UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE RUBEN MARCOS SEIDL DA AÇÃO AFIRMATIVA COMO POLÍTICA DE INCLUSÃO ACADÊMICA E SEUS LIMITES CONSTITUCIONAIS SÃO PAULO 2007 2 RUBEN MARCOS SEIDL DA AÇÃO AFIRMATIVA COMO POLÍTICA DE INCLUSÃO ACADÊMICA E SEUS LIMITES CONSTITUCIONAIS Dissertação apresentada à Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito Político e Econômico. Orientadora: Prof. Dra. Monica Herman Salem Caggiano. SÃO PAULO 2007 3 RUBEN MARCOS SEIDL DA AÇÃO AFIRMATIVA COMO POLÍTICA DE INCLUSÃO ACADÊMICA E SEUS LIMITES CONSTITUCIONAIS Dissertação apresentada à Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito Político e Econômico. Aprovada em: ____ de __________________ de 2007. BANCA EXAMINADORA Prof. Dra. Monica Herman Salem Caggiano Universidade Presbiteriana Mackenzie Prof. Dr. José Carlos Francisco Universidade Presbiteriana Mackenzie Prof. Dr. Manoel Gonçalves Ferreira Filho Universidade de São Paulo 4 A: Arthur Johann Alfred Seidl (in memoriam). O velho austríaco. 5 RESUMO A Conferência Mundial contra o Racismo, realizada em Durban em 2001, marcou uma nova posição do governo brasileiro em relação às políticas de proteção a minorias e promoção da igualdade. Políticas de Ação Afirmativa, até então tímidas, ganharam novo impulso e diversas normas foram rapidamente promulgadas para suportá-las. Entretanto, muitas dessas normas acabaram por fixar cotas raciais e sociais, ignorando o processo histórico em outros países, marcadamente os EUA, onde cotas raciais foram consideradas inconstitucionais, embora outras políticas menos contundentes de Ação Afirmativa ainda continuam sendo promovidas. A pesquisa procura estabelecer limites das Ações Afirmativas, levando em conta não apenas as experiências de outros países, mas a própria formação do povo brasileiro e as possibilidades de promoção da igualdade vis-à-vis a Constituição Federal. Palavras chave: Ação Afirmativa, princípio da igualdade, direito constitucional, dignidade da pessoa humana. 6 ABSTRACT The World Conference on Racism that took place in Durban in 2001 shaped a new position of the Brazilian government concerning its policies on minorities´ protection and promotion of equality. Affirmative Action policies, until then timorous, gained a new drive and several laws were rapidly arranged in order to support them. Nevertheless, many of these laws established fixed racial and social quotas, ignoring the historical process in other countries, mainly the U.S., where racial quotas had been considered unconstitutional, although other kinds of affirmative policies, somehow less belligerent, are still in place in North America. This study seeks to establish legal limits for Affirmative Action, taking into account not only similar experiences in other countries, but the own formation of the Brazilian people and the possibilities of promotion of equality vis-à-vis the Federal Constitution. Key Words: Affirmative Action, principle of equality, Brazilian constitutional law, dignity of human person. 7 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................. 09 2 BASE CONCEITUAL DA AÇÃO AFIRMATIVA.......................................... 12 2.1 A questão da temporalidade da Ação Afirmativa ............................................ 14 2.2 Ação Afirmativa e cotas .................................................................................... 20 3 ORIGENS DA AÇÃO AFIRMATIVA............................................................. 26 3.1 A Influência da Ação Afirmativa nos EUA na esfera internacional................ 26 3.2 Início das políticas ............................................................................................. 28 3.3 O caso Griggs..................................................................................................... 31 3.4 Desenvolvimento e aplicação prática da Ação Afirmativa............................... 33 3.4.1 O caso Bakke na Suprema Corte ......................................................................... 34 3.5 Declínio e alternativas ....................................................................................... 38 3.5.1 Os casos da Universidade de Michigan ............................................................... 40 3.6 Questões relevantes da experiência norte-americana ...................................... 44 4 EXPERIÊNCIAS PRÁTICAS DA AÇÃO AFIRMATIVA EM UNIVERSIDADES NO BRASIL ...................................................................... 48 4.1 Aspectos raciais no Brasil e EUA...................................................................... 53 4.1.1 Aspectos da formação dos povos brasileiros e norte-americanos......................... 55 4.1.2 Classificações raciais.......................................................................................... 58 4.1.3 Visão bipolar e multipolar da classificação racial............................................... 63 4.2 Aplicações práticas em universidades............................................................... 65 4.2.1 Cotas na Universidade Estadual do Rio de Janeiro ............................................. 67 4.2.2 Cotas na Universidade de Brasília ...................................................................... 73 4.3.3 O sistema de bônus na UNICAMP....................................................................... 79 4.2.4 Análise comparativa dos casos práticos .............................................................. 81 5 JUSTIFICATIVAS TEÓRICAS PARA AÇÃO AFIRMATIVA .................... 85 5.1 A teoria da reparação........................................................................................ 86 5.2 A teoria da Justiça distributiva......................................................................... 89 5.3 Diversidade e Multiculturalismo....................................................................... 96 8 6 A QUESTÃO CONSTITUCIONAL.............................................................. 101 6.1 Panorama do princípio da igualdade nas prévias constituições brasileiras . 102 6.2 O princípio da igualdade na Constituição Federal de 1988 .......................... 104 6.3 O princípio da igualdade e a Ação Afirmativa............................................... 106 6.4 Limites Constitucionais da Ação Afirmativa.................................................. 109 6.4.1 A proporcionalidade como limite constitucional................................................ 113 6.4.1.1 Conformidade ou adequação aos meios............................................................. 114 6.4.1.2 Exigibilidade de meios menos gravosos............................................................. 116 6.4.1.3 Proporcionalidade em sentido estrito ................................................................ 118 6.4.2 A razoabilidade como limite constitucional ....................................................... 119 6.4.3 A objetividade como limite constitucional.......................................................... 121 6.5 A Educação na Constituição brasileira........................................................... 123 7 CONCLUSÃO ................................................................................................. 126 8 REFERÊNCIAS .............................................................................................. 128 9 1. INTRODUÇÃO O estabelecimento de cotas raciais como critério de seleção para ingresso nas universidades estaduais do Rio de Janeiro em 2001, através da Lei 3.708/2001, sancionada pelo então Governador Anthony Garotinho, marcou o início de programas legalmente estabelecidos para a inclusão acadêmica no país. A medida, que reservava 40% das vagas para negros e pardos, causou imediata polêmica porque alguns meses antes o mesmo Estado havia promulgado uma lei que estabelecia reserva de vagas para alunos provenientes de escolas públicas. Após a divulgação dos resultados do vestibular, houve uma avalanche de medidas judiciais contra a medida, aliadas a implacáveis críticas na imprensa. A verdade é que a sociedade não estava suficientemente informada e tampouco preparada para programas de inclusão tão incisivos, como as reservas de vagas em universidades públicas. Durante muitos anos o Brasil assistiu silenciosamente aos movimentos dos direitos civis norte-americanos que foram os grandes impulsionadores da Ação Afirmativa naquele país. A começar pelos movimentos negros, seguidos dos ativistas dos movimentos feministas, os diversos defensores das chamadas liberdades civis provocaram uma profunda modificação na sociedade norteamericana, o que refletiu diretamente no Direito e nas decisões dos tribunais superiores em relação à matéria. Apesar disso, o movimento teve de início pouca influência no Brasil, vez que o país estava naquela época às voltas com questões sociais diferentes, preso na armadilha da dicotomia de direita e esquerda, liberalismo e marxismo. Somente após quarenta anos, as ondas de influência chegaram aos portos pátrios. 10 As razões para o tardio despertar brasileiro para as Ações Afirmativas são várias, mas é possível citar pelo menos três delas. A primeira razão importante foi a necessidade da construção de um arcabouço legal que suportasse políticas afirmativas. Isto só começou a ser feito com a promulgação da Constituição Federal de 1988 (mais de vinte anos após a Lei dos Direitos Civis nos EUA), que já nos seus artigos vestibulares estabeleceu os objetivos da República como sendo, entre outros, a diminuição das desigualdades sociais e a promoção do bem de todos, sem discriminações de qualquer forma. Além de demonstrar uma forte preocupação com a cidadania e os direitos fundamentais, a nova Constituição contrastou com as antigas cartas no sentido de estabelecer objetivos programáticos para o país. A segunda razão para o despertar tardio para as Ações Afirmativas foi a necessidade de um ambiente político favorável. A eleição do Presidente sociólogo Fernando Henrique Cardoso contribuiu muito para isto. Tendo em sua juventude estudado de maneira profunda a questão do negro no Brasil, o então presidente deu os primeiros passos concretos de inclusão racial. Foi em seu governo que as primeiras medidas oficiais foram tomadas no sentido de estabelecer políticas afirmativas para cargos públicos e licitantes do governo federal. A terceira razão foi a unificação e fortalecimento do movimento negro no Brasil, cuja liderança acabou, a duras penas, conquistando importantes postos no governo federal, principalmente após a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, conforme indica o professor de Antropologia da Universidade de Brasília, José Jorge de Carvalho (2003, p. 68). Portanto, com um arcabouço legal apropriado, aliado a governos simpáticos à causa, e uma liderança 11 politicamente expressiva de grupos de pressão, as Ações Afirmativas ganharam um rápido e exponencial crescimento nos primeiros anos desta década. Mas, a exemplo do que ocorreu nos EUA, a implantação dos programas de Ação Afirmativa foi, e ainda está sendo, objeto de uma intensa polêmica que envolve a sociedade civil, sociólogos, antropólogos, pedagogos e, naturalmente, os operadores do Direito. Grande parte dos proponentes da Ação Afirmativa, cuja história no Brasil apenas começa a ser delineada, concentra sua atenção em uma defesa teórica do instituto, tanto jurídica como moral e filosófica. Uma vez lograda a defesa teórica, os patronos da causa parecem julgar justificadas todas as aplicações práticas advindas da base teórica. Em nossa opinião, aí se encontra um grande desvio. Por essa razão, este estudo procura evidenciar que, embora a Ação Afirmativa possa ser justificada teoricamente, tanto do ponto de vista jurídico como do filosófico, existem importantes limites a sua aplicação prática. Portanto, o objetivo desta pesquisa é estudar as principais aplicações práticas das Ações Afirmativas no que concerne ao ingresso a universidades e seus limites jurídicos e constitucionais. Para tanto, será necessária, além de uma visão histórica das aplicações no seu país de origem, uma análise prática das experiências pioneiras no país, contrastando-se com princípios e regras da Lei Maior. 12 2. BASE CONCEITUAL DA AÇÃO AFIRMATIVA O binômio Ação Afirmativa surgiu pela primeira vez nos Estados Unidos através da Executive Order (decreto executivo) 10.925 de março de 1961, dois meses após o Presidente John F. Kennedy haver assumido a Casa Branca (Cohen, 2003, p. 12). A medida tinha por objetivo o combate à discriminação em cargos públicos e em empresas fornecedoras do governo, mas acabou por se tornar um conceito de amplo espectro e, desde os meados dos anos 60, tem recebido as mais variadas definições. Chamada de discriminação positiva na Europa, o conceito de Ação Afirmativa guarda em si um aparente paradoxo, como bem observou o constitucionalista Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2003, p.72): “desigualar para criar igualdade”. De fato, conforme também asseverou o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio de Mello (2001, p. 163), as políticas públicas tradicionais de proibição de discriminação, as chamadas políticas “neutras”, não foram suficientes para atingir os objetivos republicanos da verdadeira igualdade. Portanto, as Ações Afirmativas foram concebidas como iniciativas que vão além da mera proibição de discriminar. Em suas palavras, “não basta não discriminar. É preciso viabilizar as mesmas oportunidades. Há de ter-se como ultrapassado o sistema simplesmente principiológico”. No Brasil, a definição geralmente aceita de Ação Afirmativa provém do aprofundado estudo realizado por outro Ministro do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa Gomes. Esse conceito tem sido freqüentemente citado em estudos e ensaios acadêmicos sobre o tema. Segundo o Ministro Barbosa Gomes (2001, p. 40), Ações Afirmativas correspondem ao: 13 [...] conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego. A definição acima tem a qualidade de ser, ao mesmo tempo, clara e abrangente. Destaca que a Ação Afirmativa pode ser tanto compulsória (em certos casos, por força de lei) como facultativa; de origem pública, ou privada. De fato, inúmeras iniciativas para corrigir a desigualdade foram primeiro tentadas pelo setor privado de forma espontânea. Um bom exemplo disto são as várias organizações não governamentais (ONGs) que incentivam através de seus esforços a promoção da igualdade para acesso às universidades públicas, utilizando meios criativos, como cursos preparatórios especiais destinados a minorias étnicas e aos economicamente carentes. Entretanto, iniciativas voluntárias e privadas pouco interessam ao Direito Público, que constitui o cerne principal do presente estudo. O que mais interessa ao Direito Público são as políticas cogentes de Estado e também estas são o principal cerne de controvérsia sobre Ação Afirmativa. Este ponto foi salientado pela pesquisadora da Michigan State University, Vera Lúcia Benedito (2002, p. 74): No início do século XXI, a idéia de formulação de programas e práticas sociais que corrijam desigualdades históricas encontra fóruns de receptividade em várias partes do mundo, seja nas Américas, principalmente Canadá e Estados Unidos, Comunidade Européia e países dos continentes Africano e Asiático [...]. Guardadas as devidas proporções, entre os vários países que adotaram políticas de ações afirmativas emerge um ponto comum: são políticas públicas, ou seja, políticas que emanam do Estado. Via de regra, a adoção de ações afirmativas requer a existência de um Estado politicamente forte que tenha a capacidade primordial de monitorar e sancionar a implementação dessas políticas. 14 Portanto, embora a definição do Ministro Barbosa Gomes acima mencionada tenha todos os méritos de abrangência, as Ações Afirmativas realmente adquirem importância fundamental quando são feitas através de políticas de Estado, o que necessariamente passa pela via legislativa. Assim, Ações Afirmativas são primordialmente entendidas neste estudo como políticas de Estado destinadas ao combate à discriminação e à promoção da igualdade em diversos setores da sociedade, estabelecidas de maneira cogente através de normas jurídicas, com vistas também a fomentar os valores da diversidade e pluralismo. Se as Ações Afirmativas são efetivamente estabelecidas por normas jurídicas, impõem-se necessariamente limites constitucionais a tais normas, conforme os parâmetros fundamentais do Estado Democrático de Direito, através do critério de aferição da constitucionalidade das leis. 2.1. A questão da temporalidade das Ações Afirmativas Em sua tese de doutorado recentemente apresentada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, o professor Paulo Lucena de Menezes (2006, p. 12) traz o seguinte conceito de Ação Afirmativa: [...] medidas que, por meio de um tratamento jurídico diferenciado e temporário, têm por escopo corrigir as desigualdades existentes entre determinados grupos sociais e uma dada parcela da sociedade na qual eles estão inseridos, desigualdades essas que, na maior parte das vezes, são oriundas de práticas discriminatórias. [...] Os possíveis destinatários dessas medidas também são muitos, embora predominem os grupos raciais e étnicos, mulheres, idosos e portadores de deficiência. O conceito acima, além de envolver um grupo mais abrangente de beneficiários do que concede a definição tradicional, mais concentrada em gênero e raça, salienta um aspecto geralmente deixado de lado na maioria das 15 conceituações sobre o tema, a temporalidade. Essa questão tem sido abordada apenas marginalmente por boa parte dos pesquisadores das Ações Afirmativas, mas merece mais destaque por se tratar, pelo menos em primeira análise, de um elemento essencial do instituto. De fato, desde o princípio, os objetivos das Ações Afirmativas são de corrigir uma situação indesejável ou incompatível com os ideais republicanos de igualdade formal e material. Uma vez corrigida essa situação, não haveria mais sentido lógico ou justificativa racional para que o instituto se perpetuasse através do tempo. A lógica acima tem sido adotada por diversos defensores da Ação Afirmativa e se faz necessário citar alguns importantes autores. O influente jurista Ronald Dworkin (2005, p. 438-440) elegantemente sustenta que as políticas afirmativas se justificam como políticas sociais para a promoção da igualdade entre os cidadãos e o alcance da diversidade cultural em uma sociedade democrática, e que, uma vez atingidos esses objetivos, tais políticas perderiam sua justificativa. A temporalidade, portanto, seria uma característica intrínseca do instituto. De igual modo, o já citado Ministro Marco Aurélio de Mello (2001, p. 164) sustenta que: É preciso buscar-se a ação afirmativa. A neutralidade estatal mostrouse um fracasso. Há de se fomentar o acesso à educação [...] No sistema de quotas, deverá ser considerada a proporcionalidade, a razoabilidade, dispondo-se, para tanto, de estatísticas. Tal sistema há de ser utilizado para a correção de desigualdades. Assim, deve ser afastado tão logo eliminadas essas diferenças. (grifo nosso). 16 A temporalidade das Ações Afirmativas, como elemento intrínseco ao instituto, é também encontrada em importantes tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. Dentre elas destaca-se a Convenção Internacional pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial de dezembro de 1965, adotada pela Assembléia Geral da ONU e ratificada pelo Brasil. Prescreve seu artigo I, item 4: Medidas especiais tomadas com o objetivo precípuo de assegurar, de forma conveniente, o progresso de certos grupos sociais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem de proteção para poderem gozar e exercitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais em igualdade de condições, não serão consideradas medidas de discriminação racial, desde que não conduzam à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido atingidos os seus objetivos. (grifo nosso).1 Semelhantemente, prescreve a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher da ONU de 1979, artigo IV: 1. A adoção pelos Estados partes de medidas especiais de caráter temporário destinadas a acelerar a igualdade de fato entre o homem e a mulher não se considerará discriminação na forma definida nesta Convenção, mas de nenhuma maneira implicará como conseqüência, a manutenção de normas desiguais ou separadas: essas medidas cessarão quando os objetos de igualdade de oportunidade e tratamento houverem sido alcançados. (grifo nosso).2 Depreende-se assim, tanto dos tratados internacionais, como da própria justificativa para a adoção das Ações Afirmativas, que estas devem possuir um caráter temporário e transitório. São medidas de exceção para correção de uma situação indesejável e não um objetivo em si mesmo. Entretanto, esse caráter intrínseco de temporalidade carrega consigo alguns problemas de certa 1 Disponível em Português no sítio da ONU em: <http://www.onu-brasil.org.br/doc_cs.php>. acesso em: 04/01/2007 às 15:20 Hs. 2 Disponível em Português no sítio da UNESCO em: <http://www.unesco.org.br/publicacoes/copy_of_pdf/convdiscmulher.pdf>. acesso em: 04/01/2007 às 15:25 H. 17 complexidade. Esses problemas podem ser classificados em dois principais tipos: de ordem teórica e de ordem prática. Um problema de ordem teórica surge quando se analisam preceitos constitucionais e normas infraconstitucionais que tratam da questão dos deficientes físicos. 3 As normas que concedem proteção aos deficientes não têm caráter temporário ou transitório, são permanentes. Os deficientes físicos constituem-se em uma situação sui generis dentro das políticas afirmativas porque sua condição desprivilegiada não provém de discriminação passada, mas é fruto de uma condição natural. Mesmo que nunca haja qualquer tipo de discriminação aos deficientes, eles ainda estarão em situação menos favorável em relação ao restante da população, justamente porque sua deficiência dificulta a vida cotidiana em muitos aspectos. A questão de temporalidade, então, não tem aplicação ao caso dos deficientes, que precisam ser amparados sempre. Esse grupo se constitui em uma exceção ao caráter de temporalidade. Por outro lado, o problema prático provém do histórico de quase meio século de aplicação das políticas afirmativas. Não se tem notícia de que defensores do instituto se dêem por satisfeitos e proponham a eliminação das Ações Afirmativas, mesmo após estas terem alcançado, pelo menos em grande parte, os objetivos a que se propuseram. Os EUA são um bom exemplo desse problema. Desde há um certo tempo, a proporção de estudantes negros em universidades é próxima à proporção de negros na população geral 4, mas há uma enorme resistência em se abandonar o critério racial como um dos critérios de escolha para ingresso em universidades. 3 O Ministro Marco Aurélio de Mello (2001, p. 164) menciona como exemplos de Ação Afirmativa já dispostos no direito positivo brasileiro, entre outros, o artigo 37, inciso III, da Constituição Federal e a Lei nº 8.112/90 que instituem cotas para deficientes físicos em concursos públicos. Obviamente o dispositivo constitucional e a lei não têm caráter temporário. 4 Fonte: US Census Bureau, www.census.gov/prod/2003pubs/c2kbr-26.pdf acesso em 15/01/2007, 19:12 Hs. 18 Uma boa ilustração dessa resistência é o recente referendo popular de novembro de 2006 do Estado norte-americano de Michigan que acabou por aprovar uma lei banindo qualquer critério racial nos processos de seleção para universidades públicas. Organizações não governamentais pró Ação Afirmativa rapidamente buscaram o judiciário alegando a inconstitucionalidade de tal lei. O argumento básico para sustentar a ação é o alegado fato de que a eliminação de critérios raciais nos processos de seleção iria diminuir a porcentagem de negros e latinos nas universidades públicas. 5 Se o argumento acima for verdadeiro, torna-se possível perceber que, embora a Ação Afirmativa no Estado de Michigan tenha logrado boa parte dos resultados a que se propôs, criou-se uma dependência de tais políticas para se manter a igualdade de oportunidades e diversidade racial nas universidades. Essa dependência de políticas afirmativas, após várias décadas de sua utilização, é incompatível com a temporalidade. A necessidade de perpetuação das políticas afirmativas sentidas na experiência prática, pelo menos no caso analisado acima, leva a tecer considerações não apenas sobre a natureza do instituto, mas também acerca da razoabilidade de sua aplicação, tema que será retomado em capítulo posterior, quando da análise de limites constitucionais do instituto. Outro problema prático da temporalidade foi sucitado pelo filósofo canadense Charles Taylor (1994, p. 40): A discriminação reversa é defendida como uma medida temporária que eventualmente irá equalizar as oportunidades e fazer com que as 5 Conforme publicado em: <http://breakingnews.redstate.com/blogs/schraged/2006/nov/09/michigan_voters_approve_measure_to_end_raci al_discrimination_in_college_admissions>. 22/11/2006; 14:50 Hs. Thomas Sowell (2004, p. 160-161) questiona o argumento com dados objetivos: após cinco anos de abandono das políticas de inclusão racial nas universidades da Califórnia, verificou-se que o número de negros matriculados no sistema universitário (total) foi o mesmo do último ano de vigência das políticas afirmativas. No Texas, que também baniu o sistema de preferência, a participação de negros teve um discreto aumento, após alguns anos. 19 antigas regras “neutras” possam vigorar novamente para não privilegiar ninguém. Esse argumento parece ser razoavelmente forte [...] Mas, ele não serve para justificar medidas que são necessárias para o reconhecimento da diferença, cujo objetivo não é lograr o espaço neutro de igualdade social (difference-blind social space) porém, ao contrário, manter e cultivar a diferença, não apenas agora, mas para sempre. Afinal, se estamos preocupados com a identidade [cultural], então o que pode ser mais legítimo do que a aspiração que essa identidade jamais seja perdida? (tradução nossa). O autor desenvolve o texto acima no contexto da defesa do multiculturalismo, uma das teorias justificadoras da Ação Afirmativa, como será explorado com mais detalhes em capítulo posterior neste estudo. O que Charles Taylor entende é que programas de discriminação positiva acabam por reforçar a identidade cultural dos grupos a que beneficia, forjando uma consciência de conjunto com aumento de sua auto-estima e reconhecimento do grupo como especial pela sociedade em geral. A eliminação dessas políticas ao longo do tempo acaba por se tornar um acometimento à identidade cultural e à consciência do grupo que imediatamente se posiciona contrário a essa ameaça. Dessa maneira, os objetivos de se lograr a diversidade racial ou cultural em determinados espaços sociais estratégicos, como universidades, por exemplo, acabam gerando uma expectativa de perpetuação das políticas protecionistas pelos grupos beneficiados. Na prática, esses grupos identificam as políticas afirmativas, não como a necessidade de lograr a igualdade de oportunidades, mas como um reconhecimento e valoração do grupo pela sociedade. É bem possível que esta seja a melhor explicação para a existência de grande resistência em descontinuar políticas afirmativas em vários países, mesmo após o alcance dos objetivos iniciais. Em conclusão a esta seção, pode-se asseverar que a temporalidade deve ser um elemento intrínseco das Ações Afirmativas, mas que essa questão, além 20 de comportar exceções, como é o caso dos deficientes físicos, encontra importantes problemas de aplicação prática que não devem ser menosprezados. Políticas públicas que, a princípio, devem ser transitórias, mas acabam por se tornarem permanentes por haver uma geração de dependência, ocorrem com certa freqüência. provisórios. O paralelo que pode ser traçado é a questão de tributos Muitas vezes Estados criam tributos provisórios com certas finalidades específicas, mas estes acabam por gerar uma dependência e, tão logo o tributo seja aprovado, o caráter de transitoriedade acaba rapidamente sendo abandonado. A alegação de temporalidade ou transitoriedade torna-se apenas um instrumento para subjugar as barreiras e oposições iniciais à aplicação da medida e, uma vez vencidas, o provisório se transforma em permanente. O exemplo clássico no Brasil é a CPMF – Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira – tributo que criou uma forte dependência e hoje seu caráter provisório apenas subsiste no nome. É inegável que as Ações Afirmativas, embora sendo em essência políticas temporárias, têm a forte tendência de criação de dependência e esse aspecto precisa ser levado em consideração quando se propõe a aplicação prática de tais medidas. 