EDITORIAL SCINTILLA Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 7-9, jul./dez. 2010 1 ENIO PAULO GIACHINI 2 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 7-9, jul./dez. 2010 EDITORIAL SCINTILLA REVIST A DE FIL OSOFIA E MÍSTICA MEDIEV AL REVISTA FILOSOFIA MEDIEVAL ISSN 1806-6526 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 1-257. jul./dez. 2010 Instituto de Filosofia São Boaventura – IFSB Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval – SBFM Curitiba PR 2010 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 7-9, jul./dez. 2010 3 Copyright © 2004 by autores Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte. FAE – Centro Universitário IFSB – Instituto de Filosofia São Boaventura SBFM – Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval O IFSB é mantido pela Associação Franciscana de Ensino Senhor Bom Jesus (AFESBJ) Rua 24 de maio, 135 – 80230-080 Curitiba PR E-mail: [email protected] ou [email protected] Reitor: Nelson José Hillesheim Diretor geral do Grupo Bom Jesus: Jorge Apostolos Siarcos Pró-reitor acadêmico: André Luis Gontijo Resende Pró-reitor administrativo: Regis Ferreira Negrão Diretor do Instituto de Filosofia São Boaventura: Drndo. Jairo Ferrandin Editor: Dr. Enio Paulo Giachini a) Comissão editorial Dr. Emanuel Carneiro Leão, UFRJ Dr. Orlando Bernardi, IFAN Dr. Luiz Alberto de Boni, PUCRS Dr. José Antônio Camargo Rodrigues de Souza, UFG Dr. João Eduardo Pinto Basto Lupi, UFSC Dr. Carlos Arthur R. do Nascimento (PUC-SP) Dr. Francisco Bertelloni (Univ. Nacional da Argentina) Dr. Gregorio Piaia (Univ. di Padova – Italia) Dr. Marcos Roberto Nunes Costa (UNICAP) Dr. Rafael Ramón Guerrero (Unv. Complutense – España) Dra. Márcia Sá Cavalcante Schuback, Södertörns University College Estocolmo (Suécia) Dr. Ulrich Steiner, FFSB Dr. Jaime Spengler, FFSB Dr. João Mannes, FFSB b) Conselho editorial Dr. Vagner Sassi, FFSB Dr. Marco Aurélio Fernandes, IFITEG Dra. Glória Ferreira Ribeiro, UFSJR Dr. Jamil Ibrahim Iskandar, PUC-PR Dr. Joel Alves de Souza, UFPR Dr. Gilvan Luiz Fogel, UFRJ Revisão e editoração: Equipe interna Diagramação: Sheila Roque Capa: Luzia Sanches A partir de 2009 a Scintilla compõe o banco de dados da EBSCO – http:// www.ebscohost.com/titleLists/hlh-coverage.htm Catalogação na fonte Scintilla – revista de filosofia e mística medieval. Curitiba: Instituto de Filosofia São Boaventura, Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval, Centro Universitário Franciscano, v.1, n.1, 2004Semestral ISSN 1806-6526 1. Filosofia – Periódicos 2. Medievalística – Periódicos. 3. Mística – Periódicos. CDD (20. ed.) 105 189 189.5 SUMÁRIO EDITORIAL ........................................................................... 7 Enio Paulo Giachini ARTIGOS ............................................................................... 11 Apocalittica come retorica: Continuità e metamorfosi ....... 13 Gian Luca Potestà A fundamentação sociológica da teoria sobre a pobreza dos espirituais em Pedro de João Olivi. O. Min. (1274/1248-1298) ............................................. 31 Johannes Karl Schlageter OFM, Fulda Joaquim de Fiore, apocalipticismo e escatologia nos séculos XIII e XIV ............................................................. 65 Nachman Falbel O Alter Christus: Cristocentrismo e construção da imagem de Francisco na Arbor vitae crucifixae Iesu, de Ubertino de Casale (1305) ........................................... 87 Ana Paula Tavares Magalhães Los espirituales y la política imperial ................................. 127 Celina A. Lértora Mendoza COMENTÁRIOS ...................................................................... 147 Da verdadeira à perfeita alegria, uma e(in)volução? ............. 149 Aldir Crocoli Os espirituais, hoje? .......................................................... 181 Hermógenes Harada TRADUÇÕES .......................................................................... 227 Comentário ao Apocalipse (Extrato) ................................. 229 Joaquim de Fiori EDITORIAL EDITORIAL Enio Paulo Giachini Temos a satisfação de apresentar aos leitores de Scintilla um número voltado especialmente ao movimento dos espirituais franciscanos. Insistimos na coleta e publicação de trabalhos voltados ao tema por vários motivos. Dentre estes, podemos destacar: Trata-se de um período e de pensadores de extrema importância para o pensamento medieval e franciscano. O estudo dos espirituais mereceria o empenho de mais pesquisadores, visto guardar uma riqueza e um veio de pensamento inusitados. Com isso, estamos afirmando também que o “movimento” dos espirituais é ainda pouco estudado, apesar de sua importância e riqueza. Dois pontos podem ser destacados no confronto com esses pensadores. A força radical de renovação, rumo às raízes de si mesmo. Na contracorrente da massificação e padronização da ordem, esses homens buscavam com valentia entusiasmante o rejuvenecimento de suas raízes: o espírito de pobreza do Poverello de Assis e seu amor ao Cristo pobre. E, em segundo lugar, a grandeza de sucumbir com nobreza sob a pressão da autoridade do poder tanto da Ordem quanto da Igreja. O espírito de Francisco, que encantou o mundo a ponto de em poucas décadas já ter conquistado mais de 40 mil seguidores pelo mundo a fora, como qualquer outro evento originário, requer ser reinaugurado por inteiro em cada época, em cada um que se sinta por ele convocado. Desde o princípio, onde se dá, é uma irrupção de vitalidade, que Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 7-9, jul./dez. 2010 7 EENIO NIOPPAULO AULOG GIACHINI IACHINI rompe com as convencionalidades mornas e estáticas do tempo. Não será diferente em qualquer tentativa de atinar e dar espaço à originalidade de todo si-próprio em qualquer época. Ainda no fulgor dos clarões vindos do pensamento fulgurante de Joaquim de Fiore, os espirituais franciscanos buscaram interpretar o espírito de sua época com a força radical das origens e devem ser para nós um ponto de salto para a clarividência dos desafios próprios de nossa época: massificação, despotenciação absoluta do pensar, subjugação ao poderio impessoal e avassalador do mercado e igualitação de valores e modos de vida. O predomínio do mercado, ancorado pelos tentáculos da mídia, felizmente, ainda, precisa de sangue originário para sua sobrevida. Para isso, varre todo antro e gruta buscando sugar o originário e novo, onde e como quer que surja. As carcaças que deixa atrás de si são a facilitação de tudo, a promessa de colocar o que quer que seja ao alcance de mão, olho e mente, a sanha ao novidadeiro e sobretudo a instauração, no pleno sentido da palavra, do vazio; um rio só corredeira. Quem sabe, como apregoava Joaquim de Fiore, não estejamos na iminência do ponto de salto para um novo devir, apenas que despreparados por falta de tirocínio de esperança e de espera do Deus vindouro? A era do “Espírito Santo”, a transformação que chega “suave como os passos de pombo” pode estar à porta. Nossos sentidos e nosso pensar, porém, parecem estar despotenciados e por demais distraídos com os alaridos barulhentos e borbulhantes de nossa época tresloucada. Joaquim de Fiore, Pedro de João Olivi, Ângelo Clareno, Ubertino de Casale e tantos outros, mas, sim, sobretudo Francisco, embrenhando-se em grutas e matas, batido e chicoteado por um sentimento estranho, doce e terrível ao mesmo tempo, buscando uma 8 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 7-9, jul./dez. 2010 EDITORIAL nesga de luz para absorver e organizar minimamente a invasão desse novo, são para nós pontos de referência distantes. A espera do inesperado precisa que agucemos olhos e mente, disciplinando o sentir e o pensar, o viver e o morrer nessas épocas assoladas pelo apelo rápido e fácil, superficial e passageiro. Nossos agradecimentos aos colaboradores, em sua maioria estudiosos devotados a essa época dos espirituais, que se dispuseram prontamente em colaborar. Desejamos a todos uma boa leitura. Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 7-9, jul./dez. 2010 9 ARTIGOS APOCALITTICA COME RETORICA... APOCALITTICA COME RETORICA: CONTINUITÀ E METAMORFOSI Gian Luca Potestà * Negli Stati Uniti, luogo di incontro di credenze, culture e società che ribollono di fermenti apocalittici, si distingue già da molti anni fra apocalissi (i testi riportabili a un genere letterario determinato), apocalittica (i linguaggi, le dottrine, le prospettive improntate a testi apocalittici) e apocalitticismo (soggetti, chiese e movimenti che si caratterizzano per credenze e orientamenti apocalittici). Vorrei offrire qualche spunto di riflessione lungo queste tre piste: in quest’epoca di bagni apocalittici, vale forse la pena conoscere meglio la composizione del liquido in cui siamo immersi, e la sua temperatura. 1 I testi apocalittici e le loro funzioni di propaganda Innanzi tutto: che cosa si intende propriamente per testi apocalittici? Nel canone biblico fissato dalle grandi Chiese compare una sola apocalisse. Per questo a volte si pensa che di apocalissi ce ne sia appunto una sola, quella attribuita al Giovanni autore del quarto vangelo. In realtà ogni tradizione religiosa ha le sue apocalissi, anzi generalmente si fonda su di un’apocalisse nel senso originario greco del termine: Rivelazione come disvelamento. Giudaismo e cristianesimo contano Atualmente professor de História do Cristianismo na Facoltà di Lettere e Filosofia dell’Università Cattolica del S. Cuore, Milão. * Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 13-29, jul./dez. 2010 13 GIAN LUCA POTESTÀ numerose apocalissi, in parte inserite nel canone biblico (sia ebraico, sia cristiano), in parte rimaste fuori di esso, nella maggior parte prodotte dopo la definizione del canone. Le apocalissi si presentano in genere come trascrizioni di una visione o di una serie di visioni. La più antica arrivata fino a noi è quella di Enoch, in cui si racconta che il veggente, il patriarca Enoch, sarebbe stato rapito in cielo, dove gli sarebbero stati mostrati i luoghi riservati al giudizio divino sui morti. Fra le altre apocalissi giudaiche, giudeocristiane o gnostiche attribuite a personaggi biblici, generalmente profeti dell’Antico e apostoli del Nuovo Testamento, si contano almeno tre apocalissi di Elia, un’ascensione di Isaia, una sezione del libro di Daniele, un’Apocalisse di Pietro (la più antica e prestigiosa dopo quella canonica), un’Apocalisse di Paolo, altre Apocalissi di Giovanni … Le attribuzioni sono tutte false. Non tutte le apocalissi consistono in resoconti di viaggi e di ricognizioni dei luoghi ultraterreni. Esistono anche apocalissi orientate in senso storico, per noi forse le più interessanti. Il veggente racconta una sequenza di avvenimenti che presenta come gli eventi finali della storia del suo popolo, della sua Chiesa o addirittura del mondo. Prendiamo la sezione apocalittica del libro di Daniele. Il centro della narrazione è rappresentato dalle drammatiche vicende avvenute in Medio Oriente intorno al 168 a.C., quando il sovrano Antioco IV Epifane compì una fortunata campagna militare che lo condusse dalla Siria all’Egitto, e ritorno. A Gerusalemme Antioco fu protagonista di atti gravissimi nei confronti della religione del popolo giudaico. Stando a Daniele, le azioni più terribili furono compiute contro il Tempio, luogo per eccellenza del culto divino. Antioco lo profanò, lo imbrattò, lo contaminò: destituì il sommo sacerdote, alterò la successione sacerdotale e osò far innalzare – “abominio della desolazione” – una propria statua “nel luogo santo”. 14 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 13-29, jul./dez. 2010 APOCALITTICA COME RETORICA... La sezione apocalittica di Daniele rappresenta un modello, che come tale verrà esplicitamente assunto e ripreso nell’Apocalisse di Giovanni e in numerose altre apocalissi successive. Innanzi tutto per il suo carattere pseudoepigrafico. La falsa attribuzione è fondamentale non solamente per dare lustro all’opera. In questo caso, chi racconta le vicende del profanatore è un individuo – forse un testimone oculare – molto ben informato delle malefatte di Antioco e della resistenza oppostagli da valorosi giudei osservanti della Legge, animati dall’eroico esempio di Giuda Maccabeo e dei suoi fratelli. Raccontare quest’episodio in presa diretta avrebbe naturalmente avuto ben minore forza evocativa e portata mobilitatrice. Per i fini che si prefiggeva l’autore, risultò invece efficace attribuire le visioni a un celebrato profeta vissuto al tempo della deportazione dei Giudei a Babilonia, il quale avrebbe previsto con addirittura quattro secoli di anticipo le oscenità perpetrate da Antioco. Un primo tratto da sottolineare nell’apocalisse di Daniele (e nelle apocalissi in genere) è che si tratta dunque di un testo di propaganda. Il sapere che patimenti, sofferenze, martirii sono quelli eternamente previsti per gli ultimi giorni da Dio, che per tramite di un veggente li ha comunicati anzi tempo agli eletti perché si preparino a soffrire e a resistere, nella certezza che alla fine verranno la liberazione e il riscatto, se non addirittura la vendetta, è propagandisticamente molto più efficace che invitare a resistere al buio, senza prospettive certe. Come per altri testi dell’Antico Testamento, anche per Daniele i cristiani si impegnarono a rileggerlo dal proprio punto di veduta. La sua sezione apocalittica venne così reinterpretata in riferimento agli attesi eventi finali, le allusioni ad Antioco furono viste come allusioni alla persecuzione ultima dell’Anticristo, e questo garantì un supplemento di interesse duraturo per quelle visioni. Ma viene subito da chiedersi: come è possibile che, prima dell’avvento dei metodi interpretativi della Scrittura progressivamente Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 13-29, jul./dez. 2010 15 GIAN LUCA POTESTÀ affermatisi a partire dalle grandi scuole esegetiche europee della fine dell‘800, nessuno si fosse accorto del meccanismo di Daniele? In effetti, se ne era accorto già il filosofo platonico Porfirio, che in Sicilia scrisse, verso il 270, un trattato in cui smontava l’intero congegno propagandistico. Come notò nel 1897 lo studioso francese J. Lataix, «Porfirio diceva di Daniele all’incirca tutto ciò che i critici moderni hanno pensato di scoprire. Secondo lui, il libro non era stato scritto da Daniele. L’autore viveva in Giudea, al tempo di Antioco Epifane; più che annunciare l’avvenire, racconta il passato». Ma conosciamo la potenza della propaganda: non basta mostrare che una cosa è falsa per smontarla! Il falso ripetuto infinite volte diventa vero, mentre il vero viene fatto morire: il trattato di Porfirio venne fatto sparire - ad opera di cristiani, si suppone –, al punto che oggi ne conosciamo i contenuti solo indirettamente, dalle citazioni dei suoi avversari. Dai tempi delle apocalissi attribuite a profeti e ad apostoli, la produzione delle apocalissi non è mai cessata, ma è stata sempre guardata con una certa diffidenza dalle gerarchie ecclesiastiche. Strumenti formidabili di mobilitazione religiosa, sociale e politica, alimentano spinte non facilmente governabili dalle istituzioni: depositari del messaggio sono infatti il veggente con il suo carisma divinamente certificato, ovvero la comunità che lo gestisce o che dispone della rivelazione. Negli Stati Uniti, dove fin dall’inizio le forme di cristianesimo dal punto di vista istituzionale sono state e restano complessivamente più leggere rispetto a quelle europee, le più importanti comunità religiose che hanno preso piede dai primi decenni del 1800 si fondano su rivelazioni apocalittiche, dalla Chiesa di Cristo dei Santi degli ultimi giorni (i Mormoni) alla Chiesa degli avventisti del settimo giorno, nata sulla base di un calcolo riguardante il ritorno di Cristo sulla terra, compiuto a partire da un rinnovato studio del libro di Daniele. 16 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 13-29, jul./dez. 2010 APOCALITTICA COME RETORICA... Per quanto riguarda la Chiesa cattolica e le Chiese nate dalla Riforma, dopo l’ultima esplosione di testi e personaggi apocalittici fra Tardo Medioevo e prima Età Moderna, le gerarchie hanno tendenzialmente cercato di disinnescare l’Apocalisse, e soprattutto di evitare che se ne scrivessero di nuove. In ambito cattolico il genere tornò alla ribalta tra fine ‘700 e inizi ‘800 in occasione della soppressione dell’Ordine dei gesuiti e del crollo dell’Ancien Régime. Alcuni cercarono di spiegare quelle vicende riportandole nella luce superiore del complotto anticristiano, cui i gruppi dirigenti restauratori tentarono di opporsi dando vita alla “Santa Alleanza” (l’espressione è presa dal Libro di Daniele, dove originariamente si riferisce al patto stretto fra i sovrani unitisi contro Antioco). Al di fuori di queste cerchie reazionarie, in ambito cattolico le uniche apocalissi che davvero hanno tenuto banco negli ultimi due secoli, raggiungendo strati ampi di popolo, sono state quelle mariane (capaci di stimolare la fede, senza peraltro pretendere di alterare il depositum fidei custodito dalla gerarchia). Le più celebri sono le rivelazioni di Fatima, avvenute tra maggio e ottobre 1917. La particolarità di Fatima, rispetto ad altre apparizioni mariane, sta nel fatto che l’apparizione originaria venne arricchita grazie alla progressiva rivelazione di ulteriori segreti via via comunicati dalla Vergine all’unica sopravvissuta, Lucia dos Santos. Fatima è un’apocalisse in progress. La piena pubblicazione dell’ultima parte del suo segreto è avvenuta nel 2000 (esso presentava in forma appena velata il conflitto fra il comunismo ateo e la Chiesa cattolica, l’attesa di una tribolazione generale del clero e la speranza nella conversione futura della Russia). Nella fase attuale la Chiesa cattolica appare priva di significativi riferimenti apocalittici, e questo è un tratto che la distingue fortemente dalle Chiese e sette che al di fuori dell’Europa risultano in rapida crescita anche grazie al proliferare incontrollato di profezie e visioni apocalittiche dei loro leader carismatici. Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 13-29, jul./dez. 2010 17 GIAN LUCA POTESTÀ 2 Un linguaggio simbolico e oscuro Un fattore certo non secondario della perdurante fortuna dei testi apocalittici è rappresentato dal loro linguaggio e dalle loro dottrine. Daniele si esprime in termini allusivi e oscuri, facendo massicciamente ricorso a una simbolica dei numeri e degli animali. Il trionfo delle figure e dei misteri si registra nell’Apocalisse di Giovanni, composta intorno alla fine del I secolo, o ai primissimi del II, in un ambiente giudeocristiano dell’Asia Minore polemico nei confronti sia di Roma imperiale sia della Sinagoga. A proposito del linguaggio allusivo e misterioso dell’Apocalisse, da sempre suo motivo di forza, lasciamo la parola a un acuto critico del XII secolo, il bavarese Gerhoh di Reichersberg, che in un’ampia Indagine sull’Anticristo mirante a demitizzare una serie di credenze sull’Anticristo affastellatesi in dieci secoli, definisce l’Apocalisse di Giovanni “un libro pieno di passi oscuramente simbolici, del quale già prima di noi si è detto che contiene tanti misteri quante sono le parole, anzi che in ciascuna parola sono nascosti significati molteplici”. L’Apocalisse di Giovanni, come già quella di Daniele, si fonda su di una visione forte della storia come teatro di un grandioso conflitto, giunto ormai alla scena finale, tra forze del bene e forze del male. Le prime sono sottoposte a una serie di persecuzioni del drago, cioè del Diavolo, messe in opera dai suoi agenti terreni, il principale dei quali è la duplice bestia, che sale dal mare e che sale dalla terra. La bestia vincerà la resistenza di due profeti e predicatori che oseranno opporsi ad essa, li ucciderà e ne farà esporre i cadaveri sulla piazza grande di Gerusalemme; ma – sul modello di Gesù – i due martiri risorgeranno dopo tre giorni. Ognuno di questi passaggi si presenta ambiguo e aperto a molte interpretazioni possibili. Consideriamo un solo punto, la tanto discussa 18 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 13-29, jul./dez. 2010 APOCALITTICA COME RETORICA... questione dell’identità della seconda bestia. Che cosa vuol dire che la bestia ha un marchio, imposto a tutti coloro che la seguono, e il marchio è il 666? La questione ha intrigato gli interpreti a partire da Ireneo, l’inventore dell’Anticristo come nemico dei tempi finali. Ireneo cercò di decifrare il numero della bestia applicando i principi della gematria, la scienza che faceva coincidere a ogni lettera dell’alfabeto (greco) un valore numerico (alfa = 1, beta = 2, ecc.), e in questo modo arrivò a stabilire che il 666 potrebbe equivalere in cifra a “Teitan” oppure a “Lateinos”. Gli interpreti antichi e medievali si sono sbizzarriti nei tentativi combinatori. Tentativi ingenui propri di un mondo premoderno ormai morto e sepolto? Niente affatto. Nel 1993 presso le Edizioni del celebre monastero della SS. Trinità e di S. Sergio di Sergiev Posad, sede dell’Accademia ecclesiastica moscovita, è apparso un volume dal titolo: La Russia dinanzi al secondo avvento (inteso come la Parusia di Cristo alla fine dei tempi), un’antologia di scritti apocalittici dai Padri fino al tempo presente. Stampato in una tiratura iniziale di 100.000 esemplari, il libro è stato più volte ripubblicato. Il testo è un concentrato delle rappresentazioni apocalittiche e demonologiche, con cui alcuni fra i settori più combattivi e oltranzisti dell’Ortodossia russa cercano di fronteggiare la secolarizzazione, esaltando i caratteri nazionalistici, antigiudaici e antimoderni presenti nella tradizione culturale e religiosa russa. Vi si legge fra l’altro che il sigillo dell’Anticristo è riconoscibile nei codici a barre, e che il numero della bestia apocalittica sta nelle carte magnetiche. In realtà l’idea non era affatto nuova. La si trova ampiamente diffusa fin dal decennio precedente negli Stati Uniti grazie a due fortunati libri di Mary Stewart Relfe: When Your Money Fails: the “666 System” Is Here (1981, oltre 600000 copie vendute) e The New Money System (1982), in cui denuncia la presenza del 666 nei codici magnetici a barre e nelle numerazioni di determinate carte di Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 13-29, jul./dez. 2010 19 GIAN LUCA POTESTÀ credito americane. Ecco una semplice attestazione che l’apocalittica non ha confini non solo temporali, ma neppure spaziali, sicché affermazioni germogliate sul suolo del fondamentalismo protestante americano possono attecchire facilmente anche su quello del fondamentalismo ortodosso russo. Di fatto, nel marzo 2000 il sinodo episcopale del patriarcato di Mosca confermò che il codice a barre contiene il 666 e chiese al Governo di introdurre, per riguardo ai credenti della Russia, un sistema di codice a barre differente da quello internazionalmente in uso. Il linguaggio cifrato dell’apocalittica si presta a molteplici interpretazioni, e in un certo senso le sollecita. Nel contempo, gli orizzonti entro cui queste sono ricercate appaiono sostanzialmente stabili. L’apocalittica trae forza dal ricorrere degli schemi e dalla longevità delle linee interpretative, che si radicano entro il terreno di una tradizione di cui spesso non si riescono più a misurare profondità e consistenza. È paradossale, ma quanto più il linguaggio apocalittico appare ermetico e polimorfo, tanto più gli stilemi e i percorsi interpretativi si snodano e si modificano lungo strade che sono però sempre le stesse: che si tratti di “Teitan” o del codice a barre, la procedura interpretativa applicata al 666 ci appare ingenuamente fondamentalista, quasi che il testo contenesse davvero un segreto che ancora aspetta di essere decrittato in re. 3 Gioacchino da Fiore e la ripresa critica del millenarismo Come si legge nell’Apocalisse di Giovanni, Dio stesso porrà fine al trionfo ingannevole della bestia, la manderà in un abisso di zolfo e di fuoco insieme a tutti i suoi collaboratori (gli “pseudoprofeti”), e allora finalmente Satana sarà legato per mille anni. In quel tempo Satana sarà dunque nell’impossibilità di nuocere; i santi (ovvero i martiri della 20 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 13-29, jul./dez. 2010 APOCALITTICA COME RETORICA... fede) torneranno sulla Terra, e regneranno su di essa insieme a Cristo risorto. Nell’Apocalisse l’instaurazione del regno millenario è presentata come l’ultima fase della storia terrena, immediatamente precedente la sconfitta definitiva di Satana, cui seguono il giudizio finale e la discesa della nuova Gerusalemme dal cielo. L’attesa di una nuova Gerusalemme era in linea con le rivendicazioni nutrite in ambienti giudaici dopo i tragici eventi del 70. Ma mentre nelle cerchie osservanti si vagheggiava la ricostruzione della Gerusalemme terrena e del suo Tempio, l’Apocalisse di Giovanni precisa che la nuova Gerusalemme scenderà dal cielo e non ci sarà in essa nessun tempio! Era una presa di distanza da quegli ambienti giudaici con cui l’autore dell’Apocalisse era in rapporto e in competizione. Quanto al millenarismo apocalittico, anch’esso si innestava sulla dottrina giudaica, che, sul modello del racconto della Creazione, suddivide la storia in sei giorni millenari, destinati ad essere seguiti dal settimo millennio di pace corrispondente al settimo giorno del riposo divino. Anche per questo aspetto Giovanni si mantiene dunque entro un orizzonte giudaico; ma nel contempo ne prende le distanze, in quanto il regno millenario non sarà quello del messia futuro, ma quello dell’agnello già sacrificato, destinato a prendere la guida dei santi (cioè dei martiri) richiamati alla vita. Agostino fu abile a disinnescare le proiezioni millenaristiche e le attese di una nuova Gerusalemme destinata a scendere dal cielo in terra, che avevano animato diversi movimenti apocalittici dei primi secoli, e di cui egli stesso aveva inizialmente subito il fascino. Nel De civitate Dei l’incatenamento del Diavolo è presentato non come un evento imminente legato all’instaurazione terrena del Regno, bensì come la condizione di cui la Chiesa già gode a seguito della prima venuta di Cristo, per quanto l’intreccio umanamente inestricabile fra le due città impedisce di comprendere pienamente ciò. In questo senso Agostino si spinge ad affermare che «la Chiesa già ora è il regno di Cristo e il Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 13-29, jul./dez. 2010 21 GIAN LUCA POTESTÀ regno dei cieli, e dunque già regnano con lui i suoi santi, sia pure in modo diverso da come regneranno allora», cioè nella condizione di quiete ultraterrena (De civitate Dei XX, 9.1). Il tabù agostiniano resse fino a quando non lo infranse Gioacchino da Fiore. Negli ultimi decenni del 1100 l’abate calabrese osò riconsiderare il ventesimo capitolo dell’Apocalisse in una nuova luce, riferendone l’annuncio allo stato sabatico dello Spirito in terra, la cui piena instaurazione riteneva imminente. Qui l’apocalittica mostra tutta la sua forza di rottura, la sua capacità di additare spazi inesplorati entro un orizzonte che Gioacchino presenta come ancora pienamente intramondano e intrastorico. Da allora la ripresa del millenarismo ha compiuto un lungo percorso, giungendo prima attraverso gli osservanti minoriti spagnoli in Messico e attraverso i gesuiti portoghesi (Vieira) in Brasile; poi, attraverso il puritanesimo inglese, fino al cosiddetto premillenarismo americano. Anche lungo questa via il ricordo di Gioacchino – trasfigurato, trasformato, alterato – ha goduto di enorme fortuna in età moderna e contemporanea. Ma questo suo annuncio sarebbe rimasto forse lettera morta se egli non avesse avuto un’altra idea geniale, rimettendo in moto l’interpretazione dell’undicesimo capitolo dell’Apocalisse, quello in cui si parla dei due testimoni martirizzati e uccisi dalla bestia. Anche su questo passo pesava una tradizione interpretativa molto antica, che nei due testimoni vedeva due personaggi biblici di cui abbiamo già fatto il nome, il patriarca Enoch e il profeta Elia, originariamente risalente all’Apocalisse di Elia (5.32), probabilmente uno scritto giudaico adattato da un autore cristiano, la cui redazione finale va riportata fra II e III secolo d.C.: si credeva che fossero stati rapiti da Dio, conservati in un mondo a parte e che di lì sarebbero stati rispediti a terra per contrastare senza successo il trionfo dell’Anticristo. Gioacchino fu di fatto il primo a intendere i due personaggi non come due singoli individui – 22 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 13-29, jul./dez. 2010 APOCALITTICA COME RETORICA... un’identificazione che non aveva fondamento biblico, e non conduceva da nessuna parte – ma come due soggetti collettivi, due ordini nuovi destinati ad agire nella storia e a diventare protagonisti degli attesi conflitti finali. Protagonisti nel senso di militanti e di martiri. Non è un caso che il suo messaggio sia stato fatto proprio dai nuovi ordini religiosi affermatisi nella Chiesa romana a partire dal secolo XIII, in primis dai frati minori (francescani) e dai frati predicatori (domenicani), che se ne avvalsero come se Gioacchino avesse profetizzato loro stessi (infinite metamorfosi della propaganda)! Con Gioacchino noi vediamo portati al massimo livello tutti gli aspetti che abbiamo finora via via cercato di mettere in luce. Egli è non solo lettore e interprete di testi apocalittici, ma apocalittico egli stesso (lega le sue più importanti acquisizioni teoriche a visioni o rivelazioni personali) e fautore di un movimentismo apocalittico che lo convinse a salire in una località impervia sulla Sila per prepararsi con pochi compagni agli eventi finali, all’assalto dell’Anticristo e alla successiva irruzione del tempo dello Spirito, la breve epoca sabatica di cui i nuovi ordini sarebbero stati i protagonisti. Prima che venga il millennio di pace e di libertà tanto attesa, gli eletti dovranno affrontare l’ultima tribolazione, quella dell’Anticristo. Disponendo le opere di Gioacchino lungo il suo percorso biografico, ci si rende conto della straordinaria duttilità con cui egli incessantemente trasforma, senza quasi darlo a vedere, la materia apocalittica che maneggia con impareggiabile abilità. Nelle sue opere più antiche, ancora segnate dal colossale scontro fra Papato e Impero, l’abate calabrese pare indicare, sempre con cautela e prudenza, l’Impero come il nemico principale da cui guardarsi. Poi però mette la sordina alla polemica nei confronti dell’Impero (spiegando anzi che la Chiesa deve passare attraverso la servitù nei confronti dell’Impero se vuole infine guadagnarsi una libertà più vera e profonda). Siamo ormai al tempo della caduta di Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 13-29, jul./dez. 2010 23 GIAN LUCA POTESTÀ Gerusalemme (1187) e dell’adesione del Barbarossa e dei principali sovrani d’Occidente all’appello papale alla Crociata. Gioacchino muta proprio allora quasi fulmineamente i propri bersagli polemici, e dà nomi nuovi ad alcune delle teste del drago dell’Apocalisse. In questo modo punta a drammatizzare il conflitto con l’Islam, o meglio ad avvertire il suo pubblico che è questa la vera e nuova frontiera dello scontro apocalittico. Visto in genere come un utopista lontano dalla realtà, Gioacchino fu sensibilissimo al mutevole scenario di politica ecclesiastica dell’Italia dell’ultimo quindicennio del secolo XII, cercando di fornire strategie di lunga lena alla Chiesa romana, proiettandone con perfetta scelta di tempo le vicende e le scelte (in parte fatte, in parte auspicate) sullo sfondo di uno scenario apocalittico in continuo movimento. Alla fine l’Anticristo sarà per lui un eretico sostenuto dall’Islam, destinato addirittura a salire sul trono di Pietro. Un aspetto fondamentale della propaganda apocalittica è la sua estrema malleabilità, legata come abbiamo detto all’oscurità costitutiva del linguaggio apocalittico e all’ambiguità dei possibili riferimenti. Di fatto predicatori, movimenti, sette, centri di informazione e disinformazione di matrice apocalittica continuano tuttora a dare stupefacenti prove della loro capacità di trasformare continuamente il proprio bersaglio. Manca ora il tempo per farlo, ma sarebbe interessante seguire i percorsi di alcuni predicatori apocalittici degli Stati Uniti dell’ultimo ventennio, delle disinvolte acrobazie in cui negli anni di Reagan pretesero di bollare l’Unione sovietica come l’Anticristo, salvo poi a indicare l’Anticristo in Saddam Hussein. In maniera analogamente disinvolta, gli Ebrei, già bollati per secoli come agenti dell’Anticristo, in quanto fautori della ricostruzione del Tempio di Gerusalemme in cui egli si insedierà come novello Antioco, nell’ultimo decennio sono stati pienamente recuperati come alleati nel conflitto apocalittico contro 24 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 13-29, jul./dez. 2010 APOCALITTICA COME RETORICA... l’Islam. Interessante in questo senso la recente unione di settori apocalittici cristiani con ambienti ebraici americani, in vista di un’alleanza a tempo contro il comune nemico islamico: alleanza a tempo, dico, perché proprio quegli apocalittici cristiani per gli Ebrei loro attuali alleati non vedono altro destino finale che la conversione al Messia Gesù di Nazareth. 4 Persecuzioni e martirio, violenza e vendetta divina I testi storico-apocalittici assolvono tanto più efficacemente alla loro funzione di propaganda, quanto più risultano capaci di inserire le vicende di un popolo, di una Chiesa, di un gruppo o movimento entro uno scenario che dia ragione delle persecuzioni e sofferenze subite inserendole in un quadro più ampio e mostrandone il carattere transitorio. Le apocalissi sono dunque testi consolatori nel senso più alto del termine: chi li legge è chiamato a pazientare, ovvero a resistere, sul modello dei martiri. Spingono in questo senso, oltre alla visione fortemente polarizzata di bene e male, l’enfasi posta sul presente come momento della scelta, la rappresentazione accelerata dello scorrere del tempo che manca e la pretesa di computarlo in vista della liberazione finale. D’altra parte, le apocalissi mirano a rinserrare le fila, a consolidare gli incerti, a motivare i dubbiosi, a rafforzare i deboli, a impedire l’abbandono delle antiche certezze e posizioni, in una parola: a fermare l’apostasia. Per ottenere questo, devono evitare l’insorgere di qualsiasi fenditura nel proprio corpo, sia esso ecclesiastico, sociale o politico. La forza dell’apocalittica non sta nella lucidità dell’analisi, ma nella capacità di mantenere unito un soggetto collettivo. Interpretando in riferimento a due ordini militanti il capitolo dell’Apocalisse relativo ai due testimoni destinati al martirio, Gioacchino prefigurava un lato terribilmente moderno dell’apocalittica: Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 13-29, jul./dez. 2010 25 GIAN LUCA POTESTÀ essa richiede schiere di martiri, e dà ragione del loro martirio. Tranquillizziamoci: si tratta certo di un martirio che non prevede altra morte che quella dei testimoni stessi, di martirio subito, che esclude assolutamente che sia inferto ad altri. E tuttavia, nelle rappresentazioni apocalittiche la violenza subita potrà essere riscattata solo da un intervento divino altrettanto violento contro le forze del male. Come si legge nell’Apocalisse di Giovanni, “quelli che non sono né caldi né freddi, i tiepidi, li vomiterò dalla bocca”. L’Apocalisse invoca tensione, passione, ma anche martirio, fuoco, zolfo, violenza. A ben vedere, nel nostro Occidente religioso e politico tutti questi elementi sono ampiamente mancanti nell’attuale dibattito ideale. Se c’è violenza, salvo casi eccezionali non la si pratica in nome e in forza di satanismi e/ o apocalitticismi. Se volessimo arrischiarci a definire in una battuta la condizione religiosa, politica e culturale dell’Europa di oggi, la definiremmo semmai di tiepido letargo nel suo desiderio di quiete e sicurezza. E chi da noi prenderebbe oggi sul serio in considerazione le parole della Prima Lettera di Paolo ai Tessalonicesi: «Quando infatti diranno: “Pace e sicurezza”, allora la distruzione li assalirà improvvisa come le doglie in una donna incinta, e non avranno scampo» (1 Ep. Thess. 5,1-3)? Gli apocalittici, con il loro carico ambiguo di minacce e di ricompense celesti, con le loro letture avvincenti quanto semplificatrici di processi storici che richiederebbero invece di essere considerati con strumenti critici capaci di restituircene le tonalità chiaroscurali, con il loro approccio ingenuo e fondamentalista sono invece ben presenti nelle culture religiose e nello stesso panorama cristiano extraeuropeo. Si tratta di fenomeni vastissimi, che in larga parte sfuggono allo sguardo frettoloso e marginale di chi, in Europa o in Italia, continua a credersi ancora al centro del mondo. Philip Jenkins ha scritto due libri molto interessanti al riguardo. Nel primo (The Next Christendom: The Rise 26 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 13-29, jul./dez. 2010 APOCALITTICA COME RETORICA... of Global Christianity, Oxford University Press, 2002, tradotto anche in portoghese) mostra che il cristianesimo è in espansione nel mondo, come l’Islam e più dell’Islam. Ma spiega anche che il cristianesimo che cresce, fuori dall’Europa, è soprattutto profetico, visionario, apocalittico. Rispetto ad esso, la Chiesa romana si trova in una posizione ben più marginale di quel che si potrebbe credere guardando le nostre televisioni. Soprattutto perché, come documenta il suo più recente The New Faces of Christianity: Believing the Bible in the Global South (Oxford University Press, 2006; trad. italiana: I nuovi volti del cristianesimo, Vita e pensiero, 2008), nei cristianesimi extraeuropei i testi biblici sono molto letti, generalmente secondo prospettive fondamentaliste: evitando cioè la fatica della mediazione interpretativa, nella convinzione che i testi siano applicabili in maniera diretta e immediata ai bisogni e alle urgenze dei lettori di oggi. Quelli apocalittici rappresentano una produzione prelibata per questi gusti e stili di lettura. Ci si accosta ad essi come se dovessero svelare un segreto: lungamente celato per noi, perché fosse infine comunicato proprio a noi. Se nell’Occidente europeo tutto appare tiepido e sonnolento, al di fuori dell’Europa le religioni e lo stesso cristianesimo paiono invece capaci di accendere nuovi entusiasmi e passioni. E non a caso lì le grandi Chiese storiche paiono in genere inadeguate al compito, teologico e pastorale insieme, di incanalare e orientare le nuove forme religiose entro orizzonti culturalmente non fondamentalisti. Per quanto riguarda in particolare il cattolicesimo, la condanna e lo sradicamento della teologia della liberazione, voluti dalla Chiesa romana per evitare l’infiltrazione marxista e respingere la politicizzazione della sfera religiosa, ha in realtà prosciugato uno spazio più ampio di criticità e di libertà di ricerca di nuovi linguaggi teologici e di nuove retoriche religiose, che era stato tentativamente aperto grazie all’incontro di alcuni Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 13-29, jul./dez. 2010 27 GIAN LUCA POTESTÀ teologi latinoamericani con la criticità della teologia e della cultura dell’Occidente europeo. Quello spazio non è stato per ora adeguatamente colmato. Fossimo davvero apocalittici, dovremmo chiederci se vi è ancora il tempo di farlo. Per approfondire: Su apocalissi, apocalittica e apocalitticismi dalle origini ai giorni nostri: G. L. Potestà, Escatologia, apocalittica, millenarismo, in Atlante del cristianesimo. Volume I, Dalle origini alle chiese contemporanee, Utet 2006, pp. 314-335. Per il conflitto interpretativo intorno al Libro di Daniele nei primi secoli del cristianesimo cfr. P.F. Beatrice, Pagans and Christians on the Book of Daniel, «Studia Patristica» 25 (1993), pp. 27-45. Per l’opera perduta di Porfirio, P. F. Beatrice, Le traité de Porphyre contre les Chrétiens. L’état de la question, «Kernos» 4 (1991), pp. 119-138. Il passo citato di J. Lataix sta in J. Lataix, Le Commentaire de Saint Jérôme sur Daniel, «Revue d’histoire et de littérature religieuses» 2 (1897), pp. 164-173 (165). Per le interpretazioni antiche del 666, a partire da Ireneo, cfr. L’Anticristo. Volume I. Il nemico dei tempi finali, a cura di G. L. Potestà e M. Rizzi, Fondazione Lorenzo Valla / Arnoldo Mondadori Editore 2005. Per l’apocalitticismo statunitense: P. Boyer, When Time Shall Be no More. Prophecy Belief in Modern American Culture, Harvard University Press 1992. R. C. Fuller, Naming the Antichrist. The History of an American Obsesssion, Oxford University Press 1995. Per la retorica dell’Anticristo nella Chiesa ortodossa russa nella fase attuale: M. Hagemeister, Das Dritte Rom gegen den Dritten Tempel – Der Antichrist im postsowjetischen Russland, in Der Antichrist. Zur Wirkungsgeschichte eines apokalyptischen Motivs in Judentum, Christentum und Islam, edd. 28 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 13-29, jul./dez. 2010 APOCALITTICA COME RETORICA... M. Delgado – V. Leppin, Academic Press Fribourg 2010 (in corso di stampa). Per il profilo e l’opera di Gioacchino da Fiore, G. L. Potestà, Il tempo dell’Apocalisse. Vita di Gioacchino da Fiore, Laterza, Roma-Bari 2004 (ed. spagnola: El tempo de l’Apocalipsis: Vida de Joaquin de Fiore, Trotta 2010). Per l’interpretazione gioachimita di Enoch ed Elia come due soggetti collettivi, ovvero due ordines della Chiesa, si veda L’Anticristo. Volume II. Il figlio della perdizione, a cura di G. L. Potestà e M. Rizzi, Fondazione Lorenzo Valla / Arnoldo Mondadori Editore (in corso di stampa). Per gli aggiornamenti via via apportati da Gioacchino al proprio quadro apocalittico in relazione al mutare delle contingenze politico-ecclesiastiche, G. L. Potestà, Apocalittica e politica in Gioacchino da Fiore, in Endzeiten. Eschatologie in den monotheistischen Weltreligionen, hrsg. von W. Brandes u. F. Schmieder, Walter de Gruyter, 2008, pp. 231-248. Su fondamentalismi a apocalitticismi negli Stati Uniti d’America dopo l’11 settembre 2001: V. Schwediauer, Der Kreuzzug im Irak. Christian Right und Neokonservatismus als symbiotische Herrschaftsideologien für den US-Krieg im Irak, Peter Lang 2006 (con ampia bibliografia). Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 13-29, jul./dez. 2010 29 A FUNDAMENTAÇÃO SOCIOLÓGICA DA TEORIA SOBRE... A FUNDAMENTAÇÃO SOCIOLÓGICA DA TEORIA SOBRE A POBREZA DOS ESPIRITUAIS EM PEDRO DE JOÃO OLIVI. O. MIN. (1274/1248-1298) Johannes Karl Schlageter OFM, Fulda1 1 O abismo social entre pobres e ricos em Olivi, visto a partir do ponto de vista sociológico? Com a questão de uma fundamentação supostamente sociológica de sua teoria espiritual sobre a pobreza, o franciscano medieval Pedro de João Olivi não deverá ser enquadrado na história da sociologia moderna. O que o separa dessa forma moderna de ciência social, desenvolvida apenas a partir do século XIX, não é apenas o espaço de tempo de mais ou menos 600 anos. Olivi compreendia a si mesmo primaria e essencialmente como um teólogo cristão, que queria servir sobretudo à sua Ordem, na época ainda jovem, como mestre de teologia e espiritual2. Nesse contexto, Olivi colocava a mensagem bíblica O autor Johannes Karl Schlageter OFM: Nasceu em 1937, Franciscano desde 1957; Concluiu Doutoramento em teologia em Munique em 1970; professor universitário dos franciscanos e capuchinhos em Munique de 1970 a 1986; exerceu funções no âmbito da formação na província da Turíngia e editou textos de Olivi 1986-2003; desde então vem realizando trabalhos sobre a história da província e da ordem. Tradução de Enio P. Giachini. 