UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Filosofia
A CRÍTICA DE ERNST MACH AOS ABSOLUTOS
NEWTONIANOS
Marcus Vinícius Russo Loures
São Paulo
2011
Marcus Vinícius Russo Loures
A CRÍTICA DE ERNST MACH AOS ABSOLUTOS
NEWTONIANOS
Dissertação apresentada ao programa de
Pós-Graduação Stricto Sensu
em
Filosofia da Universidade São Judas
Tadeu, como requisito parcial para
obtenção de título de Mestre em Filosofia
Orientadora: Profa. Dra Sônia Maria Dion
São Paulo
2011
Loures, Marcus Vinícius Russo
A Crítica de Ernst Mach aos Absolutos Newtonianos / Marcus Vinícius Russo
Loures. - São Paulo, 2011.
115 f. ; 30 cm.
Orientador: Sônia Maria Dion
Dissertação (mestrado) – Universidade São Judas Tadeu, São Paulo, 2011.
1. Mach, Ernst, 1838-1916 2. Crítica filosófica 3. Epistemologia 4. Economia
– Filosofia I. Dion, Sônia Maria II. Universidade São Judas Tadeu, Programa de
Pós-Graduação Stricto Sensu em Filosofia. III. Título
Ficha catalográfica: Elizangela L. de Almeida Ribeiro - CRB 8/6878
CDD121
FOLHA DE APROVAÇÃO
Marcus Vinícius Russo Loures
A Crítica de Ernst Mach aos absolutos newtonianos
Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em
Filosofia da Universidade São Judas Tadeu, como requisito parcial para obtenção de
título de Mestre em Filosofia
São Paulo – 2011
____________________________________________________
Profa. Dra Sônia Maria Dion (orientadora)
____________________________________________________
Prof. Dr. Oswaldo Pessoa Jr.
____________________________________________________
Prof. Dr. André Koch Torres Assis
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho ao mestre Jesus
Cristo: ele é parte de um projeto pessoal
que visa à busca do entendimento das
verdades espirituais e sua conexão com o
mundo da materialidade.
AGRADECIMENTOS
 À Professora Sônia Maria Dion por sua imensa dedicação. Palavras ou gestos
materiais não seriam capazes de expressar a gratidão e admiração que nutro
por ela.
 À direção, professores e coordenação, representados na figura do Prof.
Floriano, coordenador do curso de Mestrado em Filosofia da Universidade
São Judas Tadeu por propiciar um ambiente em condições de promover o
acesso ao estudo de qualidade em Filosofia.
 À minha família, da qual tive que prescindir muitas vezes da companhia e do
afeto, em função do intenso trabalho de leitura e pesquisa para a preparação
desse trabalho.
 Aos meus amigos que, direta e indiretamente, contribuíram, a partir das
vivências do dia a dia, para as motivações da escolha desse tema.
 Aos meus alunos: a educação é o trabalho mais dignificante, pois prepara o
espírito para seus grandes voos: o alimento nutre o corpo, mas só o
conhecimento é capaz de saciar o espírito.
EPÍGRAFE
Fatos da vida
Sei que falhei
Queria voltar no tempo
E confessar que me arrependo
Continuo aqui sem saber o que fazer
Continuo aqui sem saber se vai dar
Essa é a lei da vida
Injusta e Realista
Pode parecer que tenho vergonha
Mas quero dizer que não está sozinho
Você pode me chamar de boba
Mas o fato é que tem todo meu apoio
Lais Pascoal
3º ano – Ensino Médio
Colégio Ábaco
2010
RESUMO
Esta dissertação tem como objetivo estudar a crítica que Ernst Mach dirige aos
absolutos newtonianos. No século XVII, Newton, em sua obra Princípios
Matemáticos da Filosofia Natural, postulou a existência de duas entidades absolutas,
o espaço e tempo. Dois séculos mais tarde, Mach, fundado em um aparato
metodológico e epistemológico bastante peculiar, faz emergir dura crítica a essas
entidades. Por ser um filósofo (denominação essa que Mach nega) situado na
segunda metade do século XIX, o trabalho começa analisando as características do
positivismo de Auguste Comte, corrente de grande influência nas ideias desse
período. Isso permitirá, conforme veremos, traçar semelhanças e diferenças entre o
positivismo praticado por Mach (no caso, evidentemente, de Mach ser um positivista,
o que também será avaliado) e o de Comte. No capítulo seguinte, a epistemologia
de Mach será exposta, o que servirá de base para a posterior compreensão das
críticas que ele fará sobre os absolutos. No terceiro capítulo, expõem-se os pontos
principais da metodologia machiana, destacando alguns elementos fortemente
presentes no século em questão, como o mecanicismo, o determinismo, a postura
anti-metafísica e, principalmente, o princípio de economia, este último ponto como
central para o entendimento claro da crítica que esse trabalho pretende elucidar. Por
fim, o último capítulo enfocará a crítica em si, dividindo-se em duas partes: na
primeira, uma apresentação bastante geral dos pontos de vista newtoniano acerca
dos absolutos, principalmente a questão do experimento do balde e suas
conclusões. No segundo, a apresentação e análise da crítica de Mach, embasados
em sua posição positivista, sua epistemologia e seus fundamentos metodológicos.
Tal percurso permitirá, além de verificar o teor das críticas, checar o grau de unidade
da doutrina machiana, reforçando a ideia de que Mach constitui um pensador muito
importante para a compreensão de um século rico em ideias, em que são fincadas
raízes sólidas para o estabelecimento da “nova” física do início do século XX, além
de perceber, por meio de sua crítica, um autor que subverte história da ciência em
filosofia da ciência, aspecto que só se fortalece na segunda metade do século XX,
com epistemólogos como Kuhn, entre outros.
ZUSAMMENFASSUNG
Diese wissentschaftliche Abhandlung zielt auf die Kritik, die Ernst Mach an das
newtonische Absolutismus macht. Im siebzehnten Jahrhundert, hat Newton in
seinem Werk, “Die Mathematischen Prinzipien der Naturphilosophie” die Existenz
von zwei absoluten Entitäten “Raum und Zeit” postuliert. Zweihundert Jahre danach
bringt Mach hat, begründet in einem ganz besonderen von erkenntnistheoretischen
und methodologieschen Aufwand harte Kritik an diese Körperschaft auftauchen lässt.
Als Philosoph (Benennug, die Mach ablehnt), beginnt diese Arbeit in der zweiten
Hälfte des neunzehnten Jahrunderts mit der Arbeit der Analyse “Eigenschaften des
Positivismus” von Auguste Comte, die in dieser Epoche grossen Einfluss dieser Idee
hatte. Die ermöglicht, wie wir es sehen werden, Ähnlichkeit und Unterschiede
zwischen Positivismus von Mach und Comte (in diesem Fall, das Mach überzeugend
Positivist ist und was auch bewertet wird) in Linie zu ziehen. Im nächsten Kapitel wird
die Erkenntistheorie von Mach dargestellt, was die Grundlage für weiteres
„Verständnis der Kritik“ helfen wird, und dass er über des “Absolutismus” machen
wird. Im dritten Kapitel werden die wichtigsten Punkte der Methodik dargestellt,
hervorhebend einiger Elementen, die stark in diesem Jahrhundert anwesend sind,
wie Mechanismus, Determinismus und die Anti-Metaphysische Haltung und auch vor
allem “Grundsatz der Sparsamkeit”. Dieser letzte Punkt, Zentral für klares
“Verständnis der Kritik”, was diese Arbeit aufklären wird. Schlieβlich wird im letzten
Kapitel die Kritik sichtbar gemacht und in zwei Teile geteilt. Bei der ersten Einführung
über die allgemeine newtonische Ansicht, in Betreff des Absolutismus und vor allem
das Eimer-Experiment und die Verwicklungen. Bei der zweiten Einführung und
Analyse der Machs Kritik, die auf eine seiner positivitistischen Position und seiner
Erkenntnistheorie
und
ihrer
methodischen
Grundlagen
zeigt.
Solche
Entwicklungsrichtung erlaubt ausser Überprufung des Inhalts der Kritik, die Kontrolle
des Einheitsgrades der Machians Lehre. Es stärkte die Idee, dass Mach ein sehr
wichtiger Denker mit reichen Ideen dieser Epoche gewesen war, in deren feste
verankerte Wurzeln steckten und in einer Zeit, das Anfang des zwanzigsten
Jahrhunderts, in der die „neue“ Physik ersteht, ausser Erkennung, durch seine Kritik,
ein Autor, der die “Geschichte der Wissenschaft” in Philosophie der Wissenschaft
umstürtzte, Aspekt, der sich nur in der zweiten Hälfte des zwanzigsten Jahrhunderts
und das mit den Erkenntnistheoretikern Kuhn und anderen stärkt.
ABSTRACT
This work has the aim of investigating Ernst Mach’s critique to the Newtonian
absolutes. In seventieth century, Newton, in his work “Mathematical Principles of
Natural Philosophy” suggested the existence of two important concepts: absolute
space and time. Two centuries later, Mach, based in his methodological and
epistemological grounds, drives a hard critic to these entities. The work begins with
the investigation of some characteristics of Auguste Comte´s Positivism, a powerful
philosophical current in nineteen century. This allows us to trace some differences
between Mach’s positivism and Comte´s one. The second Chapter will present some
points of Mach’s epistemology, useful aspect for a later understanding about the
critics that Mach will point on Newton’s concepts. The next Chapter, the third, defines
the main point of Mach’s methodology, dealing with some important currents of
though as mechanicism, determinism, the anti-metaphysical behavior and the
principle of economy, a very important concept for a global understanding of Mach’s
critique. At last, the fourth chapter will study the critic itself and it is divided into two
parts: in the first one, a general description will be given about Newton’s absolute
space and time, focusing the problem of Newton’s bucket and its results. In the
second part, the elements of Mach’s critique, grounded in his epistemological and
methodological doctrine, besides his own positivism will be discussed. This
argumentation’s path will allow us to check the unity of Mach’s doctrine, emphasizing
the point that Mach can be considered a very central thinker and his ideas are
important in order to make possible distinguish some roots of important concepts of
Physics that will be born in the beginning of twentieth century. It is possible either to
realize, through his critique, an author who is able to turn History of Science into
Philosophy of Science, point that becomes stronger only in the twentieth century’s
second half with philosophers like Kuhn and so on.
SÍNTESE
A história do conhecimento humano permite identificar momentos importantes. Estes
podem ser estudados, ou investigando o fato em si, ou avaliando as ideias daqueles
que estiveram diretamente envolvidos no período estudado. Ernst Mach é rico nesse
sentido: ao olhar sua obra, vê-se, ao mesmo tempo, um homem de ideias
ressonantes com o período que partilha, mas também de ideias cujo teor parecem
residir no devir. Físico controverso, filósofo vacilante, sua obra contém importantes
elementos da segunda metade do século XIX. De sua epistemologia, emerge um
homem preocupado com a possibilidade da construção de uma teoria do
conhecimento alicerçada nos fatos. Os elementos de Mach são o constructo básico
presentes no ato de conhecer. De sua metodologia, aparece um homem que em sua
vida vagou por diferentes áreas do saber, um Mach não-reducionista, desejoso da
elaboração de uma doutrina unificada de descrição terminológica da ciência. O papel
que confere à linguagem antecipa, de modo surpreendente, alguns pressupostos
assumidos pelo Círculo de Viena, inicialmente Sociedade Ernst Mach. Da fusão
entre conhecedor e objeto conhecido, lança os fundamentos da interpretação do
papel que o observador tem no ato de observar, segundo o exposto mais tarde pela
Mecânica Quântica. Na crítica aos absolutos, emerge o físico firme, que critica, com
base em sua epistemologia e sua metodologia, a postulação dos absolutos (espaço
e tempo) de Newton e que lança as bases da futura Teoria da Relatividade. Por fim,
o Mach positivista que assumirá uma forma de positivismo extremamente particular.
Conhecer sua obra e seus pontos de vista constitui uma viagem extremamente rica
na filosofia e ciência do fim do século XIX e começo do século XX, viagem essa que
essa dissertação se esmera em detalhar.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO............................................................................................... 15
2. REVISITANDO O POSITIVISMO COMTEANO ............................................ 20
2.1 – A FILOSOFIA POSITIVA DE AUGUSTO COMTE ............................... 21
2.2 – POSITIVISMO COMTEANO E A TEORIA FÍSICA .............................. 27
3. A EPISTEMOLOGIA DE ERNST MACH ...................................................... 35
3.1 – FUNDAMENTOS EPISTEMOLÓGICOS .............................................. 35
3.2 – ELABORAÇÃO DE UMA TEORIA DE CIÊNCIA .................................. 48
4. A METODOLOGIA MACHIANA ..................................................................... 60
4.1 – O MÉTODO HISTÓRICO-CRÍTICO E A NATURALIZAÇÃO DA LÓGICA
................................................................................................................. 60
4.2 – CONTEXTUALIZANDO O SÉCULO XIX ............................................. 65
4.3 - MACH E A GEOMETRIA ...................................................................... 70
4.4 - O PRINCÍPIO DE ECONOMIA EM MACH ........................................... 74
5. A CRÍTICA DE MACH AOS ABSOLUTOS NEWTONIANOS ....................... 81
5.1 – INTRODUÇÃO .................................................................................... 81
5.2 – NEWTON E OS ABSOLUTOS ............................................................. 83
5.3 - BERKELEY FENOMENALISTA COMO CRÍTICO DOS ABSOLUTOS. 94
5.4 – A CRÍTICA DE MACH AOS ABSOLUTOS NEWTONIANOS ............... 99
5.5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................ 111
6. CONCLUSÃO ...............................................................................................113
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................ 117
1. INTRODUÇÃO
Henri Bergson (1859-1941), em seu livro Duração e Simultaneidade,
investiga, do ponto de vista filosófico, as implicações que as proposições relativas de
tempo e espaço de Einstein possuem. Segundo ele:
“nossa concepção de duração traz uma experiência direta e imediata. Sem
implicar como consequência necessária a hipótese de um Tempo Universal,
harmonizava-se com essa crença de modo muito natural. Portanto, eram de
certa maneira as ideias de todo mundo que íamos confrontar com as ideias
de Einstein. E o aspecto dessa teoria, que parece chocar a opinião corrente,
passava, então, para primeiro plano: iríamos ter de nos demorar sobre os
“paradoxos” da Teoria da Relatividade, sobre os tempos múltiplos que
passam mais ou menos rápido, sobre as simultaneidades que se tornam
sucessões e as sucessões que se tornam simultaneidades quando se muda
de ponto de vista.” (Bergson, 2006, p.01)
Esse trecho da obra bergsoniana chama a atenção para um ponto muito
importante: no fim do século XIX e começo do século XX, a ciência, particularmente
a Física, passou por uma revolução conceitual de alto impacto em suas bases: uma
sensação generalizada, quase de contemplação, de que os sucessos do século XIX
haviam conduzido a sínteses de conhecimento dignas de valor, como o
Eletromagnetismo de Maxwell e seu alto poder de unificação, e o estabelecimento
da teoria atômica de Boltzmann, tudo parecia conduzir a uma crença de que faltava
pouco para uma compreensão absoluta dos fenômenos da natureza.
No entanto, com os trabalhos da Teoria da Relatividade de Einstein, do
estudo conceitual do espectro da radiação do corpo negro, e com o fortalecimento
das bases estatísticas da teoria cinético-molecular, uma reviravolta se estabeleceu.
Como entender isso? Que novo mundo era aquele que as equações de Einstein ou
da mecânica quântica mostravam?
Uma completa compreensão de todo esse processo só é possível
remontando-se ao século XIX. É nele que se situam as raízes que conduziram a
essa “revolução” do começo do século XX. Segundo Laudan, o início do século XIX
assistiu à passagem da ciência das mãos dos amadores para as de profissionais.
(2000, p.51). Muitos pensadores estiveram envolvidos nesse amplo ambiente de
15
investigação natural, alguns já bastante celebrados: Darwin, por exemplo, com sua
teoria da evolução, exerceu forte influência nesse período. Na Física, Faraday e
Maxwell surgem como nomes de destaque. Há, por outro lado, outros nomes a
quem a história parece ter conferido um papel que só recentemente tem se
mostrado de relevância e cuja importância cabe hoje reconstituir para um amplo e
completo entendimento do período e das influências que ele exerceu nos
desdobramentos da ciência e filosofia do século XX. E Ernst Mach (1838-1916) foi
um deles.
Mach foi um digno representante de seu tempo, absorvendo e reelaborando
ideias. Foi crítico feroz dos apriorismos kantianos, em detrimento de uma postura
fenomenalista. A teoria da evolução de Darwin exerceu sobre ele grande influência
conceitual. A doutrina dos elementos, apresentada em sua epistemologia,
desencadeará desdobramentos muito profícuos, que, já no século XX, estabelecerão
as bases da tese de um mundo dado e um sujeito que o conhece, como entidades
ontologicamente distintas. Mach, conforme veremos, questiona e reelabora essa
tese. Por fim, sua crítica aos absolutos newtonianos contêm argumentos que,
segundo muitos comentadores, parecem ter exercido grande influência no
pensamento de Albert Einstein e na leitura deste das equações de Lorentz.
Outros pontos merecem igual destaque: o debate travado com atomistas,
como Planck ou Boltzmann, marcou a posição anti-atomista de Mach. Verificaremos,
pontualmente, se essa posição se sustenta e que aspectos parecem tê-lo conduzido
a ela, investigação que auxiliará bastante na compreensão do teor das críticas que
Mach, considerado positivista, dirigiu à doutrina do absoluto de Isaac Newton.
Mas é a crítica aos absolutos newtonianos o guia condutor de nossa
investigação nessa dissertação. No século XVII, Newton publica sua obra mais
conhecida, Princípios Matemáticos da Filosofia Natural e nela, no primeiro Escólio,
apresenta suas concepções de espaço e tempo absolutos. Um desenvolvimento
mais detalhado da abordagem será apresentado no capítulo quatro, mas cabe
mencionar que um dos pontos que suscitou debate intenso à época, envolvendo
filósofos como Berkeley e Leibniz, entre outros, foi o desdobramento que sua
adoção da tese do absoluto teria para a compreensão de uma filosofia natural que
16
se esforçava para se assentar em bases mais solidamente estabelecidas, livres de
especulações metafísicas. Newton postulava que tempo e espaço, na forma em que
dispomos deles, são entidades relativas, mas existe uma medida absoluta, um
espaço e um tempo, que ele chama de verdadeiros, e que independem de qualquer
relação com um referencial ou observador específico. Veremos que ele chega a
postular um experimento, o do Balde, de modo a garantir uma “evidência” empírica
de sua existência, justificando sua postura de manter-se alheio ao recurso a
hipóteses.
Quase dois séculos depois, Ernst Mach, em sua obra A ciência da Mecânica
tecerá críticas bastante consistentes ao estatuto dos absolutos. A riqueza de suas
argumentações justifica um estudo detalhado do assunto, pois uma análise
minuciosa do teor destes permite, dentre vários aspectos:
a)
investigar a epistemologia machiana, mostrando que a crítica de Mach aos
absolutos se sustenta em sua base epistemológica. Mach sempre negou o título de
filósofo, intitulando-se um físico, mas essa dissertação espera mostrar ser
impossível tecer uma crítica consistente às posições machianas com relação ao
absoluto sem que, antes, sejam precisamente explicitados os fundamentos de sua
teoria do conhecimento. Também é importante indicar que a epistemologia proposta
por Mach, centrada em seu conceito de elementos, aliada à tentativa de um projeto
de unificação da descrição das ciências, conduz Mach à dissolução da dicotomia
entre sujeito que percebe e coisa percebida. Isso parece adiantar, em algumas
décadas, a tentativa dos físicos do início do século XX de elaborar uma
epistemologia que justifique os “estranhos” resultados da Mecânica Quântica. Isso
será exposto, em detalhes, no capítulo dois.
b)
analisar a postura metodológica de Mach e esmiuçar um importante conceito
atrelado à sua investigação da natureza: o princípio de economia. No capítulo três,
veremos que Mach afirma que a natureza em si simplesmente segue seu curso, não
sendo, em si econômica, mas a tarefa imposta aos investigadores naturais, de
efetuar uma descrição a mais aproximada possível dos dados extraídos da
observação, essa deve progressivamente ser atingida, tendo como princípio
norteador, seu caráter econômico. A metodologia de Mach, pedra fundamental para
17
o entendimento de sua aversão à descrição mecanicista de mundo e elemento
central para a justificativa de seu projeto de unificação terminológica das ciências,
alicerçado em seu Princípio de Economia, será tratada no terceiro capítulo. Pontos
igualmente centrais, como seu alinhamento com a ideia de causa humeana e sua
tese de fundamentação empírica das verdades geométricas também serão
expostas.
c)
investigar a classificação, comumente atribuída a Mach, como “positivista”.
Ele é assim designado e falta, em nosso ponto de vista, uma explicitação mais
detalhada do significado dessa denominação. Não fica claro, pelo menos na forma
em que a maioria dos comentadores se remete a essa terminologia, de que
positivismo Mach é representante, isso em se assumindo possíveis tipologias de
positivismo. Seria o proposto por Comte, meio século antes? Que tipo de postura
tem o Mach tradicionalmente tomado como “anti-atomista”? Se sua postura antiatomista se limitasse a uma simples negação da metafísica, então o teor de suas
críticas, inclusive as dirigidas ao absoluto, seriam triviais. Mostraremos que em se
assumindo um positivismo estritamente machiano, essas críticas ganham um novo
vigor e precisam ser reelaboradas. Isso será examinado em detalhes nos capítulos
um e três dessa dissertação. Os capítulos mencionados visam ao estabelecimento
de um padrão de comparação entre a posição de Comte, que chamo aqui de
positivismo “puro” e a que emergirá de Mach no estudo da crítica aos absolutos.
d)
Finalmente, sempre com o olhar focado no caráter de unidade de seu
trabalho, o capítulo quatro versará sobre a crítica aos absolutos de Newton,
dividindo-se em duas partes: num primeiro momento, as teses newtonianas do
absoluto são expostas, sendo discutidas na segunda parte, à luz de sua
epistemologia e metodologia. Desse estudo, emerge o Mach que faz nascer
interpretações, mesmo que de forma insipiente, correntes no século XX: o autor que
transforma epistemologia em teoria de ciência, aos moldes dos epistemólogos a
partir da década de 1960, o autor que funde objetividade e subjetividade e, por fim, o
autor que lança as bases da Teoria da Relatividade. Em síntese, entendo que o
problema da crítica aos absolutos de Newton é frutífera em, pelo menos dois pontos,
pois pemite:
18
d1) extrair a consistência da crítica machiana, indicando possíveis
pontos
de
discordância
ou
de
concordância entre
as bases
epistemológicas e metodológicas de sua física e a física em si,
proposta por ele. Disso será possível estabelecer o grau de unidade de
seu arcabouço conceitual.
d2) levantar pontos da crítica machiana que constituem, segundo
nosso entendimento, raízes sobre as quais se fundarão importantes
desdobramentos da física e filosofia do século XX, como, por exemplo,
o positivismo lógico (e sua estrita relação com a linguagem) e a teoria
da relatividade (e sua aparente concepção relativista que, em princípio,
é radicalmente oposta aos absolutos). Estes pontos serão apenas
destacados com o intuito de mostrar a importância de Ernst Mach para
a compreensão das ideias que permearam a ciência no fim do século
XIX e começo do século XX.
Considero que o grande mérito dessa dissertação é extrair a unidade da
doutrina machiana, a partir, não apenas dos fundamentos que regem sua
investigação da natureza. Não se trata, portanto, de categorizar Mach como um
fenomenalista, positivista ou anti-atomista, mas, antes, mostrar como esses “ismos”
podem ser analisados à luz de sua posição metodológica e epistemológica, focando
a análise na unidade de sua doutrina.
Tudo isso exposto, é evidente a importância que Ernst Mach exerce em seus
contemporâneos na segunda metade do século XIX e começo do século XX,
justificando um estudo detalhado de sua obra. E a Crítica aos Absolutos
Newtonianos parece-nos conter argumentos valiosos que explicitam essas questões.
2. REVISITANDO O POSITIVISMO COMTEANO
19
A fim de compreendermos a real extensão do pensamento de Mach, um
ponto importante é a alusão comumente feita ao seu positivismo. As críticas que
Mach dirige aos absolutos newtonianos são tomadas comumente como de cunho
estritamente positivista. Cohen (1968, p.137), por exemplo, se refere a Mach como
detentor de “reconstruções positivistas”. Também Fitas (1998, p.124) aponta que
“Mach aplaude vivamente a atitude de Newton, pois ela estava de acordo com suas
[de Mach] idéias positivistas, pois assente na observação do fenômeno, fora
edificado um quadro analítico-matemático que exprimia a relação entre as
grandezas observáveis, pondo de lado a procura da causa ou a explicação da
origem do fenômeno.” Laudan (1981, p.207) indica que “para Mach, assim como os
positivistas em geral, o objetivo da ciência era ser preditiva e descritiva. Uma teoria
ideal era aquela que, com o menor trabalho, permitia representar o maior número de
fatos possível e antecipar ou prever corretamente tantos estados desconhecidos do
mundo quanto possível.” Por fim, Brush (1968, p.192) afirma que “Mach
desempenhou um papel muito importante na história, na medida em que sua visão
sobre método científico e sobre a interpretação das teorias físicas tornou-o um
influente precursor do positivismo lógico moderno”.
No cerne dessa denominação surge, entretanto, uma questão instigadora:
que positivismo é esse? Será o positivismo de Mach, o mesmo tipo de positivismo
de Auguste Comte (1798-1857)? Uma resposta satisfatória só será possível se
mergulharmos nas ideias comteanas e tentarmos compreender como Comte lida
com questões acerca da mente, da ciência, de seu papel e da postulação de
hipóteses. Questões como essas são decisivas para marcar, e é isso que
esperamos mostrar nessa dissertação, que certamente Mach e Comte possuem
posturas, em alguns momentos, radicalmente antagônicas na concepção de seus
positivismos.
Vale frisar que o objetivo central desta aproximação com Comte não é
esmiuçar em detalhes o positivismo, mas compreender como essa corrente de
pensamento lidou com questões como previsão e explicação científica, entidades
inobserváveis, entre outras, procedimento esse que auxiliará no entendimento do
tipo de positivismo que é peculiar à doutrina machiana.
20
2.1 - A FILOSOFIA POSITIVA DE AUGUSTO COMTE
O positivismo é uma corrente de pensamento que se origina na França entre
1820 e 1830, originária, segundo Geymonat, de um movimento oriundo da
consolidação da classe média após o advento da Revolução Industrial. (1986, p.07)
Segundo esse autor, os positivistas propõem um enfoque novo: buscar a fundação
da ciência não na filosofia, como era comum, mas na própria ciência.
Isso significa que, na visão dos positivistas, a ciência não precisava mais
buscar seus fundamentos fora de suas próprias fronteiras como se
estivessem para ser encontrados na tênue linha que separa sucessos
teóricos e práticos. Foram estes sucessos que convenceram todas as
pessoas que a ciência estava no caminho certo, estabelecendo-se contra –
ou pelo menos se separando mais claramente – da esterilidade comumente
conhecida da metafísica. (GEYMONAT, 1986, p.07)
Comte é, sem dúvida, uma figura de destaque nesse movimento e suas ideias
têm sido frequentemente relacionadas com o materialismo, objetivismo ou mesmo
com o determinismo e, em função disso, muito se tem escrito com abordagens que
não fazem jus às suas idéias. O positivismo comteano, inserido dentro de seu
contexto, o século XIX, em que a física newtoniana, além não cessar de produzir
resultados bem sucedidos sobre a natureza do mundo, difunde a crença, então
quase generalizada, de que a física é um modelo de conhecimento humano que
deve exportar sua metodologia às demais áreas do conhecimento. A Química, a
Psicologia e mesmo as doutrinas sociais (que Comte cunhará como Sociologia)
serão exemplos de áreas que tenderão a apresentar correntes de pensadores em
busca de um método, aos moldes da Física,
que permita a essas áreas do
conhecimento semelhante sucesso.
Motivado pelos sucessos mencionados anteriormente, Comte, principalmente
em duas obras, Curso de Filosofia Positiva (1830-1842)1 e Discurso sobre o Espírito
Positivo (1848), apresentará, em detalhes, o percurso realizado pelo espírito
humano em direção ao que ele chama de maioridade intelectual.
1
A obra foi publicada, em 6 volumes, entre 1830 e 1842.
