de perseguir a igualdade
racial, feriu o princípio da dignidade da pessoa humana em seu processo de
seleção. E nesse contexto é bem oportuna a citação do professor Rizzato Nunes:
(2002, p. 45): “Existem autores que entendem que a isonomia é a principal
garantia constitucional, como, efetivamente, ela é importante. Contudo, no atual
78
Diploma Constitucional, pensamos que o principal direito fundamental
constitucionalmente garantido é o da dignidade da pessoa humana”.
O processo de seleção posto em prática pela Universidade de Brasília
abandonou o sistema de autodeclaração ao instituir uma comissão de avaliação
de classificação racial que não se utiliza de métodos objetivos para a consecução
de seus fins. Esse processo exógeno de verificação fere o princípio da dignidade
da pessoa humana pelas seguintes razões:
(a) Impõe uma classificação racial a um candidato independentemente de
sua auto-identificação, além de utilizar classificações raciais ideológicas, de
visão bipolar, desprezando as classificações oficiais do IBGE. Uma vez que não
existem raças biológicas ou genéticas, essa atitude avilta o direito individual e
fundamental do cidadão de se identificar com um determinado grupo políticosocial (fundamento do moderno conceito de raça) conforme a sua livre
consciência e conforme a herança cultural que julga ter.
(b) Submete os candidatos a processos constrangedores, instando-os a
fazer prova de matérias subjetivas de cunho meramente pessoal, que não podem
ser verificadas objetivamente. Marcos Maio e Ricardo Santos (2005, p. 188)
indicam que a sessão de fotos foi particularmente embaraçosa, gerando protestos
individuais de vários candidatos. A divisão das filas para candidatos negros e de
outras raças faz lembrar os piores momentos da história norte-americana,
impondo conceitos e práticas alienígenas à cultura brasileira.
Adicionalmente, pode-se dizer que a Universidade de Brasília resolveu
fazer um sistema de seleção que não contempla de maneira abrangente outras
79
minorias, principalmente os economicamente desprivilegiados. E também é
digno de nota que o critério racial nesse exemplo não é conjugado com o critério
econômico, conforme a experiência carioca. Assim, um negro de alto poder
aquisitivo pode candidatar-se às vagas reservadas competindo de maneira
privilegiada em relação a um branco pobre. Além de ajudar a criar uma elite
negra, essa prática infringe os princípios constitucionais da igualdade e da
proporcionalidade ao discriminar desarrazoadamente contra o não-negro carente
para, pelo menos em tese, beneficiar um negro rico, uma vez que não existe
nenhuma limitação de renda aos candidatos às cotas.
Em conclusão a esse caso, reproduz-se a oportuna impressão dos já
citados pesquisadores Marcos Chor e Ricardo Santos (2005, p. 202):
A comissão de identificação racial da UnB operou uma ruptura com
uma espécie de “acordo tácito” que vinha vigorando no processo de
implantação do sistema de cotas no país, qual seja, o respeito à autoatribuição de raça no plano das relações sociais. A valorização desse
critério, próprio das sociedades modernas e imprescindível em face da
fluidez racial existente no Brasil, cai por terra a partir das normas
estabelecidas pela UnB. Os defensores do sistema da UnB contraargumentam que é preciso controlar os alegados “fraudadores raciais”,
aqueles que se dirão “negros” somente para usufruir do benefício das
cotas. Cabe lembrar que a ampla maioria das instituições que
adotaram as cotas no país tem preferido depender unicamente da
autodeclaração. Possivelmente avaliam que os custos sociais e
históricos de implantar um “tribunal racial”, como foi rotulado o
sistema da UnB, podem ser por demais elevados a médio e a longo
prazo.
4.2.3.
O sistema de bônus da UNICAMP
Em maio de 2004, a UNICAMP instituiu o Programa de Ação Afirmativa
e Inclusão Social – PAAIS, o primeiro sistema de preferências em universidades
80
públicas a evitar a via das cotas no país. O PAAIS optou pelo sistema de
pontuação acrescida, mais comumente conhecido por bônus.
A primeira exigência para participar do programa é ter cursado o ensino
médio integralmente em escolas públicas no Brasil, portanto, é um requisito
bastante mais brando do que a exigência das universidades cariocas. Os
estudantes que optarem pelo PAAIS na inscrição para o vestibular recebem
automaticamente 30 pontos a mais na nota final, ou seja, após a segunda fase.
Candidatos autodeclarados pretos, pardos e indígenas que tenham cursado o
ensino médio em escolas públicas terão, além dos 30 pontos adicionais, mais 10
pontos acrescidos à nota final.29
Não existe qualquer verificação para o critério racial, bastando apenas a
autodeclaração. A UNICAMP também adota a terminologia racial do IBGE,
sendo os 10 pontos adicionais do critério racial acrescidos tanto para pretos
como para pardos e para indígenas. Embora os pontos adicionais (máximo de
40) sejam relativamente de pouca expressão em relação à nota média de
aprovação, que é de 540 pontos, portanto abaixo dos 10%, o número de pretos,
pardos e indígenas aprovados no vestibular teve um considerável aumento no
primeiro ano do programa. Esse número subiu de 345 alunos (11,6% do total)
para 469 alunos (15,7% do total). O número de alunos aprovados provenientes
de escolas públicas também subiu de 831 alunos (28.0% do total) para 1021
alunos (34,1% do total).30 Os dados demonstram que o programa, embora não
conte com medidas drásticas, produziu resultados visíveis e de certa
significância.
29
Conforme a Comissão Permanente de Vestibular, disponível em:
<http://www.convest.UNICAMP.br/vest2007/download/manual2007.pdf>. Acesso em: 13/01/2007, às 20:03 Hs.
30
Conforme publicado no sítio de UNICAMP, disponível em:
<http://www.convest.UNICAMP.br/estatisticas/2006/paais2005.pdf>. Acesso em: 13/01/2007, às 21:01 Hs.
81
De outro norte, uma análise mais profunda leva ainda a resultados mais
encorajadores. Os dados demonstram que nos cinco cursos mais concorridos da
UNICAMP (Medicina, Ciências Biológicas, Ciências Sociais, Arquitetura e
Farmácia), a participação de egressos da escola pública dobrou com a aplicação
do sistema. Resultados como esses servem como uma resposta efetiva àqueles
que criticam a eficácia do sistema de bônus, embora um lapso temporal maior
seja necessário para uma comprovação mais confiável.
4.2.4.
Análise comparativa dos casos práticos
O sistema de pontuação acrescida ou bônus também foi aplicado em bases
semelhantes para o ingresso nas ETEs e FATECs no Estado de São Paulo,
através do Decreto Estadual no 49.602/05. A reação da sociedade em geral foi
tranqüila em relação a esse programa, não havendo notícia de ações judiciais ou
grande repercussão na mídia ou na academia questionando o sistema. O
programa de pontuação acrescida oferece as seguintes vantagens em relação às
cotas raciais e sociais:
(a) São sistemas não beligerantes, não produzindo impacto negativo nos
preteridos. Não geram polêmica e acirramento das tensões raciais no Campus e
na sociedade em geral.
(b) Produzem efeitos visíveis, mas não interferem incisivamente no
sistema de mérito. Não há questionamentos sobre possíveis comprometimentos
da qualidade do ensino. Não requer programas suplementares de apoio a alunos,
como acompanhamento especial, ou desníveis em relação a beneficiados e não
beneficiados.
82
(c)
Evitam
questionamento
quanto
a
sua
legalidade
e/ou
constitucionalidade.
(d) Evitam o estigma do aluno beneficiado por cotas.
(e) Não são facilmente suscetíveis a fraudes.
Entretanto, pode-se ressaltar um aspecto negativo no sistema de
pontuação acrescida, que é o caráter subjetivo da determinação da quantidade de
pontos. Esse aspecto não guarda relação lógica com as estatísticas sociais,
sendo calculado arbitrariamente. Também não é transparente, pois é difícil
encontrar qual o critério utilizado pela UNICAMP ao definir 30 pontos para
egressos de escolas públicas e 10 pontos adicionais para minorias raciais. Podese pensar que a pontuação foi mantida baixa para não afetar significativamente o
sistema de mérito e, conseqüentemente a qualidade do ensino, mas mesmo
assim, isto não retira o aspecto subjetivo da decisão do quantum abonatório.
Por outro lado, se a quantidade de pontos for acrescida de maneira a tentar
abruptamente corrigir o percentual racial ou social do corpo discente, o sistema
de bônus vai se aproximar muito do método de cotas, perdendo sua vantagem
original. Isto é que se verificou nos casos da Universidade de Michigan citados
acima, o que levou a Suprema Corte a estender a vedação anterior das cotas ao
sistema de pontuação acrescida.
Em conclusão a esse capítulo, pode-se dizer que o sistema de pontuação
acrescida, como o aplicado na UNICAMP, traz uma série de vantagens em
relação ao sistema tradicional de cotas numéricas e inflexíveis, mas ainda assim
apresenta problemas de difícil solução, pois o critério da definição da quantidade
de pontos é subjetivo.
83
Por outro lado, comparando-se os dois sistemas de cotas, do Rio de
Janeiro e de Brasília, pode-se notar que:
(a) O sistema do Rio de Janeiro tem o mérito de promover uma
diversidade abrangente, não apenas se limitando à questão racial; reconhece o
critério de autodeclaração, evitando a perigosa via da classificação forçada e; é
um sistema com regras objetivas. Entretanto, do lado negativo, o programa
carioca parece desafiar o princípio da proporcionalidade e razoabilidade, ao
permitir o ingresso de alunos muito pouco preparados devido ao número elevado
de reserva de vagas (45%) e a falta de notas mínimas de corte. A razoabilidade
do programa também pode ser questionada, porque não se implementou um
sistema efetivo que evitasse fraudes na autodeclaração.
Um número
relativamente elevado de pessoas com fenótipo mais claro sendo aprovadas pelo
critério de autodeclaração poderá, em médio prazo, minar a credibilidade do
sistema perante a opinião pública.
(b) O sistema de Brasília procura preservar a qualidade de ensino ao
exigir notas mínimas de ingresso e, ao mesmo tempo, limitar as cotas a um
número menos elevado (20%). Entretanto, ao optar pela classificação racial
exógena, o programa acaba ferindo princípios constitucionais básicos. Também
se deve enfatizar que, ao adotar apenas o critério racial sem atrelar a questão
sócio-econômica, o programa acaba arranhando o princípio da igualdade,
justamente o princípio constitucional em que alega se basear.