1 Em relação à forma de pensar e à importância social, cf. sobretudo as contribuições em: BOURREAU, Alain; PIRON, Sylvain (eds.). Pierre de Jean Olivi (1248-1298). Pensée scolastique, Dissidence spirituelle et Societé. Actes du colloque de Narbonne mars 1998. Paris, 1999 (Études de philosophie médiévale, 79). 2 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 31-63, jul./dez. 2010 31 JOHANNES KARL SCHLAGETER no ponto nuclear de seu pensamento; isso porque eram precisamente os textos bíblicos que deviam ser explicitados, interpretados e colocados em aberto em sua força de atuação prática. Por isso, a maior parte das obras de Olivi foi dedicada à explicitação teológica e à interpretação espiritual de escritos bíblicos, tendo em vista sempre seu significado prático para seu tempo3. Assim, os fenômenos e problemas sociais não poderiam passar despercebidos para ele, uma vez que, à época, eles tinham uma forte influência sobre a efetivação prática da mensagem bíblica, especialmente na Igreja e na Ordem4. Abordando aquelas questões que ele trabalhou escolasticamente como sendo as bases da vida da ordem, Olivi pesquisou, já bem cedo, a prática de vida de sua própria Ordem franciscana na sociedade de então. Nessas questões que mais tarde foram compiladas sob o título Questiones de perfectione evangélica (Questões sobre a perfeição evangélica), as questões voltaCf. de modo especial, VIAN, Paolo. L‘Opera esegetica di Pietro di Giovanni Olivi. In: Pietro di Giovanni Olivi, Opera edita et inedita. Atti delle Giornate di Studio Grottaferrata (Roma) 4 – 5 Dicembre 1997. Ed. ARCHIVUM FRANCISCANUM HISTORICUM – COLLEGIO S. BONAVENTURA. Grottaferrata (Roma) 1999, p. 395-454. 3 Cf. especialmente BURR, David. Apokalyptische Erwartung und die Entstehung der Usus-pauper-Kontroverse; SCHLAGETER, Johannes. Die Entwicklung der Kirchenkritik des Petrus Johannis Olivi von der „Quaestio de altissima paupertate“ bis zur „Lectura super Apocalypsim“; FLOOD, David. Politik und Theorie im Franziskanerorden am Ende des 13. Jahrhunderts. In: Wissenschaft und Weisheit [WiWei] 47 (1984) 84-99; 100-131; 140-163; PIRON, Sylvain. Parcours d`un intellectuel franciscain. D`une théologie vers une pensée sociale. Paris, 1999. Mas Olivi não se restringia aos fatores sociais que codeterminam a efetivação da mensagem bíblica. O aspecto da alma e do espírito de uma decisão a favor da mensagem bíblica, sobretudo do Evangelho de Jesus Cristo, ocupava o centro de seus interesses e cunhou sua imagem de homem e de liberdade humana de decisão. Cf. SCHLAGETER, Johannes. Die Auseinandersetzung zwischen griechischem und biblischem Menschenbild im franziskanischen Freiheitsverständnis des Petrus Johannis Olivi. In: WiWei 60 (1997) 65-86; SCHMUCKI, Albert. Selbstbesitz und Hingabe. Die Freiheitstheologie des Petrus Johannis Olivi im Dialog mit dem modernen Freiheitsverständnis Mönchengladbach, 2009 (Veröffentlichungen der Johannes-Duns-Scotus-Akademie für franziskanische Geistesgeschichte und Spiritualität, 27). 4 32 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 31-63, jul./dez. 2010 A FUNDAMENTAÇÃO SOCIOLÓGICA DA TEORIA SOBRE... das a um ser-pobre no sentido do Evangelho de Jesus Cristo, tinham uma grande importância, mas ao mesmo tempo uma importância controversa, tanto dentro quanto fora da Ordem5. Isso porque a realidade social na Igreja da época havia se afastado muito do ser-pobre de Jesus e de seus primitivos companheiros de caminho, como vem testemunhado nos escritos do Novo Testamento. É verdade que Francisco de Assis comprometera renovadamente a Ordem franciscana com o ser-pobre de Jesus Cristo, compreendido como “pobreza suprema” e imagem diretriz de todo caminho de Jesus6. Mas a realidade social da Ordem quase não mais correspondia à finalidade firmada originariamente. Foi contra essa discrepância que Olivi investiu, com especial ardor, em suas discussões sobre a “pobreza suprema” em conformidade com o Evangelho. Na discussão teorético-escolástica sobre a compreensão franciscana da pobreza, Pedro de João Olivi, seguiu quiçá amplamente seus predecessores franciscanos, tais como Boaventura de Bagnoregio e João Peckham. Olivi, porém, queria orientar essas discussões teóricas marcadamente na realidade social de pessoas pobres, a fim de que, frente ao abismo social entre pobres e ricos, a compreensão teórica da pobreza dentro da Ordem pudesse estar conectada com a situação e autocompreensão dos pobres. Isso fundamenta o modo de ser próprio da teoria da pobreza de Olivi; isso porque, diversamenCf. SCHLAGETER, Johannes. Armutsstreit. In: Lexikon für Theologie und Kirche. 3. ed. [LThK³]. Vol. 1, Freiburg/Basel/Rom/Wien, 1993, 1014s. 5 Cf. ESSER, Cajetan. Die Armutsauffassung des hl. Franziskus. In: FLOOD, David (ed.). Poverty in the Middle Ages. Werl/Westf. 1975, p. 60-70 (Franziskanische Forschungen. 27); SCHLAGETER, Johannes. Wurde die Armutsauffassung des Franziskus von Assisi von der „offiziellen“ Kirche schließlich abgelehnt? Francisci Armutsverständnis und der Streit über „dominium Christi“ und „paupertas Christi“ unter Papst Johannes XXII. (1316-1334). In: Franziskanische Studien 60 (1978) p. 97-119. Sobre a realidade e a compreensão da pobreza na Idade Média, cf. sobretudo LINGREN, Uta. Armut I. Soziologie; SCHLAGETER, Johannes: Armut II. Theologie. In: Lexikon des Mittelalters [LMA], vol. 1. München/Zürich, 1980, p. 984-986; 986-987. 6 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 31-63, jul./dez. 2010 33 JOHANNES KARL SCHLAGETER te de seus predecessores, ele entrou na abordagem de fenômenos e problemas sociais que marcaram o ser-pobre de pessoas pobres e que tinha algo a ver com o abismo social entre pobres e ricos. E uma vez que ali surgem impostações de problemas, análises, tentativas de compreensão e discussões crítico-teóricas que lembram as diversas formas da sociologia moderna, permito-me expor um discurso que intenta uma fundamentação sociológica da teoria da pobreza de Olivi; isso porque, do mesmo modo que as diversas correntes da sociologia moderna problematizam, analisam, interpretam ou criticam procurando compreender os nexos sociológicos7, assim também Olivi procurou problematizar, analisar, interpretar e criticar o abismo entre pobres e ricos que ele já conhecia a partir da Bíblia. A partir dali ele chegou a sua teoria da pobreza, ligando-a com uma interpretação “espiritual” da história. Essa teoria se apoiava, propriamente, na visão futurista de uma nova era do Espírito Santo, ao modo como foi desenvolvida pelo abade cisterciense Joaquim de Fiore (circa 1135-1203)8. Foi isso que cunhou de maneira especial a teoria da pobreza de Olivi, a qual pode ser compreendida por isso como teoria espiritual da pobreza. 2 O abismo social em seus efeitos Se a fala de um abismo social entre pobres e ricos corresponde propriamente falando à realidade social, isso é coisa que precisa ser uma vez fundamentado. No próprio Olivi não encontramos esse modo de falar de maneira expressa, embora, para ele, muitas palavras e imagens bíblicas apontem para uma separação, quase que insuperável, entre pobres e ricos. Assim, ele lê no Eclesiástico: “Por acaso a hiena vive Cf. para isso, a descrição dos diversos métodos da sociologia moderna em: HELLE, Horst Jürgen. Soziologie. I. Disziplin. In: LThK³ 9, p. 799-801. 7 8 Cf. SPEER, Andréas. Joachim vom Fiore. In: LThK3 5, p. 854s. 34 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 31-63, jul./dez. 2010 A FUNDAMENTAÇÃO SOCIOLÓGICA DA TEORIA SOBRE... em paz com o cachorro / e o rico em paz com o pobre? A presa do leão é o asno selvagem no deserto; assim os pequenos são o pasto dos ricos. A humildade é um tormento para o orgulhoso,/ um tormento para o rico é o pobre”9. Por fim, na história edificante tirada do Evangelho de Lucas, que conta sobre um homem rico e o pobre Lázaro10, a contraposição entre um pobre e um rico, no além se transforma “num abismo profundo e insuplantável”11. Aquele afastamento e indiferença pelos quais o rico, em seu gozo de vida, não tomava conhecimento do necessitado frente à sua porta, e não pôde ajudá-lo, acaba agora excluindo-o para sempre daquela proteção que consola o pobre Lázaro no seio de Abraão, retirando-o da miséria sofrida. Uma tal visão do abismo que separa pobres e ricos parece intensificada e capaz de chamar para a conversão apenas na medida em que os ricos, num falso caminho de busca de si-mesmos, aqui no aquém, se fecham totalmente para a necessidade dos pobres. Essas palavras e imagens da Bíblia, comentadas muitas vezes por Olivi, parecem não ter muito a ver com a realidade social de muitas pessoas. É possível ver tal realidade na medida em que, numa sociedade, não se consegue ver essa nefasta contraposição entre pobres e ricos, mas antes se supõe haver passagens graduais e transponíveis da camada ínfima dos pobres para a camada superior dos ricos e super-ricos. Por isso, diversamente do que em Olivi, são problematizadas palavras e imagens bíblicas da contraposição Cf. Eclo 13,18s. Cf. para isso, SCHLAGETER, Johannes (Ed.). Das Heil der Armen und das Verderben der Reichen. Petrus Johannis Olivi – Die Frage nach der höchsten Armut. Werl/Westfalen 1989, p. 86 (Franziskanische Forschungen, 34). Die „Quaestio de perfectione evangelica octava: De altissima paupertate“, publicada e comentada ali, é o texto diretriz da teoria oliviana de pobreza. 9 Cf. Lc 16,19-31. Cf. para isso, PETRUS IOHANNIS OLIVI: Lectura super Lucam et Lectura super Marcum. Critice editae a Fortunato IOZZELLI. Grottaferrata (Roma) 2010, p. 521-540 (Collectio Oliviana, 5). 10 11 Lc 16,26; cf. SCHLAGETER, Das Heil, 97. Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 31-63, jul./dez. 2010 35 JOHANNES KARL SCHLAGETER entre pobres e ricos, porque muitas pessoas em nossa época acreditam ter alcançado outro ocular em relação à realidade social. Mas também Olivi não se contentou em interpretar e decifrar palavras e imagens bíblicas. Ele problematizou e analisou a realidade social de sua época, lançando mão de percepções que evidenciavam, de certo modo sociologicamente, um abismo profundo entre pobres e ricos. Escreveu então de forma fundamental: “Imagina-se que os incapazes (Vermögenslosen) nada podem temporalmente nas coisas e consequentemente nada podem junto às pessoas, nem para si nem para os outros, e não se imagina que detenham poder, correspondentemente ao mundo, de fazer o bem a alguém, de impingir prejuízos a alguém, e o que é pior, são considerados como total e absolutamente incapazes de se defenderem contra acusações de ricos e poderosos”12. Olivi referia-se à observação e à opinião cotidiana em seu tempo e mundo. Àqueles que, como pé-rapados (Habenichtse), não tinham poder, não se atribuía nenhum poder e nenhuma faculdade, tanto no âmbito das coisas, na realidade material, portanto, quanto no âmbito pessoal e social, portanto no universo humano e na realidade. Bem outra era a situação junto aos ricos: “reputava-se que os ricos e poderosos, ao contrário, tudo poderiam fazer, tanto a si mesmos quanto aos outros, tanto fazendo o bem quanto impingindo danos. [...] Por isso, os ricos não só gozam de grande reputação mas são também adulados subservientemente e honrados”13. Todavia, Olivi não avalia de imediato o que ele próprio descreve como uma percepção e Cf. SCHLAGETER, Das Heil, 86: „inopes nihil reputantur temporaliter posse in rebus ac per consequens nec in hominibus nec sibi nec aliis, nec reputantur secundum mundum habere potestatem bene faciendi alicui aut aliquem damnificandi, et quod plus est, omnino reputantur impotentes ad defendendum se a calumniis divitum et potentum.“ 12 Ebd.: „divites et pecuniosi reputantur per contraria omnia posse tam sibi quam aliis tam in benefaciendo quam in damnificando. […] Unde divites non solum ab aliis plurimum reputantur, sed etiam valde adulatorie subserviuntur et honorantur.“ 13 36 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 31-63, jul./dez. 2010 A FUNDAMENTAÇÃO SOCIOLÓGICA DA TEORIA SOBRE... opinião geral e cotidiana. Todavia, ele deixou claro que essa observação e opinião geral só é correta na medida em que as pessoas admitem como válidos apenas valores temporais e poder mundano. Mas, para ele, esse era o padrão de medida de sua época, com predomínio quase que genérico, segundo o qual riqueza e poder, de um lado, e pobreza e impotência do outro eram considerados de certo modo como idênticos, fazendo surgir assim, em sua plena atualidade, o abismo social entre pobres e ricos. Isso porque o que separa pobres e ricos tem a ver, é verdade, com a constituição econômica de uma sociedade; mas é só a percepção e opinião generalizada que transforma os ricos em todopoderosos e os pobres em inúteis, uma vez que esse modo de ver olha apenas para as possibilidades e habilidades temporais e terrenas. Isso pode ser uma visão grosseira e questionável da realidade social. Todavia, na época de Olivi determinava a ordem social de forma decisiva, permanecendo até os dias de hoje seus efeitos. Também em sociedades mais igualitárias é comum ouvirmos a expressão: “Se tens algo, és algo”. Nesse sentido, o abismo, testemunhado na Bíblia e descrito por Olivi, entre pobres e ricos, mesmo na percepção em vigor dentro de nossa sociedade, e sobretudo na realidade social de nosso mundo dividido, parece ainda não estar superado. Para Olivi, isso vem ligado com a estrutura sensório-geral da percepção humana: imagina-se que eles (os pobres) não possuem ornato esplêndido e pomposo e a cortesia de companhias do mundo – como aparece no aparato esplêndido das vestes, dos vasos, e outros acessórios, de bandejas, de palácios, de cavalos e cavaleiros, de séquitos, núncios e servos. Mas esse aparato é avaliado como admirável pelos sentidos humanos e pelas afeições sensíveis, de tal modo que reflete como reverenciável, agradável e admirável também uma pessoa deformada e de costumes vis. O contrário disso tudo pode transformar também os que são ornados pela ética e os hábeis de corpo em desprezíveis e abomináveis. [...] Assim, do mesmo modo que o pobre aparece no modo de ver dos outros como impotente e Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 31-63, jul./dez. 2010 37 JOHANNES KARL SCHLAGETER desprezível, o próprio pobre aparece para si mesmo intimamente como ainda mais impotente e desprezível. Isso porque sente a si mesmo mais intimamente como impotente para tudo aquilo que não consegue fazer sem o auxílio das posses temporais. Sente a si mesmo também mais íntima e constantemente destituído de todo ornato, pompa e séquito (comitatus). Também percebe claramente que na visão de todos aqueles que estimam essas coisas, é quase nada. [...] Por isso, a não-posse é a melhor oportunidade para experimentar-se como alguém que nada é, tanto em sua existência quanto em sua aparência14. Portanto, aquilo que alguém pode gerar para si mesmo em dispêndio e pompa, na percepção sensorial, em vista dos homens, que assim avaliam as coisas, irá ter para ele um reconhecimento social tão alto que já nada terá a ver com suas qualidades pessoais físicas e morais. Mas aquele que não pode dispor para si desse dispêndio e pompa dificilmente encontrará o reconhecimento social que mereceria em virtude de suas qualidades pessoais. Segundo Olivi, nos pobres, esse menosprezo e depreciação sensório-exterior, essa negativa de reconhecimento social são internalizados. Isso porque os próprios pobres se apropriam amplamente daquela percepção e avaliação sensorial que se define pelas exterioridades, pelo dispêndio e pompa externos. Segundo Olivi, isso leva a que os pobres não só em sua aparência externa e em Ebd. 86s: „Cernuntur enim non habere splendidum et pomposum ornatum et comitatum mundi – qualis apparet in splendido apparatu vestium, vasorum et aliorum supellectilium, ferculorum, palatiorum, equorum et equitum, sociorum et nuntiorum et ministrorum. Hic autem apparatus miro modo reputatur ab humanis sensibus et a sensualibus affectibus, ita quod hominem etiam deformem et moribus vilem reddunt reverendum, gratum et admirabilem. Contraria vero praedictis reddunt etiam moribus ornatos et corpore aptos abiectos et viles. […] Sicut autem in aspectu aliorum pauper apparet impotens et abiectus, sic ipsemet pauper sibimetipsi apparet multo magis intime impotens et abiectus. Sentit enim intime omnino se impotentem ad omne illud, ad quod sine adiutorio temporalium facultatum perveniri non potest. Sentit etiam intime et continue omni ornatu, pompa et comitatu se destitutum. Cernit etiam clare in aspectu omnium talia appretiantium se fere nullum. […] Unde inopia summa est occasio sentiendi se esse nihil tam secundum existentiam quam secundum apparentiam.“ 14 38 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 31-63, jul./dez. 2010 A FUNDAMENTAÇÃO SOCIOLÓGICA DA TEORIA SOBRE... seu reconhecimento social, mas internamente em sua própria existência, se sintam quase como um nada. Esse autodesprezo dos pobres que alcança até o mais íntimo era para Olivi a última consequência do abismo social entre pobres e ricos. Isso nem sempre pode ser visto de forma assim tão nítida na realidade social. Todavia, até os dias de hoje, pessoas, por exemplo, que não têm trabalho e só conseguem sobreviver com o auxílio dos outros, são atingidos por um tal menosprezo social e por tal autodepreciação, como se fossem supostamente associais. Se Olivi vê isso em sua concepção como oportunidade e chance para que, nesse menosprezo e autodepreciação social, os pobres encontrem a via para a virtude da humildade cristã, então até hoje não haverá muitos pobres que queiram segui-lo. Em sua época e em seu mundo isso pode ter sido diferente, porque ali, apesar de tudo, os valores cristãos estavam em alta, e foram revivificados na convocação para a conversão e a renovação de vida não apenas do ponto de vista franciscano. Era isso que compunha o plano de fundo daquela esperança bíblicocristã, para dentro da qual Olivi fez desembocar definitivamente sua análise do abismo social entre pobres e ricos. 3 O abismo social em sua origem O próprio Olivi percebeu que o Ascenso para a humildade na descoberta dos valores cristãos e da esperança cristã não é autoevidente. Mas, segundo ele, isso se aplicava sobretudo aos ricos e mesmo para aqueles que, nas igrejas e comunidades cristãs, têm acesso ao poder e à riqueza: “Naqueles que possuem um bem comum, mesmo não sendo próprio, não falta o poder e os aparatos, a partir de cuja falta, segundo se fundamentou acima, pode nascer a humildade. Ao contrário, hoje, os que em sua maioria possuem abundância de poder, de aparatos e fama são mais aqueles que ostentam os bens comuns de igrejas e mosteiros do que aqueles que os têm como próprios. E vemos surgir quase Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 31-63, jul./dez. 2010 39 JOHANNES KARL SCHLAGETER mais ambições e presunções daqueles do que destes”15. Essa visão crítica de Olivi em relação às Igrejas e monastérios de sua época via suas posses comuns sob a insígnia do poder e da riqueza. Assim, segundo ele, as pessoas que mantinham essa posse comum sob suas mãos quase não tinham motivos e chance para a humildade, mas antes para a ambição e a arrogância, quase mais do que outros ricos. O abismo social entre pobres e ricos, portanto, não foi superado pela posse comum das igrejas e monastérios. Segundo uma visão crítica difundida (videmus – vejamos), aqui quase mais que noutros lugares, ele aparece em sua corruptibilidade nefasta. Foi precisamente essa visão crítica que fez com que Olivi buscasse questionar a respeito da origem desse abismo social. E ele acreditava encontrar uma resposta, uma vez que precisamente os bens comuns das igrejas e dos monastérios tinham em vista originariamente uma comunalidade, fundamentada, filosófica e biblicamente, no trato com os bens terrenos, que a Igreja abandonou injustamente. Uma palavra apócrifa, atribuída ao bispo romano Clemente I e que encontrou um meio de permanecer até o direito eclesiástico da Idade Média, aponta para a filosofia platônica: “o uso comum de tudo que está neste mundo deveria pertencer a todas as pessoas. Mas por causa da iniquidade um diz que isso é o seu e o outro que aquele é o seu. E assim surgiu a divisão entre os mortais”16. Ademais, atesta-se a Ebd. 89: „Non enim in habentibus communia, etsi non propria, est omnis defectus potestatis et apparatus ex quo secundum primam rationem surgere potest humilitas, immo utplurimum plus hodie abundant in potestate et apparatu et gloria ex eis surgente qui tenent communia ecclesiarum et monasteriorum quam habentes propria; et maiores ambitiones et praesumptiones ex eis fere surgere videmus quam ex aliis.“ 15 Citado em op. cit. 98 nota 19. Cf. [PSEUDO-CLEMENS:] Recognitiones lib. 10 nr. 5. In: Die Griechischen Christlichen Schriftsteller der ersten drei Jahrhunderte, vol. 51, 327. Cf. especialmente Corpus Iuris Canonici, C 12 q 1 c 2 § 1. In: Ed. Emil FRIEDBERG, Leipzig ²1879, Pars I, 676: „Communis usus omnium, que sunt in hoc mundo, omnibus hominibus esse debuit, sed per iniquitatem alius hoc dixit esse suum, et alius istud. Et sic inter mortales facta est divisio“. O próprio Olivi refere-se a esse texto do Corpus Iuris Canonici. 16 40 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 31-63, jul./dez. 2010 A FUNDAMENTAÇÃO SOCIOLÓGICA DA TEORIA SOBRE... origem platônica desse pensamento: “Sobre isso um grande sábio dentre os gregos, que sabia disso, disse que todos os bens deveriam ser comuns dos amigos”17. Mas os bens comuns das Igrejas e monastérios já não mais correspondem a esse modelo de um uso comum de todos no mundo: “Ele não disse que o uso comum deveria pertencer a esse ou àquele colégio, mas a todos os homens em comum. Assim seria, então, no estado de inocência”18. Essa possibilidade paradisíaca de evitar toda partição dos bens e assim superar o abismo entre pobres e ricos, foi aniquilada através da queda original e através da iniquidade dos homens. Para Olivi, porém, essa oportunidade originária tornouse no modelo permanente de comunidade de bens. Ali, pareceu-lhe modelar sobretudo a imagem da comunidade originária de Jerusalém, como foi apresentada na história dos Atos dos apóstolos. Em virtude de uma decisão livre, definida pela força do amor, surgiu entre os cristãos primitivos uma comunidade na qual tudo pertencia a todos: “A comunidade dos fieis era um só coração e uma só alma. Ninguém considerava sua propriedade o que possuía. Tudo entre eles era comum. Com grande força os apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus e todos os fieis gozavam de grande estima. Não havia entre eles indigentes. Os proprietários de campos ou casas vendiam e iam depositar o preço do vendido aos pés dos apóstolos. Repartia-se então a cada um segundo a sua necessidade” (At 4,32-35). Olivi compreendia essa imagem ideal no sentido de um modelo originário paradisíaco de uma comunidade universal de todos os homens: “correspondentemente a essa imagem pode-se admitir uma comunidade [...] da qual a história dos Atos dos apóstolos diz que “tinham tudo em comum”. Mas se quisessem reivindicar algum direito sobre Citado por SCHLAGETER, Das Heil 99 Anm. 20. cf. Corpus Iuris Canonici, C 12 q 1 c 2 § 2. In: Ed. FRIEDBERG I, 676: „Denique Grecorum quidam sapientissimus, hec ita esse sciens, communia debere, ait, esse amicorum omnia“. 17 SCHLAGETER, Das Heil 98: „non dixit quod communis usus debuerit esse isti vel illi collegio, sed omnibus hominibus generaliter. Sic enim fuisset in statu innocentiae“. 18 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 31-63, jul./dez. 2010 41 JOHANNES KARL SCHLAGETER aqueles bens comuns, como fazem hoje os membros dos colégios eclesiásticos e monásticos, não se poderia afirmar com pleno sentido que “eram um só coração e uma só alma”19. Mais tarde, Olivi pôde fundamentar mais em detalhes essa imagem ideal da originária comunidade de Jerusalém em uma interpretação expressamente franciscana20. Todavia, o que lhe interessa aqui é apenas arrolar essa imagem ideal frente a um abismo social mesmo em comunidades eclesiais e monásticas: Mas hoje, seguramente, luta colégio contra colégio, pois reivindicam algum direito sobre seus bens comuns, uma vez que ali não há aquela comunidade universal que se estende a todos os homens. Assim, o que pertence a um colégio não pertence a outro. Há também uma experiência infame que ensina quantos processos e intrigas há, quanta inveja e contendas por prendas entre os detentores e os que as pleiteiam. Isso não se daria se ali não houvesse reivindicação de direito, pelo menos no que diz respeito à partição, ou se não houvesse apropriação, pelo menos em relação ao necessário sustento. [...] Abreviando: se não extirparmos totalmente do coração do homem o amor à jurisdição temporal e às coisas temporais, não poderá haver qualquer comunidade destituída do predito mal21. Id. loc. cit. 99: „secundum hunc modum est accipienda communitas, […] de qua et in Actibus dictum est ‘erant illis omnia communia´. Si enim aliquid iuris vellent sibi in illis communibus, sicut faciunt hodie membra collegiorum ecclesiasticorum et monasticorum, non plenarie dici posset Actuum IVo. quod ‘erat illis cor unum et anima una´“ (Cf. At 4,32). 19 Cf. SCHLAGETER, Das Heil, 178s. Cf. especialmente PETER OF JOHN OLIVI: On the Acts of the Apostles, Edited by David FLOOD. St. Bonaventure, New York, 2001, 9094; 124-137. 20 Id. loc. cit.: „Certum est autem quod collegium hodie pugnat contra collegium, quia aliquid iuris sibi vendicant in suis communibus et quia non est ibi communitas illa generalis quae est ad omnes homines. Unde quod est unius collegii, non est alterius. Praebendati etiam et praebendandi quot causas et litigia, quod invidias et contentiones pro praebendis inter se habeant, celebris experientia docet; quod non esset, si nulla esset ibi iurisdictio saltem ad dispensandum aut si nulla appropriatio saltem quantum ad necessarium sustentamentum. […] Et breviter: nisi totaliter tollatur amor iurisdictionis temporalis et temporalium a cordibus hominum, non potest esse aliqua communitas sine praedictis malis.“ 21 42 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 31-63, jul./dez. 2010 A FUNDAMENTAÇÃO SOCIOLÓGICA DA TEORIA SOBRE... Assim, segundo Olivi, aquilo que os próprios embates e afrontamentos sociais fizeram surgir nas comunidades eclesiais e monásticas foi o amor a bens terrenos e temporais, que provocou as mais diversas reivindicações de direito, dos quais de um modo ou de outro se quereria se apropriar. O próprio Olivi já deixara claro que ali não estava em questão partilha justa ou o necessário sustento para a vida, mas na maioria das vezes poder e riqueza, pompa e luxo para alguns poucos22. Isso porque o amor aos bens temporais do qual fala Olivi aqui, para ele, era idêntico com o pecado originário da cobiça, que coloca o elemento tereno-temporal, como ídolo, no lugar de Deus e da plenitude eterna prometida por ele. Aqui não vamos aprofundar mais esse plano de fundo teológico da crítica social de Olivi. Isso porque para uma fundamentação sociológica da teoria espiritual da pobreza oliviana basta de início chamar a atenção para seus princípios de uma teoria crítica da sociedade. Baseado na figura de uma comunidade de todos os bens e de todos os homens, universalmente unida, fundamentada em Platão e na Bíblia mas por ele desenvolvida e ampliada, Olivi submeteu a sociedade vigente de sua época, adentrando inclusive nas Igrejas e Ordens, a uma dura crítica; isso porque, para ele, a origem da divisão social entre os homens e o surgimento do abismo entre pobres e ricos jaz no coração do homem, que está possuído por um amor distorcido ao terreno-temporal. 4 A realização espiritual de uma sociedade universal unida Como será possível realizar uma sociedade, universalmente unida, de todos os bens e de todos os homens, frente a uma história da hu- 22 Cf. nota 14. Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 31-63, jul./dez. 2010 43 JOHANNES KARL SCHLAGETER manidade determinada pelo pecado? Nessa questão, entre outros, Olivi levou a sério um argumento crítico tirado de Aristóteles contra a concepção platônica da comunidade dos bens: Aristóteles demonstra na política: Se tudo fosse comum, haveria no mundo desordens e dissensões infinitas. Seria impossível aos homens, cheios de várias cupidez e corrupção, entrarem em acordo na distribuição e aceitação de coisas comuns e se portarem ordenadamente, maximamente quando às vezes, mais precisam aqueles que menos servem à comunidade, e de outros que se dedicam a tarefas mais nobres do que as tarefas da agricultura e do que outras pelas quais se adquirem diretamente as coisas temporais. Também seria difícil encontrar pessoas que se preocupassem cuidadosamente da agricultura e de outras coisas necessárias ao sustento da vida; pois ninguém cuida tão bem do comum como cuida do próprio, sobretudo quando se considera esse cuidado menos nobre. Da distribuição diversificada de tarefas mais e menos nobres iria surgir também inevitavelmente inveja, contendas e discórdias; assim como da outra distribuição de coisas feita respectivamente de acordo com o status e a tarefa e segundo o que exigem a necessidade e a indigência. Isso aconteceria mais do que quando nem tudo fosse comum; pois em virtude dessas comunalidades todos se sentiriam iguais em tudo. Se agora se multiplicam os enganos, o roubo e o latrocínio, então seria pior; pois alguém deseja mais facilmente alguma coisa onde tem alguma parte, como um homem que tem parte nas coisas comuns, do que alguém que nada tem, como um homem que nada tem em coisas que são próprias dos outros. Em coisas que se guarda com menos cuidado poderia ocorrer mais engano e latrocínio do que nas coisas que se guarda com cuidado. Mas qualquer um cuida de modo mais dedicado e mais cuidadoso do próprio do que do comum. Na distribuição do comum também poderia facilmente multiplicar-se as preferências pessoais, por exemplo, aqueles que presidem as distribuições poderiam dar mais aos amigos do que aos outros. Poderiam facilmente multiplicar-se então as ficções e simulações de várias necessidades. É portanto melhor e mais propício para a 44 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 31-63, jul./dez. 2010 A FUNDAMENTAÇÃO SOCIOLÓGICA DA TEORIA SOBRE... totalidade dos homens e para o bem comum que as coisas sejam próprias, do que se fossem comuns23. Enquanto resume a fundamentação aristotélica tradicional da propriedade privada, atualizando-a no sentido da sociedade feudal e seu status social, Olivi faz referência àqueles perigos que ameaçavam uma comunidade de bens através da ambição e corrupção humanas. Se já a fundamentação aristotélica de propriedade privada fora talhada de acordo com a antiga sociedade patriarcal escravocrata e sua regulamentação problemática, a argumentação, como foi referida por Olivi, pressupõe Cf. SCHLAGETER, Das Heil, 74f: „Aristoteles probat in Politicis quod si omnia essent communia, infinitae essent in mundo deordinationes et dissensiones. Impossibile enim esset homines cupiditatibus variis et corruptionibus plenos in distributione et acceptione rerum communium concordare et ordinate se habere, maxime cum aliquando pluribus indigerent qui minus communitati prodessent, et plus illi qui vacarent officiis nobilioribus quam sint officia agriculturae et quaecumque alia quibus temporalia directe acquiruntur. Difficile etiam esset invenire qui de agricultura et de aliis ad victum necessariis curam diligentem haberent, quia nullus ita curat de communibus sicut de propriis, et maxime quando cura huiusmodi ignobilis aestimatur. Ex distributione etiam varia officiorum nobiliorum et ignobilium necessario orirentur invidiae, lites et discordiae; sicut et ex alia distributione rerum facta secundum decentiam status et officiorum et secundum exigentiam necessitatum et indigentiarum, et magis quam si omnia non essent communia, quia ratione talis communitatis magis reputarent se omnes in omnibus pares. Si etiam nunc multiplicantur fraudes et rapinae et furta, multo magis hoc fieret tunc, quia facilius quis concupiscit id in quo aliquid habet, sicut habet homo in rebus communibus, quam id in quo nihil habet, sicut homo nihil habet in rebus aliorum propriis. In rebus etiam minus diligenter custoditis facilius possent fraudes et furta committi quam in diligenter custoditis. Fortius autem et diligentius custodit quilibet propria quam communia. In distributionibus etiam communium facilius possent multiplicari acceptationes personarum, utpote quod qui praeessent distribuendis, plus darent amicis quam aliis. Multiplicarentur etiam tunc de facili fictiones et simulationes variarum necessitatum. Ergo melius et expedientius est universitati hominum et bono communi quod res sint propriae, quam si essent communes.“ Cf. ARISTOTELES: Politica lib. 2 cap. 2-4. In: Opera (cum Averrois Commentariis), Tomus III. Venetiis 1562 Nachdruck Frankfurt / Main 1962, 234b-238a; Opera, Edition der ‚Academia Borussica’ von Immanuel BECKER / Otto GIGON, Bd. 2. Berlin ²1979, 1262b-1267b. 23 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 31-63, jul./dez. 2010 45 JOHANNES KARL SCHLAGETER a ordenação de uma sociedade feudal e de classes que nem sequer conhecia fundamentalmente e do ponto de vista da base da lei uma igualdade de direitos e oportunidades. Em sua crítica desse argumento escreveu então Olivi: Tudo isso que se toca nesse raciocínio encontra lugar junto àqueles que abandonam o que lhe é próprio, obrigados ou não totalmente livres e de boa vontade, e com tal defeito da vontade e da imperfeição, nesse defeito, se dedicam ao que é comum ou à comunalidade. Por isso, o raciocínio de Aristóteles é bom, em parte contra Platão, que simplesmente decidiu que tudo deveria ser comum, também as esposas, e que tudo deveria ser trazido para essa comunidade, tanto o perfeito quanto o imperfeito, tanto o voluntário quanto o involuntário. Mas isso não encontra lugar naqueles que professam voluntariamente essa comunidade, amam-na, sobretudo naqueles que amam a altíssima pobreza24. É só a entrega perfeita e voluntária e amorosa a uma comunidade com intenção universal que irá realizar aquela sociedade modelar de todos os bens e de todos os homens, que Olivi tinha em mente como alternativa curativa, primeiramente na imagem da comunidade originária, e agora no amor franciscano pela altíssima pobreza. O decisivo para Olivi, portanto, não era a comunidade exterior de posses e direitos, mas o ser-pobre espiritual internalizado, era vivido sobretudo no amor à altíssima pobreza de Jesus Cristo como a imagem diretriz de seu caminho e de seu anúncio do Reino de Deus e assim se expressa Cf. SCHLAGETER, Das Heil, 167: „omnia ista quae in hac ratione tanguntur, locum habent in illis qui coacte aut non plene voluntarie propria relinquerent et cum tali defectu voluntatis et imperfectionis in hoc defectu inclusae communibus seu communitati se darent. Unde ratio Aristotelis bona est in parte contra Platonem qui simpliciter censuit debere omnia esse communia etiam uxores, et quod omnes ad istam communitatem traherentur tam perfecti quam imperfecti, tam voluntarii quam involuntarii. In voluntariis autem professoribus et amatoribus communitatis locum ista non habent et maxime in amatoribus altissimae paupertatis.“ 24 46 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 31-63, jul./dez. 2010 A FUNDAMENTAÇÃO SOCIOLÓGICA DA TEORIA SOBRE... decisivamente na vida e no anúncio de seus discípulos e apóstolos e como alternativa frente à ordem social vigente. Com isso, Olivi está se referindo ao texto da Regula bullata dos frades menores, onde no 6. capítulo se diz: Essa é aquela sublimidade da altíssima pobreza / que vos institui a vós, meus caríssimos irmãos, / em herdeiros e reis do reino dos céus, / feitos pobres em coisas, mas ricos em virtudes. / Essa deve ser a vossa porção, que vos conduz à terra dos viventes. / Pertencendo total e plenamente a ela, / por causa do nome de nosso Senhor Jesus Cristo, buscai / nada mais querer possuir para sempre debaixo do céu25. Na medida em que aderiu a isso, Olivi definiu claramente a realização alternativa da sociedade exemplar em sua época como projeto espiritual franciscano. Descreveu-o de forma ainda mais precisa: O mais excelso louvor da altíssima pobreza, pelo menos no modo de uma reivindicação de direito, não se volta mais para essa terra do que para aquele, não se volta mais para essa do que para aquela casa. E quem o observa integralmente será mais solícito em cuidar dessa pobreza para si do que para os outros; e assim, inevitavelmente, irá desaparecer qualquer motivo de divisão e Cf. Regula Bullata cap. 6, 4-6: „Haec est illa celsitudo altissimae paupertatis, quae vos, carissimos fratres meos, heredes et reges regni caelorum instituit, pauperes rebus fecit, virtutibus sublimavit (cfr. Iac 2, 5). Haec sit portio vestra, quae perducit in terram viventium (cfr. Ps 141, 6). Cui, dilectissimi fratres, totaliter inhaerentes nihil aliud pro nomine Domini nostri Iesu Christi in perpetuum sub caelo habere velitis.“ In: ESSER, Cajetan: Die Opuscula des hl. Franziskus von Assisi. Neue textkritische Edition. Zweite, erweiterte und verbesserte Auflage, besorgt von Engelbert GRAU (Spicilegium Bonaventurianum, 13). Grottaferrata (Roma) 1989, 369 [A seguir citada como: ESSER / GRAU, Opuscula] – Para a tradução em alemão cf. Franziskusquellen. Die Schriften des heiligen Franziskus, Lebensbeschreibungen, Chroniken und Zeugnisse über ihn und seinen Orden, Im Auftrag der Provinziale der deutschsprachigen Franziskaner, Kapuziner und Minoriten herausgegeben von Dieter BERG / Leonhard LEHMANN. Kevelaer 2009, 98 [A seguir citado como: Franziskus-Quellen]. Cf. para isso Tg 2,5; Sl 142,6. Português: SILVEIRA, I. OFM; REIS, O. (Orgs.). Escritos e biografias de São Francisco de Assis. Crônicas e outros testemunhos do primeiro século franciscano. Petrópolis: Vozes; cefepal; Família Franciscana do Brasil, 1981. 25 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 31-63, jul./dez. 2010 47 JOHANNES KARL SCHLAGETER inveja que pudesse surgir entre eles a partir de alguma apropriação ou jurisdição ou distribuição de pensões26. De forma ainda mais clara que a Regula bullata, o próprio Olivi formula a “altíssima pobreza” como ideal espiritual, que não só facticamente não conhece mais apropriação, mas que é amada, prezada, protegida e observada acima de tudo e perfeitamente. Que isso nem sempre é visto e realizado por aqueles que fizeram votos desse ideal, isso Olivi deixou claro logo na sequência: Se se afirma que, ao voto da altíssima pobreza não contradiz o amor às coisas temporais, mas apenas a posse ou jurisdição exterior ilícita a esse voto; mas que a causa dos males citados é mais o amor às coisas do que propriamente a posse ou jurisdição exterior, deve saber então aquele que afirma isso que assim como o voto da castidade (não-matrimonial) ou da virgindade não se opõe apenas a coabitação factual mas também a afeição à coabitação e ao amor ao ato conjugal, assim igualmente contradiz imediatamente ao voto da pobreza aquele amor à posse e à jurisprudência como são diretamente excluídos pelo voto. Quem quer que seja que tenha professado isso é de algum modo afeiçoado por um livro ou uma casa ou um terreno ou qualquer outra coisa, como se fosse próprio dele ou do colégio, não está livre de mancha que diminui ou destroi desde o fundo a verdade desse voto27. Cf. SCHLAGETER, Das Heil, 99: „Summa professio autem altissimae paupertatis non est applicata saltem per modum iurisdictionis ad hanc terram plus quam ad illam nec ad hanc domus plus quam ad aliam. Et observator eius perfectus sollicitior erit sibi custodire hanc paupertatem quam alteri; et ita cessabit necessario inter eos omnis ratio divisionis et invidiae quae surgere potest ex quacumque appropriatione vel iurisdictione vel pensionum distributione. 26 Id. op. cit. 99s: „Si dicatur quod professioni paupertatis etiam altissimae non opponitur amor temporalium, sed solum exterior possessio vel iurisdictio tali professioni illicita; amor autem rerum plus est causa praedictorum malorum quam ipsa exterior possessio vel iurisdictio: scire debet qui hoc dicit quod – sicut professioni castitatis seu virginitatis non solum opponitur actualis concubitus, sed etiam concumbendi affectus et amor operis coniugalis – sic voto paupertatis omnis amor possessionis et iurisdictionis per votum exclusae sibi directe opponitur. Unde quicumque professor eius ad librum vel ad domum vel ad terram vel ad quodcumque aliud acsi ad proprium sibi vel collegio aliquo modo afficitur, non est sine aliqua macula aut diminuente aut funditus destruente veritatem huius voti“. 27 48 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 31-63, jul./dez. 2010 A FUNDAMENTAÇÃO SOCIOLÓGICA DA TEORIA SOBRE... Olivi se contrapunha veementemente a um argumento, aparentemente da própria ordem, que queria restringir a “altíssima pobreza” à renúncia das posses e direitos exteriores. Parece estranho ali que ele colocasse o amor de desejo sexual, que sempre tem algo a ver com a relação entre as pessoas, no mesmo patamar daquele amor que deseja apropriar-se de coisas. Ali, Olivi partia da experiência de então, segundo a qual o amor de desejo sexual era mais desaprovado junto a seus endereçados teológicos do que o amor às coisas, supostamente inocente. No entanto, o amor às coisas temporais-terrenas de modo algum parecia a Olivi ser assim tão inocente. O mal que ele via surgir na reivindicação de posse e direitos em relação ao bem comum eclesiástico e monacal28, para Olivi, tinha sua origem não tanto nas posses e jurisprudências exteriores mas muito mais no amor interior e na afeição às coisas temporais. Àqueles que viam isso de modo diverso, afirmando coisas diversas, Olivi supunha estarem sob uma relação “carnal”, de desejo de busca de si, em relação ao terrenal e temporal: Se tivessem, pois, um olhar bem claro no espiritual como tenham talvez no carnal, veriam que não se destroi menos o espírito e o voto da pobreza pela afeição desordenada em relação às coisas temporais, para se lidar com elas de algum modo ilícito ao voto, do que aquela afeição impura destroi a castidade e seus votos; quando se sopesa tudo, aquele é tão intenso e tão grande quanto esse. Por isso, em todo aquele que professou essa pobreza torna-se perigosa toda afeição pela qual um homem se afeiçoa a um terreno, como sendo próprio, ou a algum domicílio, livros ou quaisquer outras coisas, como coisas que seriam próprias dele, de seu colégio ou de parte de seu colégio, sobretudo se elas (as afeições) já estão enraizadas e habituadas por um costume freqüente. Mas são-lhe ainda mais perigosas quando chegam ao extremo de contender reivindicando aquelas coisas para si, para seu colégio ou para parte de seu colégio, como propriedade. 28 Cf. acima, nota 20. Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 31-63, jul./dez. 2010 49 JOHANNES KARL SCHLAGETER Algo assim aqueles que são oriundos dessa terra afirmam e querem deter um direito maior em relação aos domicílios daquela terra, aos livros e esmolas, destinados a esses domicílios do que aqueles outros que não são oriundos de, nem habitam nessa terra, e contendem sobre essas coisas entre si com palavras a ações29. Se alguém estivesse tão possuído pela vontade de posses como alguém está possuído pelo desejo sexual, então, para Olivi isso tem o mesmo grau de perigo. A exposição oliviana intensiva e extensiva girava em torno do núcleo interno que, segundo sua opinião, era de importância decisiva para o projeto espiritual franciscano de um modelo de comunidade universal alternativa. A recusa a essa apropriação e à jurisprudência em relação aos bens desse mundo e desse tempo, como é exigida pela regra dos frades menores, não deveria esgotar-se numa recusa externa à posse e à jurisprudência, mas deveria definir decisivamente a atitude interior. Mas isso permaneceu nos quadros daquilo que determinou a Regula bullata, em seu capítulo 6, e o que precede o texto da regra acima citado: Os irmãos não devem se apropriar de nada, nem de casa nem de lugar nem de qualquer coisa. E como peregrinos e forasteiros nesse SCHLAGETER, Das Heil, 100: „Si haberent isti oculos in spiritualibus multum illuminatos, sicut forte in carnalibus habent, viderent quod non minus labefaciat mentem et paupertatis professionem affectus inordinatus circa temporalia qualicumque modo tractanda modo illicito professioni tali quam affectus ille morosus castitatem et eius votum, si tamen omnibus pensatis ille sit aeque intensus et aeque magnus sicut et iste. Unde in quocumque professore huius paupertatis periculosissimi sunt omnes affectus, per quos homo afficitur ad aliquam terram sicut ad propriam aut ad aliqua loca vel ad aliquos libros vel ad quascumque alias res sicut ad proprias sibi vel suo collegio vel parti sui collegii, et maxime si sunt per multam consuetudinem radicati et habituati. Tunc autem sunt periculosiores ei, quando exeunt usque ad contentionem vendicantem sibi illa aut suo collegio vel parti collegii acsi propria, utpote si hii qui sunt de terra una reputant et volunt se maius ius habere in locis illius terrae vel in libris seu elemosynis illis locis deputatis quam alii qui non sunt origine aut inhabitatione de illa terra, et si pro huiusmodi inter se ore et opere contendant“. 29 50 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 31-63, jul./dez. 2010 A FUNDAMENTAÇÃO SOCIOLÓGICA DA TEORIA SOBRE... mundo, que servem ao Senhor em pobreza e humildade, podem seguir confiantes pedindo esmolas, e não devem se envergonhar disso, porque o senhor se fez pobre neste mundo por nós30. De certo, que poderíamos compreender esse texto da regra de forma puramente jurídica, no sentido de uma recusa à propriedade meramente exterior. Contrariamente a isso, Olivi radicaliza a proibição da apropriação no espírito do voto da altíssima pobreza como negação espiritual de todo e qualquer amor apropriador e afeição frente às coisas desse tempo e desse século. Importa para ele de modo central essa atitude interior de liberdade espiritual que não se liga com essa ou aquela terra, a esse ou àquele domicílio, a esse ou àquele livro ou a qualquer outra coisa com desejo de apropriação. Ali, Olivi sentiu que os laços “nacionais” em relação a esse ou àquele país, abordados de maneira própria por ele, seriam um perigo ameaçador, na época, para o projeto espiritual franciscano de uma alternativa comunidade universal entre homens e bens. Ali não se tinha em mente ainda nenhum “nacionalismo” dentro das dimensões modernas. Todavia, também as controvérsias entre o condado sulista da Provença, donde provinha Olivi, e o Reinado franco do norte, em cuja capital, Paris, ele continuara seus estudos, estavam muito acirradas na época31. Olivi parece tocar ali também no fato de que essas Regula Bullata 6,1-3: „Fratres nihil sibi approprient nec domum nec locum nec aliquam rem. Et tanquam peregrini et advenae (cf. 1Ptr 2,11) in hoc saeculo in paupertae et humilitate Domino famulantes, vadant pro elemosynis confidenter, nec oportet eos verecundari, quia Dominus pro nobis se fecit pauperem in hoc mundo (cf. 2Cor 8,9)“. In: ESSER/GRAU, Opuscula (como na nota. 24), p. 368-369. – Para a tradução em alemão, cf. Franziskus-Quellen (como na nota 24) 98. Cf., para isso, 1Petr 2,11 e 2Cor 8,9. Português: SILVEIRA, I. OFM; REIS, O. (Orgs.). Escritos e biografias de São Francisco de Assis. Crônicas e outros testemunhos do primeiro século franciscano. Petrópolis: Vozes; cefepal; Família Franciscana do Brasil, 1981. 30 Cf. COULET, Noel. Provence, Landschaft (ehemals Grafschaft) in Südfrankreich. B. Mittelalter. In: LMA 7, p. 276-280. 31 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 31-63, jul./dez. 2010 51 JOHANNES KARL SCHLAGETER controvérsias incomodavam também a vida e as relações entre os confrades que provinham desse ou daquele país. Isso porque pode ter sentido que essas ligações restritas ao “nacional” eram um tanto estranhas em seus irmãos. Em todo caso, segundo Olivi, em seu conjunto, é só a internalização espiritual da altíssima pobreza que irá levar o projeto franciscano de uma comunidade universal alternativa àquela plenitude “espiritual”, buscada por ele, junto como outros irmãos e irmãs de mesmo ideal, dentro e fora da comunidade estrita dos irmãos menores. Nesse sentido, Olivi pode fazer referência à visão de Joaquim de Fiore, que tinha em mente uma terceira e última era, a era do Espírito Santo, que levaria à plenitude toda a história da salvação: No Antigo [Testamento] refulge a autoridade da majestade e da severidade do Pai, mas no Novo, a força da bravura juvenil e da engenhosidade sapiente do Filho. E uma vez que temos duas partes célebres dessa imagem, a integridade da ordem e da imagem exige que se introduza uma terceira era no mundo, que deve pertencer totalmente ao amor, à ebriedade espiritual e à alegria, de tal modo que, tanto quanto possível, também o corpo seja absorvido pelo espírito. E essa deve ser assim, que ela parece proceder no modo do espírito dos dois povos e Testamentos, como que do Pai e do Filho, e que ela não seja menos universal no mundo do que as que foram mencionadas antes, a fim de que a igualdade nas três pessoas seja claramente exposta nelas32. Id. loc. cit. 158: „ideo etiam in Veteri refulget auctoritas paternae maiestatis et severitatis, in Novo vero vigor iuvenilis strenuitatis et sapientialis ingeniositatis Filii. Cum igitur duas partes celebres huius imaginis teneamus, integritas ordinis et imaginis exigit statum tertium in mundo introduci qui totus sit amoris et spiritualis ebrietatis et iucunditatis, ita quod etiam – prout est possibile – absorbeatur caro a spiritu. Et oportet etiam quod talis sit, ut per modum Spiritus procedere videatur ab utroque populo et Testamento acsi a Patre et Filio, et quod sit non minus universalis in mundo quam praedicti, ut trium personarum aequalitas in eis clare praesentetur.“ Em relação ao posicionamento de Olivi frente à apocalíptica de Joaquim de Fiore, cf. integralmente SCHLAGETER, Johannes. Apokalyptisches Denken bei Petrus Johannis Olivi. Versuch einer fundamentaltheologischen Wertung; In: WiWei 50 (1987). p. 12-27; Olivis Sicht der Endzeit und Joachim von Fiore. Wie verarbeitete Olivi in seiner Konzeption einer endzeitlichen Erneuerung der evangelischen Armut die Endzeitvorstellungen Joachims von Fiore? In: Id. 150-163. 32 52 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 31-63, jul./dez. 2010 A FUNDAMENTAÇÃO SOCIOLÓGICA DA TEORIA SOBRE... A imagem de um tríptico, que por assim dizer deveria refletir a trindade das pessoas divinas na história da salvação, ainda não seria completa enquanto ainda faltasse a terceira asa da figura, com a apresentação do Espírito Santo. Olivi e também Joaquim de Fiore, porém, não pensavam que a era do Espírito Santo devesse pois dissolver e superar pois o Antigo e o Novo Testamento. Assim como o Espírito Santo procede do Pai e do Filho, mas é e continua sendo igualmente um com eles, assim a era do Espírito surge dos dois Testamentos, e nela irá se mostrar seu sentido verdadeiro, espiritual, justo a partir e na letra do Antigo e do Novo Testamento. Por isso, em sua teoria da pobreza, a partir da letra e sobretudo do Novo Testamento, Olivi queria apresentar por fim o sentido verdadeiro, espiritual da vida pobre de Jesus e de seus consecutivos seguidores e assim levar à profundidade espiritual a compreensão franciscana da pobreza. A força absorvente que na era do espírito Olivi atribuía ao “Espírito”, contra a “carne”, própria de um desejo egoísta, deveria tornar-se visível precisamente numa compreensão franciscana, espiritualmente internalizada, da altíssima pobreza e da renúncia universal de qualquer apropriação. Nesse sentido, como que chamado, Olivi chegou finalmente à visão joaquimita de uma era do Espírito Santo própria do fim dos tempos. Com isso, pois, a teoria social crítica de Olivi poderia assumir uma esperança apocalíptica futura, embora para ele a esperada plenitude espiritual do fim dos tempos já havia se iniciado com o projeto espiritual franciscano de uma sociedade modelar, realizada alternativamente, e assim, com Francisco de Assis. 5 Esperança para um mundo dividido hoje? Com sua esperança apocalíptica do futuro, Olivi fracassou na refutação das pessoas que detinham autoridade na Ordem e na Igreja e Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 31-63, jul./dez. 2010 53 JOHANNES KARL SCHLAGETER acabou condenado. Os “espirituais” na Ordem, na Igreja e no mundo, mais tarde, sob o pontificado de João XXII, no século XIV, acabaram se tornando uma pequena minoria perseguida, que nem sequer pôde conservar da aniquilação suas relíquias de princípio tão veneradas33. Todavia, isso não inutiliza inteiramente e para sempre a herança dos ideais de Olivi, como já demonstrou a retrospectiva do movimento de reforma franciscano no final da Idade Média e no começo da Modernidade, voltando a lançar mão da teoria da pobreza oliviana e da compreensão da regra dos frades menores34. O próprio Olivi tinha em mente uma reforma da Ordem, sobretudo levando em conta a coerência prática de sua teoria da pobreza, com a qual exigia de seus irmãos o “usus pauper”, o “uso pobre” das coisas35. Olivi não se contentou portanto em falar a linguagem da interiorização espiritual da altíssima pobreza. A altíssima pobreza deveria tornar-se atuante também na lida prática com as coisas, e quiçá de tal modo que essa lida, novamente, estivesse mais em consonância com a prática de vida de pessoas pobres. Isso porque a práxis de vida vivenciada Cf. EHRLE, Franz. Die Spiritualen, ihr Verhältnis zum Franziskanerorden und zu den Fratizellen. In: Archiv zur Literatur- und Kirchengeschichte des Mittelalters 1 (1885) 509-569; 2 (1886) p. 106-164. 249-336, 3 (1887) 553-623; BURR, David. The persecution of Peter Olivi. Philadelphia, 1976. 33 34 Cf. F LOOD , David (Ed.). Olivi´s Rule Commentary. Wiesbaden, 1972. (Veröffentlichungen des Instituts für Europäische Geschichte, 67) Cf. para isso, BURR, D. Apokalyptische Erwartung und die Entstehung der UsusPauper-Kontroverse (como na nota 3). In: WiWei 47 (1984), p. 84-99. Albertino de Casale (1259-1330), discípulo e posterior defensor de Olivi, tinha em mente de maneira especial essa consequência prática do “usus pauper”. A partir disso, os meros direitos de posse e as jurisprudências significavam tão pouco para Ubertino que ele pôde declará-las até como sendo espiritualmente limitadas, uma vez que se mantenha conservado o “usus pauper”, o “uso pobre” das coisas. Cf. para isso DAVIS, Charles T. Ubertino da Casale and his conception of „altissima paupertas“. In: Studi Medievali 3. Series 22 (1981), p. 1-56. Cf. para isso, UBERTINO VON CASALE. Tractatus de altissima paupertate. Wien: Nationalbibliothek, Ms. Palat. Lat. 897. Nesse tardio Tratado sobre a altíssima pobreza, ainda não editado, importa a Ubertino decisivamente abordar as consequências práticas do “usus pauper” na interiorização espiritual da altíssima pobreza, que ele asseverava junto com Olivi. 35 54 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 31-63, jul./dez. 2010 A FUNDAMENTAÇÃO SOCIOLÓGICA DA TEORIA SOBRE... por muitos de seus irmãos já havia se tornado num problema existencial já desde bem cedo: e visto que desde o começo eu ouvia os atos grandiosos da altíssima pobreza, como ela se presta de modo supremo para o aperfeiçoamento abrangente das virtudes, comecei a admirarme grandemente como poderia haver uma tal imperfeição de virtudes em tantos que professaram essa pobreza, uma tal tibieza em relação ao ócio na contemplação, na pureza do corpo, no exercício de atos penosos e do zelo amoroso do amor e da dedicação fraterna. Como ou de onde poderia haver neles uma tal avidez tão ardente em providenciar seu sustento de vida através de múltiplas relações estreitas com pessoas mundanas, cheios de adulações e métodos indecentes, assim como através de muitas intenções ocultas e dissimuladas, pelas quais fazem uso dos bens espirituais, como por exemplo, confissões, pregações, celebração da missa, com ostentação sensacionalista de venerar a Deus e de rigor penitencial, manipulando inclusive o direito de exéquias e semelhantes para alcançar tais ganhos? E como também e de onde há neles tal vontade de erigir casas e jardins, inventando diversos caminhos e diversos vínculos para criar coletas temporais, como por exemplo, entrar em testamentos e coisas do gênero? Então me admiro até que Deus mostre em mim mesmo através de uma experiência viva que tudo isso provém do amor desordenado a um uso exorbitante36. 36 Cf. PETRUS IOANNIS OLIVI. De usu paupere. The Quaestio and the Tractatus, Edited by David BURR. Firenze/Perth (Australia) 1992, 25: „a principio audienti mihi magnalia paupertatis altissime, quomodo videlicet ad virtutum universalem perfectionem altissimo modo valet, admirari vehementer cepi unde in multis professoribus eius tanta virtutum imperfectio esse posset tantusque tepor ad contemplationis otium et ad macerationem corporum et ad exercitium laboriosorum operum et ad caritatis et pietatis fraterne benignum zelum; et quomodo aut unde in eis esse poterat tantus ardor procurandi victum, tam per familiaritates secularium multimodas multis adulationibus et modis indebitis plenas et per multas intentiones sub occulto enigmate bona spiritualia ad procurationem questuum huiusmodi varie retorquentes, ut sunt confessio, predicatio, missarum celebratio, divini cultus et penitentialium austeritatum celebris ostentatio, sepulturarum quoque iurisdictio et consimilia; quomodo etiam et unde in eis tanta voluntas edificandi domos amplas et ortos, et propter hoc excogitandi vias diversas et coniuncta varia ad procurationes temporalium elemosinarum ut sunt testamentis interesse et consimilia; usquequo ostendit mihi Deus per vivam in memetipso experientiam quod ex amore inordinato usus opulenti hec omnia proveniebant“. – Para a tradução em alemão, cf. SCHLAGETER, Das Heil, p. 17s. Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 31-63, jul./dez. 2010 55 JOHANNES KARL SCHLAGETER À imagem ideal da altíssima pobreza, à imagem guia da vida pobre de Jesus Cristo, professada na Regra pelos irmãos menores, na realidade da Ordem franciscana, em muitos irmãos, contrapunha-se uma práxis de vida totalmente diversa. Frente aos valores espirituais, a saber, a riqueza daquelas forças e virtudes do reino de Deus que deveriam surgir da vida da altíssima pobreza, eram tíbios e indiferentes. Em vez disso, todo o zelo de muitos irmãos era colocado na criação do sustento da vida, que ultrapassava em muito o necessário para a vida, e que deveria ser conquistado através de métodos bastante questionáveis, com intenções ocultas, impuras, e até com atividades espirituais amplamente perversas. Em tudo isso, para Olivi, tratava-se de um “usus opulentus”, um “uso opulento” das coisas deste mundo, que pode ser comparado muito mais com a vida dos ricos do que com a vida dos pobres. Quando Olivi fundamenta sua visão crítica da Ordem como uma “experiência viva em mim mesmo”, presenteada por Deus, então, do ponto de vista estritamente existencial, isso pode ser levado a sério. Mas a discrepância entre ideal de ordem e realidade, vivenciada por Olivi, surgiu basicamente a partir do abismo social entre irmãos pobres e ricos, entre uma ordem de mendicantes que se tornara rica e a camada mais pobre da sociedade. Esse abismo que então se abriu novamente na ordem franciscana de modo algum foi tomado por Olivi do ar, sem fundamento37. Esse abismo e sua causa íntima parece já ser conhecido de seus estudos do convento de estudos de Paris, grandioso e ricamente aparamentado38. Ali ele via a decisiva ameaça demoníaca, e por assim dizer a ameaça do anticristo do fim dos tempos: Assim como o diabo, através da riqueza e do domínio secular, enfeitou indizivelmente a Igreja na sujeira, enredando sua liberdade Cf. por exemplo RAPP, Francis. Les Mendiants et la Societé Strasbourgoise à la fin du moyen-âge. In: Poverty. Ed. FLOOD (como na nota 5), p. 84-102. 37 38 Cf. SCHLAGETER, Das Heil, p. 18, nota 3. 56 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 31-63, jul./dez. 2010 A FUNDAMENTAÇÃO SOCIOLÓGICA DA TEORIA SOBRE... espiritual nas intrincadas armadilhas, de tal modo que no fim dos tempos, segundo Jó, os tendões dos testículos de Leviatam estarão entrelaçados, e com ele deve gerar o erro do Anticristo na (Igreja). É por isso que eu pondero, sem qualquer dúvida, que através do excesso do uso opulento e de sua múltipla criação, ele [o diabo] ele puxou indizivelmente o adorno da altíssima pobreza para a sujeira e através de uma admirável confusão de dúvidas escrupulosas e de armadilhas, as mais embrulhadas, algemou-a com muita astúcia. E é isso que temo acima de tudo, que ele gere um escândalo indizível para a altíssima pobreza39. Com essa visão do fim dos tempos da ameaça do Anticristo, que irá enredar os irmãos da Ordem junto com toda a Igreja, Olivi intenta sobretudo admoestar seus irmãos para uma conversão, que deverá afastálos do “uso opulento” para um “uso pobre”, e assim para uma proximidade maior para com os pobres. Isso porque é só assim que os irmãos poderiam fechar o abismo que se abriu entre irmãos ricos e pobres na Ordem, assim como entre o modo de vida preferencialmente opulento de muitos irmãos e a práxis de vida da camada baixa e pobre da sociedade. Frente a esse abismo, Olivi não propaga uma divisão da Ordem40, mas prefere propagar uma renovação, na medida do possíCf. OLIVI, De usu paupere, Ed. por BURR (Como na nota 35), p. 25: „Unde indubitanter perpendo quod sicut diabolus per divitias et dominationes mundanas ecclesie decorem ineffabiliter fedavit et eius spiritualem libertatem laqueis perplexissimis irretivit, ita ut in fine temporum nervi testiculorum Leviathan perplexi sunt, sicut habetur Iob, per quos debet Antichristi error in ea generari; sic per opulenti usus excessus et varios questus eius decorem paupertatis altissime ineffabiliter fedavit et miranda perplexitate scrupulosarum dubietatum et laqueorum nodissimorum laquorum [!laqueorum] astutissime vinculavit. Et hoc est quod super omnia timeo paupertati altissime scandalum ineffabile generari.“ – para a tradução alemã, cf. SCHLAGETER, Das Heil, 18, nota. 2. Cf. para isso Jó 40,12a Vulgata! 39 Contra essas tendências de divisão entre os „espirituais“ franciscanos, que se iniciou sobretudo durante o curto pontificado do Papa Celestino V, Olivi se contrapôs em sua Epistola ad Conradum de Offida, de 1295. Cf.. PETRUS IOHANNIS OLIVI. De Renuntiatione Papae Coelestini V. Quaestio et Epistola, Ed. Livarius OLIGER. In: Archivum Franciscanum Historicum 11 (1918) 309-373. Cf. aqui, p. 366-373, mas especialmente p. 370-373. 40 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 31-63, jul./dez. 2010 57 JOHANNES KARL SCHLAGETER vel amplificadora. Um sinal para isso deveria ser uma maior proximidade para com as camadas mais pobres da sociedade. Essa atitude surgiria, segundo Olivi, a partir da generosidade para com os pobres, recomendada pelo Evangelho de Jesus Cristo, que vende tudo para socorrer aos pobres41, como foi adotado pelas regras dos frades menores42. Olivi descreveu essa generosidade do seguinte modo: Totalmente generoso é quem doa rápida, alegre, abundantemente, com razão, a partir de uma causa razoável doa por exemplo a um indigente, e quem doa de modo irressarcível, sem qualquer esperança de recompensa temporal. Mas quem quiser ser e estar na altíssima pobreza e em constante indigência, adotando e observando uma tal pobreza, torna-se e é muito capaz não apenas de doar segundo as cinco condições acima descritas, mas também de desfazer-se, embora não encontre ninguém a quem possa doar43. Já essa liberalidade poderia reconduzir a ordem a seu ser-pobre originário, para a altíssima pobreza. Com maior razão, isso deveria ser aplicado para a dedicação amorosa (pietas) para com os pobres, da qual Olivi pensava: A dedicação amorosa acrescenta algo à liberalidade. O generoso é movido propriamente pela largueza e amplidão de seu coração, o amoroso ou misericordioso, porém, é movido pela compaixão para com a pessoa, à qual faz o bem. Isso porque o pobre voluntário tem um grandioso incitamento para dedicar-se amoCf. a exigência de Jesus feita ao jovem rico em Mc 10,17-23; Mt 19,19; 16-22; Lc 18,18-23. 41 Cf. Regula Bullata 1, 5-8; Regula non Bullata 1, 4-7. In: ESSER / GRAU, Opuscula (como na nota 24) p. 367; 378; Franziskus-Quellen (como na nota 24) p. 95; 71. 42 Cf. SCHLAGETER, Das Heil, p. 95: „Perfecte enim liberalis est qui dat celeriter, hilariter, abundanter, rationabiliter, ex causa scilicet rationabile utpote egenti, et qui dat irredibiliter absque omne spe remunerationis temporalis. Qui autem vult esse in altissima paupertate et continua egestate tam in assumptione talis paupertatis quam in conservatione, potentissimus fit et est non solum ad dandum secundum quinque condiciones praedictas, sed etiam ad derelinquendum, quamvis non inveniretur aliquis cui dari posset.“ 43 58 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 31-63, jul./dez. 2010 A FUNDAMENTAÇÃO SOCIOLÓGICA DA TEORIA SOBRE... rosamente e ter compaixão para com os outros por quatro razões ou motivos, a saber, em virtude da experiência, em virtude de mútua conformidade, em virtude de condecência, em virtude do desprezo e do desfazer-se daquilo que deve ser doado44. Essa dimensão totalmente pessoal da dedicação e da compaixão era seguramente muito importante para Olivi. Mas infelizmente ele próprio não trouxe nenhum exemplo para isso a partir de sua experiência pessoal, mas, citando as Escrituras, remetia para a compaixão de Jesus Cristo em consequência da experiência de sua fraqueza e de seu sofrimento45, e pensava: “Não é de se admirar se alguém que professou essa pobreza, em virtude da experiência de necessidade e indigência, pode se compadecer mais dos indigentes”46. Olivi trata de modo mais extenso a “mútua conformação”: Não é de se admirar que alguém que professou essa pobreza, em virtude da conformação com os pobres, possa ser mais misericordioso”. A partir dali vemos que cada ser vivo ama aquilo que lhe é igual, e prefere estar ligado com o que lhe é igual [...]. Isso porque, numa propriedade maximamente amada e querida, muito evidente e que muito distingue dos outros – como é a pobreza a quem a professa verdadeiramente – a semelhança e a conformidade causa muita sociabilidade e amabilidade entre os que são semelhantes entre si. É impossível, portanto, que o perfeito amante dessa pobreza não se deixe comover e voltar-se a abraçar os pobres assim como sentir junto com eles sua pobreza e suas calamidades. Do contrário, seguramente, ele não é um Id. 96: „Addit enim pietas super liberalitatem. Liberalis enim movetur ad dandum ex largitate et latitudine cordis, pius vero seu misericors ex compassione personae cui bene facit. Voluntarius enim pauper habet incitamentum magnum habendae pietatis et compassionis ad alios quadruplici ratione seu motivo, scilicet ratione experientiae, ratione conformitatis mutuae, ratione condecentiae, ratione contemptus et abdicationis rei donandae.“ 44 45 (Hb 5,15). SCHLAGETER, Das Heil, p. 96: „non mirum, si professor huius paupertatis ratione experientiae quam habet de angustia egestatis, magis potest egenis compati.“ 46 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 31-63, jul./dez. 2010 59 JOHANNES KARL SCHLAGETER amante e reconhecedor dessa pobreza. Essa conformação também dá oportunidade e facilidade aos pobres de, em qualquer necessidade, recorrer aos que professam essa pobreza, e a esses próprios dá maior ocasião e oportunidade de ter misericórdia com tal gente47. Essa proximidade pessoal para com os pobres em compaixão e misericórdia, na oportunidade e capacidade de entrar em contato e solidariedade mútuos, e assim tornar-se em ponto de socorro em suas necessidades, isso deveria destacar aqueles que amam e professam verdadeiramente a altíssima pobreza. Talvez tenha sido essa falta de prontidão para a compaixão e para a misericórdia, que, no grande e rico convento de Paris, levou Olivi à visão, presenteada por Deus, no efeito escandaloso e catastrófico do “usus opulentus”, do trato opulento com os bens temporais48. Em todo caso, algo assim lhe parecia extremamente indecente: “em razão da decência, ela [a altíssima pobreza] possui um incitamento também para a piedade. Pois é extremamente indecente, querermos ser socorridos por outros e não sentir igualmente compaixão com os necessitados ou o tanto possível socorrê-los com misericórdia”49. Id. 97: „non est mirum, si professor huius paupertatis ex conformitate quam habet ad egenos, magis potest esse misericors. Unde et videmus quod omne animal diligit sibi simile et ad sibi simile libentius associatur […]. Similitudo enim et conformitas et maxime in proprietate multum dilecta et cara et multum evidenti multumque ab aliis distinctiva – qualis est paupertas veris professoribus suis – multam causat societatem et diligibilitatem inter sibi similes. Perfectus igitur amator huius paupertatis impossibile est, quin multum moveatur et afficiatur ad amplexum pauperum et ad compatiendum inopiae et calamitatibus eorum. Conformitas etiam haec magnam dat occasionem et facilitatem pauperibus recurrendi pro quibuscumque necessitatibus ad professores huius paupertatis, et eo ipso maiorem dat occasionem et facultatem talibus miserendi.“ Sobre essa força de atração entre conformantes, cf. a indicação de Olivi Eclo, 13,19s. 47 Em relação a esse local biográfico da fundamental visão espiritual de Olivi, cf. SCHLAGETER, Das Heil, p. 18, nota 3. 48 Cf. loc. cit., p. 97: „Ratione etiam condecentiae habet incitamentum pietatis. Indecens enim est supra modum velle sibi ab aliis subveniri et consimiliter indigentibus non compati aut, in quibus potest, nolle misericorditer subvenire“. 49 60 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 31-63, jul./dez. 2010 A FUNDAMENTAÇÃO SOCIOLÓGICA DA TEORIA SOBRE... Um tal abismo indecente em relação aos pobres pode surgir ali onde falta uma postura espiritual, determinante para a altíssima pobreza, frente às coisas temporais, a saber, seu desprezo e o delas se desfazer. Ao contrário disso, Olivi pode constatar pessoalmente: “o que quero doar ao outro não é nada de grandioso, o que desprezo desde o fundamento através do voto da pobreza, sim, aquilo de que me desfiz plena e totalmente”50. Mas onde, em virtude de um trato opulento com as coisas temporais, esse voto não é mantido verdadeiramente, sim, de certo modo se o faz retroceder, ali para Olivi se efetiva de novo o abismo social pernicioso entre pobres e ricos, mesmo dentro da Ordem franciscana. A isso, Olivi precisou contrapor a máxima reformatória do usus pauper, de um trato com as coisas temporais realmente pobre; pois na Ordem só através disso poderiam voltar a manifestar-se as forças e virtudes nobres do reino de Deus na altíssima pobreza. A linguagem espiritual de então e a visão de Olivi podem parecem muito afastadas da necessidade real do mundo de hoje e de nossa época, assim como do abismo social que encontramos hoje entre ricos e pobres, entre abastados e carentes, entre o grande poder e a impotência. No entanto, a opção pelos pobres tantas vezes asseverada na Ordem e na Igreja, não pode ser vivida do lado dos ricos, nesse lado do abismo social entre ricos e pobres, entre abastados e carentes, entre poderosos e impotentes. Nesse sentido, a máxima de Olivi do usus pauper, do ser-pobre vivido realmente do lado dos pobres, mostra a direção decisiva de um lugar de mudança premente dentro da Ordem e da Igreja, na direção de uma escolha feita que modifica o estilo de vida não solidário, vigente em muitos países, em muitos lugares da Ordem e da Igreja. Ali não está em questão primeiramente a mudança das relações de direito frente às coisas desse mundo e dessa época, elas Id. „Non enim est magnum quid me velle dare alii quod per paupertatis professionem funditus contempsi et a me penitus abdicavi“. 50 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 31-63, jul./dez. 2010 61 JOHANNES KARL SCHLAGETER irão só se configurar de modo diverso e ter nova regulamentação quando se modificar a atitude interior. Por isso, o amor que deseja e se apropria do mundo e da configuração temporal de agora, será modificada a partir do fundamento. Mas isso se torna possível numa perspectiva de esperança do novo mundo de Deus, de seu reino de amor e de paz, cujos herdeiros são os pobres e aqueles que, com Jesus cristo, se colocam ao lado dos pobres51. Que esse novo mundo de Deus é pressentido e vivido apenas por poucos, isso não diminui seu valor num mundo dividido. O que se dá é bem contrário, como vêem claramente alguns pensadores. Assim, escreveu Carl Freidrich von Weizsäcker, certa vez: “uma configuração eticamente tão questionável, intelectualmente tão embotada, completamente ambivalente, como é a sociedade humana das culturas desenvolvidas, até os dias de hoje, só poderá frear o escorregar para dentro da autodestruição se nela viverem algumas pessoas que se recusam radicalmente a participar de suas atividades, por causa da verdade. E foi praticamente só ali onde cristãos ousaram fazer tal coisa que floresceu uma compreensão espontânea do sermão da montanha, foi assim em Francisco de Assis”52. Penso que aqui, como em Olivi, está em questão a “verdade” do novo mundo de Deus, que já pode ser pressentido em Jesus Cristo e que oferece forte resistência ao “escorregar para dentro da autodestruição”. Os espirituais franciscanos, na medida em que seguiram realmente a Olivi, no tempo e no mundo só se “recusaram radicalmente a praticar aquelas atividades” que na Ordem e na Igreja desembocavam numa divisão e numa destruição da comunidade e da sociedade, mas justamente através disso esses irmãos e irmãs queriam tornar-se espiritualmente livres num serviço de amor desinteressado para com todos os homens e para 51 Cf. Tg 2,1-13; 5,1-8. Cf. WEIZSÄCKER, Carl Friedrich von. Der Garten der Menschlichen. München/Wien, 1977, p. 505. 52 62 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 31-63, jul./dez. 2010 A FUNDAMENTAÇÃO SOCIOLÓGICA DA TEORIA SOBRE... toda a criação de Deus, precisamente em sua mudança de lugar de habitação e em sua dedicação para com os pobres e para com as irmãs e irmãos especialmente ameaçados no tempo e no mundo. Tenho a esperança de que isso possa se renovar verdadeiramente, oxalá também numa renovação da Ordem e da Igreja53. Cf. SCHLAGETER, Johannes. Eschatologische Hoffnung als Hoffnung für die Welt; Eine Kirche mit weltoffener Spiritualität in einer säkularisierten Gesellschaft. In: Geist und Welt. Seminar Spiritualität 3, editado por Anton ROTZETTER. Zürich/Einsiedeln/ Köln, 1981, p. 41-60; 69-90. 53 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 31-63, jul./dez. 2010 63 JOAQUIM DE FIORE, APOCALIPTICISMO... JOAQUIM DE FIORE, APOCALIPTICISMO E ESCATOLOGIA NOS SÉCULOS XIII E XIV Prof. Nachman Falbel * O apocalipticismo teve em Joaquim de Fiore um dos seus pensadores mais originais e influentes na Idade Média, período este que herdou do cristianismo antigo uma longa e rica tradição interpretativa sobre o livro da Revelação, o último do conjunto de textos que compõe as escrituras do Novo Testamento. No prefácio à sua obra “Visions of the End, Apocalyptic Traditions in the Middle Ages”, o historiador Bernard McGinn afirma corretamente que o apocalipticismo fez parte das três religiões monoteístas, a saber, judaísmo, cristianismo e islamismo. Na longa introdução de seu importante livro, o autor aborda a questão das tentativas de se fazer uma distinção entre apocalipticismo, profetismo, escatologia, milenarismo, fundamentada na bibliografia de estudiosos que se esforçaram em definir suas categorias conceituais e nuances teóricas bem como seus elementos diferenciadores1. Apesar da importância que a discussão possa ter frente às problemáticas definições concernentes às associações e inter-relações entre os diversos componentes que se manifestam no que se convencionou denominar como “literatura apocalíptica”, estamos convictos de que dificilmente chegar-se-á a uma proposição unificadora que satisfaça a todos os estu- * Universidade de São Paulo. MCGINN, B. Visions of the End, Apocalyptic Traditions in the Middle Ages. New York: Columbia University Press, 1998, pp. XIV-XXV e Introduction, pp. 1-36. 1 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 65-86, jul./dez. 2010 65 NACHMAN FALBEL diosos2. Desde o surgimento dos primeiros textos apocalípticos no mundo judaico, a partir do terceiro e segundo século antes de nossa era, a sua inclusão no cânone da Bíblia Hebraica sofreu forte rejeição por parte das autoridades religiosas judaicas, podendo se considerar como exceção as passagens existentes no livro de Ezequiel e mais ainda nos capítulos 7-12 do livro de Daniel. Podemos supor que obras de caráter apocalíptico como 1 Enoque, 4 Ezra e 2 Baruque foram posteriormente oficialmente marginalizadas e consideradas apócrifas devido a seu teor provocativo, ainda que fossem fruto de realidades históricas e que seu conteúdo visasse tanto predicar uma mensagem salvífica como dar consolo ao povo de Israel sob o jugo e domínio de forças opressoras estrangeiras3. Do mesmo modo, sabemos que a aceitação Uma contribuição para a discussão a respeito da definição sobre o entendimento do gênero se encontra no artigo de F. Raphaël, “Esquisse d’une Typologie de L’Apocalypse”, in: GAUTHIER, P. L’Apocalyptique. paris, 1977, pp. 11-38. O autor recorre ao conceito de “ideal-tipo” de Max Weber e à estrita definição de “milenarismo” de Yonina Talmon, Millenarian movements, in: Archives Européennes de Sociologie, t. 7, 1966, pp. 159200. Importantes para a compreensão do tema são os estudos de COLLINS, John. Apocalypse: The Morphology of a Genre, Semeia 14, Society of Biblical Literature, 1979, e HELLHOLM, D., The Problem of Apocalyptic Genre and the Apocalypse of John, Semeia, 36, 1986. Os dois primeiros volumes da The Encyclopedia of Apocalypticism, respectivamente volume 1: The Origins of the Apocalypticism in Judaism and Chritianity. Ed. por J.J. collins, e o volume 2: Apocalypticism in western History and Culture, Ed. Bernard McGinn, dão uma visão ampla sobre o tema. Desde a publicação da obra de Norman Cohn, The Pursuit of the Millenium, em 1957 (edição ampliada, London, 1970), vem se acumulando uma extensa bibliografia. Norman Cohn complementaria seu trabalho com um estudo adicional “Cosmos, Caos and the World to come, the ancients roots of the apocalyptic faith”, em 1993, edição em português: Companhia das Letras, São Paulo, 1996. 2 Os estudos iniciais sobre o apocalipticismo escatológico no judaísmo teve como marco pioneiro a obra de R.H. Charles, Eschatology, the doctrine of a future life in Israel, Judaism and Christianity, cuja primeira edição se deu em 1899. Em 1963 a editora Schocken Books, New York, reeditaria a obra com uma importante introdução de George Wesley Buchanan na qual historiciza os debates havidos ao redor do tema naquele período. Para uma visão atualizada, vejam-se as importantes obras de Michael E. Stone, Jewish Writings of the Second Temple Period. Philadelphia, 1984 e a de James H. Charlesworth, ed., The Old Testament Pseudepigrapha, vol. I, Apocalyptic Literature and Movements, New York, 1983. 3 66 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 65-86, jul./dez. 2010 JOAQUIM DE FIORE, APOCALIPTICISMO... do livro da Revelação no cânone do Novo Testamento foi problemática e nem sempre aceita com unanimidade pela Igreja nos primeiros séculos de sua existência, o que não impediu de ser amplamente difundido, apesar de seu teor enigmático, e por isso mesmo, objeto de múltiplas interpretações desde os seus primórdios. Seu conteúdo e seu extraordinário, e não menos desafiador, simbolismo acumulou através do tempo inúmeros comentários e interpretações desde Victorino de Pettau (f. c. 304), de Ticônio (séc. IV), de Agostinho, do assim denominado Beatus de Liebana e outros4. No período medieval os comentários e interpretações sobre o livro do Apocalipse iriam multiplicar-se com a crença de que em seu feérico simbolismo encontravam-se significados proféticos e escatológicos para o conhecimento do destino e da trajetória histórica da humanidade desde os primórdios da fé monoteísta bem como o anúncio da fé cristã e o que a esperava no futuro. Por outro lado tais interpretações sobre o livro da Revelação seriam não somente o reflexo das tensões e conflitos existentes na instituição eclesiástica e na sociedade medieval em seus múltiplos momentos de crise, mas também dos anseios e dos temores decorrentes da psique e da religiosidade dos homens daquele tempo. Longa é a lista de autores medievais que fizeram a leitura do Apocalipse, o extraordinário texto inspirador de motivos centrais nas obras teológicas desses autores impregnadas de uma espiritualidade profunda e que o nosso abade calabrês interpretou com o método original que se encontra na elaboração de grande parte de suas obras, o V. artigos de Paula Fredriksen, “Tyconius and Augustine on the Apocalypse”, in: The Apocalypse in the Middle Ages, eds. Richard K. Emmerson and Bernard McGinn, Ithaca-London, Cornell University Press, 1993, pp. 20-37 e de E. Ann Matter, “The Apocalypse in Early Medieval Exegesis”, in: ibidem, pp. 38-50. O estudo, entre outros, sobre o conteúdo milenarista do capítulo 20 do Apocalipse, de P. Prigent, “Le millenium dans l’Apocalypse johannique” in: GEUTHNER, Paul. L’Apocalyptique. Paris, 1977, pp. 139-156, aponta os paralelismos das fontes judaicas com as do cristianismo primitivo. 4 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 65-86, jul./dez. 2010 67 NACHMAN FALBEL Liber Figurarum, o Liber Concordie Novi et Veteris Testamenti, o Expositio in Apocalypsim, o Psalterium Decem Chordarum, o Tractatus super Quatuor Evangelia, o De Articulis Fidei, o Adversus Iudaeos e demais escritos. Neles podemos encontrar subjacentes os rastros das idéias e concepções de Agostinho, que se impôs e predominou durante grande parte dos séculos medievais, bem como de Gregório Magno, Beda e outros do alto medievo. Porém, posteriormente, no século XII, Rupert de Deutz (c.1075-1129/30), Honório de Autun (Augustodinensis), Anselmo de Havelberg, Hugo de S. Victor, assim como Bernardo de Claraval, mentor dos cistercienses, Ordem à qual Joaquim de Fiore esteve ligado no início de sua carreira monástica, e antes dele, já faziam uso de uma exegese tipológica peculiar que se distanciava pouco a pouco da patrística tradicional em vários aspectos5. Caso aparte representa a obra de João Scotus Erígena (810-877) que para o historiador E. Gebhart teria tido uma influência sobre Joaquim de Fiore6. Pensador original, Scotus Erígena, também formulou uma concepção de três etapas na história da humanidade, assinaladas respectivamente por sacerdócios. O primeiro sacerdócio, o do Antigo Testamento, que viu a verdade através das nuvens de mistérios ininteligíveis; o segundo sacerdócio, o do Novo Testamento, iluminado com alguns raios de verdade e com alguns símbolos obscuros; o terceiro sacerdócio, o da Vida Futura, que deixará ver a Deus sem mediação. Ao primeiro, corresponderia a lei natural, ao segundo corresponderia o reino de Deus. O primeiro elevou a natureza humana corrompida; o segundo a enobreceu pela fé, pela esperança e pela caridade; o terceiro a iluminaria pela contemplação. O primeiro, figurado pela arca material, foi dado a um povo carnal a quem só a letra comovia. O segundo, figurado Sobre o vínculo de Joaquim de Fiore com os cistercienses, vide o artigo de ZIMDARSSWARTZ, Sandra. “Joachim of Fiore and the Cistercian Order: A Study of De Vita Sancti Benedicti”, in: Simplicity and Ordinariness, Studies in Medieval Cistercian History, IV, Cistercian Publications, Kalamazoo, Michigan, 1980, pp. 293-307. 5 6 GEBHART, E. La Italia mística. Buenos Aires: Ed. Nueva, 1943, pp. 44-65. 68 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 65-86, jul./dez. 2010 JOAQUIM DE FIORE, APOCALIPTICISMO... pelos símbolos tangíveis dos sacramentos, encaminha as almas à vida espiritual que não se realizará plenamente senão no paraíso. Assim se dissiparia na luz da Igreja futura a aparência da Igreja presente. Scotus, em sua homilia sobre o primeiro capítulo de João, não teme dizer que o Espírito Santo, assim como Cristo, é o principio da vida divina7. Observa-se em vários de seus escritos, em que segue a tradição neoplatônica através da patrística grega – cujos representantes mais conspícuos ele próprio traduziu –, o quanto ele se identificou com essa espiritualidade. Para ele, a Igreja do Novo Testamento não era mais que a imagem simbólica da Igreja Eterna. Mas ele ainda apontaria uma terceira revelação, a do Paracleto, que teria lugar numa Igreja superior, celestial, na qual a Igreja do Verbo se elevaria à Igreja do Espírito8. Quanto aos escritos de Rupert de Deutz, Honório de Autun e Anselmo de Havelberg certos estudiosos, com razão, encontram elementos que definiriam uma tendência para mudança da concepção patrística da história, ou da teologia da história, como bem assinala Ratzinger em seu estudo sobre S. Boaventura9. Foi através de Comment. In Evang. Joann., Migne PL, CXXII, 308. V. FALBEL, N., Os Espirituais Franciscanos. São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 52ss. Sobre Scotus Erígena, vide a obra fundamental de CAPPUYNS, Maïeul, Jean Scot Erigène sa vie, son oeuvre, sa pensée. Paris: Desclée de Brouver, 1933, ed. anastática Bruxelas, Civilization et Culture, 1964. Importante para o conhecimento de seu pensamento escatológico são alguns estudos apresentados no encontro History and Eschatology in John Scottus Eriugena and His Time. Proceedings of the Tenth International Conference for the Promotion of Eriugenian Studies, Maynooth and Dublin, August 16-20,2000, eds. McEvoy, J. and Dunne, M. Leuven, Leuven University Press, 2000. 7 8 Expositiones super Hierarchiam S. Dionysii, 1.2, prol, MignePL, CXXII, 266. RATZINGER, J., La théologie de l’histoire de Saint Bonaventure, Paris: PUF, 1988, pp. 110-11. O estudo (tese) de Ratzinger remonta a 1959, publicado com o título Geschichtsteologie des Heiligen Bonaventura. Pertinente é a lembrança do autor, que a atitude da patrística em relação às estruturas deste mundo se diversifica em duas direções: a da “teologia imperial”, como voltada à construção cristã do mundo, em suas estruturas, cujo representante no Ocidente, após Eusébio, seria Orósio, e a “teologia pneumática”, da vitória cristã sobre o mundo no sentido neo-testamentário, tendo como seu maior defensor Agostinho. 