“O amor por principio, a ordem por base, o progresso por fim”.
Augusto Comte
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Prólogo
É universalmente admitido que a meta mais elevada da investigação filosófica
é o conhecimento sobre si próprio.
Ernest Cassirer1
Muitos homens investem suas vidas no desenvolvimento de projetos e
empreendimentos de grande risco, de futuro incerto, e não o fazem por ser gananciosos ou
apenas pelo lucro que podem auferir. Oferecendo melhores produtos e serviços mais
eficientes, alicerçam com seus esforços o progresso material e o bem-estar social.
Outros homens, com essa mesma dedicação, investem suas vidas na nobre tarefa de
desenvolver valores capazes de outorgar significados a existência, contribuindo por esse
viés, no desenvolvimento espiritual da sociedade. O justo equilíbrio entre essas duas
direções dos empreendimentos humanos alicerçaram as culturas que nos precederam, e
continuam sendo os fundamentos desejáveis na construção dos valores necessários para
caracterizar positivamente nosso tempo.
“Com plena consciência de que hoje enfrentamos desafios novos que requerem
soluções urgentes, como os da globalização, que internacionaliza a vida das sociedades
nacionais, criando tensões e relações complexas; como os problemas do meio ambiente,
que exigem um remodelamento urgente para criar políticas de desenvolvimento
sustentável; como os da necessidade de criar uma Cultura de Paz que garanta a convivência
solidária; como os da constituição dos conceitos sobre cidadania responsável; como os da
proliferação de „éticas‟ substitutivas da Ética; como os da determinação de „mundos‟
caracterizados pela exclusão econômica, só para mencionar alguns deles, e no
entendimento de que todos esses problemas são produtos de conflitos não resolvidos ou
mal resolvidos, destacamos a necessidade de uma renovação pedagógica que possibilite
construir laços de solidariedade e cooperação entre os membros da grande família humana,
investindo com prioridade nos valores da interdependência e na complementaridade,
refletindo sobre os desafios que impõe a modernidade, resgatando as experiências já
utilizadas no passado, analisando com cuidado as do nosso presente e, principalmente,
ponderar as possibilidades de construir o futuro que todos queremos2”.
Na Grécia, nossos pais culturais esculpiram no frontispício do templo de Apolo, no
santuário de Delfos, a enigmática frase: “Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o Cosmos e
as divindades que o regem3”. Mais tarde, Sócrates (469-399 a.C.) a recriaria na versão mais
popular: “Conhece-te a ti mesmo”, sem nenhum acréscimo, considerando-a mais que
suficiente para a reformulação moral do seu tempo.
Filósofo neo-kantiano (1874-1945).
Do Preâmbulo do Relatório Jacques Delors.
3 Pelo conhecimento do micro cosmos (o homem) seria possível conhecer o macro cosmos (o universo).
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Com Agostinho, (354-431) a mesma frase ganhou nova vigência, mas esta vez com
um aditivo próprio da fé que o nutria: “Conhece-te a ti mesmo, (mas) a imagem e
semelhança de Deus”.
Durante a segunda metade do século XIX, Augusto Comte4 fez sua contribuição
ponderando que “quem quiser se conhecer a si mesmo deveria estudar História”, pois os
acontecimentos registrados na memória da humanidade seriam os melhores indicativos
sobre as qualidades e defeitos da espécie humana.
Atendendo os desafios que exige o tempo presente, a Paidéia5 proposta visa
desenvolver a capacidade de construir explicações próprias sobre o sentido da vida sem a
necessidade de ter que aderir a nenhum modelo específico, mas reconhecendo em todos
eles, as reflexões sapienciais que ao modo de “impulsos amigos” vocacionam caminhadas
para importantes descobertas sobre nós mesmos. Para alcançar tal finalidade, propomos
para a mesma questão a seguinte formulação: “Conhece-te a ti mesmo pelo próximo”, isto
é, utilizar “os outros” como “espelhos da verdade” capazes de mostrar claramente o que
não aceitamos, negamos, censuramos ou reprimimos em nós mesmos.