Assim, o sistema de cotas para ingresso em universidades parece estar
preso a um dilema que provavelmente provém de sua difícil contextualização no
país: de um lado, a autodeclaração se torna um método imprescindível, devido à
fluidez do conceito de raça e a miscigenação no país, e de outro lado, esse
mesmo método de autodeclaração é de difícil implantação, no que concerne ao
combate às fraudes. Se tomarmos apenas os dois exemplos acima isoladamente,
84
o sistema de implantação das cotas ou opta por ferir a razoabilidade, porque não
dispõe de meios para um combate efetivo de fraudes e rebaixamento do nível
acadêmico, ou opta pelo autoritarismo e inadequação dos “tribunais raciais”.
85
5. JUSTIFICATIVAS TEÓRICAS PARA A AÇÃO AFIRMATIVA
As ações afirmativas não são uma mera construção jurídica, antes disto,
são conceitos com profundo significado filosófico.
E justamente esse
embasamento filosófico é que vai justificar a sua implantação, conforme bem
observou o Ministro Joaquim Barbosa Gomes (2001, p. 61):
O debate em torno do princípio constitucional da igualdade, em cuja
raiz se situa a discussão a respeito dos direitos civis, e especialmente
do seu mais eficaz instrumento de implementação – as ações
afirmativas –, traz em si, além de uma explosiva carga políticoideológica, uma base filosófica e constitucional não desprezível. Com
efeito, remontando a Aristóteles e passados por diversas escolas de
pensamento modernas, são diversos os postulados filosóficos que
disputam a primazia da fundamentação das ações afirmativas, quase
todos eles filiados ao pensamento liberal.
Dessa forma, procura-se aqui analisar as três principais teorias
justificadoras da Ação Afirmativa. Entender essas teorias que, nas palavras
acima, “disputam a primazia” para a justificativa do instituto é importante não
só pelos aspectos teóricos, mas porque a escola adotada pode ter implicações de
aplicação práticas das políticas. Outro importante aspecto é entender como as
teorias se harmonizam ou se opõem a princípios constitucionais estabelecidos.
Duas teorias têm sido freqüentemente apontadas como a base de
justificativa para as ações afirmativas, a Teoria da Justiça Compensatória e a
Teoria da Justiça Distributiva. De fato, Paulo Lucena de Menezes (2001, p. 39)
demonstrou que essas duas teorias foram o palco de uma “polêmica
interminável” na disputa de qual sistema melhor se adequaria à justificativa
86
filosófica do instituto. Importante salientar que, durante as primeiras décadas de
aplicação de políticas afirmativas nos EUA, essas duas teorias foram aplicadas,
não apenas por defensores do instituto, mas também pelo Judiciário. Entretanto,
as duas primeiras teorias acabaram sendo de certa maneira superadas, em prol de
uma terceira teoria nas duas decisões emblemáticas da Suprema Corte, no caso
Bakke e nos casos da Universidade de Michigan que acabaram por reforçar os
argumentos do Ministro Powell, já analisados acima.
Para o Ministro Powell, a única justificativa para o Estado aquiescer com
programas racialmente elaborados seria a obtenção da diversidade, em seu
sentido amplo. A obtenção da diversidade nos campi de universidades norteamericanas seria o interesse estatal cogente que justificaria políticas afirmativas.
Essa decisão, que foi corroborada vinte e cinco anos depois pela Ministra
O´Connor, acabou tecendo uma nova e mais importante justificativa teórica para
a Ação Afirmativa.
O que se pode notar nessa evolução das teorias de fundo é que a
diversidade é mais abrangente que a primeira teoria, porque esta tende a se
concentrar no passado e deixa de fora grupos importantes. Podemos citar pelo
menos dois grupos que dificilmente seriam contemplados pela teoria da
reparação, os deficientes físicos e as mulheres.
Mas, antes de entrar na
comparação das teorias e verificar seu desenvolvimento ao longo do tempo, fazse necessária uma breve análise de cada uma delas.
5.1.
A teoria da reparação
87
A teoria da reparação, ou Justiça reparatória, teve sua gênese na questão
da escravidão. De fato, é uma teoria ainda hoje bastante utilizada no Brasil,
embora nos EUA já esteja de certa forma superada. A teoria ganhou impulso,
pelo menos em países em desenvolvimento, com a já citada conferência de
Durban, que considerou a escravidão como um crime contra a humanidade e
exigiu medidas compensatórias aos negros, tanto no plano nacional, como no
plano internacional.
A Conferência de Durban não foi unânime. Sofreu no início com a
retirada das Delegações dos Estados Unidos e Israel por não concordarem com o
rumo que o evento estava tomando, marcando uma posição política. Mesmo
entre os países africanos, houve dissenso. Alguns julgavam que a dignidade da
pessoa humana seria uma justificativa de maior importância para o combate ao
racismo e implantação de políticas afirmativas.
Isto ficou claro com a
declaração emblemática do Presidente do Senegal, Abdoulaye Wade, que
asseverou: "Um cheque não pode compensar o sangue derramado", conforme
ressaltou Pierre Sané, Subdiretor Geral para Ciências Humanas e Sociais da
UNESCO. 31
Apesar do dissenso, a Conferência acabou aprovando resoluções32
pedindo tanto a reparação internacional, por parte dos países que se
beneficiaram com a escravidão, como também reparações de âmbito interno, que
seriam levadas a cabo pelos Estados onde houve escravidão, em prol dos
descendentes dos escravos, que ainda sofreriam discriminações e uma condição
desfavorável. Conforme salientado acima, Durban teve grande influência no
31
Disponível em: <www.unesco.org.br/publicacoes/copy_of_pdf/Seriedebates2.pdf>. Acesso em: 12/01/2007, às
19:15 Hs.
32
As resoluções do congresso ficaram sendo conhecidas como Declaração de Durban, e estão disponíveis em:
<http://www.comitepaz.org.br/Durban_1.htm>. Acesso em: 15/01/2007, às 19:31 Hs.
88
Brasil e em esferas do Governo, portanto, não é estranho que a tese da reparação
tenha grande receptividade no país na atualidade.
Entretanto, existem problemas sérios na teoria da reparação, por haver
uma grande dificuldade de conciliá-la com o direito positivo. É fato que a
Constituição Federal classifica a reparação civil entre os direitos fundamentais.
Entretanto, o sistema legal exige que tanto os beneficiários da reparação como
os seus responsáveis sejam objetivamente identificados, além dos institutos da
culpa e nexo causal. Isto é dificilmente alcançável com a questão da escravidão.
A demonstração da ligação direta entre os descendentes dos escravos como
beneficiários é uma tarefa hercúlea, dada à miscigenação no país. Pior sorte é
reservada àqueles que buscam encontrar os responsáveis pela escravidão ou
discriminação nos dias atuais. E em todo caso, o sistema pode penalizar pessoas
(as preteridas das cotas, por exemplo) que nunca praticaram discriminação
alguma, nem mesmo descenderam de donos de escravos, o que acontece com os
filhos dos imigrantes europeus e asiáticos que vieram ao Brasil após o final da
escravidão.
Esse tipo de dificuldade é percebido até por grandes defensores da Ação
Afirmativa, como o Ministro Joaquim Barbosa Gomes (2001, p. 65):
Com efeito, em matéria de reparação de danos, o raciocínio jurídico
tradicional opera com categorias rígidas tais como ilicitude, dano e
remédio compensatório, estreitamente vinculados uns aos outros em
relação de causa e efeito. Em regra, somente quem sofre diretamente
o dano tem legitimidade para postular a respectiva compensação. Por
outro lado, essa compensação só pode ser reivindicada de quem
efetivamente praticou o ato ilícito que resultou no dano. Tais
incongruências, exacerbadas pelo dogmatismo outrancier típico da
práxis jurídica ortodoxa, findam por enfraquecer a tese compensatória
como argumento legitimador das ações afirmativas.
89
Entretanto, o conservadorismo da prática jurídica não se constitui no
único obstáculo à tese reparadora. Essa teoria, que teve sem dúvida sua gênese
por causa da escravidão, é pobre para satisfazer uma compreensão maior da
Ação Afirmativa que extrapola a questão racial. Para a questão de gênero, por
exemplo, é ineficaz, porque a mulher de hoje é descendente tanto da mulher que
foi discriminada em outros tempos, como do homem que a discriminou.
Dificuldade semelhante é encontrada quando os beneficiários da Ação
Afirmativa são os deficientes físicos.
O professor Thomas Sowell (2004, p. 11) lembra que o mesmo problema
foi encontrado na Índia, quando um grupo de 15 milhões de eunucos reivindicou
proteção especial, mas obviamente não puderam alegar que eram descendentes
de outros eunucos discriminados no passado. A teoria da reparação, portanto,
tende muito mais a propósitos mercadológicos para Ação Afirmativa do que
uma justificativa séria e racional para implantação de programas efetivos.
5.2.
A teoria da Justiça distributiva
A teoria da Justiça distributiva parece evitar a maioria dos problemas
enfrentados pela chamada teoria de reparação. Ela é mais abrangente e tem
melhor harmonia com o direito positivo e o sistema constitucional. De acordo
com o Ministro Joaquim Barbosa Gomes (2001, p. 66), a noção de Justiça
distributiva remonta a Aristóteles. De fato, o conhecido adágio de tratar os
desiguais na proporção da sua desigualdade é uma máxima geralmente atribuída
ao filósofo grego.
90
A Justiça distributiva, que trabalha com o argumento da igualdade (e não
da reparação), tem encontrado ressonância com sistemas constitucionais
contemporâneos ao redor do mundo, conforme assevera o professor Alexandre
de Moraes (2006, p. 31), “o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida
em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio conceito de Justiça...”.
De fato, essa noção de Justiça de que a lei deve proteger o mais fraco, o
desprivilegiado, é comum a muitos dos sistemas constitucionais vigentes e
deriva do próprio princípio da igualdade, como será discutido com maior
detalhes no capítulo posterior.
Os exemplos no direito positivo pátrio são
inúmeros, quando se definem leis específicas para proteger a parte mais frágil
para equilibrar certas relações jurídicas que, se tratadas de maneira neutra,
trariam vantagens indevidas à parte mais forte. A CLT, o Código de Defesa do
Consumidor, a Lei do Inquilinato, o Estatuto do Adolescente e o Estatuto do
Idoso são conhecidos diplomas legais que estão abarcados nesse sistema teórico.
Leis instituindo programas de Ação Afirmativa encontrariam certo paralelo nas
leis já existentes que tendem a equilibrar a relação jurídica e proteger a parte
mais frágil.
Outro grande defensor dessa teoria é o renomado jurista Ronald Dworkin
(2005, p. 437 – 469) que parece ressaltar pelo menos dois pontos importantes.