2.2. Ação Afirmativa e Cotas A aplicação de cotas ou reserva de vagas sempre esteve bastante ligada ao tema de Ações Afirmativas, e não raro os conceitos acabam sendo indevidamente confundidos. Isto se deve ao fato de que as cotas foram a estratégia de aplicação prática mais difundida das políticas afirmativas e também as que mais geraram controvérsia. Entretanto, os conceitos não podem ser fundidos, conforme atesta o Ministro Joaquim Barbosa Gomes (2003, p. 53): 21 No que concerne às técnicas de implementação das ações afirmativas, podem ser utilizados, além do sistema de cotas, o método do estabelecimento de preferências, o sistema de bônus e os incentivos fiscais. [...] Noutras palavras, ação afirmativa não se confunde nem se limita às cotas. Apesar da devida distinção feita entre os dois conceitos, Ação Afirmativa e cotas, este último apenas como uma das possíveis aplicações práticas do primeiro, não são raros os defensores das ações afirmativas que consideram as cotas como uma estratégia fundamental de aplicação das políticas afirmativas.6 De fato, muitas vezes estas formam a principal bandeira de defesa da Ação Afirmativa e do anti-racismo, conforme argumenta o professor da UnB, José Jorge de Carvalho (2004: p. 80): Quando insisto no valor das cotas como mecanismo fundamental da luta anti-racista, refiro-me à sua capacidade de desestabilizar e expor o racismo acadêmico. A elite branca das Ciências Sociais sempre pregou a necessidade de primeiro interpretar a realidade das relações raciais para depois intervir sobre ela [...] O que sugiro, pelo contrário, é que é preciso intervir primeiro para depois conhecer. No momento em que intervimos, o sistema reage exibindo seus sintomas recalcados. E pelo flagrante desses sintomas que podemos conhecê-lo mais profundamente. (grifo nosso). O texto acima parece defender justamente o caráter polêmico e aguerrido das cotas raciais como uma das suas principais virtudes. Como será também demonstrado em seções posteriores, o poder polêmico, beligerante e militante das cotas faz com que estas sejam a principal escolha de aplicação prática das políticas afirmativas no Brasil, principalmente para o movimento negro e certos setores da academia que adotam a visão bipolar de classificações raciais. A visão bipolar das classificações raciais é adotada pelas organizações mais militantes da Ação Afirmativa e luta contra o racismo e se contrapõe à visão 6 Como exemplo, citamos o jornalista e pesquisador Carlos Alberto Medeiros (2004, p. 168); o professor de antropologia da USP, Kabengele Munanga (2004, p. 48-58); e o professor de antropologia da UnB, José Jorge de Carvalho (2004, p. 80). 22 multipolar de classificações, que admite uma série de nuanças entre o negro e o branco, conforme explica o jornalista e pesquisador Carlos Alberto Medeiros (2004, p. 62-69). Esta questão será discutida com mais detalhes adiante, mas por hora é necessário destacar que a visão bipolar da questão racial adota uma postura de militância e confrontação, e é natural, portanto, que as cotas, com seu aspecto polêmico, sejam mais convenientes à bipolaridade. Cotas podem ser elaboradas por gênero, classe social ou, mais freqüentemente, por raça e etnia. As cotas trazem problemas conhecidos, como a inflexibilidade, beligerância e aumento das tensões raciais, conforme será mais detalhadamente analisado nos capítulos posteriores. Também é importante lembrar que as cotas foram consideradas, depois de amplo debate na sociedade norte-americana, como inconstitucionais e foram substituídas por outros mecanismos de aplicação prática da Ação Afirmativa. Até mesmo importantes defensores da discriminação positiva reconhecem os graves problemas das cotas, como por exemplo, a antropóloga e ex-primeira dama, Ruth Cardoso (1996, pg. 17): As cotas, por exemplo, são uma parte da política de discriminação positiva. Hoje já se tem uma avaliação mais coerente do seu efeito. Políticas de cotas são bastante criticadas hoje. Elas não produziram o que se esperava delas. Nas escolas, por exemplo, ou no trabalho, elas produziram, às vezes, efeitos perversos que não eram previstos. Uma das alternativas às cotas é o sistema de bônus a que se referiu acima o Ministro Joaquim Barbosa Gomes. Esse método foi primeiramente aplicado nos EUA, mais particularmente na Universidade de Harvard, como maneira de se evitar os conhecidos problemas das cotas. O sistema de bônus consiste em conceder pontos adicionais para determinadas minorias em disputas por vagas em universidade ou concursos públicos. Assim, o sistema de bônus não reserva 23 um número fixo de vagas para os beneficiários e também evita o chamado twotrack system, ou sistema de duas pistas onde brancos e negros concorrem em seleções diferentes. No Brasil, esse sistema tem sido adotado principalmente no Estado de São Paulo, onde começou com a Universidade de Campinas (UNICAMP) e depois foi aplicado a outras instituições de ensino públicas, através do Decreto Estadual no 49.602/05 que institui e disciplina o sistema de pontuação acrescida para afrodescendentes e egressos do ensino público, para ingresso nas ETEs e FATECs. Vários são os benefícios do sistema de bônus em relação às cotas. Em primeiro lugar, o sistema é muito menos polêmico e beligerante e isto pode ser observado objetivamente com dados estatísticos. Por exemplo, no primeiro ano de implantação de cotas raciais e sociais na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, houve mais de 200 mandados de segurança questionando o sistema com vistas a conseguir a matrícula pelos preteridos das cotas, além de duas representações de inconstitucionalidade perante o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e uma Ação Direta de Inconstitucionalidade perante o STF (Silva, 2003, p. 59). Em contrapartida, não há notícia de tais ações judiciais questionando o sistema de bônus da UNICAMP. No sistema de bônus, os pontos adicionados aos beneficiários não são drasticamente altos e, portanto, não influem de maneira contundente no sistema de mérito. O sistema de cotas, como será visto abaixo, muitas vezes exige programas adicionais para manter o aluno na escola, uma vez que abre as portas da universidade para alunos que não tiveram uma forte base educacional no ensino médio ou até mesmo no ensino fundamental. Novamente citando o 24 vestibular da UERJ, em certos casos o sistema de cotas proporcionou o ingresso de alunos com muito pouco preparo, conforme noticiou a Folha de São Paulo: A segunda fase [do vestibular da UERJ], com provas discursivas não era eliminatória. É por isso que em alguns cursos, estudantes [no sistema de cotas] conquistaram a vaga apesar de terem feito apenas quatro pontos sobre um total de 110 – caso da engenharia civil e ciências biológicas.7 Outros tipos de aplicação das Ações Afirmativas são os incentivos fiscais e sistemas de preferência. Os incentivos fiscais começam a ser aplicados no programa federal PROUNE, ainda que de maneira um pouco tímida. Sistemas de preferência são um leque relativamente amplo de possibilidades que evitam adotar porcentagens fixas ou pontos, mas seguem um programa de metas ou objetivos a serem cumpridos. Esses sistemas são atualmente os mais aplicados nos EUA e parecem ser os mais sofisticados, porque conseguem evitar os problemas associados aos outros sistemas, como a questão do mérito, a inflexibilidade e a beligerância. Entretanto, são mais difíceis e caros além de demandarem certa curva de experiência e aprendizado que a história das Ações Afirmativas no Brasil ainda não possui. Nessa mesma trilha de pensamento, apesar de reconhecer as dificuldades, o professor Antônio Sérgio Alfredo Guimarães (2003, p. 80) do Departamento de Sociologia da USP também aponta o caminho para o sistema de metas como preferível às cotas: O estabelecimento de cotas uniformes nacionalmente para negros nas universidades públicas, tal como proposto em alguns projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional, não me parece a melhor alternativa. [...] O estabelecimento de metas temporais bem delimitadas de absorção de negros por cada universidade pública deve desdobrar-se em políticas e mecanismos concretos de flexibilização dos instrumentos 7 Disponível em <www1.folha.uol.com.br/folha/educação/ult305ul2540.shtml> acesso em 31 maio 2003. 25 de seleção, como, por exemplo, a ponderação dos resultados dos exames de conhecimento, levando em conta a extração social e racial dos candidatos. Ao Ministério da Educação cabe a tarefa mais onerosa: garantir a expansão do número de vagas nas universidades públicas. Tal medida é indispensável para quebrar o “jogo de soma zero” que acirra a disputa de interesses entre os diferentes grupos sociais e dificulta eventuais compromissos. Em conclusão a esta seção, pode-se dizer que o sistema de cotas é a aplicação prática de preferência para proponentes da Ação Afirmativa no Brasil, principalmente para aqueles grupos mais militantes. Entretanto, é possível perfeitamente aplicar a Ação Afirmativa através de outras estratégias. A escolha da estratégia de aplicação depende de variáveis bastante complexas, que vão desde as motivações e justificativas para o instituto, até aos limites legais e constitucionais que o sistema jurídico pode impor. Essas variáveis serão o principal alvo de estudo em capítulos posteriores. 26 3. ORIGENS DA AÇÃO AFIRMATIVA Apesar de as iniciativas para proteger legalmente minorias terem sido aplicadas em muitos países por um período considerável de tempo, as políticas de Ação Afirmativa, conforme aplicadas nos EUA desde meados dos anos 60, foram as que mais influenciaram as iniciativas ao redor do mundo. Thomas Sowell (2004, p. 1 a 3), da Universidade de Standford, aponta em um trabalho de análise de políticas de Ação Afirmativa em diversos países que já nos idos de 1840 sistemas de proteção legal para minorias étnicas foram implantados na Nova Zelândia com base no Tratado de Waitangi. Igualmente, no Paquistão e Índia sistemas de proteção legal e privilégio foram organizados desde 1949. Entretanto, essas iniciativas tiveram pouca ou nenhuma influência fora dos seus limites geográficos. 3.1. A influência da Ação Afirmativa dos EUA na esfera internacional Foi a experiência norte-americana, consagrando o nome de Ação Afirmativa, que despertou o interesse de vários outros países. Sistemas de cotas ou políticas mais abrangentes de Ação Afirmativa foram levados a cabo no Canadá, África do Sul e Europa, inspirados de alguma maneira na experiência norte-americana. A Europa sofreu influência do movimento, entretanto, as políticas ali implantadas divergem radicalmente da sua forma original. As políticas de discriminação positiva, como é conhecida a Ação Afirmativa na Europa, estão bastante mais concentradas no gênero e na origem nacional e não na raça ou cor, como é o caso norte-americano. Cotas raciais simplesmente não existem na 27 Europa, mas experiências com cotas para mulheres para cargos políticos foram tentadas na França e na Itália. Entretanto, tais iniciativas foram consideradas inconstitucionais, segundo o constitucionalista Manoel Gonçalves Ferreira Filho8. Também vale lembrar a desastrosa tentativa francesa de introduzir um sistema de preferências raciais no exército com a diretiva do Ministro de Defesa francês Jean-Pierre Chevènement, em 23 de maio de 1990, que procurava estabelecer um sistema de discriminação positiva aos conscritos franceses de origem árabe. A diretiva foi cancelada após grande repercussão do artigo do oficial Jean-Pierre Steinhofer9 denunciando o sistema. A experiência européia de Ação Afirmativa (ou discriminação positiva) tem pouco ou nenhum paralelo com a recente aplicação da questão no Brasil, vez que a questão racial não é central no antigo continente. Por outro lado, o Brasil sente a influência direta das políticas de Ação Afirmativa na América do Norte, não apenas pela inegável proximidade de ambos os países em vários aspectos econômicos e sociais, mas também pela atuação direta de fundações norte-americanas que têm aplicado um considerável montante de recursos para a difusão do ideal no país.10 Dessa maneira, uma rápida análise do desenvolvimento das políticas de Ação Afirmativa nos EUA se reveste de especial importância histórica, não apenas para se entender a origem do movimento, como também para perceber e avaliar melhor os erros e acertos de quase quarenta anos de experiência social e 8 Em palestra ministrada no VI Encontro Nacional de Direito Constitucional em São Paulo, de 18 a 20 de setembro de 1997. Apud (Menezes, 2001, p. 150). 9 Referência <http://www.ump42.info/edito.htm>. Acesso em: 02/01/2007, 12:46. 10 A título ilustrativo, destacamos a Fundação Ford que tem financiado a publicação de livros, ensaios e dissertações de caráter apologético da Ação Afirmativa, inclusive firmando um convênio com a Universidade Estadual do Rio de Janeiro. 28 legislativa que foi enriquecida nos últimos anos com novas decisões da Suprema Corte norte-americana. 3.2. Início das políticas de Ação Afirmativa Após a Guerra Civil norte-americana, conforme ressalta o professor Melvin Urofsky (1997, p. 15) da Universidade de Virgínia, o Congresso daquele país aprovou uma série de medidas legais de maneira a proteger os direitos dos cidadãos recém libertos. A décima quarta emenda constitucional norte- americana foi fruto dessas medidas do Congresso e foi elaborada com o fim de coibir as leis estaduais que porventura viessem a desrespeitar os direitos dos negros libertados. Entretanto, decisões da Suprema Corte após 1883, capitaneadas pelo Ministro Joseph Bradley, interpretaram muito restritivamente a décima quarta emenda de maneira a limitar quase completamente o seu alcance como medida de proteção à igualdade aos negros. Com essas decisões da Suprema Corte, o governo norte-americano praticamente não tomou nenhuma medida para combater o racismo até a Segunda Guerra Mundial. As origens das políticas afirmativas são geralmente apontadas com o surgimento do New Deal do Presidente Franklin D. Roosevelt. O programa New Deal do democrata Roosevelt significou algo mais do que apenas um plano econômico para tirar o país da Grande Depressão, mas representou de fato, um grande aumento da interferência do Estado na sociedade norte-americana. Em um país que foi o bastião do liberalismo econômico, essa intervenção do Estado foi apenas absorvida devido ao enorme dano que a Crise de 1929 ocasionou. Em meio a essa maior intervenção do Estado na esfera privada, as primeiras tentativas de inclusão forçada de negros em postos de trabalho foram tomadas. O problema era que muitas empresas que recebiam contratos 29 volumosos do governo (em especial a indústria bélica) se recusavam a contratar negros, mediante ao comportamento da época definido pelo sistema Jim Crow. A Procuradora do Distrito Federal, Roberta Fragosos Menezes Kaufmann (2006, p. 3 a 19), explica que o sistema Jim Crow foi uma doutrina segregacionista norte-americana, desenvolvida para justificar a divisão racial com bases legais, que acabou sendo conhecida pela expressão separate but equal (separados mas iguais). A doutrina separados mas iguais foi uma construção jurisprudencial que justificava a segregação dos negros, ao inferir que a separação das raças não indicava necessariamente que uma raça era inferior a outra. Nesse contexto o governo Roosevelt interferiu nas empresas contratadas pelo governo de maneira a forçá-las a empregar negros, devido em parte às pressões populares que se sentiam desconfortáveis por estar lutando contra o anti-semitismo nazista, mas ao mesmo tempo praticando segregação aberta contra os negros. Em junho de 1941 o Presidente Roosevelt emitiu a Executive Order 8.806 (decreto executivo) que proibia a discriminação na contratação de funcionários por parte do próprio governo federal e incluía também as empresas que haviam ganhado licitações com Estado, instituindo a Fair Employment Practices Commission (FEPC), órgão fiscalizador das práticas de não discriminação na contratação de mão de obra (Urofsky, 1997, p. 16). Com uma maior participação do Estado na vida social e econômica através do New Deal e uma crescente pressão popular pela diminuição da segregação entre brancos e negros, estava criado o pano de fundo histórico que culminou nas políticas afirmativas. Em uma obra detalhada sobre a Ação Afirmativa dos EUA, o atual Ministro do STF, Joaquim B. Barbosa Gomes (2001, p. 234) sugere que a história do movimento nos EUA pode ser dividida em três fases distintas: 30 a) fase da indecisão, de 1970 a 1978; b) fase da aprovação, de 1979 a 1989; c) fase da paulatina desaprovação, de 1989 a 1996. Embora esta divisão pareça didática, existem algumas observações a serem feitas. Em primeiro lugar, é possível retroagir um pouco o período de início efetivo da Ação Afirmativa para o governo Kennedy, que em sua Executive Order 10.925 de 1961, utilizou pela primeira vez o termo Ação Afirmativa em um documento oficial; ou ao governo Johnson que em 1965 exarou a Executive Order 11.246 que não apenas estabeleceu regras rígidas contra práticas discriminatórias, como também colocou em prática políticas verdadeiramente afirmativas na contratação de negros (Menezes, 2001, p. 88). Ou ainda, pode-se apontar a Lei dos Direitos Civis de 1964 como um dos marcos iniciais da Ação Afirmativa, conforme sugere Thomas Sowell (2004, p. 115), mesmo que as específicas cotas e outros meios práticos de aplicação das políticas afirmativas tenham sido implementadas apenas na década de 1970. Também é preciso atualizar um pouco a análise dos acontecimentos, uma vez que a história obviamente caminhou após 1996 e uma importante e recente decisão da Suprema Corte de junho de 2003 veio a enriquecer ainda mais a questão, como será abordado abaixo. No entanto, qualquer que seja considerado o início da Ação Afirmativa nos EUA, não há dúvidas de que o movimento tomou considerável porte com o governo do republicano Richard Nixon que assumiu a presidência em 1969. Conforme salientou a pesquisadora Vera Lúcia Benedito (2002, p. 75) foi durante essa administração que o Departamento do Trabalho expediu a ordem de no 4, que passou a requerer que as empresas levassem em consideração a proporção de mão-de-obra negra disponível no total da força de trabalho local. 31 Essa ordem teve origem no projeto de Arthur Fletcher que ficou conhecido como o Plano Filadélfia (Menezes, 2001, p. 92). O projeto deveria tornar em prática parte do Civil Right Act de 1964 [conjunto de leis que coibiam o preconceito racial na educação e trabalho, com ênfase no tratamento igualitário] e lograr a necessária consistência jurídica para enfrentar possíveis questionamentos legais. O Plano Filadélfia preconizava que os vencedores de licitações do Governo Federal deveriam estabelecer programas de Ação Afirmativa, contendo metas numéricas para minorias étnicas (não apenas negros), mas vedava a fixação rígida de cotas raciais. Naquela época, as cotas raciais já eram adotadas principalmente por universidades públicas estaduais como prática das políticas de Ação Afirmativa. A insistência do Plano Filadélfia em vedar a rigidez das cotas percentuais fazia parte da estratégia de proteger as políticas afirmativas de questionamentos jurídicos e se deu também pela forte controvérsia que as cotas, principalmente as raciais, estavam tendo no seio da sociedade norte-americana. Os anos seguintes foram marcados por uma série de legislações que estabeleciam políticas afirmativas, observando não apenas minorias étnicas, mas também a questão das mulheres e deficientes físicos. Essas iniciativas acabaram por dar origem a uma série exaustiva de questionamentos judiciais que, através do devido processo legal, chegou à Suprema Corte Federal. 3.3. O Caso Griggs O caso Griggs v. Duke Power Co. (401 U.S. 424 – 1971) tornou-se emblemático para a Ação Afirmativa por ser o primeiro caso envolvendo o Título VII do Civil Right Act, a base legislativa do Plano Filadélfia. Os negros, 32 autores da ação, contaram com o valoroso apoio do Ministério da Justiça como amicus curiae, isto em pleno governo do conservador Richard Nixon. Portanto, acertadamente o já citado Ministro Barbosa Gomes (2001, p. 184) conclui que a questão da Ação Afirmativa “transcendia a tradicional clivagem políticoideológica entre republicanos e democratas”. A querela jurídica girava em torno do processo de admissão e promoção de funcionários da Duke Power Co. que exigia um teste de Q.I. que geralmente deixava os negros em situação desvantajosa. A desvantagem não ocorria por fatores ligados diretamente ao teste, mas pelo fato de que o sistema segregacionista da era da doutrina “separados mas iguais” obviamente preparava melhor os brancos, com acesso a melhores escolas, que estatisticamente superavam os negros nas promoções de maneira quase absoluta. Ao julgar a questão, a Suprema Corte entendeu que o processo gerava uma discriminação por impacto, isto é, havia certa injustiça no grau de aferição, mesmo que os testes fossem iguais a todos. Por serem menos preparados por um processo educacional segregado, os negros simplesmente não conseguiam posições de destaque na companhia. Esse julgado acabou por criar a “teoria do impacto adverso ou diferenciado” (Menezes, 2001, p. 97) pela qual os autores de ações judiciais poderiam comprovar a discriminação por meio indireto, através de simples comprovação estatística. Ora, essa teoria balizou a idéia pela qual a simples constatação estatística que as minorias raciais encontravam-se em desvantagem econômica e social já validaria um sistema de proteção especial, o que é o fulcro principal da Ação Afirmativa. 33 3.4. Desenvolvimento e aplicação prática da Ação Afirmativa Conforme observado, durante o governo Nixon, a Ação Afirmativa ganhou firmes contornos. Thomas Sowell (2004, p. 125) credita às diretivas de dezembro do Governo Nixon de 1971 o fundamento legal para a formação das cotas. As diretivas esclareciam que “´objetivos e cronogramas´ significavam ´aumentar materialmente o emprego de minorias e de mulheres´, e que por ´subutilização´ se entendesse ´a menor existência de minorias e mulheres em determinada categoria de trabalho do que se poderia razoavelmente esperar em função de sua disponibilidade´”. Esperava-se com essas diretrizes que os empregadores reconhecessem a deficiência de utilização (o que seria a desproporcionalidade racial de empregados). O ônus da prova era do empregador, o que deu um significativo incentivo para que os patrões começassem a ajustar o seu sistema de contratações de maneira a balancear o número de empregados em relação ao universo racial do país. Paralelamente à situação dos empregos, as universidades começaram também seus programas de inclusão forçada através do sistema de cotas raciais para candidatos à admissão. Thomas Sowell (2004, p. 125) indica que nessa época, muitos acusaram a adoção de cotas raciais como uma má interpretação ou deturpação da Lei dos Direitos Civis de 1964. A situação parecia bem definida a favor das cotas, o que incentivou a adoção desse sistema por diversas universidades públicas estaduais, incluindo a Universidade da Califórnia. Em 1974, Alan Bakke, um branco veterano da guerra do Vietnam foi reprovado no sistema de seleção para a Escola de Medicina da citada universidade que adotava um sistema de cotas raciais e 34 ingressou em juízo, com um processo que iria causar uma das mais importantes decisões da Suprema Corte sobre a Ação Afirmativa e o sistema de cotas raciais, que foi exaustivamente estudado por defensores e críticos da Ação Afirmativa. De fato, até a recente decisão da Suprema Corte de 2003 nos casos da Universidade de Michigan que serão analisados abaixo, o “caso Bakke” serviu como decisão fundamental para os processos legais envolvendo os sistemas de Ação Afirmativa para ingresso em universidades. 