21
Comte entende que o espírito humano, em sua marcha progressiva, culmina
com o estado positivo, e afirma que uma comparação entre o desenvolvimento da
humanidade, a partir da história, e do desenvolvimento individual, constituem a base
de sua pesquisa acerca do desenvolvimento do espírito humano. Comte afirma que:
para explicar convenientemente a verdadeira natureza e a característica
própria da filosofia positiva, é indispensável lançar-se, primeiramente, a uma
investigação geral da marcha progressiva do espírito humano (...) pois uma
concepção qualquer somente pode ser bem conhecida a partir de sua
história. (1996, p.52)
A história constitui para Comte um laboratório de investigação da evolução do
ser humano. Implícito neste olhar está a crença de que existe uma regularidade na
forma de conhecer humana e, mantida esta, basta fazer um estudo minucioso de
como a humanidade procedeu ao longo da história e ter-se-á, com precisão, um
diagnóstico da evolução2 da espécie.
Esta crença na regularidade do comportamento do homem face à natureza é
tão forte em seu arcabouço teórico, que Comte acredita possuir mais um elemento
importante, a corroborar suas observações acerca do desenvolvimento da
humanidade, enquanto grupo social: o desenvolvimento do indivíduo. Ele afirma que
uma detalhada análise comparativa, estabelecida entre o desenvolvimento humano
enquanto grupo social e enquanto indivíduo, permite retirar semelhanças que
caracterizam
a
mencionada
evolução.
Tais
semelhanças
possibilitam
o
estabelecimento de uma grande lei fundamental, que, segundo ele,
se sujeita [a inteligência humana] por uma necessidade invariável e parece
ser solidamente estabelecida, quer na base de provas racionais fornecidas
pelo conhecimento de nossa organização, quer na base de verificações
históricas resultantes de um exame atento ao passado. (1996, p.4)
O conhecimento da organização humana é, na visão comteana, uma
investigação das etapas pelo qual passa o desenvolvimento humano ao longo de
uma existência. E esse desenvolvimento individual tem relação direta com nossa
2
O termo evolução, sempre carregado de muitos questionamentos, possui sentido de progredir na
filosofia comteana.
22
evolução ao longo da história. Segundo Comte, “o ponto de partida da espécie é
necessariamente o mesmo que o do indivíduo.” (1978, p.30)
Dessa relação entre desenvolvimento do indivíduo e da espécie, Comte extrai
uma lei fundamental, conhecida como Lei dos Três Estados. Afirma que “o espírito
humano (...) emprega sucessivamente, em cada uma de suas investigações, três
métodos de filosofar: o primeiro, método teológico, em seguida, o estado metafísico
e, finalmente, o método positivo.” (1996, p.4)
Nestes estágios, Comte considera o estado teológico o ponto de partida da
evolução humana. Nele, o homem recorre a múltiplas entidades, a fim de explicar os
fenômenos; possui avidez pelas explicações das causas e pelos conhecimentos
absolutos.
Essa etapa é dividida em três períodos: fetichismo, politeísmo e monoteísmo.
No fetichismo, o ser humano “atribui a todos os corpos exteriores uma vida
essencialmente análoga à nossa, quase sempre, porém mais enérgica, em virtude
de sua ação, de ordinário, mais poderosa.” (1996, p.8) No período seguinte,
politeísta, há uma ação mais direta da imaginação e menor do instinto. É aqui que o
homem recorre à ação de múltiplas divindades imateriais. Finalmente, na fase
monoteísta, o espírito humano, impelido por uma necessidade primitiva de
simplificação, reduz o recurso a essas entidades a apenas uma, ao mesmo tempo
que começa a “desenvolver o sentimento universal, ainda quase insignificante, da
sujeição forçosa de todos os fenômenos naturais a leis invariáveis.” (1996, p.8).
Comte faz questão de reforçar que o estado teológico, apesar de superado,
foi necessário para o desenvolvimento humano, pois fez com que o homem dirigisse
“sua atividade especulativa (...) gradualmente para um regime lógico melhor.”
Mas é preciso compreender, além disso, ainda que eu não possa
demonstrar aqui, que esta filosofia inicial [o estado teológico] não foi menos
indispensável ao desenvolvimento preliminar de nossa sociabilidade do que
ao da nossa Inteligência, quer para constituir primitivamente algumas
doutrinas comuns, sem as quais o laço social não poderia ter podido adquirir
nem extensão, nem consistência, quer para suscitar espontaneamente a
única autoridade espiritual que poderia então surgir. (1996, p.9)
23
Veremos a seguir que o estado teológico cumpre uma função fundamental:
este exercício ilimitado da especulação humana será, segundo ele, o ponto de
partida das primeiras teorias, ou proto-teorias, sobre as quais se debruçará o
intelecto humano em seu desenvolvimento posterior.
No estado metafísico, que Comte considera como uma filosofia intermediária,
o ser humano continua com sua “tendência ordinária para os conhecimentos
absolutos” (1996, p.9). E expõe o que vem a ser, em sua visão, Metafísica:
(...) a Metafísica tenta de fato explicar sobretudo a natureza íntima dos
seres, a origem e o destino de todas as coisas, o modo essencial de
produção dos fenômenos: mas, em vez de empregar para isso agentes
sobrenaturais propriamente ditos, substitui-os cada vez mais por entidades
ou abstrações personificadas, cujo uso, verdadeiramente característico,
amiúde permitiu designá-la sob a denominação de Ontologia. (1996, p.9)
Esse reconhecimento da Metafísica como um estado imediatamente
posterior ao estado teológico decorre, como se vê, de uma espécie de alteração na
forma com que se estabelece a relação com essas entidades. De fato, a diferença
entre a fase teológica e a metafísica decorre da ação do binômio “raciocínio” –
“livre especulação”3: à medida que o homem se entrega menos ao exercício
especulativo, submetendo suas investigações ao raciocínio, menos recurso às
entidades teológico-metafísicas fará.
Mesmo que questione o uso dessas entidades abstratas, Comte destaca a
importância desse estado, pois apesar de “conservar todos os princípios
fundamentais do sistema teológico, tira-lhes, porém, cada vez mais o vigor e a
fixidez indispensáveis à sua autoridade efetiva.” (1996, p.11)
Percebe-se, em sua argumentação, um movimento oscilante quanto ao
papel da metafísica: ao mesmo tempo que é um passo necessário a tirar o homem
da livre especulação, cabe-lhe um papel apenas negativo, visto que é nada mais
que uma atenuação das características mais primitivas do estado teológico. Comte
denomina esse estado de “uma espécie de doença crônica naturalmente peculiar à
3 Chamamos aqui livre especulação à atividade, também racional, destituída de vínculos com
teorias estabelecidas, aproximando-se mais a uma atividade que hoje costumamos chamar de
atividade do senso-comum.
24
nossa evolução mental, individual ou coletiva, entre a infância e a virilidade.” (1996,
p.11).
Desse modo, o estado metafísico adquire um sentido paradoxal: ao mesmo
tempo em que é absolutamente necessário para a consolidação da atividade
especulativa no ser humano, torna-se, em certo ponto da evolução da espécie, um
sério entrave para o estabelecimento do estado positivo. Laudan, diante dessa
posição dual, assumirá, como veremos mais à frente, a possibilidade de uma dupla
interpretação quanto ao recurso à metafísica na doutrina comteana.
O último estado, o positivo, corresponde ao estágio de maturidade do
conhecimento humano. Nele, Comte afirma que o espírito humano:
renuncia às pesquisas absolutas, que só convinham à sua infância e
circunscreve os seus esforços ao domínio desde então rapidamente
progressivo, da verdadeira observação, única base possível dos
conhecimentos acessíveis, criteriosamente adaptados às nossas
necessidades efetivas. (1996, p.12)
Comte estabelece, como se vê, que a especulação é completamente
substituída pelo exercício da razão, que tem como elemento norteador os fatos.
Quaisquer proposições que não assentem sua afirmação sobre os fatos são, na
visão comteana, destituídas de sentido. E conclui que “a pura imaginação perde,
então, de modo irrevogável sua antiga supremacia mental e subordina-se
necessariamente à observação.” (1996, p.12)
Superado o estado metafísico, a que chama de estado de “pura imaginação”,
estabelece-se o estado positivo, em que o recurso às causas fica destituída de
sentido, sendo o papel central da ciência o de pesquisar as leis que regem a
natureza. Comte, de fato, acredita que a natureza é regida por uma regularidade (ou
relações constantes entre os fenômenos) e que, mesmo que de maneira incompleta,
só temos acesso aos dados fornecidos pela observação, mesmo que esta ainda seja
dada de forma ainda incompleta.
Do exposto até aqui, conclui-se um ponto importante da doutrina comteana:
apesar da empiria exercer um papel fundamental na busca das leis que descrevem a
regularidade da natureza, trata-se de uma identificação inadequada a relação que se
25
costuma estabelecer entre empirismo e positivismo. Laudan nos sugere isso, ao
apontar que, “para Comte, a observação científica pressupõe, em si, a teoria” (1981,
p. 146), o que Comte confirma no excerto que segue:
Pois, se de um lado toda teoria positiva deve necessariamente fundar-se
sobre observações, é igualmente perceptível, de outro, que, para entregarse à observação, nosso espírito precisa duma teoria qualquer. Se,
contemplando os fenômenos, não os vinculássemos de imediato a algum
princípio, não apenas nos seria impossível combinar essas observações
isoladas e, por conseguinte, tirar daí algum fruto, mas seríamos inteiramente
incapazes de retê-los; no mais das vezes, os fatos passariam
despercebidos aos nossos olhos. (1978, p.05)
Assim, a idéia de um positivismo comteano que se alinhe a um empirismo
lockeano não tem sustentação. Seria como aceitar um empirismo ingênuo, a tese de
que o homem é uma tabula rasa e que todo o fundamento do conhecimento se
encontra externo a esse mesmo homem. É preciso possuir proto-teorias, espécie de
pré-concepções que dirijam o olhar ao mundo. E aqui se percebe a razão de Comte
destacar a importância da fase teológica e metafísica. Conforme exposto
anteriormente, é nela que a especulação livre permite o estabelecimento das
primeiras teorias que, posteriormente, servirão de base para a captação dos fatos e
reelaboração das teorias então aceitas. Vê-se, portanto, que o positivismo, apesar
de possuir alguns aspectos que o assemelhe ao empirismo, constitui-se uma
atividade racional aliada à observação, pois :
... no estado positivo, o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de
obter noções absolutas, renuncia a procurar a origem e o destino do
universo, a conhecer as causas íntimas dos fenômenos, para preocupar-se
em descobrir, graças ao uso bem combinado do raciocínio e da observação,
suas leis efetivas, a saber, suas relações de sucessão e similitude.
(COMTE, 1996, p.4)
2.2 - POSITIVISMO COMTEANO E TEORIA FÍSICA
Essa distinção entre empirismo e positivismo possibilita inferir a visão
comteana do papel de uma teoria física. Como se encontra afastada a busca pelas
26
causas, e tem-se apenas um acesso limitado aos dados dos fenômenos, Comte
estabelece uma linha demarcatória entre física e metafísica.
... a filosofia positiva, [cuja] mais alta ambição é descobrir as leis dos
fenômenos e cujo primeiro caráter próprio é precisamente considerar
proibidos à razão humana todos esses sublimes mistérios, que a filosofia
teológica explica, ao contrário, com tão admirável facilidade, até em seus
mínimos pormenores. (1996, p.06)
Dessa forma, a filosofia comteana considera vedada à investigação humana,
em seu estado positivo, o que chama de sublimes mistérios, observações nãoligadas aos fatos e, portanto, impossibilitadas de verificação por não constituírem
“conhecimentos reais”, termo que Comte usa ao mencionar “conhecimentos que
repousam sobre os fatos observados.”
Desse modo, estando a ciência física limitada às proposições observacionais
e proibida de investigar as causas íntimas dos fenômenos, não resta a ela outra
tarefa a não ser a de prever os fenômenos.
(...) a verdadeira ciência, muito longe de ser formada por simples
observações, tende sempre a dispensar, tanto quanto possível, a
exploração direta, substituindo-a pela previsão racional. (COMTE, 1978,
p.14)
Uma questão importante se coloca: se a ciência deve se ater aos fatos
observáveis e à investigação de suas leis, se deve ser uma fusão entre a pesquisa
empírica e uma base fundada nas teorias existentes, que são base para a produção
de teorias mais elaboradas, então as hipóteses científicas, centrais na formulação
das questões que direcionarão a investigação empírica, devem possuir quais
limites? Devem as hipóteses versar apenas sobre entidades observáveis? Apesar
de uma leitura mais superficial levar a crer que a doutrina comteana daria uma
resposta afirmativa a essa questão, veremos que se trata de uma questão em aberto
e, portanto, que permite interpretações diversas, algumas que se afastariam muito
da leitura tradicional feita do positivismo.
27
Qual seria a diferença entre as hipóteses postuladas por um positivista e as
postuladas por um metafísico? Hipóteses, afirma Comte, devem ser apenas meios
de antecipar o que experimento e razão podem mostrar conjuntamente.
Assim, o limite da atividade de levantar hipóteses é determinado pela
observação. Não nos esqueçamos que, em Comte, os fatos são os dados que
servem como base para dirigir o olhar à natureza. A diferença, portanto, com relação
às hipóteses metafísicas é que estas últimas não dialogam com os fatos
observáveis, enquanto que as observacionais, por fazê-lo, adquirem o direito à
denominação de positivas.
Para Comte, portanto, hipóteses só são válidas se puderem ser verificadas na
experiência. E veremos que, ao contrário, ser verificado na experiência não é o
mesmo que possuir existência real. Posso, por meio de instrumentos, inferir
propriedades acerca da estrutura da matéria, inclusive falar em átomos, mas disso
se segue que átomos existam? Se um positivista, tomado em seu sentido mais
estreito, não lida com conhecimentos fora da experiência, então para ele
inobserváveis são entidades estranhas, resquícios da atividade especulativa
presente no estado metafísico.
Por outro lado, se ser verificado na experiência for algo que indiretamente
possa ser apreendido, então, nesse caso, posso adotar uma postura mais
instrumentalista com relação a essas entidades. Em termos experimentais, isso
significa assumir a possibilidade de se referir a uma entidade, baseando-se em
resultados experimentais indiretos produzidos por experimentos. Desse modo, posso
não falar em existência dessa entidade, mas posso dispor dela como um recurso
auxiliar, em função dela fornecer dados empiricamente detectáveis.
Disso se segue que o princípio de verificação empírica se coloca como um
critério importante para a doutrina comteana e que limita as conjecturas ao estudo
das relações entre os fenômenos, donde se exclui, a princípio, a possibilidade de
hipóteses sobre entidades inobserváveis. Laudan conclui: “Comte pode ser visto
como o filósofo que permitiu as hipóteses inter-fenomênicas, mas rejeitou qualquer
hipótese que lide com partículas imperceptíveis, fluidos e forças” (1952, p. 152)
28
Essa observação concorda fortemente com a leitura mais tradicional (ou
conservadora) que se faz do positivismo. Trata-se de uma doutrina que lida com
fatos observáveis, sendo estes a base de qualquer formulação acerca da natureza.
Tal leitura gera uma ruptura entre o que é acessível (os dados observáveis,
estudados pela física), e o que é inacessível (os inobserváveis).
Fatos são a base do levantamento de hipóteses e é a verificabilidade destas,
por meio de proposições observacionais, o que estipula os limites dessas
conjecturas. Isso implica que só posso formular hipóteses que dialoguem com fatos
captáveis na experiência, ou seja, disso decorre que tais hipóteses, formuladas em
termos de proposições observacionais, permitam o retorno à experiência a fim de
serem verificadas. Tem-se um ciclo fechado que começa na experiência, mas deve
necessariamente retornar a ela.
Porém, façamos uma breve análise do exposto acima e discutamos uma
alternativa de interpretação. Numa primeira análise, consideramos acessíveis aos
sentidos os dados observáveis. Mas ser acessível aos sentidos é o mesmo que ser
diretamente observável? A resposta a essa questão parece conceder ao postulador
de hipóteses acerca de entidades inobserváveis uma saída: a possibilidade de
conjecturas com respeito a tais entidades, desde que estas cumpram a função maior
da teoria positiva, a de prever os fenômenos.
Como lidar, por exemplo, com uma teoria como a atômica, da qual é possível
deduzir consequências experimentais, que podem ser submetidas ao controle dos
fatos? Se tal controle for possível, a teoria atômica não poderia ser uma hipótese
aceitável aos olhos de Comte?
Se estudarmos com mais detalhes, veremos que, em muitos momentos de
seu trabalho, Comte faz menção aos átomos, sem que isso pareça representar, a
ele, um problema. Vejamos um desses trechos:
A tendência constante de todas as moléculas estarem umas com as outras
na razão direta de suas massas e na razão inversa do quadrado de suas
distâncias. De um lado, esse fato geral se faz presente como uma simples
extensão de um fenômeno que nos é eminentemente familiar e que, por isso
só, reconhecemos como perfeitamente conhecido, [a saber] a gravidade na
superfície da Terra. Quanto a determinar o que são de fato essa atração e
essa gravidade, quais são suas causas, estas são questões que
consideramos insolúveis, que não são do domínio da filosofia positiva e que
29
abandonamos, com razão, à imaginação dos teólogos ou às sutilezas dos
metafísicos. (1996, p.59-60)
Como é comum na França entre 1800 e 1830, Comte parece aceitar que
moléculas interagem por meio de forças. Como aparece no excerto, refere-se a uma
“tendência constante de todas as moléculas...”. Mas será que Comte assume as
moléculas como existentes, pelo simples fato de fazer menção a elas? A resposta,
que aparece na própria citação, logo em seguida, parece ser não. Ao dizer que esse
fato é “como uma simples extensão do fenômeno que nos é eminentemente familiar
[a gravidade]”, fica implícito que, para Comte, o fato de moléculas ou átomos serem
ou não entidades existentes não se coloca como relevante. O que de fato importa é
o fenômeno e o que ele nos diz. Se possuímos uma teoria atômica que pode ser
estudada
a
partir
de
experimentos,
que
forneçam
dados
observacionais
mensuráveis, um verdadeiro positivista deve se ater apenas a estes últimos. Em
suma, Comte abre a possibilidade de se fale de átomos, mas não que se assuma
sua existência.
O que há, de fato, é a crença em um objetivismo, no fato de que, os dados
observacionais, não interessa se oriundos de uma concepção atomista da mundo ou
não, possam ser igualmente captados por qualquer observador capaz de interpretálos. Aliás, essa capacidade de interpretação é fundamental. Recordemos que Comte
mencionou que uma proto-teoria é fundamental para a interpretação dos fatos. A
ideia se sustenta na medida em que o processo interpretativo se funda na atividade
especulativa do estado anterior. O que alimenta essa atividade são os dados e, visto
que ela [a atividade], em já estando no estado positivo, debruçando-se sobre os
fatos, é capaz de produzir uma descrição precisa da natureza, então dados oriundos
da experiência são o elemento mais precioso para a construção de uma teoria
genuinamente positiva. Se provém de átomos ou de objetos observáveis, isso é
secundário.
Fazer uma interpretação objetiva dos fatos é, nesse sentido, mais importante
que perscrutar a natureza íntima da matéria. Essa estrutura não seria objeto de
estudo de uma doutrina no estado positivo, pois remeteria à busca de suas causas
primárias.
30
Comte demarca, com precisão, os limites do conhecimento positivo, tornando
impeditivas hipóteses que ultrapassem esse conhecimento. Porém, como entidades
inobserváveis, como os átomos, podem produzir resultados experimentais que são
observáveis e, portanto, que gozam de todas as prerrogativas do estado positivo,
será, pois, necessário aliar-se outro princípio, de modo a melhor demarcar o
levantamento de hipóteses: o princípio da simplicidade.
Mas em que bases se dá esse princípio de simplicidade? Comte nos sugere
algo:
Que uma classe nova de conhecimentos, preparada para uma educação
conveniente, sem se libertar de algum braço da filosofia natural, se ocupe,
unicamente, em considerar as diversas ciências positivas em seu estado
atual, em determinar exatamente o espírito de cada uma delas, em
descobrir suas relações e seus encadeamentos, em resumir, se for possível,
todos os princípios próprios em um menor número de princípios comuns, em
se conformar sem cessar às máximas fundamentais do método positivo.
(1996, p. 68-69)
A menção que faz ao resumo em um menor número de princípios comuns é,
como se pode ver, uma referência a um princípio que deve reger as pesquisas
positivas: o princípio de simplicidade, que é uma das mencionadas máximas do
estado positivo.
Teríamos, portanto, pelo exposto até aqui, que uma investigação positiva
deve se ater aos fatos e que, ater-se aos fatos não é, ainda, condição impeditiva de
aceitação das entidades inobserváveis. Falta uma condição que atrele a
investigação
positiva
a um
critério
de
objetividade, impedindo resquícios
subjetivistas, mais típicos dos estados teológico e metafísico.
Mas que critério seria esse? Uma questão pode auxiliar nesse empreitada:
adotando-se uma visão mais liberal da doutrina comteana, como sugere Laudan,
seria, portanto, permitido afirmar que Comte se alinha a certo realismo científico? Ou
Comte faria um uso instrumentalista das teorias? O próprio Comte se questiona
disso:
“Será possível, após adotar uma noção que não admite verificação, usá-la
continuamente (...) sem involuntariamente atribuir a ela uma existência
efetiva?” (Comte apud Laudan, 1981b, p. 155)
31
De fato, Comte insiste em negar que o uso sistemático dessas entidades lhes
garanta realidade ontológica. Seus critérios de demarcação (simplicidade e
verificação experimental) limitam o recurso às hipóteses que não possuem base
real, mas a concessão que faz ao uso dessas entidades inobserváveis, longe de
garantir realidade a elas, é nada mais que um artifício e que repousa sobre outro
importante princípio da doutrina positivista.
De modo a determinar com precisão esse critério, invertamos uma questão
já posta. Não seria possível que as hipóteses representassem coisas como de fato
elas são (assumindo-se uma postura realista) e não pudessem ser verificadas por
observação? O que está em questão aqui é a extensão do critério de demarcação
física-metafísica comteano. Será que ser simples e verificável é garantia de
obtenção de leis que se aproximem da regularidade apresentada pela estrutura da
natureza?
Laudan encontra uma resposta a essa pergunta, postulando uma
interpretação liberal do papel das hipóteses com relação aos inobserváveis na
doutrina comteana, o que abre possibilidade para a assunção de hipóteses acerca
de entidades inobserváveis, desde que estas se submetam ao critério de ser
indiretamente observável.
Se os termos de uma hipótese referirem-se diretamente a entidades
observáveis, então hipóteses podem ser verdadeiras ou falsas e estarão
conectadas à existência da entidade que descrevem. Se os termos da
hipótese se referem a entidades não diretamente observáveis, então esta
deixa de ser falsa ou verdadeira, mas passa a ser somente útil ou inútil e
seus termos não podem ser usados como referencial. Uma vez que a
distinção entre observável direto e indireto corresponde à mais recente
distinção entre diretamente e indiretamente verificável, pode-se enunciar
uma regra: se uma hipótese é somente indiretamente observável, então ela
é uma ficção, um artifício lógico, porém sem sentido científico. (LAUDAN,
1981b, p.156)
Dessa forma, Laudan entende que se pode fazer uma leitura mais heterodoxa
do papel, que Comte confere ao recurso a entidades inobserváveis, desde que não
como entidades reais. Admite-as, no máximo, como artifício lógico e o exemplo dado
32
da lei da gravitação mostra isso: o que vejo são apenas corpos caindo, como
possíveis moléculas dos corpos envolvidos se relacionam ou mesmo se existem tais
moléculas, isto, de fato, está fora da alçada das pesquisas físicas. Isso parece, por
fim, agregar o terceiro elemento importante, no arcabouço teórico comteano, que
auxilia numa demarcação mais precisa entre física e metafísica: a utilidade.
Veremos que essa leitura do positivismo, proposta por Laudan, se encaixa de
maneira bastante satisfatória à posição de Mach e isso já reforça, em certa medida,
a tese de que Mach é um positivista, ainda que em bases ligeiramente distintas das
de Comte.
Conclui-se, assim, que o trinômio verificação empírica – simplicidade –
utilidade constitui a base de sustentação de uma investigação positiva e demarca,
com precisão, o limite de postulação de hipóteses da doutrina de Augusto Comte.
Em resumo, primeiramente, devo me ater a proposições observáveis, em segundo
lugar, posso propor hipóteses preditivas que recorram a entidades observáveis ou
mesmo a entidades inobserváveis, que me permitam buscar uma lei que descreva a
regularidade
daquele
fenômeno,
atrelada,
evidentemente,
ao
princípio
de
simplicidade. Porém, finalmente, quando as hipóteses recorrerem a entidades
inobserváveis, devem estar associadas a um critério de utilidade, que justifique sua
enunciação. Fora deste percurso metodológico, concluímos, não temos o que Comte
chamaria de investigação positiva.
No capítulo seguinte, serão apresentadas as bases da epistemologia de
Mach, que será fundamental para desenvolver melhor semelhanças e diferenças
entre o positivismo praticado por Comte e Mach e para, mais a frente, justificar a
crítica que Mach dirige a Newton e seus absolutos.
33
3
. A EPISTEMOLOGIA DE ERNST MACH
3.1 - FUNDAMENTOS EPISTEMOLÓGICOS
A compreensão do pensamento de um filósofo só fica mais clara quando
trazemos suas ideias ao seu contexto de época. Muito se tem dito sobre a obra de
Ernst Mach, principalmente no que tange à crítica que faz ao espaço absoluto de
Newton. Poucos comentadores, no entanto, se debruçaram com atenção sobre as
bases de seu pensamento, a saber, sua epistemologia. Ao fazer isso, veremos que
muitas das tradicionais críticas que se têm dirigido a ele, como, por exemplo, sua
aversão à metafísica, podem ser relativizadas.
Partindo
de sua
epistemologia,
será
possível
observar
o percurso
metodológico-epistemológico que conduzirá a doutrina machiana à formulação do
que chamamos ciência e nos permitirá, dentro de sua argumentação, investigar qual
o papel e os limites que as hipóteses possuem na formulação de leis e teorias
acerca da estrutura da natureza. É esse percurso que pretendemos expor neste
capítulo.
34
Na epistemologia de Mach o conceito de adaptação é central. Tudo começa com
o que chama de elementos, mas passa por um progressivo processo de adaptação.
“Seres vivos alcançaram o equilíbrio com o meio que os rodeia por meio da
adaptação que é, em parte, inata e permanente e, em parte, adquirida e temporária”.
(MACH, 1976, p.79)
Esse caráter da adaptação, parte inata, parte adquirida, é muito particular à
epistemologia machiana. Como afirma Noé, “Mach introduziu um ponto de vista
evolucionário em seus estudos epistemológicos.” (1992, p. 229). Nesse sentido, o
caráter adquirido de uma adaptação está relacionado com as condições impostas
pelo próprio meio. O inato, por outro lado, provém do fato de que aquilo que
adquirimos, enquanto indivíduos, em nossa relação com o mundo externo, acaba
por se tornar herança para a espécie. Os descendentes tendem a se tornar,
portanto, herdeiros dessa adaptação adquirida.
Tal ponto de vista marcará profundamente a visão machiana. A possibilidade do
conhecimento começa, para Mach, com as sensações, únicos instrumentos que
possuímos de captação dos dados do mundo que devem ser construídos na
experiência.
Estamos absolutamente certos do que experienciamos agora, menos certos
do que observamos cuidadosamente por experiência e, consequentemente,
somente nos lembramos, menos certos [ainda] do que com base na
analogia da experiência nós apenas imaginamos e nada [certos] quando a
imaginação é baseada no que não pudemos experienciar. O nãoexperienciável não tem sentido concebível e não merece absolutamente
respeito. (MACH, 1976, p.119)
A experiência é, como se vê, fundamental na epistemologia machiana. Desse
modo, posturas filosóficas que recorrem a “transcendentalismos” são criticadas por
ele. A impressão “negativa” que a leitura do jovem Mach fez de Prolegômenos a
toda metafísica futura de Kant certamente marcou a investigação machiana da
natureza, em que ele busca se livrar do recurso a quaisquer entidades que não
tenham justificativa empírica.
Mesmo os mecanismos mentais mais elaborados, que nos permitem desenvolver
a consciência, um subproduto da atividade cerebral, em nada se aproximam da
35
visão kantiana de categorias. Mach fala em a priori, mas radicalmente se opõe a um
a priori no sentido de Kant. Seu a priori é, de certo modo, biologizado e submetido
às experiências que, pelo processo de adaptação, modificam as estruturas
responsáveis pela captação dos dados sensíveis. Essas estruturas são transmitidas
hereditariamente aos descendentes. Noé afirma que “não há qualquer forma de
apriorismo4 em sua epistemologia sensorial.” (1992, p. 230)
Ao reforçar, portanto, o caráter fundamental da ideia de adaptação em sua
epistemologia, Mach sugere que aquela visa à sobrevivência da espécie.