O primeiro argumento de Dworkin é utilitarista, isto é, a aplicação de políticas
afirmativas levaria a ganhos para a sociedade em geral porque o bem estar
gerado pela redução das desigualdades aumentaria a harmonia social e o bem
comum. O segundo argumento é que a Ação Afirmativa, contrário do que
dizem seus críticos, tem a intenção de “diminuir, não aumentar a importância da
raça na vida social e profissional norte-americana” (Dworkin, 2005, p. 439).
Essa diminuição da consciência racial teria o efeito de levar a uma sociedade
91
mais justa e mais equalitária com ganho para todos. O alvo a ser alcançado,
após um determinado espaço de tempo, seria uma sociedade racially blind, ou
seja, uma comunidade onde a questão racial seria irrelevante, atingindo
efetivamente a igualdade.
Ocorre que esse segundo argumento não é bem aceito, nem pelos
movimentos negros (tanto no Brasil com nos EUA), nem pelos defensores do
multiculturalismo, tese analisada a seguir. Para grande parte dos movimentos
negros, a consciência de raça é um objetivo a ser alcançado, auxiliado pelas
Ações Afirmativas, e não algo que venha a ser descartado, mesmo após algum
tempo.
Semelhantemente, conforme já analisado no primeiro capítulo, o
filósofo canadense Charles Taylor (1994, p. 40) argumenta que o
reconhecimento da diferença cultural (nesse caso, racial) é um bem em si
mesmo, e não algo a ser combatido. O multiculturalimo não prega que as
diferenças culturais sejam ignoradas, mas, ao contrário, que sejam valorizadas
em suas diversas formas, combatendo a uniformização generalizada.
A
diversidade deve ser celebrada, não ignorada.
De qualquer modo, o uso da Justiça distributiva como tese justificadora
de ações afirmativas deve ser entendido como uma forma de busca do
aperfeiçoamento da Democracia através de uma diminuição das desigualdades e
conseqüente aumento da harmonia social. Pelo menos, essa é a idéia básica que
transparece dessa concepção de Justiça com base na igualdade. Como também
observou o constitucionalista Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2003, p. 76), a
finalidade de programas da Ação Afirmativa deve ser a correção de
desigualdades sociais.
92
A utilização do conceito de Justiça distributiva baseada na igualdade e de
origem aristotélica parece ser inatacável. Mas, essa concepção de Justiça, que
perdurou por séculos, passando por Tomás de Aquino33 seguindo até Kant, não é
o único sistema filosófico disponível. O discurso filosófico moderno, segundo
Habermas (2002, p. 8), foi inaugurado por Hegel. Com Hegel e seus sucessores,
uma nova concepção de filosofia essencialmente crítica acabou por modificar os
conceitos de Justiça e epistemologia até então ferrenhamente entrincheirados.
Um dos mais ferozes críticos da concepção de Justiça com base na
igualdade foi Friedrich Nietzsche.
Para o filósofo alemão, Justiça estava
entremeada nas relações de força e poder, entendida muito mais como um
equilíbrio do que como igualdade.
Mas, o que mais chama a atenção no
pensamento do filósofo é sua epistemologia, que pode trazer grandes insights
nas relações de poder. Contrastar Aristóteles com Nietzsche não é um método
necessariamente novo, pois foi muito utilizado por Michel Foucault (1997, p.1315):
A história da filosofia oferece modelos teóricos dessa vontade de
saber, cuja análise pode permitir uma primeira demarcação. Dentre
aqueles que deverão ser estudados e postos à prova – Platão, Spinoza,
Schopenhauer, Aristóteles, Nietzsche, etc. –, os dois últimos foram
escolhidos. [...] O desejo de conhecer supõe e transpõe, em
Aristóteles, a relação prévia do conhecimento, da verdade e do prazer.
Na Gaia ciência, Nietzsche define um conjunto de relações
completamente diferentes: o conhecimento é uma “invenção”, por trás
da qual há outra coisa distinta: jogo de instintos, de impulsos, de
desejos, de medo, de vontade de apropriação [...]
O interesse é, portanto, posto radicalmente antes do conhecimento,
fazendo com que lhe seja subordinado como um simples instrumento...
(grifo nosso).
33
Tomás de Aquino foi o grande sistematizador de Aristóteles e conservou quase que integralmente o conceito
de Justiça do Filósofo. Em sua Suma Teológica, (II – Quest. LVII) Aquino chega a um conceito de Justiça que
se aproxima da eqüidade: “Como já dissemos, o nome de Justiça, implicando a igualdade, está em a natureza da
Justiça ser relativa a outrem; pois nada é igual a si mesmo, mas a outrem”. (apud, Pereira, 1987, p. 90).
93
Ou, como bem resumiu o profundo pesquisador de Nietzsche, Rüdiger
Safranski (2005, p. 264), “conhecer é vontade de poder”.
O contraste de
Aristóteles e Nietzsche é, portanto, drástico: de um lado a vontade pela Verdade
e Justiça, e de outro, vontade de poder (Wille zur Macht). Ocorre que essa
concepção de conhecimento como vontade de poder é paradoxalmente utilizada
por alguns dos defensores mais aguerridos da Ação Afirmativa, que a princípio
adotam uma postura Aristotélica de vontade de Justiça quando abordam a
situação desprivilegiada do negro, mas acabam por sucumbir à vontade de
poder, como no texto abaixo:
Tomando-se como relativamente inelástica a oferta de posições de
prestígio e poder na sociedade brasileira, medidas que proporcionem a
igualdade de oportunidades entre negros e brancos tenderão a fazer
com que algumas posições hoje ocupada por brancos – não pobres,
evidentemente, mas de classe média e alta – venham a ser, no futuro,
ocupadas por negros. Quem vai descer nessa gangorra são, portanto,
os brancos “ricos” que, sentindo a ameaça que isso lhes representa,
fazem uso de seus privilégios como “formadores de opinião para
construir uma “opinião pública” desfavorável à ação afirmativa,
preocupados que estão, não com a população pobre, branca ou negra,
já que sua preocupação com esta jamais ultrapassou os limites da
retórica, mas com a manutenção do seu próprio status. (Medeiros,
2004, p. 155).
O impressionante texto acima não poderia ser mais Nietzschiniano. O
autor acusa os críticos da Ação Afirmativa de utilizar seus meios e
conhecimento, não como a busca pela verdade, mas pela simples vontade de
poder. A metáfora da gangorra é significativa, porque não basta o negro subir, o
branco tem também de descer. O oprimido não deseja apenas se libertar do
opressor, mas quer tomar o lugar deste. E sobre esse jogo de poder, o mesmo
autor ainda é mais explícito no embate com seus opositores:
Assim se entende o denodado empenho com que setores da academia
defendem, com foros de “neutralidade científica” a classificação
multipolar, ao mesmo tempo em que denunciam como “irrealista”,
“importada” ou mesmo “impatriótica”, e em todo caso perigosa, a
94
defesa assumidamente política da bipolaridade pelo movimento negro
e por outros setores da mesma academia. Trata-se, em última
instância, de uma luta pelo poder – para reparti-lo, da parte dos que
contestam a classificação tradicional; para mantê-lo a todo custo, da
parte dos defensores do status quo. (Medeiros, 2004, p. 69), grifo no
original.
Os textos acima parecem demonstrar que, no embate por idéias e defesas
de posições, não há um genuíno desejo de conhecimento ou de verdade (por
ambas as partes), mas apenas um jogo de interesse, o desejo de poder. A defesa
da Ação Afirmativa, desse ponto de vista, parece sair da esfera da luta pela
Justiça, lançando-se na luta pelo poder. E isto se contrasta radicalmente com a
justificativa filosófica vista acima, da Justiça distributiva. Troca-se Justiça por
poder e Aristóteles por Nietzsche.
O autor acima não é infelizmente um caso isolado, pois a acusação de que
os opositores da Ação Afirmativa agem por motivos inconfessáveis para
perpetuar o status quo é bastante freqüente por parte dos defensores mais
militantes dos grupos anti-racistas no Brasil, geralmente ligados à visão bipolar
das relações raciais.
Outro exemplo dessa posição surge do texto do advogado Jayme
Benvenuto Lima Júnior (2001, p. 147): “A oposição às ações afirmativas – ou o
emprego da igualdade, na expressão canadense - só pode ser vista como uma
defesa em causa própria de grupos socialmente hegemônicos, descontentes com
os novos tempos.” Nessa mesma trilha, ainda que de maneira mais branda,
argumenta o professor de Antropologia da USP, Kanbengele Munanga (2004, p.
58):
Os que condenam as políticas de Ação Afirmativa ou as cotas em
favor da integração dos afro-descendentes utilizam de modo
especulativo argumentos que pregam o status quo, ao silenciar as
95
estatísticas que comprovam a exclusão social do negro. Querem
remeter a solução do problema a um futuro longínquo, imaginando,
sem
dúvida,
que
medidas
macroeconômicas
poderiam
miraculosamente reduzir a pobreza e exclusão social.
As cotas não serão gratuitamente distribuídas ou sorteadas, como
imaginam os defensores da “Justiça”, da “excelência” e do “mérito”.
Outros acadêmicos são ainda mais incisivos.
Após se utilizar da
expressão “racista” para denotar certos críticos da Ação Afirmativa o professor
de Antropologia da UnB, José Jorge de Carvalho (2003, p. 81) conclui:
Esse aluno branco da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
disse finalmente o que os acadêmicos brancos se recusam a dizer
diretamente: que nós, do grupo hegemônico, somos perfeitamente
conscientes da exclusão racial que reproduzimos e que a integração
racial que resultará das cotas implicará uma perda de nossos
privilégios.
Percebe-se pelos textos expostos acima a dicotomia entre a teoria e a
prática. De um lado, defende a necessidade moral da Ação Afirmativa como
medida de lídima Justiça, escorando-se em estatísticas que demonstram a
condição desprivilegiada do negro no país; e de outro, reconhecem abertamente
o jogo do poder. 34
Diante do exposto nessa seção, pode-se extrair um importante limite das
Ações Afirmativas, que está ligado à finalidade de suas políticas, que deve ser a
de promover o aperfeiçoamento da Democracia, através da busca da diminuição
das desigualdades sociais – em sentido lato, não apenas a desigualdade racial – o
34
Nietzsche (2006, p. 47-92) entende que a origem da moral provém de uma tentativa dissimulada de vontade de
poder. Procura demonstrar que os preceitos cristãos mais caros de compaixão, Justiça e amor ao próximo
formam um sistema sofisticado de dissimulação, nascido quando os cristãos eram uma minoria perseguida
durante o Império Romano. A moral, nesse sentido, dá ao mais fraco a possibilidade de superação, quando o
mais forte deixar ser julgado por ela. Esse processo é chamado pelo filósofo de transmutação dos valores. Não
há dúvidas que essa opinião do pensador alemão é fortemente objetável, mas há de se conceder que, em certas
situações, sua crítica parece ter um resquício de fundamento, quando a defesa da moral e Justiça serve de cortina
de fumaça para os objetivos de obtenção de poder político.