3.4.1. O Caso Bakke na Suprema Corte O Caso Regents of the University of California v. Bakke (438 U.S. 265 – 1978) tornou-se o caso clássico do movimento da Ação Afirmativa, ainda que a decisão da Suprema Corte tenha sido extremamente dividida (cinco votos a quatro) e a vitória apenas parcial. A lide chegou à Suprema Corte Federal depois que a Suprema Corte Estadual da Califórnia julgou que o processo de seleção e admissão da universidade citada era inconstitucional e feria a igualdade por considerar a raça como principal critério de admissão. Os Diretores da Universidade recorreram da decisão do tribunal a quo e o recurso foi julgado em 1978. A decisão da Suprema Corte é de grande complexidade porque, como indica Paulo Lucena Menezes (2001, p. 100 – 101), não houve consenso nas decisões. Quatro Ministros julgaram que o processo de admissão da universidade era legal por fundamentos diferentes e, portanto, Alan Bakke não poderia ser admitido. Outros quatro Ministros julgaram que o processo de admissão afrontava o título VII do Civil Right Act e, portanto, o recorrido deveria ser admitido no curso. A questão foi resolvida pelo voto do Ministro Powell, que julgou ser o processo de admissão ilegal, mas ao mesmo tempo decidiu que o quesito raça poderia ser um discrímen válido para programas de 35 Ação Afirmativa. Dessa maneira, como o processo de admissão em pauta utilizava-se de cotas numéricas, este foi julgado ilegal e Alan Bakke teve de ser admitido na universidade. O voto do Ministro Powell que acabou sendo a parte mais importante do aresto da Suprema Corte tem sido exaustivamente analisado, inclusive o Ministro Barbosa Gomes (2001, p. 104) avalia que essa “talvez seja a mais discutida, comentada e criticada decisão da Corte Suprema dos EUA nas últimas duas décadas”. As duas questões mais importantes que foram aclaradas se seguem: a) Não havia impedimentos legais para se considerar raça ou cor como critérios válidos para o processo de seleção se esse processo visasse a atender um interesse governamental cogente (compelling governmental interest). b) O processo de admissão da Universidade da Califórnia feria o Título VI e VII do Civil Right Act de 1964 e o conjunto constitucional conhecido como equal protection clause (igualdade jurídica), ao estabelecer cotas raciais. As cotas raciais, por sua rigidez e não-universalidade, não atendem ao interesse governamental imperativo. Desde essa decisão, a Ação Afirmativa abandonou o sistema de cotas raciais por outros tipos de programa, fato salientado por Paulo Lucena de Menezes (2001, p. 103): ... O Ministro Powell concluiu que o uso de classificação racial, no caso específico, violava tanto o Título VI, como a equal protection clause [da Constituição Norte Americana]. No entanto, como 36 mencionado, ele deu a entender que os programas de ação afirmativa poderiam ser constitucionais, mesmo se levassem em conta algum aspecto racial ou étnico, desde que esse não fosse o único critério seletivo e desde que não fossem utilizadas quotas, metas ou preferências inflexíveis. (grifo nosso). Reproduz-se aqui parte do voto original do Ministro Powell de especial interesse: Pode-se considerar que a reserva de um número específico de vagas para indivíduos de determinados grupos étnicos contribuiria para a obtenção de considerável diversidade étnica no corpo discente. Mas, o argumento da requerente que esta é a única maneira de servir ao interesse da diversidade é seriamente falho. Fundamentalmente, este argumento concebe erroneamente a natureza do interesse do Estado que justificaria a consideração do discrímen de raça ou etnia. Não é o interesse em simples diversidade étnica, na qual uma percentagem específica do corpo discente é formada por membros de grupos étnicos determinados, com a percentagem restante composta de um agregado de alunos não diferenciados. A diversidade que forja o interesse estatal imperativo engloba uma gama muito maior de qualificações e características, das quais, origem racial ou étnica é apenas uma delas, ainda que importante. O sistema de admissão da requerente, concentrado em apenas diversidade étnica, impede, ao invés de fomentar a obtenção da genuína diversidade. [...] A experiência do processo seletivo de outra universidade que leva em conta a questão racial para alcançar diversidade educacional apreciada pela Primeira Emenda demonstra que o estabelecimento de um número fixo de vagas para minorias não é um meio necessário para obtenção daquele fim. Um exemplo esclarecedor é encontrado no programa de admissão da Faculdade de Harvard: [...] Para a admissão na Faculdade de Harvard, o comitê não estabelece cotas para o número de negros, ou para músicos, jogadores de futebol, físicos ou Californianos a serem admitidos em um certo ano... Nesse programa de admissão, o fator racial ou étnico pode ser considerado um plus (valor adicional) entre as qualidades do candidato, entretanto, ele não isola os outros candidatos para as vagas disponíveis. As qualidades de um determinado candidato negro podem ser consideradas pela sua potencial contribuição à diversidade sem que o fator racial seja decisivo... (Regents of the University of California v. Bakke 438 U.S. 264 – 1978. Decisão do Ministro Powell, parte V. Tradução nossa).11 11 Texto extraído no original inglês do Legal Information Institute da Universidade de Cornell no site: http://www.law.cornell.edu/ acesso em: 26/06/2004, 11:20. 37 Parafraseando as palavras do Ministro Powell acima, o argumento que as cotas raciais promovem a diversidade é seriamente falho. O sistema de cotas, portanto, “impede, ao invés de fomentar a obtenção da genuína diversidade”, justamente porque não garante uma diversidade abrangente, mas apenas a diversidade baseada na questão racial, produzindo uma “subinclusão” ao agraciar apenas um segmento da sociedade. Desde a decisão acima, o sistema de cotas raciais nos EUA foi abandonado dos processos seletivos das universidades americanas. O sistema adotado desde então foi um sistema semelhante ao da Faculdade de Harvard, mencionado pelo próprio Ministro Powell, onde o fator racial ou étnico é apenas um entre outros fatores a serem considerados, mas nunca é único ou preponderante. Surpreendentemente, muitos dos defensores da Ação Afirmativa no Brasil escolheram o árduo caminho das cotas raciais para a implantação do programa (conforme será abordado abaixo), preferindo ignorar a experiência norte americana. Conforme alude o Ministro Barbosa Gomes (2001, p. 107), apesar do fato de que a Suprema Corte deu ganho de causa ao autor da ação (Alan Bakke) e determinou seu ingresso na universidade, a decisão de se considerar o discrímen racial constitucional, desde que haja um interesse governamental imperativo foi a questão mais importante na decisão judicial. De fato, a decisão do caso Bakke forneceu uma base jurídica para programas de Ação Afirmativa, mesmo com base no discrímen racial, observados os limites impostos nos votos dos Ministros, dentre os quais se destaca a vedação de cotas rígidas. 38 3.5. Declínio e alternativas Após a decisão do caso Bakke, as universidades públicas norte americanas tiveram de adaptar rapidamente seus processos seletivos de maneira a abandonar o sistema de cotas percentuais e procurar a diversidade de uma maneira ampla, e não apenas focalizada no fator racial ou étnico. Ao mesmo tempo, cresceu a rejeição popular pelo termo “cota” e hoje os defensores da Ação Afirmativa nos EUA cuidadosamente rejeitam tanto o termo quanto o conceito, conforme observou o professor da Universidade de Harvard, o brasileiro Roberto Mangabeira Unger (2003, p. 3): Nos Estados Unidos, apenas os adversários das políticas de "ação afirmativa" as descrevem como quotas. E o Judiciário vem impondo restrições para assegurar que não funcionem como tal. Alternativa mais eficaz e mais justa nos obrigaria a trocar os chavões da pacificação pelos embates da transformação. O instrumento principal é a identificação ativa dos alunos mais talentosos e aplicados em todos os níveis do ensino público, com preferência dada não aos negros, mas aos pobres. Atualmente, o termo “cota” aduz imediatamente a sentimentos fortemente negativos, tendo sido utilizado freqüentemente por opositores de políticas afirmativas, como por exemplo, o atual Presidente George W. Bush que, de maneira estratégica, menciona várias vezes a palavra para explorar sua forte rejeição popular.12 A Ação Afirmativa veio a receber forte oposição durante Governo Reagan, principalmente em seu segundo mandato, sofrendo diversos reveses tanto no judiciário como no executivo de vários Estados Federativos, o que 12 Cf. Artigo Bush vai à Justiça contra política de admissão em universidade O ESTADO DE SÃO PAULO <www.estadão.com.br/educação/vestibular/notícias/2003/17/112.hmt>. Acesso em: 31/05/2003 15:17 Hs. 39 marcou o início do período que o Ministro Joaquim B. Barbosa Gomes (2001, p. 234) chamou de “paulatina desaprovação” da Ação Afirmativa nos EUA. O influente jornal The New York Times sumarizou os importantes reveses da Ação afirmativa nos últimos anos da seguinte forma13: 18 de março de 1996 – Hopwood versus Universidade do Texas, Faculdade de Direito. A Corte de Apelação do Quinto Circuito anulou o sistema de preferência racial do vestibular da Universidade do Texas, declarando ilegal qualquer preferência baseada no fator racial. A decisão dessa corte foi contrária a decisão anterior da Suprema Corte no caso Bakke que definia a diversidade como um interesse imperativo do Estado. 5 de novembro de 1998 – Plebiscito 209 na Califórnia. Californianos votam de maneira a proibir qualquer preferência baseada em raça, gênero ou origem nacional nos processos de admissão para escolas e postos de trabalho. 3 de dezembro de 1998 – Iniciativa 200 em Washington. Habitantes do Estado de Washington votam de maneira a proibir qualquer preferência baseada em raça ou gênero nos processos de admissão para escolas ou para cargos públicos. 22 de fevereiro de 2000 – Iniciativa Flórida Única – A assembléia da Flórida promulgou a parte educacional do projeto Flórida Única, do governador Jeb Bush, que extinguiu qualquer consideração ou preferência sobre raça nos processos seletivos para Universidades ou contratos com o Estado. 23 de Junho de 2003 – Decisões sobre a Universidade de Michigan. A Suprema Corte manteve o programa de Ação Afirmativa na Faculdade de Direito da Universidade de Michigan, mas anulou o sistema numérico de preferências raciais utilizado em cursos de graduação. (tradução nossa). Importante salientar que a paulatina desaprovação da Ação Afirmativa nos EUA não se deu apenas por uma pretensa configuração conservadora da Suprema Corte, mas em muitos casos por iniciativa popular e referendos, 13 AFTER 25 years a Road Map for Diversity on Campus. The New York Times. New York. 24 jun 2003. Disponível em: <www.nytimes.com/2003/06/24/politics/24ASSE.html>. Acesso em 24 jun. 2003. 40 conforme os casos da Califórnia (o Estado mais populoso da união), Flórida, Washington e Michigan. No Texas, os processos que utilizavam o fator racial e de gênero como forma de seleção para universidades e cargos públicos foram abandonados por iniciativa do Executivo e apoio do Legislativo, após várias derrotas da Ação Afirmativa no Judiciário. Mais recentemente, em novembro de 2006, o Estado de Michigan também promoveu um referendo popular e o resultado foi a proibição de qualquer sistema de preferências raciais para vagas em universidades. 3.5.1. Os casos da Universidade de Michigan Em 23 de junho de 2003 a Suprema Corte julgou dois processos em separado, mas com certa conexão, visto que ambos tinham o mesmo pólo passivo (Bollinger, representando a Universidade de Michigan) e versavam sobre o mesmo assunto: a questão do fator racial nos processos seletivos de admissão à universidade – casos Grunter v. Bollinger 02-241 (2003) e Gratz v. Bollinger 02-516 (2003). O primeiro caso versava sobre uma candidata à escola de Direito (nível de pós-graduação) da universidade e o segundo caso a respeito do processo seletivo para todos os cursos de graduação. O primeiro processo seguiu em linhas gerais a decisão anterior de Powell no caso Bakke, já discutido, e foi recebido pelos proponentes da Ação Afirmativa com certo alívio, uma vez que o movimento já estava em linha descendente. O Editorial do The New York Times14 do dia seguinte ao julgamento expressou a opinião que a Ação Afirmativa havia “se desviado da 14 EDITORIALS: A Win for Affirmative Action.. The New York Times. New York. 24 jun 2003. Disponível em: <www.nytimes.com/2003/06/24/opinion/24TUE1.html>. Acesso em 24 jun. 2003. 41 bala” com esta nova decisão da Suprema Corte que fora extremamente apertada (cinco votos a quatro, como no caso Bakke). A decisão da Corte nesse caso serviu para aclarar a decisão anterior no caso Bakke, onde os votos conflitantes dos Ministros haviam deixado certa dúvida, conforme já discutido acima. Como pode ser auferido pela leitura do voto da relatora, a Ministra O´Connor, a questão predominante foi a de manter uma diversidade no ambiente escolar, não se curvando a teoria da reparação ou compensação, expressada por votos de alguns Ministros no caso anterior (Bakke). É importante ressaltar aqui que a Suprema Corte concluiu que o interesse imperativo do Estado ao se utilizar do fator racial era fomentar a diversidade étnico-cultural, adotando a teoria do multiculturalismo (ou diversidade) e não a reparação de fatos históricos, como a escravidão ou o genocídio indígena que definem a teoria da Justiça compensatória. De fato, a grande contribuição dessa decisão da Suprema Corte foi aclarar o que seria o “interesse governamental imperativo”, que não ficou completamente transparente no caso Bakke, devido à diferença de fundamentos dos votos dos diversos Ministros. O voto da Ministra relatora O´Connor é profícuo em definir a posição do Ministro Powell no caso Bakke como paradigma para a questão do discrímen racial, e faz uma interpretação detalhada da decisão vinte e cinco anos anterior. Após chamar a decisão do Ministro Powell de “pedra de toque para análises constitucionais a respeito de processos seletivos que levam em conta o fator racial”, concluiu: [...] pelas razões expostas abaixo, hoje endossamos o entendimento do Ministro Powell que a diversidade do corpo discente é um interesse 42 governamental imperativo que pode justificar o uso do fator racial em processos seletivos de universidades. [...] Como parte de seu objetivo de “constituir uma turma que tanto é excepcionalmente qualificada academicamente quanto amplamente diversa”, a Escola de Direito [da Universidade de Michigan] procura matricular uma “massa crítica” de alunos pertencentes a minorias. [...] Como o Ministro Powell assegurou no caso Bakke, considerações verdadeiramente individualizadas [sobre o critério de seleção], exigem que o fator racial seja utilizado de modo flexível e não mecanizado. De acordo com este mandado, universidades não podem estabelecer cotas para membros de determinados grupos raciais ou colocar estes membros em diferentes processos de seleção. [...] O programa atual de seleção da Escola de Direito considera o fator racial apenas como um fator entre muitos outros fatores, em um esforço a forjar um corpo discente que é diversificado não apenas etnicamente. [...] Esperamos que em vinte e cinco anos o uso preferencial do fator racial não será mais necessário para garantir o interesse [do Estado] aprovado hoje. [...] Em conclusão, a cláusula de proteção da igualdade (Equal Protection Clause) não veda a utilização individualizada do fator racial em processos seletivos de maneira a alcançar o interesse imperativo de obter benefícios educacionais que fluem de um corpo discente diversificado... Extraído do voto da Ministra relatora O´Connor na decisão Grunter vs. Bollinger 02-241 (2003), (tradução nossa).15 Vale ressaltar que o sistema de cotas raciais continuou vedado e que a única excludente para justificar o discrímen racial, o chamado interesse imperativo, é a obtenção da diversidade, esta entendida em termos universais, e não apenas etnicamente. O outro caso mencionado, ainda que semelhante, teve uma decisão inversa por seis votos a três. É que o sistema de admissão da graduação da Universidade de Michigan diferia do sistema da pós-graduação, este mais individualizado. O vestibular da graduação consistia em um sistema de pontos que atribuía automaticamente 20 pontos (de um total de 100 pontos mínimos 15 Texto extraído no original inglês do Legal Information Institute da Universidade de Cornell no site: <http://www.law.cornell.edu/>. Acesso em: 26/06/2004, 12:20 Hs. 43 para aprovação) para membros de grupos étnicos “preferenciais” (negros, latinos e indígenas). Mesmo não sendo o fator racial preponderante (representava apenas 20% dos pontos necessários à aprovação), a Suprema Corte entendeu que esse processo era por demais “mecanizado” e assemelhava-se às impopulares e banidas “cotas raciais”. Portanto, a decisão foi de extinguir qualquer sistema numérico e não individualizado que levava o fator étnico em consideração. Até os resquícios de cotas raciais foram fulminados por esta decisão, vedando-se quaisquer sistemas numéricos para programas de seleção. Apesar dessa decisão da Suprema Corte ter salvaguardado importantes reclamos da Ação Afirmativa, em respeito ao Estado de Michigan teve eficácia bastante limitada no tempo. Em novembro de 2006 um referendo popular aprovou a iniciativa de proibir quaisquer sistemas de preferência baseados em raça para concursos de acesso a universidades no Estado, repetindo a experiência de outros Estados norte-americanos, que foi preconizado pela iniciativa californiana, conforme visto acima. O influente periódico The Wall Street Journal assim noticiou o recente resultado do referendo: Os eleitores de Michigan aprovaram pela margem de 58% a 42% uma medida que eliminará o discrímen racial como fator determinante em admissões a universidades. Assegurar diversidade racial em instituições de educação pública é um nobre objetivo. Entretanto, a maneira como se alcança esse objetivo é igualmente importante. Darse preferência a qualquer grupo racial na tentativa de se assegurar a diversidade é uma atitude discriminatória. Seria como tentar acabar com a discriminação utilizando-se de mais discriminação. E isto não faz o menor sentido. Um método incomparavelmente melhor para se garantir a diversidade seria a substituição do fator racial pelas condições sócio-econômicas dos candidatos e suas famílias. (tradução nossa).16 16 Disponível em: <http://breakingnews.redstate.com/blogs/schraged/2006/nov/09/michigan_voters_approve_measure_to_end_raci al_discrimination_in_college_admissions>. Acesso em: 22/11/2006; 14:50 Hs. 44 3.6. Questões relevantes da experiência norte-americana A experiência norte-americana em relação à Ação Afirmativa foi refinada por aproximadamente quarenta anos de aplicação de políticas públicas e privadas, decisões judiciais, referendos populares e maturação da opinião pública. Embora a maioria de seus proponentes defenda a continuação de tais políticas, sob o argumento de que a abolição delas levaria à volta à situação anterior, uma parcela importante da população já se manifestou contrária à continuação da discriminação positiva através do sistema de consultas populares, quer em plebiscitos ou referendos. Também é importante salientar que o discrímen racial, quando utilizado, é julgado pela Suprema Corte mediante o escrutínio estrito, onde há uma presunção juris tantum de inconstitucionalidade e é apenas aprovado pelo judiciário norte-americano quando há um justificável interesse imperativo do Estado. No caso específico dos programas de admissão a universidades, o interesse imperativo do Estado está em garantir a “genuína diversidade” que vai muito além do fator racial, e este pode ser apenas considerado como um valor adicional entre outros tipos de critérios, mas nunca o único ou predominante. Outra questão que merece atenção é o fato de que a Suprema Corte, em sua última decisão sobre a Ação Afirmativa, não entendeu que o interesse imperativo do Estado era de compensar ou indenizar grupos que historicamente sofreram discriminação ou segregação. O interesse que pode justificar o discrímen racial é a diversidade, tomada em seu sentido universal. Embora as Ações Afirmativas, incluindo a discriminação racial positiva, sejam consideradas constitucionais nos EUA, limites foram impostos para sua aplicação prática. Um importante limite é a proibição das cotas raciais ou 45 sistemas numéricos de preferência para uma minoria específica, assumindo que a diversidade étnico-cultural, em seu sentido amplo, é o bem a ser tutelado pelo Estado. As cotas raciais, que no início da experiência norte-americana eram predominantes, foram abandonadas paulatinamente, não apenas pelo seu aspecto de beligerância, mas também por não conseguirem, muitas vezes, o efeito que seus proponentes esperavam delas. Foi esta a conclusão que ninguém menos suspeito chegou quando redigiu seu voto contrário à Ação Afirmativa no julgado da Suprema Corte norte-americana visto acima, o caso Grunter vs. Bollinger 02241 (2003). Trata-se do Ministro Clarence Thomas, um dos antigos beneficiários do programa de Ação Afirmativa da Faculdade de Direito da Universidade de Yale. Em seu voto de 31 páginas contrário ao uso do discrímen racial no processo de seleção da Universidade de Michigan, descreve o terrível estigma do beneficiário de cotas, começando seu texto da seguinte maneira: “Devo contestar a noção de que o sistema discriminatório da Escola de Direito [da Universidade de Michigan] beneficia aqueles que são admitidos como resultado dessa discriminação”17. Prossegue, dizendo que os beneficiários de cotas ou políticas afirmativas são “test subjects” (elementos de teste) e rotula a Ação Afirmativa como cruel farse of racial discrimination (a farsa cruel da discriminação racial). Grunter vs. Bollinger 02-241 (2003), voto do Ministro Clarence Thomas. Texto extraído no original inglês do Legal Information Institute da Universidade de Cornell Disponível em: <http://www.law.cornell.edu/>. Acesso em 26 jun. 2004, 15:30 Hs. (Tradução nossa). 17 46 Os resultados sobre o impacto real da Ação Afirmativa no EUA são objeto de uma disputa intensa, conforme bem assinala o já citado Professor Thomas Sowell (2004, p. 129-120) da Universidade Stanford: Embora constantemente se repita que o número de negros nas profissões liberais e em outras profissões de nível aumentou nos cinco anos seguintes à aprovação da marcante Lei dos Direitos Civis de 1964, é quase completamente ignorado o fato de que a quantidade de negros que alcançou essas posições foi ainda maior nos cinco anos que antecederam a aprovação daquela lei. [...] Enquanto se pode discutir o papel da legislação e das políticas de “oportunidades iguais” dos anos 60, tão bem exemplificado na Lei dos Direitos Civis, o efeito das políticas federais de ação afirmativa que começaram nos anos 70 é claramente menos sugestivo. Durante a década de 1970, a taxa de pobreza entre as famílias negras caiu de 30 para 29%. Mesmo que todo esse único ponto percentual fosse atribuído à ação afirmativa, ainda não seria parte significativa da história da ascensão econômica dos negros, por mais crucial que se queira pintar politicamente a ação afirmativa. O mesmo autor prossegue nessa linha de pensamento demonstrando efeitos por vezes drásticos de cotas raciais e sistemas de preferência em diversos outros países, como Índia, Paquistão, Malásia, Nigéria. Em sua análise sobre as cotas no Sri Lanka, Thomas Sowell (2004, p. 78 - 94) considera essa política como sendo uma das causas de Guerra Civil. É difícil chegar a uma conclusão final, conforme assinala Thomas Sowell acima, de que a Ação Afirmativa com seu sistema de preferências raciais obteve os resultados a que se propôs nos EUA ou ainda, se os resultados obtidos na melhora de qualidade de vida dos negros norte-americanos guarda nexo causal com a aplicação das políticas de discriminação positiva. Mas, a julgar pelo recente desenvolvimento da questão nos últimos anos, é possível afirmar que a balança virou definitivamente em contrário à Ação Afirmativa em seu país de origem e o sistema demonstra estar em acelerado abandono. As causas para 47 tanto podem ser variadas, quer por já ter cumprido seus objetivos, ou por causa de uma crescente rejeição popular, ou ainda por uma série de decisões judiciais que limitaram consideravelmente o espectro de aplicação prática de tais políticas. Como bem inferiu a Ministra da Suprema Corte Americana, em seu voto no caso da Universidade de Michigan citado acima18, seria desejável e até mesmo provável que em vinte e cinco anos as Ações Afirmativas nos EUA não fossem mais necessárias. 18 Cf. infra, p. 36. 48 4. EXPERIÊNCIAS PRÁTICAS DA AÇÃO AFIRMATIVA EM UNIVERSIDADES NO BRASIL Com a redemocratização do Brasil em meados dos anos 80 que culminou na promulgação da Constituição Federal de 1988, novas idéias e perspectivas foram aplicadas ao tema das relações raciais no Brasil. Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos (2005, p. 182), cientistas sociais, bem indicaram que nessa época, sociólogos brasileiros começaram a criticar a concepção, até então aceita por influência do ciclo de pesquisas da UNESCO, de que o preconceito racial seria um resquício da herança escravocrata. Também criticaram a concepção marxista da subsunção da categoria raça à classe social. Manifestações racistas do grupo dominante não seriam sobrevivências do passado, mas estariam relacionadas com benefícios simbólicos adquiridos pelos brancos no processo de competição e desqualificação dos negros. Não haveria, portanto, uma lógica inerente ao desenvolvimento capitalista que gerasse incompatibilidade entre racismo e industrialização. A seguir a esse período, o movimento negro contemporâneo colocou em pauta a discussão de políticas de Ação Afirmativa no Brasil, inegavelmente inspirado no movimento norte-americano que tivera seu ápice na década de 70. Entretanto, as políticas de Ação Afirmativa apenas ganharam força quando foram aderidas pelo Governo Federal quando da eleição de Fernando Henrique Cardoso para a Presidência da República, já em meados dos anos 90. A posição da Delegação Brasileira na III Conferência Mundial das Nações Unidas de Combate ao Racismo, Discriminação Social, Xenofobia e Intolerância Correlata, que ocorreu em Durban na África do Sul em 2001, marcou a virada do posicionamento oficial do governo brasileiro, conforme 49 observaram os antropólogos da UFRJ Yvonne Maggie e Peter Fry (2002, p. 94). A Delegação Brasileira encaminhou proposta que quebrou com a até então tradicional posição republicana do “a-racismo”, propondo ações afirmativas em favor dos negros. Na verdade, já na segunda metade da década de 90, o Governo Federal promovia uma série de debates sobre Ação Afirmativa. Entretanto, como observaram os já citados pesquisadores Maio e Santos (2005, p. 183), o governo demonstrava uma certa hesitação: De certo modo, a ambivalência de Fernando Henrique Cardoso exposta em seu discurso sobre as políticas de ação afirmativa permeará grande parte da atuação do seu governo. Não obstante uma série de propostas tenha sido introduzida no PNDH, elaborado em 1996, quanto à valorização da população negra, inclusive com a adoção de "políticas compensatórias que promovam social e economicamente a comunidade negra", até meados de 2001 parte significativa das metas do PNDH não haviam sido cumpridas. Contudo, os atos mais simbólicos do que práticos do governo FHC abriram espaço para que organizações da sociedade civil buscassem definir e implementar políticas de ação afirmativa mediante projetos voltados para a educação, mercado de trabalho patrocinados por fundações filantrópicas internacionais, empresas, igrejas, etc. No ano de 2001 o então Governador do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho, dentro do “espírito de Durban”, antecipou-se ao Governo Federal e sancionou a lei estadual 3.708 que instituiu a reserva de quarenta por cento das vagas em universidades públicas para negros e pardos no Estado. Essa lei foi posteriormente regulamentada pelo Decreto Estadual 30.766/2002 produzindo efeitos já no exame vestibular do ano 2002 com vistas ao ano letivo de 2003. O sistema de cotas raciais estava definitivamente estabelecido em um dos Estados mais importantes da União, o que foi seguido pelo Estado da Bahia, Distrito Federal, Mato Grosso do Sul e Paraná, onde políticas similares foram adotadas como parâmetro básico para a admissão de novos alunos nas universidades públicas. 