“De todas as tuas obras sairás humildemente, porque todas elas sempre serão
inferiores a teus sonhos”.
Gabriela Mistral, poetisa chilena, prêmio Nobel de Literatura de 1945 (1889-1957)
Metodologia:
Multiculturalidade, Multidisciplinaridade, Ética
O princípio de separação torna-nos talvez mais lúcidos sobre uma pequena parte
separada de seu contexto, mas torna-nos cegos ou míopes sobre a relação entre a parte e seu contexto.
Edgard Morin
A Multiculturalidade
A necessidade de enfoques multiculturais nasce da convicção estabelecida
historicamente sobre as mazelas provocadas pelos juízos de valor preconceituosos ou
manifestados dogmaticamente. Qualquer idéia se torna perigosamente destrutiva quando há
forte recusa em ouvir o que não ecoa com as próprias “certezas”, ou quando é a única que
se possui, ou ainda, quando é utilizada como único padrão para avaliar todas as questões.
Esses modos insuficientes do pensar enaltecem o que é próprio e conhecido, recusando
Filósofo francês, propositor da Sociologia e fundador do Positivismo (1798-1857).
O termo grego “Paidéia” foi traduzido para o latim como Humanitas, e presentemente como Cultura,
reunindo o conjunto de valores que propiciam a prática das virtudes.
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toda e qualquer alteridade.
O enfoque multicultural é um exercício de tolerância em relação ao que é diferente, o
que de por si é muito bom, mas também é uma atitude de respeito e de acolhimento as
leituras do mundo feitas por outras culturas, propiciando encontros que ao modo dos
cantos polifônicos, celebram a pluralidade. A multiculturalidade pode ser entendida como a
sinfonia da vida em contraste com a monotonia de um único acorde musical.
Em termos simbólicos, a multiculturalidade afasta os indivíduos da Torre de Babel,
(expressão de desentendimento) e aproximam ao Pentecostes, momento em que os
diferentes modos de dizer deixam de ser causas geradoras de conflitos.
O pluralismo cultural não exige rejeitar ou negar a própria cultura, mas possibilitando
modos de ver que enriquecem e completam o próprio modo de ser e de estar no mundo.
“Não quero que minha casa seja cercada por muros de todos os lados e que as
minhas janelas estejam tapadas. Quero que as culturas de todos os povos andem
pela minha casa com o máximo de liberdade”.
Mahatma Gandhi (1869-1948)
As tecnologias da comunicação tornaram o mundo pequeno.
A partir desse fato, os futurólogos profetizam que no futuro só existirá uma única
cultura globalizada, mas outros afirmam que a humanidade jamais deixará de acolher e de
valorizar as diferentes expressões culturais. No meio dessas duas possibilidades, infinitos
mundos podem acontecer6.
Enquanto os ímpetos de renovação projetam uma cultura em direção ao novo, as
tradições, por resiliência, retroagem, impedindo a perda dos modos singulares de ser7.
No interior do território estabelecido por esses dois horizontes, o enfoque
multicultural permite assistir ao espetáculo que emerge da mistura das identidades e das
diferenças, das proximidades e das distâncias, do antigo e do novo, da invariância e da
mutação, produzindo aproximação, convivência, e entendimento entre as partes. A
multiculturalidade é um movimento histórico que despreza os processos de segregação em
favor dos esforços que visam estabelecer correspondências entre as partes.
Embora às fronteiras do mundo venham perdendo sentido frente ao fenômeno da
globalização dos valores, isso não significa que as singularidades estejam condenadas ao
desaparecimento, pois o global é dependente dos fermentos nascidos localmente.
Em síntese, a multiculturalidade é um acontecimento que tem um forte apetite pela
comunicação, desprezando os processos de segregação em favor dos esforços que visam
estabelecer correspondências.