9 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 65-86, jul./dez. 2010 69 NACHMAN FALBEL Agostinho que a historização do cristianismo se fixou na doutrina de que Cristo é o fim dos tempos e seu nascimento assinala e desemboca na última idade, assim como foi concebida na periodização das seis idades do mundo do fecundo autor da Civitas Dei e de boa parte dos pensadores da patrística que o antecederam. Rupert de Deutz em sua obra De sancta Trinitate et operibus eius se aproximou de uma teologia da história trinitária dividindo sua obra em três partes, a saber, da Criação à Queda, que corresponde ao tempo do Pai, da Queda à Paixão, que corresponde ao tempo do Filho e, da Ressurreição de Cristo à consumação do saeculum, que corresponde ao tempo do Espírito Santo. Sua exegese, que se pode definir como “teologia bíblica”, se fundamenta numa reflexão sobre tópicos das Escrituras Sagradas, enquanto sua interpretação de certo modo vai além da concepção agostiniana ao introduzir o papel do Espírito Santo na história da salvação do mundo, que se inicia com Cristo10. Para Rupert de Deutz, a cada pessoa da Trindade corresponde um tempo, a saber, o tempo da criação, da Sobre ele vide a importante obra de VAN ENGEN, John H. Rupert of Deutz. Berkeley: University of California Press, 1983. A postura negativa de Rupert de Deutz frente à filosofia ou a dialética, aplicada à teologia se coaduna com a linha da “teologia bíblica”, ao ponto de se opor às artes liberais, aspecto lembrado por Guillermo Fraile, em sua Historia de La Filosofia, Madrid: BAC, 1966, v. II, pp. 529-30. Seu contemporâneo Gerhoh de Reichersberg (1093-1169) teria olhar idêntico frente a “teologia filosófica” –se assim podemos denominá-la – ao escrever ao papa Eugenio III: “Quapropter quoniam scientia illorum cum nulla sit, inflatur adversus scientiam Dei, pulchre satis eorum spiritui congruit illud de fabella Aesopi, ubi rana sufflando tentans se extendere ad magnitutem bovis, dum conatur, et pellem frustra distendit, tandem ultra vires sufflando crepuit. Sic et huius temporibus quidam causidici, et legistae vel sophistae, seu dialectici, vel potius haeretici sophistice loquentes, ideoque odibiles, contra legem divinam, quase contra Moysen et contra sacerdotium legitimum et vere leviticum, quase adversus Aaron dimicantes... Insipientia enim illorum manifestata, et per Sanctam Scripturam confutata evidens erit, quod non de Spiritu Sancto inspirata, sed per spiritus malignos et immundos conspirata sit loquacitas huiusmodi hominum veritati resistentium, et ipsam veritatem Dei in iniustitia retinentium. Quasi enim captivam detinent veritatem sanae doctrinae circumventam suo mendacio, per spiritus malignos conflato, ut magna in eo inveniatur veri similitudo et bonitatis imago (Liber de corrupto Ecclesiae Statu, ad Eugenium III: PL 194,96-97), apud FRAILE, op. cit., p. 530. 10 70 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 65-86, jul./dez. 2010 JOAQUIM DE FIORE, APOCALIPTICISMO... redenção e o tempo da ressurreição. No entanto, Rupert de Deutz associa esse último tempo aos sete dons do Espírito Santo, que contém em sua explicação um esquema da “terceira semana do mundo”, de tradição patrística, da redenção ou salvação, representada na história da Igreja: o da sabedoria, representado pela paixão de Cristo; o da inteligência, representado pelas Escrituras dadas aos apóstolos; o do conselho, associado à rejeição de Cristo pelos judeus; o da força, representado pelos mártires; o da ciência, referente ao tempo dos doutores; o da piedade, representado pela conversão de Israel e do temor, e o do juízo final11. Temos aqui uma elaboração que, se de um lado, resume uma tradição teológica anterior, no entanto, já contém o esboço de um tempo do Espírito Santo que embute a idéia de uma Igreja espiritual joaquimita. Em sua época, Rupert de Deutz não seria o único pensador a abrir uma nova senda para uma nova reflexão sobre a concepção tripartita da história do mundo. Seu contemporâneo Honório Augustudinensis (de Autun, c. 1090 – c. 1151)12, foi um prolífico autor cuja obra abrange boa parte do conhecimento das “ciências” resultante da compilação de autores antigos e dos contemporâneos mais próximos que o antecederam. Na terceira parte do De Imago Mundi, de caráter enciclopédico, ele adota uma história do mundo dividida em seis idades, a saber: 1- do princípio do mundo até Sem; 2- de Sem a Abrahão; 3- de Abrahão a David; 4- de David a Nabucodonosor; 5- do cativeiro da Babilonia a Jesus Cristo; 6- de Jesus Cristo a Frederico I13. Em sua concepção, a história de todos os povos se processa conforme essa periodização. Honório Augustudinensis acreditava que o mundo não perduraria eternamente mas findaria numa RATZINGER, J. op. cit. pp. 113-114. V. também MAGRASSI, M., Teologia e storia nel pensiero di Ruperto di Deutz. Roma: Pontificia Universitas de Propaganda Fide, 1959. (Studia Urbaniana, vol.2, 11 As datas de nascimento e morte de Honório de Autun assim como sobre seu lugar de origem são discrepantes entre os estudiosos. 12 13 De Imago Mundi III 1, MignePL CLXXII, 165. Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 65-86, jul./dez. 2010 71 NACHMAN FALBEL apocatástase em que todas as coisas voltariam à Deus por uma reintegração cósmica14. No Expositio in canticum canticorum ele se refere aos dez estados ou ordens da Igreja e seu significado, considerando como marco divisório a aparição de Cristo, cinco antes e cinco após15. No entanto, em sua elaboração também comparece a tríade histórica do tempo agrupando e relacionando três grupos de 50 salmos com a “forma mundi, qui in tria tempora dividitur: ante legem, sub lege, sub gratia”agostiniana, que seriam representados por Abel, Moisés, Cristo, et finis mundi, desenvolvida porém além da fórmula agostiniana16. Seu contemporâneo, Anselmo de Havelberg (c. 1100-1158), bispo e membro da recém fundada Ordem Premonstratense, que teve uma ampla atuação nos assuntos eclesiásticos de seu tempo, também preocupou-se com a reforma da Igreja e a união de todos os seus componentes, o que também explica sua reflexão histórica e os significados de sua trajetória temporal, tendo como ponto de partida a figura de Abel 17. A observação de McGinn, citando o historiador E. Kantorowitcz, nos dá o significado maior dessa aspiração unificadora Ele sofreu a influência de Scotus Erígena e sua obra Clavis physicae, de natura rerum é na verdade uma apresentação de idéias daquele pensador. 14 Expos. In cant. cant., c.7,5 MignePL, CLXXII,460. V. FLINT, Valerie. The Commentaries of Honorius Augustodinenses on the Song of Songs, in: Revue Bénédictine, 84, 1974, pp. 196-7. 15 Exp. In Ps. Prol., MignePL, CLXXII, 273 D; Exp. in cant. cant. Prol., MignePL CLXXII, 351C, 358A apud Herbert Grundmann, Studi su Gioacchino da Fiore, Marietti, Genova, 1989, p. 92. A obra original de Grundmann foi publicada em alemão sob o título Studien über Joachim von Floris, em 1927, e ainda permanece como um trabalho fundamental para os estudos joaquimitas. 16 V. LEES, Jay T., Anselmo of Havelberg: deeds into words in the twelfth century. Leiden: Brill, 1998, p. 216: “Anselm makes his call to ecclesiastical reform a joyful battle cry meant to unite all the faithful, monks, canons, laymen, greeks, and latins, in a common effort at spiritual renewal”. Para a idéia de um marco inicial da Igreja com a figura de Abel, vide o artigo de Yves Congar, “Ecclesia aba Abel”, in: READING, Marcel (ed.). Abhandlungen über Tehologie und Kirche: Festschrift für Karl Adam, Düsseldorf-Patmos, 1952, pp. 79-108. 17 72 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 65-86, jul./dez. 2010 JOAQUIM DE FIORE, APOCALIPTICISMO... da Igreja em Anselmo18. Nele encontramos uma percepção da fé como um movimento de mudanças, mutationes progressivas, em que os sete selos do Apocalipse fornecem o esquema de sete períodos históricos, adotado por muitos pensadores da Igreja, assim como o fará Joaquim de Fiore19. Em Anselmo o esquema dos tempos após Cristo, configurados conforme a sequência: o cavalo branco, assinalando a vinda de Cristo; o vermelho, o tempo dos mártires, o negro, o tempo das heresias teológicas de Arius, Sabelio Nestório etc., o esverdeado, os falsos cristãos ao mesmo tempo que a fundação das novas ordens, a visão sob o altar como o testemunho dos santos imolados na nova religião, o terremoto como a perseguição provocada pelo Anticristo, e o silêncio no céu, como a visão da eternidade20. No seu escrito Dialogi ou Antikeimenon ele explicita esse movimento da consciência ascendente no conhecimento da fé ao afirmar que no Velho Testamento se anuncia claramente o Pai, mas o Filho ainda não é anunciado de forma expressa. Do mesmo modo, no Novo Testamento o Pai e o Filho, são anunciados, enquanto o Espírito Santo ainda não é inteiramente anunciado, sendo seu conhecimento desvelado gradativamente21. Passa a ser correta a interpretação de estudiosos de que Anselmo em sua obra visava chamar a atenção de seus contemporâneos sobre a ação do Espírito Santo no tempo da humanidade, no tempo histórico22. Vale lemMCGINN, B. Visions of the End, p. 95: “In a brilliant short paper on The Problem of medieval World Unity, E. Kantorowicz has claimed that the medieval Myth of World Unity has a predominantly messianic or eschatological character”. A citação de Kantorowitcz é tirada do Selected Studies, Locust Valley, N.Y.: Augustin, 1965, p. 78. 18 19 V. WANNENMACHER, Julia Eva. Hermeneutik der Heilsgeschichte. De septem sigillis und die sieben Siegel in Werk Joachims von Fiore. Leiden: Brill, 2005. 20 Dialogi l. 1, c. 7-13, col. 1149-1160, MignePL CLXXXVIII. 21 Dialogi l. 1, c. 6, col. 1147s e l. 2, c. 23, col. 1200-1202, MignePL CLXXXVIII. Na recente tradução ao inglês do Dialogi, Ambrose Criste, OPraem e Carol Neel, Anticimenon: On the Unity of the Faith and the Controversies with the Greeks, Cistercian Publications, Liturgical Press, Collegeville, Minnesota, 2010, que inclui uma bibliografia atualizada sobre Anselmo, expressam na Introdução, p. 7: “Anselm’s goal in crafting the work at hand was ambitious: to illuminate for his contemporaries the agency of the Holy Spirit in human time”. 22 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 65-86, jul./dez. 2010 73 NACHMAN FALBEL brar que o “tempo histórico” de Anselmo e seus contemporâneos próximos bem poderia servir de contexto para suas especulações apocalípticas e escatológicas. Desde a segunda metade do século XI e inícios do século XII grandes mudanças estavam se dando na instituição eclesiástica, em especial em sua relação com o regnum, na tentativa de eliminar os males que a vinham assolando há longo tempo. O impulso de reforma da Igreja assumira novas proporções, visando eliminar a investidura laica, que se tornou uma questão central no período que antecede o papado de Gregório VII e que efetivamente entrara em confronto com o poder secular para erradicá-la de uma vez por todas, a par de outros males como a simonia e a conduta não condizente de clérigos com a vida religiosa. Os graves acontecimentos da “querela das investiduras” e suas repercussões, que adquire dimensões universais após a eleição de Gregório VII e o desafio à Henrique IV, tinha como epicentro secular o imperador do Sacro Império Romano Germânico, e por isso mesmo talvez explique a coincidência de que boa parte dos teólogos, voltados à uma reflexão histórico-escatológica seja de origem germânica. Os libelli de lite, as bulas, documentos, declarações, epístolas, emanados de ambos os poderes, espiritual e temporal, contêm em seu conjunto um considerável número de textos e passagens que revelam o elevado nível de tensões e expectativas de caráter escatológico, senão apocalíptico, presentes naqueles anos. Kurt-Victor Selge, observa que Herbert Grundmann já havia demonstrado com profundidade a conexão do pensamento de Joaquim com a luta política entre o império e o papado pela libertas ecclesiae de seu tempo23. Mesmo após a Concordata de Worms, em 1122, e os acontecimentos posteriores a ela, não se amainaria o clima de exaltação gerado nesses anos de confronto entre as duas instituições regentes da sociedade No posfácio da edição italiana da obra de H. Grundmann, Studi su Gioacchino da Fiore. Roma: Marietti, 1989, p. 206. A referência de Selge é o estudo de GRUNDMANN, Libertà della chiesa e potere imperiale intorno al 1190 nella visione di Gioacchino da Fiore. Deutsches Archiv, 19, 1963, pp. 353-396; cf. Ausgewählte Aufsätze, II, 1977, pp. 361-402. 23 74 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 65-86, jul./dez. 2010 JOAQUIM DE FIORE, APOCALIPTICISMO... medieval, na qual a antiga crença do tempo da vinda e atuação do Anticristo, que antecede o juízo final, é revivida não apenas como metáfora ou alegoria aplicada à figura do Imperador (e por vezes ao Papa) mas como realidade presente no curso decisivo da história24. Nas obras De investigatione Antichristi25 e no De quarta vigilia noctis, de teor claramente apocalíptico, Gehroh de Reichersberg (1093-1169), defensor da reforma gregoriana no período da disputa entre Alexandre III e Frederico Barbaruiva, vê a interferência do Anticristo em quatro etapas da trajetória histórica da Igreja inspirado na leitura de Mt 14:22-33 na qual é narrado o caminhar de Jesus sobre as águas do mar da Galiléia durante a ‘quarta vigília’: a primeira, representada pelas perseguições de Nero, é o período do Anticristo sanguinário, a segunda, pela heresia, é período do Anticristo fraudulento, a terceira, pela corrupção dos costumes, é o período do Anticristo impuro caracterizado pela luta entre Gregorio VII e Henrique IV, e o quarto assinala o período da avarícia, representada pelo Anticristo que provoca a existência do clero simoníaco e também corroí a cúria romana 26 . Assim como Gehroh de Reichersberg, Joaquim de Fiore também acreditava na vinda de vários Sobre a intensa expectativa da vinda do Anticristo, vide a importante obra de EMMERSON, Richard Kenneth. Antichrist in the Middle Ages: A Study of Medieval Apocalypticism, Art, and Literature, Seattle, University of Washington Press,1981; RUSCONI, Roberto”. Antichrist and Antichrists”, in: Encyclopedia of Apocalypticism. vol. 2, ed. Bernard McGinn,, New York/London: Continuum 2000, pp. 287-325. 24 Gehroh de Reichersberg, nessa obra, faz referência ao Ludus de Antichristo, uma peça de caráter escatológico, considerada a melhor dramatização medieval sobre a lenda do Anticristo, vide EMMERSON, K., op.cit., p. 166. 25 MCGINN, B. “Apocalypticism and Church Reform, 1100-1500”, in: Encyclopedia of Apocalypticism, Apocalypticism in Western History and Culture, vol. 2, ed. Bernard McGinn, New York/London: Continuum, 2000, pp. 82-83. É nesse mesmo tempo que a influente mística alemã, Hildegard de Bingen (1098-1179), em seu escrito Scivias, no Liber divinorum operum assim como em outros textos saídos de sua pena dirige fortes críticas ao clero, impregnadas de idéias reformistas de teor apocalíptico. 26 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 65-86, jul./dez. 2010 75 NACHMAN FALBEL Anticristos como bem demonstrou Robert E. Lerner27. Também o cronista de Frederico Barbaruiva, o bispo Otto de Freising (c. 1101158) no capítulo final de sua obra Chronica sive Historia de duabus civitatibus, reflete sobre o final dos tempos. Porém, certamente está voltado à história passada e aos acontecimentos de seu tempo, certamente com a intenção de ilustrar o imperador alemão. Em sua divisão entre civitas terrena e civitas Dei, Otto de Freising aplica uma divisão trinitária28. O mesmo contexto está associado à atmosfera gerada pelas Cruzadas, que teriam um papel decisivo para a transformação da sociedade medieval desde que, em 1095, o papa Urbano II mobilizou a cristandade ocidental para a libertação e a retomada dos lugares santos da Terra Santa então nas mãos dos muçulmanos. As crônicas latinas, assim como as hebraicas, relativas às Cruzadas e que descrevem os dramáticos acontecimentos, entre eles a conquista de Jerusalém em 1099, revelam o quanto esse clima de expectativa apocalíptica se encontrava presente nos anos em que elas se deram29. V. em especial o estudo “Antichristi e Antichristo in Gioacchino da Fiore”, na importante obra de Lerner, R.E., Refrigerio dei Santi, Gioacchino da Fiore e l’escatologia medievale, Roma: Viella, 1995, em especial p. 118ss: “In contrasto com questa tradizione, gli scritti profetici della maturità di Gioacchino da Fiore dimostrano che egli credeva nella venuta di molti anticristi, attribuendo però un‘importanza particolare a due di essi, i più terribili, la cui venuta egli collocava in um tempo futuro”. 27 Sobre a obra, publicada em latim por A. Hofmeister, Cronica sive Historia de duabus civitatibus MGH, SSRerum Germanicarum, XL, Hanover-Leipzig, Hahn, 1912, e sua tradução por Charles Christopher Mierow, The Two Cities: A Chronicle of Universal History to the Year 1146 A.D., New York: Columbia University Press, 1928, vide deste último “Bishop Otto of Freising, Historian and Man”, in: Transactions and Proceedings of the American Philological Association, LXXX, 1949, 393-401; idem “Otto of Freising: a “Medieval Historian at Work”, in: Philological Quarterly, XXIV, 1945, pp. 97-105 e o elucidativo estudo de LAMMERS, Walther. Weltgeschichte und Zeitgeschichte bei Otto Von Freising, in: Die Zeit der Staufer, Katalog der Ausstellung. Stutgart, 1977, Band V Supplement, Vorträge und Forschungen, Württenbergeschen Landesmuseums, herausg. Reiner Haussheer und Christian Väterlein, pp. 77-90. 28 A manifesta expectativa nesse período levou ao fenômeno da conversão de alguns cristãos ao judaísmo, a exemplo do normando Obadia, o Prosélito. V. FALBEL, N. Kidush Hashem: Crônicas Hebraicas sobre as Cruzadas, São Paulo: Edusp-Imprensa Oficial, 2001, pp. 271-333. 29 76 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 65-86, jul./dez. 2010 JOAQUIM DE FIORE, APOCALIPTICISMO... Nesse aspecto podemos afirmar que um exame de conjunto da teologia da história assim como esta se apresenta em Rupert de Deutz, em Honório de Autun e em Anselmo de Havelberg30, e ainda em outros pensadores do século XII, indica que apesar de adstritos ao pensamento agostiniano tradicional suas reflexões continham germes de uma mudança inovadora que certamente tiveram um papel formador nas concepções de Joaquim de Fiore. Assim como Anselmo de Havelberg leu os escritos de Rupert e Honório, não menos provável que Joaquim os tenha lido e vislumbrado centelhas inspiradoras para sua própria obra concomitantemente às fontes patrísticas, cuja leitura e estudo se revelam em seus escritos. Contudo, determinar os autores e obras que tiveram papel decisivo na gestação do pensamento de Joaquim de Fiore constitui um verdadeiro desafio, considerando-se a multiplicidade de hipóteses e sugestões aventadas no meio acadêmico desde o século XIX31. Os estudiosos da obra de Joaquim de Fiore o consideram um marco diferenciado devido o tratamento exegético inovador dado ao livro do Apocalipse. Conforme bem afirma E. Randolph Daniel sua interpretação é radicalmente nova no método utilizado para a “historização” do livro de João, sendo que o método exegético da concórdia não encontra antecedentes32. É sob o mistério da Trindade Sobre ele, vide EDYVEAN, W. Anselmo of Havelberg and the Theology of History. Rome: Pontificia Universitas Gregoriana, 1972. 30 A bibliografia, sob essa questão, é extensa, mas creio que uma síntese útil pode ser encontrada no artigo de BLOOMFIELD, Morton W. “Joachim of Flora, A Critical Survey of his Canon, Teachings, Sources, Biography and Influence, in: Traditio, XIII, 1957, pp. 249-311. 31 “Joaquim of Fiore: Patterns of History in the Apocalypse”, in: The Apocalypse in the Middle Ages, p. 73. Devo observar que dentro dos limites do presente artigo sintetizo certos aspectos de seu pensamento sobre o qual escrevi no capítulo “Joaquim de Fiore e sua contribuição à formação do pensamento espiritual”, incluindo as fontes, em minha obra Os Espirituais Franciscanos. São Paulo: Perspectiva, 1995, pp. 49-77. 32 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 65-86, jul./dez. 2010 77 NACHMAN FALBEL que Joaquim constrói a periodização que representa as três idades do mundo (status mundi) figurada por um “ordo” diferente em cada uma das idades. O período do Pai, no qual os homens viviam segundo a carne (in quo vivebant homines secundum carnem), é aquele no qual prevalece a lei, o tempo dos desposados e laicos e nele predomina o Velho Testamento. A este tempo se sucede o período do Filho, o período da Graça, no qual os homens vivem num estádio intermediário, entre a carne e o espírito (in quo vivitur inter utrumque, hoc est inter carnem et spiritum). Este é o período do “ordo” dos clérigos e nele predomina o Novo Testamento. O terceiro período é o do Espírito Santo, o período do Amor, do “ordo” dos monges, no qual predominará o Espírito (in quo vivitur secundum spiritum) caracterizado pelo Evangelho do Espírito Santo ou o Evangelho Eterno (evangelium aeternum), que significa o conhecimento resultante de uma interpretação espiritual superior dos dois Testamentos (O Velho e o Novo). Este espírito eterno extraído das Escrituras pelo “spiritualis intellectus”, por uma interpretação espiritual superior, é o que subsistirá, enquanto que a letra dos anteriores, assim como nós a conhecemos até agora, desaparecerá no futuro. Esta “intelligentia spiritualis” será um dom outorgado aos “viri spirituales”, fundamento da nova Igreja Espiritual (ecclesia spiritualis), assentada sobre um novo “ordo” (ordo iustorum, ordo monachorum), que tomará o lugar da Igreja carnal, corrompida, predominante até o seu tempo33. Em sua periodização trinitária Joaquim delimita o primeiro período iniciando-se com Adão e culminando com Cristo; o segundo de Cristo até o ano de 1260; e o terceiro de 1260 até o final dos tempos. Cada período ou idade, possui um precursor e um iniciador durando 42 gerações, tese fundamentada no verso de Mt 1:17 ou seja de Abrahão a Davi, de Davi ao exílio na FALBEL, N. ”São Bento e a ordo monachorum de Joaquim de Fiore”, Revista USP, SP, (30), junho-agosto, pp. 273-276. 33 78 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 65-86, jul./dez. 2010 JOAQUIM DE FIORE, APOCALIPTICISMO... Babilonia, do exílio da Babilonia à Cristo, equivalente à três vezes quatorze gerações. Cada geração compreende trinta anos, desse modo temos trinta como multiplicador de quarenta e dois que perfaz 1260, ano em que se iniciará a terceira idade que teve como precursor a São Bento e terminará com o Juízo Final34. Como precursor do segundo período é assinalado o rei Ozias e se inicia com Zacarias, pai de João Batista. O surgimento de cada período ou idade é turbulento e anuncia a vinda do Anticristo. Em outro lugar dá a entender que o Anticristo já nasceu e está vivo, quem sabe em Roma, o que poderia ser interpretado como sendo o Papa. Porém devemos observar que juntamente com o sistema trinitário, como já haviam observado estudiosos como Marjorie Reeves e B. Hirsch-Reich, Joaquim de Fiore não deixou de seguir também o sistema tradicional binário, alicerçado sobre a dualidade do Velho e do Novo Testamentos, velha e nova Jerusalém, tribo de Judá e Igreja Romana. Sob esse aspecto, o sistema binário ainda teria um papel relevante na teologia da história do abade calabrês, enquanto que o trinitário permaneceria no nível “místico-profético”, o que não daria ao terceiro “status” uma autonomia absoluta, porém diretamente dependente dos demais35. Por outro lado, como lembra M.W. Bloomfield, citando M. Reeves, o aspecto pessimista existente que na visão histórica joaquimita derivaria do sistema binário, enquanto que o seu aspecto otimista derivaria do sistema trinitário. O fato decisivo é que a história termina com a grande tribulação, com o surgimento de Vide sobre o significado do ano 1260 e a alternativa do ano 1200 em Mottu, op. cit., pp. 267-269 e respectivas notas de rodapé. 34 Sobre isso, vide REEVES, Marjorie, The Influence of Prophecy in the Latter Middle Ages. A Study in Joachinism. Oxford: Clarendon Press, 1969, pp. 16-27; idem, The Liber Figurarum of Joachim of Fiore, Mediaeval and Renaissance Studies, II, 1950, pp. 57-81; HIRSCH-REICH, B. The Seven Seals in the Writings of Joachim of Fiore, Recherches de Théologie ancienne et médiévale, XXI, 1954, pp. 211-47; POTESTÀ, Gian Luca. Il tempo dell’Apocalisse. Vita di Gioacchino da Fiore, Roma-Bari: Laterza, 2004, pp. 5-6; 35 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 65-86, jul./dez. 2010 79 NACHMAN FALBEL Gog antes do Segundo Advento, mas “essa crise de Gog, no esquema trinitário desenvolvido por Joaquim, não é no entanto nunca identificado com a última perseguição da Igreja, o antichristus ultimus et pessimus, ou a sétima cabeça do Dragão. Essa deve preceder a Idade do Sábado do terceiro status, mas no seu final virão as hostes de Gog, o último golpe, como se fosse da cauda do Dragão, em que aparece na Figura do Dragão”36. Sejam quais forem as fontes inspiradoras de Joaquim – e não foram poucas – o que se destaca em sua concepção é o papel atribuído ao Espírito Santo na economia religiosa como o período “electus est ad libertatem contemplationis scriptura attestante qui ait: Ubi spiritus ibi libertas”. O método é o da “concordância” entre o Velho e o Novo testamento, “secundum coaptationem concordiae” que se diferencia do tradicional método alegórico predominante na exegese cristã medieval. O princípio hermenêutico emana do “misticus intellectus qui sicut dicut est a duobus procedit”. Este princípio é o que rege a “concórdia” das duas partes das Escrituras Sagradas, que contém a fé de Israel e da Igreja de Cristo. O gênero da exegese profética de Jaoquim está ligado diretamente à interpretação do livro do Apocalipse, fonte inspiradora da escatologia, do apocalipticismo, do profetismo e do milenarismo posterior, livro ao qual dedicou grande parte de seu labor intelectual, a fim de revelar o significado hermético e simbólico nele contido. O conjunto de suas obras lembradas acima e as diretamente voltadas à interpretação do livro do Apocalipse, isto é, o Expositio in Apocalypsim, o Enchridion super Apocalypsim e o Liber introductorius in Apocalypsim servirá como um manancial e fonte criativa BLOOMFIELD, W.C.; LEE, Harold. “The Pierpont – Morgan Manuscript of De Septem Sigillis”, in: Recherches de Théologie Ancienne et Médiévale. XXXVIII, 1971, 137-148. O texto De Septem Sigillis foi publicado por Marjorie Reeves e Beatrice Hirsch-Reich, The Seven Seals in the Writings of Joachim of Fiore, in: Recherches de Theólogie Ancienne et Médiévale, XXI, 1954, pp. 211-247. A citação de Bloomfield é extraída desse último trabalho, p. 222. 36 80 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 65-86, jul./dez. 2010 JOAQUIM DE FIORE, APOCALIPTICISMO... para uma verdadeira corrente de literatura apocalíptica que se manifestará séculos após a sua morte37. A difusão de seu pensamento deveu-se, em boa parte, a certos círculos franciscanos que a partir da década de 1250 incorporaram suas idéias ainda que associadas a uma ótica própria, que se distanciaria cada vez mais dos textos originais de seu autor. Conforme um estudo de Morton Bloomfield e Marjorie Reeves, as idéias de Joaquim, de início difundidas entre os membros da Ordem Florence e Cisterciense na Calabria e na Itália, atravessaram os Alpes expandindo-se pelo continente para a Inglaterra, França, Espanha e Alemanha, conforme atesta o grande número de manuscritos encontrados nas bibliotecas européias38. Mas E. Randolph Daniel sugere que a expansão ter-se-ia dado mesmo antes de 124039. Marjorie Reeves lembra que a provável causa para a aceitação da hipótese de uma expansão posterior das idéias de Joaquim foi a sua condenação no Concílio de Arles, em 1263, que dava a entender que as doutrinas do abade calabrês ainda eram pouco conhecidas e permaneciA questão do método exegético de Joaquim de Fiore é abordada com profundidade no excelente estudo de Henry Mottu, La manifestation de l’Esprit selon Joachim de Fiore. Paris: Delachaux & Nestlé S.A., 1977. Me utilizei da versão italiana La manifestazione dello spirito secondo Gioacchino da Fiore, Ermeneutica e teologia della storia secondo Il “Trattato sui quattro Vangeli”, Marietti, Casale Monferrato, 1983. Na nota introdutória à obra, p. XI, Gian Luca Potestà chama a atenção que “attraverso l’analisi del Tractatus super quatuor Evangelia, uno degli scritti più maturi e radicalmente espressivi Del suo pensiero, Mottu mostra come l’exegesi gioachimita non sia semplicemente allegorica e mística (secondo la riduzione interpretativa già operata da Ernesto Buonaiuti) ma profetica, in quanto reinterpreta il contenuto spirituale della sacra pagina in una prospettiva storico-apocalittica.” 37 BLOOMFIELD, M. W.; REEVES, M. E. The penetration of Joachim into Northern Europe, in: Speculum, XXIX, 1954, pp. 772-793. O levantamento dos manuscritos feito por Marjorie Reeves em seu notável estudo The Influence... pp. 511-540 comprova essa assertiva. Randolph Daniel baseia-se na Cronica de Salimbene (Chronica, MGH, SS, t.XXXII) bem como nos dois textos pseudo-joaquimitas, o Super Hieremiam Prophetam e o Super Esaiam Prophetam citados pelo próprio Salimbene. 38 DANIEL, Randolph E. A re-examination of the origins of Franciscan Joachitism, in: Speculum. XLIII, 1968, pp. 671-678. Segundo o mesmo autor, a difusão do joaquinismo nos meios franciscanos do sul da Itália teria sido nos inícios de 1240. 39 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 65-86, jul./dez. 2010 81 NACHMAN FALBEL am na obscuridade. A fama de Joaquim, porém, já se fazia notar com a disseminação de sua Ordem antes e logo após sua morte, assim como entre certos meios cistercienses e franciscanos40. No entanto, sua menção por cronistas como Sicardo, bispo de Cremona, que escreveu entre 1201 e 1215, Roberto de Auxerre, que escreveu antes de 1215, ou Roger de Wendover cujo Flores Historiarum é dos anos 1230, evidencia o quanto sua doutrina estava difundida nesse tempo. A narrativa na Chronica de Roger de Hoveden sobre o encontro de Ricardo Coração de Leão com Joaquim em Messina entre 1190 e 1191, durante a Terceira Cruzada, assim como o Chronicon Anglicanum de Ralph Coggeshall também confirmam a fama do “profeta“ calabrês. A presença de expressões e idéias joaquimitas é inegável nas duas obras pseudo-joaquimitas Super Hieremiam Prophetam e o Super Esaiam Prophetam possivelmente produzidas no sul da Itália e que passaram a fazer parte das leituras de franciscanos como Hugo de Digne, Bartolomeo Guiscolo, Gerardo da Borgo San Donnino, João de Parma e outros, como se pode depreender da Crônica de Salimbene, ele mesmo leitor desses mesmos textos41. REEVES, Marjorie. The Influence... pp. 38-39. A autora observa que um meio efetivo de divulgação de suas idéias foram as figurae, ou seja, as “imagens descritivo-explicativas” que constam no Liber Figurarum, cuja iconografia parece ter sido amplamente difundida. Sobre o texto Leone Tondelli, que escreveu o primeiro volume da segunda edição, publicado em 1953, sendo o segundo conjuntamente com M. Reeves e B. HirschReich, Il Libro delle Figure dell’Abate Gioachino da Fiore. 2ª. ed. Turim: Società Editrice Internazionale, 1954. Também REEVES, M.; HIRSCH-REICH, B. The “Figurae” of Joachim of Fiore. Oxford: Clarendon Press, 1972. 40 DANIEL, R.E., op. cit. pp. 674-5. O Super Hieremiam Prophetam teve sua primeira edição em Veneza, Lacaz de Soardis, 1516 e Super Esaiam Prophetam, em Veneza, 1517. Vide também WEST, Delno C., Between flesh and spirit: Joachim pattern and meaning in the Cronica of Fra Salimbene, in: Journal of Medieval History, vol. 3, issue 4, December, 1977, pp. 339-352. GRUNDMANN, H., op. cit., no capítulo IV de seu estudo “La sopravvivenza delle idee gioachimite”, pp. 169-204, traça um histórico da expansão de suas doutrinas e escritos em alguns centros, sem que nem sempre se possa saber com certeza se, nessas primeiras décadas o conhecimento de suas idéias se fundamentava em escritos autênticos ou não. 41 82 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 65-86, jul./dez. 2010 JOAQUIM DE FIORE, APOCALIPTICISMO... Até onde, durante o século XIII, idéias joaquimitas foram absorvidas por movimentos heréticos a exemplo dos seguidores de Amaury de Bène, Gerardo Segarelli e Dolcino de Novara, lideres dos PseudoApóstolos ou Apóstolos de Cristo, assim como outros heresiarcas, ainda é uma questão aberta que deverá merecer a atenção dos estudiosos, apesar das tentativas pontuais de esclarecer a sua influência em certos heterodoxos42. Boa parte desse pseudo-joaquimismo não era mais do que interpretações que extrapolavam a doutrina trinitária original de Joaquim de Fiore tendo como fundo e intenção a crítica e a revolta contra a instituição eclesiástica, vista como corrupta e afastada da vida evangélica, assim como a entendiam as heresias desejosas de reforma. Mas em meados do século XIII, conforme vimos acima, os escritos fundamentais de Joaquim já eram conhecidos, e seriam ainda mais a partir de 1254, quando Gerardo da Borgo San Donnino publicou o Introductorius ad Evangelium aeternum, identificando nos principais escritos de Joaquim o próprio Evangelho Eterno, ao mesmo tempo em que provocava uma explosiva querela interna na OrSobre eles, vide FALBEL, N. Heresias Medievais. São Paulo: Perspectiva, 1977. Em relação à Amaury de Bène Paul Fournier em seu Études sur Joachim de Flore et ses doctrines (Paris: 1909, reprod. Frankfurt-Am Main: Minerva GMBH, 1963, p. 40), escreveu que “Dès le début Du XIIIe siècle, nous retrouvons chez les disciples d’un hérésiarque francais, Amaury de Chartres, des croyances qui sont vraisemblablement inspirées par les prohéties de Joachim de Flore. Comme Joachim, ces hérétiques partage l’histoire en trois périodes, celle du Père, celle du Fils et celle de l’Esprit”. No entanto, G.C. Capelle, em sua obra Autour du décret de 1210: III- Amaury de Bène, étude sur son panthéisme formel (Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1932, p. 81-5), coloca em dúvida essa possibilidade, aventando a hipótese que ambos “se inspiraram de uma mesma fonte”. No prefacio a essa obra, pp. 5-6, Étienne Gilson também contesta a opinião geralmente aceita sobre o próprio panteísmo de Amaury de Bène ao afirmar que “La conclusion qui s’en dégage est, qu’en somme, Amaury de Bène est à lui-même sa propre source. Son panthéisme ne se retrouve ni chez les Chartrain, ni chez Scot Erigène, mais est issu de ses propres réflexions sur la nature de Dieu et des relations du monde à Dieu”, contrario à concepção de um estudioso de sua obra como Mario Dal Pra (Amalrico de Bène. Milano: Fratelli Bocca Editori, 1951), que enfatiza a influência de João Scotus Erígena. 42 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 65-86, jul./dez. 2010 83 NACHMAN FALBEL dem Franciscana43. Esta última querela seria logo associada à contenda externa com os magistri seculares devido a presença e influência das ordens mendicantes na Universidade de Paris44. Efetivamente, foi nos círculos iniciais dos Espirituais Franciscanos, que viam a si mesmos como os arautos de uma nova Igreja, que o pensamento joaquimita teve maior aceitação, introduzindo-se na notável produção literária de sua elite e liderança intelectual, impregnando as obras que saíram de suas penas. Refiro-me em particular a Pedro de João Olivi45, Ubertino de Casale, Angelo Clareno e seus seguidores. E, mesmo que nem sempre possamos identificar referencias expressas às obras de Joaquim, ainda assim manifestações de expectativa apocalíptica e escatológica perpassam como fio central em suas obras46. Nesse mesmo contexto, o genial e visionário médico catalão Arnaldo de Vilanova, identificado e defensor dos Espirituais, também apresenApesar da bibliografia existente sobre a questão do Evangelium aeternum, indispensável se faz a leitura de DENIFLE, S. Das Evangelium aeternum und die Comission zu Anagni, in ALKG, I, 1885, pp. 49-141. 43 44 V. FALBEL, N., Os Espirituais Franciscanos, pp. 69-77. Pedro de João Olivi (1247-1297), que se destacou como líder dos Espirituais na Provença, teve uma fecunda atividade intelectual, e em sua Lectura super Apocalipsim vemos o quanto se identificara com o joaquimismo. Sob esse aspecto ainda permanece como fundamental a obra de Raul Manselli, La ‘Lectura super Apocalipsim’ di Pietro di Giovanni Olivi: Ricerche sull’ escatologismo medioevale (Roma: Istituto Storico Italiano per Il Medio Evo, Studi storici 19-21, 1955). Novos estudos e questionamentos sobre Olivi encontram-se na coletânea, incluindo bibliografia de 1989-1998, Pierre de Jean Olivi (1248-1298), Pensée scholastique, dissidence spirituelle et société, Actes du colloque de Narbonne (mars 1998), ed. por Alain Boureau et Sylvain Piron, Paris: Lib. Phil. J. Vrin, 1999. 45 Sobre eles, dediquei alguns capítulos em meu estudo “Os Espirituais Franciscanos”, citado anteriormente, nele incluindo as referências das fontes e a bibliografia específica. No entanto, devo observar que desde os anos 1972, quando apresentei minha tese de doutorado sobre o tema, bem como sua publicação somente em 1995, até hoje, avolumaram-se os estudos sobre essas marcantes figuras enriquecendo sobremaneira nosso conhecimento sobre os mesmos. 46 84 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 65-86, jul./dez. 2010 JOAQUIM DE FIORE, APOCALIPTICISMO... ta uma obra marcada por um joaquimismo exaltado, na qual especula sobre a vinda do Anticristo e a reforma da Igreja47. Os padrões da exegese joaquimita, a saber, os três status, as sete idades do mundo, o duplo sete selos e suas “aberturas” (apertiones) estão presentes em uma série notável de pensadores e exegetas medievais que foram contaminados por seus escritos, como Adam de Marisco (Marsh) e Rogério Bacon, mesmo que esses não fizessem parte de grupos Espirituais da Ordem Franciscana48. Daí podermos entender a reação de determinadas personalidades que viam em certas doutrinas vinculadas à obra de Joaquim senão uma ameaça à Igreja ao menos uma visão e interpretação errônea de verdades teológicas aceitas e compartilhadas universalmente pelo conjunto de seus fiéis49. Teólogos de vulto como Tomás de Aquino (1225-1274), que em sua postura teológica mostrou-se radicalmente crítico à escatologia joaquimita, e, de outro lado, Boaventura (1217-1274), que demonstra plena familiaridade com seus escritos no Collationes in Hexaemeron e mais ainda no Breviloquium Sobre ele, vide meu estudo “Arnaldo de Vilanova, sua doutrina reformista e sua concepção escatológica”, tese de livre-docência, Universidade de São Paulo, 1977. A mesma observação da nota anterior aplica-se a esse trabalho. 47 V. BURR, David. “Mendicant Readings of the Apocalypse”, in: EMMERSON, Richard K.; MCGINN, Bernard. The Apocalypse in the Middle Ages. Ithaca-London: Cornell University Press, 1992, pp. 89-102. A adoção da exegese joaquimita posterior à sua morte é também tratada por Henri de Lubac, Exégèse Médiévale, Les quatre sens de l’Écriture, seconde partie, II, Paris: Aubier, 1964, pp. 325-344. 48 Importante, sob esse aspecto, é o estudo de Bernard McGinn, “The Abbot and the Doctors: Scholastic Reactions to the Radical Eschatology of Joachim of Fiore”, in: Church History, vol. 40, n. 1 (mar., 1971), pp. 30-47, reeditado com o capítulo 7 de seu livro The Calabrian Abbot. Joachim of Fiore in the History of Western Thought, New York: MacMillan, 1985, pp. 207-234, com o título “Ther Abbot and the Doctors: Joachim, Aquinas and Bonaventure”; também o capítulo 3 da obra de H. de Lubac, La postérité spirituelle de Joachim de Flore, I. de Joachim à Schelling, P. Lethielleux, 1987, pp. 123-160. 49 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 65-86, jul./dez. 2010 85 NACHMAN FALBEL e foi influenciado por seu pensamento, evidencia o quanto a obra do abade causara impacto na escolástica daquele tempo50. Para terminarmos se faz oportuno lembrar as palavras de Marjorie Reeves, a notável scholar, cuja obra é um marco divisor para o conhecimento do joaquimismo: O significado histórico de Joaquim repousa na caráter dinâmico de certas idéias centrais que ele anunciou. Elas atuaram subterraneamente nos séculos que se seguiram, florescendo de tempos em tempos para uma nova vida em um grupo ou individualmente. Sua qualidade vital emergiu do fato que elas atuaram na imaginação, promovendo a esperança e desse modo a ação51. V. RATZINGER, J. op. cit.; FALBEL, N., “São Boaventura e a Teologia da História de Joaquim de Fiore”, in: S. Boaventura, 1274-1974, II, Studia, Grottaferrata, 1973, pp. 571-584; E. RANDOLPH, Daniel. St. Bonaventure’s Debt to Joachim, in: Medievalia et Humanistica, 11, 1982, pp. 61-75. 50 REEVES, M., The Influence... p. 136: “The historical siginifcance of Jaochim lies in the dynamic quality of certain key ideas which he proclaimed. They worked underground in the following centuries, form time to time springing to new life in a group or in individual. They vital quality arose from the fact that they worked in the imagination, moving to hope and so to action”. 51 86 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 65-86, jul./dez. 2010 O ALTER CHRISTUS: CRISTOCENTRISMO E CONSTRUÇÃO... O ALTER CHRISTUS: CRISTOCENTRISMO E CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DE FRANCISCO NA ARBOR VITAE CRUCIFIXAE IESU, DE UBERTINO DE CASALE (1305) Ana Paula Tavares Magalhães * Resumo: O cristocentrismo, pensamento que tende a estabelecer o advento de Cristo como elemento central da História, marcou o pensamento teológico e filosófico da Ordem Franciscana, com destaque para Boaventura de Bagnoregio, seu expoente máximo. Trata-se de uma matriz patrística, cujas idéias fundamentais podem ser observadas em Agostinho de Hipona. A esse pensamento, associou-se o papel fundamental atribuído a Francisco de Assis na história da Igreja na crônica franciscana. Ubertino de Casale, representante de um pensamento rigorista no interior da Ordem, apropriou-se desses dois elementos, conferindo-lhes novos significados em sua obra, ao mesmo tempo que atribuiu aos Espirituais Franciscanos uma suposta solução de continuidade em relação aos mesmos. Os ideais da estrita observância – com a ênfase no usus pauper que ela forçosamente acarreta – e da reconstrução do cristianismo primitivo – destacando-se o papel histórico fundamental de Francisco de Assis e a urgência de seu projeto – teriam permeado a luta travada pelos * Universidade de São Paulo. Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010 87 ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES Espirituais Franciscanos, em meio a uma conjuntura política e social marcada por uma série de conflitos – com o clero secular, com os mestres parisienses, com a própria Ordem Dominicana e em vista dos chamados Conventuais, membros da Ordem que se mostravam partidários de uma “observância ampla” (marcada por uma percepção mais subjetiva do usus pauper e por formas de conduta tendentes a privilegiar o comportamento individual frente ao coletivo). A obra Arbor vitae crucifixae Iesu (1305), de Ubertino de Casale (1259-1328), situa-se na linha das discussões que durante muitos anos povoaram a história da Ordem e da Igreja, opondo Conventuais e Espirituais, naquilo que ficou conhecido como a “Questão Espiritual”. Escrita no ano de 1305, a Arbor vitae de Ubertino apresenta uma série de pressupostos vinculados ao partido espiritual no interior da questão que se processava dentro da Ordem Franciscana. Não se configura, entretanto, como um escrito concretizado com o fito de atender à demanda de uma solução urgente – caso do Rotulus iste1, produzido em meio às disA pesquisa científica acerca do franciscano Ubertino de Casale, que marcou trajetória na história da Ordem e da Igreja Católica entre os séculos XIII e XIV, remonta ao fim do século XIX. Em sua preocupação com a chamada magna disceptatio (1309-1312) – opondo Espirituais e Comunidade, facções em que se encontrava cindida a Ordem Franciscana – e com as conseqüentes ocorrências processadas no Concílio de Viena (1312) – no qual coube a Ubertino o destaque como ferrenho defensor das idéias e da pessoa do também franciscano Pedro de João Olivi, este profundamente envolvido com a questão da pobreza, que abalava a instituição fundada por Francisco –, Ehrle (EHRLE, F. Zur Vorgeschichte des Conzils von Vienne, in: Archiv für Litteratur und Kirchengeschichte des Mittelalters, 2 (1886) 353-416, 3 (1887) 1-195; Die Spiritualen, ihr Verhältniss zum Franziskaner Orden und zu den Fraticellen, ivi 3 (1887) 553-623, 4 (1888) 1-190) recolheu e comentou parte dos documentos relativos ao supradito Concílio, dentre os quais o chamado Rotulus iste, opereta produzida por Ubertino em meio ao calor das discussões acerca da ortodoxia dos escritos de Olivi, na qual procura defender as posições de seu companheiro – já falecido por esta data –, ao mesmo tempo em que procede a uma crítica mordaz às idéias e ao comportamento da chamada Comunidade, composta por aqueles frades que, no interior da Ordem Franciscana, tendiam a uma interpretação ampla da Regra, opondose àqueles que, como Olivi e conseqüentemente também Ubertino, faziam a apologia da observância estrita – os chamados Espirituais. 