50 A política de implantação de cotas, por sua vez, tende a ser estabelecida em nível federal, já que há estudos para tanto, patrocinados pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial do governo do Presidente Luís Inácio Lula da Silva. Baseados nesses estudos, o Executivo enviou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei 3.627/04 que institui cotas raciais e sociais para o ingresso em universidades públicas no país. Como o Projeto parece ser exíguo, é oportuno reproduzi-lo aqui: PROJETO DE LEI 3.627/04 Institui Sistema Especial de Reserva de Vagas para estudantes egressos de escolas públicas, em especial negros e indígenas, nas instituições públicas federais de educação superior e dá outras providências. O CONGRESSO NACIONAL decreta: Art. 1º As instituições públicas federais de educação superior reservarão, em cada concurso de seleção para ingresso nos cursos de graduação, no mínimo, cinqüenta por cento de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. Art. 2º Em cada instituição de educação superior, as vagas de que trata o art. 1o serão preenchidas por uma proporção mínima de autodeclarados negros e indígenas igual à proporção de pretos, pardos e indígenas na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. Parágrafo único. No caso de não-preenchimento das vagas segundo os critérios do caput, as remanescentes deverão ser completadas por estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. Art. 3º O Ministério da Educação e a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República serão responsáveis pelo acompanhamento e avaliação do sistema de que trata esta Lei, ouvida a Fundação Nacional do Índio - FUNAI. Art. 4º As instituições de que trata o art. 1º terão o prazo de duzentos e 51 quarenta dias para se adaptarem ao disposto nesta Lei. Art. 5º O Poder Executivo promoverá, no prazo de dez anos, a contar da publicação desta Lei, a revisão do sistema especial para o acesso de estudantes negros, pardos e indígenas, bem como daqueles que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas, nas instituições de educação superior. Art. 6º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Brasília, E.M. Nº 025 O projeto tem o mérito de evitar a controversa via da Medida Provisória, como era o desejo dos grupos pró Ação Afirmativa mais aguerridos, gerando inclusive críticas de parte da academia pela escolha da via ordinária (Carvalho, 2004, p. 69). Ele reserva cinqüenta por cento das vagas disponíveis em universidades federais a egressos de escolas secundárias públicas, mas isto é apenas um dos critérios. O segundo critério é que esses egressos de escolas públicas sejam pretos, pardos ou indígenas, pelo critério de autodeclaração, em igual proporção à porcentagem deles definido pelo censo do IBGE. Ora, como o número de pretos, pardos e indígenas no Brasil, segundo uma pesquisa do IBGE, é de 46,6% (variando de Estado para Estado)19 o número de cotas raciais vai ser mais ou menos equivalente ao número de cotas sociais. O Projeto também corrige algumas distorções dos sistemas atuais porque o primeiro critério é ter freqüentado o ensino médio integralmente em escola pública, o que indiretamente seleciona os mais economicamente carentes. Torna-se claro assim, entender como a crítica internacional em Durban às desigualdades aumentou a pressão aos órgãos governamentais e esse fato, aliado à eleição do Presidente Lula, acabou por consolidar e fortalecer os grupos políticos pró Ação Afirmativa, tornando possível a implantação prática dessas políticas, conforme assinalou o professor da UnB, José Jorge de Carvalho (2004, p. 68): 19 Síntese de Indicadores Sociais. IBGE: Rio de Janeiro, 2003, p. 227. 52 O Brasil foi obrigado a apresentar uma proposta de ações afirmativas na Conferência de Durban, principalmente como resposta não somente às demandas do Movimento Negro, mas também às pressões da comunidade internacional. [...] A relação do governo com os grupos minoritários assumiu um perfil singular e sem precedentes na nossa história republicana. No caso específico do Movimento Negro, que fez crescer sua agenda de reivindicações e sua capacidade de mobilização ao longo das décadas de 1980/1990, desde 2003 muitas das suas principais lideranças fazem parte agora do governo. Essa chegada ao poder foi algo planejado pelas lideranças negras, que se concentrara em participar das lutas sindicais e em afiliar-se aos partidos de esquerda, sobretudo ao Partido dos Trabalhadores (PT). Então, pela primeira vez na história do País, em um certo grau, uma parcela dos negros está no poder: as suas lideranças políticas. Como conseqüência, o início desta década foi marcado por diversas iniciativas estabelecendo cotas raciais e sociais em diversos Estados da União, fato que acabou gerando forte controvérsia, tanto nos meios acadêmicos como na mídia. Paulo Lucena de Menezes (2006, p.189) observa que em meados de 2006 havia pelo menos 16 universidades públicas brasileiras com programas de cotas raciais ou sociais e que a tendência é de um crescimento extremamente rápido dessa forma de aplicação de políticas afirmativas, independentemente da aprovação do Projeto de Lei retromencionado. Boa parte da controvérsia gerada pode ser debitada à escolha da aplicação prática da Ação Afirmativa, especificamente à implantação de cotas raciais, seguindo a preferência dos movimentos mais militantes que agora conquistavam espaços importantes no governo Lula. A opção pelo sistema de cotas, tanto utilizando critérios sociais (proveniência de escolas públicas), bem como raciais (para negros e indígenas), parece ter ignorado as experiências negativas que este tipo implantação de políticas afirmativas experimentou em outros países, mais marcadamente nos EUA. Conforme visto no capítulo anterior, após alguns anos de forte celeuma, abandonou-se o sistema de cotas nos EUA e adotaram-se 53 outras estratégias de aplicação da Ação Afirmativa, como sistema de bônus e o de preferências. Entretanto, grande parte dos ativistas pró Ação Afirmativa no Brasil fez claramente a opção pelo sistema de cotas, como salienta o professor da UnB, José Jorge de Carvalho (2003, p. 198): “O coletivo de professores dos NEABs [Núcleo dos Estudos Afro-Brasileiros] é unânime em considerar que as cotas devem formar uma parte central das políticas de ação afirmativa, tão discutidas atualmente” (grifo nosso). A euforia da era pós Durban, aliada à subida ao poder de parte da liderança negra, consagrou o sistema de cotas, mimetizando a experiência americana dos anos 70, mas sem exercer o devido cuidado nesse transplante de idéias. As cotas raciais hoje são consideradas o instrumento fundamental do movimento negro e outros grupos políticos identificados com a luta por preferências raciais. 20 4.1. Aspectos raciais no Brasil e EUA Ao optar pela estratégia de aplicação das Ações Afirmativas predominantemente através das cotas, conforme analisado acima, escolheu-se copiar, pelo menos em parte, a experiência norte-americana, mas sem levar em conta dois aspectos importantes: (a) a evolução das estratégias de aplicação da Ação Afirmativa nos EUA, e (b) a devida contextualização necessária no Brasil, em razão da drástica diferença das relações raciais entre os dois países. 20 Para se fazer justiça, é necessário aclarar que a defesa das cotas não é unânime no Movimento Negro, conforme observou o professor Ahyas Siss (2003, p. 132). Alguns se opõem à medida por considerar que ela seria apenas “tapar o sol com a peneira”, uma vez que não reduziria as igualdades. Entretanto, a grande maioria dos ativistas vê nas cotas um objetivo principal de atuação, conforme anotado acima. 54 Não se pretende aqui fazer uma crítica aos movimentos que apoiaram a adoção de cotas raciais no Brasil como maneira de combate à desigualdade, apenas por terem mimetizado um conceito estrangeiro. Isto seria um excesso de nacionalismo e uma crítica com pouco fundamento. Inspirar-se em experiências estrangeiras não é necessariamente errôneo e, muitas vezes, é até necessário fazê-lo. O problema fundamental é que se foi buscar justamente uma experiência já testada, utilizada e descartada no seu país de origem. Assim, propõe-se um transplante jurídico de um órgão já corrompido, negando-se a aprender com a experiência histórica integral de outros povos. É bem verdade que nem todos os proponentes da Ação Afirmativa no país defendem as cotas raciais como a melhor maneira de sua implantação. Alguns até mesmo enxergam a confusão dos dois conceitos (cotas e Ação Afirmativa) como uma forma que a mídia encontrou de minar o movimento, conforme escreveu o professor Ahyas Siss (2003, p. 146): Assim, como no O Estado de São Paulo, e na Veja, as políticas de ação afirmativa aparecem reduzidas às políticas de cotas numéricas inflexíveis. Neste e noutros veículos aqui analisados, as políticas de ação afirmativa são concebidas enquanto políticas de cotas percebidas como nefastas, estigmatizadoras de seu público alvo, além de lesivas ao princípio do mérito individual. [...] Novamente foi perdida, pela imprensa, uma oportunidade excelente de dar visibilidade à discussão sobre a necessidade e validade ou não de elaborar-se e implementar-se aqui, políticas de ação afirmativa racialmente diferenciada e adequada ao nosso contexto. O problema que o professor Ahyas Siss não abordou é que as cotas raciais, mesmo sendo inflexíveis, como ele mesmo reconheceu, transformaram-se efetivamente no principal alvo da luta pela Ação Afirmativa (conforme demonstrado acima) e acabaram sendo a principal via de implantação das políticas no país. Portanto, o que a imprensa noticia não é apenas uma visão 55 ideológica, mas efetivamente a realidade imposta pelos grupos militantes que, ao assumir importantes posições no governo, lograram implantar a sua concepção de Ação Afirmativa, às vezes pela via legal. Hoje, a grande maioria das normas jurídicas que tratam das Ações Afirmativas para ingresso em universidades, tanto estaduais como federais, fazem a opção pelas cotas numéricas, com a honrosa exceção do Estado de São Paulo, que optou pelo sistema de bônus. 4.1.1. Aspectos da formação dos povos brasileiro e norte-americano. A primeira grande e visível diferença das relações raciais no Brasil e EUA, constitui-se, sem dúvida, na questão da miscigenação. A mescla de povos na origem do brasileiro é um aspecto marcante, conforme observou o antropólogo Darcy Ribeiro (2004, p. 133), um dos fundadores da Universidade de Brasília (UnB): O surgimento de uma etnia brasileira, inclusiva, que possa envolver e acolher a gente variada que aqui se juntou, passa tanto pela anulação das identificações étnicas de índios, africanos e europeus, como pela indiferenciação entre as várias formas de mestiçagem, como os mulatos (negros e brancos), caboclos (brancos e índios), ou curibocas (negros com índios). Só por esse caminho, todos eles chegam a ser uma gente só, que se reconhece como igual em alguma coisa tão substancial que anula suas diferenças e os opõe a todas as outras gentes. E sobre a diferença entre a valorização das uniões inter-raciais entre o Brasil e EUA comenta: Com efeito, as uniões inter-raciais, aqui, nunca foram tidas como crime ou pecado. Provavelmente porque o povoamento do Brasil não se deu por famílias européias já formadas, cujas mulheres brancas combatessem todo o intercurso com mulheres de cor. Nós surgimos, efetivamente, do cruzamento de uns poucos brancos com multidões de mulheres índias e negras. (Ribeiro, 2004, p. 225). 56 Essa tese antropológica de Darcy Ribeiro, ainda que vista por alguns como neofreyreana (Medeiros, 2004, p. 59), foi confirmada objetivamente por estudos científicos, levados a cabo pelos geneticistas Sérgio Pena e Maria Catira Bortolini (2004, p. 6): Em resumo, estes estudos filogeográficos com brasileiros brancos revelaram que a imensa maioria das patrilinhagens é européia, enquanto a maioria das matrilinhagens (mais de 60%) é ameríndia ou africana. Evidencia-se, assim, um padrão de reprodução assimétrico (homem europeu com mulheres indígenas e africanas), o qual está de acordo com o que sabemos sobre o povoamento "pós-descobrimento" do Brasil. Em 1552, em carta ao rei D. João, padre Manuel da Nóbrega relata a falta de mulheres brancas no país e pede que elas sejam enviadas, para que os homens "casem e vivam [...] apartados dos pecados em que agora vivem". A coroa portuguesa tolerava relacionamentos entre portugueses e índias desde o início da colonização e até passou a estimular ativamente casamentos desse tipo por meio de um Alvará de Lei promulgado em 4 de abril de 1755 pelo Marquês do Pombal. Acredita-se que a idéia de Pombal era povoar o Brasil, garantindo sua ocupação territorial. Mas essa política, bastante liberal para a época, não foi estendida aos africanos. Contudo, sabe-se que, na prática, os relacionamentos entre portugueses e africanas persistiram em altos níveis. Essa situação tem enorme contraste com a colonização norte-americana onde a relação sexual inter-racial era considerada crime nas principais das 13 colônias originais (Higginbotham, 1978, p. 40). O mesmo autor também aponta para o fato de que a Suprema Corte norte-americana apenas considerou inconstitucionais leis que proibiam o casamento inter-racial em 1967, quando pelo menos 16 Estados da União ainda vedavam esse tipo de casamento. Se for verdade que houve algum tipo de miscigenação entre brancos e negros nos EUA, esta não foi significativa e a separação física das raças sempre foi um elemento preponderante na formação dos americanos do norte. 57 A miscigenação de raças na formação do brasileiro, que mais tarde se desenvolveu e formou efetivamente um povo, foi apontada pelo antropólogo Gilberto Freyre (1969, passim) como uma importante contribuição cultural do Brasil à humanidade e ficou reconhecida pelo conceito de “democracia racial”. Entretanto, conforme observou o sociólogo Antônio Guimarães (2002, p. 109), o conceito de “democracia racial” de Freyre foi fortemente criticado, tanto por movimentos negros como por sociólogos de inspiração marxista que consideravam que “democracia racial seria apenas um modo cínico e cruel de manutenção das desigualdades sócio econômicas entre brancos e negros, acobertando e silenciando a permanência do preconceito de cor e das discriminações raciais”. Embora a “demonização” de Freyre e da democracia racial tenha sido rejeitada por parte importante da Academia (Guimarães, 2002, p. 57), ela aparece ainda viva em muitos autores, especialmente àqueles ligados ao movimento negro ou a outros movimentos anti-racistas. 21 Críticas menos severas e mais realistas enxergam na democracia racial seu lado positivo e não apenas uma ideologia de dominação que pretende esconder o preconceito racial, conforme salientou o professor Antônio Sérgio Alfredo Guimarães (2002, p. 110) da Universidade de São Paulo: [...] devemos ver na “democracia racial”, também um compromisso político e social do moderno Estado republicano brasileiro, que vigeu, alternando força e convencimento, do Estado Novo de Vargas até a ditadura militar. Tal compromisso consistiu na incorporação da população negra brasileira ao mercado de trabalho, na ampliação da educação formal, enfim, na criação das condições infra-estruturais de uma sociedade de classes que desfizesse os estigmas criados pela escravidão. A imagem do negro enquanto povo e o banimento, no 21 São vários os autores que denunciam a “democracia racial” como um perigoso mito que alegadamente serviria para acobertar as práticas racistas dissimuladas no Brasil. Ver, por exemplo, Carlos Alberto Medeiros (2004, p. 48 a 57); José Jorge de Carvalho (2004, p. 64 a 67); Ahyas Siss (2003, p. 138 a 144). 58 pensamento social brasileiro, do conceito “raça”, substituído pelos de “cultura” e “classe social” são suas expressões. Já nos EUA, a formação do povo foi marcada por uma divisão profunda entre as duas raças majoritárias, os brancos e os negros. Na América do Norte, o fosso aberto entre as raças era concreto e manifesto, contando com o auxílio do aparato legal, conforme observou a Procuradora do Distrito Federal, Roberta Fragoso Kaufmann (2006, p.7): O ódio que se originou do fosso racial nos Estados Unidos implicou a formação de duas comunidades distintas, a partir da segregação institucionalizada, qual seja, incentivada e patrocinada por meio de políticas de segregação públicas e promovidas por meio de leis, de decisões administrativas e da jurisprudência. Por meio dela, os negros foram proibidos de freqüentar as mesmas escolas que os brancos, proibidos de ter propriedade, de casar com brancos, de votarem, de testemunharem. Não podiam dirigir nas mesmas estradas, sentar nas mesmas salas de espera, usar os mesmos banheiros ou piscinas, comer nos mesmos restaurantes ou assistir a peças nos mesmos teatros reservados aos brancos. Aos negros, era simplesmente vedado o acesso a parques, praias e hospitais. Observa-se, portanto, uma profunda diferença das relações raciais entre os dois povos. Do lado norte-americano, nota-se o desenvolvimento de duas comunidades em paralelo, havendo uma notável divisão entre elas, divisão essa garantida por um aparato jurídico institucional. Do lado brasileiro, embora a discriminação existisse e se mantivesse dissimulada, as comunidades se mesclaram. A aplicação das Ações Afirmativas nos EUA nunca teve de lidar com a questão da miscigenação, e a classificação racial naquele país nunca representou um problema prático para as várias estratégias de aplicação das políticas afirmativas, sejam elas cotas, sistemas de preferência ou bônus, justamente porque havia uma clara distinção entre os dois grupos e a figura do mestiço era desconhecida, ou, pelo menos, ignorada como realidade. Mas, o transplante 59 jurídico das cotas para o Brasil, já na sua primeira tentativa, deparou-se com a questão da miscigenação. Conforme observaram os geneticistas Sérgio Pena e Maria Catira Bortolini (2004, p. 9), em uma pesquisa científica bem elaborada, 87% dos brasileiros têm ao menos 10% de ancestralidade genômica africana e na região Sul, por exemplo, mais de dois terços (72%) dos afrodescedentes consideram-se brancos. Se o critério norte-americano de classificação racial fosse adotado no Brasil, poucos seriam considerados brancos. Portanto, a grande maioria dos brasileiros pode se declarar Afrodescendente com certa dose de razão. E assim concluem os geneticistas: É neste contexto que se insere este trabalho, pois procura mostrar que os afrodescendentes são em número bem maior do que aqueles que aparentam ser por suas características físicas, chegando ao número impressionante de 146 milhões de pessoas. Procurou-se também demonstrar que muitos dos que se identificam como negros apresentam uma proporção significativa de ancestralidade européia. Dessa maneira, não é nada surpreendente que existam confusões e problemas relacionados aos critérios adotados para definir quem deve ser beneficiado pelas políticas de ação afirmativa no Brasil. (Pena; Bortolini, 2004, p. 10). 4.1.2. Classificações Raciais Além da miscigenação, outra grande diferença das relações raciais no Brasil e nos EUA consiste no fato de como são feitas as classificações raciais. Esse assunto já foi bastante explorado pelas Ciências Sociais, mas se faz necessário um breve relato sobre o tema. Uma boa parte das pesquisas sobre esse assunto faz referência a Oracy Nogueira, que apresentou um estudo no XXXI Congresso Internacional de Americanistas, ocorrido em São Paulo entre os dias 23 e 30 de agosto de 1954. Após várias versões, o estudo foi publicado como livro em 1979, com o título 60 Tanto preto quanto branco – estudos de relações raciais, hoje de difícil acesso (Praxedes, 2003, p. 1). Nesse estudo, Oracy classifica o preconceito racial em dois tipos, o preconceito racial de origem e o preconceito racial de marca. O preconceito racial nos EUA seria do primeiro tipo, devido a fatores históricos de como as comunidades negra e branca se desenvolveram em separado. Já o segundo tipo seria o praticado no Brasil. Esse conceito dual de discriminação acabou se tornando bastante difundido, principalmente quando se faz o paralelismo das relações sociais em ambos os países. O preconceito de origem é mais aberto e segregacionista. Provém da era Jim Crow conforme já explanado acima. É o preconceito praticado com bases legais onde os dois grupos raciais (brancos e negros) não se misturam, vivendo separadamente. Já no preconceito de marca, o negro e branco convivem juntos, muitas vezes se misturando, mas mesmo assim o negro é discriminado como um cidadão de segunda categoria. A diferença dos dois tipos de discriminação seria que uma é mais aberta e a outra mais dissimulada, mas os efeitos são perversos em ambas as formas. A discriminação chamada “de origem” gerou o método de classificação racial que os EUA adotaram após o fim da escravidão. Como a sociedade americana era segregada, métodos mais objetivos de definição raciais tornaramse uma necessidade jurídica, desde que a mera aparência do indivíduo não poderia servir como uma base sólida e mais objetiva de distinção. Assim, o método escolhido foi o da ancestralidade, estabelecendo um sistema birracial, sem lugar para classificações intermediárias. Conforme observou Roberta Fragoso Kaufmann (2006, p.19): Dessa forma, nos Estados Unidos, seriam consideradas negras as pessoas que possuíssem quaisquer ascendentes africanos, mesmo que estes fossem antepassados longínquos. Em alguns casos, o Judiciário 61 Estadual limitou a fixação da ascendência em trinta e dois graus; em outros, em dezesseis e até em oito graus, mas, como regra geral, não havia limitação. Tal critério tornou-se conhecido como a regra da uma gota de sangue, ou one drop rule. [...] Enquanto o critério da aparência é feito subjetivamente, o critério da ancestralidade procura aspectos mais objetivos para classificação. [...]. Implementou-se nos Estados Unidos uma sociedade birracial, ou seja, uma comunidade na qual somente havia a possibilidade de a pessoa ser enquadrada como branca ou como negra. Não havia a categoria dos morenos, dos mulatos, ou dos pardos, como no Brasil. (grifos no original). No Brasil, ao contrário dos EUA, não houve um sistema jurídico institucional que determinasse a separação racial. Portanto, um sistema elaborado de classificação racial nunca foi realmente necessário. Além disso, como houve um grau importante de miscigenação, o sistema adotado foi aberto, dando espaço para diferentes níveis de tonalidades de pele. No Brasil, nunca houve um sistema birracial, embora ninguém negue que o preconceito racial existiu e continua existindo, de diferentes formas. Na história mais recente do Brasil, o IBGE 22 adotou uma forma de classificação racial (ou por cor) que envolve 5 tipos possíveis: brancos, pretos, pardos, amarelos e indígenas. Essa forma de classificação por cor tende a evitar a infundada crença em raças biológicas ou genéticas, crença essa conhecida pelo jargão técnico de racialismo. Como critério adicional, o IBGE adota a autodeclaração, deixando exclusivamente para o indivíduo a escolha de julgar a qual grupo social (raça) pertence. De fato, a idéia de raça humana com bases biológicas foi uma elaboração da Antropologia antiga que hoje é condenada pelos antropólogos modernos. Entretanto, esse conceito ultrapassado, difundido pelos primeiros cientistas 22 Cf. IBGE. Síntese de Indicadores Sociais. Rio de Janeiro, 2003. 62 sociais europeus, ainda mantém seus resquícios na sociedade atual, conforme bem observou o conhecido antropólogo Lévi-Strauss (1993, p. 328-329): Quando procuramos caracterizar as raças biológicas através de propriedades psicológicas particulares, afastamo-nos da verdade científica, quer definindo-as positivamente, quer negativamente. [...] Mas o pecado original da antropologia consiste na confusão entre a noção puramente biológica de raça (supondo, aliás, que, mesmo neste terreno limitado, esta noção pudesse pretender à objetividade, o que a Genética moderna contesta) e as produções sociológicas e psicológicas das culturas humanas. Na verdade, existe hoje um consenso de que raças humanas no sentido biológico simplesmente não existem, subsistindo apenas uma consideração social de etnia, que não está ligada a traços genéticos ou biológicos. Este é também o entendimento do Egrégio Supremo Tribunal Federal que já se manifestou em uma importante decisão que reproduzimos parcialmente a seguir: EMENTA: HABEAS-CORPUS. PUBLICAÇÃO DE LIVROS: ANTI-SEMITISMO. RACISMO. CRIME IMPRESCRITÍVEL. CONCEITUAÇÃO. ABRANGÊNCIA CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. LIMITES. ORDEM DENEGADA. [...] 3. Raça humana. Subdivisão. Inexistência. Com a definição e o mapeamento do genoma humano, cientificamente não existem distinções entre os homens, seja pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pêlos ou por quaisquer outras características físicas, visto que todos se qualificam como espécie humana. Não há diferenças biológicas entre os seres humanos. Na essência são todos iguais. 4. Raça e racismo. A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista. [...] HC 82424 / RS - RIO GRANDE DO SUL. HABEAS CORPUS. Relator: Min. MOREIRA ALVES. Relator p/ Acórdão: Min. MAURÍCIO CORRÊA. Julgamento: 17/09/2003 Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: DJ 19-03-2004 PP-00017 EMENT VOL-02144-03 PP00524 63 O conceito de raça humana, portanto, é fluído e depende do sentimento de pertença que o indivíduo possa ter em relação a um grupo e não de características biológicas ou mesmo do fenótipo. Portanto, tentativas de classificações raciais de indivíduos que desprezam a autodeclaração fogem tanto a padrões científicos como ao direito fundamental desses indivíduos de expressarem sua própria identidade cultural, levando a considerações importantes sobre a dignidade da pessoa humana. Esse aspecto será mais explorado abaixo, quando da análise do sistema de cotas implantado pela UnB. 4.1.3. Visão bipolar e multipolar da classificação racial Ensina-nos o jornalista e pesquisador Carlos Alberto Medeiros (2004, p. 62), em um trabalho de cunho acadêmico, a diferença entre os dois principais critérios de classificação racial: Na área de pesquisa que aqui nos interessa, um dos aspectos em que esse tipo de bias pode estar presente é na definição das categorias raciais, em particular na oposição entre a perspectiva tradicional, dita multipolar, de um continuum de classificações baseadas em tonalidade da pele – reais ou imaginárias -, e a visão bipolar, defendida pelo movimento negro e por setores da academia, especialmente os que se dedicam à pesquisa quantitativa. O autor prossegue para descrever que a visão multipolar é creditada aos adeptos da teoria da democracia racial, que estaria associada à ideologia do branqueamento, enquanto que a visão bipolar é a única que faz uma análise justa das relações raciais no Brasil, denunciando o fosso de desigualdade racial entre brancos e negros. Para os adeptos da visão bipolar, devem ser consideradas apenas duas classificações raciais, a branca e a negra, sem espaço para categorias intermediárias. Os pardos são considerados negros e devem ter uma 64 atitude de luta e confronto em face à opressão da elite branca. A ênfase na miscigenação é descartada de plano como reminiscência do mito da democracia racial. A visão bipolar aproxima-se muito do conceito norte-americano one drop rule, que foi visto acima. Entretanto, o problema da visão bipolar, além de adotar uma postura de militância e confrontação racial, é que ela tenta simplesmente ignorar a figura do mestiço como identidade própria, quando não despreza o próprio conceito, conforme pode ser percebido no seguinte texto do professor José Jorge de Carvalho (2004, p. 79) da UnB: Poderíamos acrescentar aqui a ambivalência esquizofrenizante da autodeclaração do Ministro Gilberto Gil, logo no início do seu mandato em 2003, como um “negromestiço”. Ao emitir essa definição contraditória, coloca milhões de negros brasileiros que o admiram também em uma injunção psíquica de duplo-vínculo. Por um lado, admiram-no enquanto negro, grande artista, modelo de sucesso e auto-estima raríssimo entre os membros de sua comunidade. Por outro lado, o mesmo Gilberto Gil avisa que não é negro e nega a oferta de identificação que ele mesmo emitiu para seus irmãos negros ao se declarar mestiço, isto é: sem nenhuma identidade racial confrontadora, alguém famoso que não incomoda, atitude bem ao gosto dos brancos racistas. A ideologia freyreana dos “antagonistas equilibrados” e da democracia racial é aqui mais uma vez usada na contramão de um momento político de afirmação da comunidade negra brasileira, extremamente importante como o atual, e justamente por um músico (negro?) brasileiro mundialmente famoso. Nota-se nas palavras acima que a auto-identificação como mestiço é considerada pelos defensores da bipolaridade quase como uma traição à raça negra. A adoção da bipolaridade, portanto, é também a defesa da confrontação racial, da busca pelo poder, adotando a classificação racial de origem norteamericana que não deixa espaço, nem tolerância para a miscigenação. Nesse sentido, a crítica do professor da USP Antônio Sérgio Alfredo Guimarães (2002, p. 57): 65 A tensão entre o movimento negro e a academia brasileira é também grande quando se trata de identidade racial. Definindo “negros” como todos os descendentes de africanos e identificando-os com a soma das categorias censitárias “preto” e “pardo”, o movimento incorreu em duas heresias científicas: primeiro, adotou como critério de identidade, não a auto-identificação, como quer a moderna antropologia, mas a ascendência biológica; segundo, ignorou o fato de que, em grande parte do Brasil, a população que se autodefine “parda” pode ter origem indígena e não africana. A pretensão de identificar alguém como “negro” pela sua ascendência, ignorando o modo como as pessoas se classificam ou traçam suas origens, deu margem também a outras críticas: a de que o movimento negro tenta impor categorias raciais [norte] americanas ao Brasil, e a de que professa a crença em raças biológicas (racialismo). A ideologia do movimento negro que, como afirma o texto acima, parece adotar a crença no racialismo e, ao mesmo tempo, na bipolaridade, pode ser sumarizada no neologismo, hoje freqüentemente utilizado, “afrodescendente”. Este é um termo esculpido cuidadosa e ideologicamente para eliminar a classificação oficial de “pardo” e fazer remissão a uma suposta ascendência africana, de modo reforçar a falsa relação entre genética (ou ancestralidade) com o conceito de raça. Na expressão, rejeita-se a incômoda referência à miscigenação e busca-se ressuscitar a anticientífica noção de raças biológicas ou genéticas. O fato de que esse neologismo tem alcançado muitas vezes o texto de normas jurídicas, leva à constatação da influência política do movimento bipolar no Governo e Legislativo, infiltrando sua ideologia racial na linguagem oficial. 