Não há oposição entre, digamos, ideia e vontade: ambas são produzidas
pelos órgãos, as primeiras pelos órgãos mais simples e as últimas pela
conexão dos órgãos. Todos os processos dos indivíduos vivos são reações
de interesse pela auto-preservação e mudanças em ideias são apenas parte
das mudanças nas reações. O fato de certo organismo vivo existir mostra
como que adaptações foram, com freqüência, suficientemente viáveis para
garantir a sobrevivência. Diariamente observamos reações na vida física e
mental que não são viáveis e, portanto, falham na adaptação. Reações
físicas e mentais são regidas por leis de probabilidade: se qualquer uma
delas é útil ou danosa, se as ideias que surgem são biologicamente
benéficas ou maléficas, em ambos os casos os mesmos processos físicos e
mentais estão envolvidos. (1976, p.80)
Mach toma esse processo de adaptação, não apenas como um processo
biológico, mas também como um recurso metodológico para construir sua
epistemologia. Da mesma forma, acredita ele, nossa percepção começa de forma
simples e se elabora progressivamente até que sejamos capazes de formar
conceitos e de transmiti-los a outros indivíduos da mesma espécie, atividade que é
exclusiva da espécie humana. Mas como tudo isso começa? Segundo ele, os
menores dados da experiência, captáveis a partir do aparato sensorial, são os
elementos. Mach afirma que:
Experienciamos, pensamos e agimos sobre o mundo que está ao nosso
redor. Chamamos elementos aos mais simples componentes que
experienciamos e vivemos, através dos quais não sabemos como dividir
mais. A experiência nos apresenta os elementos como dependentes uns
dos outros. Vejo um pedaço de papel vermelho. O vermelho é um elemento
da experiência que não pode ser mais dividido. (1992, p.118)
4
Toma-se aqui apriorismo no sentido mais convencional do termo, ou seja, no sentido em que Kant
o usa em sua obra.
36
Segundo Mach, captamos apenas um “algo” (as coisas do mundo) que é
apenas a dependência dos elementos. Uma operação de análise, entretanto, nos
conduziria ao encontro de “entidades de percepção” fundamentais. Essas entidades
seriam relacionadas ao nosso aparato sensorial.
Tomando a soma de minhas crenças físicas, [digo] que estas eu posso
analisar no que são, até o presente momento, elementos não analisáveis:
cor, sons, pressões, temperaturas, cheiros, espaços, tempos etc. Estes
elementos dependem de circunstâncias externas e internas; quando as
últimas estão envolvidas, e somente nessa situação, podemos chamar
esses elementos de sensações. (MACH, 1976, p. 7)
Verifica-se claramente que, para Mach, os elementos são os construtos
básicos de captação da realidade, visto serem oriundos de um processo de análise
que se finda neles próprios. Os elementos seriam uma espécie de
“átomos de
percepção”. Os blocos básicos de percepção, menores entidades empíricas
captáveis pelos sentidos seriam o que Mach chama de elementos: cor, sons,
pressões, temperaturas, cheiros, espaços, tempos etc.
Mach reconhece que não somos capazes de captar os elementos em
separado, daí sua afirmação de que se pode analisar crenças físicas por meio de
elementos não-analisáveis. Ele reforça a argumentação de que nosso aparato
sensorial é capaz de captar o conjunto dos elementos, ficando sua análise
submetida à operação intelectual. Apenas após essa atividade é que emergem os
elementos como entidades básicas do conhecer.
Outro ponto fundamental da citação é que Mach considera os elementos em
sua epistemologia como algo que permite romper com a tradicional dicotomia
tomada pela Filosofia, a do mundo objetiva e subjetivamente dado. Mach acredita
“enevoar” com essa rígida fronteira imposta pela tradição. Cekic aponta que “o
fenomenalismo epistemológico de Mach permitiu superar o dualismo entre mundo
interno e externo, a oposição entre sujeito e objeto, ou seja, todo animismo da teoria
do saber.” (1992, p.203)
Mas por que os elementos rompem com essa fronteira? Se assumo que a
consciência nada mais é que um estado interno do meu cérebro e que essa
consciência é construída num processo de adaptação entre o meu eu e o mundo,
37
visando à sobrevivência da espécie, os elementos constituem o “gatilho” que
promove esse movimento de adaptação. Interajo com os elementos que capto e isso
vai progressivamente readaptando minha relação com o mundo. Minha percepção
continua sendo “alimentada” por cores, sons, cheiros. Nesse sentido, ego
(subjetivamente dado) e mundo (objetivamente dado) se diluem e perde o sentido a
rígida dicotomia. Os elementos, portanto, servem de base, para a apreensão, tanto
do mundo externo como do mundo interno.
Segundo Cekic:
O pressuposto básico de Mach é o de que não há distinção entre físico e
psíquico. Se não é possível encontrar certas fronteiras entre certos
fenômenos físicos, também não deve haver razão para duvidar da
possibilidade de encontrar fronteiras similares entre físico e psíquico (...)
Dessa forma, físico, fisiológico e psíquico não diferem em natureza, mas
apenas são relacionados com experiências conscientes. Desse modo,
fronteiras entre o físico, fisiológico, psicológico, além de todas questões
ontológicas de dentro e fora dos corpos e sensações, do mundo material e
do mundo espiritual, deveriam ser eliminados. Mundo externo e interno
seriam compostos de poucos elementos do mesmo tipo, que se encontram
conectados entre si por fronteiras mais ou menos rígidas. (1992, p.203)
A argumentação de Cekic, portanto, reforça a tese de que para Mach a
conexão entre esses dois “pseudo-mundos” é que deve ser o foco de atenção. Uma
descrição clara, econômica (preferencialmente matemática) dessa inter-relação seria
suficiente para compreender sua estrutura e desmistificaria, concomitantemente,
com a tese da tradição, da existência de dois mundos distintos, com propriedades
completamente diferentes, e que criam a problemática questão cartesiana da
comunicação entre os mesmos, questão que desaparece em se tomando os
elementos de Mach.
Por fim, é de grande importância reconhecer que essa “fusão” entre mundo
dado e mundo subjetivo representa um ganho para Mach por questões
metodológicas. Tal problema será aprofundado no capítulo seguinte, mas, em linhas
gerais, o princípio de economia machiano, constitui, a meu ver, a grande linha
condutora de seu trabalho, chegando em alguns momentos mesmo a sobrepor sua
epistemologia, conduzindo-a. Quando consigo diluir a fronteira entre dois mundos
aparentemente distintos, dispenso a necessidade de dois conjuntos de descrições
38
que os expliquem, centrando a atenção em apenas um ponto, a inter-relação entre
esses mundos. Isso é, sem dúvida, um grande ganho metodológico que Mach não
se furta a perceber.
Quando consideramos elementos como vermelho, verde, quente, frio e
repouso, que são físicos e mentais em virtude de sua dependência mútua
de circunstâncias externas e internas, e são em ambos os casos
imediatamente dados e idênticos, a questão acerca da ilusão ou realidade
perde seu sentido. Aqui, somos simultaneamente confrontados pelos
elementos do mundo real e do ego. A única questão possível se relaciona
com a interdependência funcional entre os mesmos [os elementos], num
sentido matemático.(...) Se olharmos sem preconceito para o ego, ele se
torna uma conexão funcional entre os elementos. (1976, p.07)
E qual é a etapa seguinte? Sabemos que os dados mais fundamentais com
os quais podemos relacionar ego e mundo sensível são os elementos. Mas mesmo
Mach admite que não temos acesso a esses “átomos de percepção”, que os vemos
apenas como um conjunto de elementos ou, como é familiar à sua terminologia, um
complexo de elementos.
Se vejo uma cor em um lugar e, então, espacialmente, trago este caminho
colorido de modo a cobrir a imagem da minha mão, então ela, ou a visão ou
toque de quem quer que seja, experienciará um sentimento de calor, frio,
dureza, maciez, pressão e assim sucessivamente. Esta íntima conexão de
elementos espaço-temporalizados [zeiträumlichen] é o que chamamos
matéria. Matéria é, portanto, a conexão espaço-temporal de diferentes
percepções sensoriais de uma pessoa e as percepções sensoriais de
diferentes pessoas entre si [untereinander]. Também, se prestamos
atenção, não à dependência dos elementos do corpo humano, mas às
interrelações ou reações dos elementos em geral, então podemos
geralmente dizer que a região espaço-temporal onde as reações dos
elementos estão conectadas pode ser chamada de matéria. (MACH, 1992,
p.119-120)
Desse modo, na epistemologia de Mach, uma coisa qualquer existente em
nossa experiência é um complexo de elementos com localização espaço-temporal
precisa. Nosso aparelho sensorial tem acesso apenas a esses complexos e eles nos
são tão familiares que os consideramos como dados em si. Os elementos são o
produto da aplicação de uma operação de análise das coisas, donde se extrai seus
constructos básicos.
39
Para Mach, corpos ou coisas (complexos de elementos) não são coisas em si,
mas o nome que damos a um conjunto de sensações causadas em nós quando
interagimos com algo que é constituído de n elementos distintos, capazes de
estimular nossos sentidos. Uma mesa não é, por exemplo, uma mesa em si, mas a
soma de sensações como forma, dureza, cor, textura, rigidez etc causadas em mim.
O nome mesa, veremos, é um conceito que criamos, a fim de que possamos
comunicar intersubjetivamente com outros indivíduos, saída que Mach encontra para
fugir do solipsismo que ronda qualquer descrição de mundo que tente incorporar
elementos subjetivos. Portanto, tenho acesso apenas a um conjunto de estímulos
sensoriais e é a esse conjunto que chamo de coisa. Donde se conclui que se não há
estimulação sensorial, não faz sentido falar na coisa e isso seria, em Mach, falar de
metafísica. Mach confirma sua noção de corpo como um complexo de elementos, ao
dizer que:
Se pensamos em elementos homogêneos, compactos e interconectados,
cercados por uma superfície fronteiriça e isolada de outros tipos de lugares,
temos uma porção de matéria, um corpo ante a nós (...) Podemos chamar
esse espaço circundado de volume de um corpo. (1992, p.120)
Façamos uma breve análise de um ponto da doutrina machiana que ilustra
bem sua postura com relação às coisas que existiriam independentemente dos
estímulos sensoriais que lhe são inerentes. Koslow aponta que:
Newton defendia que todo corpo tem massa. Mas Mach defendia que a
matéria era um conceito ilegítimo da ciência. Como Newton mantinha que
todos os corpos têm inércia, eles mover-se-iam ou deixariam de fazê-lo de
uma forma especial, com relação ao tempo absoluto, durante a passagem
do tempo absoluto. Mas Mach também afirmava que os conceitos de
espaço e tempo absoluto são ilegítimos para a ciência. Portanto, os
conceitos newtonianos precisavam de uma revisão crítica, dados os
padrões científicos e de validade para Mach.” (1968, p.221)
Mach critica a definição de massa, dada por Newton, no Principia, na
Definição I. Diz ela que “a quantidade de matéria é a medida da mesma, obtida
conjuntamente a partir de sua densidade e volume.” (1990, p.01)
Trata-se, para Mach, de uma pseudo-definição. Primeiramente, porque,
segundo Newton, posso obter a massa de um corpo multiplicando a densidade pelo
40
volume, mas o que é a densidade, senão a relação entre a massa e o volume?
Dessa forma, tem-se uma definição circular. Esse é um ponto mais ou menos
consensual dos críticos da definição de massa de Newton. Mas olhando seus
elementos e seus complexos de elementos, percebemos que falar em quantidade de
matéria de um corpo perde completamente o sentido: mesmo que a definição de
massa de Newton fosse não-circular, ainda não teria sentido, segundo a
epistemologia machiana, visto suscitar uma questão: como determino a quantidade
de matéria de um corpo? E a coisa “corpo”, existe independentemente de quais
sensações possa causar em quem quer que seja?
Koslow indica que o ponto central da argumentação machiana quanto à ideia
de massa é que não se pode analisar esse conceito sem que se atente
detalhadamente para sua epistemologia. Na doutrina newtoniana, a massa é
pressuposto de sua física, enquanto que, em Mach, é derivada de seus
pressupostos epistemológicos. Não devemos esquecer que um corpo é uma soma
de sensações provocadas em um observador e não algo que existe em si. Conforme
veremos em detalhes no último capítulo dessa dissertação, Mach toma o conceito de
massa de uma forma relacional, o que aponta Koslow, ao afirmar que:
... há uma grande diferença entre a estrutura de Euler e Newton e a de
Mach: nos dois primeiros, um corpo tem massa e inércia, mesmo que não
haja outros corpos no Universo. Mach, entretanto, acreditava que não
haveria evidência garantida para dizer que um corpo solitário tivesse mais
massa ou inércia que outro. Sua noção de massa é, portanto, consequência
direta de sua epistemologia. (1968, p.221-222)
Vejamos, em seguida, como Mach entende o processo de alargamento de
nossa compressão das coisas do mundo. Afinal, se uma coisa é algo que é capaz de
causar um conjunto de sensações em mim, conhecer essa coisa implicaria em tê-la
em contato direto comigo. Assim, se algo me causa a sensação de branca, curva,
dura, com uma pequena alça na lateral e um volume interno capaz de receber um
líquido qualquer, construo em minha mente um complexo de sensações chamado
xícara. Mas uma questão que se coloca é: se for vermelha, mas capaz de causar
sensações semelhantes, trata-se de outro complexo? Se não, o que me permite
atribuir a esse complexo um mesmo nome, mesmo que cause sensações
ligeiramente distintas? Para Mach, temos o importante papel das analogias,
41
associações ou comparações. São elas que permitem alargar meu conhecimento de
mundo.
A comparação entre representação e conceitos é indispensável à formação
da linguagem e, em geral, à economia de pensamento. E se pode dizer,
enfim, que a comparação é a mais potente mola estimuladora interna da
ciência. (BOUVIER, 1923, p. 183)
Capek complementa, apontando que:
existe um associacionismo e um psicologismo atômico que afirmam que
toda variedade da vida psicológica é um processo de combinação e
recombinação dos elementos da experiência (esses elementos são as
impressões de Hume, as sensações de Cordillac, as Vorstellungen dos
psicólogos alemães e os elementos de Mach). (1968, p.171)
O processo de associação (analogia) é fundamental para a construção de
uma rede mais ampla de interconexões entre os elementos. É isso que permite a
alguém perceber que existe um conjunto de atributos (sensações) que são
características de uma xícara e que ela ainda permanece sendo xícara com
pequenas variações. Se não fôssemos capazes de produzir essas associações,
teríamos uma infinidade de complexos de ideias, mas não teríamos um corpo, que é
o agrupamento disso. Ainda segundo Capek:
[Esse associacionismo] afirma que uma mesma experiência consiste de
elementos numérica e quantitativamente diferentes, que periodicamente
aparecem e desaparecem de nossa consciência e que forma agregados de
diferentes graus de complexidade e diferentes vivacidades sensoriais. A
vida psicológica humana pode, portanto, ser reduzida a essa maravilhosa
variedade de agregados. O termo complexo é uma abreviação de complexo
de ideias. O que chamamos fenomenalismo é inteligível apenas no contexto
associacionista. “Corpo” é um mero complexo de associações, enquanto
que “eu” é uma palavra aplicada ao aglomerado gradual relativo às
sensações interiores. (1968, p.171-172)
A questão das associações constitui, entretanto, uma questão simples e Mach
reconhece que é preciso ter especial atenção com associações do tipo enganosas.
Ele divide essas associações em dois tipos (associações corretas e enganosas), que
têm seu valor e exercem papel importante.
42
Dependências físicas fortes não podem ser facilmente mascaradas ao
acaso e o interesse biológico promove a percepção das associações
importantes e corretas: estas tendem a se tornar permanentes, mesmo que
não haja grande desenvolvimento mental e tendem, por instinto, a conduzir
os processos vitais de uma forma amplamente benéfica. No entanto, mesmo
que associações enganosas conduzam a consequências perigosas, são
precisamente essas que corrigem e contribuem para um desenvolvimento
mental. Associações produzidas em sonho claramente nos fazem discernir
as características corretas das enganosas. Aqui começa a deliberação
adaptativa das ideias acerca da investigação. De uma forma resumida, isso
promove não somente uma permanência nas ideias, mas um grau de
diferenciação adequado a lidar com a riqueza de nossas experiências. O
curso das ideias deve se adaptar o mais proximamente possível às
experiências físicas e mentais, seguindo-as e antecipando-as,
permanecendo tanto constante quanto possível em diferentes casos e
fazendo justiça à diferença. O curso das ideias deve ser tanto mais fiel
quanto mais fiel puder ser ao curso da natureza em si. Qualquer progresso
substancial aqui requer colaboração de homens em sociedade e
comunicação oral e escrita. (MACH, 1976, p.81-82)
Primeiramente, é interessante notar que Mach parece sugerir um mecanismo
interno, quase instintivo, responsável por auxiliar na percepção da distinção entre
associações verdadeiras e enganosas. Esse mecanismo é mais uma herança da
influência evolucionista na doutrina de Mach, e responsável pela explicação do fato
de que alguns processos evoluem biologicamente e outros não. A vida e sua
permanência é um exemplo evidente dessa evolução biológica bem sucedida.
Esse mecanismo, portanto, será importante no processo de construção
associacionista, permitindo ao indivíduo expandir o difuso conjunto de complexos de
ideias em conjuntos organizados (complexos de elementos), que vulgarmente
chamamos de coisas.
Mach também aponta o importante papel que associações equivocadas
podem produzir, na medida em que aperfeiçoam os mecanismos que atuam nessa
organização mental dos fatos. O exercício contínuo disso conduzirá, por certo, a
uma herança que gerações futuras poderão mensurar, na medida em que essas
mesmas gerações herdarão mecanismos mentais que são produto da adaptação
oriunda tanto das associações equivocadas quanto das não equivocadas.
Com o que Mach chama de deliberação adaptativa das ideias, abre-se um
escopo enorme e variado de complexos e relações entre complexos, que amplia
43
bastante a experiência. Inferências como as causais5, por exemplo, começam a ser
construídas nesse momento e adquirimos progressivamente a possibilidade de não
apenas expandir a percepção de novos fenômenos e relações, mas também de
promover a troca dessas experiências, além de promover suas descrições. Estes
pontos serão fatores fundamentais para o estabelecimento da ciência e de sua
capacidade de prever novos fenômenos.
Uma questão importante e ainda em aberto é: estabelecidos os complexos de
elementos, podemos falar em coisas. Mas como essas coisas são conceituadas?
Qual é o papel dos conceitos na epistemologia machiana? A princípio, veremos que
sua tese sobre formulação de conceitos está intimamente ligada a seu
fenomenalismo. Em suas palavras:
Precisamos examinar mais cuidadosamente a ideia de conceito como uma
entidade mental. Lembrando que não se pode imaginar um homem que não
seja, nem jovem, nem velho, nem alto, nem baixo, ou seja, um homem em
geral; da mesma forma, que todo triângulo precisa ser imaginado, ou agudo,
ou obtuso ou reto, de modo que não há um triângulo em geral: podemos
facilmente concluir que não existem tais constructos mentais, nem [o que
chamamos] ideias abstratas, uma negação que Berkeley defendeu
vigorosamente. Entretanto, podemos ser facilmente conduzidos à tese do
nominalista Roscelini, de que conceitos gerais ou universais não existem
como coisas, mas somente como mero flatus vocis, enquanto seus
oponentes realistas os tomavam como fundados nas coisas. (1976, p.92)
Mach expõe, de certo modo, a tese nominalista nos termos em que Berkeley
já propusera: não há um homem em geral ou um triângulo em geral, e isso de certa
forma se alinha com sua posição fenomenalista: nossa experiência, por exemplo,
com triângulos não é a priori, pelo menos não em sentido kantiano, mas algo que
derivamos de nossa relação com o mundo. De acordo com sua epistemologia, o que
chamamos homem é um complexo de sensações, refinado por nossa capacidade de
associação e que nos forma uma “coisa” que percebemos na experiência. O
conceito homem é, portanto, algo que é construído e que um pensamento seria
incapaz de captar em toda sua essência. Isso fica bem claro, quando Mach coloca
que:
5
Mach, coerente com sua concepção fenomenalista, defende que princípios como o de
causalidade e de necessidade são consequências empíricas de nossa relação com o mundo e,
portanto, mantém uma posição que se assemelha muito à humeana quanto à questão. Isso será
melhor exposto no capítulo seguinte.
44
(...) conceitos não são entidades momentâneas, como uma ideia simples e
concreta: cada conceito tem sua história formativa longa e importante e seu
conteúdo não pode ser explicitamente exposto por um pensamento
transitório. (1976, p.92)
É importante salientar que o conceito não é um termo linguístico associado
àquele complexo de elementos: em sua formação, quando construímos sua ideia,
ainda não há o papel da linguagem. Uma palavra em si, salienta Mach, “não cobre
um conceito. O significado das palavras muda.” (p.93). No entanto, isso não diminui
a importância da linguagem, elemento que é característico da espécie humana.
Homens formam conceitos como animais, mas têm um auxílio valioso da
linguagem e das relações interpessoais. As palavras fornecem a eles
“rótulos apreensíveis” para conceitos, mesmo quando ideias típicas se
tornam inadequadas. (1976, p.93)
A ideia de conceito fica mais clara se pensarmos que animais também
formam conceitos. Num exemplo mencionado por Mach, uma lebre sabe que deve
se aproximar de couve, se afastar do homem e do cachorro e que pode ser
indiferente a uma vaca. Isso só é possível pela formação de uma rede de conceitos.
Porém,
com
a
linguagem
consegue-se
uma
forma
importante
de
estabelecimento e comunicação de um conceito, mesmo que a palavra que seja
signo desse conceito esteja aquém de apreendê-lo. Digamos que um químico
converse com uma pessoa e fale sobre as propriedades da água. É inegável que
ambos trocam um símbolo lingüístico “água” que lhes é comum, mas também é
inegável que ambos possuam conceitos de água distintos. Um químico poderá dizer
que a água é líquida à temperatura ambiente, incolor, inodora, insípida, é uma
molécula polar etc, enquanto que uma pessoa dirá que água é líquida, transparente,
usada para preparar alimentos, para tomar banho etc. É por isso que Mach diz que
um conceito jamais pode ser aprisionado por uma palavra.
Mach chama a atenção para uma distinção importante, entre fatos e
conceitos.
Embora conceitos não sejam meras palavras, mas fundadas em fatos,
devemos ter cuidado em tomar conceitos e fatos como equivalentes,
confundindo uns com os outros. Tais confusões provocam erros tão graves
45
quanto os produzidos pela confusão entre ideias e sensações. Uma ideia é
uma formação na qual as necessidades individuais contribuem
essencialmente, enquanto os conceitos, influenciados pelas necessidades
intelectuais como um todo, são marcados pela cultura do período. As
deduções lógicas dos conceitos se mantêm intactas desde que as
mantenhamos conectadas aos conceitos; mas os conceitos em si precisam
ser corrigidos pelos fatos. Finalmente, não se pode assumir que conceitos
correspondam a constâncias absolutas, uma vez que investigação pode
somente encontrar relações constantemente ligadas. (1976, p.102)
Dois pontos se destacam: primeiro, o fato de Mach reconhecer a importância
da cultura do período na formação de um conceito. Isso é bastante coerente com
seu método histórico-crítico, que veremos no capítulo seguinte. Segundo, conceitos
precisam estar ligados aos fatos. Os fatos é que servem de “alimento” para a
formação de conceitos. Quando um cientista diz que a molécula da água é polar,
expande o conceito de água, mas isso só fará sentido se essa “nova informação”
tiver sido captada em sua experiência com o mundo.
Ainda com relação aos conceitos, eles podem ser peculiares a um grupo, o
que torna seu uso mais limitado. Assim “um mecânico, um médico, um engenheiro,
um cientista etc, formam seus próprios conceitos e, limitando-os, atribuem à palavra
um significado estreito, diferente de seu uso vulgar.” (MACH, 1976, p.93)
O exemplo mencionado remete a outra distinção importante: estabelecidos os
conceitos, mesmo que em classes distintas, o que difere o conhecimento vulgar do
que chamamos científico?
Os homens, sugere Mach, iniciam sua relação com o mundo à sua volta a
partir de formação de conceitos simples, e esses são os primeiros com o quais lida o
conhecimento vulgar.
Esses primeiros conceitos “somente distinguem o que é crucial e mais
importante, enquanto outras características permanecem não percebidas.” (MACH,
1992, p.123) Em seguida, iniciamos a formação de conceitos mais complexos, com
os quais “seres vivos aprendem a reconhecer o que é mais vantajoso e
desvantajoso e prestam mais atenção às similaridades que poderiam os enganar.”
(p.123) Somente com a progressiva sofisticação dessa formulação de conceitos que
46
passamos do conhecimento vulgar ao científico. Surge, pois, uma necessidade de
classificar, que Mach chama de física primitiva.
As formas de movimento dos tipos imaginados como agarrar, lançar, atirar e
assim por diante já introduzem algo como classificação e concepção,
percebidas como uma orientação em direção a um objetivo. Isto também se
aplica a observações de cair, abrir, apertar. (1992, p.121)
Essa necessidade de classificação e de formação de conceitos complexos
apenas varia em grau entre o conhecimento vulgar e o científico. Para Mach, a
ciência emana da vida e constitui um passo importante em direção a um grau maior
de complexidade, na tentativa de compreensão da natureza.
3.2 – ELABORAÇÃO DE UMA TEORIA DA CIÊNCIA
Coloquemo-nos, portanto, a analisar com mais cuidado como a epistemologia
de Mach postula o papel da ciência na investigação da natureza. Algumas questões
precisam ser respondidas:
1)
Mach acredita, com seu conceito de elementos e a “fusão” entre mundo
objetivo e ego, ter eliminado a possibilidade do solipsismo, o que, em outros termos,
permite-nos perguntar: como construir uma ciência universal, partindo de uma
epistemologia que transfere ao indivíduo parte fundamental do processo de
conhecimento do mundo?
2)
Numa
concepção
eminentemente
empirista
(fenomenalista
ou
sensacionalista) qual o papel das hipóteses? Como postular entidades que, a
princípio, não estejam diretamente ligadas à Sinnlichkeit6?
A primeira questão conduzirá, como veremos, a uma ciência não-explicativa, mas
descritiva. A segunda apresentar-nos-á um Mach muito menos “anti-metafísico” do
6
Traduzida aqui como sensitividade ou tudo aquilo que é diretamente ligado aos sentidos.
47
que a tradição tem suposto e que encontra fundamentação em outros pontos
importantes, como a discussão anti-atomista que teve com Boltzmann e Planck.
Segundo Mach, a prática científica inicia-se com uma atividade que ele chama de
pré-científica e que coincide com a atividade formativa de conceitos a que cada
indivíduo é submetido.
A ciência começa por uma atividade instintiva e irreflexiva dos processos da
natureza, que se seguirá de uma apreensão consciente dos fenômenos
(essa última etapa, a [verdadeiramente] científica). Nessa etapa précientífica, a aquisição das mais elementares verdades não envolve senão
apenas as pessoas individualmente. (1989, p. 01)
Seguindo sua epistemologia, cada indivíduo constrói progressivamente sua
rede de conceitos e a amplia, conforme já visto anteriormente, por uma atividade
biologicamente orientada, que visa a uma simplificação, agrupando a um conceito
uma gama de ideias. Trata-se de um processo individual.
Com as relações interpessoais, principalmente por meio da linguagem,
estabelece-se uma uniformização da rede conceitual construída por cada indivíduo.
Essa rede, em suas relações cotidianas, principalmente por meio do trabalho,
sofistica e sutiliza essa rede, promovendo a especialização e a entrada, segundo
Mach, numa etapa propriamente científica. O trabalho é fundamental porque
constitui, na visão machiana, a primeira forma de especialização da rede conceitual,
necessária para a comunicação das técnicas adquiridas aos aprendizes de
determinada atividade.
A transição desse estágio para o classificatório, o conhecimento científico e
a apreensão dos fatos, se torna possível com o surgimento de classes
especiais e profissões, que fazem com que a satisfação de seus desejos
sociais se transformem em sua vocação para a vida inteira. Nesse
processo, há uma necessidade de familiarizar os novos integrantes dessa
comunidade com as técnicas. A comunicação do conhecimento é, portanto,
a primeira ocasião que impele a uma atitude reflexiva, um impulso é dado
para livre reflexão e investigação. (1989, p. 05)
Assim, a comunicação de conhecimento a uma classe de pessoas no
exercício de seu trabalho é que promove um aperfeiçoamento das técnicas e a
48
necessidade do desenvolvimento de uma terminologia e conjunto de procedimentos
especializados que possam ser transmitidos.
De uma forma bem geral, podemos dizer que “a ciência, em si, pode ser
definida como um problema, consistindo de uma apresentação de fatos mais
completa possível, com o menor gasto possível de pensamento.”(MACH, 1989, p.