1 88 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010 O ALTER CHRISTUS: CRISTOCENTRISMO E CONSTRUÇÃO... cussões a respeito da ortodoxia dos Espirituais e da probidade dos escritos de Pedro de João Olivi. Por essa razão, permanece um escrito essencialmente teórico: muito embora fosse produto de um contexto de luta, não foi redigido por força de uma disputa religiosa. A perspectiva espiritual de renovação da Igreja – para dar a ela, enfim, a função de depositária do ideal da pobreza evangélica2 –, e em particular da Ordem – acentuando o papel histórico fundamental de Francisco de Assis –, está presente em todo corpo da obra, figurando como uma verdadeira defesa dos pressupostos do grupo dos frades rebeldes. A vida de Jesus Cristo é a árvore da vida à qual se refere o escrito: sua raiz, seu caule, suas folhas representam o símbolo da vida para a humanidade. Como elemento fundamental da obra figura o motivo da redenção, que a preenche perfazendo seu sentido e sua finalidade3. Tendo como suporte a tese agostiniana – com base na exegese do texto paulino – da relação Cristo-cabeça/Igreja-membros, de acordo com Ubertino haveria uma economia entre Cristo-cabeça e Igreja de fiéis autênticos. Esta, contudo, só pode resultar em ser restritiva no que se refere à parte da Igreja envolvida, fazendo-a possivelmente coincidir com o grupo dos Espirituais. A importância da relação estabelecida reside, portanto, no fato de que ela não se processa entre Cristo e a Igreja em geral, mas antes entre Cristo e os chamados eleitos, ou seja, aquela parte da Igreja que permanece, no entender de Ubertino, fiel a ele. Dessa forma, para além das referências tradicionais à recíproca presença de Cristo na Igreja e vice-versa – de resto, presentes no corpo do THOMAS, Hans Michael. Franziskanische Geschichtsvision und europäische Bildentfaltung: die Gefährtenbewegung des hl. Franziskus, Ubertino da Casale, der “Lebensbaum”, Giottos Fresken der Arenakapelle in Padua, die Meditationes vitae Christi Heilsspiegel und Armenbibel. Wiesbaden: L. Reichert, 1989, p. 15. 2 3 Idem, Ibidem, p. 12. Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010 89 ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES texto –, a relação que prevalece tende a ser aquela entre Cristo e seus “membros eleitos”4. Um exame da totalidade da Arbor vitae permite destacar uma série de passagens nas quais se ressalta a relação especial imanente entre Cristo e os seus5. Fazem aparição, naturalmente, as tradicionais referências à recíproca presença de Cristo na Igreja e da Igreja em Cristo6. Prevalece, contudo, o pressuposto da relação entre Cristo e seus membros eleitos. De um ponto de vista eclesiológico, é significativa a insistência de Ubertino na relação entre Cristo e seus fiéis, fato observado sobretudo na parte do capítulo IV dedicada à paixão de Jesus. Assim, este havia provado todas as dores dos eleitos, querendo, igualmente, comunicar-lhes suas próprias dores, na medida em que estas se apresentavam a cada um: “A ‘paixão’ torna-se um conotativo eclesiológico, um critério de leitura da história, um sinal de reconhecimento dos eleitos de Cristo”7. Expoente importante do grupo, Ubertino de Casale conduziu adiante as queixas contra o relaxamento dos costumes que imperava, de acordo com os Espirituais, no seio da Ordem e da Igreja. Ao estabelecer a intimidade exclusiva existente entre Cristo e seus fiéis seguidores espirituais, Ubertino recuperava a tensão entre Igreja Carnal e Igreja Espiritual, tendo como base as vicissitudes dos Espirituais: assim, tal intimidade não se referia a toda a Igreja, mas apenas àquela parcela em “Sicut autem tunc in primitiva ecclesia dabatur spiritus sanctus visibilibus signis predicantibus apostolis ceterisque discipulis. Sic usque ad finem mundi benedictus Iesus eundem spiritum membris suis inspirare non definit secundum illam mensuram qua istos dum vineret sui amoris et doloris portavit merito: et tunc in sui fruitionis gaudio portat in illo beatitudinis regno” (UBERTINO DE CASALE. Arbor vitae crucifixae Jesu. ed. C. T. Davis, Torino, 1961, IV, 36, 370b). 4 5 Ibidem, 369b; 37, 386b. 6 Ibidem, 5, 228a; 300b. POTESTÀ, Gian Luca. Storia ed escatologia in Ubertino da Casale. Milano: Università Cattolica del Sacro Cuore, 1980, pp. 50-51. V. Arbor vitae..., IV, 21, 331b; IV, 19, 328a; IV, 9, 311a e 308a. 7 90 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010 O ALTER CHRISTUS: CRISTOCENTRISMO E CONSTRUÇÃO... seu interior que efetivamente se esforçava por renovar a experiência evangélica. Dessa forma, somente a Igreja Espiritual, qual seja, a comunidade de fiéis que vivia estritamente segundo o exemplo de Cristo, pertencia realmente a Cristo, ao passo que a Igreja Carnal possuía idêntica função à da sinagoga contra a Igreja das origens. Ela devia, pois, percorrer um caminho de purificação, que só terminaria de se cumprir no tempo escatológico8. É possível, portanto, discernir a tensão na qual, de acordo com o frade Ubertino, se encontrava a Igreja daquele momento: inteiramente dependente de Cristo, ela repercorria, na figura dos eleitos, sua vida e sua morte; no presente momento, o vínculo entre Cristo e os seus restringia-se ao pequeno número de eleitos – os verdadeiros fiéis – o qual, contudo, ao aproximar-se o tempo final, tornar-se-ia maior, sendo que a condição por hora em vigor para os eleitos estender-se-ia a toda Igreja, manifestando plenamente a ligação entre Cristo e sua esposa. Ao completar-se essa obra, transposta para o futuro escatológico, dever-se-ia completar, portanto, a esperada renovação no seio da Igreja. É com grande insistência que Ubertino retoma a passagem de Paulo “Não sou eu que vivo; é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20). Ela atesta, por um lado, que para o Apóstolo só se pode falar dos cristãos como membros verdadeiros de Cristo com a condição de que estes efetivamente tomem sua figura como modelo; por outro, que esta íntima união já é uma realidade efetiva naquilo que concerne aos eleitos. Os verdadeiros fiéis de Cristo são, portanto, reconhecíveis a partir de sua identificação com ele9. O versículo representa, ainda, uma mani8 Idem, Ibidem, p. 51. “Sic et in charitatis ardore recepto spiraculo, spiritus Christi omnia expiret Christo diformia, semper aspiret Christo conformia, intus inspiret et recolligat ipsius recepta flagitia seu suplitia, et totaliter vivens non sua sed amati Iesu vita, clamet cum Apostolo: Mihi vivere Christus, etc. (Fl. 1,21) et Vivo ego, iam non ego, vivit vero in me Christus” (Arbor vitae..., IV, 29, 357a. V. também III, 3, 150a; III, 14, 237b; IV, 5, 290b; V, 14, 491b). 9 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010 91 ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES festação da temática fundamental da espiritualidade cristã, que é aquela da renúncia ao homem carnal para ceder espaço ao homem espiritual. Tal ação, operada pelo Espírito Santo, deveria fazer reviver o Cristo no interior dos fiéis, e traria como condição primeira a quotidiana morte destes, a fim de que o homem exterior deixasse espaço para o homem interior10. Assim, de acordo com a doutrina de perfeição de Ubertino de Casale, a alma deve morrer para si e para as coisas materiais, a fim de permanecer apenas em função da vontade divina. Dessa maneira ele teoriza no quarto livro da Arbor vitae, postulando de que forma seria possível atingir a perfeição evangélica. Trata-se, fundamentalmente, de um percurso que consiste em morrer para o amor de si mesmo e de todas as criaturas, bem como de transferir-se unicamente para a vontade divina11. O fiel deveria deixar-se absorver, por intermédio do Espírito Santo, pelo amor e pela vontade divinos, realizando a progressiva anulação da própria vontade e o desligamento de si mesmo, de tal modo a não desejar nada além do próprio Cristo12. “Nec dum mens nostra impia quando a Spiritu sancto vult duci ad perfectionis fastigia [potest] excusare se sub similitudine aliorum dicendo: suficit mihi facere quod talis facit vel quod faciunt ceteri in communi; quia in situ corporis proprium locum habet quodlibet membrum et speciale officium, ad quod influit spiritus vivificationis nature. Sic in Christo Iesu, cuius nos sumus corpus et membra, de membro Spiritus sancti influit cuilibet membro electo illa operanti et facere que congruunt illi statui spiritualis mensure, in qua Christus Iesus ipsum in se locavit in merito sue vite passibilis et locaturus est in gloria divinitatis” (Ibidem, IV, 36, 370b). 10 “et voluntatis plena et contenta de eo quod fecit Deus in se ipso et in omni creato et maxime de mensura distributa unicuique electo in participatione meriti mortis Christi, ut nihil velit de se, nec de aliquo creato, nisi illud quod predestinatrix gratia unicuique disponit in Christo Iesu propter ipsius ineffabilem charitatem” (Ibidem, 37, 389a). 11 “Sicut humanitas Christi non est suppositum nec persona sed radicatur et inferitur persone filii Dei, ita ut sit sua persona, sic voluntas tua et amor tuus absorbeatur per influxum Spiritus sancti ab amore Dei et voluntate ipsius, quod ipse Spiritus sanctus quasi videatur esse tua voluntas at amor, ut nihil propter te velis, sed solum propter Iesum, immo nihil velis nisi ipsum” (Ibidem, 382b). 12 92 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010 O ALTER CHRISTUS: CRISTOCENTRISMO E CONSTRUÇÃO... A idéia de que a assimilação a Deus é atingida pelo fiel mediante a autoespoliação de todo e qualquer elemento mundano é comum às doutrinas de perfeição professadas por Ângelo Clareno, Ângela de Foligno, Iacopone de Todi e Ubertino de Casale, entre outros. A renúncia do fiel a si mesmo encontra-se munida de dois aspectos: exterior e interior (ou carnal e espiritual). A respeito desses níveis, é possível afirmar que atos de devoção e obras de penitência prestam-se como preventivos no caminho de uma vida espiritual mais elevada. Entretanto, é preciso ressaltar que a conferência de um valor fundamental ao ódio de si mesmo como móvel para atingir a perfeição cristã não representa um fato novo no conjunto da produção literária dos Espirituais. Trata-se, com efeito, de uma tônica constante nos escritos franciscanos dos séculos XIII e XIV. Ubertino declara na Arbor vitae que o ódio de si é o elemento fundamental de todo estado de perfeição13. A união com Jesus torna-se possível na medida em que o fiel torna-se capaz da renúncia e do ódio evangélico. Trata-se de uma relação proporcional, pela qual quanto mais se renuncia a si mesmo, tanto mais se deixa espaço para o ingresso de Jesus na alma. Em sua Arbor vitae, Ubertino de Casale fala de transformatio14. O termo análogo utilizado por Clareno para definir a experiência pela qual o fiel passa a acolher e hospedar Jesus em sua própria alma é inhabitatio. Para este, bem como para Ubertino, os esforços para igualar-se a Cristo assumiam um duplo significado: por um lado, tratava-se de modelar-se conforme o exemplo dos santos, superando as tentações individuais; por outro, a perspectiva do ódio de si consistia na fidelidade ao radicalismo da experiência franciscana, perfazendo, dessa forma, um aspecto coletivo. O itinerário consistia na retomada do percurso de Jesus Cris- 13 “Odium sui est fundamentum omnis status perfecti” (Ibidem, 385b). 14 Ibidem, II, 5, 109a; III, 15, 243b; IV, 15, 323a; IV, 37, 390a. Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010 93 ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES to, o qual continuava a sofrer no próprio corpo o martírio que os eleitos sofriam por ele15. Trata-se de uma perspectiva – muitas vezes conhecida como imitatio Christi16- que não se restringiria às práticas individuais de ascese, meditações e penitências, mas, antes, deveria abranger a Igreja em seu complexo e em sua totalidade, resultando num movimento de purificação e de aperfeiçoamento generalizados. A força motriz desse processo seriam, naturalmente, seus membros eleitos. Cada um destes possuía uma tarefa específica a realizar no interior do vasto organismo que é a Igreja; sendo assim, impunha-se-lhes a necessidade de que ninguém permanecesse inoperante. Ubertino desejava sublinhar, além disso, a ação do Espírito Santo, por intermédio da qual cada qual atuava por si a fim, contudo, de que todo o organismo eclesiástico se conformasse a Cristo. Nesse contexto, a Ordem Franciscana passaria a assumir o papel de membro individual, dotada de uma atribuição específica a ser levada adiante, de uma missão particular a ser cumprida: “Aqui se consideSobrevém a associação entre Cristo e os chamados eleitos, aos quais se procurava identificar o grupo dos Espirituais Franciscanos. 15 Uma série de pressupostos, referentes, basicamente, à vida pessoal do cristão, podem ser caracterizados, em conjunto, como aquilo a que se denomina imitatio Christi. Tratase de um corpo de atitudes, práticas e valores construídos ao longo da vida da Igreja Católica e do cristianismo, representado por um movimento de interiorização em oposição ao mundo exterior. Em fins da Idade Média, Thomas de Kempis (1380-1471), um monge holandês, escreveu quatro pequenos tratados em latim, cuja compilação e posterior tradução – seu mais célebre tradutor é Lamennais – recebeu o nome de imitatio Christi. A título ilustrativo, o primeiro livro – Conselhos úteis para entrar na vida interior – aconselha a imitação de Jesus Cristo e o desprezo às vaidades do mundo; os sentimentos humildes a respeito de si mesmo; a obediência e a renúncia; evitar entrevistas inúteis; evitar julgamentos temerários; suportar os defeitos alheios; trabalhar com fervor no aprimoramento da vida. Ressaltam-se ainda as vantagens da adversidade; a resistência às tentações; as obras de caridade; o exemplo dos santos; o amor à solidão e ao silêncio; a compunção do coração; a consideração da miséria humana; a meditação a respeito da morte. (L’Imitation de Jésus-Christ. Trad. de Lamennais. Paris: Seuil, s/d). 16 94 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010 O ALTER CHRISTUS: CRISTOCENTRISMO E CONSTRUÇÃO... ra ‘membro’ não só o simples fiel, mas também uma comunidade, que pode ser uma ordem religiosa (ou a parte ‘eleita’ dela). Estimulando cada um a não se contentar em cumprir aquilo que fazem os outros em comum, Ubertino parece aludir, de fato, à condição da Ordem Franciscana, na qual cada um deve viver em particular a escolha da pobreza, sem delegá-la a outros. Apenas desse modo a Ordem em seu complexo poderá permanecer fiel à função específica que deve executar na Igreja”17. Não bastava, com efeito, reviver a experiência de Cristo em nível individual – a saber, relegando-a difusamente àqueles religiosos que, embora dotados de profunda capacidade ascética, atuavam num plano de vivência que não transbordava para além do indivíduo; na verdade, subjacente ao papel histórico e religioso da Ordem Franciscana no seio da Igreja, encontrava-se a necessidade de tomar a experiência e a vivência do Cristo como modelos de regramento coletivo – uma empreitada que pertenciam a um tempo a todos e a cada um; mais ainda: pertencia à Ordem em seu complexo. A exigência de Ubertino não deixava dúvida de que o acento recaía não na pobreza enquanto virtude exemplar de Francisco, mas sim na intentio franciscana segundo a qual aquela pobreza deveria caracterizar a experiência de toda a Ordem. O pensamento de Ubertino, naquilo que concerne à intenção profunda de Francisco em relação à Ordem e ao projeto do fundador, não poderia deixar de trazer como conseqüência, por um lado, a existência da Ordem por oposição radical aos padrões de organização eclesiástica de seu tempo, bem como às formas de vida religiosa anteriores; por outro, a crítica à organização atual da própria Ordem, denunciando o fato de que o projeto inicial encontrava-se desativado e mistificado. Assim como se havia observado um 17 POTESTÀ, Gian Luca. Op. cit., p. 54. Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010 95 ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES paralelismo entre as trajetórias de Cristo e da Igreja, Ubertino estabeleceu uma continuidade histórica e ideal entre Francisco e os Espirituais. Queria mostrar, além disso, que a condição evangélica da Ordem encontrava-se decadente desde os tempos em que Francisco vivia18. O fato de que Francisco assinalava uma nova época na história da Igreja e, consequentemente, da humanidade, é uma convicção profunda que perpassa a obra de Ubertino de Casale. Ele encara Francisco como uma figura plena da perfeição cristã em seus vários aspectos e, pouco a pouco, o caracteriza como uma verdadeira imagem de Cristo, perfeita, na medida em que isso pode ser concedido a uma criatura humana. Dessa forma, assim como, no décimo terceiro dia, a figura de Jesus apresentou-se aos três reis magos, da mesma forma, no décimo terceiro século, constituiu-se uma verdadeira manifestação da sabedoria cristã, sendo grandemente multiplicados os esplendores da divina sabedoria. Sobretudo pela religião da pobreza, fora renovada a vida evangélica em Francisco, o patriarca dos pobres19. De acordo com Ubertino, Francisco era comparável a Cristo não em virtude de uma série de aspectos exteriores que podem ser perfeitamente documentados – como afirma toda uma tradição do século XIV que culminaria com Bartolomeu de Pisa –, mas sobretudo em virtude de ter repercorrido plenamente a vida de Cristo. Sua ressurreição seria dada pelo cumprimento estrito da Regra na Ordem Franciscana. Francisco, homem abençoado por Deus de maneira singular, como atesta o prodígio dos stigmata que o modelaram, bem como o constante esforço por conformar-se perfeitamente a Cristo, teria em comum com Cristo, de acordo com Ubertino e com outros Espirituais, o destino de ressurgir. Ubertino atribui a Conrado de Offida e outros frades “dignos de fé” a afirmação de que a Francisco de Assis seria con18 Arbor vitae..., V, 3, 431a. 19 Ibidem, II, 7, 129b-130a. 96 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010 O ALTER CHRISTUS: CRISTOCENTRISMO E CONSTRUÇÃO... cedida uma ressurreição. Assim, da mesma forma que, de maneira excepcional, Francisco assemelhou-se a Cristo sobre a terra, deveria ressuscitar, de forma a reforçar a fé e a verdade da vida evangélica que Cristo queria renovar em Francisco. Ubertino deseja ressaltar, para além da semelhança, a identidade de Francisco em relação a Cristo. Assim, Francisco encontrava-se, tanto na alma quanto no corpo, modelado e iluminado pelos stigmata. Tratava-se de um espelho perfeito que refletia fielmente a imagem de Cristo. Assim, belíssimo e formosíssimo era Francisco, porque carregava os sinais de uma semelhança muito bela. Era, de fato, candura de luz eterna e espelho da majestade, imagem da sua bondade. Já que o corpo de Francisco fora modelado de acordo com a visão do Crucificado, sua carne foi puríssima e a alma, de uma pureza quase divina20. Nas relações entre Francisco e Cristo, os Espirituais detectam uma sequela, que pode passar, ainda, por uma prática de ascese; uma imitação, que tende à união, que os Espirituais percebem como uma unidade; uma similitude e, mais do que isso, uma assimilação. É no terceiro capítulo da Arbor vitae – o mais explicitamente cristocêntrico – que Ubertino fornece o maior número de afirmações nesse sentido. Assim, Ubertino afirma que Francisco empenhou-se em conformar-se ao próprio Jesus, que é evidente que o bem-aventurado Francisco foi semelhante a Jesus, que Francisco buscava assiduamente a semelhança com Jesus. Ele afirma, ainda, que era o próprio Cristo quem operava em Francisco tal assimilação. Assim, Jesus, perfeito, havia feito transfigurar Francisco à imagem de sua própria vida, de forma que vivesse à sua maneira, pela perfeita obediência ao Evangelho. A esse ponto, Jesus poderia dizer de Francisco de Assis que a ele fora conferida uma descendência nova, para além daquela de Abel21. 20 Ibidem, V, 4, 434a. 21 Ibidem, 3, 429b. Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010 97 ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES Ao Francisco seráfico de Boaventura, Ubertino de Casale opunha o seu Francisco histórico, associado a um projeto eclesial; ao santo conforme os exemplos antigos de Boaventura, Ubertino de Casale opunha o fundador de um novo povo. De acordo com a perspectiva boaventuriana, a história da Ordem era um dado separado da vida exemplar de Francisco e relacionado, naturalmente, às imposições das novas estruturas e à necessidade de absorver novas funções. Para Ubertino, em contrapartida, um conflito já experimentado por Francisco adentrava a história da Ordem e colocava-se entre aqueles que desejavam manter a identidade original e aqueles que, para adequar-se aos tempos, atenuavam o radicalismo do projeto. Um biógrafo de Francisco descreve a dificuldade inerente à Regra no que tange à definição dos detalhes da vida conventual e apostólica; e, por outro lado, o ideal que ela propõe revela-se tão elevado que permanece dificilmente praticável. Por essas razões, a Ordem Franciscana surgia como aquela na qual a vida espiritual encontra sua maior liberdade de expressão, mas também como aquela em que as exigências do fundador deixavam um intervalo marcante entre o objetivo e a realidade concreta. Daí, por um lado, a mediocridade em que muitas vezes parece tombar a comunidade; por outro, os protestos elevados pelos religiosos ferventes em função de uma observância mais rigorosa da Regra22. Era, com efeito, bastante comum entre os representantes espirituais, bem como entre correntes heréticas populares – caso dos Beguinos –, atribuir o papel de renovador da Igreja a Francisco de Assis. O ponto central da Arbor vitae é a pessoa de Francisco, o santo fundador da própria Ordem, e sua intenção de renovação por meio da vida evangélica. Ele era aquele que, no início dos novos tempos, havia aspirado a permanecer na pobreza, para tornar-se parecido com Cristo em sua 22 GOBRY, Ivan. St. François d’Assise et l’esprit franciscain. Paris: Seuil, 1957, p. 82. 98 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010 O ALTER CHRISTUS: CRISTOCENTRISMO E CONSTRUÇÃO... vida23. O fundamento central de uma série de capítulos – o qual representa, por sua vez, uma série de pressupostos vinculados ao grupo Espiritual – é, portanto, a figura de Francisco, ressaltando seu papel renovador e o espírito de pobreza evangélica. Entre os séculos XIII e XIV, as duas celebrações mais importantes e difundidas na literatura franciscana – e profundamente conectadas uma à outra – eram aquela de Francisco de Assis como o anjo do sexto sigilo anunciado pelo Apocalipse e aquela de renovator vite Christi. Ambas as celebrações constituíam, entretanto, faces de uma mesma epifania: aquela da segunda manifestação de Cristo no espírito da perfeição evangélica: “no princípio do sexto estado um homem angélico seria dado ao mundo, relacionado a Cristo pela concórdia, pois surgiria unicamente como o renovador da vida de Cristo”24. 23 THOMAS, Hans Michael. Op. cit., p. 13. “(...) patet quod illuminatio data Ioachin dicit in principio sexti status unum angelicum virum mundo dari, quem Christus per concordiam respicit, quare vite Christi renovator singulariter apparebit” (Arbor vitae..., V, 3, 421a). Além dessas duas manifestações principais, Ubertino propõe outras periféricas, a saber, associando Francisco a diversos personagens bíblicos. Em cada uma dessas figuras ele pretende colocar em evidência não somente a profunda renovação produzida na história a partir de sua vinda, mas também o desenvolvimento contraditório de sua experiência, mal compreendida e refutada pela maior parte de seus seguidores. Assim, a vocação de Francisco é comparada àquela de Mateus. De acordo com Ubertino, o chamado de Mateus representa um fato novo em confronto com a escolha dos Apóstolos precedentes, escolhidos entre pescadores. Ao chamar Mateus, o Senhor manifestava de modo particular sua piedade, uma vez que escolhia, como seu Apóstolo, um pecador público. Ubertino compara o caso com o chamado de Francisco, o qual era filho de um próspero comerciante. Da mesma forma que não faltou o escândalo entre os fariseus e escribas em virtude do chamado de Mateus, assim, também deveu ser motivo de escândalo que Cristo, ao escolher Francisco, tenha voltado sua preferência aos pecadores e aos simples. Para a identificação de Francisco ao anjo do sexto sigilo, recorrente sobremaneira no quinto livro da Arbor vitae, Ubertino apóia-se, em primeiro lugar, na autoridade de Boaventura, citando, para tanto, uma pregação realizada em Paris no dia 16 de maio de 1266, por ocasião de um capítulo geral – no qual, pela primeira vez, teve-se notícia de Pedro de João Olivi. O próprio Boaventura, em sua Legenda S. Francisci, opera a identificação 24 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010 99 ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES A identificação de Francisco como renovator vite Christi faz suas primeiras aparições ainda no século XIII, quando os autores, de maneira geral, rejeitavam referências escatológicas e elencavam os paralelismos entre Cristo e Francisco de Assis a partir de uma perspectiva puramente devocional. Isso significava, por um lado, ressaltar a coerência e a continuidade externas presentes entre os dois personagens, e por outro, recusar qualquer referência escatológica que pudesse associá-los de maneira histórica e necessária. Afirmar que Francisco fosse o vite Christi renovator não significava somente que Francisco, por seu apostolado, tivesse restaurado a vida segundo o Evangelho, mas que ele recomeçara a história do Cristo, no sentido da leitura joaquimita da história do mundo25. Para os Espirituais, Francisco era o novo Cristo. Assim como na segunda idade surgira o homem novo Jesus Cristo, com uma vida nova, da mesma forma, no sexto estado, surgiu o homem novo Francisco de Assis, com o estado evangélico, configurado de acordo com Cristo em sua carne. Ubertino de Casale desejou conectar tal identidade Cristo-Francisco à sua perspectiva entre Francisco de Assis e o anjo do sexto sigilo, “ascendente do leste e tendo o sinal do Deus vivo”. Tal asserção acabou por tornar-se uma bandeira entre os Espirituais Franciscanos, sobretudo para Pedro de João Olivi e Ubertino de Casale. Isto, por sua vez, acabou por contribuir para colocar as Ordens Mendicantes, em especial a Franciscana, no papel de novas ordens de frades espirituais. Francisco e Domingos passaram, com efeito, a ser encarados como os dois profetas de uma nova era, Enoch e Elias, a desempenhar um papel fundamental naquela idade da Igreja. Além disso, Ubertino reivindicava análogo parecer da parte de João de Parma, para o qual, conforme Ubertino, não só o sexto sigilo teria tido início com Francisco e sua Ordem, como também a iniquidade da Igreja deveria consumar-se através da transgressão da experiência e da Regra do Pai Seráfico, levadas a cabo por aqueles franciscanos que se haviam afastado da obediência estrita e por prelados perversos que agiram no sentido de favorecer a transgressão. VAN DIJK, Willibrord-Christian. “La répresentation de Saint François d’Assise dans les écrits des Spirituels”, in: Cahiers de Fanjeaux, 10 – Franciscains d’Oc – Les Spirituels – ca. 1280-1324. Privat Editeur, 1975, p. 220. 25 100 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010 O ALTER CHRISTUS: CRISTOCENTRISMO E CONSTRUÇÃO... cristocêntrica acerca da história da Igreja. Esta resumia-se em situar o advento de Cristo como evento central e fundamental, não determinado pela queda original, e tampouco subordinado às vicissitudes da trajetória humana. Além disso, o reconhecimento de Francisco como o alter Christus deve ser lido à luz da teoria do tríplice advento de Cristo. Assim, com base em seu cristocentrismo, Ubertino propõe três adventos para Cristo, a saber, o primeiro na carne a fim de redimir o mundo e fundar a Igreja; o segundo no espírito da vida evangélica, que reforma e conduz à perfeição a Igreja antes maculada; o terceiro no juízo, conferindo glória aos eleitos e selando tudo26. Este segundo advento corresponderia, portanto, à reforma da Igreja por obra de Francisco de Assis, e em seguida dos viri seraphici, no sexto e no sétimo tempos. Ubertino pode ser considerado, a partir dessa perspectiva, como herdeiro de toda uma tradição franciscana que atribui determinado papel a Francisco no desenrolar dos acontecimentos quando do ocaso dos tempos. De acordo com tal tradição, seguida pelo frade e que remonta a frei Leão, o autor da Arbor vitae espera uma ressurreição e uma ascensão de Francisco, prelúdio de um novo Pentecostes: “pela evidente ressurreição e nova e sublime ascensão [de Francisco] com muita alegria esperamos o Pentecostes do Espírito Santo”27. O caráter absolutamente evangélico da Regra pressupõe, portanto, indicações muito precisas nos planos das convicções e do comportamento do fiel. Assim, a doutrina cristã coincide com o Evangelho e, consequentemente, com a Regra evangélica de Francisco de Assis. Mas a chamada lex Evangelii não fora jamais superada, sendo o modelo da Arbor vitae..., V, 1, 413b. A leitura do advento enquanto acontecimento independente da queda do homem, pelo pecado original, representa, ainda, um aspecto importante da tradição teológica franciscana, tendo em Boaventura seu expoente principal. 26 “cuius claram ressurrectionem et ascentionem sublimem et novam Spiritus sancti pentecostem cun multo gaudio expectamus” (Arbor vitae..., 1, 419a). 27 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010 101 ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES vita apostolica aquele que em mais alto grau conduz à perfeição no interior da experiência religiosa comunitária, consistindo em repercorrer a vida de Cristo e dos Apóstolos. Esta precisão é importante, uma vez que estabelece a vita apostolica como modelo mais alto de experiência religiosa comunitária, ao mesmo tempo que se volta contra todo espiritualismo que presuma superar a vida e a experiência dos primeiros Apóstolos. Dessa forma, a singularidade da experiência dos Apóstolos marcava sua superioridade em relação aos santos do sexto estado e aos chamados viri seraphici descendentes de Francisco de Assis. Assim, os Apóstolos, pela proximidade que tiveram com Cristo e pela missão recebida por eles, não possuem termo de comparação. Ubertino sustenta apenas que, nos primeiros tempos, a massa dos convertidos não possuía ainda aquela disposição interior que permite compreender e praticar a perfeição cristã em sua totalidade e altitude. Contudo, não faltam murmurações e repreensões. Assim, a segunda parte do pensamento em questão refere-se às murmurações dos fariseus antigos contra Cristo, bem como as murmurações dos fariseus recentes – a Comunidade – contra Francisco e contra os seus filhos autênticos – os Espirituais. Tais críticas conduzem Ubertino a escrever que não há um pensamento mais triste do que crer que Cristo tenha sido chamado ao mundo para chamar os pecadores e os simples com o fito de impedirlhes de usar de misericórdia28. Em associação a isso, Ubertino identificou Francisco também a figuras do Antigo Testamento, tais como Abraão, que teve dois filhos, um dos quais Ismael, ilegítimo, que lutou com Isaac, legítimo. Da mesma forma, Francisco teria tido uma dupla descendência: aqueles que, na Igreja e no interior da Ordem, transgrediam a Regra e perseguiam os filhos legítimos; e estes últimos, que eram identificados com os Espirituais, que guardavam 28 Arbor vitae..., III, 5, 167b-168a. 102 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010 O ALTER CHRISTUS: CRISTOCENTRISMO E CONSTRUÇÃO... os preceitos originais da Regra, cumprindo, com isso, a lei evangélica. Observa-se também o paralelismo com Benjamim que, nascendo, fez morrer sua mãe, Raquel, assim como Francisco, cujo advento no interior de uma Igreja degradada, faria com que esta desaparecesse, cedendo lugar à Igreja dos viri spirituales29. É preciso ressaltar, ainda uma vez, que a perspectiva de Ubertino de Casale é eminentemente cristocêntrica, encontrando-se ausente qualquer eventual pretensão de antepor Francisco a Cristo. É, com efeito, o contrário que se processa, uma vez que o elemento que Ubertino mais admira em Francisco é justamente seu modelo de vida conforme Cristo e seu Evangelho. É notável, com efeito, no interior do grupo espiritual, a identificação entre imitatio e sequela Christi (os dois termos são tomados como sinônimos nas cartas de Ângelo Clareno). Assim, a plena identificação com Cristo encontra-se relacionada a concrucificar-se com ele. A cruz é, portanto, tomada como elemento central, fundamento com o qual coincide perfeitamente a Arbor vitae de Ubertino de Casale. Assim, o seguir implica na escolha de um caminho que, uma vez corretamente percorrido, conduz à cruz. De acordo com a Carta 1, trata-se de condividir o mistério da sua paixão, cruz e morte30, e até mesmo chegar a ser crucificado juntamente com Jesus Cristo31, tornando-se, dessa maneira, filho de Deus32. O nexo evangélico seguimento-cruz é tamIbidem, V, 3, 424a. No terceiro livro, Francisco é também comparado a Moisés e a Salomão (Arbor vitae..., III, 13, 228b). 29 CLARENO, Angelo. Carta 1, p. 3, rr. 2-4, apud: POTESTÀ, Gian Luca. Angelo Clareno: dai poveri eremiti ai fraticelli. Roma: Istituto Storico Italiano per il Medioevo, 1990, p. 63. 30 Gl 6,14 (“Quanto a mim, não aconteça gloriar-me senão da cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, por quem o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo”). 31 32 1Jo 1,12 (“Mas a todos que o receberam deu o poder de se tornarem filhos de Deus”). Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010 103 ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES bém proposto por intermédio do postulado de Mt 16,24 (“Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me.”), o qual, juntamente com Mt 19,21 e Lc 14,2633, representa o fundamento da via seguida por Francisco, conforme a Regra não bulada. A idéia de uma plena identificação com Cristo, chegando-se a ser crucificado com ele, reporta às matrizes paulinas da reflexão de Clareno34. De acordo esta perepctiva, os termos christiformis/christiformiter – cruciformis/cruciformiter, substancialmente eqüivalentes, são insistentemente enunciados a fim de indicar o estilo da vida que o fiel é chamado a percorrer seguindo Cristo. A cruz encontra-se, portanto, relacionada com a perfeição evangélica: “onde o exemplar perfeitíssimo é a vida daquele que teve um cruciforme início, meio e fim”35. Em Ângelo Clareno, assim como em Ubertino de Casale, o cristocentrismo coincide com a visão da cruz como elemento fundamental. A centralidade atribuída à cruz confere uma marca indelével, seja à cristologia de Clareno, seja à sua proposta de vida evangélica. A divindade revela-se, por meio dela, em sua condição de máxima exinatio. A cruz ultrapassa toda medida humana. Dessa forma, aquilo que é alto do ponto de vista humano não o é do ponto de visto do Deus crucificado. Ao mesmo tempo em que revela a autêntica glória de Deus, a cruz transforma aqueles que dela participam em filhos de Deus e her“Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens e dá aos pobres, e terás um tesouro nos céus. Depois, vem e segue-se”; “Se alguém vem a mim e não odeia seu próprio pai e mãe, mulher, filhos, irmãos, irmãs e até a própria vida, não pode ser meu discípulo” (CLARENO, Angelo. Carta 3, p. 13, rr. 28-29; Carta 13, p. 67, rr. 6-7; Carta30, p. 159, rr. 23-24; Carta 44, p. 212-213, rr. 36-7; Carta 47, p. 232, r. 11; Carta 64, p. 300, rr. 10-11, apud: POTESTÀ, Gian Luca. Angelo Clareno..., p. 63). 33 Para Gl. 6,14, Carta 54, p. 271, r. 22, apud POTESTÀ, Gian Luca. Angelo Clareno..., p. 62. 34 “Unde perfectissimum exemplar est vita eius que habuit cruciforme initium, medium et finem” (CLARENO, Angelo. Carta 41, p. 199, rr. 27-29, apud: POTESTÀ, Gian Luca. Angelo Clareno..., p. 62). Assim, é através da experiência da cruz que Francisco atinge a mais íntima união com Jesus. 35 104 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010 O ALTER CHRISTUS: CRISTOCENTRISMO E CONSTRUÇÃO... deiros do Reino. A vida evangélica, indicada de modo especial aos companheiros, culmina, portanto, na experiência da cruz, por intermédio da qual o fiel chega a experienciar a glória divina. Ao postular a cruz como ponto de referência fundamental, Clareno repropõe a mensagem de Francisco conforme a tradição interpretativa específica dos Espirituais Franciscanos36. É possível, em contrapartida, que a ressurreição de Francisco de que nos fala Ubertino, bem como os demais, constitua uma ressurreição mística, não devendo, nesse caso, ser entendida em sentido estrito. Ela figuraria, portanto, como um dos ideais franciscanos no interior de uma Ordem degenerada: “Nós temo-lo visto, sem jamais pensar em exaltar Francisco acima de Jesus, aplicar-se a ele de forma inconsiderada, num entusiasmo cândido, as palavras da Escritura que concerniam ao Salvador: após ter falado dos profetas, dos Apóstolos, dos doutores e dos santos, eis que o Cristo nos fala hoje de seu filho, o seráfico Francisco (...); é-nos necessário revestir os sentimentos do bemaventurado Francisco, ele que, após ter vivido no mundo ‘in forma Christi crucifixi’, recebeu então um nome glorioso no céu, ele, cuja glória nós contemplamos, como de um filho único, recebido de seu Pai Jesus Cristo (...). Havia ali, verdadeiramente, algo além de inocentes transposições, um excesso de linguagem e de imaginação simbólica, seguindo uma tradição já bem estabelecida na ordem? Todavia, no interior de uma atmosfera exaltada, tais metáforas poderiam acarretar uma perigosa carga emocional”37. O valor histórico-escatológico atribuído a Francisco transformava-o em iniciador de uma nova experiência de vida religiosa. Nesse 36 POTESTÀ, Gian Luca. Angelo Clareno..., p. 64. LUBAC, Henri de. La posterité spirituelle de Joachim de Fiore: de Joachim à Schelling. Paris: Lethielleux, 1978, p. 105. 37 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010 105 ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES aspecto, observamos o distanciamento em relação a Boaventura, que considerava Francisco como exemplo individual e modelo atemporal. A perspectiva histórico-escatológica de Ubertino o conduz, portanto, a acentuar o projeto eclesial de Francisco, bem como os desvios processados no interior da Ordem. O interesse que Ubertino nutre pelo movimento franciscano é tal que, ao expor a vida de Francisco, ele omite muitas notas biográficas, referentes à juventude e à conversão, bem como à morte e à canonização. Contudo, o valor histórico e escatológico atribuído ao santo, enquanto iniciador de uma nova experiência religiosa, o conduz a alterar a idéia central de Boaventura. Trata-se de uma diferença muito acentuada de perspectivas. Para Boaventura, Francisco deve ser observado como uma figura tranquila, um modelo atemporal de santo que, com o exemplo de suas virtudes, clama à ascese e à mortificação individual, a partir de uma dimensão, contudo, sobrenatural, estranha às vicissitudes da Ordem; Ubertino, em contrapartida, volta sua atenção para a figura dilacerada de Francisco, com o fito de compreender e valorizar seu projeto eclesial, bem como de demonstrar de que forma sua intenção original encontrava-se distante das realizações históricas concretas. Assim, a importância da Ordem Franciscana no contexto da renovação da Igreja é tal que “Israel será convertida com os espólios do povo, e surgirá, cristiforme, por meio da vida e da imagem de Jesus na regra evangélica reformada”38. A Apologia pauperum de Boaventura consiste em uma defesa dos ideais e práticas mendicantes contra as acusações dos mestres parisienses ao mesmo tempo que eleva a virtude da pobreza, conferindo-lhe valor inquestionável. Comparada com as idéias e o projeto atribuído a Francisco, contudo, a Apologia representa uma mudança de bases: ao passo que o santo fundador da Ordem jamais pensara em conferir uma raison d’être para a pobreza – na medida em que a tomava como a própria “Convertetur Israel cum reliquis gentium, et apparebit christiformis vita [et] imago Iesu in evangelica regula reformata” (Arbor vitae..., V, 1, 414a). 38 106 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010 O ALTER CHRISTUS: CRISTOCENTRISMO E CONSTRUÇÃO... pregação de Cristo e o fundamento da vida evangélica –, Boaventura o fez. Nesse sentido, a pobreza, de fim em si mesma e sua própria justificação, era convertida em uma entre algumas vias pelas quais a perfeição de Cristo podia manifestar-se. Sendo a caridade o fundamento de toda bondade, Cristo teria reduzido a ela tudo aquilo que concernia à lei de Deus39. A perfeição – sempre subordinada à virtude da caridade – podia manifestar-se de forma absoluta (secundum se) – tal qual existiu em Cristo –, mas também em vários graus entre os homens. Esta segunda manifestação poderia ser genérica (in genere) ou consoante as circunstâncias (ex circunstantia)40. Dessa forma, a absoluta bondade (ou seja, a perfeição) e a absoluta maldade (ou seja, a imperfeição) seriam imutáveis, assim como a relativa perfeição e a relativa imperfeição seriam mutáveis. Portanto, a genérica perfeição poderia, em certos casos, tornar-se imperfeição, na medida em que motivada pela vanglória; do mesmo modo, a genérica imperfeição converter-se-ia em perfeição na medida em que pressupusesse sofrimentos gloriosos por Deus41. Ubertino procura justificar a pobreza à luz da leitura do próprio Evangelho. Dessa forma, é sabido que, antes de Francisco, os crentes conheciam o Evangelho, o qual, entretanto, é uma mina profunda e fértil. Assim, não se pode negar que as gerações anteriores ao santo tenham absorvido do Evangelho figuras que também não são negadas “Sciendum est igitur, quod radix, forma, finis, complementum et vinculum perfectionis caritas est, ad quam magister omnium Christus Legem, Prophetas et per consequens universa Dei documenta reducit” (BOAVENTURA, S. Apologia pauperum contra calumniatorem, in: Obras de San Buenaventura. Eds. Fr. Bernardo Aperribay, O.F.M.; Fr. Miguel Oromi, O.F.M.; Fr. Miguel Oltra, O.F.M. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1949, p. 380). 39 40 Idem, Ibidem, p. 354. “Cum igitur tam multiformiter dicatur tam perfectus quam imperfectus actus, clarum est, quod sicut malum in genere, potest fieri bonum ex circumstantia, ut occidere hominem quia maleficus est, et quia lex iubet et reipublicae confert, et e converso bonum in genere potest fieri malum ex circumstantia, utpote dare eleemosynam propter vanam gloriam” (Idem, Ibidem). 