4.2. Aplicações práticas em universidades. Tecidas as considerações acima sobre a questão racial no Brasil, prossegue-se na análise das primeiras tentativas de aplicação prática da Ação Afirmativa no país que acabaram tornando-se casos emblemáticos. A análise da situação fática e dos problemas encontrados ajudará na identificação de importantes limites que a Ação Afirmativa deve ter de maneira a não ferir os 66 princípios democráticos e a própria Constituição Federal, embora a questão da constitucionalidade per se esteja reservada para o último capítulo deste estudo. A escolha das três experiências abaixo (a aplicação de cotas no vestibular da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, a aplicação de cotas nos processos de seleção da Universidade de Brasília e o sistema de bônus da UNICAMP) justifica-se por diferentes razões. O primeiro tornou-se emblemático, não só porque foi a pioneira experiência de cotas raciais em um exame vestibular no Brasil, mas também por causa dos problemas práticos de sua implantação que exigiram uma série de reformas e mudanças do sistema em um período exíguo de tempo. Adicionalmente, a publicação dos resultados desse vestibular no início de 2003 catapultou a polêmica das cotas raciais para níveis muito elevados, com ampla cobertura da mídia, e deu nova dinâmica ao debate (Brandão, 2005, p. 62). A escolha do caso da Universidade de Brasília se justifica porque, além de ser a primeira universidade federal a adotar cotas raciais, é um caso sui generis entre outros implantados em diversas universidades do país, por concentrar-se exclusivamente na questão racial e também por ter abandonado o critério de autodeclaração. Finalmente, a escolha da análise do sistema de bônus na Universidade de Campinas (UNICAMP) é profícua porque é um sistema diferenciado. Enquanto a maioria das universidades que aplicaram modelos de Ação Afirmativa o fizeram por via das cotas, a UNICAMP utilizou-se de bônus. O estudo desses três casos, longe de esgotar o assunto da implantação da Ação Afirmativa no país, poderá fornecer insights na formulação de considerações teóricas sobre o limite que tais aplicações devam ter. 67 4.2.1. Cotas na Universidade Estadual do Rio de Janeiro A implantação de cotas para as universidades estaduais do Rio de Janeiro (incluindo tanto a UERJ como a UENF) gerou desastrosos resultados em seu primeiro ano de implantação. Isto ocorreu porque havia duas leis diferentes que prescreviam diferentes tipos de cotas. Em primeiro lugar, a lei estadual 3.524/2000 instituiu a reserva de 50% das vagas das duas universidades para egressos que haviam cursado o ensino fundamental e médio integralmente em escolas públicas situadas no Estado do Rio de Janeiro. Pouco tempo após a promulgação dessa lei, o então Governador Anthony Garotinho sancionou uma outra Lei, (3.708/2001) que reservava 40% das vagas para autodeclarados negros ou pardos. De maneira a conciliar as duas leis acima, o governador expediu o Decreto 30.766/2002 regulamentando as aplicações de ambos os diplomas legais. O aludido decreto criou o seguinte sistema: (1) em primeiro lugar, preenchem-se as cotas de 50% referentes a egressos das escolas públicas; e (2) compensando-se o número de negros e pardos que já foram agraciados no primeiro lote, preenchem-se as cotas de 40% de negros e pardos. O restante de vagas seria ocupado pelo sistema tradicional. Para se adequar ao Decreto, as universidades tiveram de fazer duas provas separadas, uma apenas para quem preenchia o critério de haver estudado em escolas públicas e outra para todos os demais. Os dois tipos de prova, entretanto, tinham níveis iguais de dificuldade. Quando os resultados do primeiro exame vestibular foram divulgados no início de 2003, constatou-se que a sobreposição de cotas reduziu drasticamente o número de vagas disponíveis pelo critério do mérito. O Promotor Estadual José Marinho Paulo Júnior (2003, p. 1) observou que em certos cursos o número de vagas disponíveis para não cotistas foi apenas 10% (e.g. curso de desenho 68 industrial na UERJ). No cômputo total, apenas 36,6 % entraram na UERJ fora das cotas naquele ano. 23 Além do problema da distribuição das vagas e da sobreposição de cotas, a marcante diferença entre as notas dos beneficiados e dos não beneficiados gerou uma avalanche de críticas na mídia. Em alguns cursos, os estudantes beneficiados pela reserva de vagas ficaram com uma nota 11 vezes menor que a nota mínima exigida para os demais vestibulandos. O caso mais grave foi constatado na Odontologia, onde o último colocado pelo vestibular tradicional fez 77,5 pontos de um total de 100 pontos, enquanto o último colocado cotista alcançou apenas 6,2 pontos sobre o mesmo total. 24 Como não havia uma nota mínima para cotistas, candidatos com notas pouco superior ao zero, como o caso acima, foram admitidos. Não faltaram também acusações de abusos na autodeclaração de pardo e negro. Devido à suspeita de fraude na obtenção do benefício das cotas, o Ministério Público do Rio de Janeiro foi acionado e seus membros buscaram os cientistas de maneira a comprovar as possíveis fraudes no processo seletivo por cotas. A tentativa foi buscar um parecer pericial de que certos indivíduos não pertenciam à raça negra ou à parda, mas esse caminho não prosperou, pois, conforme atesta Rosana Heringer, do Centro de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Cândido Mendes do Rio, “não existe forma objetiva de definir raça”. 25 23 Conforme publicado na Folha de São Paulo, disponível em: <www1. folha.uol.com.Br/folha/educação/ult305u12540.shtml>. Acesso em: 31/01/2003, às 10:43 Hs. 24 Conforme publicado no O Estado de São Paulo: <www.jt.estadao.com.br/editoriais/2003/02/12/editoriais003.html>. Acesso em: 31/05/2003, às 11:02 Hs. 25 Em entrevista a O Estado de São Paulo < www.estado.com.br/editoriais/2003/02/16/ger012.html>. Acesso em: 31/05/2003 às 15:03 Hs. 69 Além das críticas, as universidades foram questionadas com uma enxurrada de mandados de segurança, buscando garantir a matrícula pelos preteridos do sistema de cotas. Em vários casos, os impetrantes lograram êxito em suas demandas, com a concessão de medidas liminares pelo Judiciário (Brandão, 2005, p. 64). As leis de cotas também foram questionadas pela ADIn 2.858 ajuizada pelo SINEPE do Estado do Rio de Janeiro. Nessa Ação, o então Procurador Geral da República, Geraldo Brindeiro, opinou pela inconstitucionalidade das leis, não por qualquer questão relacionada à Ação Afirmativa, mas por vício de competência. Entendeu o ilustre Procurador Geral que faltaria competência ao ente federativo estadual para legislar sobre a matéria. Além disso, a medida estadual acabara por ferir a autonomia das universidades que são livres para decidir sobre as normas de acesso. Em função de toda a polêmica, dos resultados do vestibular e das duras críticas que se seguiram, o Governo Estadual resolveu reavaliar a implantação de cotas para universidades estaduais. Convocou representantes da UERJ, UENF e sociedade civil, dentre os quais figuravam também as conhecidas ONGs de combate ao racismo. O resultado dessa revisão legislativa foi a lei 4.151 de 4/09/2003 que revogou ambas as leis anteriores citadas acima e instituiu um sistema mais abrangente de cotas, de maneira a eliminar a sobreposição destas. Pela nova Lei, as cotas ficaram assim distribuídas: • 20% das vagas para alunos que cursaram o ensino fundamental e o ensino médio integralmente em escolas públicas no Estado do Rio de Janeiro. • 20% para os negros, assim reconhecidos por autodeclaração. • 5% para portadores de deficiência e outras minorias étnicas. 70 Com a revogação das leis anteriores a ADIn acima mencionada perdeu seu objeto, porque naturalmente seria ilógico declarar inconstitucional uma lei que já não mais vigorava. Entretanto, o mesmo sindicato acabou por promover uma outra Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o nova lei (ADIn 3.197, atualmente em trânsito no STF). A nova lei tem o mérito de ser abrangente e inclusiva, isto é, procura beneficiar um espectro amplo de minorias, não se concentrando em apenas uma ou duas. Não pode essa lei ser acusada de subinclusão, por ter tido os cuidados de abordar, além de negros, os desprivilegiados economicamente (pela via indireta da exigência de haver estudado em escolas públicas), os portadores de deficiência e “outras minorias”, deixando uma porta aberta a algum outro tipo de minoria que se julgue discriminada ou não nivelada com a maioria da população (não apenas os indígenas). Outro ponto positivo é a manutenção do critério de autodeclaração, não sucumbido à tentação de instituir comissões julgadoras de quesitos raciais. Entretanto, não faltam problemas na nova legislação. Em primeiro lugar, cabe destacar que a ideologia da bipolaridade racial foi infiltrada na reforma da legislação. Como bem observou o jornalista Ali Kamel (2006, p. 54), “os pardos sumiram”. O fato é que o artigo 1o, II da nova lei, menciona como beneficiários das cotas apenas “negros” e não “negros e pardos”, como na antiga lei. Assim, se um autodeclarado pardo no censo do IBGE desejar se candidatar às vagas reservadas na nova lei, ele terá que, desta vez, modificar a sua auto-identificação e se dizer negro. Isto pode parecer um detalhe sem importância, mas é nesses detalhes que a ideologia da bipolaridade exerce seu poder, ao legalmente convencer um indivíduo, que se considere mestiço, e esteja feliz com essa identificação, a mudá-la para se enquadrar em um sistema maniqueísta de classificação racial. Novamente comenta Kamel (2006, p. 54 - 55): 71 E o sumiço dos pardos não foi obra de nenhum conceito abrangente de alguns pesquisadores que consideram que os pardos são negros. Foi ato deliberado. Porque a mesma lei abre dois parágrafos para definir coisas simples, um para definir o que entende por “estudante carente” e, outro, para definir o que entende por “aluno oriundo da rede pública”. Mas não há nenhum parágrafo para definir o que entende por negro (poderiam, se quisessem incluir os pardos, explicitar, que, para o legislador, “negros são a soma de negros e pardos”, mas não o fizeram). E, pior, acrescentaram um parágrafo, aceitando a autodeclaração como forma de os negros se inscreverem, mas ordenando que a universidade crie mecanismos para combater fraudes. A experiência da implantação de cotas sociais e raciais no Estado do Rio de Janeiro deixa algumas lições que podem ser aproveitadas para o pesquisador das ações afirmativas no Brasil. Além das já acima anotadas, vale destacar que a implantação de sistemas, tão polêmicos e beligerantes como as cotas raciais, tem de ser acompanhada do devido cuidado e de ampla discussão com a sociedade civil. A implantação, rápida e pouco planejada devido à pressão de certos grupos sociais, levou o instituto ao descrédito. Os resultados pouco previstos, chegando a levar à reserva de 90% das vagas em alguns cursos, fogem a qualquer padrão de razoabilidade e ferem o princípio constitucional da proporcionalidade, como será detalhado mais adiante. Também se pode observar que a aplicação do critério sócio-econômico por via indireta (proveniência de escolas públicas do Estado do Rio de Janeiro) fere o princípio constitucional da igualdade, além de arranhar o pacto federativo. É perfeitamente defensável a posição da aplicação do conceito de igualdade material para se proteger ou mesmo tentar igualar cidadãos em situações desiguais. Mas, ao discriminar cidadãos em situações semelhantes, fere-se a igualdade. Como observou o professor Bandeira de Mello (1978, p. 49) em sua clássica obra sobre o princípio da igualdade: “é agredida a igualdade quando o fator diferencial adotado para qualificar os atingidos pela regra não guarda 72 relação de pertinência lógica com a inclusão ou exclusão no benefício deferido ou com a inserção ou arredamento do gravame imposto”. Não há justificativa racional para se tratar egressos de escolas públicas do Rio de Janeiro de maneira privilegiada, prejudicando-se egressos de escolas públicas de outros Estados. Se um aluno estudou dois anos em escolas públicas fora do Estado, mas o restante do tempo do ensino fundamental e médio no Rio de Janeiro, assim mesmo ele não poderá se beneficiar das cotas, porque a lei exige que o candidato ao benefício tenha estudado integralmente em escolas públicas no Estado do Rio de Janeiro. A lei, portanto, estabelece um sistema discriminatório contra egressos de outros Estados, sem uma justificativa lógica ou aceitável para tal. Nessa mesma trilha de raciocínio, comenta o constitucionalista Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1988, p. 27): Na verdade, ele [o legislador] viola a igualdade sempre que beneficia desarrazoadamente determinadas categorias. E note-se – não se pode diferenciar entre os homens senão de modo proporcionado às diferenças entre eles. Ou seja, o princípio de igualdade subsume um princípio de proporcionalidade, como reconhecem os alemães. O problema observado pode ser creditado ao fato de que, nas complexas negociações políticas que culminaram na promulgação das leis instituindo as cotas, procurou-se inserir na legislação uma questão regionalista estranha ao conceito de Ação Afirmativa. Não faz o menor sentido propor uma discriminação para favorecer quem estudou em determinado Estado da União e essas tentativas são incompatíveis com o pacto federativo. Se todos os Estados promulgarem leis semelhantes, isto contribuirá para o acirramento do 73 regionalismo em prejuízo à integração nacional, uma clara violação constitucional. Por último, os resultados finais do exame vestibular de 2002 na UERJ serviram para demonstrar os efeitos desastrosos das políticas de cotas, que por vezes só são sentidos depois da aplicação, conforme já mencionado acima. 26 Um candidato que, em um exame vestibular, consiga pouco mais de 6 pontos em um total de 100 pontos possíveis obviamente não está preparado para o ensino superior, principalmente quando, no sistema tradicional, e no mesmo exame, outros candidatos conseguiram notas pelo menos dez vezes mais elevadas. Esses resultados não apenas demonstram a falta de razoabilidade que as cotas impingem ao sistema público de ensino, como também fulminam o sistema de mérito, este conseguido a duras penas no processo de superação do ancient régime no processo histórico que depurou o ideal republicano. 4.2.2. Cotas na Universidade de Brasília Se a implantação de cotas nas universidades estatuais do Rio de Janeiro gerou uma forte controvérsia na mídia, a experiência de Brasília causou o mesmo nível de polêmica, só que dessa vez nos meios acadêmicos. Isto foi devido ao fato, conforme observaram Marcos Maio e Ricardo Santos (2005, p. 193), de que a universidade criou uma comissão de classificação racial, utilizando-se de “critérios supostamente objetivos e científicos” e “apoiou-se em uma cientificidade anacrônica e alheia aos preceitos da ciência contemporânea”. 26 Cf. infra, p. 15. 74 No ano de 2004 a Universidade de Brasília anunciou a implantação de reserva de vagas para negros em todos seus cursos de graduação. O portal da UnB na internet27 faz alusão específica que essa política é baseada no sistema de Ações Afirmativas que por sua vez são colocadas em prática “em nome da efetivação do princípio constitucional de igualdade”. Conclui por dizer que essas políticas são o “resultado de esforços históricos dos Movimentos Negros”. São reservadas 20% das vagas de cada curso de graduação da universidade aos negros (os pardos, a exemplo da nova lei de cotas do Rio de Janeiro, não são mencionados). Há algumas inovações no sistema de cotas, como notas mínimas exigidas nas diversas matérias do vestibular e a vedação a notas iguais a zero na prova de Língua Estrangeira. Essas inovações têm de ser aplaudidas, pois parecem levar em conta as experiências do Estado do Rio de Janeiro mencionadas acima. Entretanto, a inovação mais polêmica foi a instituição de uma comissão verificadora da declaração racial dos candidatos às cotas, comissão que acabou ficando conhecida pelos críticos como “Tribunal Racial”. A ênfase na comissão de aferição surgiu pelo medo das fraudes ocorridas em outros programas de Ação Afirmativa, como foi o caso na UERJ e no Instituto Rio Branco. O receio dos idealizadores do programa era que as fraudes ao método de autodeclaração pudessem implodir o programa, tornando-o de difícil sustentação mediante a opinião pública (Maio; Santos, 2005, p. 187). É provável que a forte reação da imprensa no caso carioca tenha motivado a opção pelo abandono do critério de autodeclaração. 27 Disponível em: <http://www.unb.br/admissao/sistema_cotas/index.php>. Acesso em:: 11/01/2007, às 15:15 Hs. 75 Essa comissão foi instituída pela universidade de maneira a verificar, através de fotografias digitais colhidas no ato da inscrição, a veracidade das autodeclarações raciais. Na comissão de cinco pessoas havia, além de um antropólogo, membros de entidades ligadas ao movimento negro. Na verdade, a UnB não foi a primeira universidade a estabelecer comissões de verificação. Um ano antes, a Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul estabelecera seu sistema de cotas exigindo uma foto tamanho cinco por sete dos candidatos às reservas de vagas. Entretanto, a comissão de verificação não alegou critérios científicos para a verificação, apenas se propôs a checar os fenótipos pré determinados, literalmente definidos como “lábios grossos, nariz chato e cabelos pixaim”, além da tonalidade da pele (Kamel, 2006, p.52). Em Brasília, o principal critério de avaliação da comissão foi a análise dos fenótipos através das fotografias digitais. Mas, o fato de haver um antropólogo na comissão, sucitou inúmeras críticas nos meios acadêmicos, por haver um pretenso cientificismo na classificação racial dos candidatos. A polêmica culminou na publicação de um Manifesto da ABA – Associação Brasileira de Antropologia, que se reproduz parcialmente a seguir: A pretensa objetividade dos mecanismos adotados pela UnB constitui, de fato, um constrangimento ao direito individual, notadamente ao da livre auto-identificação. Além disso, desconsidera o arcabouço conceitual das ciências sociais, e, em particular, da antropologia social e antropologia biológica. A CRER-ABA entende que a adoção do sistema de cotas raciais nas universidades públicas é uma medida de caráter político que não deve se submeter, tampouco submeter aqueles aos quais visa beneficiar, a critérios autoritários, sob pena de se abrir caminho para novas modalidades de exceção atentatórias à livre manifestação das pessoas. Nesse sentido, a Comissão de Relações Étnicas e Raciais (CRER) da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) externa a sua preocupação não somente com os fundamentos que norteiam o sistema classificatório dos candidatos, como também com as 76 repercussões negativas que o sistema implantado pela UnB poderá produzir.28 Fica claro pela manifestação acima, que meios antropológicos para classificar racialmente indivíduos não são mais aceitos pela comunidade científica atual, e tampouco a Genética pode ajudar, conforme observaram os geneticistas Sérgio Pena e Maria Catira Bortolini (2004, p. 10): Tendo em vista a nova capacidade de se quantificar objetivamente, por meio de estudos genômicos, o grau de ancestralidade africana de cada indivíduo, pode a genética definir quem deve se beneficiar das cotas universitárias e demais ações afirmativas? Prima facie poderia parecer que sim, mas a nossa resposta é um enfático NÃO. (grifo no original). Tudo isso vem corroborar o que já foi discutido neste estudo anteriormente e também foi declarado pelo Egrégio STF: a divisão de raças humanas não segue um critério biológico, mas meramente político-social e não há maneiras de se definir objetivamente a raça de um indivíduo que está ligada ao sentimento de pertença que ele tenha a um determinado grupo social. Portanto, a tentativa pseudocientífica de tentar classificar um cidadão em grupos raciais pré-determinados constitui-se em um grave desvio, quanto mais em se tratando de um concurso público de grandes proporções. O abandono do critério de autodeclaração, longe de resolver eventuais problemas de fraudes, cria outros problemas muito maiores, acabando por se tornar uma medida autoritária e impositiva. Mas, a polêmica também prosseguiu, uma vez que outra comissão foi formulada de maneira a julgar os recursos interpostos pelos não aprovados na 28 Disponível em: www.abant.org.br/informacoes/documentos/documentos_028.shtml acesso em: 05/01/2007, às 14:02 Hs. 77 primeira fase de classificação racial. Dessa vez, a comissão tinha seis membros, entre eles um antropólogo, um representante dos estudantes e três representantes de entidades ligadas ao movimento negro, mais um sexto integrante não identificado. De forma a julgar os recursos, a comissão submetia os inconformados a entrevistas. Nestas, perguntas de cunho político foram utilizadas, tais como “Você já teve alguma ligação com o movimento negro?” (Maio; Santos, 2005, p. 189). O que se pode perceber de plano é que, ao adotar uma comissão julgadora de classificação racial, a UnB, apesar de haver tentado, não conseguiu convencer a comunidade científica que seus métodos eram objetivos. Portanto, a comissão, formada em boa parte por pessoas ligadas ao movimento negro, tinha muito mais o aspecto de patrulhamento ideológico do que uma real busca por critérios objetivos de seleção. Isto pode ser verificado, como observado acima, pelas perguntas eminentemente políticas dirigidas aos recorrentes, como se participar do movimento negro pudesse contribuir para a classificação racial de um indivíduo. Também se pode perguntar qual é a legitimidade do movimento negro de exercer tamanho poder, de definir quem pode ou não se candidatar a determinados concursos públicos. Dessa maneira, ao submeter os candidatos a sessões de fotos, filas diferentes para negros e não negros para inscrição do vestibular e sessões de perguntas de cunho ideológico-racial, a UnB, no afã de perseguir a igualdade racial, feriu o princípio da dignidade da pessoa humana em seu processo de seleção. E nesse contexto é bem oportuna a citação do professor Rizzato Nunes: (2002, p. 45): “Existem autores que entendem que a isonomia é a principal garantia constitucional, como, efetivamente, ela é importante. Contudo, no atual 78 Diploma Constitucional, pensamos que o principal direito fundamental constitucionalmente garantido é o da dignidade da pessoa humana”. O processo de seleção posto em prática pela Universidade de Brasília abandonou o sistema de autodeclaração ao instituir uma comissão de avaliação de classificação racial que não se utiliza de métodos objetivos para a consecução de seus fins. Esse processo exógeno de verificação fere o princípio da dignidade da pessoa humana pelas seguintes razões: (a) Impõe uma classificação racial a um candidato independentemente de sua auto-identificação, além de utilizar classificações raciais ideológicas, de visão bipolar, desprezando as classificações oficiais do IBGE. Uma vez que não existem raças biológicas ou genéticas, essa atitude avilta o direito individual e fundamental do cidadão de se identificar com um determinado grupo políticosocial (fundamento do moderno conceito de raça) conforme a sua livre consciência e conforme a herança cultural que julga ter. (b) Submete os candidatos a processos constrangedores, instando-os a fazer prova de matérias subjetivas de cunho meramente pessoal, que não podem ser verificadas objetivamente. Marcos Maio e Ricardo Santos (2005, p. 188) indicam que a sessão de fotos foi particularmente embaraçosa, gerando protestos individuais de vários candidatos. A divisão das filas para candidatos negros e de outras raças faz lembrar os piores momentos da história norte-americana, impondo conceitos e práticas alienígenas à cultura brasileira. Adicionalmente, pode-se dizer que a Universidade de Brasília resolveu fazer um sistema de seleção que não contempla de maneira abrangente outras 79 minorias, principalmente os economicamente desprivilegiados. E também é digno de nota que o critério racial nesse exemplo não é conjugado com o critério econômico, conforme a experiência carioca. Assim, um negro de alto poder aquisitivo pode candidatar-se às vagas reservadas competindo de maneira privilegiada em relação a um branco pobre. Além de ajudar a criar uma elite negra, essa prática infringe os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade ao discriminar desarrazoadamente contra o não-negro carente para, pelo menos em tese, beneficiar um negro rico, uma vez que não existe nenhuma limitação de renda aos candidatos às cotas. Em conclusão a esse caso, reproduz-se a oportuna impressão dos já citados pesquisadores Marcos Chor e Ricardo Santos (2005, p. 202): A comissão de identificação racial da UnB operou uma ruptura com uma espécie de “acordo tácito” que vinha vigorando no processo de implantação do sistema de cotas no país, qual seja, o respeito à autoatribuição de raça no plano das relações sociais. A valorização desse critério, próprio das sociedades modernas e imprescindível em face da fluidez racial existente no Brasil, cai por terra a partir das normas estabelecidas pela UnB. Os defensores do sistema da UnB contraargumentam que é preciso controlar os alegados “fraudadores raciais”, aqueles que se dirão “negros” somente para usufruir do benefício das cotas. Cabe lembrar que a ampla maioria das instituições que adotaram as cotas no país tem preferido depender unicamente da autodeclaração. Possivelmente avaliam que os custos sociais e históricos de implantar um “tribunal racial”, como foi rotulado o sistema da UnB, podem ser por demais elevados a médio e a longo prazo. 