586)
A prática científica tem, portanto, a meta de buscar descrições mais
condizentes com os fatos, requerendo, para tanto, meios os mais econômicos
possíveis. “As ciências mais desenvolvidas7 economicamente são aquelas cujos
fatos são redutíveis a poucos e numeráveis elementos da natureza.” (1989, p. 582)
As ciências têm, para Mach, uma tarefa primordial, a de “estabelecer como os
fenômenos dependem um dos outros”. (BOUVIER, 1923, p. 51). Lembremos que
Mach não tem como objetivo primordial construir um conjunto de leis que descrevam
individualmente o comportamento de cada um dos elementos da natureza. Como
Mach, em sua epistemologia, promove a fusão entre mundo objetivamente dado e
mundo subjetivo, resta à ciência estabelecer leis que descrevam a inter-relação
entre esses dois mundos. Cekic afirma que a tarefa da ciência seria, considerandose que a matéria é definida como um complexo de elementos, expressar
conceitualmente as conexões relativamente estáveis dos elementos, ou seja,
encontrar as leis da natureza. (1992, p.204-205).
Mach expõe com clareza qual é a função da ciência, segundo sua
epistemologia.
A função da ciência, como a tomamos, é substituir a experiência. Portanto,
por um lado, a ciência precisa manter-se na província da experiência, mas,
por outro, precisa ir além dela, constantemente esperando confirmação,
constantemente esperando o oposto. Quando nem confirmação, nem
refutação forem possíveis, não se trata de ciência. Exemplares de tais
ramos da ciência são as teorias da elasticidade e a condução de calor,
ambos pressupondo partículas de matéria com propriedades que a
observação fornece no estudo de largas porções [de matéria]. A
comparação de teoria e experiência pode ser amplamente estendida, à
7
A tese de que há ciências mais desenvolvidas e menos desenvolvidas parece-me tipicamente
positivista. Os motivos, no entanto, que conduzem Mach a classificar as ciências dessa forma são
radicalmente distintos dos comteanos. Comte, como vimos no capítulo 1, acreditava que todas as
ciências atingiriam o estado positivo, grau máximo postulado por uma ciência. Mach, por outro
lado, não vê essa possibilidade, apesar de entender que algumas ciências possuem elementos (e
o princípio de economia é um deles) que as permitem reproduzir os dados da natureza de uma
forma mais simples e concisa.
49
medida que nossas técnicas de observação aumentem em refinamento.
(1989, p.487)
Mach nos apresenta um critério demarcatório bem definido em sua doutrina
de ciência: a da confirmação e da refutabilidade. Uma ciência deve ser capaz de
emitir proposições que sejam refutáveis dentro dos limites delineados pelas
fronteiras da experiência, sob pena de tal afirmação ser não-científica. Pode, no
entanto, ir além, desde que as hipóteses nesse sentido possam ser confirmadas ou
refutadas na mesma experiência. E isso fica limitado à nossa capacidade de
submeter esses dados à empiria. A descrição, bastante corrente, no século XIX, de
fenômenos térmicos e elétricos em termos de movimento de pequenas partículas
dotadas de massa não cumpre, para Mach, essa finalidade. Ele encerra o excerto,
deixando uma possibilidade: quando nossos sistemas de medição forem capazes de
observar essas entidades, então lhes poderá ser concedido o benefício da
existência. Se isso não for possível, no máximo podem ser tomadas como
ferramentas úteis, porém provisórias.
A teoria atômica desempenha na física um papel semelhante ao que
desempenham alguns conceitos em matemática; é um modelo matemático
para facilitar as reproduções mentais dos fatos. (MACH, 1989, p. 589)
De forma resumida, Bouvier indica que uma teoria de ciência em Mach
possuiria cinco diretrizes básicas: (1923, p. 52)
“Estudar os problemas gerais da ciência, não especulativamente, mas do
ponto de vista histórico-crítico.
Substituir o conceito de causa e efeito pela relação matemática de função a
variáveis.
Manter-se permanentemente ligado aos fatos e somente a eles.
Reduzir a tarefa da ciência à descoberta das relações de dependência
recíproca dos fenômenos e à sua descrição econômica, ou seja, à sua
expressão a mais concisa e compreensível possível.
Evitar generalizações indutivas das teorias, além de rejeitar a tese do
mecanicismo universal.”
50
Bouvier sugere uma leitura muito comum entre os comentadores, a de que
Mach combate a tese, amplamente aceita na primeira metade do século XIX, de que
a mecânica goza de uma forma superior de abordagem da natureza, devendo
exportar seu método às demais ciências. Efetuar descrições mecânicas seria, nesse
ponto de vista, produzir descrições de sistemas, físicos ou não, em termos de
matéria e movimento, ou seja, “todos fenômenos naturais pareciam ser
potencialmente compreensíveis, desde que fossem reduzidos a um modelo
mecânico, a saber o movimento de pontos de massa no espaço e tempo.” (NOÉ,
1992, p.235). É essa visão mecânica de mundo que carrega, em seu núcleo, a tese
de que uma descrição atômico-molecular permite uma compreensão mais simples e
completa de um sistema. E é a ela que Mach se opõe radicalmente: para ele, a
mecânica não goza dessas prerrogativas mencionadas e, portanto, não há ganho
numa descrição dessa natureza. Helmholtz expressa bem esse ponto de vista
mecânico:
Se imaginarmos o universo dividido em elementos com qualidades fixas, as
únicas mudanças que ainda permanecem possíveis em tal sistema são as
espaciais (...) Portanto, não há outras forças, exceto aquelas motoras e
estas dependem das relações espaciais em sua ação. Consequentemente,
(...) fenômenos naturais devem ser reduzidos a movimentos de matéria com
forças motoras invariantes que dependem somente de relações espaciais.
(HELMHOLTZ apud NOÉ, 1992, p.235)
Mach se opõe a essa ideia, dizendo que “fenômenos puramente matemáticos
não existem... [Eles] são abstrações, feitas ou intencionalmente, ou por
necessidade, a fim de facilitar nossa compreensão das coisas.” (1989, p.596).
Como alternativa, Mach proporá uma espécie de física fenomenológica, que
“removeria todas as hipóteses artificiais e elementos metafísicos, como atomismo,
espaço e tempo absolutos, causalidade, substância última etc. e descreveria as
propriedades físicas puramente em termos direta ou indiretamente ligados à
observação.” (Noé, 1992, p.237).
As descrições econômicas dos fatos, realizadas pela ciência, são feitas por
meio de leis e teorias. Uma lei é, para Mach, um resumo compreensível dos fatos.
Na natureza não existe nenhuma lei da refração, mas somente múltiplos
casos desse fenômeno. A lei da refração é um método de reconstrução
51
conciso, resumido, feito para nosso uso e unicamente relativo ao lado
geométrico do fenômeno que nos importa. (1989, p. 582)
Uma teoria, entretanto, mais que um agrupamento de leis, deve permitir que
haja uma adaptação precisa. Nesse sentido, leis constituem tentativas econômicas
de adaptação dos pensamentos aos fatos, enquanto que teorias seriam tentativas de
adaptação de pensamentos entre si, conferindo unidade à descrição.
Em síntese, a ciência em Mach:
não é uma tentativa de compreender como o mundo é em si, mas somente
de descrever o mundo como o experienciamos. A ciência não é um
amontoado de registros de experiências. Ela vai além dos registros,
descrevendo experiências possíveis. (COHEN, 1968, p.143)
A tese de que a ciência deva ser, acima de tudo, descritiva, sustenta-se em
sua epistemologia: lembremos que Mach constrói uma epistemologia evolucionista.
Nesse sentido, nossas percepções do mundo são construídas nessa relação com o
mundo e, portanto, provém delas os dados que servirão como fundamentos para a
construção de leis que adequem pensamentos a fatos e, posteriormente, teorias que
adequem pensamentos entre si. Nesse sentido, qualquer descrição é aproximada e
constitui a melhor possível naquele momento, dadas as condições de possibilidade
dessa adequação. É coerente com a epistemologia machiana a aversão às coisas
em si e, nesse sentido, uma teoria nunca teria como objetivo encontrar a verdade
última das coisas, mas sim fazer descrições cada vez mais precisas das verdadeiras
fontes de conhecimento, os fatos.
Por vezes Mach fala da limitação ao aparato instrumental que permite captar
os dados da realidade, aparato esse que é agente profundamente limitador e, por
vezes, não permite acesso a elementos da realidade postulados por teorias
científicas. Mach não se opõe à postulação de entidades ou hipóteses que se
estendam além da experiência, mas apenas confere a essas hipóteses estatutos
ontológicos completamente distintos da postura realista: se postulo uma hipótese, a
princípio fora dos limites da experiência, posso tomá-la como hipótese matemática e,
nesse sentido, pode ser de grande valia para conferir unidade à teoria. Por outro
lado, caso possa, de alguma maneira, produzir na experiência fatos que indiquem
52
esta hipótese estar diretamente relacionada com a empiria, então se estende a
teoria e pode-se falar em existência.
Ele [Mach] não nega a existência de entidades teóricas (..). Apenas enfatiza
que qualquer coisa que exista existe apenas em um sentido, a construção
de elementos. Ele não coloca qualquer necessidade especial às hipóteses,
mas não surpreendentemente analisa o significado de uma hipótese em
termos de experiência imediata. (COHEN, 1968, p. 140)
De que entidades teóricas fala Mach? Em função de sua epistemologia
centrada nos elementos, é preciso haver um grau de correspondência entre uma
dada entidade e um complexo de elementos relacionado. Nesse sentido, posso, de
alguma forma, falar de entidades “aparentemente” desconectadas da experiência (o
que Mach chama de entidades teóricas – elas surgem de um arcabouço teórico
como uma hipótese). Elas emergem da pesquisa científica e, portanto, podemos
conhecê-las. Somente se forem submetidas novamente aos dados experimentais e
produzirem resultados empiricamente detectáveis, aí sim pode-se, em certo grau,
falar em existência destas.
O ponto fundamental, no entanto, é que Mach não está preocupado com a
existência das entidades, mas tão somente com a possibilidade de construir uma
teoria de conhecimento que promova descrição dos fatos da experiência da forma
mais simples e econômica possível. Para Mach, é possível, no máximo, perguntar o
que é uma explicação científica.
Vejamos um pouco mais do papel das hipóteses na doutrina de Mach: quais
os limites de postulação de hipóteses numa epistemologia de cunho positivista, em
que fatos e descrições têm de possuir correspondência biunívoca? Um
fenomenalista como Mach poderia ir além dos fatos?
Bouvier afirma que as hipóteses em Mach são fundadas na comparação. Diz
ele que:
quando observamos uma identidade entre certas características de dois
objetos, somos levados a crer que essa identidade encontrar-se-á entre
suas outras características. Instintivamente e involuntariamente, o
pensamento continua a observação, completando, geralmente por analogia,
o fato observado. A formação de hipóteses científicas é somente um
aperfeiçoamento dessas conjecturas instintivas. Uma hipótese é o conjunto
de condições que torna possível um fato. Em Matemática, a hipótese é o
53
que é o dado, a tese que inferimos. Nas ciências físicas, ao contrário, partese de um fenômeno dado para chegar às condições por um raciocínio
regressivo indeterminado. Nesse sentido, a hipótese é somente uma
explicação provisória que tem como objetivo fazer compreender mais
facilmente os fatos, mas que ainda escapa aos fatos. Por sua natureza, a
hipótese é destinada a ser modificada ao longo da pesquisa e adaptada às
novas experiências. (...) Pela eliminação dos elementos supérfluos, a
hipótese se retifica e leva, finalmente, à simples expressão abstrata dos
fatos. Cessa, então, de ser hipótese. (1923, p. 184)
Fica claro que uma hipótese é uma tentativa de estender um fato, como se
crêssemos na existência de uma regularidade na natureza, sendo a hipótese uma
extensão natural dessa observação. Mach não é, portanto, como se poderia crer,
um fenomenalista estrito, contrário à postulação de hipóteses que vão além da
experiência.
Porém,
essa
postulação
deve,
de
alguma
forma,
manter-se
permanentemente conectada com os fatos, a fim de que retorne a eles e elimine os
elementos supérfluos. A desconexão com os fatos poderia ser fatal e introduzir na
ciência elementos estranhos, a saber, metafísicos, o que seria muito danoso para
sua tentativa de unificação terminológica das ciências, objetivo maior da
epistemologia machiana.
O realista Mário Bunge concorda com a tese de que, segundo Mach, a ciência
precisa de hipóteses. Como ele sugere, “se nada fosse assumido além do que é
observado, então nada poderia ser deduzido”. (1992, p. 258).
A hipótese, portanto, não cumpriria um papel puramente especulativo, mas de
promover a extensão controlada da teoria, sugerindo, por comparações e analogias,
extensões da descrição que possuem potencial investigativo e que, para tanto,
devem se submeter aos fatos, a fim de mostrar a extensão de sua validade. Não
havendo conexão com estes, são consideradas além das fronteiras científicas,
sendo descartadas. Nesse sentido, uma hipótese se transmuta constantemente
durante a pesquisa, sempre se submetendo aos dados obtidos na experiência.
Prever, em Mach, ganha um sentido muito mais amplo que o usual. Não se
trata apenas de usar as leis conhecidas para prever resultados, mas, antes, fazer
emergir novas hipóteses que permitam alargar o conhecimento de dado aspecto da
natureza. Mach definitivamente não é um indutivista ingênuo e, muito menos, um
54
positivista puro, no sentido comteano. O conhecimento que temos hoje servirá de
base para que novas relações funcionais, envolvendo elementos da natureza,
possam ser estabelecidas. Quando olha para um experimento, Mach acredita que
um investigador da natureza tem um olhar dirigido, o que lhe permite inferir com
mais precisão relações funcionais mais precisas. Os registros não só me permitem
confirmar o que já sei, mas também estender, observando outros fatos inicialmente
despercebidos.
Essa crença na possibilidade de a hipótese adiantar novas relações entre os
fatos é que dá, na epistemologia machiana, um sentido particular para o que vêm a
ser as hipóteses. Como afirma Cohen:
a ciência só tem sentido quando em uso, não quando se especula. Mas sua
teoria da ciência alarga a extensão da descrição. As leis vão além de
experiências dadas; leis não funcionam apenas como descrições, mas
também como prescrições para descrições. (1968, p.143)
Vale ressaltar, segundo as palavras de Cohen, que prescrição para descrição
não é dedução. E qual é a diferença? Se entendermos a dedução como uma forma
de inferência segura, onde a veracidade das premissas garante a da conclusão, a
dedução brota da teoria, mas não requer um retorno necessário à experiência,
enquanto que prescrever para descrever necessariamente remete a esse retorno à
experiência, o que é coerente com seu arcabouço epistemológico.
Dentro da questão das hipóteses, qual a posição de Mach com relação ao
atomismo? Mach se posicionou contrariamente ao atomismo, fato que se deu,
segundo a maioria de seus comentadores, devido ao caráter anti-metafísico de sua
doutrina.
Um ponto merece ser esclarecido: seu anti-atomismo. Sua posição
instrumentalista e os elementos fundantes de sua epistemologia corroboram esse
ponto de vista. Mach assume o recurso a hipóteses (e os átomos são um excelente
exemplo disso) em sentido matemático. Eles são, segundo Mach, importantes
ferramentas na construção de teorias descritivas. Dessa forma, se nos ativermos à
possibilidade de construir um corpo de conhecimento que descreva, não como o
mundo é, mas como pode ser, dadas minhas condições de sua apreensão, e nos
55
livrarmos da necessidade premente acerca da existência, então átomos são
admissíveis e podem funcionar muito bem como instrumentos auxiliares. A questão
é muito mais utilidade que existência. Cohen reforça esse ponto de vista, ao pontuar
que:
Mach parece ter oscilado muito entre aceitar e rejeitar os julgamentos do
atomismo. Isso sugere que para ele, a questão era: o atomismo é uma
doutrina útil? A resposta é sim. Nesse caso, aceite-o e use-o. Mas e
perguntar: “átomos de fato existem?” Mach responderia que não, pois não
tomam parte da experiência. Afinal, só aos elementos, no sentido machiano,
se garante a existência. (Ibid., p.145-146)
A oscilação da crítica de seu anti-atomismo parece se centrar entre dois
pontos sugeridos pelos comentadores: ora que Mach rejeita a existência de átomos,
ora apenas que tal assunção tenha sentido. Em função de sua epistemologia e de
seu princípio de economia, partilho da segunda posição: para um investigador que
tenha interesse em construir uma teoria de ciência que faça uma descrição
econômica da natureza, assumir a realidade dos átomos constitui uma questão
bastante problemática. Como epistemólogo que Mach é, o segundo ponto é mais
importante, pois trata-se apenas de uma questão de encontrar os elementos que
justifiquem se o recurso a essas entidades se sustenta. Sua posição instrumentalista
quanto a essas entidades, associada à sua postura metodológica (que exporemos
em detalhes no capítulo seguinte), parece reforçar a oscilação mencionada no
excerto acima.
O que está em questão é que a doutrina de ciência de Mach busca uma
descrição unificada das ciências: as múltiplas áreas do conhecimento devem ser
capazes de efetuarem descrições terminológicas em termos que possam ser
apresentados, não em áreas estanques do conhecimento, mas sim em um
conhecimento universal inter-relacionado.
O cerne de todo seu arcabouço teórico é a elaboração de uma terminologia
que permita uma unificação das ciências. Termos metafísicos tornariam, desse
modo, impossível uma descrição em termos de elementos e assumiriam a tradicional
dicotomia tomada pela Filosofia, entre mundo dado e sujeito cognoscente, distinção
56
essa negada pela epistemologa de Ernst Mach. E é, portanto, nesses termos que
considero ser Mach anti-metafísico.
Vemos, portanto, que se inverte o sentido: Mach não é anti-atomista porque é
anti-metafísico, mas é antes, anti-metafísico (em função de seu projeto de unificação
terminológica das ciência, que emerge de sua epistemologia e de sua metodologia.
Cohen assume que o fato de Mach unir fenômenos objetivos e subjetivos
confere à sua doutrina da experiência uma unidade explícita de descrição dos
fenômenos. Segundo ele:
várias teorias de unidade das ciências têm sido oferecidas, cada qual com
sua contribuição para a filosofia de Mach. A unidade poderia ser
terminológica e, nesse sentido, os elementos cumpririam esse papel.
Também poderia ser metodológica e, nesse caso, seu fenomenalismo
cumpriria essa função. Por fim, poderia haver uma teoria válida de
diferentes ciências, que torne suas diferenças plausíveis e o evolucionismo
machiano é quem a justificaria. (1968, p.152)
Por fim, uma questão permanece em aberto: a da linguagem. Numa teoria
que busca a unificação das ciências e certamente esta passa pela unificação
terminológica, qual o papel da linguagem? Na doutrina machiana, a linguagem
garante o caráter de universalidade tão caro para as ciências, a fim de descrever o
mundo em termos acessíveis a todos. Lembremos que Mach rompe com a distinção
entre mundo físico e mundo psicológico e se nos remetermos à sua epistemologia,
veremos que o conhecimento se dá na relação direta da impressão sensorial das
coisas. Desse modo, as descrições do mundo, realizadas em nível individual,
precisam romper a barreira do sujeito, sob pena de caírem no solipsismo. É com a
linguagem, portanto, que Mach soluciona esse problema.
Coisas não existem como dadas, mas são um conjunto de impressões
causadas em alguém (complexo de elementos). Como sair desse conhecimento
individual e comunicar a outros as experiências que possuo do mundo, além de
efetuar descrições das relações entre esses elementos? A única maneira seria a
linguagem. Cohen nos aponta que:
podemos falar de linguagem sensorial de cores, sons e sabores; ou de
linguagem matemática de espaços, tempos, formas: ou de uma linguagem
coisal de corpos, pressões e temperaturas. Seu procedimento primeiro é
redefinir qualquer entidade concebida cientificamente como uma mistura de
57
vocabulários. (...) As cores, sons, espaços e tempos são em si os elementos
típicos da realidade com a qual a ciência pode lidar e é nossa tarefa
investigá-las. (1968, p.137)
Quando, a partir de um conjunto de sensações, construo o conceito de uma
coisa, é na comunicação por meio da linguagem que esse conceito se alarga. Um
conceito começa na relação de seus elementos com um sujeito que é sensibilizado
sensorialmente, mas a permanência dessas coisas permite uma troca, que além de
universalizar o conceito, alarga-o, a partir da aquisição de novos elementos.
Universalizar aqui não é, todavia, tomado em seu sentido mais amplo. Lembremos
que o conceito de água, partilhado por uma comunidade de químicos, difere e se
alarga sensivelmente em relação a um conceito de água tomado vulgarmente, fora
do conhecimento científico, e esse alargamento dessa coisa que chamamos água só
ganha sua acepção quando compreendido num certo contexto, a partir de diferentes
formas de linguagem, seja a matemática, a falada ou qualquer outra forma.
A epistemologia de Ernst Mach, como vimos, se fundamenta fortemente na
experiência, tomando como construtos básicos os elementos. A partir daí, Mach
progressivamente mostra como a relação entre sujeito e mundo se dá e como o
primeiro pode atuar, de forma segura e econômica, na elaboração de leis que regem
o segundo, donde brota sua teoria da ciência e também sua relação com as
hipóteses. Compreender esse movimento é fundamental, pois permite, como
veremos no capítulo quatro dessa dissertação, a partir dessa epistemologia, formular
um modelo de explicação para a relação dura e crítica que Mach estabelece com os
absolutos propostos por Newton. Sem uma sólida compreensão de sua teoria
epistemológica, essa crítica ficaria, como veremos, limitada ao argumento da
negação do espaço absoluto como entidade metafísica, o que faria com que se
tornasse trivial.
No capítulo a seguir, veremos outro elemento fundamental para o
estabelecimento de uma base sólida em que a crítica aos absolutos possa ser
fundamentada: a metodologia machiana representado, principalmente, em seu
princípio de economia.
58
4
. A METODOLOGIA MACHIANA
A postura sensacionalista, tomada por Mach como fundamento em sua
epistemologia, não constitui elemento isolado de sua investigação da natureza.
Outro ponto muito importante a ser analisado, a fim de que se possa compreender
com precisão o teor de suas ideias, é a questão do método.
Em Mach, particularmente, o método pode ser estudado por dois aspectos
centrais, a saber, primeiro, a questão da história e de como ela contribui para uma
compreensão crítica das ideias e de como estas se transmutam, e, segundo, o
princípio de economia, suas bases e de como ele se coloca diante do grande projeto
machiano, o de unificação terminológica das ciências. Entre essas duas discussões,
serão expostas, de forma elucidativa, algumas características marcantes do século
XIX, com os quais esperamos poder mostrar que questões podem ter exercido
influência no pensamento de Mach e o conduziram à construção de uma
epistemologia e uma metodologia como as apresentadas nessa dissertação.
4.1 - O MÉTODO HISTÓRICO-CRÍTICO E A NATURALIZAÇÃO DA LÓGICA8
A discussão do método em Mach faz-se importante nesse momento, a fim de
que compreendamos como o método compõe (ou mesmo complementa) uma
epistemologia minuciosamente fundamentada, como a que acabamos de descrever.
Mais que uma discussão de procedimentos adequados para a construção de uma
prática científica, que se pauta em um fenomenalismo todo peculiar, veremos que do
método machiano emerge um princípio geral, absolutamente fundamental e que
8
Usamos aqui o termo “naturalização da lógica” num sentido que diverge do usado posteriormente
por Quine, quando do advento do positivismo lógico. Queremos com ele afirmar apenas o caráter
empírico que a lógica adquire na concepção de Mach.
59
constitui elemento essencial para as tentativas de descrição da natureza em termos
de leis científicas: o princípio de economia.
No livro A ciência da mecânica, ele “utiliza a história como guia, dispondo da
história da mecânica como pano de fundo para compreender a ciência da mecânica
em seu estado atual.” (MACH, 1989, p.01). Usando como base a mecânica, Mach
afirma que:
A história do desenvolvimento da mecânica é indispensável para uma
completa compreensão da ciência em sua condição atual. Também fornece
um exemplo simples e instrutivo do processo pelo qual a ciência natural
geralmente é desenvolvida. (Ibid., p.01)
Não se trata de um recorrer a um compêndio de informações passadas, mero
recurso que visasse a mostrar que a ciência se encontra em franca evolução a partir
de um acúmulo progressivo de consecuções, mas, acima de tudo, de olhar para ao
passado, não como algo superado, mas como algo rico de informações. Bouvier
afirma que a obra machiana é “um trabalho de explicação crítica animada de espírito
antimetafísico.” (1923, p. 65). Por exemplo, Mach reconhece que se trata de um
grande equívoco afirmar que os gregos não eram experimentadores. Diz ele que “a
visão de que os gregos eram negligentes com a experimentação não pode deixar de
ser considerada mais desqualificada.” (1989, p.04). Isso ficará mais evidente, na
sequência, quando de uma rápida análise de uma obra de Arquimedes, que levanta
pontos importantes acerca do método de investigação grego, e que parece ter
impressionado deveras à Mach, que em sua obra A ciência da Mecânica, faz
inúmeras menções a Arquimedes.
A Arquimedes também pertence a honra de fundar o domínio da estática
dos fluidos. A ele devemos as bem conhecidas proposições acerca da perda
de peso de corpos imersos em líquidos... (1989, p.107)
Voltando ao papel da história, pode-se estabelecer aqui um interessante
contra-ponto com o positivismo adotado por Comte, pois, para esse último, a história
é uma evidência indelével da superação da mente humana, rumo a um estado de
superioridade intelectual, o estado positivo. Não se trata, decididamente, da relação
que Mach estabelece a partir de seu método, com a história: passado e presente
60
dialogam e mesmo o passado pode corroborar práticas que os investigadores da
natureza utilizavam à sua época. Por essa razão é que os gregos têm em seu
método muito a ensinar para a investigação da natureza no século XIX. O passado
nos ensina e, por esse motivo, nunca está superado.
Creio que esta dissertação poderá expor outro aspecto, que é que a análise
histórica (método) de Mach funde-se com sua epistemologia. Isso é, sem dúvida,
uma grande contribuição de Mach para um trabalho que se tornará extremamente
comum para os epistemólogos a partir da década de 1960.
Ao se tomar contato com os escritos de Mach, percebe-se que sua
apresentação dos dados é rica em justificações, muitas delas históricas. Mach é
extremamente claro em sua exposição, intercalando trechos e exemplos que
fundamentem sua exposição, sendo isso uma característica realmente marcante de
sua obra.
Como se viu, Mach não se atém a um método de exposição uniforme. De
fato, ele divide seu tema, seja por questões – e adquirimos, assim, as
contribuições sucessivas de diversos autores a cada uma delas – seja por
autores – em que ele detalha os diferentes trabalhos. Ele apresenta os
teoremas, seja sob a forma em que foram inventados, seja sob sua forma
atual. Num esquematismo rígido, ele combina a ordem cronológica e ordem
lógica, ao gosto de seu instinto pedagógico de maneira a elucidar sempre
tão perfeitamente quanto possível as questões examinadas. Por seus
comentários, suas reflexões, críticas, comparações sugeridas, ele intervém
continuamente e pessoalmente para a melhor exposição dos fatos.
(BOUVIER, 1923, p.78)
Embora esse tema venha a ser tratado mais profundamente no item 3.3,
gostaríamos de adiantar que algo que parece influenciar decisivamente a
metodologia de Mach é o trabalho de Arquimedes.
Para o grego, um teorema é
essencialmente empírico. Suas proposições são locais, remetidas aos dados do
mundo real, mas o auxílio lógico-matemático as universaliza. Se as proposições não
são verdades necessárias, então a contradição do argumento não decorre de sua
estrutura lógica, mas apenas de sua adequação ao mundo com que dialoga
constantemente.
O método de Arquimedes parece querer indicar que posso desvendar o
mundo a partir de proposições experimentais e esse caráter empírico da contradição
61
lógica, que não advém de um princípio de necessidade, mas sim de sua adequação
ao mundo é algo que aparece em Mach e que por certo é oriunda da influência
arquimediana. 9
Isso parece ter influenciado o caráter empírico que ele atribui à geometria e,
principalmente, à lógica. Mach é avesso ao caráter formal da lógica e da geometria,
defendendo a tese de que ambas constituem ciências de cunho estritamente
empírico, mas que adquiriram caráter de necessidade pelo recurso constante a elas,
numa argumentação que se alinha bastante com a tese humeana do hábito.