96
que é muito diferente de uma luta pelo poder. Os objetivos finais devem ser da
busca da igualdade e não da criação de uma confrontação racial importada, de
uma agenda política beligerante e aguerrida. Em poucas palavras, a finalidade
da Ação Afirmativa não deve ser a luta pelo poder político. Não se pode tentar
justificar as políticas afirmativas pela legítima necessidade de busca pela Justiça
distributiva, mas na prática, engajar-se em uma luta aberta pelo poder. Assim, é
oportuno lembrar o alerta do Constitucionalista Manoel Gonçalves Ferreira
Filho (1988, p. 27):
O imperativo do tratamento desigual aos que estão em situação
desigual na medida em que se desigualam impõe, por exemplo, ao
legislador o estabelecimento de leis especiais, que protejam
determinadas categorias. Para isso, editam-se leis destinadas a
amparar os economicamente fracos: os trabalhadores; os mal alojados;
os inquilinos, e assim por diante. Ocorre, porém, que a apreciação
dessas desigualdades que devem ser compensadas ou reparadas é
sujeita a critérios políticos.
Desse modo, certas minorias,
politicamente fortes, se avantajam, criando-se em seu benefício não
apenas regras que ponham termo a uma desigualdade, mas que, muitas
vezes, passam a beneficiá-las, de forma a torná-las verdadeiramente
privilegiadas. Está nisto, sem dúvida, um desvio...
5.3.
Diversidade e Multiculturalismo
A revolução tecnológica das comunicações, transportes e informática no
último quartel do século XX causou profundas modificações políticas no mundo
ocidental. O Estado Nação homogêneo e fechado dos séculos XVIII e XIX
passou a dar lugar a sociedades cada vez mais diversificadas, colocando em
cheque a identidade de Kulturnation, um povo definido pela sua cultura
(Habermas, 1994, p. 146). Essa nova dinâmica fez a Europa viver uma situação
que já acontecia nas Américas desde muito – a convivência nem sempre pacífica
de diferentes grupos raciais ocupando o mesmo espaço físico e político.
97
Nesse contexto, filósofos, sociólogos, juristas e outros pesquisadores
aprofundaram estudos sobre os fenômenos de sociedades culturalmente diversas,
matéria que veio a ser conhecida por multiculturalismo.
Para o filósofo
canadense Charles Taylor (1994, passim), um conhecido estudioso do assunto, o
multiculturalismo requer uma política de reconhecimento da diferença.
O
reconhecimento e a valorização da diferença obviamente não podem ser
confundidos com a violação do princípio da igualdade.
A igualdade, para
Taylor, é derivada da dignidade da pessoa humana (equal dignity), e não pode
ser compreendida como um rolo compressor que achate as peculiares diferenças
de cada cultura:
Com a política da igual dignidade, o que fica estabelecido deve
permanecer universalmente o mesmo, uma idêntica cesta de direitos e
garantias; com a política da diferença, espera-se que haja o
reconhecimento da identidade peculiar do indivíduo ou grupo, sua
distinção de todos os outros. O fato é que precisamente essa diferença
tem sido ignorada, atropelada e assimilada pela identidade majoritária
e dominante. E essa assimilação é um pecado capital contra a idéia de
autenticidade. (Taylor, 1994, p. 38) (tradução nossa).
Nesse aspecto particular, o multiculturalismo está estreitamente ligado ao
direito das minorias, mas este não pode ser confundido com a Ação Afirmativa,
pois as desigualdades sociais não estão ligadas apenas a minorias (caso do
gênero) e também nem todas as minorias necessitam de proteção (caso dos
orientais no Brasil, que ocupam uma posição privilegiada na educação e
trabalho), além das diferenças de objetivos.
A corrente do multiculturalismo é apontada pelo Ministro Joaquim
Barbosa Gomes (2001, p. 73-75) como uma das justificativas teóricas para a
Ação Afirmativa, uma vez que a ocupação de espaços públicos estratégicos,
como universidades e carreira civil pública, deve ser feita através de uma
política que assegure a diversidade cultural.
É importante lembrar que a
98
Constituição Federal também determina a proteção e a valorização das várias
identidades culturais no país, no seu artigo 215 e parágrafos seguintes, o que
está em harmonia com a teoria do multiculturalismo.
Conforme exposto no começo deste capítulo, nos EUA as duas primeiras
teorias de justificação da Ação Afirmativa, a teoria da reparação e a teoria da
Justiça distributiva, acabaram por dar lugar a uma terceira, a chamada teoria da
diversidade. Isto ocorreu porque a Suprema Corte norte-americana acabou por
optar pela promoção da diversidade como um interesse estatal cogente que
pudesse justificar o discrímen racial como fator de seleção para vagas em
universidades e cargos públicos. Essa opção pela diversidade, marcada pelo
voto do Ministro Powell no caso Bakke, foi anos depois confirmada e
consolidada pela própria Corte na análise dos casos da universidade de
Michigan.
A prevalência do entendimento do Ministro Powell e sua justificativa para
aplicação de políticas afirmativas deixou pelo menos duas importantes lições
para o entendimento da questão constitucional da Ação Afirmativa.
Em
primeiro lugar, conforme salientou o jurista Ronald Dworkin (2005, p. 460), o
Ministro Powell entendeu que a constitucionalidade de um programa de Ação
Afirmativa depende, além de sua estrutura, de sua finalidade. E a finalidade que
justificaria políticas afirmativas seria a diversidade em seu sentido amplo.
Dessa maneira, a Suprema Corte acabou revisitando entendimentos anteriores
que consideravam principalmente a teoria da reparação como fator que pudesse
ser suficientemente relevante para justificar o interesse cogente do Estado em
aprovar programas de preferências.
99
A segunda lição que se pode extrair da jurisprudência da Suprema Corte é
que a diversidade a ser alcançada e protegida pelo Estado não é estrita, mas
ampla.
A condenação das cotas raciais e sistemas de “duas pistas”, onde
determinadas minorias correm isoladamente do restante dos concorrentes, foi
aplicada porque esses sistemas não têm o condão de atingir a “verdadeira
diversidade”, esta entendida em sentido amplo, não apenas racial. Por essa
razão é que as universidades norte-americanas tiveram de ampliar o seu espectro
de beneficiados, para tentar alcançar uma diversidade ampla e múltipla, não
apenas se concentrando em apenas um tipo (a diversidade racial). E nesse
sentido se aplica o conceito de inconstitucionalidade por subinclusão
(underinclusion).
Como ensinam os professores de Direito Constitucional Jerome Barron e
Thomas Dienes, da Universidade George Washington (2003, p. 256), a teoria da
subinclusão ocorre quando uma lei não beneficia a todos aqueles que estão em
uma situação semelhante. Por essa razão, as políticas de inclusão acadêmica no
Brasil precisam ser amplas e abrangentes (como por exemplo, o sistema da
UERJ), evitando se fixar em apenas um critério de seleção. Esta é a crítica que
se faz ao movimento negro, que acaba por superenfatizar a questão racial, em
detrimento de outros critérios, como o sócio-econômico, por exemplo. A busca
da igualdade, feita nesses termos, fere a verdadeira diversidade.
Entretanto, a segunda lição apreendida acima, da necessidade de uma
ampla diversidade, pode ser aplicada ao caso brasileiro, porque os objetivos da
República não se limitam ao combate ao racismo, mas a promover o bem de
todos, e principalmente, a diminuir a desigualdade social, com a erradicação da
pobreza. Nota-se, portanto, que não há uma real oposição entre as teorias da
Justiça distributiva e da diversidade, na verdade, são complementares.
A
100
diversidade faz lembrar que os programas de políticas afirmativas devem ser o
mais abrangente possível, não podendo haver uma preferência por apenas um
tipo de beneficiados, conforme se verifica em alguns programas como, por
exemplo, o sistema de inclusão da Universidade de Brasília que focaliza única e
exclusivamente o fator racial.
101
6. A QUESTÃO CONSTITUCIONAL
As ações afirmativas, ao criarem critérios classificatórios para concessão
de determinados benefícios, sejam eles o acesso à educação ou ao trabalho,
levantam de imediato questionamentos de ordem constitucional. Isto ocorre
porque durante o longo processo de superação do ancient régime, a igualdade
entre os cidadãos foi um dos aspectos mais notáveis da luta contra o
Absolutismo durante as revoluções dos séculos XVII e XVIII na Europa.
A
concretização do ideal de igualdade tomou primordialmente a forma de antítese
dos privilégios, enfatizando a igual dignidade dos seres humanos, e a
conseqüente exigência da limitação do poder do Estado em editar normas que
discriminassem arbitrariamente os cidadãos (Silva Júnior, 2000, p. 123).
Na verdade, o cerne da idéia original de constitucionalismo vem, não
apenas da necessidade de limitar o poder do monarca ou do Estado, mas
igualmente da necessidade de eliminar os privilégios da aristocracia, reduzindo
todos igualmente à servidão da lei. Neste sentido, o professor Alexandre de
Moraes (2002, p. 76) escreve:
[...] a idéia de constitucionalismo [...] sempre esteve centrada em um
ponto fundamental: a necessidade de limitação e controle dos abusos
de poder do próprio Estado e de suas autoridades constituídas e a
consagração dos princípios básicos de igualdade e da legalidade como
regentes do Estado.
Esse conceito de igualdade que ocupou um grande espaço nos Estados
liberais dos séculos XVIII e XIX ficou mais conhecido pelo vocábulo isonomia,
por ser primordialmente a igualdade perante a lei, salientando principalmente o
aspecto formal de tratamento igualitário para condenar todas as formas de
102
discriminação. Este tem sido, portanto, o principal óbice levantado, ao menos
de início, às normas que instituem um tratamento diferenciado para certos
grupos de pessoas.
6.1.
Panorama do princípio da igualdade nas prévias Constituições brasileiras
Alusões à igualdade estão presentes desde a Constituição do Império, mas
obviamente seus significados são muito díspares.
O art. 179 dessa Carta
prescrevia que: A Lei será igual para todos..., mas as condições da sociedade
imperial demonstravam justamente o contrário. O império era marcado pela
desigualdade jurídica, econômica e social. Não havia sufrágio eleitoral, apenas
os homens de posse podiam votar e ser votados. Mulheres eram relegadas ao
papel de segundo plano, privadas de muitos direitos reservados apenas aos
homens.