4.2.3. O sistema de bônus da UNICAMP Em maio de 2004, a UNICAMP instituiu o Programa de Ação Afirmativa e Inclusão Social – PAAIS, o primeiro sistema de preferências em universidades 80 públicas a evitar a via das cotas no país. O PAAIS optou pelo sistema de pontuação acrescida, mais comumente conhecido por bônus. A primeira exigência para participar do programa é ter cursado o ensino médio integralmente em escolas públicas no Brasil, portanto, é um requisito bastante mais brando do que a exigência das universidades cariocas. Os estudantes que optarem pelo PAAIS na inscrição para o vestibular recebem automaticamente 30 pontos a mais na nota final, ou seja, após a segunda fase. Candidatos autodeclarados pretos, pardos e indígenas que tenham cursado o ensino médio em escolas públicas terão, além dos 30 pontos adicionais, mais 10 pontos acrescidos à nota final.29 Não existe qualquer verificação para o critério racial, bastando apenas a autodeclaração. A UNICAMP também adota a terminologia racial do IBGE, sendo os 10 pontos adicionais do critério racial acrescidos tanto para pretos como para pardos e para indígenas. Embora os pontos adicionais (máximo de 40) sejam relativamente de pouca expressão em relação à nota média de aprovação, que é de 540 pontos, portanto abaixo dos 10%, o número de pretos, pardos e indígenas aprovados no vestibular teve um considerável aumento no primeiro ano do programa. Esse número subiu de 345 alunos (11,6% do total) para 469 alunos (15,7% do total). O número de alunos aprovados provenientes de escolas públicas também subiu de 831 alunos (28.0% do total) para 1021 alunos (34,1% do total).30 Os dados demonstram que o programa, embora não conte com medidas drásticas, produziu resultados visíveis e de certa significância. 29 Conforme a Comissão Permanente de Vestibular, disponível em: <http://www.convest.UNICAMP.br/vest2007/download/manual2007.pdf>. Acesso em: 13/01/2007, às 20:03 Hs. 30 Conforme publicado no sítio de UNICAMP, disponível em: <http://www.convest.UNICAMP.br/estatisticas/2006/paais2005.pdf>. Acesso em: 13/01/2007, às 21:01 Hs. 81 De outro norte, uma análise mais profunda leva ainda a resultados mais encorajadores. Os dados demonstram que nos cinco cursos mais concorridos da UNICAMP (Medicina, Ciências Biológicas, Ciências Sociais, Arquitetura e Farmácia), a participação de egressos da escola pública dobrou com a aplicação do sistema. Resultados como esses servem como uma resposta efetiva àqueles que criticam a eficácia do sistema de bônus, embora um lapso temporal maior seja necessário para uma comprovação mais confiável. 4.2.4. Análise comparativa dos casos práticos O sistema de pontuação acrescida ou bônus também foi aplicado em bases semelhantes para o ingresso nas ETEs e FATECs no Estado de São Paulo, através do Decreto Estadual no 49.602/05. A reação da sociedade em geral foi tranqüila em relação a esse programa, não havendo notícia de ações judiciais ou grande repercussão na mídia ou na academia questionando o sistema. O programa de pontuação acrescida oferece as seguintes vantagens em relação às cotas raciais e sociais: (a) São sistemas não beligerantes, não produzindo impacto negativo nos preteridos. Não geram polêmica e acirramento das tensões raciais no Campus e na sociedade em geral. (b) Produzem efeitos visíveis, mas não interferem incisivamente no sistema de mérito. Não há questionamentos sobre possíveis comprometimentos da qualidade do ensino. Não requer programas suplementares de apoio a alunos, como acompanhamento especial, ou desníveis em relação a beneficiados e não beneficiados. 82 (c) Evitam questionamento quanto a sua legalidade e/ou constitucionalidade. (d) Evitam o estigma do aluno beneficiado por cotas. (e) Não são facilmente suscetíveis a fraudes. Entretanto, pode-se ressaltar um aspecto negativo no sistema de pontuação acrescida, que é o caráter subjetivo da determinação da quantidade de pontos. Esse aspecto não guarda relação lógica com as estatísticas sociais, sendo calculado arbitrariamente. Também não é transparente, pois é difícil encontrar qual o critério utilizado pela UNICAMP ao definir 30 pontos para egressos de escolas públicas e 10 pontos adicionais para minorias raciais. Podese pensar que a pontuação foi mantida baixa para não afetar significativamente o sistema de mérito e, conseqüentemente a qualidade do ensino, mas mesmo assim, isto não retira o aspecto subjetivo da decisão do quantum abonatório. Por outro lado, se a quantidade de pontos for acrescida de maneira a tentar abruptamente corrigir o percentual racial ou social do corpo discente, o sistema de bônus vai se aproximar muito do método de cotas, perdendo sua vantagem original. Isto é que se verificou nos casos da Universidade de Michigan citados acima, o que levou a Suprema Corte a estender a vedação anterior das cotas ao sistema de pontuação acrescida. Em conclusão a esse capítulo, pode-se dizer que o sistema de pontuação acrescida, como o aplicado na UNICAMP, traz uma série de vantagens em relação ao sistema tradicional de cotas numéricas e inflexíveis, mas ainda assim apresenta problemas de difícil solução, pois o critério da definição da quantidade de pontos é subjetivo. 83 Por outro lado, comparando-se os dois sistemas de cotas, do Rio de Janeiro e de Brasília, pode-se notar que: (a) O sistema do Rio de Janeiro tem o mérito de promover uma diversidade abrangente, não apenas se limitando à questão racial; reconhece o critério de autodeclaração, evitando a perigosa via da classificação forçada e; é um sistema com regras objetivas. Entretanto, do lado negativo, o programa carioca parece desafiar o princípio da proporcionalidade e razoabilidade, ao permitir o ingresso de alunos muito pouco preparados devido ao número elevado de reserva de vagas (45%) e a falta de notas mínimas de corte. A razoabilidade do programa também pode ser questionada, porque não se implementou um sistema efetivo que evitasse fraudes na autodeclaração. Um número relativamente elevado de pessoas com fenótipo mais claro sendo aprovadas pelo critério de autodeclaração poderá, em médio prazo, minar a credibilidade do sistema perante a opinião pública. (b) O sistema de Brasília procura preservar a qualidade de ensino ao exigir notas mínimas de ingresso e, ao mesmo tempo, limitar as cotas a um número menos elevado (20%). Entretanto, ao optar pela classificação racial exógena, o programa acaba ferindo princípios constitucionais básicos. Também se deve enfatizar que, ao adotar apenas o critério racial sem atrelar a questão sócio-econômica, o programa acaba arranhando o princípio da igualdade, justamente o princípio constitucional em que alega se basear. Assim, o sistema de cotas para ingresso em universidades parece estar preso a um dilema que provavelmente provém de sua difícil contextualização no país: de um lado, a autodeclaração se torna um método imprescindível, devido à fluidez do conceito de raça e a miscigenação no país, e de outro lado, esse mesmo método de autodeclaração é de difícil implantação, no que concerne ao combate às fraudes. Se tomarmos apenas os dois exemplos acima isoladamente, 84 o sistema de implantação das cotas ou opta por ferir a razoabilidade, porque não dispõe de meios para um combate efetivo de fraudes e rebaixamento do nível acadêmico, ou opta pelo autoritarismo e inadequação dos “tribunais raciais”. 85 5. JUSTIFICATIVAS TEÓRICAS PARA A AÇÃO AFIRMATIVA As ações afirmativas não são uma mera construção jurídica, antes disto, são conceitos com profundo significado filosófico. E justamente esse embasamento filosófico é que vai justificar a sua implantação, conforme bem observou o Ministro Joaquim Barbosa Gomes (2001, p. 61): O debate em torno do princípio constitucional da igualdade, em cuja raiz se situa a discussão a respeito dos direitos civis, e especialmente do seu mais eficaz instrumento de implementação – as ações afirmativas –, traz em si, além de uma explosiva carga políticoideológica, uma base filosófica e constitucional não desprezível. Com efeito, remontando a Aristóteles e passados por diversas escolas de pensamento modernas, são diversos os postulados filosóficos que disputam a primazia da fundamentação das ações afirmativas, quase todos eles filiados ao pensamento liberal. Dessa forma, procura-se aqui analisar as três principais teorias justificadoras da Ação Afirmativa. Entender essas teorias que, nas palavras acima, “disputam a primazia” para a justificativa do instituto é importante não só pelos aspectos teóricos, mas porque a escola adotada pode ter implicações de aplicação práticas das políticas. Outro importante aspecto é entender como as teorias se harmonizam ou se opõem a princípios constitucionais estabelecidos. Duas teorias têm sido freqüentemente apontadas como a base de justificativa para as ações afirmativas, a Teoria da Justiça Compensatória e a Teoria da Justiça Distributiva. De fato, Paulo Lucena de Menezes (2001, p. 39) demonstrou que essas duas teorias foram o palco de uma “polêmica interminável” na disputa de qual sistema melhor se adequaria à justificativa 86 filosófica do instituto. Importante salientar que, durante as primeiras décadas de aplicação de políticas afirmativas nos EUA, essas duas teorias foram aplicadas, não apenas por defensores do instituto, mas também pelo Judiciário. Entretanto, as duas primeiras teorias acabaram sendo de certa maneira superadas, em prol de uma terceira teoria nas duas decisões emblemáticas da Suprema Corte, no caso Bakke e nos casos da Universidade de Michigan que acabaram por reforçar os argumentos do Ministro Powell, já analisados acima. Para o Ministro Powell, a única justificativa para o Estado aquiescer com programas racialmente elaborados seria a obtenção da diversidade, em seu sentido amplo. A obtenção da diversidade nos campi de universidades norteamericanas seria o interesse estatal cogente que justificaria políticas afirmativas. Essa decisão, que foi corroborada vinte e cinco anos depois pela Ministra O´Connor, acabou tecendo uma nova e mais importante justificativa teórica para a Ação Afirmativa. O que se pode notar nessa evolução das teorias de fundo é que a diversidade é mais abrangente que a primeira teoria, porque esta tende a se concentrar no passado e deixa de fora grupos importantes. Podemos citar pelo menos dois grupos que dificilmente seriam contemplados pela teoria da reparação, os deficientes físicos e as mulheres. Mas, antes de entrar na comparação das teorias e verificar seu desenvolvimento ao longo do tempo, fazse necessária uma breve análise de cada uma delas. 5.1. A teoria da reparação 87 A teoria da reparação, ou Justiça reparatória, teve sua gênese na questão da escravidão. De fato, é uma teoria ainda hoje bastante utilizada no Brasil, embora nos EUA já esteja de certa forma superada. A teoria ganhou impulso, pelo menos em países em desenvolvimento, com a já citada conferência de Durban, que considerou a escravidão como um crime contra a humanidade e exigiu medidas compensatórias aos negros, tanto no plano nacional, como no plano internacional. A Conferência de Durban não foi unânime. Sofreu no início com a retirada das Delegações dos Estados Unidos e Israel por não concordarem com o rumo que o evento estava tomando, marcando uma posição política. Mesmo entre os países africanos, houve dissenso. Alguns julgavam que a dignidade da pessoa humana seria uma justificativa de maior importância para o combate ao racismo e implantação de políticas afirmativas. Isto ficou claro com a declaração emblemática do Presidente do Senegal, Abdoulaye Wade, que asseverou: "Um cheque não pode compensar o sangue derramado", conforme ressaltou Pierre Sané, Subdiretor Geral para Ciências Humanas e Sociais da UNESCO. 31 Apesar do dissenso, a Conferência acabou aprovando resoluções32 pedindo tanto a reparação internacional, por parte dos países que se beneficiaram com a escravidão, como também reparações de âmbito interno, que seriam levadas a cabo pelos Estados onde houve escravidão, em prol dos descendentes dos escravos, que ainda sofreriam discriminações e uma condição desfavorável. Conforme salientado acima, Durban teve grande influência no 31 Disponível em: <www.unesco.org.br/publicacoes/copy_of_pdf/Seriedebates2.pdf>. Acesso em: 12/01/2007, às 19:15 Hs. 32 As resoluções do congresso ficaram sendo conhecidas como Declaração de Durban, e estão disponíveis em: <http://www.comitepaz.org.br/Durban_1.htm>. Acesso em: 15/01/2007, às 19:31 Hs. 88 Brasil e em esferas do Governo, portanto, não é estranho que a tese da reparação tenha grande receptividade no país na atualidade. Entretanto, existem problemas sérios na teoria da reparação, por haver uma grande dificuldade de conciliá-la com o direito positivo. É fato que a Constituição Federal classifica a reparação civil entre os direitos fundamentais. Entretanto, o sistema legal exige que tanto os beneficiários da reparação como os seus responsáveis sejam objetivamente identificados, além dos institutos da culpa e nexo causal. Isto é dificilmente alcançável com a questão da escravidão. A demonstração da ligação direta entre os descendentes dos escravos como beneficiários é uma tarefa hercúlea, dada à miscigenação no país. Pior sorte é reservada àqueles que buscam encontrar os responsáveis pela escravidão ou discriminação nos dias atuais. E em todo caso, o sistema pode penalizar pessoas (as preteridas das cotas, por exemplo) que nunca praticaram discriminação alguma, nem mesmo descenderam de donos de escravos, o que acontece com os filhos dos imigrantes europeus e asiáticos que vieram ao Brasil após o final da escravidão. Esse tipo de dificuldade é percebido até por grandes defensores da Ação Afirmativa, como o Ministro Joaquim Barbosa Gomes (2001, p. 65): Com efeito, em matéria de reparação de danos, o raciocínio jurídico tradicional opera com categorias rígidas tais como ilicitude, dano e remédio compensatório, estreitamente vinculados uns aos outros em relação de causa e efeito. Em regra, somente quem sofre diretamente o dano tem legitimidade para postular a respectiva compensação. Por outro lado, essa compensação só pode ser reivindicada de quem efetivamente praticou o ato ilícito que resultou no dano. Tais incongruências, exacerbadas pelo dogmatismo outrancier típico da práxis jurídica ortodoxa, findam por enfraquecer a tese compensatória como argumento legitimador das ações afirmativas. 89 Entretanto, o conservadorismo da prática jurídica não se constitui no único obstáculo à tese reparadora. Essa teoria, que teve sem dúvida sua gênese por causa da escravidão, é pobre para satisfazer uma compreensão maior da Ação Afirmativa que extrapola a questão racial. Para a questão de gênero, por exemplo, é ineficaz, porque a mulher de hoje é descendente tanto da mulher que foi discriminada em outros tempos, como do homem que a discriminou. Dificuldade semelhante é encontrada quando os beneficiários da Ação Afirmativa são os deficientes físicos. O professor Thomas Sowell (2004, p. 11) lembra que o mesmo problema foi encontrado na Índia, quando um grupo de 15 milhões de eunucos reivindicou proteção especial, mas obviamente não puderam alegar que eram descendentes de outros eunucos discriminados no passado. A teoria da reparação, portanto, tende muito mais a propósitos mercadológicos para Ação Afirmativa do que uma justificativa séria e racional para implantação de programas efetivos. 5.2. A teoria da Justiça distributiva A teoria da Justiça distributiva parece evitar a maioria dos problemas enfrentados pela chamada teoria de reparação. Ela é mais abrangente e tem melhor harmonia com o direito positivo e o sistema constitucional. De acordo com o Ministro Joaquim Barbosa Gomes (2001, p. 66), a noção de Justiça distributiva remonta a Aristóteles. De fato, o conhecido adágio de tratar os desiguais na proporção da sua desigualdade é uma máxima geralmente atribuída ao filósofo grego. 90 A Justiça distributiva, que trabalha com o argumento da igualdade (e não da reparação), tem encontrado ressonância com sistemas constitucionais contemporâneos ao redor do mundo, conforme assevera o professor Alexandre de Moraes (2006, p. 31), “o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio conceito de Justiça...”. De fato, essa noção de Justiça de que a lei deve proteger o mais fraco, o desprivilegiado, é comum a muitos dos sistemas constitucionais vigentes e deriva do próprio princípio da igualdade, como será discutido com maior detalhes no capítulo posterior. Os exemplos no direito positivo pátrio são inúmeros, quando se definem leis específicas para proteger a parte mais frágil para equilibrar certas relações jurídicas que, se tratadas de maneira neutra, trariam vantagens indevidas à parte mais forte. A CLT, o Código de Defesa do Consumidor, a Lei do Inquilinato, o Estatuto do Adolescente e o Estatuto do Idoso são conhecidos diplomas legais que estão abarcados nesse sistema teórico. Leis instituindo programas de Ação Afirmativa encontrariam certo paralelo nas leis já existentes que tendem a equilibrar a relação jurídica e proteger a parte mais frágil. Outro grande defensor dessa teoria é o renomado jurista Ronald Dworkin (2005, p. 437 – 469) que parece ressaltar pelo menos dois pontos importantes. O primeiro argumento de Dworkin é utilitarista, isto é, a aplicação de políticas afirmativas levaria a ganhos para a sociedade em geral porque o bem estar gerado pela redução das desigualdades aumentaria a harmonia social e o bem comum. O segundo argumento é que a Ação Afirmativa, contrário do que dizem seus críticos, tem a intenção de “diminuir, não aumentar a importância da raça na vida social e profissional norte-americana” (Dworkin, 2005, p. 439). Essa diminuição da consciência racial teria o efeito de levar a uma sociedade 91 mais justa e mais equalitária com ganho para todos. O alvo a ser alcançado, após um determinado espaço de tempo, seria uma sociedade racially blind, ou seja, uma comunidade onde a questão racial seria irrelevante, atingindo efetivamente a igualdade. Ocorre que esse segundo argumento não é bem aceito, nem pelos movimentos negros (tanto no Brasil com nos EUA), nem pelos defensores do multiculturalismo, tese analisada a seguir. Para grande parte dos movimentos negros, a consciência de raça é um objetivo a ser alcançado, auxiliado pelas Ações Afirmativas, e não algo que venha a ser descartado, mesmo após algum tempo. Semelhantemente, conforme já analisado no primeiro capítulo, o filósofo canadense Charles Taylor (1994, p. 40) argumenta que o reconhecimento da diferença cultural (nesse caso, racial) é um bem em si mesmo, e não algo a ser combatido. O multiculturalimo não prega que as diferenças culturais sejam ignoradas, mas, ao contrário, que sejam valorizadas em suas diversas formas, combatendo a uniformização generalizada. A diversidade deve ser celebrada, não ignorada. De qualquer modo, o uso da Justiça distributiva como tese justificadora de ações afirmativas deve ser entendido como uma forma de busca do aperfeiçoamento da Democracia através de uma diminuição das desigualdades e conseqüente aumento da harmonia social. Pelo menos, essa é a idéia básica que transparece dessa concepção de Justiça com base na igualdade. Como também observou o constitucionalista Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2003, p. 76), a finalidade de programas da Ação Afirmativa deve ser a correção de desigualdades sociais. 92 A utilização do conceito de Justiça distributiva baseada na igualdade e de origem aristotélica parece ser inatacável. Mas, essa concepção de Justiça, que perdurou por séculos, passando por Tomás de Aquino33 seguindo até Kant, não é o único sistema filosófico disponível. O discurso filosófico moderno, segundo Habermas (2002, p. 8), foi inaugurado por Hegel. Com Hegel e seus sucessores, uma nova concepção de filosofia essencialmente crítica acabou por modificar os conceitos de Justiça e epistemologia até então ferrenhamente entrincheirados. Um dos mais ferozes críticos da concepção de Justiça com base na igualdade foi Friedrich Nietzsche. Para o filósofo alemão, Justiça estava entremeada nas relações de força e poder, entendida muito mais como um equilíbrio do que como igualdade. Mas, o que mais chama a atenção no pensamento do filósofo é sua epistemologia, que pode trazer grandes insights nas relações de poder. Contrastar Aristóteles com Nietzsche não é um método necessariamente novo, pois foi muito utilizado por Michel Foucault (1997, p.1315): A história da filosofia oferece modelos teóricos dessa vontade de saber, cuja análise pode permitir uma primeira demarcação. Dentre aqueles que deverão ser estudados e postos à prova – Platão, Spinoza, Schopenhauer, Aristóteles, Nietzsche, etc. –, os dois últimos foram escolhidos. [...] O desejo de conhecer supõe e transpõe, em Aristóteles, a relação prévia do conhecimento, da verdade e do prazer. Na Gaia ciência, Nietzsche define um conjunto de relações completamente diferentes: o conhecimento é uma “invenção”, por trás da qual há outra coisa distinta: jogo de instintos, de impulsos, de desejos, de medo, de vontade de apropriação [...] O interesse é, portanto, posto radicalmente antes do conhecimento, fazendo com que lhe seja subordinado como um simples instrumento... (grifo nosso). 33 Tomás de Aquino foi o grande sistematizador de Aristóteles e conservou quase que integralmente o conceito de Justiça do Filósofo. Em sua Suma Teológica, (II – Quest. LVII) Aquino chega a um conceito de Justiça que se aproxima da eqüidade: “Como já dissemos, o nome de Justiça, implicando a igualdade, está em a natureza da Justiça ser relativa a outrem; pois nada é igual a si mesmo, mas a outrem”. (apud, Pereira, 1987, p. 90). 93 Ou, como bem resumiu o profundo pesquisador de Nietzsche, Rüdiger Safranski (2005, p. 264), “conhecer é vontade de poder”. O contraste de Aristóteles e Nietzsche é, portanto, drástico: de um lado a vontade pela Verdade e Justiça, e de outro, vontade de poder (Wille zur Macht). Ocorre que essa concepção de conhecimento como vontade de poder é paradoxalmente utilizada por alguns dos defensores mais aguerridos da Ação Afirmativa, que a princípio adotam uma postura Aristotélica de vontade de Justiça quando abordam a situação desprivilegiada do negro, mas acabam por sucumbir à vontade de poder, como no texto abaixo: Tomando-se como relativamente inelástica a oferta de posições de prestígio e poder na sociedade brasileira, medidas que proporcionem a igualdade de oportunidades entre negros e brancos tenderão a fazer com que algumas posições hoje ocupada por brancos – não pobres, evidentemente, mas de classe média e alta – venham a ser, no futuro, ocupadas por negros. Quem vai descer nessa gangorra são, portanto, os brancos “ricos” que, sentindo a ameaça que isso lhes representa, fazem uso de seus privilégios como “formadores de opinião para construir uma “opinião pública” desfavorável à ação afirmativa, preocupados que estão, não com a população pobre, branca ou negra, já que sua preocupação com esta jamais ultrapassou os limites da retórica, mas com a manutenção do seu próprio status. (Medeiros, 2004, p. 155). O impressionante texto acima não poderia ser mais Nietzschiniano. O autor acusa os críticos da Ação Afirmativa de utilizar seus meios e conhecimento, não como a busca pela verdade, mas pela simples vontade de poder. A metáfora da gangorra é significativa, porque não basta o negro subir, o branco tem também de descer. O oprimido não deseja apenas se libertar do opressor, mas quer tomar o lugar deste. E sobre esse jogo de poder, o mesmo autor ainda é mais explícito no embate com seus opositores: Assim se entende o denodado empenho com que setores da academia defendem, com foros de “neutralidade científica” a classificação multipolar, ao mesmo tempo em que denunciam como “irrealista”, “importada” ou mesmo “impatriótica”, e em todo caso perigosa, a 94 defesa assumidamente política da bipolaridade pelo movimento negro e por outros setores da mesma academia. Trata-se, em última instância, de uma luta pelo poder – para reparti-lo, da parte dos que contestam a classificação tradicional; para mantê-lo a todo custo, da parte dos defensores do status quo. (Medeiros, 2004, p. 69), grifo no original. Os textos acima parecem demonstrar que, no embate por idéias e defesas de posições, não há um genuíno desejo de conhecimento ou de verdade (por ambas as partes), mas apenas um jogo de interesse, o desejo de poder. A defesa da Ação Afirmativa, desse ponto de vista, parece sair da esfera da luta pela Justiça, lançando-se na luta pelo poder. E isto se contrasta radicalmente com a justificativa filosófica vista acima, da Justiça distributiva. Troca-se Justiça por poder e Aristóteles por Nietzsche. O autor acima não é infelizmente um caso isolado, pois a acusação de que os opositores da Ação Afirmativa agem por motivos inconfessáveis para perpetuar o status quo é bastante freqüente por parte dos defensores mais militantes dos grupos anti-racistas no Brasil, geralmente ligados à visão bipolar das relações raciais. Outro exemplo dessa posição surge do texto do advogado Jayme Benvenuto Lima Júnior (2001, p. 147): “A oposição às ações afirmativas – ou o emprego da igualdade, na expressão canadense - só pode ser vista como uma defesa em causa própria de grupos socialmente hegemônicos, descontentes com os novos tempos.” Nessa mesma trilha, ainda que de maneira mais branda, argumenta o professor de Antropologia da USP, Kanbengele Munanga (2004, p. 58): Os que condenam as políticas de Ação Afirmativa ou as cotas em favor da integração dos afro-descendentes utilizam de modo especulativo argumentos que pregam o status quo, ao silenciar as 95 estatísticas que comprovam a exclusão social do negro. Querem remeter a solução do problema a um futuro longínquo, imaginando, sem dúvida, que medidas macroeconômicas poderiam miraculosamente reduzir a pobreza e exclusão social. As cotas não serão gratuitamente distribuídas ou sorteadas, como imaginam os defensores da “Justiça”, da “excelência” e do “mérito”. Outros acadêmicos são ainda mais incisivos. Após se utilizar da expressão “racista” para denotar certos críticos da Ação Afirmativa o professor de Antropologia da UnB, José Jorge de Carvalho (2003, p. 81) conclui: Esse aluno branco da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) disse finalmente o que os acadêmicos brancos se recusam a dizer diretamente: que nós, do grupo hegemônico, somos perfeitamente conscientes da exclusão racial que reproduzimos e que a integração racial que resultará das cotas implicará uma perda de nossos privilégios. Percebe-se pelos textos expostos acima a dicotomia entre a teoria e a prática. De um lado, defende a necessidade moral da Ação Afirmativa como medida de lídima Justiça, escorando-se em estatísticas que demonstram a condição desprivilegiada do negro no país; e de outro, reconhecem abertamente o jogo do poder. 