Semelhante raciocínio é feito com relação à questão da causa e efeito:
Não há causa nem efeito na natureza; a natureza possui somente uma
existência individual; ela simplesmente é. Recorrências de casos no qual A
está sempre conectado a B (...). A essência da conexão de causa e efeito,
existe somente na abstração que criamos com o objetivo de reproduzir os
fatos mentalmente (MACH, 1989, p.580)
A questão com relação a causa e efeito é mais um indicativo do poder que a
relação com os fatos possui na epistemologia machiana. Não existe uma relação de
necessidade lógica entre causa e efeito. Somos conduzidos por experiência a essa
crença. A concepção de causa e efeito, tomada classicamente, parece introduzir
uma ideia que não se funda na experiência. Daí Mach propor a substituição por uma
função a várias variáveis, que efetuaria uma descrição apenas da dependência
funcional entre os fatos, sem pressupor qualquer ligação necessária entre eles.
A noção de necessidade da conexão causal é provavelmente criada por
nossos movimentos voluntários no mundo e pelas mudanças que estes
produzem indiretamente. Muito da autoridade das ideias de causa e efeito é
devida ao fato delas serem desenvolvidas instintiva e involuntariamente e de
estarmos conscientes de não termos contribuído em nada para sua
formação. Podemos, além disso, dizer que nossa sensação de causalidade
não foi adquirida pelo indivíduo, mas aperfeiçoada no desenvolvimento da
raça. Causa e efeito, consequentemente, são coisas do pensamento,
possuindo um caráter econômico. (1989, p. 581)
9
Quando Mach, nos moldes de Arquimedes, constrói premissas “empíricas” e deduz delas
conclusões, estas devem entrar em concordância com observações empíricas. A não adequação
entre a conclusão e o mundo dos fatos seria o que Arquimedes chama de contradição lógica.
62
Mach, portanto, reforça a tese humeana do hábito para a construção de
nossas ideias de causa e efeito. O mesmo hábito se encontra também na base da
geometria para Mach, para quem mesmo os postulados mais fundamentais da
geometria são obtidos pelo uso constante na experiência, permitindo assim, como
ele afirma, que os problemas geométricos sejam tratados “exatamente”.
Os primeiros insights geométricos, mesmo os mais complicados, não foram
certamente obtidos por dedução, que pertence a um nível mais avançado de
ciência e pressupõe um corpo sólido de conhecimento e uma demanda por
simplificação, ordem e sistema. Ao invés disso, tais insights foram obtidos,
como na ciência natural, por meio de necessidades práticas da observação
exata, medindo, contando, pesando, estimando; por meio da intuição e
somente por meio da dedução de um conhecimento anterior, por
especulação ou experimentos de pensamento sob princípios guiados de
comparação, indução, similaridade e analogia. Os escritos de Arquimedes
são muito instrutivos quanto a isso. Ele nos diz que ele e outros sabiam
vários teoremas antes que encontrassem formas e provas exatas. Mesmo
em tempos modernos, tais problemas são primeiramente encontrados
empiricamente e resolvidos por aproximação e só mais tarde tratados
exatamente. (MACH, 1976, p.192)
O termo “exatamente” ganha uma acepção bastante particular para Mach,
pois quando um princípio da experiência se estabelece a ponto de poder ser tomado
como “exato”, isso significa que o tomamos com necessário, enganando-nos quanto
à sua origem na experiência.
Outro aspecto fundamental da metodologia machiana é o princípio de
economia. Antes, entretanto, façamos uma breve discussão de alguns temas
centrais na filosofia do século XIX e que elucidarão aspectos importantes da filosofia
machiana.
4.2 – CONTEXTUALIZANDO O SÉCULO XIX
63
Embora já tenhamos feito menção ao mecanicismo no capítulo anterior,
reforcemos um aspecto importante que permeou o pensamento de muitos filósofos
do século XIX, a visão mecanicista do mundo.
Antes, entretanto, é preciso tomar cuidado com a acepção do termo em
questão, visto ser bastante diversa. Em Maxwell, a teoria de campo e a
desmecanização da física, Bezerra (2006) apresenta uma excelente tipologia de
mecanicismo, que tomaremos aqui como guia de referência. Num primeiro sentido, o
que ele chama de mecanicismo clássico (mecanicismo do tipo I), o termo é tomado
como uma descrição dos fenômenos, que pode ser reduzida em termos de matéria
em movimento. É um mecanicismo ontológico. Bouvier, referindo-se ao nascimento
das teorias mecânicas, afirma que:
Se a noção de conservação de trabalho mecânico foi ampliada com a ideia
da conservação da energia, uma tendência inversa se manifestou também,
consistindo em [entender] as diversas formas de energia, calor, eletricidade
etc em termos de movimentos, ou seja, ao trabalho de partículas
elementares dos corpos. Verifica-se, assim, por volta da metade do século
XIX, ao renascimento das teorias mecânicas em física. (1923, p. 45)
Como se vê, Bouvier fala de um mecanicismo do tipo I, usando-se a
terminologia proposta por Bezerra. Essa é, de fato, a concepção que emprega uma
descrição mecânica de mundo, que retoma um problema característico do período e
que consumirá grande dedicação de Mach, que é a descrição atômico-molecular da
natureza, à qual ele se opõe com veemência.
O segundo sentido (mecanicismo do tipo II) trata de um mecanicismo mais
metodológico: “projeto de formular explicações mecânicas para os fenômenos
físicos, isto é, especificando causas eficientes e mecanismos internos pelos quais as
ações são efetuadas.” (2006, p. 180).
O sentido seguinte (mecanicismo do tipo III) toma a mecânica como um ramo
privilegiado da Física, procurando descrever as teorias em termos de uma estrutura
semelhante à mecânica. Em outro sentido, mais metodológico, a mecânica seria
tomada como uma teoria mais fundamental que as outras.
64
O último sentido (mecanicismo do tipo IV) é mais metafísico e toma o termo
mecanicista num sentido de compreender o Universo como uma grande máquina,
cabendo às teorias captar as leis que regem a estrutura de sua engrenagem.
Outros filósofos da época, como Wundt, em 1866, assumem que todas as
causas na natureza são causas em termos de movimento. Emile Boutroux, em “L
´evolution des lois” sugere uma possível razão para que se compreenda a natureza
em termos mecânicos:
Certas regularidades do mundo macroscópico poderiam ser variáveis; mas
suas variações seriam explicadas pela teoria cinética da matéria, como
resultado de diferentes arranjos das moléculas. Em outras palavras, as leis
do movimento molecular reteriam a imutabilidade em virtude das quais
algumas irregularidades aparentes seriam explicadas. (BOUTROUX apud
CAPEK, 1968, p.184-185)
Nas palavras de Boutroux, haveria um sentido real em que o recurso à
descrição da natureza em termos de matéria e movimento (mecanicismo do tipo I)
corresponderia a um ganho: irregularidades no comportamento da natureza
poderiam ser atribuídas a diferenças de organização reticulares, desonerando a
busca de uma descrição que fosse imutável. Seria como se o próprio modelo de
descrição contivesse, em si, condições de absorver mutabilidades, mantendo a
descrição em si imutável. E a descrição em termos de matéria e movimento de
partículas microscópicas seria, nesse sentido, um ganho descritivo. Mach,
certamente, não concordaria com essa visão. E isso teria a ver, como veremos neste
capítulo, com sua concepção econômica da natureza das leis físicas.
Mach oscila quando trata do mecanicismo, tomando sentidos distintos para o
termo. Num trecho importante da obra A ciência da Mecânica, Mach critica os
mecanicismos do tipo I e IV. Diz ele que:
A opinião que faz da mecânica a base fundamental de todos os outros
braços da física e segundo a qual todos os fenômenos físicos devem
receber uma explicação mecânica é, em nosso ponto de vista, um
preconceito. Os fenômenos mecânicos foram muito conhecidos no passado,
é verdade, mas nos é impossível saber quais os fenômenos físicos que
penetram no fundo das coisas ou saber se o fenômeno mecânico não é
precisamente o mais superficial de todos ou se são de igual penetração (...)
a concepção mecânica da natureza nos parece uma hipótese, talvez
fortemente útil por uns tempos, mas artificial. Por ser fiel ao método que
guia os pesquisadores mais ilustres, devemos limitar nossa ciência física à
65
expressão dos fatos observáveis sem construir hipóteses últimas desses
fatos. As hipóteses mecânicas não podem estipular alguma economia
propriamente dita de pensamento científico. (...) Os fatos fundamentais são
substituídos por um número igual de hipóteses, o que não é evidentemente
um ganho.” (1989, p. 596)
Mas por que Mach se opõe ao mecanicismo, criticando-o em suas múltiplas
significações? Isso ocorre, para ele, por dois motivos centrais: primeiramente, a
mecânica é uma ciência empírica e, portanto, seus fundamentos não gozariam de
qualquer superioridade que permitiria tomá-la como forma de descrição da realidade.
Essa “impressão” de necessidade da mecânica surge da constante relação que
temos com essa forma de compreensão da natureza, apenas mais familiar a nós,
mas não necessária em termos lógicos.
A mecânica, não deixa de reconhecer Mach, é importante e seu caráter
empírico constitui seu grande valor. Cekic reforça essa essa ideia, ao afirmar que:
Desde o tempo de Galileu, passando por Newton e Laplace, até o fim do
século XIX, a mecânica clássica era o braço principal da física. A mecânica
foi considerada um campo privilegiado. Outros braços mencionados antes –
óptica, acústica, eletricidade – foram considerados meramente constitutivos.
Mach foi um dos primeiros físicos de reputação do século XIX a colocar em
dúvida esse caráter da mecânica [de braço principal]. (1992, p. 207)
A segunda razão é que uma descrição mecânica da natureza não implicaria
em qualquer ganho em termos de conhecimento. Enquanto princípio, certamente o
de economia exerce grande influência na compreensão que Mach tem da natureza.
Por alguma razão, que será explicitada a seguir, argumentações como as adotadas
por Boutroux, com relação a possíveis ganhos descritivos com o uso da mecânica,
parecem não ter tido alcance suficiente nas ideias de descrição da natureza de
Mach. Isso nos conduz a uma questão fundamental: que concepção ele tinha do
princípio de economia?
Antes de analisarmos esse ponto em detalhe, outro problema diretamente
atrelado à visão mecanicista de mundo do século XIX, o determinismo, merece uma
breve investigação.
66
Tendo em vista o caráter fenomênico dado à investigação da natureza em
Mach, não é tarefa complexa compreender sua posição com relação ao
determinismo. Laplace (1749-1827), um dos expoentes da defesa da visão
determinista, afirmava que:
uma completa realização de um programa determinista significaria que toda
a história do mundo estaria contida em uma simples, embora
tremendamente complexa equação matemática. A mente humana não teria
mais que um acesso incompleto a essas relações matemáticas, que existem
independentemente de nossa ignorância. (LAPLACE apud CAPEK, 1968, p.
187)
Mach assume uma posição contrária a essa postura determinista. Para ele,
não existe esse princípio norteador por trás da estrutura da natureza. Assumir um
princípio de regularidade seria como que assumir uma concepção metafísica que
estaria na base dessa estrutura. Veremos que, de acordo com o princípio de
economia, a natureza não seria em hipótese alguma econômica, mas tão somente a
descrição que faço dela. Nesse sentido, não existe na natureza um princípio
determinista, maior, que regularia sua estrutura, o que se tem é apenas uma
descrição limitada de “regularidades”, que nem mesmo se pode avaliar como tal.
Uma lei é para Mach apenas uma forma de adequar pensamentos aos fatos
captáveis na experiência e, como minha captação é limitada, seria impossível julgar
a estrutura da natureza como determinista ou indeterminista. Bouvier sugere que:
decidir sobre a justeza do determinismo ou indeterminismo é impossível. A
ciência deveria ser impossível ou completa para tal. Todo saber reside no
fato de que há certas permanências, mas jamais implica que essa
suposição seja infalível. Um fato da experiência jamais se repete e é preciso
encontrar as lacunas que preenchem o conhecimento. É necessário, então,
que o saber que professe forçosamente o determinismo de uma teoria
permaneça praticamente indeterminista, notadamente se ele não renunciar
às descobertas mais importantes. Talvez não haja estabilidade dos fatos.
Em todo caso, há estabilidade suficiente para que possamos fundar uma
ciência útil. (1923, p.207)
A posição de Mach quanto ao determinismo das teorias, em se tomando sua
epistemologia, é bastante coerente. Leis e teorias apenas procuram fazer descrições
aproximadas dos fenômenos da natureza e somente com a postulação de novas
hipóteses, à medida que a ciência avança, é que novos problemas se colocam e
67
tendem a preencher lacunas desconhecidas nessa descrição. O processo é sempre
incompleto e, portanto, assumir uma postura determinista poderia levar a incorrer em
dois equívocos: ou assumir que o conhecimento das leis da natureza se encontra
em perfeita sintonia com os dados extraídos dela e isso significaria assumir um
pleno conhecimento de todos seus fenômenos, ou postular um princípio de caráter
metafísico que regeria sua investigação. E isso seria um sério problema para a
postura “anti-metafísica” de Mach.
Uma das críticas mais célebres à epistemologia machiana foi dirigida por
Planck. Segundo ele:
A teoria do conhecimento, se consistentemente considerada [de Mach] é
livre de contradições internas, mas possui somente um significado formal.
Isso ocorre porque a característica mais importante de cada investigação
em ciência natural é estranha a Mach: uma demanda por uma descrição do
mundo constante. Na realidade, esses dois conceitos (economia de
pensamento e descrição constante do mundo) são totalmente distintos. A
economia é inseparável do propósito, enquanto que o conceito de
estabilidade não tem nada a ver com o mesmo. (1992a, p.142-143).
Como se vê, Planck critica Mach por tornar distintos dois conceitos que são
tomados regularmente como ligados: economia e descrição constante do mundo.
Mach toma o primeiro como ponto central de sua investigação da natureza, mas,
segundo as palavras de Planck, simplesmente desconsidera o segundo.
Visão mecanicista de mundo, determinismo e atomismo são esferas
relacionadas na concepção machiana. Vimos que Mach assume uma postura antimetafísica e as três esferas mencionadas constituem, em seu ponto de vista,
concepções de cunho metafísico. Assumir um princípio de regularidade da natureza
é assumir uma concepção dessa natureza. É por se opor a essa visão mecanicista
de mundo (que teria em sua base a assunção de que o mundo seria regido por leis
precisamente determinadas e de comportamento regular, a tese determinista),
tomada em sua acepção I (mecanicismo como descrição da natureza em termos de
matéria e movimento), aliada à sua posição anti-metafísica e à sua postura
fenomênica que se pode entender seu anti-atomismo, este um produto da
associação dos três fatores mencionados. O anti-atomismo de Mach, em resumo,
68
não é uma resposta simplesmente ao seu fenomenalismo, o que tornaria essa
posição excessivamente simplificada.
Laudan reitera esse ponto de vista, afirmando que:
Mach acredita que a formulação atomístico-molecular das teorias é parte de
um programa reducionista nas ciências da natureza. Tal programa desejava
reduzir toda a ciência à mecânica e as chamadas qualidades secundárias
em primárias. E é essa tentativa de reducionismo mecânico que é objeto de
sua crítica (...) Por um lado, átomos têm sido veiculados para efetuar a
redução de todos os processos naturais para a mecânica. Na tentativa de
descrição mecânica de um fenômeno que não poderia ser diretamente
reduzido a equações do movimento – apesar de seu aparentemente
comportamento não-mecânico a nível macroscópico – eram entendidos
como resultado do movimento de átomos não vistos se comportando como
sistemas mecânicos em miniatura. Átomos, portanto, funcionavam como
uma substituição de equações de movimento na ausência da coisa real.
(1981, p. 214-215)
A visão assumida por Mach com relação ao atomismo é, portanto, oriunda de
três raízes:
Fenomenalis
mo
Postura antimetafísica
Princípio de
Economia
Antideterminis
mo
Negação da
Visão
mecanicista
do mundo
Antiatomismo
Esquema 01: O anti-atomismo machiano
Vale citar que o esquema a negação que Mach faz à visão mecanicista de
mundo, principalmente a que procura descrever os fenômenos em termos de massa
e movimento, nos termos citados por Boutroux e criticado por Mach, é oriunda, como
69
veremos no próximo item desse capítulo, de seu princípio de economia. Conforme
veremos, Mach não vê ganhos nessa descrição, repudiando-a como forma ideal de
descrição dos fenômenos da natureza.
O fenomenalismo de Mach, já apresentado no capítulo da epistemologia, fica
mais estritamente relacionado à sua postura anti-mecanicista, além de antideterminista, se verificarmos com atenção sua visão de geometria.
4.3 – MACH E A GEOMETRIA
Na segunda metade do século XIX, com o advento do neokantismo, uma
discussão permeava a filosofia natural: há princípios, situados como fundamento da
mecânica, que possuem uma verdade necessária? Segundo Bouvier, muitos
teóricos procuraram demonstrar que o princípio da alavanca e do plano inclinado
eram logicamente necessários, deduzindo o primeiro do princípio da razão suficiente
e o segundo do axioma da impossibilidade do movimento perpétuo. Bernoulli, por
exemplo, acreditava que o princípio da composição de forças era uma verdade
independente de toda experiência física.
Era corrente no século XIX, e alguns pensadores defendiam isso com firmeza,
que “o processo de adaptação gradual da mente humana ajustou-se naturalmente à
natureza da realidade e que esse processo se encontrava completo, ou seja,
vigorava a crença de que a estrutura da mente humana refletia, mais ou menos
fidedignamente
e
sem
grandes
distorções
a
estrutura
da
realidade,
independentemente da mente humana.” (CAPEK, 1968, p.173-174)
Essa postura, defendida, entre outros, por Spencer, é bastante coerente com
uma concepção de adaptação nos moldes darwinistas. Em função da evolução,
nossa mente, submetida a sucessivos estímulos, construiu um quadro de percepção
70
da realidade que correspondia à realidade. Em resumo, afirma Capek, “a descrição
newtoniano-euclidiana da realidade física é basicamente correta, visto ser o
resultado final de um processo evolucionário gradual de ajuste, pelo qual a mente
humana se ajustou à natureza das coisas.” (1968, p.174)
Quando Lagrange trata do Princípio dos Deslocamentos virtuais, vendo nele
uma aparência totalmente racional, Mach se coloca ante à questão, mostrando
problemas:
No princípio dos trabalhos virtuais, não se encontra nada a não ser o
reconhecimento de um fato que nos era instintivamente familiar há muito
tempo, mas que não sabíamos de uma maneira clara e precisa: os corpos
pesados se movem para baixo; quando muitos corpos são ligados entre si
de tal forma que não possam se deslocar independentemente uns dos
outros, somente se movem se a massa dentro de seu conjunto tombar.
Entra-se muito profundamente na concepção lógica da natureza,
constatando a existência de um fato, que se deixa impor por um parecer de
demonstração. Esta mania de demonstração introduz na ciência um rigor
falso e absurdo. Não se pode provar matematicamente que a natureza deva
ser o que ela é; pode-se somente demonstrar que as propriedades
observadas arrastam uma série de outras que frequentemente não são
pontos diretamente visíveis. (MACH, 1989, p. 69)
Esse trecho apresenta a postura machiana com relação às verdades
necessárias: elas são inexistentes, pois as verdades científicas são construídas na
experiência. Cabe ao investigador analisar cuidadosamente, detectando aquelas
propriedades que são indiretamente tiradas da experiência e que causam a
sensação de uma verdade auto-evidente. Como diz Mach, a natureza é do jeito que
é e nenhum teorema ou proposição pode mostrar que esse comportamento seja
imposto racionalmente.
A posição de Mach quanto às verdades necessárias se aproxima, em certo
modo, à ideia que tem do princípio de economia. Ele diz que a natureza não é
econômica em si, a natureza simplesmente é, mas posso efetuar uma descrição
dela e esta deve ser simples e se encaixar o melhor possível aos fatos. Com as
verdades necessárias acontece o mesmo: posso dispor de teoremas que
apresentem a auto-evidência de uma proposição, uma tentativa temporária e útil,
que cumpre a finalidade de auxiliar no entendimento da natureza, porém não se
deve impor à natureza que ela deva ser desse ou daquele jeito.
71
Essa postura empírica não se limita apenas às verdades necessárias. A
Lógica em si, com todas suas proposições e conectivos, constitui um importante
instrumento desenvolvido pelo homem que não goza da auto-evidência, sendo pois
uma construção empírica. E é na esteira dessa “naturalização” da Lógica que Mach
aponta também para o caráter empírico da geometria.
Há, portanto, um processo, aponta-nos Noé (1992): antes de tentar descrever
uma teoria do espaço, começa-se com uma relação com o espaço fisiológico,
estritamente qualitativo, em que se trata de conceitos como frente-trás, direitaesquerda. Esse espaço não é isotrópico, nem homogêneo, nem limitado e nem
infinito. A noção de espaço geométrico, portanto, seria um passo além, em que
abstrações assentadas no espaço fisiológico, conduziram a um espaço isotrópico,
homogêneo, limitado e infinito. “Mesmo assim, a geometria não é uma mera
formalização dotada de coerência de conceitos abstratos, mas construída ou
assentada sobre sensações de espaço.” (Mach, 1992, p. 230-231)
Desse modo, não existe um triângulo em si e que me é evidente pensar em
uma figura de três lados quando penso em um triângulo: segundo Mach, há uma
inversão nessa tese, afirmando ele que se penso em um triângulo como tendo
necessariamente três lados é porque construí na experiência essa ideia e, ao
submetê-la a um processo de idealização, posso pensar em outros tipos de
triângulos.
Posso mentalmente conceber que um ângulo de um triângulo está
crescendo e em um separado ato de atenção notar que seu lado oposto
cresce ao mesmo tempo. Então eu percebo que o aumento do lado oposto
está contido na representação mental do ângulo crescente. (MACH apud
CAPEK, 1968, p. 180)
Disso tudo, vemos que Mach toma a geometria como uma ciência
essencialmente empírica. Essa naturalização da geometria recebeu duras críticas.
Porém, não devemos perder de vista as bases dessa posição de Mach. Se nos
ativermos à sua epistemologia, à noção de que nossas percepções das coisas são
construídas nas relações sensoriais, então essa naturalização é consistente. Mach
simplesmente assume um ponto de vista que é fiel e coerente à sua epistemologia,
72
carro chefe de sua investigação do mundo e sob a qual se assentam todas as suas
posições na tentativa de compreender como nos relacionamos com o mundo, e
como construímos descrições sobre ele.
Uma última questão concernente ao assunto, por fim, pode ser colocada: na
segunda metade do século XIX, Riemann e Lobatchevsky formularam geometrias
não-euclidianas.
Matemáticos
influentes,
como
Frege,
tomaram-nas
como
reconhecidamente equivocadas, uma forma de pseudo-ciência.
Mach toma essas geometrias como recursos matemáticos provisórios, visto
estarem em completa desconexão com a realidade sensível, além de serem
completamente estranhas ao nosso arcabouço perceptivo. Não nega, entretanto,
sua possibilidade. Se a mente humana deve corresponder a uma adaptação à
realidade, e como vivemos uma realidade em que o quadro tridimensional se coloca,
não é de se admirar que a teoria euclidiana tenha se colocado como uma verdade
necessária, visto constituir uma reflexão imediata dessa realidade. No entanto,
vivêssemos em outras realidades e o sensacionalismo machiano ainda se faria
presente, pressupondo quadros conceituais à semelhança de, por exemplo, aquele
proposto por Riemann. Mach viveu o suficiente para que isso se tornasse realidade,
quando da publicação da Teoria da Relatividade geral de Einstein, em 1915. Mach
não era um euclidiano, mas um sensacionalista. Os fatos (as sensações) é que
constituem a única base confiável de investigação da natureza.
Não é difícil imaginar, diante dessa posição com relação à lógica e à
geometria, qual deva ter sido o impacto que a obra kantiana Prolegômenos causou
em Mach. Sua posição epistemológica foi, a meu ver, em certo sentido, uma
resposta ao quadro conceitual exposto por Kant e ele não teve limites em estendê-la
a todas as áreas do conhecimento, mesmo aquelas alicerçadas em rígidos princípios
da lógica formal, como o de não contradição.
De forma resumida, pode-se dizer que, para Mach, “a geometria não é um
sistema formal consistente, mas um instrumento que permite descrever a
dependência dos elementos por observância do princípio de economia de
pensamento.” (NOÉ, 1992, p.233)
73
4.4 – O PRINCÍPIO DE ECONOMIA EM MACH
Expostos alguns conceitos que se encontravam fortemente presentes nas
discussões que permeavam a Filosofia da segunda metade do século XIX e suas
visões da lógica e da geometria, voltemos a um tema central na obra machiana: o
princípio de economia. Que influência exerceu nas ideias de Mach?
Várias foram as influências que conduziram Mach a essa concepção.
Segundo ele:
Minha concepção de economia de pensamento foi desenvolvida fora de
minhas experiências como professor, fora do trabalho de instrução prática.
Estava de posse dessas concepções no início de 1861, quando iniciei
minhas atividades como docente privado e, ao mesmo tempo, acreditava
que estava de posse de um princípio, uma convicção. (...) Estou agora, ao
contrário, convencido de que, ao menos, alguns pressentimentos desta ideia
se tornaram posse comum de todos aqueles que fizeram da investigação
empírica o objeto de seus pensamentos. A expressão dessa opinião pode
assumir diversas formas: por exemplo, deveria caracterizar mais
precisamente o tema da simplicidade e beleza, que marca os trabalhos de
Copérnico e Galileu, não somente como estético, mas também como
econômico. Também os Regulae philosophandi de Newton são
substancialmente influenciados por considerações econômicas, embora
princípios econômicos assim não sejam explicitamente mencionados. Em
um interessante artigo, “Episode in the History of Philosophy”, Thomas J.
McComarck mostra que a ideia de economia da ciência esteve muito
próxima do pensamento de Adam Smith. Recentemente, a visão tem sido
amplamente expressa, por mim mesmo no artigo Ueber die Erhaltung der
Arbeit10 (1872), por Kirchhoff (1874) e por Avenarius (1876). (1989, p. 591)
Avenarius, por exemplo, publicara Filosofia como concepção de mundo
segundo o princípio do menor esforço (1877), em que propõe ideias muito próximas
às desenvolvidas por Mach. Segundo Kolakowski, Avenarius:
estava convencido de que cada ciência tende, de maneira natural, a
satisfazer a necessidade de unidade, viva na mente humana; cada ciência
visa, portanto, a sintetizar seu campo de investigação em um conceito
10 Sobre a Conservação do Trabalho.
74
definitivo e supremo. É, pois, compreensível que somente uma visão
monista de mundo pode satisfazer esta necessidade de unidade latente na
mente. Além disso, todas as ciências – mesmo a lógica e a teoria do
conhecimento – são experimentais em um sentido genético, apesar de cada
uma, em função de alguma espécie de inércia original, se orienta até à
Filosofia que, sozinha, está em condições de suportar tal unidade buscada.
(1966, p.131)
Sem dúvida, essa destinação da ciência à unidade, proposta por Avenarius,
exercerá forte peso, conforme veremos, na formulação do Princípio de Economia de
Mach. Não devemos nos esquecer que Mach tem a unidade terminológica das
ciências como grande objetivo de sua doutrina. Outro ponto importante em que
Mach comuta em ideias como Avenarius é o caráter experimental de todas as
ciências, mesmo a lógica, que, conforme vimos nesse capítulo, também direciona a
concepção machiana de geometria.
Em 1871, a partir de conversas com um amigo economista, E. Hermann,
Mach formulou uma concepção que permeia suas investigações naturais desde
então: Die Wissenschaft hat eine ökonomische oder wirtschaftliche Aufgabe 11. Vê-se,
portanto, que o princípio de economia era um assunto que “pairava no ar” na
segunda metade do século XIX e Mach entende que uma evidência incontestável de
seu valor é que diversos filósofos ou investigadores da ciência, quase que
concomitantemente, haviam trazido à tona sua discussão.
Bouvier coloca um questionamento importante: não teriam as concepções de
economia de pensamento de Mach sido propostas pela discussão de um tipo
específico de problema de Física, amplamente discutido à época, a saber, os
problemas de máximo e mínimo? Esses problemas remetem a uma discussão que
era oriunda da filosofia do século XVIII, iniciada pelos trabalhos de Maupertuis sobre
o princípio de mínima ação. A relação entre a lei de Snell e o princípio de Fermat, a
primeira deduzida da segunda, considerando o princípio do tempo mínimo, foi
certamente um trabalho que impressionou profundamente os investigadores naturais
e deixou sua marca nas décadas subseqüentes.
11 A Ciência tem uma tarefa econômica.
75
Por que a luz segue o caminho de menor duração? Formulando a hipótese
da sabedoria do criador, renunciamos a todo exame ulterior. Sabemos hoje
que a luz se desloca por todos os caminhos, mas é somente por aquele de
menor percurso que as ondas luminosas são potencializadas, de modo que
pode-se constatar um resultado sensível. A luz parece então se propagar
seguindo a linha de menor tamanho. (MACH, 1989, p. 466)
De fato, a herança da doutrina de Maupertuis e as discussões que permeiam
o século XIX acerca do princípio de economia têm forte peso sobre a doutrina
machiana, apresentando, entretanto, uma diferença fundamental, que veremos na
sequência: Mach crê em um princípio de economia que rege a descrição da
natureza por meio de teorias, enquanto que, em Maupertuis, há uma crença
generalizada de que a natureza aja por princípios econômicos.