Além de toda essa disparidade entre ricos e pobres, homens e
mulheres, vigorava o jugo da escravidão. Escravos não eram sujeitos de direito,
sendo considerados semoventes, exceção feita quando eles figuravam como réus
no direito penal (Silva Júnior, 2002, p. 8).
Conclui-se, portanto, que a pretensa igualdade na Constituição Imperial
apenas vigorava entre os privilegiados homens livres e dotados de poder
econômico. Entre estes a lei deveria dispensar um tratamento igual. Nesse
sentido, a Constituição do Império sequer alcançou o conceito real de isonomia,
ou de igual dignidade da pessoa humana.
Já na primeira Constituição Republicana, o conceito formal de isonomia é
conquistado, mas ainda com forte conteúdo antiabsolutista, demonstrando que o
princípio era entendido como um antagonismo aos ideais da nobreza. Isto se
nota claramente através da própria expressão textual do parágrafo segundo do
103
artigo 72: Todos são iguais perante a lei. A República não admite privilégio de
nascimento, desconhece foros de nobreza, extingue as ordens honoríficas
existentes e todas as suas prerrogativas e regalias, bem como os títulos
nobiliárquicos e de conselho. Nota-se no texto o forte contraste entre República
e Monarquia; hierarquia e cidadania; privilégio e isonomia. Entretanto, ao negar
o direito de voto aos analfabetos e mendigos (art.70), a Lei Maior, na prática,
relegou os escravos recém libertos a um plano inferior de cidadania (Silva
Júnior, 2002, p. 8).
A Constituição de 1934 foi a primeira a equiparar, de certa maneira, a
igualdade com a proibição de discriminações, ao incluir explicitamente vedações
de distinção entre sexo, raça, classe social e outras categorias em seu artigo 113
que trata da isonomia. Entretanto, o parágrafo sexto do capítulo 121, ao tratar
da imigração, faz menção à necessidade de garantia da integração étnica,
seguindo a política de tentativa de branqueamento da população. Obviamente,
este particular estava em confronto com as vedações à discriminação racial e
demonstrava ambigüidade na intenção do legislador.
As Cartas de 1937 e 1946 são sucintas em relação à igualdade, limitandose ambas à expressão: todos são iguais perante a lei, de onde se conclui a opção
dos legisladores pela tradicional isonomia, sem equiparar o princípio à vedação
à discriminação ou aumentar-lhe o conteúdo.
Por outro lado, nota-se que o
antagonismo à Monarquia e nobreza desapareceu por completo devido à
distância histórica dos acontecimentos.
As Constituições do período militar (1967 e 1969) retornam à equiparação
da igualdade com a proibição de discriminação, desta vez salientando de uma
104
maneira maior o preconceito de raça, determinando que tal conduta seria
passível de punição na forma da lei. É possível se inferir, dos dois textos
constitucionais dos militares que: (a) já havia uma preocupação com o
preconceito racial no país, e (b) a igualdade toma um conceito mais abrangente
que o mero aspecto formal de isonomia. A vedação à discriminação no mesmo
artigo que define a igualdade parece querer indicar que a igualdade não estava
limitada à isonomia, mas também ao tratamento social, de onde se pode perceber
a preocupação com a dignidade da pessoa humana.
6.2.
O Princípio da igualdade na Constituição Federal de 1988
A Constituição Federal de 1988 representou uma mudança fundamental
em relação às antigas Cartas Brasileiras. O novo texto estabelece logo de início
quais são os fundamentos e objetivos da República, dando assim um vetor
programático para a Lei Maior. Conforme observou o professor Raul Machado
Horta (2003, p. 65), a Lei Maior atual foi muito além do conteúdo clássico de
uma Constituição, entendido como a agenda mínima de organização dos
poderes, declaração de direitos e garantias de direitos individuais e a
competência de órgãos do Estado.
De igual modo é o ensino do renomado constitucionalista português José
Joaquim Gomes Canotilho (1994, p. 12), cuja influência se fez sentir de perto na
Constituinte. Para o jurista, uma Constituição deveria “aspirar a transformar-se
num plano normativo-material global que determina tarefas, estabelece
programas e define fins...”.
A definição de fins a serem alcançados e o
estabelecimento de programas para a obtenção desses fins na Constituição tornase a principal característica do que o mestre lusitano denominou de Constituição
Dirigente.
105
Diante dessa nova perspectiva, a igualdade na Constituição Federal de
1988 não está apenas reduzida ao conceito de isonomia, insulada em um artigo,
mas ocupa espaços em toda a Carta, conforme bem observou o constitucionalista
Celso Bastos (1999, p. 183): “a igualdade é, portanto, o mais vasto dos
princípios constitucionais, não se vendo recanto onde ela não seja impositiva”.
O texto constitucional ao estabelecer no artigo 3o os objetivos
fundamentais da República, quase todos ligados à promoção da igualdade, eleva
este princípio como a principal chave hermenêutica da própria Carta. Essa
posição de baldrame constitucional também é expressa pelo Egrégio STF:
O princípio da isonomia, que se reveste de auto-aplicabilidade, não é
– enquanto fundamental de nossa ordem político-jurídica – suscetível
de regulamentação ou de complementação normativa. (STF – Pleno –
MI no 58/DF Rel. p/ Acórdão Min. Celso de Melo, Diário da Justiça,
Seção I, 19/04/1991).
Dessa maneira, os objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil que são de construir uma sociedade justa e solidária, erradicar a pobreza
e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o
bem de todos, sem preconceitos ou discriminações vem a dar um sentido muito
mais amplo à igualdade do que apenas o aspecto isonômico. Dentro dessa nova
perspectiva, a igualdade assume uma outra característica, que ficou sendo
conhecida como o seu aspecto material que vai além do simples tratamento
equalitário perante a lei e também além da mera proibição da discriminação. A
igualdade torna-se um alvo a ser alcançado, um objetivo essencial da República.
Nesse sentido também assevera o Ministro Joaquim Barbosa Gomes
(2003, p. 40-41):
106
Vê-se, portanto, que a Constituição Brasileira de 1988 não se limita a
proibir a discriminação, afirmando a igualdade, mas permite, também,
a utilização de medidas que efetivamente implementem a igualdade
material. E mais: tais normas propiciadoras da implementação do
princípio da igualdade se acham precisamente no Título I da
Constituição, o que trata dos Princípios Fundamentais da nossa
República, isto é, cuida-se de normas que informam todo o sistema
constitucional, comandando a correta interpretação de outros
dispositivos constitucionais [...]
Se a igualdade jurídica fosse apenas a vedação de tratamentos
discriminatórios, o princípio seria absolutamente insuficiente para
possibilitar a realização dos objetivos fundamentais da República
constitucionalmente definidos.
Além desse aspecto básico e fundamental que o princípio da igualdade
tem no texto constitucional, ainda é possível entender a igualdade como um
direito fundamental e não apenas como um princípio. O espaço geográfico em
que a igualdade vem explicitamente definida no texto constitucional é um
indicativo incontestável desse aspecto, pois o princípio da igualdade é o portal
do consagrado artigo 5o, que trata sobre os direitos e garantias fundamentais, o
trecho de maior destaque e importância da Constituição Cidadã. Dessa maneira,
a igualdade alcança um papel muito maior do que uma vedação aos abusos do
Estado e também mais abrangente do que um princípio programático.
A
igualdade é um direito garantido.
6.3.
O Princípio da igualdade e a Ação Afirmativa
Feitas as considerações acima e acompanhando o desenvolvimento do
princípio da igualdade na história constitucional do país, que também teve
paralelo com o desenrolar do constitucionalismo nos países ocidentais, é
possível dizer que a igualdade em seu sentido contemporâneo vai muito além da
107
isonomia, sendo um princípio norteador da Constituição e também um direito
fundamental do cidadão. O seu conteúdo não é apenas negativo, de coibir a
discriminação, mas também positivo em garantir a equalização, de acordo com o
que observou o professor José Afonso da Silva: “Porque existem desigualdades,
é que se aspira à igualdade real ou material que busque realizar a igualização das
condições desiguais...”.
O curioso é que ambos, defensores e críticos da Ação Afirmativa,
utilizam-se justamente do mesmo instituto constitucional, quer para criticá-la ou
para defendê-la. O embate parece estar no fato de que críticos e defensores se
apegam a diferentes aspectos da igualdade.
Carl Cohen (2003, p.25), professor de filosofia na Universidade de
Michigan, conhecido crítico da Ação Afirmativa nos EUA, fundamenta suas
críticas justamente no aspecto formal da igualdade:
O princípio da igualdade certamente implica no seguinte: é errado,
sempre e em todo lugar, dar vantagens especiais a qualquer grupo
simplesmente baseando-se nas características físicas que não guardam
relevância com o benefício concedido ou com o gravame imposto.
Premiar ou castigar alguém utilizando o critério da cor da pele é
manifestamente injusto.
Os capítulos mais horrendos da história da humana – a abominável
escravidão dos negros, o genocídio dos judeus – nos fazem lembrar
que categorias raciais nunca devem ser permitidas como base para a
discriminação oficial. As nações que utilizaram distinções raciais em
suas leis devem se envergonhar disto. Nossa própria história é
irremediavelmente manchada por esse tipo de racismo. A lição deve
ser esta: nunca mais. Jamais novamente. (tradução nossa).
108
Por outro lado, o jurista Hédio Silva Júnior (2000, p. 150), pesquisador
dos aspectos jurídicos das relações raciais no país, destaca o outro aspecto da
igualdade como justificativa da Ação Afirmativa:
Certo é que, seja traduzindo-se em regras proibitivas de condutas
discriminatórias injustas, seja prescrevendo discriminação justa, o
princípio da igualdade passa a encerrar não apenas um novo conteúdo
semântico, mas especialmente uma nova concepção do papel do
Estado, exigindo-lhe a adoção de políticas e programas capazes de
traduzir a igualdade formal em igualdade substantiva.
Em conclusão, não poderíamos deixar de mencionar o fato de que, ao
consignar o princípio da promoção da igualdade, o sistema
constitucional brasileiro resgata e positiva o princípio aristotélico de
Justiça distributiva, segundo o qual a Justiça implica necessariamente
tratar desigualmente os desiguais, ressalvando que tratamento
diferenciado não se presta a garantir privilégios, mas sim possibilitar a
igualização na fruição de direitos.
O pensamento do ilustre jurista acima está em consonância com o que já
foi discutido no capítulo anterior, tomando a Justiça distributiva como uma das
bases teóricas da Ação Afirmativa. Entretanto, o texto acima vai um pouco mais
longe ao atribuir a Constituição Federal essa concepção de Justiça. A única
objeção que pode ser feita ao texto, é que o tratamento desigual dispensado aos
desiguais precisa ser feito na proporção da sua desigualdade, uma questão aqui
omitida, mas que será mais bem analisada abaixo.