34 Diante do exposto nessa seção, pode-se extrair um importante limite das Ações Afirmativas, que está ligado à finalidade de suas políticas, que deve ser a de promover o aperfeiçoamento da Democracia, através da busca da diminuição das desigualdades sociais – em sentido lato, não apenas a desigualdade racial – o 34 Nietzsche (2006, p. 47-92) entende que a origem da moral provém de uma tentativa dissimulada de vontade de poder. Procura demonstrar que os preceitos cristãos mais caros de compaixão, Justiça e amor ao próximo formam um sistema sofisticado de dissimulação, nascido quando os cristãos eram uma minoria perseguida durante o Império Romano. A moral, nesse sentido, dá ao mais fraco a possibilidade de superação, quando o mais forte deixar ser julgado por ela. Esse processo é chamado pelo filósofo de transmutação dos valores. Não há dúvidas que essa opinião do pensador alemão é fortemente objetável, mas há de se conceder que, em certas situações, sua crítica parece ter um resquício de fundamento, quando a defesa da moral e Justiça serve de cortina de fumaça para os objetivos de obtenção de poder político. 96 que é muito diferente de uma luta pelo poder. Os objetivos finais devem ser da busca da igualdade e não da criação de uma confrontação racial importada, de uma agenda política beligerante e aguerrida. Em poucas palavras, a finalidade da Ação Afirmativa não deve ser a luta pelo poder político. Não se pode tentar justificar as políticas afirmativas pela legítima necessidade de busca pela Justiça distributiva, mas na prática, engajar-se em uma luta aberta pelo poder. Assim, é oportuno lembrar o alerta do Constitucionalista Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1988, p. 27): O imperativo do tratamento desigual aos que estão em situação desigual na medida em que se desigualam impõe, por exemplo, ao legislador o estabelecimento de leis especiais, que protejam determinadas categorias. Para isso, editam-se leis destinadas a amparar os economicamente fracos: os trabalhadores; os mal alojados; os inquilinos, e assim por diante. Ocorre, porém, que a apreciação dessas desigualdades que devem ser compensadas ou reparadas é sujeita a critérios políticos. Desse modo, certas minorias, politicamente fortes, se avantajam, criando-se em seu benefício não apenas regras que ponham termo a uma desigualdade, mas que, muitas vezes, passam a beneficiá-las, de forma a torná-las verdadeiramente privilegiadas. Está nisto, sem dúvida, um desvio... 5.3. Diversidade e Multiculturalismo A revolução tecnológica das comunicações, transportes e informática no último quartel do século XX causou profundas modificações políticas no mundo ocidental. O Estado Nação homogêneo e fechado dos séculos XVIII e XIX passou a dar lugar a sociedades cada vez mais diversificadas, colocando em cheque a identidade de Kulturnation, um povo definido pela sua cultura (Habermas, 1994, p. 146). Essa nova dinâmica fez a Europa viver uma situação que já acontecia nas Américas desde muito – a convivência nem sempre pacífica de diferentes grupos raciais ocupando o mesmo espaço físico e político. 97 Nesse contexto, filósofos, sociólogos, juristas e outros pesquisadores aprofundaram estudos sobre os fenômenos de sociedades culturalmente diversas, matéria que veio a ser conhecida por multiculturalismo. Para o filósofo canadense Charles Taylor (1994, passim), um conhecido estudioso do assunto, o multiculturalismo requer uma política de reconhecimento da diferença. O reconhecimento e a valorização da diferença obviamente não podem ser confundidos com a violação do princípio da igualdade. A igualdade, para Taylor, é derivada da dignidade da pessoa humana (equal dignity), e não pode ser compreendida como um rolo compressor que achate as peculiares diferenças de cada cultura: Com a política da igual dignidade, o que fica estabelecido deve permanecer universalmente o mesmo, uma idêntica cesta de direitos e garantias; com a política da diferença, espera-se que haja o reconhecimento da identidade peculiar do indivíduo ou grupo, sua distinção de todos os outros. O fato é que precisamente essa diferença tem sido ignorada, atropelada e assimilada pela identidade majoritária e dominante. E essa assimilação é um pecado capital contra a idéia de autenticidade. (Taylor, 1994, p. 38) (tradução nossa). Nesse aspecto particular, o multiculturalismo está estreitamente ligado ao direito das minorias, mas este não pode ser confundido com a Ação Afirmativa, pois as desigualdades sociais não estão ligadas apenas a minorias (caso do gênero) e também nem todas as minorias necessitam de proteção (caso dos orientais no Brasil, que ocupam uma posição privilegiada na educação e trabalho), além das diferenças de objetivos. A corrente do multiculturalismo é apontada pelo Ministro Joaquim Barbosa Gomes (2001, p. 73-75) como uma das justificativas teóricas para a Ação Afirmativa, uma vez que a ocupação de espaços públicos estratégicos, como universidades e carreira civil pública, deve ser feita através de uma política que assegure a diversidade cultural. É importante lembrar que a 98 Constituição Federal também determina a proteção e a valorização das várias identidades culturais no país, no seu artigo 215 e parágrafos seguintes, o que está em harmonia com a teoria do multiculturalismo. Conforme exposto no começo deste capítulo, nos EUA as duas primeiras teorias de justificação da Ação Afirmativa, a teoria da reparação e a teoria da Justiça distributiva, acabaram por dar lugar a uma terceira, a chamada teoria da diversidade. Isto ocorreu porque a Suprema Corte norte-americana acabou por optar pela promoção da diversidade como um interesse estatal cogente que pudesse justificar o discrímen racial como fator de seleção para vagas em universidades e cargos públicos. Essa opção pela diversidade, marcada pelo voto do Ministro Powell no caso Bakke, foi anos depois confirmada e consolidada pela própria Corte na análise dos casos da universidade de Michigan. A prevalência do entendimento do Ministro Powell e sua justificativa para aplicação de políticas afirmativas deixou pelo menos duas importantes lições para o entendimento da questão constitucional da Ação Afirmativa. Em primeiro lugar, conforme salientou o jurista Ronald Dworkin (2005, p. 460), o Ministro Powell entendeu que a constitucionalidade de um programa de Ação Afirmativa depende, além de sua estrutura, de sua finalidade. E a finalidade que justificaria políticas afirmativas seria a diversidade em seu sentido amplo. Dessa maneira, a Suprema Corte acabou revisitando entendimentos anteriores que consideravam principalmente a teoria da reparação como fator que pudesse ser suficientemente relevante para justificar o interesse cogente do Estado em aprovar programas de preferências. 99 A segunda lição que se pode extrair da jurisprudência da Suprema Corte é que a diversidade a ser alcançada e protegida pelo Estado não é estrita, mas ampla. A condenação das cotas raciais e sistemas de “duas pistas”, onde determinadas minorias correm isoladamente do restante dos concorrentes, foi aplicada porque esses sistemas não têm o condão de atingir a “verdadeira diversidade”, esta entendida em sentido amplo, não apenas racial. Por essa razão é que as universidades norte-americanas tiveram de ampliar o seu espectro de beneficiados, para tentar alcançar uma diversidade ampla e múltipla, não apenas se concentrando em apenas um tipo (a diversidade racial). E nesse sentido se aplica o conceito de inconstitucionalidade por subinclusão (underinclusion). Como ensinam os professores de Direito Constitucional Jerome Barron e Thomas Dienes, da Universidade George Washington (2003, p. 256), a teoria da subinclusão ocorre quando uma lei não beneficia a todos aqueles que estão em uma situação semelhante. Por essa razão, as políticas de inclusão acadêmica no Brasil precisam ser amplas e abrangentes (como por exemplo, o sistema da UERJ), evitando se fixar em apenas um critério de seleção. Esta é a crítica que se faz ao movimento negro, que acaba por superenfatizar a questão racial, em detrimento de outros critérios, como o sócio-econômico, por exemplo. A busca da igualdade, feita nesses termos, fere a verdadeira diversidade. Entretanto, a segunda lição apreendida acima, da necessidade de uma ampla diversidade, pode ser aplicada ao caso brasileiro, porque os objetivos da República não se limitam ao combate ao racismo, mas a promover o bem de todos, e principalmente, a diminuir a desigualdade social, com a erradicação da pobreza. Nota-se, portanto, que não há uma real oposição entre as teorias da Justiça distributiva e da diversidade, na verdade, são complementares. A 100 diversidade faz lembrar que os programas de políticas afirmativas devem ser o mais abrangente possível, não podendo haver uma preferência por apenas um tipo de beneficiados, conforme se verifica em alguns programas como, por exemplo, o sistema de inclusão da Universidade de Brasília que focaliza única e exclusivamente o fator racial. 101 6. A QUESTÃO CONSTITUCIONAL As ações afirmativas, ao criarem critérios classificatórios para concessão de determinados benefícios, sejam eles o acesso à educação ou ao trabalho, levantam de imediato questionamentos de ordem constitucional. Isto ocorre porque durante o longo processo de superação do ancient régime, a igualdade entre os cidadãos foi um dos aspectos mais notáveis da luta contra o Absolutismo durante as revoluções dos séculos XVII e XVIII na Europa. A concretização do ideal de igualdade tomou primordialmente a forma de antítese dos privilégios, enfatizando a igual dignidade dos seres humanos, e a conseqüente exigência da limitação do poder do Estado em editar normas que discriminassem arbitrariamente os cidadãos (Silva Júnior, 2000, p. 123). Na verdade, o cerne da idéia original de constitucionalismo vem, não apenas da necessidade de limitar o poder do monarca ou do Estado, mas igualmente da necessidade de eliminar os privilégios da aristocracia, reduzindo todos igualmente à servidão da lei. Neste sentido, o professor Alexandre de Moraes (2002, p. 76) escreve: [...] a idéia de constitucionalismo [...] sempre esteve centrada em um ponto fundamental: a necessidade de limitação e controle dos abusos de poder do próprio Estado e de suas autoridades constituídas e a consagração dos princípios básicos de igualdade e da legalidade como regentes do Estado. Esse conceito de igualdade que ocupou um grande espaço nos Estados liberais dos séculos XVIII e XIX ficou mais conhecido pelo vocábulo isonomia, por ser primordialmente a igualdade perante a lei, salientando principalmente o aspecto formal de tratamento igualitário para condenar todas as formas de 102 discriminação. Este tem sido, portanto, o principal óbice levantado, ao menos de início, às normas que instituem um tratamento diferenciado para certos grupos de pessoas. 6.1. Panorama do princípio da igualdade nas prévias Constituições brasileiras Alusões à igualdade estão presentes desde a Constituição do Império, mas obviamente seus significados são muito díspares. O art. 179 dessa Carta prescrevia que: A Lei será igual para todos..., mas as condições da sociedade imperial demonstravam justamente o contrário. O império era marcado pela desigualdade jurídica, econômica e social. Não havia sufrágio eleitoral, apenas os homens de posse podiam votar e ser votados. Mulheres eram relegadas ao papel de segundo plano, privadas de muitos direitos reservados apenas aos homens. Além de toda essa disparidade entre ricos e pobres, homens e mulheres, vigorava o jugo da escravidão. Escravos não eram sujeitos de direito, sendo considerados semoventes, exceção feita quando eles figuravam como réus no direito penal (Silva Júnior, 2002, p. 8). Conclui-se, portanto, que a pretensa igualdade na Constituição Imperial apenas vigorava entre os privilegiados homens livres e dotados de poder econômico. Entre estes a lei deveria dispensar um tratamento igual. Nesse sentido, a Constituição do Império sequer alcançou o conceito real de isonomia, ou de igual dignidade da pessoa humana. Já na primeira Constituição Republicana, o conceito formal de isonomia é conquistado, mas ainda com forte conteúdo antiabsolutista, demonstrando que o princípio era entendido como um antagonismo aos ideais da nobreza. Isto se nota claramente através da própria expressão textual do parágrafo segundo do 103 artigo 72: Todos são iguais perante a lei. A República não admite privilégio de nascimento, desconhece foros de nobreza, extingue as ordens honoríficas existentes e todas as suas prerrogativas e regalias, bem como os títulos nobiliárquicos e de conselho. Nota-se no texto o forte contraste entre República e Monarquia; hierarquia e cidadania; privilégio e isonomia. Entretanto, ao negar o direito de voto aos analfabetos e mendigos (art.70), a Lei Maior, na prática, relegou os escravos recém libertos a um plano inferior de cidadania (Silva Júnior, 2002, p. 8). A Constituição de 1934 foi a primeira a equiparar, de certa maneira, a igualdade com a proibição de discriminações, ao incluir explicitamente vedações de distinção entre sexo, raça, classe social e outras categorias em seu artigo 113 que trata da isonomia. Entretanto, o parágrafo sexto do capítulo 121, ao tratar da imigração, faz menção à necessidade de garantia da integração étnica, seguindo a política de tentativa de branqueamento da população. Obviamente, este particular estava em confronto com as vedações à discriminação racial e demonstrava ambigüidade na intenção do legislador. As Cartas de 1937 e 1946 são sucintas em relação à igualdade, limitandose ambas à expressão: todos são iguais perante a lei, de onde se conclui a opção dos legisladores pela tradicional isonomia, sem equiparar o princípio à vedação à discriminação ou aumentar-lhe o conteúdo. Por outro lado, nota-se que o antagonismo à Monarquia e nobreza desapareceu por completo devido à distância histórica dos acontecimentos. As Constituições do período militar (1967 e 1969) retornam à equiparação da igualdade com a proibição de discriminação, desta vez salientando de uma 104 maneira maior o preconceito de raça, determinando que tal conduta seria passível de punição na forma da lei. É possível se inferir, dos dois textos constitucionais dos militares que: (a) já havia uma preocupação com o preconceito racial no país, e (b) a igualdade toma um conceito mais abrangente que o mero aspecto formal de isonomia. A vedação à discriminação no mesmo artigo que define a igualdade parece querer indicar que a igualdade não estava limitada à isonomia, mas também ao tratamento social, de onde se pode perceber a preocupação com a dignidade da pessoa humana. 6.2. O Princípio da igualdade na Constituição Federal de 1988 A Constituição Federal de 1988 representou uma mudança fundamental em relação às antigas Cartas Brasileiras. O novo texto estabelece logo de início quais são os fundamentos e objetivos da República, dando assim um vetor programático para a Lei Maior. Conforme observou o professor Raul Machado Horta (2003, p. 65), a Lei Maior atual foi muito além do conteúdo clássico de uma Constituição, entendido como a agenda mínima de organização dos poderes, declaração de direitos e garantias de direitos individuais e a competência de órgãos do Estado. De igual modo é o ensino do renomado constitucionalista português José Joaquim Gomes Canotilho (1994, p. 12), cuja influência se fez sentir de perto na Constituinte. Para o jurista, uma Constituição deveria “aspirar a transformar-se num plano normativo-material global que determina tarefas, estabelece programas e define fins...”. A definição de fins a serem alcançados e o estabelecimento de programas para a obtenção desses fins na Constituição tornase a principal característica do que o mestre lusitano denominou de Constituição Dirigente. 105 Diante dessa nova perspectiva, a igualdade na Constituição Federal de 1988 não está apenas reduzida ao conceito de isonomia, insulada em um artigo, mas ocupa espaços em toda a Carta, conforme bem observou o constitucionalista Celso Bastos (1999, p. 183): “a igualdade é, portanto, o mais vasto dos princípios constitucionais, não se vendo recanto onde ela não seja impositiva”. O texto constitucional ao estabelecer no artigo 3o os objetivos fundamentais da República, quase todos ligados à promoção da igualdade, eleva este princípio como a principal chave hermenêutica da própria Carta. Essa posição de baldrame constitucional também é expressa pelo Egrégio STF: O princípio da isonomia, que se reveste de auto-aplicabilidade, não é – enquanto fundamental de nossa ordem político-jurídica – suscetível de regulamentação ou de complementação normativa. (STF – Pleno – MI no 58/DF Rel. p/ Acórdão Min. Celso de Melo, Diário da Justiça, Seção I, 19/04/1991). Dessa maneira, os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil que são de construir uma sociedade justa e solidária, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos, sem preconceitos ou discriminações vem a dar um sentido muito mais amplo à igualdade do que apenas o aspecto isonômico. Dentro dessa nova perspectiva, a igualdade assume uma outra característica, que ficou sendo conhecida como o seu aspecto material que vai além do simples tratamento equalitário perante a lei e também além da mera proibição da discriminação. A igualdade torna-se um alvo a ser alcançado, um objetivo essencial da República. Nesse sentido também assevera o Ministro Joaquim Barbosa Gomes (2003, p. 40-41): 106 Vê-se, portanto, que a Constituição Brasileira de 1988 não se limita a proibir a discriminação, afirmando a igualdade, mas permite, também, a utilização de medidas que efetivamente implementem a igualdade material. E mais: tais normas propiciadoras da implementação do princípio da igualdade se acham precisamente no Título I da Constituição, o que trata dos Princípios Fundamentais da nossa República, isto é, cuida-se de normas que informam todo o sistema constitucional, comandando a correta interpretação de outros dispositivos constitucionais [...] Se a igualdade jurídica fosse apenas a vedação de tratamentos discriminatórios, o princípio seria absolutamente insuficiente para possibilitar a realização dos objetivos fundamentais da República constitucionalmente definidos. Além desse aspecto básico e fundamental que o princípio da igualdade tem no texto constitucional, ainda é possível entender a igualdade como um direito fundamental e não apenas como um princípio. O espaço geográfico em que a igualdade vem explicitamente definida no texto constitucional é um indicativo incontestável desse aspecto, pois o princípio da igualdade é o portal do consagrado artigo 5o, que trata sobre os direitos e garantias fundamentais, o trecho de maior destaque e importância da Constituição Cidadã. Dessa maneira, a igualdade alcança um papel muito maior do que uma vedação aos abusos do Estado e também mais abrangente do que um princípio programático. A igualdade é um direito garantido. 6.3. O Princípio da igualdade e a Ação Afirmativa Feitas as considerações acima e acompanhando o desenvolvimento do princípio da igualdade na história constitucional do país, que também teve paralelo com o desenrolar do constitucionalismo nos países ocidentais, é possível dizer que a igualdade em seu sentido contemporâneo vai muito além da 107 isonomia, sendo um princípio norteador da Constituição e também um direito fundamental do cidadão. O seu conteúdo não é apenas negativo, de coibir a discriminação, mas também positivo em garantir a equalização, de acordo com o que observou o professor José Afonso da Silva: “Porque existem desigualdades, é que se aspira à igualdade real ou material que busque realizar a igualização das condições desiguais...”. O curioso é que ambos, defensores e críticos da Ação Afirmativa, utilizam-se justamente do mesmo instituto constitucional, quer para criticá-la ou para defendê-la. O embate parece estar no fato de que críticos e defensores se apegam a diferentes aspectos da igualdade. Carl Cohen (2003, p.25), professor de filosofia na Universidade de Michigan, conhecido crítico da Ação Afirmativa nos EUA, fundamenta suas críticas justamente no aspecto formal da igualdade: O princípio da igualdade certamente implica no seguinte: é errado, sempre e em todo lugar, dar vantagens especiais a qualquer grupo simplesmente baseando-se nas características físicas que não guardam relevância com o benefício concedido ou com o gravame imposto. Premiar ou castigar alguém utilizando o critério da cor da pele é manifestamente injusto. Os capítulos mais horrendos da história da humana – a abominável escravidão dos negros, o genocídio dos judeus – nos fazem lembrar que categorias raciais nunca devem ser permitidas como base para a discriminação oficial. As nações que utilizaram distinções raciais em suas leis devem se envergonhar disto. Nossa própria história é irremediavelmente manchada por esse tipo de racismo. A lição deve ser esta: nunca mais. Jamais novamente. (tradução nossa). 108 Por outro lado, o jurista Hédio Silva Júnior (2000, p. 150), pesquisador dos aspectos jurídicos das relações raciais no país, destaca o outro aspecto da igualdade como justificativa da Ação Afirmativa: Certo é que, seja traduzindo-se em regras proibitivas de condutas discriminatórias injustas, seja prescrevendo discriminação justa, o princípio da igualdade passa a encerrar não apenas um novo conteúdo semântico, mas especialmente uma nova concepção do papel do Estado, exigindo-lhe a adoção de políticas e programas capazes de traduzir a igualdade formal em igualdade substantiva. Em conclusão, não poderíamos deixar de mencionar o fato de que, ao consignar o princípio da promoção da igualdade, o sistema constitucional brasileiro resgata e positiva o princípio aristotélico de Justiça distributiva, segundo o qual a Justiça implica necessariamente tratar desigualmente os desiguais, ressalvando que tratamento diferenciado não se presta a garantir privilégios, mas sim possibilitar a igualização na fruição de direitos. O pensamento do ilustre jurista acima está em consonância com o que já foi discutido no capítulo anterior, tomando a Justiça distributiva como uma das bases teóricas da Ação Afirmativa. Entretanto, o texto acima vai um pouco mais longe ao atribuir a Constituição Federal essa concepção de Justiça. A única objeção que pode ser feita ao texto, é que o tratamento desigual dispensado aos desiguais precisa ser feito na proporção da sua desigualdade, uma questão aqui omitida, mas que será mais bem analisada abaixo. Considerando ambas as posições antagônicas acima, poder-se-ia argüir se os dois aspectos da igualdade (formal e material) estão em contradição no mesmo instituto e se algum aspecto tem primazia sobre o outro. Não é possível conceber que dois aspectos de uma mesma idéia sejam contraditórios. Se assim fosse, o conceito de igualdade seria algo conflitante, perdendo sua força impositiva. Tampouco se pode aceitar o fato de que o aspecto material da igualdade suplantou o formal, por ser um desenvolvimento mais recente. Uma saída para a questão seria admitir que os dois aspectos da igualdade são duas 109 faces da mesma moeda e ambas são complementares. Os dois aspectos não geram uma antinomia e são ambos acolhidos pelo texto constitucional, conforme também ressalta Fernanda Lucas da Silva (2003, p. 75): Portanto, o mandamento constitucional da igualdade tanto abriga a igualdade formal, vedando a criação de privilégios por adoção de tratamento diferenciado desarrazoado; bem como abriga a igualdade material, autorizando a adoção de discriminações positivas, que incidindo na relação fática e concreta entre as pessoas busca efetivar uma igualdade real. Dessa maneira, um aspecto pode ser utilizado para complementar e regular o outro, conforme o constitucionalista Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2003, p. 75) sugeriu: “... a regra é a isonomia, a diferenciação, a exceção”. O que parece transparecer do contraste dos dois aspectos da igualdade é que existem limites para a aplicação da igualização que é o principal objetivo da Ação Afirmativa. Esses limites, estabelecidos pela isonomia e outros princípios constitucionais, serão estudados na próxima seção. 6.4. Limites constitucionais da Ação Afirmativa. Como ficou demonstrado acima, o princípio da igualdade evoluiu de seu simples aspecto formal de isonomia para um conceito muito mais amplo, chegando próximo ao conceito de Justiça distributiva. A Justiça distributiva autoriza o tratamento desigual em certas circunstâncias, justamente com a finalidade de obter a real igualdade, ou seja, quando existe um fim racional ou justificável para tanto. Entretanto, embora houvesse essa evolução, a isonomia ainda mantém a sua validade e não é suplantada pelo aspecto material da 110 igualdade, antes, complementa-a. Também se faz necessário enfatizar que a igualdade material tem seus limites, alguns deles sendo até implícitos no conceito Justiça distributiva, pois se permite tratar os desiguais, desigualmente, apenas na proporção em que se desigualam. As diferenciações paradoxalmente permitidas pelo Direito para se atingir a real igualdade passam pela via prática das classificações e estas são uma ferramenta para estabelecer diferenciações que servem para corrigir as inJustiças ou a desigualdade. Nesse mesmo sentido explicam os professores Jerome Barron e Thomas Dienes (2003, p. 252), da Faculdade de Direito da Universidade George Washington: Mas, qual é a natureza do direito à proteção da igualdade? A Cláusula não pode ser a proscrição contra classificações legais porque o tratamento diferenciado de pessoas e coisas que não se encontram na mesma situação é essencial ao ato legislativo. Homens e mulheres, adultos e crianças, estrangeiros e cidadãos não precisam necessariamente ser tratados de igual maneira sob a lei. Mas, também é claro que essas classes não podem ser tratadas diferentemente de modo arbitrário. A resposta da [Suprema] Corte tem sido que a classificação legal deve ser razoável em relação aos objetivos da lei. (tradução nossa). No Brasil, a exemplo do que ocorre nos EUA, classificações têm de ser postas à prova para se verificar uma eventual quebra da isonomia e conseqüente inconstitucionalidade. Entretanto, existe certa variação do padrão norte- americano para verificação de constitucionalidade em casos como estes, conforme observou Paulo Lucena de Menezes (2006, p. 132). Enquanto no Direito norte-americano um interesse do Estado precisa ser suficientemente forte e racional para justificar uma desigualação, a Constituição Federal brasileira já traz em seu texto os pressupostos que autorizam, por parte do Estado, determinadas distinções entre os cidadãos. Essas distinções são parte das 111 diretrizes e metas constitucionais, os objetivos da República, encontrados nos artigos vestibulares da Lei Maior, conforme estudados na seção anterior. Embora no direito pátrio não seja necessária a identificação de um interesse Estatal especial para justificar uma desigualação, ainda assim as classificações devem obedecer a uma finalidade justificável pelo direito. Entretanto, não basta apenas que a finalidade das classificações seja justificável, mas também é necessário que a aplicação prática da diferenciação obedeça a certos critérios para que esta não venha a ferir a isonomia ou outros princípios e regras constitucionais. A discussão então flui para a questão dos critérios utilizados para verificar se a diferenciação e suas aplicações práticas se limitam aos ditames constitucionais. Paulo Lucena de Menezes (2006, p. 127) indica alguns critérios como: (a) a escolha do fator de desigualação (classificações); (b) a relação existente entre esse fator de desigualação e a diferença estabelecida no tratamento normativo; (c) a pertinência constitucional e a observância da proporcionalidade. A aplicação desses três itens traria um método seguro para a verificação da constitucionalidade de diferenciações estabelecidas de maneira a alcançar a igualdade material. Por outro lado, o constitucionalista Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2003, p. 75-76), quando trata especificamente dos limites constitucionais da Ação Afirmativa, aplica elegante e didaticamente um processo de exame que envolve algumas regras: 112 (a) Regra da objetividade: os grupos favorecidos têm de ser objetivamente determinados; (b) Regra da proporcionalidade: o benefício concedido tem de guardar proporção à situação de desigualdade a ser corrigida; (c) Regra da adequação: os métodos utilizados devem ser razoáveis; (d) Regra da finalidade: o fim das normas propondo políticas afirmativas deve ser o alcance da igualdade. (e) Regra da temporariedade: as aplicações da Ação Afirmativa devem ser temporárias. Se ao final de certo tempo, elas não surtirem efeito, afetarão a regra da razoabilidade. Já a Procuradora do Distrito Federal, Roberta Fragoso Menezes Kaufmann (2006, p. 27), em uma dissertação sobre Ações Afirmativas no Brasil, prefere destacar que o princípio da igualdade não é limitador de programas que envolvam diferenciações, mas o princípio da proporcionalidade deve ser aplicado como método de verificação de constitucionalidade em cada caso concreto. Ao destacar a proporcionalidade como a pedra de toque da constitucionalidade de políticas afirmativas e princípio regulador da igualdade, a ilustre autora destaca que a norma deve ser aplicada com base em seus subprincípios, de acordo com a doutrina alemã: (a) Subprincípio da conformidade ou adequação aos meios, no qual o critério de diferenciação utilizado tem de ser apropriado para concretização do objetivo visado; 113 (b) Subprincípio da exigibilidade, que preconiza que a medida não deve extravasar os limites da consecução dos objetivos determinados, procurando sempre o meio menos gravoso para atingir as finalidades propostas; (c) Subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito, também chamado de regra da ponderação. Mediante esse subprincípio, perquire-se se os resultados obtidos pela política afirmativa são proporcionais à intervenção efetuada por meio de tais medidas. Pondera os valores em jogo, de um lado a necessidade dos beneficiários e de outro lado o gravame imposto aos demais cidadãos. Há pouca variação entre os três métodos acima propostos. Na verdade ocorre uma grande sobreposição dos três, sendo que o cerne da questão dos limites parece estar efetivamente na questão da proporcionalidade e razoabilidade. Com base nos três métodos propostos, pretende-se aqui analisar com um pouco mais de profundidade algumas regras de verificação de limites: a proporcionalidade, a razoabilidade e a objetividade. 