Mach entende que o princípio de economia não é um princípio da natureza,
mas sim uma forma, uma espécie de “tática de pesquisador” que visa à melhor
adequação entre o comportamento da natureza e a descrição que faço dela. Isso
provém de sua crença de que a natureza não é econômica por si só, mas o é
apenas a descrição que fazemos dela por meio de leis e teorias.
Assim, não há economia na natureza. Somente podemos atribuir uma
tendência à economia às atividades do espírito humano, pois estas são
dirigidas conscientemente em direção a um objetivo, por agentes distintos,
dispondo de uma pluralidade de meios, entre os quais uma comparação é
possível. (BOUVIER, 1923, p. 84)
Cohen, acompanhando a posição de Mach, aponta na mesma direção, ao
afirmar que:
simplicidade e princípio de economia são princípios regulativos ou
teleológicos, não justificados pela razão, e impostos pela experiência
somente por considerações práticas. É apenas o modo como a ciência faz
seu trabalho, não havendo necessidade lógica em sua prática. (1968, p.
157)
Nessa tentativa de uma descrição econômica da natureza, Mach destaca dois
pontos que considera evidência disso: a matemática e a linguagem. Para ele, “a
Matemática é o método de substituir da forma mais compreensível possível novas
76
operações numéricas por antigas, feitas a partir de resultados conhecidos.” (1989,
p. 583)
Quanto à linguagem, diz ele que “a linguagem, o instrumento desta
comunicação, tem, em si, um caráter econômico”. A linguagem adquire uma
característica de ser, gradualmente, metamorfoseada em um símbolo universal. As
letras de que dispomos teriam nos alfabetos esse papel. Mach afirma que:
A linguagem, instrumento desta comunicação, é, em si, um arranjo
econômico. Experiências são analisadas em experiências mais simples e
familiares e então simbolicamente expressas com algum sacrifício de
precisão. Os símbolos do discurso são ainda bastante restritos ao uso de
suas fronteiras e certamente permanecerão assim por longo tempo. Mas a
linguagem escrita tem sido gradualmente metamorfoseada em símbolo
universalmente ideal. Números, signos algébricos, símbolos químicos, notas
musicais, alfabetos fonéticos etc podem ser tomados como partes já
formadas desse signo universal do futuro; são decididamente conceituais e
de uso internacional quase geral. (1989, p.578)
Esse
caráter
intrinsecamente
econômico
da
linguagem
a
tornará
particularmente importante na epistemologia de Mach, na medida em que, ao
mesmo tempo em que cumpre uma função econômica, facilitando e aprimorando as
relações inter-pessoais, ela constituirá a solução encontrada por Mach para permitir
que uma ciência, produzida a partir de observações individuais, de um mundo que
apenas imprime sensações em um sujeito, possa ser universalizada. Esse constitui
o grande desafio de epistemologias que centrem seus fundamentos no sujeito.
E nas ciências? Como atuaria esse princípio? Segundo Mach, “a ciência, em
si, pode ser definida como um problema de mínimo, consistindo de uma
apresentação de fatos mais completa possível, com o menor gasto possível de
pensamento.” (1989, p. 586).
Desse modo, o princípio de economia cumpriria, nas ciências, três funções
básicas: primeiro, simplificar as teorias, segundo, diminuir o número de ideias
necessárias e, por último, tomar um grande número de fenômenos sob apenas um
único ponto de vista.
Essa última função seria particularmente importante, pois iria ao encontro do
objetivo maior do trabalho machiano, que era não apenas construir uma teoria das
77
ciências que satisfizesse a descrição da natureza, mas, acima de tudo, produzir uma
unificação terminológica nas ciências. Conseguir descrever termos das diversas
áreas do conhecimento, em função de uma linguagem única e que fundamentasse
seus diversos campos de atuação seria a tarefa maior da ação metodológica do
princípio de economia na visão machiana.
Na citação a seguir, Mach mostra bem o caráter de uma lei e como ela pode
auxiliar na economia de pensamento, poupando esforços intelectuais de futuros
investigadores da natureza, além de garantir a descrição de uma gama de
fenômenos numa expressão simples e concisa.
Portanto, ao invés de casos individuais de refração da luz, se sabemos que
o raio incidente, o raio refratado e a perpendicular a eles jazem no mesmo
plano, temos [a lei de Snell]. Aqui, ao invés de um grande número casos de
refração em diferentes combinações de matéria e sob um grande número de
ângulos de incidência, precisamos simplesmente anotar a regra acima
exposta e os valores de n [índice de refração], o que é muito mais simples.
O propósito econômico aqui é inquestionável. Na natureza, não há lei da
refração, apenas casos distintos de refração. A lei da refração é uma regra
concisa, oriunda de uma reconstrução mental dos fatos. (1989, p.582)
Mesmo relações de causa e efeito, acredita Mach, são abstrações do
pensamento com o mero intuito de economizar. Estabelecemos uma relação, entres
os “gaps” da experiência, ligações que permitem adiantar os fatos, mesmo que tais
ligações não sejam, em si, logicamente evidentes. Esse princípio opera na descrição
de todos fenômenos, sejam observáveis ou não-observáveis.
Quando explicamos os fenômenos químicos, elétricos e ópticos por teorias
atômicas, esta concepção auxiliar dos átomos foi construída com objetivo
impreciso. É impossível perceber os átomos: como todas as substâncias,
são abstrações... é verdade que as teorias atômicas podem servir para
agrupar uma série de fatos, mas elas somente têm a função de um modelo
matemático e o conhecimento que penetrou as regras colocadas por
Newton considerará essas teorias somente como que auxiliares provisórios
e se esforçará de substituí-las por uma concepção mais natural. (MACH
apud BOUVIER, 1923, p.91-92)
Segundo meu ponto de vista, o princípio de economia, no sentido em que
Mach o conceitua, pode ser resumidamente expresso assim: matematicamente,
78
sabemos que uma função só é assim considerada se, a cada elemento do domínio,
corresponder um, e somente um, elemento da imagem. Se tomarmos o domínio
como o fato e a imagem como a linguagem, em tese o que Mach deseja é
estabelecer uma relação 1:1 entre os dois conjuntos. O princípio de economia
simplesmente implementaria essa tentativa.
O projeto de Mach é mais amplo: ainda com relação à teoria dos conjuntos, o
que Mach deseja é construir uma relação que se estabeleça entre vários domínios
distintos (cada um correspondendo a uma área do conhecimento) a um, e não mais
que um, elemento do conjunto imagem, conjunto esse que seja comum a todos os
demais. Isso seria ser econômico, universal e cumpriria a função de promover a
desejada unificação terminológica.
Uma descrição funcional entre os fatos deve ser econômica e, para tal, a
matemática cumpre um papel bastante interessante, dado sua linguagem econômica
e universal. Segundo Mach, “a ciência mesma, não é nada mais que um assunto
comercial. Sua tarefa é adquirir no menor tempo possível e com os meios de
pensamento possíveis, a maior possibilidade de verdade.” (1989, p.586)
Kolakowski aponta que:
em Avenarius, Mach e outros pensadores da mesma corrente, o princípio de
economia não está concebido como uma lei física geral a que se confere um
sentido ontológico, mas sim como um modo de comportamento do sistema
nervoso central; este princípio pode explicar o desenvolvimento real do
pensamento científico, a história do saber humano. Podemos descobrir a
capitalização progressiva dos conhecimentos, recorrendo precisamente à
tendência econômica da mente. Os conceitos científicos, as leis, as
hipóteses e as teorias são condensadas envolvendo esforço intelectual e
fundam a memória social, permitindo transmitir as experiências adquiridas.
(1968, p.141)
Somos impelidos, quase que instintivamente, a efetuar uma descrição da
natureza que seja a mais simples, o que torna nossa capacidade de comunicação
inter-subjetiva mais direta e acessível aos membros com quem partilhamos a
aquisição de um conceito, permitindo a mencionada transmissão de experiências.
79
A noção que Mach tem do ato de ensinar, seus objetivos e sua função na
comunicação entre sujeitos é um ótimo exemplo da importância da proposição de
sentenças econômicas. Diz ele que:
Quando o pensamento ensaia, com seus meios limitados, refletir a vida do
mundo vasto em que ele é somente uma pequena parte, tem todas as
razões para usar de suas forças com economia... o começo modesto da
ciência nos revela qual é sua essência simples e imutável. O homem
adquire para a satisfação de seus desejos materiais, semi-consciente e
involuntariamente, seus primeiros conhecimentos naturais, reproduzindo e
figurando instintivamente os fatos do pensamento. Essa cópia é, de fato,
mais manejável que a experiência em si e pode sob boas condições a
substituir. Os primeiros conhecimentos instintivos formam hoje ainda a base
mais sólida de todo pensamento científico. Ele nos parece revestido de uma
autoridade e uma pujança lógica que não possuem jamais os
conhecimentos adquiridos voluntariamente. Todos os axiomas são destes
conhecimentos instintivos. A transição para uma concepção científica tornase somente possível após a formação de certas profissões especializadas...
assim os começos da estática portam, visivelmente, o estilo de sua origem
nas experiências do operário manual... a ciência deve seu nascimento à
necessidade de colocar as experiências sob uma forma comunicável e de
os estender além dos limites do trabalho e da prática profissional... essa
comunicação obriga o homem a uma reflexão mais precisa e a tomar
contato claramente com os tratados essenciais de sua experiência para
poder descrevê-la. O que chamo de ensino tem, portanto, por único objetivo
economizar certas experiências a um indivíduo, ao transmiti-lo a outro.
Estas são, em si, as experiências de gerações inteiras que são
transmissões às gerações seguintes pelo livre acúmulo nas bibliotecas e
que são para elas economizadas.” (MACH, 1989, p.578 )
Como vimos, o Princípio de Economia em Mach exerce um papel central na
tentativa de efetuar descrições da natureza. Aliado à sua epistemologia, Mach tem
fortes argumentos para fundamentar sua crítica a todos os conceitos que não sejam
oriundos da experiência. A metodologia garantiria, nesse sentido, procedimentos
que
confeririam
simplicidade
e
universalidade
à
descrição
da
natureza,
principalmente em domínios do conhecimento até então considerados distintos.
Somando-se à epistemologia, que confere a ele critérios acerca do que é possível
conhecer, Mach pode, não somente investigar o potencialmente cognoscível, mas
também descrevê-lo de forma unificada e simples.
Esses dois pontos, metodologia e epistemologia, serão importantes para
entendermos o teor da crítica que dirige aos absolutos newtonianos, que
analisaremos no capítulo a seguir.
80
5. A CRÍTICA DE MACH AOS ABSOLUTOS NEWTONIANOS
5.1 – INTRODUÇÃO
Mach expõe em sua obra A ciência da Mecânica severas críticas à adoção que
Newton faz dos conceitos de espaço e tempo absolutos. Críticas semelhantes serão
dirigidas e analisadas aqui, de forma breve, com relação ao estatuto da força e da
massa. Tudo isso, conforme veremos, será fundamentado em dois elementos
centrais de seu pensamento: sua epistemologia e sua metodologia.
Não se tratará apenas de analisar a sustentabilidade conceitual desses pontos,
foco de comentadores conhecidos como Mário Bunge, mas de mostrar em que
medida a crítica de Mach se torna consistente em seu arcabouço intelectual.
Vale também estar atento ao teor dessas críticas, na medida em que nas
conclusões finais, espero poder indicar se, de fato, essas críticas são de cunho
positivista e, caso o sejam, estabelecer um paralelo entre o positivismo praticado por
Mach e por Comte, bastante em voga no século XIX.
Lembremos, inicialmente, alguns pontos fundamentais das concepções de Mach
expostas até aqui:
 Mach possui uma epistemologia sensacionalista, que dirige seu olhar para a
investigação da natureza e constituir-se-á base de suas impressões acerca
dos fenômenos.
81
 Com essa mesma ótica sensacionalista, Mach negará a possibilidade de
entidades a priori, chegando mesmo, como vimos, a naturalizar a lógica,
destituindo-a de seu caráter necessário e auto-evidente.
 Mach é crítico da visão mecanicista de mundo, muito mais por uma questão
metodológica. Se entendermos mecanicismo aqui como descrição de
sistemas físicos por meio de partículas em massa e movimento, Mach não vê
ganhos nessa abordagem e o recurso do princípio de economia é proibitivo
quanto a essa questão.
 Uma descrição terminológica unificada para as ciências é o grande objetivo
de Mach. É isso que guia sua postura antimetafísica. Mach acredita dever
haver uma correspondência entre o que construímos pelos sentidos e a
descrição que fazemos disso por meio de um termo em uma linguagem
específica. Quanto mais precisa for essa correspondência, menos recurso a
termos sem sentido na experiência e maior a chance de construir um conjunto
de termos que possam tornar a descrição unificada das ciências possível.
É tendo essa epistemologia em mente que devemos olhar a crítica que Mach
dirige aos absolutos. Alguns autores já têm se ocupado dessa crítica, mas, de fato,
poucos trabalhos o têm examinado por essa ótica.
O debate acerca do estatuto do espaço absoluto constitui-se, desde a publicação
da obra newtoniana, tema de ferrenhas discussões. Leibniz se voltou prontamente
contra a posição newtoniana, atribuindo ao espaço um caráter nada mais que
matemático, diferente de Newton, que via o espaço como possibilidade para a
existência da divindade. (VAILATI, p.109). Em Leibniz, o espaço exibe um caráter
relacional. Na terceira carta a Clarke, diz que “o espaço denota, em termos de
possibilidade, uma ordem das coisas que existem ao mesmo tempo, consideradas
como coexistindo, sem entrar em sua forma de existir.” (LEIBNIZ apud VAILATI, p.
113)
Numa trecho do próprio Leibniz, este afirma que:
82
Também compreendi a natureza do movimento. Além do mais, também
percebi que o espaço não é algo absoluto ou real e que ele nem sofre
mudança, nem podemos conceber o movimento absoluto, mas que toda
natureza do movimento é relativa, de tal forma que dos fenômenos não
podemos determinar com todo rigor matemático o que está em repouso, ou
com que quantidade de movimento algum corpo se move. Isto vale mesmo
para o movimento circular, embora não parecesse assim para Isaac
Newton, aquele cavalheiro distinto, que é, talvez, a maior jóia que a
Inglaterra culta jamais teve. (Leibniz apud Assis, p. 47-48)
Leibniz se coloca, como se vê, prontamente contra a concepção de espaço e
tempo absolutos de Newton. Seus argumentos não serão tratados aqui, por não
tratarem do objetivo central deste trabalho, mas é certo que seu posicionamento
será partilhado por outros filósofos da época, o que colocará a questão como central
no século XVII.
5.2 - NEWTON E OS ABSOLUTOS
Em sua obra, Newton investiga conceitos como espaço, tempo, movimento e
lugar, a fim de que se dissipem confusões acerca de sua natureza sensível. Ele
deseja mostrar que não devemos confundir a natureza em si de conceitos de espaço
e tempo, com o fato de poderem ser medidos sensivelmente. Trata-se, portanto, de
uma distinção central nas ideias newtonianas.
A seguir, são apresentadas as concepções de espaço absoluto, tempo
absoluto e lugar (absoluto ou relativo). Essas definições serão importantes para que
ele caracterize movimentos absolutos e movimentos relativos. Essa última definição
merece destaque na argumentação newtoniana, pois, provada a existência do
movimento absoluto, ele entende que decorre inconteste a existência do espaço
absoluto, visto que movimentos absolutos devem ocorrer no espaço absoluto.
O tempo absoluto, verdadeiro e matemático, por si mesmo e da sua própria
natureza, flui uniformemente sem relação com qualquer coisa externa, e é
também chamado de duração; o tempo relativo, aparente e comum, é
alguma medida da duração perceptível e externa (seja ela exata ou não
uniforme) que é obtida através do movimento e que é normalmente usada
no lugar do tempo verdadeiro, tal como uma hora, um dia, um mês, um ano.
(NEWTON, 1990, p.07)
83
Newton, como vemos, distingue tempo absoluto e relativo: nosso tempo usual
é relativo, pois se refere à sua relação com as demais coisas. Se observarmos
nossa definição de dia, veremos que esta convenção se baseia na duração do
movimento relativo Sol-Terra. Só que isso não é suficiente para Newton. Ele acredita
haver um tempo que permeia nossa realidade e que é independente dela. Se
fôssemos capazes de fazer com que a Terra parasse de girar ao redor do Sol, na
visão newtoniana, ainda assim o tempo continuaria a passar. Esse tempo,
independente das coisas, é que Newton chama de tempo absoluto.
Ao definir tempo absoluto e relativo, evidencia-se o caráter eterno e estático
de seu conceito de absoluto, não estando este sujeito a modificações de qualquer
natureza (ele chama de verdadeiro).
Com relação ao espaço absoluto, Newton afirma que:
O espaço absoluto, em sua própria natureza, sem relação com qualquer
coisa externa, permanece sempre similar e imóvel. Espaço relativo é
alguma dimensão ou medida móvel dos espaços absolutos, a qual nossos
sentidos determinam por sua posição com relação aos corpos, e é
comumente tomado por espaço imóvel; assim é a dimensão de um espaço
subterrâneo, aéreo ou celeste, determinado pela sua posição com relação à
Terra. Espaços absolutos e relativos são os mesmos em configuração e
magnitude, mas não permanecem sempre numericamente iguais. Pois, por
exemplo, se a Terra se move um espaço de nosso ar, o qual relativamente à
Terra permanece sempre o mesmo, em um dado tempo será uma parte do
espaço absoluto pela qual passa o ar, em um outro tempo será outra parte
do mesmo, e assim, entendido de maneira absoluta, será continuamente
mudado. (Ibid., p.07)
O espaço relativo, esse sim, é acessível aos sentidos, pois o estabelecemos
por comparação com os corpos nas proximidades do corpo que se movimenta.
Newton dá uma interessante e esclarecedora idéia de como concebe o espaço
absoluto como uma espécie de “substrato” que permeia os corpos: a Terra, ao girar,
carrega ar e mesmo que esse se mantenha no mesmo espaço em relação a ela, é
inegável que em relação ao espaço absoluto esse ar ocupa outra posição.
84
O conceito de lugar, absoluto e relativo, será importante, pois dele é que
proverá a argumentação que levará Newton à demonstração da existência do
espaço absoluto.
Lugar é uma parte do espaço que um corpo ocupa, e de acordo com o
espaço, é ou absoluto ou relativo. Refiro-me a uma parte do espaço, não à
situação, nem à superfície externa do corpo. Pois os lugares de sólidos
iguais são sempre iguais, mas suas superfícies, em função de suas formas
diferentes, são freqüentemente desiguais. As posições propriamente não
têm quantidade, nem são os próprios lugares, mas antes propriedades dos
lugares. O movimento do todo é o mesmo que a soma dos movimentos das
partes; isto é, translação do todo, de seu lugar, é a mesma que a soma das
translações do todo para fora de seus lugares; e, portanto, o lugar do todo é
o mesmo que a soma dos lugares das partes, e por essa razão, é interna e
está em todo o corpo. (Ibid., p.07)
Newton afirma que o lugar é algo que o corpo apenas ocupa transitoriamente,
pois, ao se mover, o lugar permanece onde está, podendo ser ocupado, em seguida,
por outro corpo.12 Mas como saber se o lugar é absoluto ou relativo? Tal distinção
residirá na forma como Newton define movimentos absolutos e movimentos
relativos. Diz ele que “o movimento absoluto é a translação de um corpo de um lugar
absoluto para outro e o movimento relativo, a translação de um lugar relativo para
outro.” (Ibid., p.08)
E Newton continua:
Assim, em um navio que está navegando, o lugar relativo de um corpo é
aquela parte do navio que o corpo ocupa; ou aquela parte da cavidade que
o corpo preenche, e que, portanto, move-se junto com o navio; repouso
relativo é a permanência do corpo naquela mesma parte do navio ou de sua
cavidade. Mas repouso real, absoluto, é a permanência do corpo na mesma
parte daquele espaço imóvel, no qual o próprio navio, sua cavidade e tudo
aquilo que ela contém, se move. Por essa razão, se a Terra está realmente
em repouso, o corpo que está relativamente em repouso no navio, real e
absolutamente, se moverá com a mesma velocidade que o navio tem na
Terra. Mas se a Terra se mover, surgirá o movimento verdadeiro e absoluto
do corpo em parte devido ao movimento verdadeiro da Terra, em espaço
imóvel, e em parte devido ao movimento relativo do navio na Terra; e se o
corpo também tem movimento relativo no navio, seu movimento verdadeiro
surgirá, parcialmente devido ao movimento verdadeiro da Terra, em espaço
imóvel e parcialmente devido aos movimentos relativos, tanto do navio na
Terra como do corpo no navio e, desses movimentos, surgirá o movimento
relativo do corpo na Terra. Assim, se aquela parte da Terra onde está o
navio fosse verdadeiramente levada na direção leste, com uma velocidade
de 10010 partes, enquanto o navio propriamente dito, com velas
12 Alguns comentadores, como Koyré, sugerem que Newton parece ainda conservar resquícios da
concepção aristotélica de lugar como um atributo do corpo.
85
desfraldadas por um forte vento, fosse levado a oeste, com uma velocidade
expressa por 10 daquelas partes, um marinheiro caminhando no navio na
direção leste, com 1 parte da velocidade mencionada, vai ser
verdadeiramente levado através do espaço imóvel na direção leste, com
uma velocidade de 10001 partes, e relativamente, na direção oeste, com
uma velocidade de 9 daquelas partes. (Ibid., p.08)
Neste trecho, Newton faz uma interessante discussão acerca da composição
de movimento dos corpos. Aproveitemos o exemplo dado por Newton, o do navio e
adotemos a água como o referencial. Dessa forma, o navio está em repouso em
relação à água. Agora, suponhamos haver dentro deste navio uma pessoa,
inicialmente também parada em relação a este navio, digamos, sentada em um
banco. Pois bem, podemos dizer que essa pessoa está em repouso em relação ao
navio e em relação às águas. Em seguida, o capitão do navio dá a ordem de o navio
partir. Todos concordamos que o navio passa a estar em movimento em relação às
águas. Mas, uma questão surge: e a pessoa? Ela continua em repouso ou está em
movimento? Estando a pessoa dentro do navio, como este muda sua posição em
relação às águas, devemos concordar que a pessoa também. Isso significa que a
pessoa adquire movimento em relação às águas porque o navio passa a se
movimentar e, estando ela dentro dele, também adquire esse movimento. Isso nos
permite dizer que o estado de movimento da pessoa (ou de qualquer coisa) é uma
composição dos movimentos dessa pessoa em relação a um referencial A com o
movimento desse referencial A a outro B e do B em relação a outro C e assim
sucessivamente.
Todos
exemplos,
entretanto,
apenas
fornecem,
na
visão
newtoniana, o estado de movimento relativo da coisa. Mas como obter o movimento
absoluto (ou verdadeiro)?
Se conheço o movimento da pessoa em relação às águas, Newton sugere
que se quisermos conhecer o movimento verdadeiro dessa pessoa (em relação ao
espaço absoluto), devemos, pois, acrescentar o movimento das águas em relação
ao absoluto. Em resumo, se sei como a pessoa se movimenta em relação às águas
e como a água se movimenta em relação ao espaço absoluto, então, conclui-se,
tenho o movimento da pessoa em relação ao estado absoluto, esse sim, o
movimento verdadeiro da pessoa.
86
A descrição dada anteriormente mostra que o movimento absoluto (ou
verdadeiro) é um tipo de movimento que é determinado em relação ao espaço
absoluto. Como a Terra ocupa um lugar nesse espaço absoluto num determinado
momento, Newton denomina esse lugar como lugar absoluto da Terra. Um corpo
qualquer que esteja na Terra, em repouso (relativo) em relação a ela, também
adquirirá seu movimento verdadeiro, que será o mesmo movimento que a Terra
possuir em relação ao espaço absoluto. Tudo ocorre como se todos os movimentos
que ocorressem na superfície da Terra fossem relativos em relação a ela, bastando
somar o movimento da Terra em relação ao espaço absoluto, a fim de que se possa
obter o movimento verdadeiro do corpo.
Dessa forma, o lugar verdadeiro é o lugar ocupado com relação ao espaço
absoluto. Segundo Newton, só há uma forma de melhor caracterizar o lugar
verdadeiro, que é mostrar evidências em favor do espaço absoluto. E isso só pode
ser feito analisando os efeitos e causas dos movimentos.
As causas pelas quais os movimentos verdadeiros e os relativos podem ser
distinguidos uns dos outros são as forças imprimidas nos corpos para lhes
dar o movimento. O movimento verdadeiro não pode ser gerado ou alterado
senão por alguma força imprimida ao corpo movido, mas o movimento
relativo pode ser gerado ou alterado sem qualquer força ser impressa ao
corpo. Basta que haja forças imprimidas aos corpos com relação aos quais
o consideremos, pois, movendo-se estes corpos, muda a relação na qual
consiste o repouso ou o movimento relativo. Da mesma forma, o movimento
verdadeiro sempre sofre alguma mudança causada por qualquer força
imprimida ao corpo móvel, mas o movimento relativo não sofre
necessariamente qualquer mudança ante essas forças. Pois se as mesmas
forças que agem sobre este corpo agirem ao mesmo tempo sobre aqueles
com as quais é feita a comparação, de modo que a posição relativa seja
preservada, será conservada então aquela condição em que consiste o
movimento relativo. E, portanto, qualquer movimento relativo pode ser
preservado quando o verdadeiro movimento sofre alguma mudança. Assim,
o movimento verdadeiro de modo algum consiste nessas relações. (Ibid.,
p.11)
O excerto acima coloca dois argumentos centrais: primeiro, o de que o
movimento verdadeiro não pode ser alterado senão por uma força impressa ao
corpo movido. Isso é fácil de compreender: consideremos dois corpos se movendo,
A e B. Digamos que A possua movimento em relação a B (e consequentemente B
com relação a A). Mas ainda suponhamos que A esteja em repouso em relação ao
espaço absoluto, enquanto que B tenha movimento com relação ao referencial
87
mencionado. Qualquer força externa aplicada a B altera o movimento de B em
relação a A e em relação ao absoluto, mas devemos perceber que A mantém seu
estado movimento em relação ao absoluto. E por que B mudou seu estado em
relação ao absoluto e A não? A resposta é que, a alteração do estado de movimento
em relação ao absoluto só pode ser feita se uma força for impressa diretamente no
corpo. Isso aconteceu, segundo o exemplo, com B, mas não com A, daí, apesar das
forças atuantes em B não serem capazes de mudar o estado de movimento de A
com relação ao absoluto.
No mesmo trecho, um segundo argumento é apresentado por Newton,
quando ele afirma que “o movimento verdadeiro sempre sofre alguma mudança
causada por uma força qualquer imprimida ao móvel, mas o movimento relativo
não...” Usando os corpos A e B mencionados acima, quando aplico uma força
externa em A, sua posição em relação ao absoluto muda, mas não necessariamente
em relação ao corpo B, pois se a mesma força for aplicada em B, então A e B
podem sofrer alterações em seus estados de movimento, mantendo o movimento
relativo entre si.
Em função dessas características do movimento verdadeiro, Newton
perceberá que o movimento circular uniforme (MCU) parece ser capaz de
exemplificar tais comportamentos, ganhando um estatuto diferenciado em sua física.
Isso ocorrerá porque, um corpo, sob ação de um movimento desse tipo, estará
submetido à ação de uma força que permite diferenciar seu movimento absoluto do
movimento relativo, diferença essa que residirá, conforme veremos logo a seguir,
nas diferenças dos efeitos produzidos sobre o corpo quando em movimento relativo
e quando em movimento em relação ao espaço absoluto. Tal fato se dá porque, ao
ser submetido à rotação, o corpo, em sua tendência de manter seu estado de
movimento (tendência a se afastar de seu eixo de movimento), muda seu lugar em
relação aos demais, fato que não se daria para corpos verdadeiramente em
repouso.