A Multidisciplinaridade
Segundo Basarab Nicolescu8, a disciplinaridade, a multidisciplinaridade, (ou
pluridisciplinaridade) a interdisciplinaridade, e a transdisciplinaridade, são as quatro flechas
lançadas desde um único arco: o conhecimento.
O crescimento e o acúmulo das informações alcançaram marcas sem precedentes na
história da humanidade. Os saberes reunidos durante o século XX ultrapassam tudo aquilo
que poderia ser conhecido durante todos os outros séculos juntos, produzindo vertigem
quando esse enorme acúmulo de informações não consegue ser convenientemente
processado9.
As possibilidades se comportam como as sombras, isto é, se modificam segundo o movimento dos
protagonistas.
7 Essa capacidade, embora alta, não é infinita.
8 Manifesto da Transdisciplinaridade, Editora Triom, São Paulo, 1999.
9 Toda informação que não consegue ser processada convenientemente, é desinformação.
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No campo das ciências, as hiper-especializações fragmentaram o saber em progressão
geométrica. A primeira conseqüência dessas sucessivas partições fez nascer disciplinas
“anêmicas” pela ingestão continua de “um único tipo de alimento”. As linguagens hiperespecializadas configuram áreas cada vez mais restritivas, agindo como barreiras
intransponíveis para a maioria dos leigos, ou para os que se exercitam em outras disciplinas.
As necessidades de laços sinergéticos para comunicar esses compartimentos estancos
induziram o aparecimento da multidisciplinaridade como tentativa de integrar os diferentes
saberes, gerando conhecimentos que ultrapassem os limites auto-impostos de cada
disciplina.
Como nenhuma disciplina é auto-suficiente, no sentido de dar conta total dos fatos,
(sobretudo quando os conhecimentos não param de cumular) a visão multidisciplinar
concorre para dar-lhes inteligibilidade.
Com o intuito de reunificar o conhecimento, Basarab Nicolescu fez mais uma
tentativa cunhando o termo Transdisciplinaridade. Como o prefixo “trans” indica, o termo
pretende ser um modo de sintetizar o conhecimento, reconhecendo sua presença nas áreas
estanques situadas entre as disciplinas, através delas e além de qualquer uma delas.
A Ética
No inicio do século XIX, as teoria evolucionistas de Darwin predispuseram a pensar
que a origem das nossas paixões estaria relacionada com nossa ascendência. Outros
pensadores10, manifestando ceticismo enquanto ao alcance da teoria evolutiva no campo da
ética, questionaram quais seriam as vantagem que um comportamento ético poderia
outorgar a espécie humana.
Para nossos pais culturais, a palavra “ética” circunscrevia um modo de ser e de agir
necessário que permitia a convivência do homem consigo mesmo, com outros indivíduos,
e interagir harmonicamente com todas as coisas.
Sem reduzir a ética a uma conduta visível, isto é, ao aspecto exterior de uma vida, ou ao
acatamento das convenções por mero dever, os gregos consideravam a “conduta bela”
superior à “conduta certa”, avaliando o comportamento ético como algo inerente à
natureza dos homens, assim como o perfume é inerente à natureza das flores.
Segundo Kierkegaard11, “A ética não começa por uma ignorância que devemos
transformar em saber, mas por um saber que exige sua realização”. E é nesse sentido que o
ato ético exige a convergência de todos os saberes, cruzar as fronteiras do que os separa, e
tecer redes de múltiplas aproximações disciplinares, renovando os modos de sentir, de
pensar e de agir.
Ilustrações: Primo A. Gerbelli
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Por exemplo, Alfred Russell Wallace em 1870 e Thomas Huxley em 1899.
Soren Kierkegaard, (1813-1855) filosofo e teólogo dinamarquês.
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Introdução ao Pensamento Filosófico - módulo 1