Considerando ambas as posições antagônicas acima, poder-se-ia argüir se
os dois aspectos da igualdade (formal e material) estão em contradição no
mesmo instituto e se algum aspecto tem primazia sobre o outro. Não é possível
conceber que dois aspectos de uma mesma idéia sejam contraditórios. Se assim
fosse, o conceito de igualdade seria algo conflitante, perdendo sua força
impositiva. Tampouco se pode aceitar o fato de que o aspecto material da
igualdade suplantou o formal, por ser um desenvolvimento mais recente. Uma
saída para a questão seria admitir que os dois aspectos da igualdade são duas
109
faces da mesma moeda e ambas são complementares. Os dois aspectos não
geram uma antinomia e são ambos acolhidos pelo texto constitucional, conforme
também ressalta Fernanda Lucas da Silva (2003, p. 75):
Portanto, o mandamento constitucional da igualdade tanto abriga a
igualdade formal, vedando a criação de privilégios por adoção de
tratamento diferenciado desarrazoado; bem como abriga a igualdade
material, autorizando a adoção de discriminações positivas, que
incidindo na relação fática e concreta entre as pessoas busca efetivar
uma igualdade real.
Dessa maneira, um aspecto pode ser utilizado para complementar e
regular o outro, conforme o constitucionalista Manoel Gonçalves Ferreira Filho
(2003, p. 75) sugeriu: “... a regra é a isonomia, a diferenciação, a exceção”.
O que parece transparecer do contraste dos dois aspectos da igualdade é
que existem limites para a aplicação da igualização que é o principal objetivo da
Ação Afirmativa. Esses limites, estabelecidos pela isonomia e outros princípios
constitucionais, serão estudados na próxima seção.
6.4.
Limites constitucionais da Ação Afirmativa.
Como ficou demonstrado acima, o princípio da igualdade evoluiu de seu
simples aspecto formal de isonomia para um conceito muito mais amplo,
chegando próximo ao conceito de Justiça distributiva. A Justiça distributiva
autoriza o tratamento desigual em certas circunstâncias, justamente com a
finalidade de obter a real igualdade, ou seja, quando existe um fim racional ou
justificável para tanto. Entretanto, embora houvesse essa evolução, a isonomia
ainda mantém a sua validade e não é suplantada pelo aspecto material da
110
igualdade, antes, complementa-a. Também se faz necessário enfatizar que a
igualdade material tem seus limites, alguns deles sendo até implícitos no
conceito Justiça distributiva, pois se permite tratar os desiguais, desigualmente,
apenas na proporção em que se desigualam.
As diferenciações paradoxalmente permitidas pelo Direito para se atingir
a real igualdade passam pela via prática das classificações e estas são uma
ferramenta para estabelecer diferenciações que servem para corrigir as inJustiças
ou a desigualdade.
Nesse mesmo sentido explicam os professores Jerome
Barron e Thomas Dienes (2003, p. 252), da Faculdade de Direito da
Universidade George Washington:
Mas, qual é a natureza do direito à proteção da igualdade? A Cláusula
não pode ser a proscrição contra classificações legais porque o
tratamento diferenciado de pessoas e coisas que não se encontram na
mesma situação é essencial ao ato legislativo. Homens e mulheres,
adultos e crianças, estrangeiros e cidadãos não precisam
necessariamente ser tratados de igual maneira sob a lei. Mas, também
é claro que essas classes não podem ser tratadas diferentemente de
modo arbitrário. A resposta da [Suprema] Corte tem sido que a
classificação legal deve ser razoável em relação aos objetivos da lei.
(tradução nossa).
No Brasil, a exemplo do que ocorre nos EUA, classificações têm de ser
postas à prova para se verificar uma eventual quebra da isonomia e conseqüente
inconstitucionalidade.
Entretanto, existe certa variação do padrão norte-
americano para verificação de constitucionalidade em casos como estes,
conforme observou Paulo Lucena de Menezes (2006, p. 132). Enquanto no
Direito norte-americano um interesse do Estado precisa ser suficientemente forte
e racional para justificar uma desigualação, a Constituição Federal brasileira já
traz em seu texto os pressupostos que autorizam, por parte do Estado,
determinadas distinções entre os cidadãos.
Essas distinções são parte das
111
diretrizes e metas constitucionais, os objetivos da República, encontrados nos
artigos vestibulares da Lei Maior, conforme estudados na seção anterior.
Embora no direito pátrio não seja necessária a identificação de um
interesse Estatal especial para justificar uma desigualação, ainda assim as
classificações devem obedecer a uma finalidade justificável pelo direito.
Entretanto, não basta apenas que a finalidade das classificações seja justificável,
mas também é necessário que a aplicação prática da diferenciação obedeça a
certos critérios para que esta não venha a ferir a isonomia ou outros princípios e
regras constitucionais.
A discussão então flui para a questão dos critérios
utilizados para verificar se a diferenciação e suas aplicações práticas se limitam
aos ditames constitucionais.
Paulo Lucena de Menezes (2006, p. 127) indica alguns critérios como:
(a) a escolha do fator de desigualação (classificações);
(b) a relação existente entre esse fator de desigualação e a diferença
estabelecida no tratamento normativo;
(c) a pertinência constitucional e a observância da proporcionalidade.
A aplicação desses três itens traria um método seguro para a verificação
da constitucionalidade de diferenciações estabelecidas de maneira a alcançar a
igualdade material.
Por outro lado, o constitucionalista Manoel Gonçalves Ferreira Filho
(2003, p. 75-76), quando trata especificamente dos limites constitucionais da
Ação Afirmativa, aplica elegante e didaticamente um processo de exame que
envolve algumas regras:
112
(a) Regra da objetividade: os grupos favorecidos têm de ser objetivamente
determinados;
(b) Regra da proporcionalidade: o benefício concedido tem de guardar
proporção à situação de desigualdade a ser corrigida;
(c) Regra da adequação: os métodos utilizados devem ser razoáveis;
(d) Regra da finalidade: o fim das normas propondo políticas afirmativas
deve ser o alcance da igualdade.
(e) Regra da temporariedade: as aplicações da Ação Afirmativa devem ser
temporárias. Se ao final de certo tempo, elas não surtirem efeito, afetarão a
regra da razoabilidade.
Já a Procuradora do Distrito Federal, Roberta Fragoso Menezes
Kaufmann (2006, p. 27), em uma dissertação sobre Ações Afirmativas no Brasil,
prefere destacar que o princípio da igualdade não é limitador de programas que
envolvam diferenciações, mas o princípio da proporcionalidade deve ser
aplicado como método de verificação de constitucionalidade em cada caso
concreto.
Ao destacar a proporcionalidade como a pedra de toque da
constitucionalidade de políticas afirmativas e princípio regulador da igualdade, a
ilustre autora destaca que a norma deve ser aplicada com base em seus
subprincípios, de acordo com a doutrina alemã:
(a) Subprincípio da conformidade ou adequação aos meios, no qual o
critério de diferenciação utilizado tem de ser apropriado para concretização do
objetivo visado;
113
(b) Subprincípio da exigibilidade, que preconiza que a medida não deve
extravasar os limites da consecução dos objetivos determinados, procurando
sempre o meio menos gravoso para atingir as finalidades propostas;
(c) Subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito, também
chamado de regra da ponderação. Mediante esse subprincípio, perquire-se se os
resultados obtidos pela política afirmativa são proporcionais à intervenção
efetuada por meio de tais medidas. Pondera os valores em jogo, de um lado a
necessidade dos beneficiários e de outro lado o gravame imposto aos demais
cidadãos.
Há pouca variação entre os três métodos acima propostos. Na verdade
ocorre uma grande sobreposição dos três, sendo que o cerne da questão dos
limites parece estar efetivamente na questão da proporcionalidade e
razoabilidade. Com base nos três métodos propostos, pretende-se aqui analisar
com um pouco mais de profundidade algumas regras de verificação de limites: a
proporcionalidade, a razoabilidade e a objetividade.
6.4.1. A proporcionalidade como limite constitucional
Conforme já mencionado, a proporcionalidade é inerente ao princípio da
Justiça distributiva, baseada na igualdade, portanto, é a regra de aferição
principal para definir se uma diferenciação levada a cabo pode estar em
conformidade com o Direito e com a Constituição.
Na verdade, a proporcionalidade, como princípio constitucional regulador
é de capital importância para regular o próprio princípio da igualdade e
balancear os direitos fundamentais, como lembra o constitucionalista Paulo
114
Bonavides (2006, p. 434): “... o princípio da proporcionalidade é hoje axioma do
Direito Constitucional, corolário da constituição e cânon do Estado de direito...”.
Nessa mesma trilha de entendimento, Eduardo Slerca (2002, p. 89) ensina
que o “princípio da proporcionalidade traduz a própria idéia de Justiça na
resposta aos casos de colisão de direitos fundamentais, quando o intérprete
deverá aplicar a ponderação de bens...” e mais tarde conclui que o princípio “é
essencial para a realização da ponderação de interesses constitucionais...” (grifo
no original). Dessa forma, o princípio da proporcionalidade serve como um
moderador quando direitos fundamentais estão em aparente conflito. Políticas
afirmativas têm a característica de fazer emergir justamente esses conflitos, ao
criar diferenciações. De um lado, existe o direito do beneficiado à igualdade
material e de outro lado há também o direito fundamental do preterido de não
ser discriminado desarrazoadamente.
A doutrina alemã consagrou a divisão do princípio da proporcionalidade
em três subprincípios (Bonavides, 2006, p. 396 - 97). Esses subprincípios são,
na verdade, uma técnica de aplicação da proporcionalidade aos casos concretos,
conforme bem observou Slerca (2002, p. 94). A seguir, far-se-á o uso dessa
técnica para tentar melhor entender os limites que as políticas de diferenciação
possam ter.
6.4.1.1. Conformidade ou adequação aos meios
Esse subprincípio faz lembrar que os meios a serem utilizados são de
grande importância. Conforme foi observado na Introdução deste estudo, uma
boa parte dos defensores da constitucionalidade da Ação Afirmativa, muitos
115
citados nesta pesquisa, limitam suas teses à teoria, justificativa e objetivos do
instituto e acabam por olvidar ou omitir a aplicação prática. A lógica parecer ser
esta: a Constituição autoriza diferenciações justas, logo, as cotas raciais são
constitucionais.
35
O problema é que a aplicação prática e escolha do meio a ser
utilizado são um fator importante que está além do aspecto meramente teórico.