Qualquer corpo em rotação só possui um movimento circular real,
correspondendo a um poder de esforçar-se por se afastar do seu eixo de
movimento, como seu efeito próprio e adequado; mas os movimentos
relativos, em um único e mesmo corpo, são inumeráveis, segundo as várias
relações que ele tem para com corpos externos, e, como outras relações,
são inteiramente destituídas de qualquer efeito real, além daqueles que
88
possam derivar da participação do movimento verdadeiro e único. E,
portanto, no sistema daqueles que supõem que nossos céus, girando
abaixo da esfera das estrelas fixas, transportam consigo os planetas, nesse
sistema as várias partes desses céus e os planetas, que estão em repouso
em relação a esses céus, na verdade se movem. Pois mudam de posição
uns em relação aos outros (o que nunca acontece aos corpos
verdadeiramente em repouso) e ao serem carregados juntamente com seus
céus participam dos movimentos deles, e, como partes de todos em giro,
esforçam-se por se afastar do eixo de seus movimentos. (Ibid., p.161)
Neste trecho, mais uma vez temos uma exposição de Newton sobre como
percebe a questão dos movimentos absolutos e relativos, mas centrada em um
aspecto que ele considera mais uma evidência da existência do espaço absoluto: a
diferença nos efeitos que ambos os movimentos provocam. Conforme exposto no
exemplo do navio, vimos que é possível alterar o estado de movimento da pessoa
situada dentro do navio, em relação às águas, simplesmente fazendo com que o
navio se movimente em relação às águas. Porém essa não é a única possibilidade
de a pessoa alterar seu estado de movimento: mesmo que o navio não saia no
lugar, se a pessoa se levantar de seu banco e começar a andar dentro do navio, ela
adquirirá movimento em relação às águas (e também em relação ao espaço
absoluto). Ambos os casos parecem idênticos: apenas parecem! Veremos que nada
de diferente entre as duas situações surgirá se o barco andar em linha reta. Mas e
se o barco se colocar em uma curva? Newton propõe haver, nessa diferença entre
movimentos retilíneos e curvilíneos, efeitos que permitem diferenciar os casos
mencionados acima.
Analisemos isso com cuidado: quando a pessoa está sentada em seu
banquinho (em repouso em relação às águas) e o barco inicia um movimento curvo
(MCU) em relação a essas mesmas águas, a pessoa passa a possuir movimento,
não só em relação às águas, mas também em relação ao espaço absoluto. Mas ela
sente algo: uma sensação “estranha” parece querer “empurrá-la em sentido oposto
ao que o barco executa sua curva”. Algo como o que sentimos quando um carro faz
uma curva. Por outro lado, façamos similar análise para a situação em que o barco
permanece em movimento em relação às águas e a pessoa se levanta e começa a
executar um MCU exatamente em sentido oposto ao do executado pelo barco. A
sensação “estranha” da outra situação não surge aqui. Newton sugere que a
89
diferença provém do fato de que, na primeira situação, a pessoa possui movimento
em relação ao absoluto, oriundo do movimento do barco em relação ao absoluto. Já
na segunda, a pessoa executa um movimento em relação ao barco, que se somado
com o do barco em relação ao absoluto, confere repouso em relação ao absoluto.
Desse modo, há uma diferença fundamental nas duas situações: na primeira, há
alteração do lugar absoluto do corpo, enquanto que na segunda isso não ocorre. É
por isso que Newton clama ter encontrado uma forma de diferenciar movimentos
relativos de absolutos.
Há, no entanto, uma demonstração a que Newton não pode se furtar: que
evidências ele teria para a comprovação da existência do espaço absoluto? Se sei
diferenciar movimentos relativos de absolutos e mostro uma evidência empírica do
espaço absoluto, então Newton pode precisamente determinar o estado de
movimento verdadeiro de um corpo e fica demonstrada a existência de um
referencial preferencial na física: o espaço absoluto. Considerando o efeito dos
movimentos circulares, já exposto anteriormente, Newton formulará o experimento
do balde, conhecido como Balde de Newton, que, em seu ponto de vista, é prova de
sua existência.
Newton afirma que:
Se um recipiente, suspenso por uma longa corda, é tantas vezes girado, a
ponto de a corda ficar fortemente torcida, e então preenchido com água e
suspenso em repouso junto com o lado contrário e, enquanto a corda
desenrola-se, o recipiente continua no seu movimento por algum tempo; a
superfície da água, de início, será plana, como antes de o recipiente
começar a se mover; mas depois disso, o recipiente, por comunicar o seu
movimento à água, fará com que ela comece nitidamente a girar e a afastarse pouco a pouco do meio e a subir pelos lados do recipiente,
transformando-se em uma figura côncava (conforme eu mesmo
experimentei), e quanto mais rápido se torna o movimento, mais a água vai
subir, até que, finalmente, realizando suas rotações nos mesmos tempos
que o recipiente, ela fica em repouso relativo nele. Essa subida da água
mostra sua tendência de se afastar do eixo de seu movimento; e o
movimento circular verdadeiro e absoluto da água, que aqui é diretamente
contrário ao relativo, torna-se conhecido e pode ser medido por essa
tendência. De início, quando o movimento relativo da água no recipiente era
máximo, não havia nenhum esforço para afastar-se do eixo; a água não
mostrava nenhuma tendência à circunferência, nem nenhuma subida na
direção dos lados do recipiente, mas mantinha uma superfície plana e,
portanto, seu movimento verdadeiro ainda não havia começado. Mas,
posteriormente, quando o movimento relativo da água havia diminuído, a
subida em direção aos lados do recipiente mostrou o esforço dessa para se
afastar dos eixos; e esse esforço mostrou o movimento circular real da água
aumentando continuamente, até ter adquirido sua maior quantidade, quando
90
a água ficou em repouso relativo no recipiente. E, portanto, esse esforço
não depende de qualquer translação da água com relação aos corpos do
ambiente, nem pode o movimento circular verdadeiro ser definido por tal
translação. Há somente um movimento circular real de qualquer corpo em
rotação, correspondendo a um único poder de tendência de afastamento a
partir de seu eixo de movimento, como efeito próprio e adequado; mas
movimentos relativos, em um mesmo e único corpo, são inumeráveis, de
acordo com as diferentes relações que ele mantém com corpos externos e,
como outras relações, são completamente destituídas de qualquer efeito
real, embora possam talvez compartilhar daquele único movimento
verdadeiro. (Ibid., p.11)
Após o fio ter sido torcido e o balde iniciar seu movimento, a água também o
faz. Com o tempo, ela começa a girar e inicia-se dentro dela a tendência de se
acumular nas laterais do balde, formando uma curva em sua superfície, que terá sua
concavidade tanto mais acentuada quanto mais rapidamente girar a água.
Mas quanto mais rapidamente girar a água em relação a quê? Essa questão
será utilizada por Newton para uma tentativa de evidenciação da existência do
espaço absoluto. No momento em que o fio sofre a máxima torção e ainda não foi
solto, balde e água se encontram em repouso (em relação a algo) e a superfície da
água é plana. No instante imediato ao completo desenrolar do fio, o balde possui
grande velocidade, mas a água ainda não iniciou seu giro, o que permite dizer que o
movimento relativo do balde em relação a água é máximo. Vale também frisar que
nesse instante, a superfície da água é plana. Passado algum tempo, a água
começará a se acumular nas laterais do balde. Isso ocorrerá quando a água atingir a
mesma velocidade de giro que o balde. Nesse instante, seu movimento relativo em
relação a esse mesmo balde atingirá seu valor mínimo (zero), pois as velocidades
da água e do balde se igualam. E a superfície da água terá a forma de uma
parabolóide.
A questão que vai mover a discussão newtoniana do balde é a seguinte:
quando apenas o balde girava (a água ainda estava em repouso), o movimento
relativo era máximo. Depois de um tempo, a água iguala sua velocidade à do balde
e, portanto, a velocidade relativa se anula: por que na primeira situação a água está
plana e na segunda descreve a curva? O que explica essa diferença? Newton, como
veremos, creditará essa diferença à existência de um movimento em relação ao
91
espaço absoluto. A análise newtoniana passará por três possíveis candidatos: o
balde, a Terra e o céu das estrelas fixas.
Se supusermos o movimento da água em relação ao balde, descartaremos
essa hipótese prontamente, pois tanto na primeira situação (balde e água estão em
repouso em relação à Terra), quanto na segunda (balde e água estão girando com a
mesma velocidade em relação à Terra), água e balde estão em repouso relativo.
Mas e se a diferença do comportamento da água for creditada ao movimento
da água em relação à Terra? Há uma diferença, pois na segunda situação, a água
se movimenta em relação à Terra, fato que não ocorre na primeira situação. Porém,
Newton mostrará, recorrendo ao Teorema 3113, que em ambos os casos, a única
força que atua sobre a água continua sendo a força peso, que é incapaz de
empurrar a água lateralmente em direção às paredes do balde.
Finalmente, o último candidato é o céu das estrelas fixas. Mas também não é
o caso, pois se considerarmos a distribuição isotrópica de matéria uniforme ao redor
do balde, ou seja, uniforme em sua composição em todas as direções do espaço, a
soma da ação das forças gravitacionais que atuam sobre o balde e a água, devido à
ação dos corpos que compõem o céu das estrelas fixas, é nula (Teorema 30) 14. Não
existe, portanto, diferença entre o instante em que o fio começa a distorcer e o
instante em que balde e água giram com a mesma velocidade em relação ao
absoluto, sob esse ponto de vista. Assis, afirma que “uma conseqüência importante
disto é que mesmo que as estrelas fixas e as galáxias desaparecessem (fossem
literalmente aniquiladas do Universo) ou dobrassem de número e massa, isto não
iria alterar a concavidade da água nesta experiência do balde. Elas não têm
nenhuma relação com esta concavidade, pelo menos de acordo com a mecânica
newtoniana.” (2002, p. 32)
13 “(...) afirmo que um corpúsculo localizado fora da superfície esférica é atraído em direção ao
centro da esfera como uma força inversamente proporcional ao quadrado de sua distância até
este centro.”
14
“Se, para cada ponto de uma superfície esférica tenderem forças centrípetas iguais, que
diminuem com o quadrado das distâncias a partir desses pontos, afirmo que um corpúsculo
localizado dentro daquela superfície não será atraído de maneira alguma por aquelas forças.”
92
Esgotadas as três possibilidades, o que resta a Newton afirmar sobre o
responsável pela concavidade da água no segundo caso? Sua solução é atribuir o
aparecimento da concavidade ao movimento que a água possui em relação ao
espaço absoluto. No primeiro caso, como a água está parada, juntamente com o
balde (em relação ao espaço absoluto), sua superfície seria plana. Mas quando o
conjunto é posto a girar e a água progressivamente adquire o movimento do balde,
esta ganha movimento em relação ao espaço absoluto. É a rotação em relação ao
espaço absoluto o agente responsável pelo surgimento da concavidade do
movimento da água dentro do balde.
Tal constatação decorre do estatuto dos movimentos circulares em relação
aos movimentos retilíneos. Os primeiros, vimos, geram efeitos que os segundos não
provocam e a análise desses efeitos é, na visão newtoniana, uma excelente maneira
de mostrar a existência de movimentos verdadeiros. É fácil entender que, como a
água gira dentro do balde na segunda situação, essa rotação deve provocar um
efeito. Mas qual efeito? A curva em sua superfície, afirma Newton. O surgimento
dessa curva na superfície da água será, portanto, prova de o balde, na segunda
situação, possuir movimento verdadeiro e, em tendo esse movimento, há o espaço
absoluto.
Ao eleger o espaço absoluto como motivo da diferença da forma da superfície da
água no balde, Newton, indiretamente, valida, como um princípio geral da natureza,
sua Lei da Gravitação. Isso ocorre, pois a explicação que ele dá para o movimento
do balde, analisado com referência à Terra e ao céu das estrelas fixas, baseia-se,
respectivamente, em dois de seus teoremas, os Teoremas 31 e 30, propostos em
seus Princípios Matemáticos da Filosofia Natural. Assumidos como verdadeiros, é
inevitável a Newton não concluir que não fossem a razão da diferença da forma da
água dentro do balde. Assis reforça essa tese: “Esta [escolha do espaço absoluto
como referência] era sua única alternativa, supondo a validade de sua lei da
gravitação universal, que ele estava propondo no mesmo livro em que apresentou a
experiência do balde.” (Ibid., p.30)
93
5.3 – BERKELEY FENOMENALISTA COMO CRÍTICO DOS ABSOLUTOS
Faz-se necessário, também, um breve estudo acerca de uma relação
comumente tomada, a existente entre as ideias de Mach e as de Berkeley. Apenas
mencionarei alguns aspectos do pensamento berkeleyano com o intuito de justificar
a incompletude dessa aproximação. Não será objetivo, portanto, desta análise,
expor em minúcias o pensamento de Berkeley, mas apenas pontos que reforçam a
tese de que, mesmo existindo uma aproximação de seu com o de Mach, esta não é
tão sólida ou, pelo menos, não é tão exclusiva como a tradição tem suposto.
A aproximação com Berkeley é amplamente reconhecida na filosofia. Popper
afirma que “as ideias [de Berkeley] são redescobertas no debate da física
contemporânea por Mach e Hertz”. (1982, p. 193). Haller diz que “a interpretação de
Mach é uma reedição do idealismo epistemológico ou empirismo idealista de
Berkeley”. (1992, p.218)
Para Berkeley, o significado de uma palavra é a ideia ou qualidade sensorial
com que está associada. Nesse sentido, teceu duras críticas ao espaço absoluto de
Newton, dada sua completa falta de vínculo com a realidade. Ele afirma que:
A propósito desse espaço absoluto, esse fantasma dos filósofos da
mecânica e da geometria, bastará observar que não é percebido pelos
sentidos ou provado pela razão... (BERKELEY apud POPPER, 1982, p.
194)
Seguindo nessa linha, Berkeley critica o conceito de gravidade sugerido por
Newton, considerando-o uma qualidade oculta. Sugere, então, uma solução,
centrada em seu instrumentalismo. Propõe dispor de um conceito que não é
diretamente obtido a partir dos fatos como um recurso auxiliar. Isso se deve ao fato
de que, apesar do teor de sua crítica a algumas das ideias newtonianas, Berkeley
reconhece que a teoria de Newton produz resultados de fato. No De Motu, na tese 5,
afirma:
94
(...) a teoria de Newton não pode ser aceita como uma explicação
genuinamente causal, isto é, baseada em causas verdadeiramente naturais.
O ponto de vista de que a gravidade explica causalmente o movimento dos
corpos ou de que Newton descobriu que a gravidade ou a atração é uma
qualidade essencial, cuja inerência na essência ou natureza dos corpos
explica as leis de seus movimentos, deve ser rejeitado. Mas é preciso
admitir que a teoria de Newton conduz a resultados corretos. Para
compreender isso, é preciso distinguir entre hipóteses matemáticas e
natureza das coisas. Se tomarmos tal distinção, todos os famosos teoremas
da filosofia mecânica que tornam possível sujeitar o sistema de mundo (isto
é, o sistema solar) a cálculos humanos pode ser preservado; ao mesmo
tempo que o estudo do movimento ficará livre de mil trivialidades e sutilezas
sem sentido e de ideias abstratas. (Ibid, p. 195)
Ao tratar das formas de explicações, Berkeley classifica-as em três classes
bem distintas: essencialistas (que buscam a causa como essência das coisas), a
descritiva (que apela para uma realidade observada) e as matemáticas, que devem
ser julgadas apenas por sua eficiência. A ciência deve se ocupar apenas de
explicações descritivas, mas pode, ocasionalmente, dispor, apenas como hipóteses,
das matemáticas. Fica evidente o caráter instrumentalista de sua argumentação.
Mach, conforme veremos de forma mais detalhada, em muitos momentos, toma
posições muito semelhantes às de Berkeley. Primeiro, ao admitir que os fatos
constituam a única fonte segura de conhecimento: se desejo investigar a natureza,
deve ser a eles que devo me ater, o que remete à ideia de que uma lei da natureza
deve se limitar a dar explicações descritivas. Segundo, Mach admitirá a
possibilidade de lidar com entidades inobserváveis de modo instrumental (os átomos
são uma evidência disso), desde que constituam apenas ferramentas matemáticas
provisórias, uma clara alusão às hipóteses matemáticas de Berkeley.
Quanto ao problema dos absolutos, Berkeley desferiu duros golpes às
concepções newtonianas. Referindo-se a certo célebre tratado mecânico (faz
referência à obra newtoniana), afirma que:
Logo no início desse justamente admirado tratado, tempo, espaço e
movimento são divididos em absoluto, relativo, verdadeiro e aparente,
matemático e vulgar; essa distinção, como o autor explica longamente,
supõe que essas quantidades possuam existência fora do espírito; e que
elas são ordinariamente concebidas com referência às coisas sensíveis,
com as quais, entretanto, em sua própria natureza, não têm qualquer
relação. (BERKELEY apud KOYRÉ, 1979, p.208)
95
De início, Berkeley crítica os absolutos newtonianos, na medida em que
Newton parece querer atribuir a esses entes realidade sensível.
Berkeley, como Leibniz, possui uma concepção relacional de movimento. Diz
ele que:
Confesso, não obstante, que não me parece possa haver outro movimento
além do relativo; para conceber o movimento, é preciso conceber, pelo
menos, dois corpos a distância em posições variáveis. Se houvesse um
corpo só, não poderia mover-se. Isto parece evidente;a ideia de que tenho
movimento inclui necessariamente a relação. (BERKELEY apud ASSIS,
2002, p.54)
A citação acima permite, portanto, expor a posição de Berkeley quanto aos
absolutos newtonianos. E ele torna explícito isso, ao dizer que:
Nenhum movimento pode ser reconhecido ou medido, a não ser através de
coisas sensíveis. Como o espaço absoluto não afeta aos sentidos de modo
algum, ele necessariamente tem de ser bem inútil para a distinção de
movimentos. Além disso, a determinação ou direção é essencial para o
movimento, mas isto consiste numa relação. Portanto, é impossível que se
possa conceber o movimento absoluto. (BERKELEY apud ASSIS, 2002,
p.54)
Esse trecho evidencia uma posição amplamente tomada pela tradição, a de
que o pensamento de Mach se alinha com o de Berkeley, principalmente no que
tange ao sensacionalismo ou fenomenalismo. No entanto, é preciso tomar essa
afirmação com cuidado e notar que as semelhanças, se grandes a um primeiro
contato com o tema, diluem-se a uma investigação mais detalhada. Gostaria de
frisar, no entanto, que não constitui objetivo deste trabalho aprofundar as ideias de
Berkeley, mas antes, mostrar que mesmo que tomados como sensacionalistas,
Mach e Berkeley estabelecem relações diferentes entre sujeito e mundo dentro de
sua teoria fenomênica.
Chibeni aponta um trecho da obra de Berkeley, em que este que sinaliza esse
fenomenalismo, ao dizer que:
Assim, por exemplo, certa cor, gosto, cheiro e consistência tendo sido
observados vir juntos [na percepção], são entendidos como uma coisa
distinta, significada pelo nome maçã. Outras coleções de ideias constituem
uma pedra, uma árvore, um livro e outras coisas sensíveis semelhantes.
(Berkeley apud Chibeni, 2009, p.02)
96
É interessante salientar que, quando Berkeley trata de seu conceito de
coleções de ideias, verifica-se uma grande semelhança com o que Mach viria
posteriormente chamar de complexo de elementos. Esse tipo de semelhança, que
veremos na sequência, ser limitada, é que conduz grande parte dos comentadores a
alinhar completamente o pensamento de Mach ao de Berkeley, classificando a
ambos como sensacionalistas.
De modo a verificar as limitações desse alinhamento, vejamos o que Smith
(2009) afirma sobre a interpretação fenomenalista. Segundo ele, ela levaria a
uma ligação frouxa entre realidade e consciência: uma coisa fictícia existe
se for capaz de estar presente em uma mente. A fórmula para indicar a
estrutura das coisas fictícias é condicional. “se..., então...”, daí a ideia de
uma teoria disposicional de objetos físicos. O mundo seria subjetivo na
existência das ideias, mas seria objetivo em sua estrutura e organização: o
que existira, no fundo, são ideias individuais nas mentes e haveria somente
uma aparência objetiva na forma em que essas ideias estão organizadas: o
mundo objetivo se reduziria ao mundo das ideias individuais. A articulação
entre as sensações seriam as leis da natureza. (2009, p.75-76)
O fato de Berkeley tomar movimentos como relativos e de afirmar que
qualquer movimento só pode ser medido por meio de coisas sensíveis não expõe
com clareza diferenças fundamentais entre os dois pensadores. O fenomenalismo
berkeleyano não constitui uma epistemologia fundamentada, mas apenas parte de
um método de investigação da natureza. Isso significa que qualquer entidade deve
apenas ser considerada como existente se for capaz de ser captada pelos sentidos.
O ente observado existe e os sentidos devem ser capazes de o captarem. Se isso
for possível, tem-se um conhecimento confiável. Isso se confirma no excerto a
seguir.
O que se percebe pelos sentidos chama-se de um ser real e se diz que é ou
existe; mas o que não é perceptível, isso, diz-se, não tem de ser. (Berkeley
apud Smith, 2009, p.76)
Vê-se, dessa forma, que Berkeley trata de ontologia. Está, pois, preocupado
em garantir a existência de corpos e, com isso, alicerçado em seu princípio Esse est
97
percipi15, afirma que o ser de algo é ser percebido e, em não o sendo, perde seu ser.
Isso, por certo, está na base da crítica que tece aos absolutos newtonianos, pois, em
não se tendo acesso aos sentidos, perdem seu ser e seu caráter de existência.
Outro ponto importante é que, em se tomando a concepção de fenomenalismo
exposto por Smith, vê-se que Berkeley se adequa formalmente a ela. Há um ser que
percebe e algo que é percebido e o mundo objetivo ficaria limitado ao mundo das
ideias individuais. Esse mundo existira objetivamente, mas sua existência ficaria
condicionada à percepção de um ser.
Mas será esse o fenomenalismo de Mach? Definitivamente, isso não vale
para Mach: vimos em sua epistemologia que não existem corpos ativando sentidos,
mas complexo de sensações que chamamos vulgarmente de corpos e que, dado a
familiaridade e sua permanente manutenção, consideramos equivocadamente como
existentes sem os sentidos. De fato, Mach não está preocupado em justificar a
existência de seus complexos de sensações, mas busca, antes, construir uma teoria
da possibilidade de conhecimento desses complexos.
Assim, se Berkeley toma o corpo como algo que é capaz de impressionar
meus sentidos (e ele o faz, na medida em que garante a existência do mundo).
Mach simplesmente nega essa existência e a liga às sensações de um observador
qualquer. Mach funde objetividade e subjetividade, enquanto que Berkeley assume a
objetividade do mundo16, limitando o observador à sua captação. Isso constitui uma
diferença fundamental entre os dois pensadores: no famoso argumento berkeleyano
acerca da ação de Deus como agente responsável pela percepção e conseqüente
garantia da existência das coisas, Berkeley “enfraquece” seu idealismo.
Desse modo, a crítica ao absoluto newtoniano dirigida por Berkeley se centra
na possibilidade de captar a realidade objetivamente dada. Tomando o espaço
absoluto como um ente existente e objetivamente dado, sua existência fica
condicionada à captação pelos sentidos de algum observador. Como isso não é
possível, não há o que se chama de espaço absoluto.
15 Ser é ser percebido.
16 A partir do conhecido argumento de Deus e sua percepção.
98
Berkeley apresenta algumas considerações sobre o espaço absoluto
newtoniano.
Do que já foi mencionado, fica claro que não temos de definir o lugar
verdadeiro de um corpo como a parte do espaço absoluto ocupada pelo
corpo e o movimento verdadeiro ou absoluto como a mudança do lugar
verdadeiro ou absoluto, pois todo lugar é relativo, assim como todo
movimento é relativo. Mas para fazer com que isto apareça mais
claramente, temos de chamar a atenção de que nenhum movimento pode
ser compreendido sem alguma determinação ou direção, aos quais, por sua
vez, não podem ser entendidas a não ser que exista ao mesmo tempo
também nosso próprio corpo ou algum outro corpo. Pois, para cima, para
baixo, esquerda e direita e todos os lugares e regiões são encontrados em
alguma relação e conotam e supõem necessariamente um corpo diferente
do corpo em movimento. De tal forma que, supondo os outros corpos terem
sido aniquilados e, por exemplo, um globo existisse sozinho, não se poderia
conceber nenhum movimento nele; de tão necessário é que seja dado um
outro corpo em relação ao qual o movimento possa ser determinado. A
verdade desta opinião será vista claramente se cumprirmos completamente
a suposta aniquilação de todos os corpos, de nosso próprio e de todos os
outros, exceto daquele globo solitário. (BERKELEY apud ASSIS, 2002,
p.57-58)
Há, como se vê, pontos de convergência importantes entre Mach e Berkeley,
mas que induzem a uma postura semelhante quanto às sensações como fonte de
conhecimento, mas há divergências fundamentais na postura dos dois filósofos. Isso
ficará mais claro com a exposição dos fundamentos newtonianos acerca do absoluto
e, principalmente, com a análise da crítica que Mach dirigirá a essa entidade.
5.4 – A CRÍTICA DE MACH AOS ABSOLUTOS NEWTONIANOS
Mach expõe uma série de objeções ao conjunto de argumentos newtonianos
com relação ao espaço absoluto. Insiste ele ainda na tese de que Newton recorre,
em seus argumentos, a elementos que extrapolam os fatos.
Mesmo em se tratando de assuntos aos quais somos levados a crer como
válidos, não poderiam ser admitidos como tal sem previamente serem
submetidos aos testes experimentais. Ninguém está autorizado a estender
esses princípios além das fronteiras da experiência. (1989, p. 280)
99
A análise machiana se inicia a partir da concepção newtoniana de tempo
absoluto e relativo. Ele se coloca prontamente contra essa ideia, afirmando que:
Parece aqui que o Newton citado ainda se encontra sob a influência da
filosofia medieval, como se tivesse crescido nele a certeza de investigar
somente fatos reais. Quando dizemos que uma coisa A muda com o tempo,
queremos apenas dizer que as condições que determinam a outra coisa A
dependem das condições dependem que determinam a coisa B. (Ibid.,
p.272)
Assim, Mach entende que se medimos a duração de um evento qualquer,
medimos apenas a passagem entre duas posições de um corpo que se encontra em
movimento com relação a um corpo qualquer tomado como referência. Diz ele que
“as vibrações de um pêndulo ocorrem no tempo quando seu movimento depende de
sua posição com relação à Terra.” (Ibid., p.272)
Quando abandonamos a Terra e consideramos outro objeto que se
movimenta em relação à Terra, somos conduzidos, pela experiência, a acreditar que
os movimentos ocorrem de maneira absoluta sem um referencial. E, como ele
aponta, surge “a ilusória noção de que todas as coisas com as quais fazemos
comparações são desnecessárias.” (Ibid., p.273)
Mach tem, aos moldes leibnizianos e berkeleyanos, uma concepção bastante
relacional de tempo (e de espaço, como veremos).
Mas precisamos não esquecer que as coisas no mundo estão conectadas
umas com as outras e dependem umas das outras e que nós mesmos e
nossos pensamentos são parte dessa natureza. (Ibid., p. 273)
Vale notar que já se encontram nessa formação traços da epistemologia
machiana. Uma das principais características desta é que somos parte integrante
dessa noção de realidade, sendo o mundo que percebemos, a partir dos sentidos,
não uma coisa em si, mas construído nessa relação. O que vejo, os fatos que capto,
são de movimentos de corpos em relação a outros corpos e, se creio haver algo de
absoluto nisto, é simplesmente porque me deixo trair e passo a acreditar que posso
falar em movimentos com relação a referenciais “estranhos” (o absoluto) ou mesmo
acreditar que posso prescindir deles. O relativismo machiano tem suas raízes em
100
sua epistemologia e tentar entender seu pensamento fora delas é algo, senão
impossível, pelo menos infrutífero. E Mach continua:
Está além de nossas forças medir a mudança das coisas pelo tempo. Ao
contrário, o tempo é uma abstração, o qual chegamos por meio de uma
mudança das coisas. É obtido não porque nos limitamos a uma medida
definida, visto estarem todas as coisas interconectadas. Um movimento é
dito uniforme quando iguais incrementos de espaço percorrido
correspondam a iguais incrementos de tempo descritos por algum outro
movimento com o qual o comparamos, como a rotação da Terra (Ibid.,
p.273)
Nesse sentido e tendo-se por fundamento sua epistemologia, na qual uma
coisa não é uma coisa em si, mas um complexo de elementos, falar em tempo
absoluto, um conceito que não requer qualquer relação com outra coisa é algo
completamente destituído de sentido. “Esse tempo absoluto não possui valor
científico ou prático. Trata-se de uma concepção metafísica sem fundamento.” (Ibid.,
p. 273)
Mas poder-se-ia objetar a Mach: o tempo absoluto é medido com relação a
algo sim! Ele o é em relação ao espaço absoluto. Pois qualquer tempo, em certo
sentido, como afirmam os relativistas, é determinado com relação a um movimento
em relação a um espaço. E, em se pensando dessa forma, mesmo Newton não teria
concepções tão absolutas assim, na medida em que seu tempo é medido de forma
relacional com o espaço que postula. Mas Mach dirigiria, na sequência, a seguinte
questão: que complexo de elementos constituiria essa entidade chamada de espaço
absoluto? Se for demonstrado a Mach a existência empírica de um complexo de
elementos denominado espaço absoluto, então será possível falar em tempo
absoluto, pois ele poderia ser medido com relação a algo.