41 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010 107 ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES por Francisco, tais como Cristo glorioso e juiz, pantocrator, entre outros aspectos. Não obstante, o Evangelho lido e praticado por Francisco colocava em relevo Cristo pobre, humilde e crucificado. Francisco fazia, portanto, da pobreza, o fundamento de sua própria vida e da própria Ordem. Também Pedro de João Olivi apóia-se na leitura do Evangelho a fim de justificar a prática da pobreza. Ela teria sido aconselhada e praticada por Jesus Cristo e figurava, portanto, nos escritos dos evangelistas. Assim, de acordo, respectivamente, com o Tractatus de usu paupere e com a nona questão42. Assim, se a figura de Francisco sinalizava um alter Christus, isto não consistia em fato que convinha simplesmente admirar, mas sobretudo representava um austero exemplo de vida a ser seguido. Assim, de acordo ainda com Olivi, Francisco teria desejado repetir o Cristo não na glória de sua grandeza, mas no sofrimento de sua humanidade e foi este sofrimento que Francisco quis repetir entre os homens e indicar a seus irmãos como exemplo. Assim, viver secundum formam sancti evangelii não significaria, para Francisco, somente a adesão à pobreza pregada pelo Evangelho, e sim compreender a pobreza como uma das maneiras – e até mesmo como a maneira mais acessível naqueles tempos – de aceitar o sofrimento, a dor e a humilhação: a maneira pela qual, se podia, naqueles tempos e naquelas condições de vida, realizar o sofrimento43. “Constat enim multipliciter tam ex textu quam ex dictis sanctorum quod forma evangelice paupertatis tradita apostolis Matthei decimo, Nolite possedere aurum, et Luce decimo, Nolite portare saccum, et Luce nono, Nihil tuleritis in via, et Marci sexto, Precepit eis ne quid tollerent in via, fuit eis imposita sub precepto, sed in eis fit expressior et vocalior mentio de paupere usu quam de abdicatione universalis dominii.(...) pauperis usus instar evangelii Christi in ea singularius explicantus, ut est vilitas indumentorum et coborum et nuditas calciamentorum et mutatoriorum et defectus equitationum et interdictio usus pecuniarum (...)” (BURR, David (ed.). De usu paupere – The Quaestiones and the Tractatus. Firenze/Perth, 1992, p. 117). 42 MANSELLI, Raoul. “L’idéal du Spirituel selon Pierre Jean-Olivi”, in: Cahiers de Fanjeaux, 10 – Franciscains d’Oc – Les Spirituels – ca. 1280-1324. Privat Editeur, 1975, p. 109. 43 108 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010 O ALTER CHRISTUS: CRISTOCENTRISMO E CONSTRUÇÃO... A difícil descoberta da pobreza, a resistência a ela inclusive por parte da hierarquia eclesiástica, a inspiração divina para seguir uma nova vida são bastante evidenciadas no opúsculo Sacrum Commercium44, um tratado bastante sugestivo, e Ubertino possui o mérito, se não de havê-lo descoberto, ao menos de revelar seu conteúdo a um certo número de fiéis. Assim, a pobreza, incompreensível aos contemporâneos – até mesmo aos devotos e fervorosos –, tornava-se a esposa de Francisco e de Cristo, o qual a praticava desde o nascimento na manjedoura, em seguida em sua existência errante, e por fim a observava também no momento da morte, em que surgiu nu sobre a cruz, foi sepultado em túmulo alheio e, finalmente ressuscitou, deixando na tumba aquilo que não lhe pertencia. Ubertino retoma especialmente o Sacrum Commercium com o fito de fazer observar que nele é recordado o precoce abandono da pobreza por parte de certos Menores, oferecendo-se então a ocasião para denunciar aquilo que considera como o relaxamento da Ordem e da Igreja. Ubertino escreve sobre o opúsculo, afirmando que Francisco, como explorador acurado, começou uma busca, percorrendo praças das igrejas e interrogando os eclesiásticos e o povo em geral a fim de apurar o quanto amavam a pobreza evangélica. Como somente obtivesse respostas depreciativas do valor da pobreza, resolveu dirigir-se aos superiores, os quais, ao contrário do povo estulto, conheceriam a forma de vida de Cristo. Mas eles próprios também consideraram impossível a vida sem a posse de bens temporais. Francisco, entretanto, maravilhado e ébrio pela pobreza de espírito, voltou-se para Jesus em sua oração. InvocandoO título completo da famosa opereta é Sacrum commercium sancti Francisci cum domina Paupertate. Seu autor, bem como a data da composição, permanecem incertos. Alguns, provavelmente sugestionados por um certo frescor que emanaria do escrito, querem situá-lo nos anos imediatamente posteriores à morte de Francisco (1226); outros, influenciados por uma certa apreensão que emana de suas páginas, preferem assinalar um período posterior, entre 1260 e 1270. 44 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010 109 ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES o, pediu-lhe que lhe mostrasse a pobreza, pois encontrava-se cheio de amor por ela, não encontrando a paz sem ela. Menciona como a pobreza acompanhara fielmente Cristo durante toda a sua vida, e pede para ser assinalado com o privilégio de amá-la mais do que qualquer outra coisa; que fosse próprio dele e dos seus nada possuir sob o céu, bem como nutrir-se com coisas alheias, sempre respeitando o uso pobre45. Assim, os confrontos conduzidos por Ubertino pressupõem a preocupação em definir o papel de Francisco em contraste com o encaminhamento dado posteriormente pela Ordem. Nos dizeres de Potestà, “mostrar a função histórico-salvífica de Francisco em relação à sua própria época e ao mesmo tempo a responsabilidade da Ordem, que não soube compreender-lhe o significado profundo, interpretando redutivamente o seu ensinamento. Nenhuma dessas celebrações visa, portanto, confinar Francisco no papel de um modelo pessoal inimitável, mas pretende antes mostrar o projeto eclesial que ele possuía, concebido concretamente, e a incompreensão à qual este se encontrava submetido”46. De acordo com Ubertino e as correntes espirituais em geral – mas também de acordo com a essência do movimento e da Ordem franciscanos –, o voto de pobreza comporta três elementos fundamentais. Em primeiro lugar, a renúncia à propriedade; em segundo lugar, a renúncia ao direito de possuir – inclusive qualquer coisa que eventualmente, por exemplo, através de um testamento, possa ser recebida no futuro; em terceiro lugar, o uso pobre das coisas oferecidas e das quais o menor se serve. Olivi, reivindicando a autoridade dos escritos de alguns santos, expressa-se de maneira semelhante em seu Tractatus de usu paupere. Ele procura fundamentar a prática da pobreza como legado deixado por Cristo, a qual se encontra imbuída da interdição à propriedade e 45 Arbor vitae..., V, 3, 423b-424. 46 POTESTÀ, Gian Luca. Storia..., p. 120. 110 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010 O ALTER CHRISTUS: CRISTOCENTRISMO E CONSTRUÇÃO... ao direito de possuir e da obrigatoriedade do uso pobre47. De acordo com Ubertino, o usus pauper consistia na prática de vida e uso das coisas enquanto necessidades – usus facti. Não representava um simples ato, e sim um modelo de vida a ser seguido, um modelo de pobreza e oposto à riqueza. Mais do que uma mera obrigação moral ex bono et equo, ele era inerente ao voto de pobreza. Este, por sua vez, era considerado de maneira equiparável aos votos de obediência e de castidade. Assim como estes últimos, o voto de pobreza deveria ser integralmente observado, uma vez que assim como somente àquele que não fez voto de castidade é permitido ter uma esposa, de igual modo somente àquele que não prestou juramento à pobreza é permitido possuir bens48. Do voto de pobreza sem a prática do usus pauper encontrava-se excluída a perfeição, e esse era o teor da crítica dirigida aos Conventuais de seu tempo. Trata-se, também, e em escala semelhante, da crítica dirigida por Pedro de João Olivi àqueles frades que pretendiam que o voto de “Ubi et adiunxi tres auctoritates, unam Ieronimi, aliam Chrisostomi, alteram Eusebii, in quibus expresse dicitur quod in illo verbo, Nolite solliciti esse, etc., prohibuit eis Christus non cogitare de futuris, hoc est non providere sibi in futurum pro necessitate nondum iminente, quod utique spectat ad modificationem usus non minus quam ad abdicatonem dominii. (...) Christus abdicaverit a se et ab apostolis omne temporale dominum et omnem facultatem seu possibilitatem acquirendi ipsum nisi per summos escessus pauperis usus eorum, unde et omnes magistri nostri quando volunt probare quod in pauertate Christi et apostolorum includitur abdicatio proprietatis in speciali et in communi, semper recurrunt ad auctoritates illas que expressius de paupere usu loquuntur quam de abdicatione iuris habiti vel possibilis haberi, quod nisi timerem nimiam proplixitatem luce clarius ostenderem pertractando in speciali omnes auctoritates que de paupertate Christi vel apostolorum vel utrumque simul in laudem paupertatis evangelice comuniter a doctoribus vel disputantibus assumuntur, quarum plures recitavi in quarta parte prime questionis de paupertate, et ubi necesse fuerit paratus sum eas ad propositum applicare” (BURR, David (ed.). Op. cit., pp. 117-119). 47 LEFF, Gordon. Heresy in the Later Middle Ages: The Relation of Heterodoxy to Dissent c.1250 – c.1450. Machester: Manchester University Press; New York: Barnes & Nobles, 1967 (2 vols.), p. 145. 48 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010 111 ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES pobreza se sustentasse de forma independente do uso restrito das coisas colocadas à disposição dos Menores. Assim, na Quaestio de usu paupere, na chamada nona questão, Olivi defende o usus pauper como elemento inseparável do voto de pobreza49. E, mais adiante, observamos a definição feita pelo frade do que seria o usus pauper, ou seja, a forma de vida professada na Regra de Francisco de Assis e manifesta no voto professado pelos Franciscanos: “Na verdade, este é prever que nunca recebam ou tenham além daquilo que a necessidade presente exige (...) não possa receber coisas para uso a não ser exclusivamente para a presente e extrema necessidade”50. Assim, a obediência à Regra consistia em observar o voto de pobreza, do qual não se podia excluir, por conseguinte, o usus pauper. A desobediência a esse preceito implicava, necessariamente, em incorreção na observância da Regra. Assim, Olivi, apoiando-se no frade Guilherme de Mara – o qual retirara parte de suas idéias do Quolibet I de Tomás –, defende o cumprimento pelos frades do voto contido na Regra, consistindo em pecado mortal o atentado contra ele51. Com efeito, Ubertino não menciona frequentemente a pobreza, fazendo, antes, alusão a categoria como penuriosa paupertas, penuria usus ou usus pauper. Não se trata de uma precisão de pouca monta, seja no plano “Nono queritur an usus pauper includatur in consilio seu voto paupertatis evangelice ita quod sit de eius substantia et integritate (...) Nichil inducens in evidentia pericula multarum transgressionum et peccatorum est expediens ad perfectionem nec spectans aliquo modo ad evangelica consilia et vota” (BURR, David (ed.). Op. cit., p. 3). 49 “Hoc enim est vovere quod nunquam res recipiantur vel habeantur nisi quantum presens necessitas exigit (...). non posse recipere res ad usum nisi solum pro presenti et extrema necessitate” (Idem, Ibidem). 50 “Est ergo considerandum quidsit illud ad quod religiosus voto professionis se adstringit. Et si religiosus profitendo voveret se regulam servaturum, videretur se obligare voto ad singula quae continentur in regula, et sic, contra quodlibet eorum agendo, peccaret mortaliter.” (...) Facere contra votum est peccatum mortale; sed religiosi voto professionis adstringuntur ad regulam; ergo peccant mortaliter transgrediendo ea quae in regula continentur” (DELORME, P. Ferdinandus M., O.F.M. “Fr. P.J. Olivi Quaestio de voto regulam aliquam profitentis”, in: Antonianum, XVI, 1941, p. 134). 51 112 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010 O ALTER CHRISTUS: CRISTOCENTRISMO E CONSTRUÇÃO... teórico, seja no plano histórico: tal qualificação acabara por provocar um aceso debate entre os Menores nos séculos precedentes. No entender dos chamados zelantes – tais como Ubertino e os Espirituais – tornou-se bastante claro que a pobreza, entendida como renúncia jurídica à propriedade e ao dinheiro, não era suficiente, se se queria evitar a hipocrisia, traduzindo isso por afirmar-se pobre, mas conduzir uma vida bastante confortável e opulenta. Tamanha era a multidão que frequentava o convento, tamanha a generosidade de seus benfeitores, que o convento, embora legalmente privado de propriedades e de dinheiro, podia fornecer uma existência completamente livre de privações. Daí a convicção dos Espirituais de que a pobreza, para ser efetiva, para além de impor àquele que a professava a renúncia legal aos bens terrenos, deveria exigir necessariamente um uso não somente frugal – esta é uma obrigação para todos os cristãos –, mas sobretudo pobre dos bens que pertencia a outros, principiando pelas roupas e alimentos. O uso pobre, portanto, torna-se parte integrante do voto de pobreza. De resto, uma paupertas penuriosa havia sido praticada tanto por Francisco quanto por Cristo. Da mesma forma, Pedro de João Olivi procurou coadunar a ausência de propriedade e o usus pauper, de forma a compor o ideal da altissima paupertas. É o que consta do Tractatus de usu paupere52. “Videsne quam expresse et quam absolute diffiniunt quod curiositas et superfluitas directe obviant paupertati? Non dicunt a latere vel oblique sed directe. Non dicunt quod non congruant sed quod obvient, et tamen constat quod paupertati pro quanto dicit abdicationem iuris in proprio vel communi directe non obviant, sed solum pro quanto dicit abdicationem usus superflu et curiosi. Patet igitur quod in paupertate regule nostre sine scrupolo alicuis dubietatis includi et significari sentiebant usum pauperem seu moderatum propter quod tanquam pro gravi et enormi offensa tanquam penam tanquam stricte imposuerunt. (...) In precedentibus etiam et subsequentibus frequentissime ponit usum necessarium, et numquam concedit quod possit tradi pecunia pro opulentia in eis fovenda, sed solum pro necessitatibus ipsorum presentibus vel imminentibus, sicut patet ubi agit de personis nominandis vel subrogandis ad elimosinas pecunie recipiendas. Ibi enim semer ponit quod pro necessitatibus ingruentibus vel imminentibus hoc fiat (...) Ecce quod ubique innuit quod etiam illa quod huisusmodi pecuniariis licent non liceant nisi pro solis necessitatibus, non autem pro opulentiis vel superfluitatibus. (...) Sed evangelica paupertas in se essentialiter includit usum pauperem vel moderatum” (BURR, David (ed.). Op. cit., pp. 102-103; p. 113; pp. 147-148). 52 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010 113 ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES Esses representam alguns exemplos de como o voto de pobreza, para além da mera recusa da propriedade e do direito de possuir, presumiria o chamado usus pauper, que consiste no uso moderado – e visando às mais prementes necessidades – das coisas que eram colocadas à disposição dos frades. Conseqüentemente, o usus pauper deveria integrar o voto de pobreza na condição de elemento inseparável deste, figurando como pressuposto para o cumprimento da verdadeira pobreza evangélica. Dessa forma, não se poderia negar o usus pauper, ou tentar excluir sua observância do voto de pobreza. De acordo com Olivi, no Tractatus de usu paupere, tal atitude “em primeiro lugar, significa destruir a doutrina, a perfeição e vida evangélica. (...). Em segundo, é verdadeira apostasia. (...). Em terceiro, é a inclinação da multidão ao novo e ruinoso lapso e, em conseqüência, ao escândalo universal do orbe, subversivo tanto aos costumes quanto aos fiéis. (...) Em quarto, é nutrir e incitar todo relaxamento, torpeza e imperfeição, e favorecer a vida ociosa, carnal e não devota. Em quinto, é difamação pública de nosso estado e de todos os nossos. (...) Em sexto, é arma de excitação e de incitação para nossos detratores e adversários. (...) Em sétimo, é a preparação do caminho para a seita infernal do anticristo”53. Ubertino afirma que, em seu tempo, vigorava uma monstruosa doutrina, a qual estabelecia que o uso pobre não se encontrava incluso no voto de perfeição da altíssima pobreza, imposta aos apóstolos e professada na Regra por Francisco. Apoiava-se, ainda, na autoridade de Hugo de Digne, o qual, em sua obra De finibus paupertatis, concluíra “Primum est exterminatio evangelice doctrine, perfectione et vite (...). Secundum est vera apostasia. (...) Tertium est inclinatio multitudinis ad novum at ruinosum lapsum ac per consequens ad universalis orbis scandalum tam morum quam fidei subversivum. (...) Quartum est nutrimentum et incitamentum omnis laxationis, tepiditatis et imperfectionis, et hoc potissime viventibus otiosis, carnalibus et indevotis. Quintum est publica diffamatio nostri status et omnium nostrum. (...) Sextum est armamentum animativum et incitativum detractorum et adversariorum nostrorum. (...) Septimo est preparatio vie ad infernalem sectam antichristi” (IDEM, Ibidem, pp. 147-148). 53 114 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010 O ALTER CHRISTUS: CRISTOCENTRISMO E CONSTRUÇÃO... que o frade Menor, uma vez que não possuía nada sob o céu, assim, pelo seu voto, deveria observar o caráter da pobreza referente ao uso pobre e restrito54. De acordo com Ubertino, Cristo havia transmitido a pobreza como regra de vida a Maria e aos apóstolos. Pode-se acrescentar, ainda, que, por intermédio de seu exemplo, não deixara de advertir que aquele que se dedicava a uma vida de perfeição deveria seguir o critério do uso pobre. Entre as virtudes que Jesus teria trazido ao mundo, encontravam-se o amor à altíssima pobreza e a observância à mesma pessoalmente e na pessoa de sua santíssima mãe, bem como entre os discípulos, especialmente nos Apóstolos55. A afirmação de que a pobreza fora instituída por Cristo aos Apóstolos é uma tônica não só espiritual mas também franciscana de uma forma geral. É assim que observamos Olivi, em seu Tractatus de usu paupere, citar Boaventura a fim de sustentar a tese de que o estado de pobreza era inerente à vida dos companheiros de Cristo56. Arbor vitae..., V, 6, 443b-444a. Trata-se, ainda, da temática da nona questão em Olivi: BURR, David (ed.) Op. cit., p. 14. 54 55 Arbor vitae..., III, 9, 184a. “‘Sancte autem paupertatis exemplar et forma in vita recessit apostolorum, quam perfectionis magister Christus eisdem instituit quando ipsos ad predicandum misit, sicut legitur in Matheo, Nolite inquit possidere aurum, etc., ubi glossa, Propemodum necessaria vite amputat, ne vel curent de crastino qui docent omnia regi a Deo, nec ipsa necessaria nec cellarium secum vehant, nil preter vestimentum nec etiam minima.’ Quibus premissis subdit Bonaventura, ‘In hiis igitur verbis domini apostolis et predicatoribus veritatis extreme ac penuriose paupertati formam servandam imponit quantum ad carentiam non solum possessionum sed etiam pecuniarum et aliorum mobilium quibus sustentari vel communiri solet communi vita hominum, ut tanquam pauperes in summa rerum constituti essent et sine calciamentis incederent, ut sic paupertatem altissimam actu et habitu quasi quodam perfectionis insigne preferent, hanc paupertatis normam tanquam speciali prerogativa perfectam et Christus in seipso servavit et apostolis servandam instituit et hiis qui eorum cupiunt immitari vestigia consulendo suasit. Deinde ista tria scilicet quod in seipso servavit, et quod apostolis servandam instituit, et quod aliis consulendo suasit, probat per plures auctoritates sanctorum’” (BURR, David (ed.). Op. cit., p. 94). 56 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010 115 ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES Ubertino insiste, ainda, na questão do usus pauper, a ponto de manifestar seu desejo de impor a todos os prelados uma pobreza em certa medida não diferente daquela dos Menores. Entre outras coisas, ele lembra que os prelados devem considerar-se como advenae et peregrini, e respeitar o uso pobre. Recorda que o acúmulo de esmolas é contrário ao espírito evangélico, ratificando dessa forma a necessidade do usus pauper. Os prelados, por sua vez, defenderiam as próprias posses alegando que não se trata de bens pessoais, e sim comuns, pertencendo, na verdade, à Igreja. Ubertino reconhece-o, mas isso não basta para livrá-los do pecado do fausto, dado que até mesmo o culto a Deus deve ser privado de pompa57. Ubertino tornara a pobreza inseparável do uso, assim como a perfeição encontrava-se subordinada ao ideal de vida conforme o exemplo de Cristo58. Ela requeria hábitos rotos, ausência de residência fixa, andar a pé, receber esmolas, mas nada guardar para provisão. Tudo isso fazia dele um radical, ao mesmo tempo entusiasmado pelo seu ideal e indignado pela sua transgressão. Examinado a fundo, ele possuía as próprias fontes franciscanas a seu lado, tendo em vista o teor e o significado da figura de Francisco de Assis. Uma das peculiaridades de Ubertino em relação aos escritos que ele utiliza consistia em ressaltar e acentuar a intentio profunda de Francisco, seu projeto formulado para a Ordem. Paralelamente, pressupunha buscar os motivos de sua falência, que para ele parecia, naquele momento, inegável. Naturalmente, procurava a responsabilidade subjetiva para o desvio em relação ao projeto original do santo fundador, não chegando a considerar a possibilidade ou não de compatibilidade 57 Arbor vitae..., II, 3, 94a. Também de acordo com Pedro de João Olivi, o usus pauper identificava-se à perfeição, a saber: “paupertas penuriosa valet ad exercicium perfecte virtutis” (BURR, David (ed.). Op. cit., p. 96). 58 116 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010 O ALTER CHRISTUS: CRISTOCENTRISMO E CONSTRUÇÃO... entre a sociedade eclesiástica de sua época e o Francisco presente em seus escritos. É importante, em contrapartida, sublinhar o valor e o significado de seu engajamento. Assim, aquilo que é relevante para Ubertino é relevar os aspectos que, para Francisco, deveriam fazer da Ordem um novo povo, “que fosse dissimilar em humildade e pobreza de todos aqueles que o precederam”59. Dessa forma, ao mesmo tempo, observa-se uma tendência a reivindicar para a Ordem seu caráter diferencial em relação às demais Ordens, passadas e de seu tempo, e também por oposição ao clero de uma forma geral. Com efeito, após dedicar algumas colunas à humildade e à pobreza de Francisco60, Ubertino concentra-se sobre estas virtudes evangélicas, as quais, se tivessem sido transmitidas à Ordem em seu complexo, torná-la-iam uma entidade absolutamente nova no corpo da Igreja. Assim, a considerar a especificidade da concepção de Francisco, a Ordem, segundo Ubertino, se se houvesse apoderado adequadamente das virtudes da pobreza e da humildade, converter-se-ia numa entidade absolutamente nova no corpo da Igreja Católica. Em contrapartida, como não se observasse tal ocorrência naquele momento, era justo supor que, à medida que relaxava em relação à observância estrita, perdia, progressivamente sua identidade no seio da instituição eclesiástica, confundindo-se com as demais Ordens e até mesmo com o clero secular61. À medida que seus componentes se dirigiam para a via prelationis, inclinavam-se aos estudo e passavam a viver em estabelecimentos urbanos, a Ordem se aproximava à forma de vida e de comportamento de outras ordens, e perdia suas características individuais originais. A recusa de tais elementos pelo próprio Francisco de“Qui esset dissimilis in humilitate et paupertate ab onibus aliis qui precesserunt” (Arbor vitae..., V, 3, 427b). 59 60 Ibidem, 423b-425a e 425b ss. 61 Ibidem, 422b-423. Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010 117 ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES monstrava uma consciência da função histórica absolutamente nova que o movimento desempenhava no conjunto da Igreja, pois, ao citar o Pai Seráfico, Ubertino assim afirma: “[Jesus Cristo] disse a mim que desejava dar ao mundo, por nosso intermédio, uma perfeição nova e não experimentada nos tempos anteriores da Igreja”62. Pedro de João Olivi também concebia a Ordem como imbuída de uma série de características que a diferenciavam e conferiam-lhe um papel especial no interior da vida da Igreja. Assim, a Ordem Franciscana encontrar-se-ia dotada de uma característica própria e excepcional, de forma que deveria exercer no interior da Igreja uma função diferente daquela das outras, respondendo às necessidades mais profundas da instituição eclesiástica63. Assim, a crítica de Ubertino ao amor aos livros não deve ser confundida com simples antiintelectualismo; ela revelava a preocupação com o desvirtuamento da Ordem. Francisco teria previsto que da intenção de saber originar-se-ia um novo fundamento para a Ordem, bastante diverso daquele originário, marcado pela minoritas. Assim, uma narrativa a respeito do irmão Leão, um dos primeiros companheiros de Francisco, afirma: “E eu [frei Leão] já fui tentado a ter livros. Mas porque disto resultava conhecer a vontade do Senhor, [melhor era] carregar o livro onde se encontravam a escrita do evangelho do Senhor (...)”64. Igualmente, a via prelationis seria conducente à perda da identidade da Ordem face ao mundo e à Igreja. Além disso, o ingresso no mundo secu“[Iesus Christus] dixit mihi quod unam perfectionem novam per nos volebat dare mundo prioribus temporibus ecclesie inexpertam” (Ibidem, 7, 499b). 62 63 MANSELLI, Raoul. “L’idéal...”, p. 109. “Et ego [fra Leo] iam tentatus fui habere libros. Sed ut de hoc cognoscerem domini voluntatem tuli librum ubi erant evangelia domini scripta (...)” (Arbor vitae..., V, 3, 427b). 64 118 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010 O ALTER CHRISTUS: CRISTOCENTRISMO E CONSTRUÇÃO... lar conduziria a privilégios inerentes ao clero secular, uma vez que a “autoridade pomposa” sobrepor-se-ia à virtude da humildade65. Da mesma maneira, a vida citadina perfazia elemento não pertinente ao projeto de Francisco. A crítica aos estabelecimentos urbanos representava, nesse contexto, a crítica ao contato com os poderosos, ao vão estudo e às conversas impróprias66. A oposição aos estabelecimentos urbanos pode ser observada de duas maneiras, a saber: como inerente à existência da Ordem; como busca da retomada de uma experiência eremítico-contemplativa. Assim, no quinto livro da Arbor, Ubertino transcreve e comenta os rotuli de fra Leão, na medida em que estes retomavam a atitude de Cristo para justificar a habitação em eremitérios. A escolha eremítico-contemplativa figuraria, portanto, como parte da intentio de Francisco. Ele limita-se, utilizando-se, para tanto, da memória dos primeiros companheiros, a assinalar o contraste entre o projeto de vida retirada e contemplativa de Francisco e as condições de vida da Ordem, então estabelecida nas cidades67. No terceiro livro, por outro lado, a idéia da intentio de Francisco – à qual subjaz a concepção da novitas franciscana – parece abandonada. A orientação para a vida eremítico-contemplativa é aqui identificada a um monaquismo das origens – ao qual subjaz uma concepção de continuidade entre as regras monásticas antigas e a Regra de Francisco de Assis. Dessa forma, no terceiro capítulo do terceiro livro, intitulado Iesus desertum incolens, encontra-se um comentário acerca do período transcorrido no deserto, entre o batismo de Jesus e o seu ingresso na vida pública. Com efeito, com a escolha do deserto, Jesus teria mos“In humilitate vero profunda et extirpatione totius mundane glorie, sic perfectissime imitatus est Christum (...). Nam salutem animarum volebat procurare cum humilitatis virtute: non cum pomposa auctoritate” (Ibidem, 422b). 65 66 Ibidem, III, 9, 207. 67 Ibidem, V, 3, 427ss. Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010 119 ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES trado que a vida solitária e austera resulta na maior perfeição68. Ressalta Potestà que a proposta do distanciamento do mundo é formulada por Ubertino nos termos de uma cultura monástica, qual seja, aquela de Bernardo69. Com efeito, é possível estabelecer algumas fontes dessa espiritualidade presentes na Arbor, tais como Bernardo, Nicolau de Claraval, a Regra de Basílio, bem como textos monásticos provenientes da tradição grega. De fato, é de se supor o interesse suscitado entre os Espirituais por fontes trazidas há pouco por Ângelo Clareno. O antigo monaquismo grego correspondia às aspirações profundas dos Espirituais: ignorando todo tipo de hierarquia, oferecia comunhão eclesial a eremitas que permaneciam excluídos do contato constante com os bispos. A idéia de reviver um patrimônio espiritual e cultural monástico pressupunha, por um lado, a transformação da relação entre os frades e o século, pertinente ao tema da intentio de Francisco; por outro lado, é redutiva da especificidade histórica da Ordem Franciscana relativamente às ordens precedentes, ao enfatizar uma relação antes de continuidade que de ruptura. Trata-se de uma tentativa de conciliar novidade revolucionária e pertença à tradição antiga. O sentido dado por Francisco para o exire de seculo, de acordo com o texto hagiográfico, era fruto da experiência do encontro com o leproso, mas não requeria, originariamente, um abandono do mundo em sentido material. Ubertino, por seu turno, insistia no distanciamento de um mundo que figura como elemento irrevogavelmente prejudicial à experiência religiosa pertinente à Ordem e à perfeição evangélica a que ela deveria conduzir. Com o intento de retomar a experiência de Francisco, sobretudo naquilo que se referia 68 Ibidem, V, 3, 145a-160a. 69 POTESTÀ, Gian Luca. Storia., p. 213. 120 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010 O ALTER CHRISTUS: CRISTOCENTRISMO E CONSTRUÇÃO... à pobreza e à recusa do poder, Ubertino propunha o retorno às fontes pré-franciscanas de espiritualidade. Assim, “a fim de lutar contra uma ordem mundanizada, ele passa a recusar o mundo enquanto tal”70. Tomando como base todo o conjunto de alusões à pessoa do fundador e aos rumos da Ordem que constam da Arbor vitae, podemos afirmar que é certa, para Ubertino, a presença de uma intentio franciscana, para além da idéia do seguidor e imitador da vida de Cristo. Com base nesse “motivo”, Ubertino posicionou-se em defesa daquilo que o movimento e seus ecos populares nomearam viri spirituales. Estes são identificados aos filhos legítimos de Francisco, ao passo que os demais são considerados como filhos ilegítimos do Pai Seráfico71. Os Espirituais deveriam, segundo Ubertino, esperar um novo advento de Francisco, de forma que ele cumprisse idêntica trajetória à de Cristo. Assim, a experiência de Francisco encontrava-se historicamente liquidada, mas se ele é verdadeiramente renovator vite Christi não é de todo impróprio aspirar a uma futura retomada. Para tanto, apoiava-se na tradição, sustentando ter como base Conrado de Offida, para afirmar uma futura ressurreição de Francisco. A idéia não era nova: encontrava-se em voga nos meios espirituais e faz uma aparição na Lectura de Olivi, muito embora de maneira assaz discreta e cautelosa. Ubertino, em contrapartida, emprega-a com destaque no interior de sua teorização, nomeando inclusive os frades que a sustentavam. Os frades rebeldes deveriam, pois, aceitar como temporárias as dificuldades por que passavam, na certeza de seu ulterior desígnio. Assim, sofrimento presente e júbilo futuro deveriam ser considerados correlatos, 70 Idem, Ibidem, p. 217. Nesse ponto, Ubertino chega a referir-se a Ismael, nascido da escrava de Abrãao. Este Ismael sectário encontrar-se-ia, portanto, golpeando os filhos legítimos da Regra por meio de perseguições, repreensões, ordens irracionais e sentenças crueis (Cf. Arbor vitae..., V, 3, 424a). 71 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010 121 ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES reconhecendo-se que constituíam partes da obra realizada pelo Espírito de Deus. Assim como Deus permitira as perseguições levadas a cabo contra seu filho, até que se culminasse na crucifixão, também permitia, nos últimos tempos, que os prelados vivessem na falsidade e fizessem o mal, perseguindo e humilhando os eleitos72. Aqui, opera-se a transferência perfeita da herança espiritual de Francisco para os Espirituais. Trata-se do momento da obra no qual esses são associados ao próprio Jesus, em função da similitudo que guardam com ele por causa de seu sofrimento (paixão). Assim, o cristocentrismo, associado à centralidade histórica de Francisco, coaduna-se, por fim, na Arbor vitae, a uma concepção fundamentalmente espiritual: a noção de que o “exército espiritual”, formado a partir da existência da Ordem Franciscana, encontrava-se imbuído de uma função essencial para o cumprimento do ideal salvífico: lutar contra as hostes do Anticristo e triunfar sobre a Igreja carnal. Observa-se, dessa forma, uma relação de continuidade, histórica e ideal, entre Francisco e os Espirituais73. É possível, também, encontrar em Pedro de João Olivi uma correlação bastante clara entre o sofrimento presente e o júbilo futuro. Tal correlação encontrase presente na Lectura, bem como em carta endereçada aos filhos de Carlos d’Anjou. Tal missiva constitui, de acordo com Raoul Manselli, uma chave que permite compreender o sentido profundo da Lectura. Da mesma forma, a Lectura, por sua vez, permitiria compreender a carta em toda sua extensão e profundidade74. De suas linhas, emerge um ideal, que é justamente aquele do franciscano, tal qual Olivi deseja ser e tal qual Olivi deseja fazer conhecer, com simplicidade, porém de maneira muito clara, aos príncipes aos quais a carta é destinada. 72 Arbor vitae..., III, 10, 208; V, 37, 394. “Et ex his aperte claret quod ex tunc mala cepit pullulare radix que nunc in pessimum fructum excrevit” (Ibidem, V, 3, 430a). 73 74 MANSELLI, Raoul. “L’idéal...”, p. 102. 122 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010 O ALTER CHRISTUS: CRISTOCENTRISMO E CONSTRUÇÃO... Em tal missiva, portanto, figura o princípio biológico de origem aristotélica, bem como a sentença evangélica da vida como obra de trabalho e de dor. Aqui, ambas encontram-se conjugadas a fim de demonstrar que a lei universal da existência não consiste num desenvolvimento triunfal e num futuro feliz e bem-aventurado, mas antes num trabalho intenso que submete toda a vida à dor, e cuja justificação última é a redenção, a qual não se constitui da vinda triunfal de Cristo entre os homens, mas antes da passagem dolorosa do filho de Deus pela terra e sua morte na cruz tendo em vista a salvação dos homens: “(...) O filho único de Deus, igual a ele em todas as coisas, humilhou-se, tomando a forma de escravo e sofrendo a morte da Cruz, pelos ímpios, para os ímpios. Esta lei, nós a constatamos também nas etapas de nossa existência”75. Nada, portanto, realiza-se, a não ser através da dor, do sofrimento e da morte. Trata-se do princípio enunciado por São João, segundo o qual “se o grão de trigo que cai na terra não morrer, permanecerá só; mas se morrer, produzirá muito fruto”76. A condição humana, em seu estado natural de sofrimento, coincide, portanto, com aquilo que, no plano sobrenatural da redenção, é necessário ao homem para salvar-se. Olivi procura, por intermédio de uma série de exemplos, demonstrar que a condição humana, longe de ser uma reflexão filosófica ou teológica abstrata, conforma-se perfeitamente com a vida real: “É, ainda, devido a essa lei maravilhosa, que a Igreja do Cristo foi concebida no seio da sinagoga (...), o povo de Israel saiu da fornalha de ferro e da dura servidão do Egito e, pela mão de Deus, partiu em dois o Mar Vermelho e atravessou-o com os pés OLIVI, Pedro de João. “Epitre aux fils de Charles II de Naples, en l’an 1295”, in: Cahiers de Fanjeaux, 10 – Franciscains d’Oc – Les Spirituels – ca. 1280-1324. Privat Editeur, 1975, p. 128. 75 76 Jo 12,24. Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010 123 ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES secos. (...) O exército inteiro de eleitos, escapando ao exílio deste mundo e ao poder tirânico do diabo pela via da morte corporal, como através do Mar Vermelho, reúne-se e sobe aos reinos celestes. Isso demonstra também a razão da palavra apostólica: que é necessário entrar no reino de Deus por meio de numerosas atribulações”77. Olivi é notável pela sua concepção dinâmica do processo histórico como uma vitalidade bipolar que se realiza entre os homens segundo a lei universal de um desenvolvimento trabalhado e atormentado, e, no plano espiritual da providência, segundo o processo dramático da salvação dos eleitos, na qual o ideal cristão se realiza ao preço de uma penosa e dolorosa luta contra a presença imperiosa de forças e poderes anticristãos. Observa-se, ainda, uma condivisão de Ubertino com a tradição presente no Breviloquium de Boaventura: o pecado teria sido permitido por Deus, advindo em função da livre escolha da humanidade. A questão espiritual se traduzia, dessa forma, como a vontade de Deus que, desejando reconhecer seus eleitos, colocava-os à prova por meio de adversidades78. Assim, as perseguições levadas a cabo contra os viri spirituales, bem como o sofrimento imputado a eles como conseqüência de tais perseguições, são sintomáticos da presença da vontade de Deus como força que atua de forma irreprimível na história da humanidade. Eles também evidenciam uma relação ideal de assimilação e continuidade entre Cristo e Francisco e entre Francisco e os Espirituais. Ao homem de fé, 77 OLIVI, Pedro de João. “Epitre...”, p. 129. “Item magna misericordia Dei in electos suos hic refulget, qui de malis aliorum eos glorioses efficiet, et in eorum persecutionibus et cecitatibus mirandas electis fabricavit coronas et in ruinis huius status utilissimas eis providit cautelas” (Arbor vite..., V, 7, 451b-452a). 78 124 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010 O ALTER CHRISTUS: CRISTOCENTRISMO E CONSTRUÇÃO... portanto, não deveria haver razão para lamentar-se ou rebelar-se contra Deus. Assim, as duas chamadas bestas – os papas Bonifácio VIII e Bento XI, emblemáticos dos últimos tempos, e seus protagonistas necessários –, teriam sido, na verdade, permitidas por Deus a fim de punir as culpas da Ordem. Dessa forma, a história, embora algumas vezes nebulosa e cruel, permanece, sempre, nas mãos de Deus79. REFERÊNCIAS 1 Fontes BURR, David (ed.). De usu paupere – The Quaestiones and the Tractatus. Firenze/Perth, 1992. EHRLE, F. 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Lértora Mendoza Conicet, Buenos Aires Introducción La historia de los «espirituales» franciscanos en las densas primeras décadas del siglo XIV ha sido motivo de numerosos trabajos que analizan los diversos aspectos y modos en que la «pobreza evangélica», propiciada por la Orden Franciscana y llevada a su expresión más rígida por los «espirituales», produjo una verdadera crisis tanto teórica como práctica, que abarcó no sólo a los miembros de la Orden, sino a teólogos, filósofos, eclesiásticos y agentes políticos. En concreto, la cuestión del «simple uso» ha sido interpretada -entonces y después- de diversos modos, y las consecuencias de las posiciones encontradas también han sido evaluadas con criterios dispares. No es mi propósito entrar de nuevo en esta historia que ya ha sido contada varias veces y por voces más autorizadas1. Me propongo, puntualmente, responder -en lo posible- a una pregunta que, en estos o similares términos, recorre los ánimos de investigadores y lectores de esta historia: cuál fue exactamente el punto nodal, en que los teóricos del emperador veían el rédito político Una reciente síntesis del tema en José Antônio de C.R. de Souza, As relações de poder na Idade Média Tardia. Marsilio de Pádua, Álvario Pais O.Min., e Guilherme de Ockham O. Min., Porto Alegre, U. Porto-Est. Edições 2010, Cap. 1, “O contexto histórico”, p. 11 ss. Sintetiza los estudios definitivos de G. Mollet, Les papes d’Avignon, Paris, Letouzey & Ané, 12964; B. Guillemain, La court pontificale d’Avignon (1309-1376). Étude dùne société, Paris, 1962, D. Paladilhe, Les papes en Avignon, Paris, 1975. 1 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 127-145, jul./dez. 2010 127 CELINA A. LÉRTORA MENDOZA de apoyar a los espirituales y el que -correlativamente- era visto como un serio peligro por la curia pontificia. La pregunta no es ociosa. En un mundo en rápido cambio, que estaba inaugurando una nueva tradición en el hacer y el pensar lo político, las razones pragmáticas y hasta los intentos de reflexión sobre ese nuevo mundo emergente configuraban un entramado en que los motivos para aceptar o rechazar la opción franciscana eran muy variados y hasta podían ser contradictorios, según la mira de los interesados. Los motivos que podía tener el emperador Luis de Baviera para acoger a los espirituales, así como a los «averroístas políticos» o simplemente a los disidentes con las teorías teocráticas y la política papal eran comprensibles en la medida en que se aplicara el adagio «el enemigo de mi enemigo es mi amigo». Pero esto era algo coyuntural2 y difícilmente hubiese generado una situación tan compleja, tensa y duradera, si de ambas partes no hubiese existido el convencimiento de que en dicha polémica se jugaba algo más que eventuales discordias o alianzas más o menos personales. Por otra parte, el perfil del grupo «enemigo» del papado y también sus razones eran notablemente heterogéneos; resulta difícil pensar que La propia postura del emperador Luis de Baviera en contra del Papa puede leerse en forma coyuntural: cuando tanto él como Federico de Habsburgo acudieron a Juan XII, recientemente electo (1316) para que resolviera su disputa por la elección imperial, el Papa promulgó un decreto (Si Fratrum, de 1317) por el cual declaraba vacante el imperio y revocaba a sí la administración imperial. Naturalmente esto era inaceptable para ambos contendientes, en cuanto los privaba del poder; pero podría preguntase si cualquiera de ellos hubiese aceptado el principio de la supremacía papal –y eventualmente, aunque fuese por mínimo tiempo, la administración papal del imperio- si el Papa le hubiera dado finalmente la razón. La historia nos cuenta que finalmente Luis IV triunfó de su rival, que reconquistó el norte de Italia y que se negó a obedecer al Papa, el cual lo excomulgó. La reacción política del emperador, discutiendo legalmente al papado sus pretensiones y rechazándolas, inaugura sin duda una nueva época de la teoría política secularista. Pero no podemos dejar de pensar que fue puntualmente motivada por la escalada poco prudente de Juan XXII. 2 128 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 127-145, jul./dez. 2010 LOS ESPIRITUALES Y LA POLÍTICA IMPERIAL ese conglomerado podía por sí guiar una política imperial sostenible y coherente. En este trabajo intento argumentar a favor de dos hipótesis: 1º. Que la cuestión esencial que separaba ambos bandos era la cuestión del poder político. 2º. Que si las tesis de los espirituales sobre la pobreza evangélica, el sine proprio y el simple uso podían interesar a ambos grupos es porque veían una conexión -que no es explícita y en la mayoría de los casos creo que incluso ignorada por los frailes- entre su opción y la lectura acerca de la legitimidad del poder político que ambos grupos antagónicos pretendían para sí. Considero que es la hipótesis que mejor explica hechos que de otro modo parecerían extraños e incluso incongruentes. Para avanzar en la línea argumentativa, procederé por el principio de descarte, respondiendo 1. a la pregunta por cuáles podían ser los puntos de coincidencia con el emperador y sus asesores políticos 2. a la pregunta por cuáles podían ser los puntos de divergencia y peligro con el papa y sus asesores político-eclesiásticos. Se busca hallar al menos un punto que pueda ser ingresado afirmativamente en ambos campos. La discusión sobre las afirmaciones espirituales Para que la respuesta a estas preguntas no sea un ejercicio «de dibujo» es importante partir de la propuesta espiritual en su forma más clara y concisa. Al respecto, hay acuerdo entre los estudiosos3 que la propuesta De la abundante bibliografía al respecto, señalo especialmente D.Lambert, Francsican Poverty, Saint Bonaventure, The Franciscan Institute, S. Bonaventury University, 1998 y Marino Damiata ofm, Guglielmo di Ockham Povertà e Potere, Firenze, Studi Francescani, 1978. 