Dessa maneira, o subprincípio da adequação dos métodos exige que a
escolha deles seja feita em consonância com a realidade na qual se insere a
prática. A importação de modelos estrangeiros sem a devida contextualização
vai de encontro a esse mandamento.
Um exemplo bastante prático de
inadequação dos métodos utilizados é a desconexão entre os beneficiários da
norma e as estatísticas oficiais disponíveis.
Essa questão foi abordada em capítulos anteriores, mas se refere ao fato
de que algumas normas que estabelecem programas de Ação Afirmativa
utilizam classificações raciais bipolares e não respeitam a classificação oficial
do IBGE. Os exemplos citados da Universidade de Brasília e as Universidades
Estaduais do Rio de Janeiro tendem a aplicar classificações que não
correspondem às oficiais, de maneira a conformá-las com questões ideológicas
que são estranhas à realidade brasileira. Assim, normas que definem sistemas de
preferência, sejam eles cotas ou bônus, devem adotar a classificação racial
oficial brasileira, respeitando principalmente o pardo como identidade
autônoma.
35
Como um exemplo, referimos ao estudo do pesquisador Sandro César Sell (2002, p. 36 –50). O autor
persegue uma análise profunda do princípio da igualdade para chegar à conclusão de que ele não ilide programas
de ação afirmativa. Entretanto, passa da teoria à prática sem mencionar outros princípios reguladores da
igualdade, como a proporcionalidade e razoabilidade. Dessa maneira, salta-se da conclusão que Ação
Afirmativa é abarcada pela Constituição Federal para justificar quaisquer meios de aplicação desta, em especial
as cotas raciais. Infelizmente este não é um caso isolado.
116
Os meios também devem ser eficazes para conseguir seus objetivos.
Além de serem eficazes devem também contemplar possíveis efeitos não
desejáveis que eventualmente podem ser trazidos por medidas aplicadas. Nos
dois primeiros capítulos deste estudo, ficou demonstrado que as cotas raciais
muitas vezes produzem efeitos não esperados, conforme atestou Thomas
Clarence, um antigo beneficiário da Ação Afirmativa e hoje Ministro da
Suprema Corte norte-americana atestou.
36
O Ministro denuncia o estigma
criado pelas cotas que pode afetar até mesmo àqueles beneficiados que não
necessitariam de proteção em condições normais, tornando-se um método que
acaba por prejudicar em vez de auxiliar. Daí a sua não conformação com o
subprincípio da adequação.
6.4.1.2. Exigibilidade de meios menos gravosos
Esse subprincípio encontra paralelo com o conceito norte-americano que
exige que os programas racialmente diferenciados sejam narrowly tailored
(restritivamente traçados), de maneira a causar o menor dano possível aos
direitos fundamentais dos preteridos e o menor prejuízo possível à sociedade.
Desse modo, o legislador deve ponderar os meios disponíveis para se chegar a
determinado fim e escolher aquele que seja menos gravoso e provoque menor
impacto na comunidade. Nas palavras de Paulo Bonavides (2006, p. 397), “... de
todas medidas que igualmente servem à obtenção de um fim, cumpre eleger
aquela menos nociva aos interesses do cidadão, podendo assim o princípio da
necessidade (Eforderlichkeit) ser também chamado da escolha do meio mais
suave...”.
36
Cf. item 3.6 acima.
117
As cotas raciais, da maneira como têm sido implantadas em muitas
universidades públicas no Brasil, reservando um número extremamente elevado
de vagas, certamente não conseguem passar ilesas por esse critério. O forte
impacto na opinião pública, o número elevado de questionamentos judiciais e a
indelével controvérsia parecem ser evidência mais do que suficiente para
comprovar que o método escolhido é excessivamente gravoso, principalmente
porque existe uma gama de outros métodos menos beligerantes disponíveis.
Vale ressaltar aqui que as cotas raciais têm sido, conforme já demonstrado
em capítulos anteriores, o método de escolha para aplicação das Ações
Afirmativas no Brasil, ignorando, não apenas a experiência histórica dos EUA,
mas também outros métodos menos gravosos, como a aplicação de bônus ou
sistema de metas.
Ousa-se aqui produzir uma explicação da razão dessa
insistência em métodos ultrapassados e aguerridos. A estratégia do movimento
negro no país que tem uma participação ativa na maioria dos programas de
implantação de cotas tem sido a de confrontação aberta com o que consideram
ser a “elite branca”.
37
As cotas raciais e seu forte impacto na sociedade fazem
com que os objetivos políticos do movimento sejam mais bem alcançados, não
apenas gerando cobertura de mídia, como também exacerbando a confrontação
almejada.
Entretanto, esses métodos acabam por produzir um excessivo
gravame, não apenas aos preteridos como à sociedade em geral, pelas seguintes
razões:
(a) Geram uma avalanche de questionamentos judiciais;
(b) Levam ao aumento da tensão racial, conforme foi verificado em outros
países. 38
37
Cf. p. 39..
Thomas Sowell (2004, passim) observa que, em todos países que seu estudo analisou, o aumento da tensão
racial foi nitidamente sentido com aplicação de cotas e sistemas de preferência. No Sri Lanka foi inclusive uma
das razões de guerra civil.
38
118
(c) Criam muitas vezes estigmas aos beneficiários;
(d) Interferem no sistema de mérito e qualidade de ensino.
6.4.1.3.
Proporcionalidade em sentido estrito
Esse subprincípio se refere à ponderação necessária entre os valores dos
beneficiados e preteridos. As diferenciações que estabelecem programas de
Ação Afirmativa devem ser proporcionais à desigualdade que pretendem
reparar. A aplicação desse princípio pode ser observada em casos práticos,
incluindo os estudados nos capítulos anteriores. Critérios raciais quando são
aplicados independentemente de critérios sócio-econômicos tendem a infringir a
proporcionalidade em sentido estrito. Isto se dá porque o benefício concedido a
determinados beneficiários pode ir além da necessidade para se estabelecer a
igualdade, criando um verdadeiro privilégio.
Esse é o caso da Universidade de Brasília que estabelece cotas raciais
independentemente da condição socioeconômica do beneficiado. Assim, pretos
ou pardos de classe média ou mesmo alta39, podem vir a se beneficiar das cotas
em detrimento de brancos e amarelos pobres, ferindo a igualdade de maneira
letal.
Conforme o constitucionalista Celso Ribeiro Bastos (1999:182) bem
observou: “Toda vez que uma lei perde o critério da proporcionalidade ela
envereda pela falta de isonomia”. Para se evitar lancear a isonomia, programas
de Ação Afirmativa racialmente diferenciados devem sempre incluir também
39
Cerca de 12% dos 1% mais ricos do Brasil são negros ou pardos segundo a Síntese de Indicadores Sociais
IBGE: Rio de Janeiro, 2003, p. 263. Embora a pesquisa do IBGE demonstre que há grande desigualdade entre
brancos e, pretos e pardos, no que tange a distribuição de renda, há uma população substancial de pretos e pardos
com grande poder aquisitivo e um grande contingente de classe média também que não pode ser desprezado.
Esses seriam os maiores beneficiários de um sistema de cotas raciais que não leve em consideração o aspecto
sócio-econômico.
119
critérios socioeconômicos de maneira a respeitar a proporcionalidade, porque no
Brasil o alto nível de pobreza não está restrito aos pretos e pardos. Há 19
milhões de brancos pobres no país que não podem ser preteridos em sistemas de
Ação Afirmativa.
6.4.2. A Razoabilidade como limite constitucional
O princípio da razoabilidade tem sido muitas vezes confundido com o
princípio da proporcionalidade analisado acima. Embora os dois princípios
sejam semelhantes e muitas vezes se sobreponham, a melhor doutrina faz
distinção entre ambos (Slerca 2002, p. 81). É fato que o princípio da
razoabilidade tem origem na doutrina e jurisprudência norte-americanas,
enquanto que o princípio da proporcionalidade tem sido mais aplicado na
Europa, em especial na Alemanha (Slerca, 2002, p. 9-10). Entretanto, existem
certas diferenças que justificam sua distinção.
O princípio da razoabilidade é derivado do historicamente consagrado
conceito due process of law, que encontra paralelo na Constituição pátria no seu
artigo 5o, inciso LIV. Ensina Eduardo Slerca (2002, p. 41) que esse princípio
tem o objetivo de assegurar que as leis sejam em si razoáveis, ou tenham
resultados ou finalidades igualmente razoáveis. Portanto, sua aplicação é mais
voltada aos atos legislativos, do que ao controle de atos administrativos.
A presença do princípio da razoabilidade se faz sentir em várias leis,
como, por exemplo, na vedação de tributos de caráter expropriatório, na teoria
da imprevisibilidade dos contratos, na limitação de valores exorbitantes para
multas e fiança, etc. A idéia básica do princípio é que as leis não devem impor
120
ao cidadão obrigações impossíveis ou de difícil cumprimento, em outras
palavras, exigem razoabilidade. A razoabilidade também deve ser entendida
como uma medida de sabedoria e bom senso.
As normas que instituem políticas afirmativas devem, portanto, ser
razoáveis, no sentido de não criarem situações absurdas ou obrigações de difícil
ou oneroso cumprimento.
Nos casos examinados neste estudo, é possível
observar que quando as reservas de vagas são implantadas em um percentual
alto, desacompanhadas de uma exigência de nota mínima para o ingresso,
propicia-se a entrada de alunos que não estão preparados para o ensino superior.
Esse foi o caso da UERJ estudado acima.
Candidatos com notas pouco
superiores a zero foram admitidos, enquanto outros candidatos bem preparados
foram deixados de fora por causa da cor de sua pele.
40
Resultados como estes
são exemplos da falta de razoabilidade, creditados a leis mal formuladas que
falharam em enxergar fatos no mínimo previsíveis.
O que parece estar bem claro neste estudo é que leis que determinam
medidas simplistas e inflexíveis com o intuito de promover a inclusão
acadêmica acabam por criar mais problemas em vez de trazer soluções que
sejam razoáveis e aceitáveis pela sociedade. Normas que instituam programas
afirmativos devem ser amplas e abrangentes para não privilegiar um grupo
específico (subinclusão), devem ter múltiplos critérios (não apenas raciais) para
não preterir pessoas carentes economicamente e devem ter salvaguardas (como
notas mínimas de corte) para que impeçam o ingresso a candidatos com pouco
ou nenhum preparo. Este último item também parece ser uma exigência do
artigo 208, V da Constituição Federal. Em suma, esses requisitos a programas
de Ação Afirmativa são uma exigência da razoabilidade, mas infelizmente
40
Cf. p.62.
121
poucos sistemas de acesso à universidade no Brasil parecem atualmente se
adequar a eles.