Em sua crítica a alguns fundamentos da mecânica newtoniana, Mach propõe
uma solução: ao invés de recorrer a leis e axiomas, como o faz Newton no Principia,
Mach introduz uma abordagem que considera mais econômica, evitando o recurso a
entidades que, sob o jugo de sua epistemologia, carecem de fundamentação. Ele
utiliza proposições experimentais e definições.
Proposição Experimental: Corpos colocados de maneira opostas uns aos
outros induzem uns nos outros, sob certas circunstâncias a serem
101
especificadas por experimentos físicos, acelerações contrárias à direção de
suas linhas de união. (O princípio de inércia se inclui nisso.)
Definição: a razão entre as massas dos dois corpos é menos o inverso das
acelerações mútuas desses corpos.
Proposição Experimental: as acelerações com que um número de corpos
A, B, C,... induzem um corpo K são independentes umas das outras. (O
princípio do paralelogramo de forças segue imediatamente disto).
Definição: a força movente é o produto do valor da massa de um corpo
pela aceleração induzida neste. (Ibid., p.303)
Mas no que essas proposições ganham em termos de simplicidade com
relação à física newtoniana? A razão principal é que não recorrem a entidades que
não possuam correlação na experiência. Na segunda proposição experimental,
quando Mach fala que o princípio de paralelogramo de forças emerge diretamente
dela, vale mencionar que, no século XIX, havia acaloradas discussões acerca do
estatuto do paralelogramo, se empírico ou de verdade necessária. Fica evidente
que, em Mach, o princípio é eminentemente empírico.
Outro ponto importante, que corrobora para a pretendida simplicidade das leis
machianas é que elas são capazes de condensar as leis de Newton: se tomarmos a
primeira definição, tem-se nela uma fusão da segunda e terceira leis.
Já na segunda definição, temos o que Newton chamaria de segunda lei do
movimento, mas que aqui assume apenas um caráter formal. Mach assume
explicitamente que o que pode ser medido é apenas a aceleração. O conceito de
massa (presente na primeira definição) advém da relação entre as acelerações dos
corpos após uma interação e o conceito de força, portanto, cumpre aqui apenas uma
função didática. Mach nega a essa entidade física um estatuto de realidade. “Só
podemos decidir quão intensas são as forças se conhecermos as velocidades que
essas partículas possuem.” (Ibid., p.279)
E como foi visto na epistemologia, uma entidade que não estabelece relação
com a experiência, cumpre, no máximo, um papel matemático, o de uma
“ferramenta” que permite garantir unidade à descrição. Em resumo, as proposições
experimentais, aliadas a definições, constituem uma tentativa de fazer a descrição
da natureza o mais conectada com os fatos possível. Mas uma questão persiste: o
102
que são essas proposições experimentais? Para Mach, são postulações que
emergem diretamente da experiência e, portanto, parecem cumprir, a meu ver, um
papel semelhante ao que cumpririam os conectivos presentes na lógica clássica. E o
que Mach diz acerca dessas proposições experimentais conjugadas com as
definições?
Assim, as definições remanescentes arbitrárias de expressões algébricas
como momentum, vis viva e outras se seguem. Mas estas são, sem dúvida,
indispensáveis. As proposições acima explicam de maneira bastante
satisfatória os requisitos de simplicidade e parsimônia, que sob bases
científico-econômicas, podem ser precisadas por elas mesmas. Elas são,
mesmo assim, óbvias e claras; sem dúvida podem existir em relação a
qualquer uma delas, seja por seu significado, seja por sua fonte; e sempre
sabemos se se assentam na experiência ou em convicções arbitrárias (Ibid.,
p.304)
Mach parece dirigir suas críticas a Newton em dois aspectos: um teórico e
outro metodológico-epistemológico. No primeiro, questiona conceitos expostos pela
física de Newton, como o de massa e de força, já expostos. É, no entanto, no plano
metodológico-epistemológico que se dirigem as críticas mais diretas: o método de
construção da ciência deve se assentar numa conjunção de proposições
experimentais e fatos, e estar atrelada aos fatos é condição fundamental para que
qualquer definição não se perca em devaneios metafísicos. Mesmo assim, caso o
faça, ainda que a tais constructos metafísicos possa ser concedido o recurso do uso
instrumental, devem, pois, cumprir um papel unificador e simplificador.
Vale ressaltar que a posição estritamente relativista de Mach, com relação a
espaço e tempo, não goza de originalidade. Bunge, por exemplo, diz que Mach era
pouco conhecedor da história da filosofia e, tivesse ele disposto de fontes mais
confiáveis, verificaria que sua posição com relação aos absolutos não gozava, como
ele esperava, de inovação. Platão, Aristóteles e Leibniz, diz Bunge, já haviam feito
crítica nos mesmos teores. (1992, p.244)
O fato é que o experimento do balde parece não ter causado em Mach o
efeito esperado, ou seja, o de ser a prova empírica, uma evidência inquestionável da
existência de um “complexo de elementos chamado espaço absoluto”.
103
A crítica se dirige principalmente ao fato de Newton não cumprir aquilo que
reitera inúmeras vezes, de manter-se atrelado aos fatos.
Ninguém é competente para predicar coisas sobre espaço e movimentos
absolutos: eles são puras criações da mente, construções puramente
mentais, que não podem ser produzidas na experiência. (MACH, 1989, p.
280)
A sutileza do trecho “ser produzidas na experiência” merece uma análise
detalhada. Tradicionalmente, e Mach reitera isso muitas vezes, fala-se em remeterse aos fatos, em fundar-se nos fatos, mas o que significa aqui ser produzido na
experiência? O que Mach indica aqui é mais que observabilidade, ele fala de
reprodutibilidade, o que não é a mesma coisa. Posso observar um complexo de
elementos, posso produzir experimentos que dêem uma evidência indireta de um
complexo, mas posso reproduzir esse complexo na experiência?
Esse é, sem dúvida, um questionamento possível de ser dirigido aos
conceitos newtonianos com relação ao absoluto: posso reproduzir o espaço
absoluto? E da mesma forma, dirige-se a mesma questão aos átomos: são
reprodutíveis na experiência?
Outro ponto destacável, apontado por Chibeni e que, a meu ver, se dirige
perfeitamente à tentativa que Newton faz de encontrar um experimento que dê
validação empírica à sua noção de espaço absoluto, é que “a inferência de uma
hipótese, a partir da confirmação empírica de suas implicações é um caso de falácia
da afirmação do consequente.” (2009, p.17).
De fato, parece ter sido isso que Newton desejava: encontrar um experimento
que gerasse resultados empíricos mensuráveis e, que segundo sua visão,
acabariam por validar a existência do espaço absoluto. Pois se existe uma entidade
como tal, ela deve ser capaz de ser detectada na experiência. Mas advém da lógica
que:
A→B
___B
A
104
constitui uma falácia17. Newton com seu experimento tentava validar essa afirmação,
ao dizer que:
Se existe espaço absoluto, então ele produz resultados empiricamente detectáveis
Encontro resultados empiricamente detectáveis (dados do experimento do balde)
Existe espaço absoluto
Creio que talvez Mach não estendesse a crítica nesses termos a Newton, pois
sabemos que a lógica machiana é estritamente empírica e que aliada à sua
epistemologia, talvez Mach cresse que fosse possível executar o caminho descrito
acima como tentativa de validar a existência do espaço absoluto.
Em
resumo,
poderíamos
construir
uma
relação
entre
ontologia
e
epistemologia em Mach. Poder conhecer, dadas as condições de sua epistemologia,
não é garantia de existência. Pois posso produzir fatos que me dêem alguma
evidência do que desejo verificar e, a partir do critério da observabilidade, validá-los.
Mesmo que essa entidade a ser verificada na experiência seja apenas uma
hipótese, um exercício da livre imaginação poética como nos fala Rudolf
Haller(1992), ainda assim falta a ela o recurso da reprodutibilidade.
O espaço absoluto, portanto, carece dessa capacidade de ser reproduzido na
experiência, mesmo que possa apresentar resultados empíricos detectáveis, como o
experimento do balde sugerido por Newton.
Como se vê, a crítica pode ser de diferentes naturezas: primeiramente, uma
entidade precisa satisfazer seu rígido sistema metodológico-epistemológico. O
espaço absoluto falha nisso. Mach reconhece ser o espaço absoluto um ente que
não representa ganhos em termos do Princípio de Economia. Qual seria a função do
espaço absoluto numa descrição da natureza, perguntaria ele? Posso fazer todas as
17 Tal inferência falaciosa, muito comum em ciência, recebe o nome de abdução.
105
descrições limitando-as à concepção relativa de movimento e, com isso, não
precisar dispor de uma entidade que sequer tem valor instrumental.
A crítica também pode ser teórica. Na passagem que segue, Mach diz que:
(...) Enquanto Galileu, em sua teoria das marés, escolheu a esfera das
estrelas fixas como base do novo sistema de coordenadas, há dúvidas de
Newton com relação a se uma estrela fixa está apenas aparentemente em
repouso ou de fato. Essa dúvida gera em Newton a dificuldade de distinguir
entre movimento absoluto e relativo. Para tal, fez-se necessário que Newton
estabelecesse uma concepção de espaço absoluto. Para investigações
mais profundas nessa direção – o experimento do balde e as esferas
conectadas por uma corda – Newton acreditou que poderia provar uma
rotação absoluta, embora não pudesse provar qualquer translação absoluta.
Por rotação absoluta, ele compreendeu como rotação relativa às estrelas
fixas e aqui forças centrífugas sempre podem ser encontradas. (1989, p.
280)
De fato, como se vê, Mach não aceita a argumentação newtoniana de que
movimentos circulares são dotados de uma característica que permita serem usados
como critério evidencial em favor da existência do absoluto. A citação abaixo reforça
a argumentação de Mach contra o espaço absoluto.
Dois corpos K e K1, que gravitam um em direção ao outro, na direção da linha
de junção, fornecem um ao outro acelerações inversamente proporcionais às
suas massas m e m1. Nesta proposição está contida, não somente a relação
entre os dois corpos mencionados, mas também a relação com outros corpos.
Ambos sofrem uma aceleração dada por .
).O movimento de um corpo
K somente pode ser determinado com relação a outros corpos A, B, C... Mas
uma vez que sempre temos a disposição de um número suficiente de corpos
que são, com relação aos outros, fixos ou alteram lentamente suas posições,
ficamos, em tal referencial, restritos a nenhum corpo em particular e pode-se
alternadamente omitir este ou aquele corpo. Dessa forma, cresce a convicção
de que estes corpos são geralmente indiferentes. Poderia ser também que
corpos isolados A, B, C.. exerçam um papel especializado na determinação
do movimento do corpo K e que este movimento é determinado por um meio
em que K existe. Assim, deveríamos substituir o meio pelo espaço absoluto
de Newton. Newton não partilharia certamente dessa ideia. Mesmo assim, é
fácil demonstrar que a atmosfera não é este meio determinante do
movimento. (Ibid., p.282)
106
Essa concepção relacional de movimento, oriunda de sua epistemologia, terá
implicações em seu conceito de massa.
Logo no começo da obra, nas Definições, Newton apresenta seu conceito de
massa, dizendo que “a quantidade de matéria é a medida da mesma, obtida
conjuntamente a partir de sua densidade e volume.” (1990, p.01)
Como se vê, ela não é, para Mach, um conceito absoluto do corpo, uma
medida da quantidade de matéria, definição que poderia conduzir à arriscada
tentativa de contar, por exemplo, átomos a fim de que se mensure essa quantidade
de matéria. A solução, então, se encontra em sua epistemologia. Se tomarmos que,
para Mach, um corpo é um complexo de sensações, não há a massa em si, mas
talvez se possa inferir uma quantidade numérica que comumente chamemos de
“massa”, mas que não é, em hipótese alguma, propriedade intrínseca do corpo.
Esse é um dos motivos, certamente, de Mach criticar duramente o conceito de
massa newtoniano. A noção de massa de Newton, afirma Koslow, é pouco clara e
se for explicada em termos de quantidade de átomos, mantém-se insatisfatória, visto
ser a noção de átomo, na visão machiana, insustentável. (1968, p. 219)
Bradley sugere que existe uma relação entre a ideia de massa de Mach e “a
coisa em si” de Kant. Segundo ele:
A massa de um corpo rígido tem analogia, tanto positiva quanto negativa,
com a coisa em si de Kant; ambas possuem localização no espaço e estão
absolutamente além do alcance possível da percepção sensorial. (1971,
p.143)
Segundo essa ideia, a massa de um corpo qualquer seria o local onde o livro
está. Como a coisa em si de Kant, ente incognoscível, a massa também o seria.
Nesse sentido, qual função cumpriria a massa dentro do arcabouço teórico
machiano, um fenomenalista? Para ele, a ideia de massa de um corpo constituiria
apenas um constructo matemático, oriundo da relação entre dois corpos que
interagem entre si e obtida a partir da razão inversa das acelerações adquiridas
nesse contato. Desse modo, posso apenas ter uma medida da relação entre
107
“entidades numéricas”, que vulgarmente chamamos massa. Se, após uma colisão
entre dois corpos, um corpo A acelera três vezes mais que B, isso significa que B
deve ter uma massa três vezes maior que A.
Koslow chama a atenção para o fato de que quando Mach fala em massa
como uma simples entidade numérica, não o faz estritamente em sentido
matemático. Diferentemente de Kirchhoff, Mach confere à essa entidade numérica
um sentido físico e real, que advém do complexo de sensações que essa quantidade
representa. Como Koslow sugere:
aceitabilidade representa um requisito mais rigoroso que a adequação
formal. Embora a massa possa ser tomada como uma entidade numérica [e
seja formalmente adequada], é preciso satisfazer os requisitos do programa
[sua epistemologia] para ser aceitável. (1968, p.216)
Com sua concepção relacional, Mach teria o que chama de procedimento
econômico: descrever as interações, sem precisar recorrer a entidades estranhas
como força e massa como quantidade de matéria. Basta apenas que seja possível
medir movimentos (velocidades e acelerações).
O princípio de inércia precisa ser reformulado na física de Mach, pois não há
uma quantidade de matéria precisa que determine a inércia de um corpo. Como só
se pode medir massas relativamente, é preciso uma visão alternativa do princípio de
inércia. E ele oferece uma:
Tais considerações servem apenas para evidenciar que não é preciso se
referir ao espaço absoluto para tratar da lei da inércia. Pelo contrário, notase que as massas que comumente exercem forças umas sobre as outras,
assim como também as que exercem alguma força, mantêm com respeito à
aceleração relações similares. Podemos assim considerar que todas as
massas estão relacionadas com as demais. Que acelerações executam um
papel importante nas relações entre as massas, isso deve ser aceito como
fato da experiência. (1989, p. 288)
Portanto, a nova formulação do princípio de inércia deve ser tomada com
relação a todas as massas, à massa do Universo inteiro, o melhor referencial na
visão de Mach.
108
O comportamento dos corpos terrestres com relação à Terra é redutível ao
comportamento da Terra com relação aos corpos celestes. Quando dizemos
que um corpo preserva inalterável sua direção e sua velocidade, tal
assertiva é nada mais, nada menos, que uma referência abreviada ao
universo inteiro. (Ibid., p. 285-286)
A dependência mútua do movimento, na base de sua concepção relacional de
massa, conduz naturalmente a análise machiana à busca do melhor referencial
possível, o mais econômico, que, em seu ponto de vista, é o Universo inteiro (ou céu
das estrelas fixas). Assis aponta uma comparação interessante entre a concepção
newtoniana e a machiana, no que tange aos efeitos que essa rotação gera na Terra,
em função do referencial escolhido.
O fato interessante na mecânica newtoniana é que mesmo que as estrelas e
galáxias distantes desaparecessem ou não existissem, a Terra ainda seria
achatada nos pólos devido à sua rotação em relação ao espaço absoluto.
(2002, p.37-38)
A alteração do conceito de massa e de espaço, compatível com a
epistemologia machiana, implica na subversão do conceito de inércia e, portanto, a
existência de referenciais não inerciais ou inerciais, logicamente submetida ao
conceito de inércia, se altera. Com isso, é natural que Mach não veja no
experimento do balde os mesmos resultados que viu Newton. Para Mach, sem um
Universo, não há inércia, não faz sentido falar em inércia de um corpo isolado,
enquanto que, para Newton, a inércia é uma propriedade intrínseca de um corpo,
independendo das outras massas a seu redor.
Sem o espaço absoluto, a argumentação newtoniana acerca da concavidade
da superfície da água no experimento do balde se desfaz e:
dessa forma, o experimento de Newton sobre o balde nos informa
simplesmente que a rotação relativa da água com relação ao balde não
produz forças centrífugas perceptíveis, mas que tais forças são produzidas
por seu movimento relativo com relação à massa do planeta e de outras
massas dos corpos celestes. (MACH, 1989, p. 284)
O excerto anterior é tradicionalmente conhecido como Princípio de Mach. Por
fim, Mach conclui sua crítica, dizendo:
109
Ninguém é competente para dizer como o experimento do balde dar-se-ia
se seus lados aumentassem progressivamente de espessura e massa, até
que fosse, por fim, várias léguas mais espesso. O único experimento se
assenta diante de nós e nosso trabalho é fazê-lo entrar em acordo com
fatos conhecidos por nós e não com ficções arbitrárias conhecidas por
nossa imaginação. (Ibid., p. 284)
Mach critica a tentativa newtoniana de produzir um experimento que
justificasse sua crença no absoluto, como forma de efetuar um exercício legítimo dos
princípios que regiam a nova filosofia. Newton sugere, segundo ele, o experimento
como garantia de validação ontológica da entidade espaço absoluto. No entanto, a
tentativa de prova da existência do espaço absoluto por Newton, com o experimento
do balde, parece, aos olhos machianos, implicar em uma inversão do que se poderia
chamar de método indutivo. Dos fatos devem emergir hipóteses com relação a
novas entidades, jamais submeter novas entidades, sem qualquer fundamentação,
aos fatos, esperando que eles as validem. Newton não procedeu assim: partiu de
uma ficção (o absoluto) e tentou encontrar, na experiência, uma evidência da
realidade de sua concepção.
5.5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
De forma sintética, podemos destacar duas diferenças básicas entre a
concepção newtoniana e a machiana do experimento do balde.
(1)
Para Newton, a concavidade da água no experimento do balde se deve ao
movimento com relação ao espaço absoluto, enquanto que para Mach ela é produto
do movimento com relação ao Universo inteiro. Se um raciocínio inverso foi feito, se
o Universo girasse em relação ao absoluto e o balde ficasse parado, para Newton a
110
água permaneceria plana, mas, para Mach, haveria a concavidade, visto a água
girar com relação ao céu das estrelas fixas.
(2)
A força centrífuga, responsável pelo afastamento da água em relação ao eixo,
tem estatuto diferente nos dois argumentos: em Newton, tal força é considerada
fictícia, oriunda de um referencial não-inercial (o balde girando), enquanto que na
física de Mach, ela “seria uma força real, que só apareceria num sistema de
referência em relação ao qual o céu das estrelas fixas estivesse girando.” (Assis,
2002, p. 72)
A discussão das ideias de Newton e Mach com relação aos absolutos ganha
reforço interessante numa interpretação dada por Disalle para a oposição entre elas.
Segundo ele, quando se tenta efetuar a descrição da natureza a partir de um dado
modelo, carregam-se implicitamente os pressupostos filosóficos que lhe são
inerentes. Desse modo, as concepções de espaço e tempo desses autores não são
entes teóricos pré-determinados, mas emergem inerentes à forma com que seus
autores descrevem como a natureza se comporta. Assim, o absoluto newtoniano é
uma hipótese metafísica advinda de suas crenças teológico-empíricas.
Em
Mach,
tal interpretação se dá com o espaço relativo e a recusa ao absoluto, oriundos de
sua epistemologia. Tomando a descrição newtoniana, afirma Disalle que:
Para Newton, Deus e as coisas físicas localizam-se igualmente no espaço e
no tempo. Mas espaço e tempo formam um sistema de referência no qual
as coisas agem umas sobre as outras e suas relações causais tornaram-se
inteligíveis por meio de suas relações espaço-temporais – acima de tudo,
por meio dos efeitos mútuos de seus estados de movimento. O último
princípio, que estava implícito na física do século XVII, representou para a
Newton a possibilidade de ligar física a metafísica: se a física é
compreender as conexões causais reais no mundo, então a física precisa
definir espaço, tempo e movimento de modo a tornar aquelas conexões
inteligíveis. (2006, p. 38)
Reitero aqui meu ponto de vista de que o absoluto em Newton não cumpriu
apenas uma função lógica, mas acima de tudo teológica. Newton tinha consciência
das dificuldades impostas por seu absoluto, mas mesmo assim o tomou por
referência na medida em que o espaço absoluto comportava sua noção de um Deus
111
atuando diretamente em sua criação. De fato, a física newtoniana nunca passou por
grandes dificuldades teóricas ao assumir o espaço absoluto e seu desenvolvimento
se deu a despeito dessa concepção. Tivesse, de fato, sua física ligada a essa
concepção e a doutrina newtoniana já teria sucumbido a muitas críticas consistentes
dirigidas a ela, como as que Mach dirigiu.
Em resumo, o trabalho desenvolvido aqui procurou mostrar que a análise da
crítica de Mach aos absolutos não pode prescindir de um estudo de sua
epistemologia e metodologia, pois é no conjunto dessas concepções que ela adquire
seu pleno sentido.
6
. CONCLUSÃO
Ernst Mach, como vimos, esteve em consonância com seu tempo,
participando de importantes debates presentes, principalmente, da segunda metade
do século em diante. Absorveu algumas ideias de seu tempo, lutou veemente contra
outras, mas sempre esteve presente no foco da discussão que certamente legou
importantes raízes para a “ruptura” que a Física sofreria no começo do século XX.
Motivado pela tentativa de construir um arcabouço conceitual que desse conta
de uma unificação terminológica das ciências, oriunda de um homem que, ao longo
112
de sua vida, trabalhou com áreas as mais diversas, espero ter demonstrado alguns
pontos fundamentais para a História e Filosofia da Ciência.
Em primeiro lugar, a prática científica de Mach se situa completamente imersa
na segunda metade do século XIX, sofrendo, portanto, importante influência do
positivismo há pouco legado por Comte. Conforme explicitado nessa dissertação, os
comentadores, em sua grande maioria, o tomam como positivista. Espero ter ficado
claro, no entanto, que não se trata de um positivismo aos moldes comteanos. Mach
considera o conhecimento científico um aprimoramento do conhecimento do senso
comum e entende que as leis da natureza simplesmente captam as relações de
dependência funcional entre suas entidades. Muito em função de sua epistemologia,
nossa apreensão fenomenológica (sensorial) é limitada e apenas construímos
relações de dependência igualmente limitadas, mas que se aprimoram com nossa
capacidade de extrair da natureza novos dados. É um processo que não tem uma
finalidade intrínseca, mas que está sempre em construção. Comte não vê o
processo dessa forma: para ele, as ciências se encontram em estado positivo e,
como tal, atingiram sua maioridade intelectual, a qual deve ser exportada para as
demais áreas do conhecimento. Outro ponto de distinção importante é que, para
Comte, o mundo interior, tão caro para a epistemologia machiana, sequer existe.
Comte nega essa possibilidade, considerando-a um elemento característico do
estado teológico e metafísico, já superados pela ciência18 no estado em que se
encontra. Isso é, conforme exposto, quase uma heresia para Mach.
Outro ponto importante é que, se analisarmos a importância que a linguagem
adquire no projeto machiano, veremos que Mach, em certo modo, adianta em muitos
aspectos alguns pontos que serão mais explicita e fortemente defendidos pelos
primeiros integrantes do Círculo de Viena. Em meu ponto de vista, Mach pratica um
positivismo que se situa entre o comteano e o lógico. Isso faz emergir mais ainda a
necessidade de se entender seu pensamento e o papel que atribui à linguagem, pois
uma investigação mais detalhada seria muito rica a fim de elucidar o processo que
culminou com o advento do positivismo lógico.
18
Uso aqui o termo “ciência”, ciente de que tal terminologia só se torna mais fortemente
estabelecida no fim do século XIX.
113
A fusão entre sujeito que percebe e coisa observada, condição primordial da
possibilidade do conhecimento em Mach, coloca em questão a tese do mundo como
dado e conceitos correlatos, como os de verdade por correspondência. O papel de
um observador e sua influência no processo de percepção como garantia da
possibilidade de conhecer, algo complexo para um pensador que se propõe construir
uma doutrina de ciência e que tem que justificar como um conhecimento particular
ao indivíduo se universaliza, tem em Mach um representante central: sua posição,
parece adiantar pontos que, mais tarde, os pesquisadores do primeiros anos do
século XX terão de lidar com os conceitos oriundos da Relatividade e da Mecânica
Quântica.
A postura relativista de Mach, em sua forte oposição aos absolutos newtonianos,
fundamentados em sua epistemologia e sua metodologia, principalmente no papel
que o princípio de economia exerce em suas investigações, é considerada, por
muitos comentadores, como matéria prima dos princípios da Teoria da Relatividade
de Einstein, que chegou a admitir explicitamente a importância que as reflexões de
Mach tiveram em suas concepções da Teoria da Relatividade Restrita e Geral.
Desse modo, é possível defender a tese de que seu relativismo comuta com alguns
pontos fundamentais da relatividade.
Finalmente, entendo que outro ponto bastante corrente na história da filosofia,
com relação à Mach, a questão de sua aversão à metafísica e também e do recurso
aos átomos como entidades inobserváveis, é relativizada, creio eu, nesta
dissertação. Seu fenomenalismo implica, em parte, nessa posição com relação aos
inobserváveis. Uma entidade desse tipo até poderia ser útil, caso cumprisse alguma
função aglutinadora numa descrição teórica (base metodológica), negando sempre,
é
verdade,
qualquer
possibilidade
de
realidade
a
essa
entidade
(base
epistemológica). Vale a pena citar, mais uma vez, que Mach não tinha em mente um
projeto que visava à elaboração de uma Ontologia, mas sim de estabelecer
pressupostos que o permitissem efetuar a descrição da realidade de forma mais
econômica e fenomênica possível.
Mach é uma personagem intrigante e creio poder ter mostrado na dissertação
sua grande importância para a compreensão das mudanças radicais pelas quais a
114
Física passa no fim do século XIX e começo do século XX. Digno de nota é, em meu
ponto de vista, a grande unidade de seu projeto epistemológico, que guiou
rigidamente suas incursões pela física.
Newton, dois séculos antes, ao adotar o absoluto como referencial, afastou-se,
creio, de sua promessa de se manter no curso de investigações alicerçadas em
qualidades primárias, na tentativa de eliminar as qualidades ocultas da descrição da
natureza. Mesmo assim, construiu uma física que é, surpreendentemente, isenta de
suas incursões no campo teológico-metafísico. Suas motivações teológicas,
presentes na postulação do absoluto, não criaram qualquer empecilho a seus
estudos de física e óptica. Isso, no entanto, não impede de criticar a obra
newtoniana quanto a seu grau de unidade entre os pressupostos teóricos e suas
investigações empíricas. Muitos contemporâneos de Newton o criticaram por praticar
uma física que não concordava com os pressupostos assumidos.
Isso não é, em hipótese alguma válido para Mach. Ao tecer uma relação bastante
sólida entre epistemologia e metodologia, definiu bases bastante claras para a
formulação de uma crítica, potencialmente fecunda, aos absolutos newtonianos. É
impossível dirigir quaisquer comentários à crítica que Mach faz aos absolutos sem
antes esmiuçar estes pressupostos epistemológicos e metodológicos.
Além da crítica aos absolutos, também sua postura anti-atomista fica
evidentemente conectada a seu fenomenalismo. Novamente, sem ele, e o teor
dessa intensa discussão, ocorrida no fim do século XIX, perde seu sentido.
Há, certamente, muito ainda que estudar sobre a obra machiana: dadas as
mencionadas contribuições a outros pesquisadores do fim do século XIX, investigar
suas ideias, a relação mais estreita com o positivismo lógico, sua relação com a
doutrina kantiana, a influência do darwinismo em sua doutrina fenomênica, enfim, há
inúmeros pontos que carecem de estudos mais aprofundados.
Concluo dizendo uma frase de Albert Einstein: O estudo, a busca da verdade e
da beleza são domínios em que nos é consentido sermos crianças por toda a vida.
Mach, em função de sua grandiosa obra, evidencia isso claramente.
115
7
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