3 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 127-145, jul./dez. 2010 129 CELINA A. LÉRTORA MENDOZA de los espirituales se fue conformando con sucesivas delimitaciones a partir de la inicial admonición del Fundador. Tenemos entonces la siguiente secuencia 1. El modelo del hermano menor es Jesús (y los apóstoles) Francisco 2. Los frailes deben imitar en todo a Jesús y especialmente en aquello que más lo caracterice - la perfección evangélica - Francisco 3. Lo que más lo ha caracterizado es la pobreza absoluta - Francisco y «la dama pobreza» Hasta aquí podría decirse que los frailes menores comparten -al menos en general- las tesis de todas las órdenes mendicantes que se fundaron en el siglo XIII y cuya defensa, a mediados de ese siglo, había sido encarada por figuras ceñeras de las dos más importantes: Buenaventura por los frailes menores Tomas de Aquino por los frailes predicadores. Podría decirse que la defensa de la legitimidad de la opción mendicante fue radicalmente exitosa (en ese momento) y que culminó con la condena y llamado a silencio de los opositores. Las órdenes mendicantes entraron desde entonces por la puerta principal en la vida eclesial y rápidamente ocuparon lugares estratégicos como las universidades, los obispados y hasta el papado. La definición de qué es ser pobre quedó consignada, justamente, en la propia fórmula de San Francisco: sine proprio. Esto, desde luego, conduciría irremediablemente a una repetición de la historia: también los monjes eran «pobres» en el sentido de que no tenían nada propio. Quien detentaba la propiedad era la Orden, la institución. Pero esto no pasaba de ser a los ojos de muchos (entre ellos, por ejemplo Pedro Valdo) sino un subterfugio que permitía a los monjes vivir ricamente aun cuando no fuesen «propietarios» de los bienes de que disfrutaban. La cuestión, sobre todo para Francisco, es que debía vivirse realmente la pobreza y que ella es un estado real, existencial, no jurídico. Para los primeros franciscanos, 130 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 127-145, jul./dez. 2010 LOS ESPIRITUALES Y LA POLÍTICA IMPERIAL el hecho de que fuera la Orden y no los individuos, la propietaria de los bienes, los colocaba en el mismo peligro al que ya habían sucumbido varias veces los monjes. A partir de allí, y en la medida en que las órdenes mendicantes querían diferenciarse de las antiguas órdenes, había que pensar otros recaudos 4. La vida realmente pobre es esencial a la perfección evangélica Aquí comienza la primera escisión teórica entre las órdenes mendicantes, en la segunda mitad del siglo XIII. Mientras que los franciscanos, orientándose hacia lo que luego sería la posición de los espirituales, consideraban que la pobreza es de la esencia de la vida evangélica, Tomás de Aquino sostenía que es un medio y no un fin en sí misma. Sin negar su importancia y su necesidad, en términos generales, se la debilita claramente en términos concretos, porque un medio puede ser eventualmente omitido, reemplazado por otro, total o parcialmente. 5. La pobreza absoluta se exige no sólo a los individuos sino a la institución misma 6. La institución, por lo tanto, no puede tener propiedades a título propio porque entonces no sería ella misma pobre. Este fue, en la segunda mitad del siglo XIII, el punto de inflexión más importante de la controversia. Luego de una serie de vicisitudes que no es necesario exponer aquí, los Frailes Menores consiguieron y aceptaron (aunque no todos ni todos los que aceptaron lo hicieran de buena gana) una solución de compromiso: los bienes que ellos necesitaran usar para vivir y para realizar sus objetivos como orden religiosa no pertenecerían a ella sino a la iglesia. Esta solución no conformó ni a tirios ni a troyanos y creo que es el antecedente inmediato de la conexión con el tema del poder político. Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 127-145, jul./dez. 2010 131 CELINA A. LÉRTORA MENDOZA El argumento contra la solución es evidente: si la Iglesia tiene bienes a título propio, entonces no es pobre, y si no es pobre, no imita a Cristo y no puede alcanzar ella misma la perfección evangélica. Una iglesia así es lo contrario de la iglesia que fundó Cristo. La cuestión es entonces cómo puede ser «pobre» la iglesia. No puede serlo como los individuos (transfiriendo la propiedad a la institución) ni como la institución (caso de la Orden de los Hermanos Menores) transfiriéndola a la Iglesia, porque no hay otra institución cristiana por encima de ella. Ahora bien, si no hay una institución por encima de la Iglesia en el orden religioso, sí la hay en el orden secular: precisamente el imperio. En definitiva, la idea de una iglesia pobre es la idea de una iglesia cuyos bienes no sean de propiedad sino de uso y que el propietario sea el poder secular. Este modelo no parece, en nuestra época, algo tan extravagante, pero lo era entonces. Y lo era por dos motivos: 1. Porque la iglesia era de hecho un poder temporal reconocido y todo poder temporal, todo príncipe (ya lo decía Tomás de Aquino en De regno, dos siglos antes de Maquiavelo) debe tener bienes, propiedades y riquezas y cuantas más tenga, mejor. 2. Porque el poder temporal (y el dominio anejo) es lo que garantiza la libertad. Entonces, considero que 1. El emperador no se interesaba por la cuestión de la imitatio Christi ni de la perfección evangélica como un objetivo de interés político que le llevara a favorecer a los espirituales por sostener esto. El Papa se interesaba por misma cuestión en sentido distinto (no necesariamente inverso): no se oponía al dictum pero quería la exclusividad magistral para definirla. 2. El emperador no tenía interés decisivo (podía ser un interés concreto y circunstancial) en los bienes de las órdenes mendicantes. El Papa podía tener algún interés en los bienes de los franciscanos, pero no mayor que el suscitado por los bienes de otras comunidades, pues en definitiva no podía disponer a su antojo de ninguno de ellos. 132 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 127-145, jul./dez. 2010 LOS ESPIRITUALES Y LA POLÍTICA IMPERIAL 3. El emperador tal vez tenía interés en los bienes de la Iglesia, pero no en general sino tal vez muy concretamente: a) sin duda le interesarían los territorios de los estados pontificios, pero es difícil que pensara seriamente en la posibilidad de revertir la Donatio Constantini -que se tenía por absolutamente válidamediante un acto de fuerza; sólo podría lograrse una reversión por un cambio interno de la política eclesiástica: b) le interesarían los bienes muebles e inmuebles de la iglesia, sitos en sus propios territorios y de los cuales pudiera servirse en caso oportuno; tal vez fuera una motivación para ayudar a quienes propiciaban el abandono de estas propiedades, pero no parece que fuera esto de un interés político decisivo c) le interesaría, sí, seguramente, consolidar un derecho secular de gravar bienes eclesiásticos, de confiscarlos, y en definitiva, de ejercer sobre ellos el poder jurisdiccional absoluto y no el restringido en uso. Esto me parece un asunto de mayor interés político y que conecta con la cuestión del poder político. Frente a estos intereses, el Papa no debía sentirse especialmente alarmado porque a) era muy improbable un intento exitoso de recuperar los territorios pontificios para el Imperio; b) los bienes eclesiásticos sitos fuera del territorio pontificio eran administrados prima facie por las autoridades eclesiásticas territoriales, de modo que su interés por sus rentas era también indirecto y mediado por las negociaciones que debía hacer la curia pontificia con las jerarquías locales; c) mayor interés tenía la prohibición confiscatoria por parte de los poderes seculares, que en definitiva apunta al tema del poder político y la legitimidad de tales tipos de atribuciones. 4. El emperador tenía interés directo en aumentar su poder y consiguientemente en limitar poderes concurrentes, especialmente el del Papa. Por lo tanto, una ayuda a los espirituales debía tener la Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 127-145, jul./dez. 2010 133 CELINA A. LÉRTORA MENDOZA intención de servirse de una doctrina de ellos que favoreciera sus propósitos. De éstas, parecen conexas con este interés: a) la doctrina de la pobreza evangélica como obligación de toda la Iglesia y b) la limitación del poder pleno del papa, la plenitudo potestatis (en general, de la jerarquía eclesiástica). Éste es, a su vez, el punto en que el Papa, por motivos exactamente inversos, es decir, por su propio interés, se muestra irreductible. Trataré por consiguiente de mostrar la relación de estas dos doctrinas de los espirituales con el proyecto hegemónico de la política –teórica y práctica- imperial. 1 La doctrina de la pobreza evangélica La afirmación fuerte de los espirituales es que la pobreza evangélica es una exigencia radical, a nivel de toda la iglesia, emanada de Cristo mismo. Aplicando esta doctrina en todas sus consecuencias, la iglesia no puede ni debe tener bienes propios, a título de dominio. Esta exigencia, como es claro, incluye no solamente los bienes muebles e inmuebles ubicados en los territorios de los príncipes seculares sino que, entendida en toda su radicalidad, incluiría también los dominios del Estado Pontificio. Es cierto que los espirituales no llegaron a esta proposición extrema, y que además la Donatio Constantini (cuya autenticidad no se ponía en duda) se entendía como una garantía – querida por el mismo donante- de la libertad e independencia de la iglesia. Como se verá luego, hay una relación conceptual entre dominium y libertas, que puede ser leída de varias maneras, pero que no puede soslayarse. Ya he dicho que la cuestión general de la pobreza había sido resuelta favorablemente durante el siglo XIII, pero ahora tomará otro cariz. En efecto, los franciscanos habían sostenido que al pregonar la pobreza lo hacían a imitación de Cristo y los Apóstoles, que también habían sido pobres. Esta afirmación no suscitó, durante aquella primera época, 134 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 127-145, jul./dez. 2010 LOS ESPIRITUALES Y LA POLÍTICA IMPERIAL mayores recelos a la jerarquía eclesiástica, como que fue aceptada y/o ratificada por una serie de Papas: Honorio III, Gregorio IX, Alejandro IV, Inocencio IV, Inocencio V, Nicolás III y Nicolás IV4. Por otra parte, la simple lectura de los Evangelios, de los Hechos y de las Cartas Paulinas no deja lugar a dudas que la primera comunidad y su Fundador fueron pobres, al menos en el sentido literal y común de la palabra. Pero con Juan XXII se plantea una pregunta más específica, sobre la “pobreza absoluta” y su exacto significado. Es posible que esta cuestión fuese motivada por las disensiones provocadas por el decreto Exivi de paradiso, promulgado por el Papa Clemente V al término del concilio de Vienne (1312)5, que procura por una parte corregir los abusos de la Comunidad y por otra mitigar el rigorismo de los Espirituales, y lo hace fundándose en la bula Exiit qui seminat (1279)6, de Nicolás III, reiterando por tanto que los frailes habían renunciado a la propiedad sobre los bienes materiales, tam in speciali quam in commune, conservando sólo el usus simplex facti, y que la iglesia continuaba siendo la propietaria de esos bienes. Las disensiones que este decreto provocó entre la Comunidad y los Espirituales, determinaron al General Miguel de Cesena a solicitar la intervención de Juan XXII. Tal vez fue un paso equivocado, pues dio ocasión al Papa para llevar adelante una radical modificación de la tradición. En primer lugar promulgó la bula Quorundam Exigit (octubre de 1317)7 en la cual se afirma que la virtud de obediencia es superior a la de pobreza; poco después la bula Sancta Romana (diciembre El Manifiesto de Sachsenhausen de Luis IV contra el Papa, al acusarlo de “sostener herejías” y estar en contra de la doctrina tradicional de la iglesia, recordaba precisamente estos nombres. 4 5 Bullarium Francsicanum, Romae , Ed. Eubel, V: 80-86. 6 Bullarium III: 404-416. 7 Bullarium V: 128-139. Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 127-145, jul./dez. 2010 135 CELINA A. LÉRTORA MENDOZA de 1317)8 llama a los espirituales “Fraticelli” y los acusa de cismáticos por vivir en conventos bajo la autoridad de superiores elegidos por ellos mismos y finalmente la bula Gloriosam Ecclesiam (enero de 1318)9 condena la doctrina de los Espirituales de Toscana, sobre la existencia de una iglesia “carnal” y otra “espiritual”, percibiéndose aquí un eco de las doctrinas de Pedro de Juan Olivi y de Ubertino de Casale. Se ha dicho que Juan XXII era un buen canonista pero un mal teólogo. En todo caso es claro que estas bulas están orientadas a fortalecer posiciones legalistas y que, si se leen con cuidado, sirven también a otros fines políticos. Es posible que Juan XXII haya visto, como hombre de leyes, los peligros indirectos de la inocente fórmula “pobreza absoluta”, así como otro peligro –igual o mayor- en permitir cualquier relajación de la estricta obediencia. De allí que relativice la pobreza10 frente a la obediencia y que recurra a la calificación de “herejía” para acallar a los disidentes, lo cual iba mucho más allá de lo solicitado por Cesena. Planteada la cuestión de la pobreza absoluta en términos de herejía, se encadenaron las condenaciones. La bula de Nicolás III afirma que la renuncia al derecho de propiedad particular o común de todo bien es un acto virtuoso, y que es ejemplo de Jesús y los Apóstoles, mientras que el simple uso, o uso de hecho es una situación distinta: se puede renunciar al derecho de propiedad porque éste se basa en el derecho positivo, en cambio el simple uso es de derecho natural y por tanto inalienable y consiste en servirse de los bienes necesarios para la vida. Pero es claro que este concepto, en cuanto prescinde del entramado 8 Bullarium V: 134-135. 9 Bullarium V: 137-142. Aunque en un sentido distinto y –desde luego- con objetivos también muy distintos, Tomás de Aquino ya la había relativizado al considerarla un medio y no un fin. Esto muestra que el tema de la pobreza absoluta y su radicalidad fundante nunca fue un consenso teológico entonces, como tampoco lo es en la actual controversia –no terminada- sobre la teología de la liberación. 10 136 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 127-145, jul./dez. 2010 LOS ESPIRITUALES Y LA POLÍTICA IMPERIAL jurídico, resulta revolucionario y peligroso. Juan XXII tuvo oportunidad de contrarrestar esta idea en ocasión de una discusión entre inquisidores, siendo el franciscano Berengario Tolon partidario de que la afirmación de ciertos terciarios provenzales de que Jesús y los Apóstoles no habían poseído bienes ni particulares ni en común, no es contraria sino acorde con la bula de Nicolás III. Su decisión (1322) fue la de revocar la disposición de Nicolás III (establecida al final de la bula mencionada) de que no se discutiese el contenido de la Regla Franciscana, y para acallar los cuestionamientos, por la bula Quia Nonunquam (marzo de 1322)11 estableció que un Papa podía alterar las decisiones de sus antecesores. Y reaccionando al documento Ab Alto prospectans, redactado por el Capítulo General de la orden en junio de ese mismo año, dictó la bula Ad Conditorem Canonum (diciembre de 1322)12. Dos son las disposiciones decisivas: la primera, declara que la perfección cristiana reside principalmente en la caridad y que el desapego a las riquezas es sólo un medio; segundo revoca las disposiciones de Nicolás III y Clemente V que reconocían la propiedad eclesiástica de los bienes de los menores. La segunda medida, un claro ejercicio de habilidad jurídica, deja a los frailes espirituales sin cobertura para sus requerimientos. En cuanto a la primera aseveración, en realidad –y más allá del uso que le da el Papa- era doctrina común entre los teólogos y había sido sostenida, entre otras personalidades, por Tomás de Aquino, como ya se dijo. Completando su proyecto, Juan XXII dicta la bula Cum inter nonnulos (noviembre 1323)13 declarando herética la afirmación de que Jesús y sus Apóstoles no habían tenido el derecho de uso sobre los bienes que -según la Escritura- poseían. La idea era cuestionar 11 Bullarium V: 224-225. 12 Bullarium V: 233-246. 13 Bullarium V: 256-259. Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 127-145, jul./dez. 2010 137 CELINA A. LÉRTORA MENDOZA jurídicamente el concepto de “usus simplex facti” considerando que cuando se trata de bienes de consumo, el uso y la propiedad se identifican14. Un año más tarde, promulga otra bula, Quia Quorumdam mentes, en noviembre de 132415, donde rechaza la interpretación que hacen los franciscanos de los escritos de sus antecesores. La más conocida de las bulas de Juan XXII sobre este tema es la respuesta a las Appellationes de Cesena, la Quia vir reprobus de noviembre de 132916 que fija su doctrina definitiva: no hay distinción entre usus facti y usus iuris, y por tanto no vale la categoría simples usus facti de los menores. Esto se aplica tanto a Cristo y sus Apóstoles como a los frailes y en general a todos. Por otra parte, la perfección cristiana radica en la caridad y no en la pobreza. La estrategia papal consiste en negar el principio en Cristo y los Apóstoles, para dejar sin fundamento la apelación a la imitatio. Uno de los argumentos más importantes del Papa fue la tesis acerca de la realiza y señorío de dominio temporal de Cristo, pues Jesús, en cuanto Segunda Personal de la Trinidad, era desde toda la eternidad el dueño de todo. Esta realiza es atemporal pero al encarnarse fue adquiriendo los bienes congruentes a su cometido, renunciando al goce de todos los que hubiera podido gozar. Cesena y otros franciscanos, horrorizados de este argumento, respondieron con otra Appellatio (marzo de 1330) que discute las afirmaciones de Juan XXII con argumentos exegéticos y teológicos. A pesar de la claridad y pertinencia En realidad la bula iba más lejos, pues incluía en la herejía la negación de que Jesús y los Apóstoles hubiesen tenido derecho de vender o de adquirir otros bienes (no sólo el derecho de propiedad que implicaría –en su concepto- el mero hecho de usarlos). Es claro que aquí hay una (voluntaria?) equivocidad: una cosa es admitir que Jesús o los Apóstoles tuvieran derechos, en cuanto estaban sometidos a la legislación secular de su tiempo, puesto que gozarían de los mismos que tenían los demás; y otra muy distinta es saber si habían renunciado a ellos por amor al Reino de los Cielos, pregunta que no puede contestarse desde la dimensión jurídica secular, sino sólo desde la hermenéutica o la teología. 14 15 Bullarium V: 271-280 16 Bullarium V: 48-449. 138 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 127-145, jul./dez. 2010 LOS ESPIRITUALES Y LA POLÍTICA IMPERIAL teórica de estas réplicas, está claro que ellas resbalan sin tocar la razón por la cual el papa se apuntala en los argumentos mencionados: la conexión entre la posesión de iure (y no sólo de facto) y el ejercicio de una jurisdicción derivada. El argumento, en realidad funciona así: Jesús (en cuanto Hijo, en la Trinidad) es eternamente dueño de todo (es decir, la máxima plenitudo potestatis posible); en cuanto encarnado, sigue teniendo tal potestad, pero encubierta en la limitación de la kénosis; sin embargo tiene auténtica potestad temporal sobre todo aquello que sea adecuado a su misión salvífica. La iglesia, como sucesora de Cristo, debe tener iguales potestades, con excepción de lo que le compete como Segunda Persona trinitaria. En síntesis, tanto la potestad del dominium como la plenitudo potestatis de autoridad se deducen de la misma base. Cuestionar una es cuestionar la otra. Y esto también lo veía, sin duda, Luis de Baviera. 2 La plenitudo potetatis Las doctrinas teocráticas que habían sido dominantes hasta principios del siglo XIV, comienzan a ceder bajo el peso de diversas críticas. Las más directas y conocidas son, sin duda, las debidas a la pluma de los “averroístas políticos”, Marsilio de Padua y Juan de Jandún. Pero no menos importantes teóricamente han sido las elaboradas desde la perspectiva de la polémica papal con los Espirituales. Digamos primeramente y en general, que la contestación a la teoría de la plenitudo potetatis en la época en consideración, provenía de dos fuentes. La primera es la fuente de las nuevas teorías políticas secularistas, las cuales, a su vez, toman dos direcciones: por una parte, las que podríamos llamar “imperialistas” que recogen la polémica PapadoImperio en términos altomedievales, suponiendo la unidad de jurisdicción suprema tanto en lo espiritual como en lo temporal. La cuestión que se ventila aquí es si el Papa es superior al emperador o a la Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 127-145, jul./dez. 2010 139 CELINA A. LÉRTORA MENDOZA inversa, o si se trata de dos poderes iguales e independientes. La segunda línea es la de los teóricos de los nuevos reinos, especialmente los de Felipe IV de Francia, que sostenían la absoluta supremacía (acercándose al posterior concepto de “soberanía”) del rey sobre su territorio y por tanto de su independencia tanto del emperador como del Papa. Para estas nuevas posiciones, la idea de una “monarquía universal” (sea con preeminencia del Papa o del emperador) era algo ya superado. En cualquiera de las dos líneas, se desconoce al papa el derecho de deponer a reyes o emperadores ni de disponer arreglos territoriales de la jurisdicción de ellos17. La otra fuente de críticas a la teoría es la proveniente de los escritos franciscanos que, más o menos cercanos a los espirituales, consideran necesario revisar la legitimidad de las declaraciones y las medidas papales contra ellos. En esta línea debemos mencionar, especialmente, las obras políticas de Guillermo de Ockham18. La primera (1328), el Opus nonaginta dierum, está dirigida a refutar las ideas de Juan XXII en sus La cuestión de la independencia del imperio en relación al papado se resolvió sin intervención de éste, por la fuerza de las situaciones políticas. En 1338 un grupo de electores firmaron un acuerdo según el cual quien fuera electo por unanimidad o mayoría como rey de Alemania, no necesitaba la confirmación del papa para asumir el imperio ni para gobernarlo. Aunque luego hubo diversas escaramuzas políticas entre príncipes rivales, en 1356 el emperador Carlos IV promulgó la llamada Bula Aurea, que define el modo de elección del emperador, los derechos de los electores y sus privilegios. 17 Como ha mostrado de Souza, los escritos polémicos de Ockham han contribuido a la elaboración de las nuevas teorías políticas sobre el gobierno secular (A contribuição filosófico-política de Guilherme de Ockham ao conceito de poder civil, São Paulo, FFLCH/ USP, 1980). Por otra parte, como ha dejado establecido Giuseppe Santonastaso, Ockham se enfrentó directamente a los curialistas de Avignon y en especial a Alvaro Pelayo, penitenciario de Juan XXII y jefe de los teóricos curialistas (“Occam e la plenitudo potestatis”, Rassegna di Scienze Filosofiche, 10, 1957: 213-271). También Antonio García Martínez (en “Álvaro Pelayo y Guillermo de Ockham y la teoría de los dos poderes”, Crisis 2, 1955:33-45) sostiene que la teoría ockhamista de la separación de los dos poderes es su replica a la teoría teocrática de Pelayo. Por eso aúna argumentos teológico-eclesiológicos con otros de índole filosófico-política. 18 140 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 127-145, jul./dez. 2010 LOS ESPIRITUALES Y LA POLÍTICA IMPERIAL bulas contra los espirituales, y en especial Quia vir reprobus, defendiendo la pobreza evangélica19. El Breviloquium de Potestate Papae contiene la teoría de la distinción entre la potestad papal ordinaria y la extraordinaria20. Deben mencionarse, en la misma línea, el Tractatus contra Ioanem y el Tractatus contra Benedictus, que analizan la relación entre el poder secular y el eclesiástico desde la perspectiva de la limitación de la potestad absoluta del Pontífice21; Octo Questionum Decisiones super potetate Summi Pontificis (1340-1341); Dialogus de de Imperio et Pontificia Potestate, cuya redacción abarcó varios años y cuya tercera parte corresponde a los últimos años del pontificado de Benedicto XII. El Breviloquium de principado tyrannico papae data de la misma época (Munich, 1339-1340) Para ubicarse en el contexto de la controversia entre los espirituales y la jerarquía eclesiástica, Ockham elabora una eclesiología que incluye el lugar y la función del papado, el primado de la sede romana y el magisterio doctrinal. Según Lagarde, la idea central de la eclesiología Sus fuentes son variadas, hay elementos vinculados a la Apologia pauperum de Buenaventura, a los escritos de Peccam, de Pedro de Juan Olivi y de Tomás de Aquino; para la elaboración de los argumentos se basa en Pedro Lombardo y los conceptos jurídicos quizás los tome del Decretum de Graciano. R. F. Bennet y H. S. Offler han señalado (“Introduction” a Guillemi de Ockham Opera Politica, Vol. II, manches University Press, 1963, p. xviii) que Ockham toma libremente diversos argumentos de distintas obras, pero raramente las cita a la letras. Podría pensarse, añado, que este proceder –tan distinto al de sus obras académicas- se debe precisamente a la premura y al carácter circunstancial de su intervención en la polémica. 19 Esta obra se orienta contra el sucesor de Juan XXII, Benedicto XII, que renovó las condenaciones de su antecesor a los espirituales. Según L. Baudry, a cargo de la edición crítica del Ms. de la Biblioteca de Ulm, se compuso entre 1339 y 1340, seguramente antes del 25 de abril de 1341, fecha de la muerte de Benedicto XII, al que se menciona en la obra como Papa reinante (“Préface”, Guillemi de Occam, Breviloquium de Potestate Papae, Ed. critique par L. Baudry, Paris, Vrin, 1937, p. vii). 20 Edición crítica por H. S. Offler, Vol. III de Guillemi de Ockham Opera Politica, Mancunii, e Typis Universitatis, 1966, p. 19 ss y 157 ss. 21 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 127-145, jul./dez. 2010 141 CELINA A. LÉRTORA MENDOZA de Ockham es la “cristiandad” entendida como una comunidad integrada de fieles, en la cual se ejercita el doble poder, espiritual y secular. Clérigos y laicos deben participar cada uno, a diverso título, en ese proyecto22. En este contexto Ockham elabora una teoría del poder secular cuyas características, según ha observado Lagarde23, se corresponden bien con el régimen político de transición propio del siglo XIV: 1. el poder secular es el resultado de la yuxtaposición de principados muy diversificados; 2. en ellos comienza a delinearse la figura de la comunidad, o sea “poner en común” ciertos derechos originalmente individuales; 3. estos principados están a medio camino entre la autoridad feudal y la moderna; 4. su función principal es mantener el orden y administrar justicia. En este contexto, el poder imperial fundamenta su legitimidad en los principios de universalidad, romanidad y soberanía, independientemente del Papado24. Según Francisco Fortuny, este pensamiento político no es una “via media” sino una nueva y ya “moderna”; incluso su tesis de que el Evangelio es la ley de la perfecta libertad e presentado como límite e ideal utópico del gobierno terrenal necesariamente coactivo25. Cf. La naissance de l’esprit laïque au déclin du moyen âge. V. Guillaume d’Ockham: critique des structure éclésiales, Louvain-Paris, Nauwelaerts, 1963, p. 264. 22 “Comment Ockham comnprend le pouvoir séculier», Scritti di Sociologia e Politica in onore di Luigi Sturso, Bologna, 1953, vo. 1 : 593-612. 23 Lagarde ha señalado que Ockham se atiene a la tradición del Imperio Romano cuya translatio es estrictamente secular. De este modo, afirma que originalmente el emperador era elegido por el senado, el pueblo o el ejército, y el emperador del siglo XIV es elegido por el voto de los príncipes electores; por tanto su legitimidad no deriva de la coronación papal (cf. La naissance… IV Guillaume d’Ockham: défénse de l’empire, Paris-Louvain, Nauwelaers, 1962, pp. 149-150. 24 “Pensamiento político de Ockham e informática”, Actas del II Congreso Nacional de Filosofía Medieval, Zaragoza, 1996, p. 125 y 136. 25 142 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 127-145, jul./dez. 2010 LOS ESPIRITUALES Y LA POLÍTICA IMPERIAL Hay otro punto importante en Ockham, que se pone de relieve especialmente en el Dialogus: pone a luz la dicotomía entre la jerarquía y la libertad personal del creyente, entre la verdad que se quiere establecer por autoridad y la que puede tener cualquiera de ellos, destacando el carácter individual de la fe y la preeminencia de la universitas fidelium26. Al negar carácter “carismático” a la autoridad eclesiástica, reduce su magisterio a una delegación de la comunidad. Como ha señalado hace tiempo Cesare Vasoli27, la concepción ockhamista sobre la relación Cf. Brian Tierney señala que es dudoso que Ockham fuera conciliarista; en todo caso afirmó que la universitas fidelium es superior al concilio (“Ockham, the conciliar theory and the canonist”, Journal of the History of Ideas 15,1954: 40-70. Por las mismas fechas, Giovanni Tabacco sostenía que en la tercera parte del Dialogus, a la pregunta de si es preferible la monarquía del Pontífice o un gobierno pluralista, queda sustancialmente en la línea de la monarquía (cf. Pluralità di papi et unità di Chiesa nel pensiero de Guglielmo di Occam, Torino, 1949). Pero estos trabajos visualizan más bien la relación de Ockham con el conciliarismo posterior, y no las figuras jurídicas de su época, y que para Ockham que no se trataba de elaborar un conciliarismo teórico en general, sino de justificar la legitimidad de la deposición de un papa herético. En otro sentido, y en forma muy matizada, George de Lagarde considera que Ockham no sostuvo la superioridad del concilio sobre el Papa; y que si no aceptó la infalibilidad de éste es porque no reconoce a ninguna institución particular o individuo tal infalibilidad, que Dios ha prometido a la iglesia. La promesa de Dios significa solamente que la verdad siempre quedará en –al menos algunos individuos de- la Iglesia, pero no sabemos quiénes, ya que la infalibilidad no se liga a la estructura eclesiástica (“Ockham et le concile géneral”, Album, Helen Maud Cam, vol. 1, Louvain-Paris, Nauwelaerts, 1960: 85-96). Sin embargo, también hay que considerar, conforme al mismo autor, que Ockham nunca introdujo el principio de la soberanía popular de la Iglesia. Por su parte Teodoro de Andrés tampoco considera conciliarista la eclesiología de Ockham (“A propósito del pretendido conciliarismo de G. de Ockham”, Sal Térrea 61,8/9: 1965: 714-730). Parece prudente admitir, por tanto, que Ockham no elabora su crítica a la plenitudo potestatis e incluso al poder papal en general, asumiendo la dicotomía canonística: Papalismo vs. Conciliarismo, sino que su objetivo más importante es delimitar las competencias de los poderes en cuestión, entre sí pero sobre todo en relación a los individuos sujetos a ellos. 26 “Il pensiero politico di Guglielmo d’Occam”, Revista Critica di Storia della Filosofia, 9, 1954:232-253, donde reitera ideas anteriormente expuestas, en el capítulo VII de Guglielmo Occam, Firenze, La nuova Italia, 1953. Años después reiterará la importancia de la elaboración ockhamista, en concordancia con nuevos estudios sobre el contexto ideológico del medioevo tardío (“Guglielmo di Ocán”, De Homine, 1, n. 4, 1962: 77-92). 27 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 127-145, jul./dez. 2010 143 CELINA A. LÉRTORA MENDOZA Iglesia-Estado (especialmente la que expone en el Libro III del Dialogus) es solidaria con esta teoría general sobre el magisterio eclesiástico. En el mismo sentido debemos mencionar el Breviloquium de principatu tiránico papae, que intenta demostrar, en primer lugar, la licitud de la discusión sobre el poder del papa, derecho que tiene todo cristiano y no solamente los teólogos. Una vez aceptada la legitimidad de la discusión se pasa a la refutación de la tesis de la plenitudo potestatis con argumentos tomados de la Escritura y del derecho canónico28. En síntesis, podemos formular así la propuesta ockhamista29 conocida como via media. Sus dos elementos son el binomio regulariter - in casu y la distinción simpliciter - secundum quid. Así, por el principio de libertad, el papa no puede imponer regulariter nada supererogatorio, aunque no sea contrario al derecho divino o natural, pero sí in casu, aunque Ockham reconoce que es difícil precisar los casos concretos. La vía media como articulación de potestades tiene cuatro trazos característicos; 1. La potestad temporal y la espiritual provienen de Dios a través de canales distintos; 2. Cada potestad goza de una esfera de acción propia; 3. Eso no implica que la Iglesia se ocupe sólo de asuntos espirituales ni el príncipe sólo de temporales; 4. Se busca la armonía y la concordia entre ambas potestades. Aunque Ockham no pertenecía al grupo de los espirituales, en este punto su aporte resulta coincidente. Por tanto, puede señalarse una vía independiente del averroísmo político, y conectada con los espirituales, que realiza una crítica decisiva al teocratismo. Según Pedro Rodríguez Santidrián, lo que -según Ockham- convierte a Juan XXII en hereje haber usado una fórmula teológica y bíblica para acumular poder y riqueza. (cf. “Introducción” a Guillermo de Ockham, Breviloquium de principatu tyrannico papae, traducción, introducción y notas de Pedro Rodríguez Sanrtidrián, Madrid, Tecnos, 1992). 28 Cf. Esteban Peña Eguren, «La filosofía política de Guillermo de Ockham en el Dialogus III: relación entre Iglesia y Estado», Pedro Roche Armas (Coordinador), El pensamiento político en la Edad Media, Madrid, Ed. Fundación Ramón Areces, 2010: 169-189. 29 144 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 127-145, jul./dez. 2010 LOS ESPIRITUALES Y LA POLÍTICA IMPERIAL Discusión final Volviendo a la pregunta formulada al comienzo, la controversia de los espirituales con la jerarquía eclesiástica tuvo una derivación -al comienzo impensada- a favor de las teorías políticas secularistas. La defensa de la libertad de los creyentes para imitar a Cristo en aspectos muy alejados de los intereses políticos, tuvo proyección en la afirmación de la potestad secular, indirectamente al cuestionar la plenitud de un poder que se veía como “tiránico”. Una polémica que tuvo su comienzo en la distinción entre usus y dominium terminó implicando otros conceptos como ius, iustitia y libertas. En tiempos cercanos a Ockham, Juan Gerson tendía a identificar ius con libertas (en el sentido de libertad del sujeto), así como, a la inversa, los espirituales (y Ockham) tendían a aproximar la defensa del usus con la libertas cristiana. Por esos extraños vericuetos de la historia, la identificación siguiente fue la de libertas con dominium, a través de la aproximación entre ius y dominium. Con el juego de estas nociones, los escolásticos de la Escuela de Salamanca defendieron a los indios americanos30. Algo que estaba lejos de las mentes de los espirituales del siglo XIV, pero seguramente no lejos del sentir de los primeros frailes que acompañaron a Colón y que, según una tradición que puede considerarse segura, pertenecían a esta familia de los “fraticelli”, buscando y siguiendo tan lejos las huellas del espíritu de su Santo Fundador. Giuseppe Tosi, (La teoría della schiavitù naturale nel dibattito sul Nuovo Mundo (15101573) «Vere domini» o «servi a natura»?, Divus Thomas 33, 3/2002, Ed. Studio Dominicano) hace notar que Soto (De iustitia et iure, IV, I) señala que el dominio se distingue de otras formas de uso o usufructo en que en ellas el bien sólo se usa, mientras que en el dominio se dispone totalmente de él, y afrontando esta famosa disputa (en De dominio, par. 6) toma parte a favor de los franciscanos, en cuanto a la distinción entre usum y dominium (p. 64) . Aunque la cuestión se plantee en estos términos, Soto tiende a identificar dominium con libertas, y considerar la propiedad como una característica intrínseca del hombre, que le permite ejercer su libertad (p. 65). 30 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 127-145, jul./dez. 2010 145 COMENTÁRIOS DA VERDADEIRA À PERFEITA ALEGRIA... DA VERDADEIRA À PERFEITA ALEGRIA, UMA E(IN)VOLUÇÃO? Aldir Crocoli * “A perfeita alegria consiste em vencer-se a si próprio e, voluntariamente, por amor, suportar trabalhos, injúrias, opróbrios e humilhações”. Estamos habituados, há seis séculos, a esta compreensão de vida penitencial de Francisco de Assis, entendida como automaceração que se torna difícil imaginar alguma diversa. E as consequências desta visão têm múltiplas repercussões na compreensão da proposta de vida franciscana. Para isso, sem dúvida alguma, muito tem contribuído o livro dos Fioretti, no seu capítulo oitavo, donde é extraído este versículo citado no começo. Como ao longo de séculos não se tinha notícia de um outro texto anterior, aquele dos Atos do Beato Francisco e seus companheiros1 – ou de sua tradução popular, os Fioretti2, escrito quase um século depois – que coloca este pensamento como diretamente saído * Dr. Aldir Crocoli, capuchinho, Professor na Estef. Contato: [email protected] Os “Actus Beati Francisci et sociorum ejus” (Atos do Beato Francisco e seus companheiros) é uma compilação surgida em torno de 1336, provavelmente elaborada por Frei Hugolino de Monteggiorgio, um frade da região das Marcas, na Itália. 1 Os “Fioretti”, a obra franciscana mais conhecida no mundo inteiro, são uma tradução ou adaptação dos Atos do Beato Francisco...” nos últimos anos do século XV. Os textos são praticamente idênticos no seu conteúdo. No caso preciso deste texto da “Perfeita Alegria” (Cap. 7 dos Atos e 8 dos Fioretti) duas pequenas diferenças podem ser facilmente constatadas: no versículo 10 dos Actus os Fioretti acrescentam “Fora daqui”; e no versículo 16, depois de “nos bater com o pau de nó em nó”, os Fioretti acrescem “e encher-nos de feridas por todos os lados”. São acréscimos que nada alteram do conteúdo. 2 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 149-180, jul./dez. 2010 149 ALDIR CROCOLI da boca do Poverello, acabou se impondo como verdade. Felizmente, em 1927, Benvenuto Bughetti descobriu, num pequeno pergaminho, uma versão mais breve desta parábola. As análises levaram à conclusão que se tratava de um texto mais original, oriundo, não do próprio Francisco, mas de muito próximo a ele, enquanto o dos “Atos” surgiu mais de um século depois, e os Fioretti, quase dois séculos depois da morte de Francisco. Este texto é uma excelente porta de entrada para o mundo de Francisco. Por isso nosso interesse em estudá-lo, para que se perceba a diferença entre o pensamento dele e o de seus seguidores. Nosso objetivo neste ensaio é analisar o texto da “Verdadeira Alegria” de Francisco, depois compará-lo com o texto da “Perfeita Alegria” dos Fioretti3. Na conclusão apresentam-se, lado a lado, as diferentes compreensões de vida, das quais os referidos textos são portavozes. Nossa intenção é analisar o texto original para captar sua profunda mensagem e, em segundo lugar, compará-lo com o texto dos Fioretti a fim de que fique clara a grande divergência de mentalidade entre ambos. O texto foi totalmente modificado, perdendo seu conteúdo original, para comunicar outro conteúdo, que não encontra confirmação nos escritos de Francisco. Passemos à análise. 1 A verdadeira alegria O texto da Verdadeira Alegria poderia ser datado em torno dos anos 1223 a 1225, mais precisamente, 1224. O contexto pessoal em que vivia Francisco e do movimento franciscano, agora transformado em Ordem, são decisivos para uma correta compreensão dessa verdadeira preciosidade. Uma mínima compreensão do contexto garantirá a fidelidade às palavras e expressões. Por isso, antes de examinar o texto, Preferimos compará-lo com o texto dos Fioretti que, além de ser o mais conhecido, não apresenta grandes diferenças de compreensão das suas “estorietas” com os Actus. 3 150 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 149-180, jul./dez. 2010 DA VERDADEIRA À PERFEITA ALEGRIA... vejamos rapidamente, em algumas pinceladas, as circunstâncias pessoais de Francisco e de seu movimento nessa época. 1.1 O Contexto histórico-pessoal de Francisco e do movimento Como o texto não foi escrito pelo próprio Francisco (segundo a frase introdutória), conhecemos a versão de um frade que ouviu de um tal de Frei Leonardo4, que deve ter ouvido de Francisco. Portanto não temos a segurança absoluta de ter as próprias palavras de Francisco. Contudo, a análise interna nos leva a crer na possibilidade de fidelidade do narrador. Seria difícil alguém criar uma parábola com tanta perspicácia e com tal envolvimento da pessoa de Francisco5. Partindo da hipótese de datação de 1224, podem ser lembrados alguns fatos e dados históricos que ajudam a entendê-lo. Francisco já não era, há 2 ou 3 anos, o Ministro Geral de, pelos menos, três mil frades6. Já não tinha, portanto, autoridade jurídica sobre os frades. Queria ser, isso sim, o tempo todo, exemplo de vida para os seus irmãos. E, como se sabe pelo testamento e outras fontes, ele nunca deixou de manifestar sua posição sobre o andamento do movimento. É possível, pois, que ele tenha querido dizer uma palavra orientativa ou 2Cel 31,1 menciona Frei Leonardo no retorno do ultramar, isto é, em 1219 ou 1220, ao retornar da Cruzada. Logo deve ser alguém muito próximo a Francisco, ao menos nos últimos anos da vida e por isso pode ter fatos e reflexões a contar em primeira mão. 4 Só se conhece um pergaminho com o presente texto. É o códice FN, publicado por Benvenuto Bughetti, em 1927. Lucas Wadding conhecia outra versão intermediária a este e o dos Actus e o colocou entre os escritos de Francisco em 1623. Porém, como o texto dos Fioretti é melhor elaborado, este original acabou no esquecimento. 5 Os Fioretti dizem, evidentemente exagerando, que no capítulo das Esteiras, que os estudiosos atualmente fixam em 1222, estavam presentes 5 mil frades. Dois anos mais tarde, três mil é o mínimo que se pode supor. 