6.4.3. A Objetividade como limite constitucional
Conforme afirmou o constitucionalista Manoel Gonçalves Ferreira Filho
(2003, p. 75), a identificação dos beneficiados em programas de Ação
Afirmativa deve ser objetiva. Não podem ser definidos por padrões arbitrários
ou conceitos imprecisos. À primeira vista, este parece ser um quesito de fácil
conformidade.
Entretanto, quando se implantam programas racialmente
diferenciados no Brasil, um país onde a miscigenação foi muito grande, esse
critério parece se tornar um desafio.
Em primeiro lugar, é preciso ressaltar que a definição dos beneficiados
tem de ser objetiva, segundo critérios oficialmente aceitos. Por isso, novamente
insiste-se que a terminologia da norma deve obedecer aos critérios estatísticos
oficiais, evitando neologismos como afrodescedentes e outras classificações não
contempladas oficialmente.
Em segundo lugar, reprise-se que, como foi amplamente demonstrado
acima, tanto a Genética como a Antropologia não podem trazer subsídios a
critérios de classificação racial exógena. A questão da ascendência é de pouca
ajuda, porque além de ser um critério que utiliza padrões biológicos para
classificação racial (contrário à ciência moderna), mostra ser de pouca valia para
o caso brasileiro, uma vez que 87% da população têm marcadores genéticos
africanos.
122
Portanto, para se aferir um mínimo de objetividade na definição dos
favorecidos nos programas racialmente definidos, o critério utilizado deve
obedecer a duas exigências: (a) utilizar a classificação de cor (racial) dos órgãos
oficiais e (b) utilizar o critério de autodeclaração, como exige a moderna
antropologia. Sistemas de classificação e/ou verificação racial exógenos não são
científicos e não podem atingir o critério da objetividade.
Entretanto, ao seguir as duas exigências acima, alguns programas, como
os que implantam cotas, por exemplo, podem também transgredir a
razoabilidade, por apresentarem grande dificuldade em coibir fraudes.
Um
programa que seja facilmente burlado não é razoável porque não produz os
resultados esperados, perdendo assim seu objeto.
Esse é o dilema já
mencionado da implantação de cotas raciais no Brasil que não logrou uma fácil
contextualização: ou se escolhe quebrar a objetividade ao implantar sistemas de
verificação exógena (“tribunais raciais”) ou se opta por sistemas de
autodeclaração que são facilmente burláveis.
Por fim, é importante lembrar que outros dois aspectos que poderiam ser
explorados como limites constitucionais seriam a temporalidade como elemento
essencial às Ações Afirmativas e a finalidade dos programas. Entretanto, esses
dois itens já foram tratados de uma maneira já extensa nos capítulos anteriores e
seria desnecessário repeti-los nesta seção. Mas, pode-se ao menos ressaltar o
fato de não se ter conseguido identificar um único programa de Ação Afirmativa
hoje no país com caráter temporário. Não há na sua instituição, quer por norma
jurídica ou por norma interna, nenhuma alusão à temporalidade, embora esta
faça parte, muitas vezes, da justificativa teórica do instituto.
123
6.5.
A Educação na Constituição Brasileira
A educação no Brasil é um tema vastíssimo e não se pretende aqui entrar
em aspectos abrangentes do assunto, pois isto seria sair dos limites da pesquisa.
Entretanto, cumpre ressaltar que programas de Ação Afirmativa que visem à
inclusão acadêmica têm implicação na educação conforme entendida na
Constituição Federal e aqui se pretende apenas salientar alguns aspectos
pontuais.
A Constituição Federal adota diferentes critérios para diferentes níveis de
ensino no país, ao dispor sobre o assunto no artigo 208. O ensino fundamental é
obrigatório e dever do Estado. Para o ensino médio, o legislador constitucional
designou uma norma programática, ao instituir uma progressiva universalização.
Entretanto, para o ensino superior, o critério é a “capacidade de cada um”. A
universidade não é, portanto, para todos, conforme a atual mensagem que o
governo federal tenta alardear. De fato, nenhum país do mundo promete a
universalização do ensino superior, por ser essa uma medida desnecessária e
inalcançável. Isto obviamente não significa que o ensino superior deva ser
reservado a uma elite racial ou econômica. Entretanto, o acesso à universidade
não pode ser confundido com a erradicação da pobreza. A entrada aos níveis
superiores de ensino deve ser feita segundo a capacidade do candidato.
Dessa maneira, programas que pretendam popularizar o acesso acadêmico
precisam necessariamente se preocupar com a capacidade e preparo de
candidatos. Sistemas de seleção devem levar a capacidade em consideração por
ser um mandado constitucional. Nesse sentido, comenta Celso Bastos (1990, p.
543):
124
Ao instituir a garantia de acesso aos níveis mais elevados de ensino,
da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um, o
constituinte brasileiro visou à valorização do respeito à
individualidade de cada um, separando-se assim do conceito de uma
educação rígida e aproximando-se de uma educação mais liberal, que
proporciona a todas as pessoas prosseguirem nos estudos tendo como
único requisito a capacidade.
Outro aspecto importante do tratamento constitucional à educação é
referente ao processo de seleção.
O artigo 206, I impõe a igualdade de
condições para a permanência e acesso na escola. Certamente isto deve ser
feito em todos os níveis de ensino, incluindo o superior. A questão da igualdade
de condições na seleção pode remeter à discussão sobre a igualdade em seus
dois aspectos, formal e material. Pode-se perfeitamente aqui alegar isonomia,
mas também a necessária diferenciação para atingir a verdadeira igualdade. O
importante é ressaltar que a igualdade de condições deve ser concedida a todos.
Isto significa que programas de acesso acadêmico precisam ser tão abrangentes
quanto possível. Repete-se aqui a questão da vedação à subinclusão.
Como os assentos em universidades públicas são escassos e muito
inferiores à demanda, os processos de seleção são altamente disputados. Tornase claro, então que, ao tentar beneficiar um grupo, outros grupos podem perder.
Se o grupo beneficiado é o único desprivilegiado, não há violação da isonomia.
Ocorre que isso não corresponde à realidade brasileira. A exclusão não atinge
apenas um grupo, mas vários. Portanto, programas que optam por critérios
únicos, como o racial, por exemplo, não cumprem o mandamento constitucional
de estabelecer igualdade de condições.
Cidadãos carentes, brancos, amarelos ou nordestinos, por exemplo,
estarão em uma posição muito desprivilegiada na arena competitiva de um
125
processo seletivo se o critério de política afirmativa apenas se basear na cor.
Nesse sentido, convém lembrar o artigo 3o da Constituição Federal que
estabelece os objetivos da República de maneira a alcançar uma sociedade justa
e solidária, para todos e não apenas para algumas determinadas minorias.
Por fim, chamamos atenção a outro artigo da Lei Maior que merece
atenção. Trata-se do artigo 207:
As universidades gozam de autonomia didático-científica,
administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao
princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.
Visível é nesse artigo a autonomia da universidade, não apenas na área
didática, mas também administrativa e de gestão financeira. Dessa maneira, o
Projeto de Lei Federal 3.627/04 que institui reserva de vagas para acesso a
universidades, analisado acima, parece ferir a autonomia universitária, afinal o
processo de seleção está na esfera administrativa de autonomia.
Sendo a
autonomia um mandamento constitucional, a Lei Federal que tenta sua
diminuição
está
inexoravelmente
eivada
de
inconstitucionalidade.
Universidades públicas precisam escolher suas próprias estratégias de aplicação
da igualdade em seus processos de seleção e a tentativa de impor leis que
interfiram nessa liberdade violam a autonomia constitucional.
126
7.
CONCLUSÃO
A extensiva abrangência que a Constituição Federal de 1988 concedeu ao
princípio da igualdade autoriza, sem dúvidas, a adoção de políticas afirmativas
no país.
Essa questão tem sido cada vez mais pacificada pela doutrina
constitucional pátria e começa a ganhar terreno também no Judiciário.
Entretanto, o que se desejou demonstrar neste estudo é que os problemas de
constitucionalidade das Ações Afirmativas estão muito mais ligados à sua
aplicação prática e não ao seu embasamento teórico.
Infelizmente não se tem dado a devida atenção aos métodos e estes são de
capital importância. Ao mimetizar métodos utilizados alhures, sem a devida
contextualização à realidade brasileira, o instituto corre o risco de cair em
descrédito, além de arranhar importantes princípios constitucionais como a
proporcionalidade, a razoabilidade e a autonomia universitária.
Assim, a
discussão deve sair da teoria para a prática, da justificativa para os métodos, do
confronto para o compromisso.
Além da dualidade da teoria e da prática das Ações Afirmativas, outro
importante aspecto é a sua finalidade. Ações afirmativas têm como resultado
uma redistribuição de caráter político e econômico e, portanto, não se podem
menosprezar os interesses e jogo de poder envolvidos por trás disto.
É
particularmente interessante notar que ONGs em vários Estados da União
passaram a ocupar um amplo espaço, não apenas na discussão teórica (que seria
plenamente justificável, como parte da sociedade civil), mas também na
participação ativa na implementação das medidas.
127
As ONGs acabaram por se imiscuir em órgãos públicos, tomando
inclusive uma grande parte do poder decisório dentro das universidades em
relação aos processos de seleção. Nota-se que, independentemente de ser essa a
intenção inicial, a “luta” pela Ação Afirmativa acabou por conceder a certas
ONGs uma parcela considerável de poder. A questão da legitimidade desse
poder exercido inclusive em concursos públicos de grande porte é uma matéria
que ultrapassa os limites da pesquisa. Entretanto, é importante ressaltar que a
finalidade das políticas afirmativas deve estar em consonância com os objetivos
fundamentais da República, conforme enumerados nos primeiros artigos da
Magna Carta. Ação afirmativa não pode, portanto, se constituir de uma agenda
política de determinados grupos com vistas à obtenção de poder.
A insistência nas cotas raciais como principal via de aplicação das Ações
Afirmativas, desprezando toda a experiência histórica de outros países e seus
efeitos colaterais indesejados, pode ser em grande parte creditada a uma agenda
política bem definida de grupos de pressão que optam pela via da confrontação
racial. Escolhe-se o meio mais gravoso e mais agressivo porque este faz parte
da lógica da confrontação. Críticos das cotas são rapidamente identificados
como defensores de interesses próprios inconfessáveis ou militantes reacionários
a serviço do status quo. Essa linha de atuação perseguida por certos grupos
militantes anti-racistas certamente não se coaduna com os objetivos justificáveis
da Ação Afirmativa e tampouco com os fins republicanos de construir uma
sociedade livre, justa e solidária.
128
8.
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