6.4.1. A proporcionalidade como limite constitucional Conforme já mencionado, a proporcionalidade é inerente ao princípio da Justiça distributiva, baseada na igualdade, portanto, é a regra de aferição principal para definir se uma diferenciação levada a cabo pode estar em conformidade com o Direito e com a Constituição. Na verdade, a proporcionalidade, como princípio constitucional regulador é de capital importância para regular o próprio princípio da igualdade e balancear os direitos fundamentais, como lembra o constitucionalista Paulo 114 Bonavides (2006, p. 434): “... o princípio da proporcionalidade é hoje axioma do Direito Constitucional, corolário da constituição e cânon do Estado de direito...”. Nessa mesma trilha de entendimento, Eduardo Slerca (2002, p. 89) ensina que o “princípio da proporcionalidade traduz a própria idéia de Justiça na resposta aos casos de colisão de direitos fundamentais, quando o intérprete deverá aplicar a ponderação de bens...” e mais tarde conclui que o princípio “é essencial para a realização da ponderação de interesses constitucionais...” (grifo no original). Dessa forma, o princípio da proporcionalidade serve como um moderador quando direitos fundamentais estão em aparente conflito. Políticas afirmativas têm a característica de fazer emergir justamente esses conflitos, ao criar diferenciações. De um lado, existe o direito do beneficiado à igualdade material e de outro lado há também o direito fundamental do preterido de não ser discriminado desarrazoadamente. A doutrina alemã consagrou a divisão do princípio da proporcionalidade em três subprincípios (Bonavides, 2006, p. 396 - 97). Esses subprincípios são, na verdade, uma técnica de aplicação da proporcionalidade aos casos concretos, conforme bem observou Slerca (2002, p. 94). A seguir, far-se-á o uso dessa técnica para tentar melhor entender os limites que as políticas de diferenciação possam ter. 6.4.1.1. Conformidade ou adequação aos meios Esse subprincípio faz lembrar que os meios a serem utilizados são de grande importância. Conforme foi observado na Introdução deste estudo, uma boa parte dos defensores da constitucionalidade da Ação Afirmativa, muitos 115 citados nesta pesquisa, limitam suas teses à teoria, justificativa e objetivos do instituto e acabam por olvidar ou omitir a aplicação prática. A lógica parecer ser esta: a Constituição autoriza diferenciações justas, logo, as cotas raciais são constitucionais. 35 O problema é que a aplicação prática e escolha do meio a ser utilizado são um fator importante que está além do aspecto meramente teórico. Dessa maneira, o subprincípio da adequação dos métodos exige que a escolha deles seja feita em consonância com a realidade na qual se insere a prática. A importação de modelos estrangeiros sem a devida contextualização vai de encontro a esse mandamento. Um exemplo bastante prático de inadequação dos métodos utilizados é a desconexão entre os beneficiários da norma e as estatísticas oficiais disponíveis. Essa questão foi abordada em capítulos anteriores, mas se refere ao fato de que algumas normas que estabelecem programas de Ação Afirmativa utilizam classificações raciais bipolares e não respeitam a classificação oficial do IBGE. Os exemplos citados da Universidade de Brasília e as Universidades Estaduais do Rio de Janeiro tendem a aplicar classificações que não correspondem às oficiais, de maneira a conformá-las com questões ideológicas que são estranhas à realidade brasileira. Assim, normas que definem sistemas de preferência, sejam eles cotas ou bônus, devem adotar a classificação racial oficial brasileira, respeitando principalmente o pardo como identidade autônoma. 35 Como um exemplo, referimos ao estudo do pesquisador Sandro César Sell (2002, p. 36 –50). O autor persegue uma análise profunda do princípio da igualdade para chegar à conclusão de que ele não ilide programas de ação afirmativa. Entretanto, passa da teoria à prática sem mencionar outros princípios reguladores da igualdade, como a proporcionalidade e razoabilidade. Dessa maneira, salta-se da conclusão que Ação Afirmativa é abarcada pela Constituição Federal para justificar quaisquer meios de aplicação desta, em especial as cotas raciais. Infelizmente este não é um caso isolado. 116 Os meios também devem ser eficazes para conseguir seus objetivos. Além de serem eficazes devem também contemplar possíveis efeitos não desejáveis que eventualmente podem ser trazidos por medidas aplicadas. Nos dois primeiros capítulos deste estudo, ficou demonstrado que as cotas raciais muitas vezes produzem efeitos não esperados, conforme atestou Thomas Clarence, um antigo beneficiário da Ação Afirmativa e hoje Ministro da Suprema Corte norte-americana atestou. 36 O Ministro denuncia o estigma criado pelas cotas que pode afetar até mesmo àqueles beneficiados que não necessitariam de proteção em condições normais, tornando-se um método que acaba por prejudicar em vez de auxiliar. Daí a sua não conformação com o subprincípio da adequação. 6.4.1.2. Exigibilidade de meios menos gravosos Esse subprincípio encontra paralelo com o conceito norte-americano que exige que os programas racialmente diferenciados sejam narrowly tailored (restritivamente traçados), de maneira a causar o menor dano possível aos direitos fundamentais dos preteridos e o menor prejuízo possível à sociedade. Desse modo, o legislador deve ponderar os meios disponíveis para se chegar a determinado fim e escolher aquele que seja menos gravoso e provoque menor impacto na comunidade. Nas palavras de Paulo Bonavides (2006, p. 397), “... de todas medidas que igualmente servem à obtenção de um fim, cumpre eleger aquela menos nociva aos interesses do cidadão, podendo assim o princípio da necessidade (Eforderlichkeit) ser também chamado da escolha do meio mais suave...”. 36 Cf. item 3.6 acima. 117 As cotas raciais, da maneira como têm sido implantadas em muitas universidades públicas no Brasil, reservando um número extremamente elevado de vagas, certamente não conseguem passar ilesas por esse critério. O forte impacto na opinião pública, o número elevado de questionamentos judiciais e a indelével controvérsia parecem ser evidência mais do que suficiente para comprovar que o método escolhido é excessivamente gravoso, principalmente porque existe uma gama de outros métodos menos beligerantes disponíveis. Vale ressaltar aqui que as cotas raciais têm sido, conforme já demonstrado em capítulos anteriores, o método de escolha para aplicação das Ações Afirmativas no Brasil, ignorando, não apenas a experiência histórica dos EUA, mas também outros métodos menos gravosos, como a aplicação de bônus ou sistema de metas. Ousa-se aqui produzir uma explicação da razão dessa insistência em métodos ultrapassados e aguerridos. A estratégia do movimento negro no país que tem uma participação ativa na maioria dos programas de implantação de cotas tem sido a de confrontação aberta com o que consideram ser a “elite branca”. 37 As cotas raciais e seu forte impacto na sociedade fazem com que os objetivos políticos do movimento sejam mais bem alcançados, não apenas gerando cobertura de mídia, como também exacerbando a confrontação almejada. Entretanto, esses métodos acabam por produzir um excessivo gravame, não apenas aos preteridos como à sociedade em geral, pelas seguintes razões: (a) Geram uma avalanche de questionamentos judiciais; (b) Levam ao aumento da tensão racial, conforme foi verificado em outros países. 38 37 Cf. p. 39.. Thomas Sowell (2004, passim) observa que, em todos países que seu estudo analisou, o aumento da tensão racial foi nitidamente sentido com aplicação de cotas e sistemas de preferência. No Sri Lanka foi inclusive uma das razões de guerra civil. 38 118 (c) Criam muitas vezes estigmas aos beneficiários; (d) Interferem no sistema de mérito e qualidade de ensino. 6.4.1.3. Proporcionalidade em sentido estrito Esse subprincípio se refere à ponderação necessária entre os valores dos beneficiados e preteridos. As diferenciações que estabelecem programas de Ação Afirmativa devem ser proporcionais à desigualdade que pretendem reparar. A aplicação desse princípio pode ser observada em casos práticos, incluindo os estudados nos capítulos anteriores. Critérios raciais quando são aplicados independentemente de critérios sócio-econômicos tendem a infringir a proporcionalidade em sentido estrito. Isto se dá porque o benefício concedido a determinados beneficiários pode ir além da necessidade para se estabelecer a igualdade, criando um verdadeiro privilégio. Esse é o caso da Universidade de Brasília que estabelece cotas raciais independentemente da condição socioeconômica do beneficiado. Assim, pretos ou pardos de classe média ou mesmo alta39, podem vir a se beneficiar das cotas em detrimento de brancos e amarelos pobres, ferindo a igualdade de maneira letal. Conforme o constitucionalista Celso Ribeiro Bastos (1999:182) bem observou: “Toda vez que uma lei perde o critério da proporcionalidade ela envereda pela falta de isonomia”. Para se evitar lancear a isonomia, programas de Ação Afirmativa racialmente diferenciados devem sempre incluir também 39 Cerca de 12% dos 1% mais ricos do Brasil são negros ou pardos segundo a Síntese de Indicadores Sociais IBGE: Rio de Janeiro, 2003, p. 263. Embora a pesquisa do IBGE demonstre que há grande desigualdade entre brancos e, pretos e pardos, no que tange a distribuição de renda, há uma população substancial de pretos e pardos com grande poder aquisitivo e um grande contingente de classe média também que não pode ser desprezado. Esses seriam os maiores beneficiários de um sistema de cotas raciais que não leve em consideração o aspecto sócio-econômico. 119 critérios socioeconômicos de maneira a respeitar a proporcionalidade, porque no Brasil o alto nível de pobreza não está restrito aos pretos e pardos. Há 19 milhões de brancos pobres no país que não podem ser preteridos em sistemas de Ação Afirmativa. 6.4.2. A Razoabilidade como limite constitucional O princípio da razoabilidade tem sido muitas vezes confundido com o princípio da proporcionalidade analisado acima. Embora os dois princípios sejam semelhantes e muitas vezes se sobreponham, a melhor doutrina faz distinção entre ambos (Slerca 2002, p. 81). É fato que o princípio da razoabilidade tem origem na doutrina e jurisprudência norte-americanas, enquanto que o princípio da proporcionalidade tem sido mais aplicado na Europa, em especial na Alemanha (Slerca, 2002, p. 9-10). Entretanto, existem certas diferenças que justificam sua distinção. O princípio da razoabilidade é derivado do historicamente consagrado conceito due process of law, que encontra paralelo na Constituição pátria no seu artigo 5o, inciso LIV. Ensina Eduardo Slerca (2002, p. 41) que esse princípio tem o objetivo de assegurar que as leis sejam em si razoáveis, ou tenham resultados ou finalidades igualmente razoáveis. Portanto, sua aplicação é mais voltada aos atos legislativos, do que ao controle de atos administrativos. A presença do princípio da razoabilidade se faz sentir em várias leis, como, por exemplo, na vedação de tributos de caráter expropriatório, na teoria da imprevisibilidade dos contratos, na limitação de valores exorbitantes para multas e fiança, etc. A idéia básica do princípio é que as leis não devem impor 120 ao cidadão obrigações impossíveis ou de difícil cumprimento, em outras palavras, exigem razoabilidade. A razoabilidade também deve ser entendida como uma medida de sabedoria e bom senso. As normas que instituem políticas afirmativas devem, portanto, ser razoáveis, no sentido de não criarem situações absurdas ou obrigações de difícil ou oneroso cumprimento. Nos casos examinados neste estudo, é possível observar que quando as reservas de vagas são implantadas em um percentual alto, desacompanhadas de uma exigência de nota mínima para o ingresso, propicia-se a entrada de alunos que não estão preparados para o ensino superior. Esse foi o caso da UERJ estudado acima. Candidatos com notas pouco superiores a zero foram admitidos, enquanto outros candidatos bem preparados foram deixados de fora por causa da cor de sua pele. 40 Resultados como estes são exemplos da falta de razoabilidade, creditados a leis mal formuladas que falharam em enxergar fatos no mínimo previsíveis. O que parece estar bem claro neste estudo é que leis que determinam medidas simplistas e inflexíveis com o intuito de promover a inclusão acadêmica acabam por criar mais problemas em vez de trazer soluções que sejam razoáveis e aceitáveis pela sociedade. Normas que instituam programas afirmativos devem ser amplas e abrangentes para não privilegiar um grupo específico (subinclusão), devem ter múltiplos critérios (não apenas raciais) para não preterir pessoas carentes economicamente e devem ter salvaguardas (como notas mínimas de corte) para que impeçam o ingresso a candidatos com pouco ou nenhum preparo. Este último item também parece ser uma exigência do artigo 208, V da Constituição Federal. Em suma, esses requisitos a programas de Ação Afirmativa são uma exigência da razoabilidade, mas infelizmente 40 Cf. p.62. 121 poucos sistemas de acesso à universidade no Brasil parecem atualmente se adequar a eles. 6.4.3. A Objetividade como limite constitucional Conforme afirmou o constitucionalista Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2003, p. 75), a identificação dos beneficiados em programas de Ação Afirmativa deve ser objetiva. Não podem ser definidos por padrões arbitrários ou conceitos imprecisos. À primeira vista, este parece ser um quesito de fácil conformidade. Entretanto, quando se implantam programas racialmente diferenciados no Brasil, um país onde a miscigenação foi muito grande, esse critério parece se tornar um desafio. Em primeiro lugar, é preciso ressaltar que a definição dos beneficiados tem de ser objetiva, segundo critérios oficialmente aceitos. Por isso, novamente insiste-se que a terminologia da norma deve obedecer aos critérios estatísticos oficiais, evitando neologismos como afrodescedentes e outras classificações não contempladas oficialmente. Em segundo lugar, reprise-se que, como foi amplamente demonstrado acima, tanto a Genética como a Antropologia não podem trazer subsídios a critérios de classificação racial exógena. A questão da ascendência é de pouca ajuda, porque além de ser um critério que utiliza padrões biológicos para classificação racial (contrário à ciência moderna), mostra ser de pouca valia para o caso brasileiro, uma vez que 87% da população têm marcadores genéticos africanos. 122 Portanto, para se aferir um mínimo de objetividade na definição dos favorecidos nos programas racialmente definidos, o critério utilizado deve obedecer a duas exigências: (a) utilizar a classificação de cor (racial) dos órgãos oficiais e (b) utilizar o critério de autodeclaração, como exige a moderna antropologia. Sistemas de classificação e/ou verificação racial exógenos não são científicos e não podem atingir o critério da objetividade. Entretanto, ao seguir as duas exigências acima, alguns programas, como os que implantam cotas, por exemplo, podem também transgredir a razoabilidade, por apresentarem grande dificuldade em coibir fraudes. Um programa que seja facilmente burlado não é razoável porque não produz os resultados esperados, perdendo assim seu objeto. Esse é o dilema já mencionado da implantação de cotas raciais no Brasil que não logrou uma fácil contextualização: ou se escolhe quebrar a objetividade ao implantar sistemas de verificação exógena (“tribunais raciais”) ou se opta por sistemas de autodeclaração que são facilmente burláveis. Por fim, é importante lembrar que outros dois aspectos que poderiam ser explorados como limites constitucionais seriam a temporalidade como elemento essencial às Ações Afirmativas e a finalidade dos programas. Entretanto, esses dois itens já foram tratados de uma maneira já extensa nos capítulos anteriores e seria desnecessário repeti-los nesta seção. Mas, pode-se ao menos ressaltar o fato de não se ter conseguido identificar um único programa de Ação Afirmativa hoje no país com caráter temporário. Não há na sua instituição, quer por norma jurídica ou por norma interna, nenhuma alusão à temporalidade, embora esta faça parte, muitas vezes, da justificativa teórica do instituto. 123 6.5. A Educação na Constituição Brasileira A educação no Brasil é um tema vastíssimo e não se pretende aqui entrar em aspectos abrangentes do assunto, pois isto seria sair dos limites da pesquisa. Entretanto, cumpre ressaltar que programas de Ação Afirmativa que visem à inclusão acadêmica têm implicação na educação conforme entendida na Constituição Federal e aqui se pretende apenas salientar alguns aspectos pontuais. A Constituição Federal adota diferentes critérios para diferentes níveis de ensino no país, ao dispor sobre o assunto no artigo 208. O ensino fundamental é obrigatório e dever do Estado. Para o ensino médio, o legislador constitucional designou uma norma programática, ao instituir uma progressiva universalização. Entretanto, para o ensino superior, o critério é a “capacidade de cada um”. A universidade não é, portanto, para todos, conforme a atual mensagem que o governo federal tenta alardear. De fato, nenhum país do mundo promete a universalização do ensino superior, por ser essa uma medida desnecessária e inalcançável. Isto obviamente não significa que o ensino superior deva ser reservado a uma elite racial ou econômica. Entretanto, o acesso à universidade não pode ser confundido com a erradicação da pobreza. A entrada aos níveis superiores de ensino deve ser feita segundo a capacidade do candidato. Dessa maneira, programas que pretendam popularizar o acesso acadêmico precisam necessariamente se preocupar com a capacidade e preparo de candidatos. Sistemas de seleção devem levar a capacidade em consideração por ser um mandado constitucional. Nesse sentido, comenta Celso Bastos (1990, p. 543): 124 Ao instituir a garantia de acesso aos níveis mais elevados de ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um, o constituinte brasileiro visou à valorização do respeito à individualidade de cada um, separando-se assim do conceito de uma educação rígida e aproximando-se de uma educação mais liberal, que proporciona a todas as pessoas prosseguirem nos estudos tendo como único requisito a capacidade. Outro aspecto importante do tratamento constitucional à educação é referente ao processo de seleção. O artigo 206, I impõe a igualdade de condições para a permanência e acesso na escola. Certamente isto deve ser feito em todos os níveis de ensino, incluindo o superior. A questão da igualdade de condições na seleção pode remeter à discussão sobre a igualdade em seus dois aspectos, formal e material. Pode-se perfeitamente aqui alegar isonomia, mas também a necessária diferenciação para atingir a verdadeira igualdade. O importante é ressaltar que a igualdade de condições deve ser concedida a todos. Isto significa que programas de acesso acadêmico precisam ser tão abrangentes quanto possível. Repete-se aqui a questão da vedação à subinclusão. Como os assentos em universidades públicas são escassos e muito inferiores à demanda, os processos de seleção são altamente disputados. Tornase claro, então que, ao tentar beneficiar um grupo, outros grupos podem perder. Se o grupo beneficiado é o único desprivilegiado, não há violação da isonomia. Ocorre que isso não corresponde à realidade brasileira. A exclusão não atinge apenas um grupo, mas vários. Portanto, programas que optam por critérios únicos, como o racial, por exemplo, não cumprem o mandamento constitucional de estabelecer igualdade de condições. Cidadãos carentes, brancos, amarelos ou nordestinos, por exemplo, estarão em uma posição muito desprivilegiada na arena competitiva de um 125 processo seletivo se o critério de política afirmativa apenas se basear na cor. Nesse sentido, convém lembrar o artigo 3o da Constituição Federal que estabelece os objetivos da República de maneira a alcançar uma sociedade justa e solidária, para todos e não apenas para algumas determinadas minorias. Por fim, chamamos atenção a outro artigo da Lei Maior que merece atenção. Trata-se do artigo 207: As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Visível é nesse artigo a autonomia da universidade, não apenas na área didática, mas também administrativa e de gestão financeira. Dessa maneira, o Projeto de Lei Federal 3.627/04 que institui reserva de vagas para acesso a universidades, analisado acima, parece ferir a autonomia universitária, afinal o processo de seleção está na esfera administrativa de autonomia. Sendo a autonomia um mandamento constitucional, a Lei Federal que tenta sua diminuição está inexoravelmente eivada de inconstitucionalidade. Universidades públicas precisam escolher suas próprias estratégias de aplicação da igualdade em seus processos de seleção e a tentativa de impor leis que interfiram nessa liberdade violam a autonomia constitucional. 126 7. CONCLUSÃO A extensiva abrangência que a Constituição Federal de 1988 concedeu ao princípio da igualdade autoriza, sem dúvidas, a adoção de políticas afirmativas no país. Essa questão tem sido cada vez mais pacificada pela doutrina constitucional pátria e começa a ganhar terreno também no Judiciário. Entretanto, o que se desejou demonstrar neste estudo é que os problemas de constitucionalidade das Ações Afirmativas estão muito mais ligados à sua aplicação prática e não ao seu embasamento teórico. Infelizmente não se tem dado a devida atenção aos métodos e estes são de capital importância. Ao mimetizar métodos utilizados alhures, sem a devida contextualização à realidade brasileira, o instituto corre o risco de cair em descrédito, além de arranhar importantes princípios constitucionais como a proporcionalidade, a razoabilidade e a autonomia universitária. Assim, a discussão deve sair da teoria para a prática, da justificativa para os métodos, do confronto para o compromisso. Além da dualidade da teoria e da prática das Ações Afirmativas, outro importante aspecto é a sua finalidade. Ações afirmativas têm como resultado uma redistribuição de caráter político e econômico e, portanto, não se podem menosprezar os interesses e jogo de poder envolvidos por trás disto. É particularmente interessante notar que ONGs em vários Estados da União passaram a ocupar um amplo espaço, não apenas na discussão teórica (que seria plenamente justificável, como parte da sociedade civil), mas também na participação ativa na implementação das medidas. 127 As ONGs acabaram por se imiscuir em órgãos públicos, tomando inclusive uma grande parte do poder decisório dentro das universidades em relação aos processos de seleção. Nota-se que, independentemente de ser essa a intenção inicial, a “luta” pela Ação Afirmativa acabou por conceder a certas ONGs uma parcela considerável de poder. A questão da legitimidade desse poder exercido inclusive em concursos públicos de grande porte é uma matéria que ultrapassa os limites da pesquisa. Entretanto, é importante ressaltar que a finalidade das políticas afirmativas deve estar em consonância com os objetivos fundamentais da República, conforme enumerados nos primeiros artigos da Magna Carta. Ação afirmativa não pode, portanto, se constituir de uma agenda política de determinados grupos com vistas à obtenção de poder. A insistência nas cotas raciais como principal via de aplicação das Ações Afirmativas, desprezando toda a experiência histórica de outros países e seus efeitos colaterais indesejados, pode ser em grande parte creditada a uma agenda política bem definida de grupos de pressão que optam pela via da confrontação racial. Escolhe-se o meio mais gravoso e mais agressivo porque este faz parte da lógica da confrontação. Críticos das cotas são rapidamente identificados como defensores de interesses próprios inconfessáveis ou militantes reacionários a serviço do status quo. Essa linha de atuação perseguida por certos grupos militantes anti-racistas certamente não se coaduna com os objetivos justificáveis da Ação Afirmativa e tampouco com os fins republicanos de construir uma sociedade livre, justa e solidária. 128 8. REFERÊNCIAS BARRON, Jerome A.; DIENES, C. Thomas. Constitutional Law in a nutshell. Saint Paul: Thomson West, 2003. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1999. BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1990. BENEDITO, Vera Lúcia. Ações Afirmativas à Brasileira: em busca de um concenso. Caderno CRH. Salvador, n. 36, p. 69-91, jan./jun. 2002. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19a ed. São Paulo: Malheiros, 2006. BRANDÃO, Carlos da Fonseca. As cotas na universidade pública brasileira. Campinas: Autores Associados, 2005. CARDOSO, Ruth. A Cidadania em Sociedade Multiculturais. In: LERNER, Julio (Org.) O Preconceito. 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