6 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 149-180, jul./dez. 2010 151 ALDIR CROCOLI exortativa a todos os frades por meio desta parábola neste momento crítico do movimento e, porque não, também seu. É nossa opinião de que o texto seja de 1224 por um dado muito simples: apenas em dois dos seus escritos Francisco emprega a palavra “Ordem” para se referir à totalidade dos frades: aqui nesta parábola e na Carta a Toda a Ordem (Ord 2). Nas demais vezes usa o termo “Fraternidade”. Juridicamente a passagem de Fraternidade a Ordem se deu com a aprovação com bula da Regra de Vida pelo papa Honório III, aos 29.11.1223. Esse fato não deixou de marcar significativamente a história do movimento7. O reconhecimento papal da Regra elevou o status social dos frades. Se, antes, com o reconhecimento oral do seu modo de vida, eles não tinham argumentos objetivos para apresentar quando não eram aceitos em algum lugar, agora eles podiam quase se impor apresentando-se como integrantes da estrutura eclesial. A insegurança anterior cedeu lugar, de alguma forma, a certa superioridade por terem sido oficialmente reconhecidos pelo próprio Papa, a maior autoridade do tempo. Com isso e com o ingresso de muitos doutores e mestres de universidades, crescera muito o desejo de ver a “Ordem” projetada no cenário mundial (desenvolvimento triunfalista). Francisco se dá conta de que o “ideal” da minoridade, tanto espiritual como social, estava sendo esquecido, mesmo se sob argumentos pastorais. Ele reflete sobre essa nova realidade vivida pelos seus irmãos e pensa como pode ajudá-los a “retornar ao primeiro amor” (Ap 2,4-5). De sua parte, o próprio Francisco vivia angustiado. Celano e outras fontes dizem que ele sofria uma longa (mais de dois anos) e grave Continua difícil de explicar a notícia fornecida por Celano (2Cel 193,4) de que Francisco queria acrescentar à Regra aprovada pelo Papa a frase: “O Ministro Geral da Ordem é o Espírito Santo”, o que não pôde fazer porque a Regra já estava bulada. Como poderia ele não saber que a regra, uma vez bulada, seria inalterável se ele acompanhou de perto todo o processo ao longo dos decisivos 12 anos iniciais? 7 152 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 149-180, jul./dez. 2010 DA VERDADEIRA À PERFEITA ALEGRIA... “tentação”. Neste período até evitava se encontrar com os frades. Muitas vezes se dirigia aos bosques para poder chorar sem ninguém ver. É possível que esta tentação seja o nome do conflito interno experimentado duramente por Francisco. De que mesmo se trataria? Uma das possibilidades, na qual cremos, é de que Francisco, devido ao apoio dado pela Igreja institucional na pessoa do Cardeal Hugolino, protetor da Ordem, ao grupo dos doutos da Ordem, cujo pensamento muito se diferenciava daquele de Francisco, tenha começado a sentir até sérias dúvidas de fé. Estes buscavam uma autoafirmação no interior da Igreja e da sociedade, enquanto Francisco entendia que seu caminho era o da liminaridade, o da margem, não do centro. Francisco sempre entendeu que Deus lhe revelara isso. Mas, de repente, vê a Igreja apoiando a posição contrária. Por isso começa a pensar: “Não terei me enganado o tempo todo, imaginando ser alvo de uma revelação especial quando na realidade era simples ilusão?8 Seria eu, talvez, um teimoso arbitrário?” Pode-se supor que o interior de Francisco fosse de uma posição a outra, incapaz de discernir qual seria a verdadeira. Meditando constantemente na sua situação interna e vendo os rumos que a Ordem estava tomando, Francisco forja aos poucos esta parábola. Ela pretendia ser uma memória do itinerário percorrido por ele mesmo e pelos seus primeiros companheiros, como virá a fazer de modo mais explícito no seu Testamento. Da mesma época poderia ser datada a Admoestação V, pois que trata da mesma temática. Com este Sabemos que este não é um argumento científico. Mas é interessante perceber que Liliana Cavani, no seu filme “Francesco”, retrata Francisco no Monte Alverne, rezando, chorando e pedindo em voz alta: “Parlami”, isto é, fala-me, numa intensa súplica para que Deus se manifestasse sobre “quem estaria no caminho certo”. Depois, recebendo os estigmas, Francisco declara a Frei Leão “Deus mihi dixit”, Deus me falou. Deus me confirmou estar no caminho certo. Por isso, segundo estudiosos, Francisco teria descido do Alverne pacificado interiormente por se sentir assemelhado com Cristo, mais espiritualmente do que fisicamente pelos estigmas, enquanto partícipe do seu processo de esvaziamento de que fala Paulo apóstolo (Fl 2, 6-11). 8 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 149-180, jul./dez. 2010 153 ALDIR CROCOLI “Sietz im Leben”, esta sucinta descrição do contexto do movimento e da situação existencial de Francisco, podemos passar à análise do texto. Para facilitar, trazemos diante dos olhos o texto. Será mais fácil conferir os detalhes. 1.2 A parábola da verdadeira alegria Como se perceberá imediatamente, a parábola da Verdadeira Alegria se compõe de duas partes bem nítidas, com uma introdução, uma frase de transição e uma conclusão. Na conclusão está a resposta ao enunciado da introdução. E as duas partes do corpo da parábola se relacionam, de certa forma, de modo antagônico. A primeira descreve o que não é a verdadeira alegria e a segunda conduz o ouvinte a compreender em que consiste a Verdadeira Alegria. De que alegria trata Francisco? Não da alegria das gargalhadas, nem da alegria superficial das festas. Trata da alegria profunda, própria de quem se sente verdadeiramente realizado porque conseguiu ter “o coração misericordioso de Deus” que, qual pastor, vai ao encontro da ovelha tresmalhada. Trata-se de ter o coração de Deus, de “ser igual a Deus” no jeito de viver e de amar na gratuidade. Esta é a mais profunda realização humana. É sobre esta que Francisco discorre nesta parábola. Estrategicamente, a criação da parábola é situada na Porciúncula, exatamente o lugar que Francisco queria como “modelo para a Fraternidade”. Nos tempos de sua conversão era um lugar abandonado, situado nas proximidades de leprosários, a uns 4 quilômetros da cidade. Era seu lugar referencial. Lá viveu, com os primeiros companheiros, por muito tempo. Foi o berço da Fraternidade, o lugar da “descoberta do Evangelho”. E os leprosários próximos eram lugar de noviciado dos ingressantes (CA 9, 2-3; 2EP 44). Pode-se dizer que a Porciúncula era o lugar-símbolo de sua conversão e do espírito que 154 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 149-180, jul./dez. 2010 DA VERDADEIRA À PERFEITA ALEGRIA... animava os primeiros tempos do movimento. Mas, com o passar dos anos, este lugar foi se institucionalizando: a Comuna de Assis construiu uma casa grande para os frades. Os frades já não eram mais os excluídos, mas sim o alvo de uma especial atenção da população e da própria Igreja que via nos frades um “exército de possíveis colaboradores”. É o que Francisco vai denunciar na segunda parte de vários modos. Eis o texto: O mesmo (Frei Leonardo) contou na mesma ocasião que o bem-aventurado Francisco, em Santa Maria, chamou a Frei Leão e disse: 2 “Frei Leão, escreve”. Este respondeu: “Já estou pronto”. 3 “Escreve – disse – o que é a verdadeira alegria”. 4 Vem um mensageiro e diz que todos os mestres de Paris entraram na Ordem: escreve que isto não é a verdadeira alegria. 5 Igualmente, que (entraram na Ordem) todos os prelados ultramontanos, arcebispos e bispos, o rei da França e o da Inglaterra: escreve que isto não é a verdadeira alegria. 6 Do mesmo modo, que os meus irmãos foram para o meio dos infiéis e os converteram todos à fé; e, além disso, que eu tenho tanta graça de Deus que curo os enfermos e faço muitos milagres: digo-te que em tudo isso não está a verdadeira alegria. 7 “Mas, o que é a verdadeira alegria?” 8 Volto de Perúgia e chego aqui na calada da noite; e é tempo de inverno, cheio de lama e tão frio que gotas de água se congelam na extremidade da túnica e (me) batem sempre nas pernas, e o sangue jorra de tais feridas. E totalmente na lama, no frio e no gelo, chego à porta e, depois de eu ter batido e chamado por muito tempo, vem um irmão e pergunta: Quem és? Eu respondo: Frei Francisco. 10E ele diz: ‘Vai-te embora! Não é hora decente de ficar andando; não entrarás. 11E, como insisto, de novo ele responde: Vai-te embora! Tu és simples e idiota. De maneira alguma serás acolhido junto a nós; somos tantos e tais que não precisamos de ti. 12E eu novamente me coloco de pé diante da porta e digo: Por amor de Deus, acolhei-me por esta noite. 13E ele responde: ‘Não o farei. 14Vai ao lugar dos crucíferos e pede lá. 15 Digo-te que, se eu tiver paciência e não ficar perturbado, nisto está a verdadeira alegria e a verdadeira virtude e a salvação da alma”. 1 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 149-180, jul./dez. 2010 155 ALDIR CROCOLI 1.3 Análise da parábola da verdadeira alegria Nessa análise seguiremos versículo por versículo. a) A introdução (Vv 1-3). No versículo introdutório são apresentados os personagens, o tema e o lugar: Francisco dita; Leão, seu confidente escreve; o ambiente é a Porciúncula, aquele lugar pobre, marginal e próximo dos marginalizados. E, por fim, o tema a ser abordado, a verdadeira alegria. Também se percebe, como dissemos acima, que não se está em contato com a fonte direta da parábola. O texto de que se dispõe passa, pelo menos, por dois mediadores: “O mesmo Leonardo contou que ...” Quer dizer, quem escreve não é Leonardo. E Leonardo não participou, diretamente, da parábola. Leão ou Francisco terão contado a Leonardo? b) A primeira parte (vv 4-6). Nesta parte, Francisco se vale de dois gêneros literários: a hipérbole e a ironia. A hipérbole consiste em exagerar propositalmente nos dados para chamar a atenção. Aqui Francisco diz: “todos os mestres de Paris”, “todos os prelados”, “converteram todos os infiéis” etc. É um modo de alertar para a realidade dos sonhos dos frades doutos. Desse modo, descreve a busca do múltiplo poder e grandeza presente naqueles frades. Esse parece ser o foco da questão aqui retratada. E, pela ironia, coloca na boca dos outros aquilo que eles mesmos deveriam buscar ou ser. João evangelista usara a ironia para apresentar, pela boca de Pilatos, a Jesus Cristo realmente como modelo de pessoa humana, quando Pilatos, escarnecendo, apresentou Jesus flagelado ao povo dizendo: “Eis o homem” (Jo 19,5). Francisco aqui se vale da ironia para dizer, através da boca do porteiro, a necessidade de retornar ao lugar dos últimos (Vai aos crucíferos e pede lá) ao invés de alimentar sonhos de grandeza e poder. “Vem um mensageiro” (v. 4a). Esse dado não é casual. Os pobres nunca têm mensageiro, propriamente dito; será sempre um amigo, 156 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 149-180, jul./dez. 2010 DA VERDADEIRA À PERFEITA ALEGRIA... um parente, um vizinho, apenas. Quem possui mensageiro para levar notícias a milhares de quilômetros (distância de Paris a Assis) são os reis, os príncipes e os graus equivalentes dentro da hierarquia eclesiástica. “E diz que todos os mestres de Paris entraram na Ordem” (v. 4b). Para frades da Ordem (Fraternidade elevada ao status de “Ordem”) é motivo de grande orgulho e satisfação ter em suas fileiras os grandes luminares da intelectualidade. Por outro lado, o que moveria a “todos os mestres” não de uma escola qualquer, mas da universidade mais famosa do mundo a ingressar na Ordem? Não seria com certeza a busca da conversão pessoal, nem a transformação da sociedade ao modelo evangélico de vida. Não será antes o desejo de ingressar numa organização humana que ofereça condições excelentes para seu trabalho e sua promoção pessoal? E, por outro lado, estes doutores só tomariam semelhante decisão se já encontrassem na Ordem clima e condições de favorabilidade para o desenvolvimento de sua profissão. E, nesse caso, a Ordem não estaria sendo uma “Ordem de Irmãos Menores”. Por isso, tanto do ponto de vista dos frades quanto dos doutos, há uma evidente busca de poder. Pode-se dizer que nesta primeira situação está retratada a busca do poder do saber, da ciência. “Igualmente que entraram na Ordem todos os prelados ultramontanos, arcebispos e bispos, o rei da França e o da Inglaterra” (v. 5a). Provavelmente o texto supõe que seja o mensageiro que também anuncia esta outra notícia. Desta vez são os detentores do poder religioso (prelados, bispos e arcebispos) da França, da Espanha, da Alemanha, isto é, de todos os países ao norte dos Alpes que dividem a Itália e a Suíça. E, neste gênero literário da hipérbole, Francisco volta a dizer que são “todos” eles, não um ou outro. Novamente se pode levantar a pergunta: Por que um bispo ou arcebispo se faria frade? Para pertencer a um movimento de penitência-conversão? Muito dificilmente. Não seria antes porque, gozando a Ordem de grande prestígio no cenário Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 149-180, jul./dez. 2010 157 ALDIR CROCOLI eclesial, cresceria seu prestígio também? E não seria o mesmo motivo a levar os reis da França e da Inglaterra a tomarem também a decisão de se fazerem frades? Francisco não parece estar ironizando a busca de poder religioso e político – ambos decisivos no ambiente de cristandade vivido então? E por que cita exatamente os dois países emergentes de então? “Do mesmo modo, que meus irmãos foram para o meio dos infiéis e os converteram todos à fé” (v. 6a). Neste versículo Francisco retrata o evangelho do poder e não e poder do Evangelho. Quer dizer, tanta e tão alta é a santidade dos frades que obtém a conversão de “todos” os muçulmanos. Os frades estão revestidos de tão grande santidade que sua presença tudo transforma. Fazem isso porque o poder divino ou o poder sagrado está presente abundantemente neles. Converter um maometano já é difícil; imaginemos que poder de que santidade deveriam estar revestidos os frades para converter todos os muçulmanos. Não era assim que os frades imaginavam sua projeção como evangelizadores em nome da Igreja? Francisco está claramente exagerando com seu estilo hiperbólico, mas provavelmente era o que estaria presente em certo número de frades. “E, além disso, que eu tenho tanta graça de Deus que curo os enfermos e faço muitos milagres” (v. 6b). Francisco vê que muitos frades se orgulhavam de sua santidade. Ser companheiro de um santo é, de certa forma, participar de sua áurea. Por isso inclui este dado também. Nada acrescenta ao dado anterior do poder sagrado. Apenas abre para uma nova circunstância, agora a respeito da fama de santidade de sua pessoa. Observando com atenção, pode-se perceber nesta parte a descrição de três tipos de poder, ou três dimensões do poder: o poder da ciência, o político, seja religioso ou civil, e o poder sagrado, aquele que emana diretamente de Deus. Para cada uma destas três situações Francisco afirma que NÃO está nisso a verdadeira alegria, a verdadeira realização 158 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 149-180, jul./dez. 2010 DA VERDADEIRA À PERFEITA ALEGRIA... humana, a verdadeira grandeza humano-cristã. Ele tira, dessa forma, os pontos de apoio a quem, mesmo se de modo quase inconsciente, alimenta assim aspirações e sonhos de grandeza. A busca que qualquer forma de grandeza ou poder não realiza a pessoa humana, declara Francisco nesta primeira parte. Também a onipotência divina não reside na capacidade de fazer o que Ele quer, sobrepondo-se a qualquer força de resistência. Ao contrário, a capacidade de força de Deus reside em fazer-se pequeno, solidário com as menores das suas criaturas. Jesus Cristo, rosto de Deus, procedeu assim segundo a Carta aos Filipenses (2,6-11). c) A segunda parte (vv. 8-14). Concluída a fase da descrição dos falsos valores vividos por frades (busca de autoafirmação e supremacia sobre os outros), seu interlocutor, Frei Leão, lhe faz a pergunta de transição: “Mas o que é a verdadeira alegria?” E Francisco, então, passa a direcionar a atenção para a verdadeira alegria com uma história hipotética e, ao mesmo tempo, real, pelo contexto de rejeição que sofria da parte de grande número de frades, especialmente os doutos que o julgavam incapaz de orientar e conduzir a Fraternidade, mesmo se o reconhecessem como um grande santo. Francisco diz: “Volto de Perúgia e chego aqui na calada da noite” (v. 8a). Francisco começa relatando sua saída da cidade do poder. Perúgia era reconhecidamente a cidade dos poderosos nobres. Até a família Favarone, de Clara, ao ser expulsa de Assis, foi refugiar-se em Perúgia. Nesta parábola é provável que Perúgia funcione como símbolo de grandeza e de poder. Francisco começa, pois, dizendo que ele saiu daquele ambiente que alimenta sonhos de grandeza e “chega” à Porciúncula, um lugar de periferia e exclusão pela sua proximidade com os leprosos. Ele chega na “calada da noite”, porque não consegue entender o que está se passando com seus confrades. Tem ciência do rompimento existente entre eles. E não é propriamente um rompimento entre eles, Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 149-180, jul./dez. 2010 159 ALDIR CROCOLI enquanto pessoas, mas um rompimento com a proposta de vida. Propõem outra maneira de viver, que nada tem a ver com a opção da Fraternidade nos seus inícios, e que Francisco percebia ter sido uma verdadeira revelação. É difícil para Francisco assimilar a situação. É, por isso, noite. “E é tempo de inverno, cheio de lama e tão frio que gotas de água se congelam na extremidade da túnica e (me) batem sempre nas pernas e o sangue jorra de tais feridas” (v. 8b). Provavelmente essa situação é o símbolo do estado de relação entre ele e o grupo dos frades mais doutos: um distanciamento total, um gelo afetivo dolorido e insuportável que lhe dói profundamente. “E totalmente na lama, no frio e no gelo, chego à porta e, depois de ter batido e chamado por muito tempo, vem um irmão e pergunta: Quem és? E eu respondo: Frei Francisco” (v.9). Os termos eloquentes neste versículo poderiam ser “chamar por muito tempo” e a resposta de Francisco dizendo ser ele, Francisco o fundador da sua “Ordem”. O fato de bater e chamar por muito tempo revela que a casa é grande, que o porteiro, mesmo se de sono leve, demorará muito para caminhar até à porta. Para quem está na situação de Francisco, alguns minutos são uma eternidade. Mas o pior acontece depois que o irmão chega: ao ouvir a resposta do peregrino se identificando como “Francisco” ao invés de lhe escancarar a porta, acordar todos os irmãos para recepcionálo, começa a apresentar as razões para não admiti-lo. Não duvida que seja ele como na versão dos Fioretti. “E ele diz: Vai-te embora! Não é hora decente de ficar andando: não entrarás” (v. 10). Neste versículo, o rompimento de propostas de vida entre Francisco e aquele grupo de frades se manifesta de duas formas: Ele é rejeitado diretamente ao ser reconhecido como o fundador, recebendo um claro “vai-te embora”. O irmão dessa maneira está dizendo que os frades que estão com ele naquele grande convento já não se 160 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 149-180, jul./dez. 2010 DA VERDADEIRA À PERFEITA ALEGRIA... interessam pela proposta de Francisco. Mandam-no para longe: “Vaite embora”. Porém, o segundo aspecto do rompimento com Francisco é sintomático: “não é hora decente de ficar andando”, isto é, nós temos uma estruturação de vida como os monges, com horários determinados para viajar, para dormir, para rezar, para comer etc. Tu já não observas esses horários conventuais, portanto não és um religioso; não podes integrar nosso grupo de religiosos com estrutura conventual. O irmão porteiro já não se sente um irmão pobre entre os pobres como Francisco propunha para seus irmãos. identifica-se antes como um religioso, vivendo numa estrutura conventual. Quem opta pelos pobres, quem se faz pobre entre os pobres, não tem como ser fiel a uma observância regular de horários e ter casa grande. A distância afetiva e efetiva entre os dois (Francisco e o grupo dos doutos) é grande! “E, como insisto, de novo ele responde: Vai-te embora! Tu és simples e idiota. De maneira alguma serás acolhido junto a nós; somos tantos e tais que não precisamos de ti” (v. 11). Novamente a rejeição clara e explícita. E o irmão não revisa sua postura; ao contrário, a reafirma: vai-te embora. Por que razão Francisco é rejeitado? Por ser igual aos da ralé social, por ter aparência de mendigo. E por ser, desse modo, inútil. Não contribuirá com a Ordem. Não lhe trará mais fama nem mais honra. Antes, desonra, vexame e vergonha. E o irmão lhe diz abertamente a razão: “Somos tantos e tais que não precisamos de ti”. A Ordem está cheia de doutores, de prelados e bispos, de reis, de pregadores famosos que convertem a todos, de grandes santos com muitos milagres, que vantagem teria em acolher um pobretão desses como Francisco, maltrapilho e ignorante? É melhor que fique longe. Essa expressão “somos tantos e tais” é a frase nuclear dessa segunda parte no sentido de fazer a conexão como tema do poder, trabalhado por Francisco na primeira. Além disso, é a frase reveladora, por excelência, do sonho de grandeza aninhado na alma daqueles frades, sonho que Francisco queria combater com a parábola. Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 149-180, jul./dez. 2010 161 ALDIR CROCOLI “E eu novamente me coloco de pé diante da porta e digo: Por amor de Deus acolhei-me por esta noite” (v. 12). O modo de Francisco se expressar supõe que ele tivesse recuado alguns passos ao ouvir por duas vezes o “Vai-te embora”. Agora ele torna novamente à porta, já não como Francisco, o fundador da Ordem, mas como um pobre que pede abrigo “por esta noite”. Está numa situação de extrema necessidade e urgência: está na lama, no frio, na noite, com feridas nas pernas. Os Fioretti acrescentarão “com fome”. E suplica ao frade menor “por amor de Deus”, como fazem os pobres (Até este momento Francisco não pronunciara o nome de Deus e aqui o faz como um pobre e não na qualidade de Francisco). “E ele responde: Não o farei” (v. 13). A insensibilidade do frade é total. Quem só sonha com grandezas fica cego ao pequeno e insignificante. Não encontra tempo, nem maneira de ajudar os inúteis (Não vale a pena investir neles. É perder tempo e dinheiro). É a lógica materialista estampada no capitalismo da sociedade hodierna, quer a nível microcósmico, quanto macrocósmico. Esta é a origem da enorme fissura social que, ao longo da história, separa os ricos e poderosos dos pobres e excluídos. “Vai ao lugar dos crucíferos9 e pede lá” (v. 14). O irmão porteiro é coerente. Manda Francisco para os inúteis da sociedade, os leprosos: Vade ad locum cruciferorum et ibi pete. Manda ao lugar, não para a casa, pois os leprosos não tinham mais que um esconderijo para se abrigar, como se não fosse propriamente uma casa. Não eram mais contados como população. Aliás, crucífero era um dos nomes dados aos leprosos. É um termo de origem latina que literalmente significa “portador da cruz”, da cruz da própria morte, por uma doença incurável e que exigia total isolamento da convivência social. Matava física e socialmente, já que, ao serem enviados aos leprosários donde não poK. Esser (Gli Scritti di san Francesco d’Assisi, 1982, p. 602) dá notícias também de uma “Ordem dos Crucíferos”, existente em Assis e dedicada aos leprosos. Seja indicando os leprosos, seja indicando quem a eles se dedica, o significado do envio não altera. 9 162 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 149-180, jul./dez. 2010 DA VERDADEIRA À PERFEITA ALEGRIA... dia mais sair, também perdiam todos os direitos sociais10. São os crucificados ou os mortos-vivos ambulantes, pregados à cruz da morte. Há outro aspecto a ser observado aqui. O envio aos leprosos é, de fato, uma orientação de Deus, como Francisco confessa no testamento: “Como estivesse em pecados, parecia-me sobremaneira amargo ver leprosos. E o próprio Senhor me conduziu entre eles e fiz misericórdia com eles. E afastando-me deles, aquilo que me parecia amargo se me converteu em doçura de alma e de corpo” (Test 1b-3a). Aqui a verdade brota, ironicamente, da boca do irmão porteiro, assim como o “eis o homem” de João 19,5 brotou da boca de Pilatos. Têm razão os Fioretti quando dizem que “Deus o fez falar assim”11. Sem querer, o porteiro apontou para a grande verdade que ele mesmo não aceitava: o vertedouro da vocação humana e franciscana emerge no ambiente da exclusão social, no lado diametralmente oposto ao aspirado pelos muitos frades habitantes daquele convento. A descoberta do modo humano de ser, calcado na solidariedade e na misericórdia, características também do modo de ser de Deus, de quem somos feitos “à imagem e semelhança”, se dá mediante a trans-descendência, isto é, a capacidade de descer aos últimos e fazer-lhes misericórdia, dar-lhes o melhor de si, o coração. O máximo de grandeza e de realização humana reside nesta maneira de ser e não em conseguir galgar o topo da pirâmide social. A lógica de Francisco é muito refinada, opondo claramente esta parte à parte anterior e, desse modo, com mãos de luva, dar um tapa de admoestação aos frades que caíram na tentação da grandeza e do Quando alguém era identificado com lepra, era chamado o sacerdote à sua casa. Este rezava as exéquias fúnebres, colocava cinza na cabeça e, a seguir, era levado por outros até próximo de um leprosário de não podia mais retornar à convivência social. Por isso “morto-vivo”. ROMERO GARCÍA, F. M., na sua tese de doutorado com o título “videre leprosos” (1989) descreve pormenorizadamente este rito religioso realizado por um sacerdote. 10 Todavia o contexto da frase nos Fioretti é totalmente outro e, portanto também seu sentido. Aqui vale apenas enquanto frase construída com os mesmos caracteres. 11 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 149-180, jul./dez. 2010 163 ALDIR CROCOLI poder, talvez a pior, a mais sutil e mais profunda tentação humana, quase sempre imperceptível, uma “tentação persistente” como ele anota na paráfrase do Pai Nosso12. Veremos abaixo como os Fioretti alteram completamente a história e a conclusão, reconfigurando o modo de ser franciscano. d) A conclusão Embora breve, esta parte merece ser observada com atenção. Seu papel é explicitar o ponto de chegada da segunda parte. Acrescenta poucos aspectos novos, mas traz à tona os inerentes. A mudança de estilo é evidente: “Digo-te que, se eu tiver paciência e não ficar perturbado, nisto está a verdadeira alegria, a verdadeira virtude e a salvação da alma” (v. 15). Parece serem três os elementos de destaque: “Se eu tiver paciência...”. Não se pode esquecer que o autor é Francisco. Quando jovem, no período da conversão, foi expulso da região como diz Celano (1Cel 13,6)13. Também já havia realizado a experiência de convivência com os leprosos que lhe abriram os olhos para a nova maneira de ser pessoa humana e de ser cristão. A sociedade o considerava, por isso, um louco (1Cel 11,2; LTC 17,4). Até na oração da conversão, Francisco pede a Deus “juízo, bom senso”14, pois havia muitos que o retinham como demente. 12 “Não nos deixeis cair em tentação: oculta ou manifesta, repentina ou persistente” (PN 9). Para uma descrição mais pormenorizada deste processo de expulsão da família e da cidade de Assis, ler os parágrafos 18, 19 e 20 da Legenda dos três companheiros. 13 A maioria dos tradutores tem dificuldade de traduzir “senno”, da oração de Francisco, originalmente em italiano, língua onde o primeiro sentido é “bom senso”, juízo, no sentido de ter a cabeça no lugar, ser uma pessoa com bom raciocínio, justamente não leva em conta o fato de que a oração foi composta no momento em que Francisco, pela sua radicalidade de opção a muitos dava a impressão de haver perdido o juízo. Ou será que é desonroso ter um santo que, em certo período da vida, foi julgado, impropriamente, louco? 14 164 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 149-180, jul./dez. 2010 DA VERDADEIRA À PERFEITA ALEGRIA... Ora, para suportar essa exclusão social, necessita-se de muita “paciência”. Isto é, de muita capacidade de compreensão da reação “normal” da maioria do povo diante de alguém que assume uma postura totalmente inusitada, mesmo se profundamente evangélica. O que faz e como faz está fora dos parâmetros normais. É mais fácil taxá-lo de louco do que compreendê-lo. Por isso, Francisco usa a palavra “paciência” no sentido de capacidade de suportar, força de levar a carga de desprezo sem se deixar perturbar por esse julgamento de exclusão social. É muito exigente esta postura. Frei Lázaro Iriarte, ainda na década de 70 do século passado, disse que os frades sustentaram uma luta inglória durante séculos, por tentar ser pobres, mas sem ter a coragem de ser “menores”. Ser menor, socialmente, é também considerado sem valor pela sociedade. Isso é muito mais exigente do que suportar ofensas, fome, frio e outras privações. Fazer esta opção de vida, que foi a de Jesus Cristo, morto como criminoso e malfeitor, fora dos muros da cidade, no mais terrível dos modos possíveis, a crucificação, requer uma capacidade, uma força inimaginável. É que todos nós, seres humanos, necessitamos, psicologicamente, de um mínimo de reconhecimento social. A proposta de Francisco supõe abdicar também dela; sem nenhuma propriedade mesmo. É o despojamento total como está expresso mediante as três citações evangélicas15 no capítulo I da Regra não Bulada, primeira redação escrita do projeto de vida dos Irmãos Menores: desfazer-se dos bens, abdicar da defesa da própria vida e, por terceiro, renunciar à família, quer dizer, ao apoio e segurança social. No tempo de Jesus, quando ele colocou essas condições para segui-lo, a família exercia esse papel, já que não havia o estado de direito como hoje. “E não ficar perturbado”. O texto original latino se expressa dessa forma: “Et non fuero motus”, o que poderia ser traduzido por “não As três citações da RnB 1, 1-4 são: renúncia aos bens (Mt 19,21; renegar-se a si mesmo e tomar a cruz (Mt 16,24); e “odiar” pai e mãe ... e sua própria vida (Lc 14,26). 15 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 149-180, jul./dez. 2010 165 ALDIR CROCOLI estar alterado”. A versão brasileira preferiu “não ficar perturbado”. Tudo bem. A perturbação é a que confunde o raciocínio. O discernimento pode ficar perturbado pelo sentimento de raiva com a reação dos outros ou pelo sentimento de inveja (inconsciente até) em querer estar no lugar dos outros, pelo sentimento de inconformidade por não mais gozar de prestígio, pelo autodesprezo por ver-se relegado na história. Manter-se sereno nessa posição de exclusão e carregar a cruz da exclusão da parte de quem nos julga inúteis, incômodos, perigosos, desajuizados, é muito exigente, requer muita misericórdia para consigo e para com os fazedores da história. Então o “ir aos leprosos”, à exclusão, deve sempre ser acompanhado da “paciência”, no sentido de muita coragem e força, e da “não perturbação”. Jesus Cristo, diz Lucas (9,51), tomou a firme decisão de ir a Jerusalém, expressão que Shoeckel, coordenador dos comentários da “Bíblia do Peregrino”, diz que não significa “enrijecer a face”, como em Is 50,7. A RnB 9,5 assume literalmente esta visão de Jesus Cristo, como alguém capaz de enfrentar qualquer coisa, inclusive a perda da própria vida na obediência ao Pai e à necessidade dos irmãos que, aliás, são sinônimas. “Nisto está a verdadeira alegria”. A autêntica realização humana, aquela que nos torna semelhantes a Deus, aquela que nos dá a satisfação de estar dentro do modo de ser e julgar de Deus, obedientes ao seu dinamismo de amor, é esta. Quando alguém consegue passar aos excluídos e lá permanecer na serenidade alcança, segundo o pensar de Francisco, o máximo que um ser humano pode atingir e fruir por toda a eternidade. Todas as demais conquistas deste mundo são voláteis, perecerão; permanecerá apenas a grandeza do coração conferida por este passo. Sentir-se neste processo contínuo e constante alegra e realiza. É o bem, todo o bem, o sumo bem! “...e a verdadeira virtude”. Etimologicamente virtude significa “força”, energia. Viver segundo o parâmetro de vida acima mencionado 166 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 149-180, jul./dez. 2010 DA VERDADEIRA À PERFEITA ALEGRIA... revela a existência de uma grande energia. De fato, a identificação com a fonte da energia (Deus) torna forte o fraco. Todos os que fazem experiência de Deus sentem uma energia incrível. Francisco já a vivenciara, há tempo. Pode, por isso, evocá-la aqui. É uma força que aparentemente é passiva, mas é uma passividade transformadora, qual sal que se deixa derreter, mas que repassa neste mesmo ato todo o seu sabor a tudo quanto entra em contato com ele. A capacidade de descer aos últimos, ser um deles, por opção, transforma até o “amargo em doçura da alma e do corpo”. “... e a salvação da alma”. Esta é a conclusão da conclusão. A verdadeira alegria e a verdadeira virtude são simultaneamente a “salvação da alma”. Esta expressão pode ser entendida, tanto linearmente como a salvação da alma para a vida eterna como se expressa a linguagem popular, quanto o resgate da verdadeira identidade (alma) da pessoa humana, já aqui nesta vida terrena. Em outras palavras, o modo verdadeiramente humano de ser que Deus projetou para toda a humanidade é este “fazer misericórdia”, na pura gratuidade e na minoridade, a todos indistintamente, a começar pelos últimos. Para encerrar esta seção, apenas um aperitivo do que vai ser constatado mais abaixo: nenhum apelo ao ascetismo moral de padecer sofrimentos físicos e morais, injúrias e escárnios, como se o máximo da realização humana consistisse em “vencer-se a si mesmo”. Não há na parábola nenhum autocentramento, mas apenas altruísmo em relação a si na dedicação aos últimos e compreensão misericordiosa para com quem rejeita e exclui. 2 A Perfeita Alegria Como dissemos acima, esse texto da “Perfeita Alegria” formando o capítulo oitavo dos Fioretti, era o único texto conhecido, até as priScintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 149-180, jul./dez. 2010 167 ALDIR CROCOLI meiras décadas do século XX. Por isso ele fez história. Está gravado no subconsciente de muitas pessoas e ninguém duvidava que não fosse realmente de Francisco. B. Bughetti encontrou outra versão e a divulgou em 1930. É o texto que acabamos de analisar. Difere muito deste dos Fioretti, alvo de nossa atenção a partir de agora. Também aqui, para facilitar, reportaremos este texto, ao lado do anterior, mesmo se o repetimos. Será mais fácil observá-lo e compará-lo. Já o apresentamos conforme sua estrutura, quase idêntica ao anterior. A Verdadeira Alegria Francisco) A Perfeita Alegria (Fioretti) (s. O mesmo (Frei Leonardo) contou na mesma ocasião que o bem-aventurado Francisco, em Santa Maria, chamou a Frei Leão e disse: 2 “Frei Leão, escreve”. Este respondeu: “Já estou pronto”. 3 “Escreve – disse – o que é a verdadeira alegria”. 1 4 Vem um mensageiro e diz que todos os mestres de Paris entraram na Ordem: escreve que isto não é a verdadeira alegria. 5 Igualmente, que (entraram na Ordem) todos os prelados ultramontanos, arcebispos e bispos, o rei da França e o da Inglaterra: escreve que isto não é a verdadeira alegria. 6 Do mesmo modo, que os meus irmãos foram para o meio dos infiéis e os converteram todos à fé; e, além disso, que eu tenho tanta graça de Deus que curo os enfermos e faço muitos milagres: digo-te que em tudo isso não está a verdadeira alegria. 168 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 149-180, jul./dez. 2010 DA VERDADEIRA À PERFEITA ALEGRIA... Vindo uma vez São Francisco de Perusa para Santa Maria dos Anjos com Frei Leão em tempo de inverno, e como o grandíssimo frio fortemente o atormentasse, chamou Frei Leão, o qual ia mais à frente, e disse assim: “Irmão Leão, ainda que o frade menor desse na terra inteira grande exemplo de santidade e de boa edificação, escreve, todavia, e nota diligentemente que nisso não está a perfeita alegria”. E andando um pouco mais, chama pela segunda vez: “Ó irmão Leão, ainda que o frade menor desse vista aos cegos, curasse os paralíticos, expulsasse os demônios, fizesse surdos ouvirem e andarem os coxos, falarem os mudos e, mais ainda, ressuscitasse mortos de quatro dias, escreve que nisto não está a perfeita alegria”. E andando um pouco, São Francisco gritou com força: “Ó irmão Leão, se o frade menor soubesse todas as línguas e todas as ciências e todas as escrituras e soubesse profetizar e revelar não só as coisas futuras, mas até mesmo os segredos das consciências e dos espíritos, escreve que não está nisso a perfeita alegria”. Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 149-180, jul./dez. 2010 169 ALDIR CROCOLI “Mas, o que é a verdadeira alegria?” 7 Volto de Perúgia e chego aqui na calada da noite; e é tempo de inverno, cheio de lama e tão frio que gotas de água se congelam na extremidade da túnica e (me) batem sempre nas pernas, e o sangue jorra de tais feridas. 9 E totalmente na lama, no frio e no gelo, chego à porta e, depois de eu ter batido e chamado por muito tempo, vem um irmão e pergunta: Quem és? Eu respondo: Frei Francisco. 10 E ele diz: ‘Vai-te embora! Não é hora decente de ficar andando; não entrarás. 11 E, como insisto, de novo ele responde: Vai-te embora! Tu és simples e idiota. De maneira alguma serás acolhido junto a nós; somos tantos e tais que não precisamos de ti. 12 E eu novamente me coloco de pé diante da porta e digo: Por amor de Deus, acolhei-me por esta noite. 13 E ele responde: ‘Não o farei. 14 Vai ao lugar dos crucíferos e pede lá. 8 170 Andando um pouco além, São Francisco chama ainda com força: “Ó irmão Leão, ovelhinha de Deus, ainda que o frade menor falasse com língua de anjo e soubesse o curso das estrelas e as virtudes das ervas; e lhe fossem revelados todos os tesouros da terra e conhecesse as virtudes dos pássaros e dos peixes e de todos os animais e dos homens e das árvores e das pedras e das raízes e das águas, escreve que não está nisso a perfeita alegria”. E caminhando um pouco, São Francisco chamou em alta voz: “Ó irmão Leão, ainda que o frade menor soubesse pregar tão bem que convertesse todos os infiéis à fé cristã, escreve que não está nisso a perfeita alegria”. E durando este modo de falar pelo espaço de duas milhas, Frei Leão, com grande admiração, perguntou-lhe e disse: “Pai, peçote, da parte de Deus, que me digas onde está a perfeita alegria”. E São Francisco assim lhe respondeu: “Quando chegarmos a Santa Maria dos Anjos, inteiramente molhados pela chuva e transidos de frio, cheios de lama e aflitos de fome, e batermos à porta do convento, e o porteiro chegar irritado e disser: Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 149-180, jul./dez. 2010 DA VERDADEIRA À PERFEITA ALEGRIA... Digo-te que, se eu tiver paciência e não ficar perturbado, nisto está a verdadeira alegria e a verdadeira virtude e a salvação da alma”. 15 ‘Quem são vocês’; e nós dissermos: ‘Somos dois dos vossos irmãos’, e ele disser: ‘Não dizem a verdade; são dois vagabundos que andam enganando o mundo e roubando as esmolas dos pobres; fora daqui’; e não nos abrir e deixar-nos estar ao tempo, à neve e à chuva com frio e fome até à noite; então, se suportarmos tal injúria e tal crueldade, tantos maus tratos, prazenteiramente, sem nos perturbarmos e sem murmurarmos contra ele e pensarmos humildemente e caritativamente que o porteiro verdadeiramente nos tinha reconhecido e que Deus o fez falar contra nós: ó irmão Leão, escreve que nisto está a perfeita alegria. E se perseverarmos a bater e ele sair furioso e como a importunos malandros nos expulsar com vilanias e bofetadas dizendo: ‘Fora daqui, ladrõezinhos vis, vão para o hospital, porque aqui ninguém lhes dará comida nem cama’; se suportarmos isso pacientemente e com alegria e de bom coração, ó irmão Leão, escreve que nisso está a perfeita alegria. E ainda se constrangidos pela fome e pelo frio e pela noite, batermos mais e chamarmos e pedirmos pelo amor de Deus com muitas lágrimas que nos abra a porta e nos deixe entrar, e se ele mais escandalizado disser: Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 149-180, jul./dez. 2010 171 ALDIR CROCOLI ‘Vagabundos importunos, pagarlhes-ei como merecem': e sair com um bastão nodoso e nos agarrar pelo capuz e nos atirar ao chão e nos arrastar pela neve e nos bater com o pau de nó em nó: se suportarmos todas estas coisas pacientemente e com alegria, pensando nos sofrimentos de Cristo bendito, os quais devemos suportar por seu amor; ó irmão Leão, escreve que aí e nisso está a perfeita alegria, e ouve, pois, a conclusão, irmão Leão. Acima de todas as graças e todos os dons do Espírito Santo, os quais Cristo concede aos amigos, está o de vencer-se a si mesmo, e voluntariamente pelo amor suportar trabalhos, injúrias, opróbrios e desprezos, porque de todos os outros dons de Deus não nos podemos gloriar por não serem nossos, mas de Deus, do que diz o Apóstolo: ‘Que tens tu que não o hajas recebido de Deus? E se dele o recebeste, por que te gloriares como se o tivesses de ti?’ Mas na cruz da tribulação de cada aflição nós nos podemos gloriar, porque isso é nosso e assim diz o Apóstolo: ‘Não me quero gloriar, senão na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo’”. Ao qual sejam dadas honra e glória in secula seculorum. Amém. 172 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 149-180, jul./dez. 2010 DA VERDADEIRA À PERFEITA ALEGRIA... Como nosso objetivo nesta parte é mostrar a transformação sofrida pelo texto de Francisco no livro dos Fioretti, mais que analisar propriamente este texto, nós o vamos comparando com o anterior e tentando evidenciar as diferenças, mostrando as implicações ou consequências de tais alterações. 1) A parábola contada por Francisco fala sempre em “Verdadeira”16 Alegria. É um conceito ligado à verdade. E a verdade é correspondência ao ser. Está, pois, relacionada com a dimensão ontológica. Os filósofos dizem que o “bom, o verdadeiro e o belo” se correspondem. Já nos Fioretti, a alegria é qualificada somente com o adjetivo “perfeita”. Trata sempre de “perfeita alegria” O contexto do escrito leva a entender que essa é uma conquista de ordem moral, no campo do comportamento, da qualidade das ações e não do ser. É uma mudança muito significativa. 17 2) No texto da “Verdadeira Alegria”, o personagem central é Francisco. Francisco narra para Frei Leão que faz o papel de simples secretário, mas que não participa propriamente da história. Veja-se, por exemplo, quando chega à porta do convento em Santa Maria dos Anjos, à pergunta do irmão do lado de dentro da porta: Quem és? A resposta é: “Frei Francisco”. Francisco é o fundador do movimento. Ele é a pesO leitor atento poderá encontrar na primeira edição das Fontes Franciscanas e Clarianas, verso 3, o adjetivo “perfeita” alegria. Contudo foi um puro engano, já corrigido na segunda edição (2009?). A edição crítica latina sempre emprega o mesmo adjetivo “vera” nas seis menções que o texto faz de alegria. 16 Além disso, é interessante perceber como a forte influência do texto dos Fioretti levou os tradutores a intitular o texto original de “perfeita alegria”. Embora no título da edição brasileira encontremos “A verdadeira e perfeita Alegria”, nas abreviações oficiais para o português (cf. página 8 das Fontes) o texto de Francisco, que nunca menciona “perfeita” alegria, recebeu como abreviação “PA”, de Perfeita Alegria. Já Lucas Wadding, no século XVII o intitulou “Da Verdadeira e Perfeita Alegria”. E é assim que ele é abreviado na edição crítica de K. Esser (cf. ESSER, K. Gli Scritti di San Francesco d’Assisi. Padova: Messaggero, 1982, p. 601). 17 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 149-180, jul./dez. 2010 173 ALDIR CROCOLI soa-símbolo da proposta de vida que estão vivendo. Pedro Maranesi, por isso, chega até a dizer que se trata de um texto autobiográfico18. Já nos Fioretti a resposta é “somos dois dos vossos irmãos”, quer dizer, a pessoa de Francisco nada tem a ver com a estória. Esta mudança de Francisco para dois irmãos protagonistas tira toda a gravidade do fato. O porteiro está apenas agindo assim como agiria com quaisquer outros confrades. Mais adiante, quando dizem que o porteiro os havia reconhecido, deixam entender que os reconheceu como seus irmãos sim, mas entre eles não estaria Francisco, a pessoa emblemática por excelência. 3) Observe-se que no texto original o protagonista está em Santa Maria dos Anjos e relata um fato atual, presente. Mesmo se na segunda parte o texto conta “Volto de Perúgia e chego aqui...” é apenas o estilo deste tipo parábola em forma de estória. De fato, todo o texto está construído no presente do indicativo (Tu és, vai-te embora, vai ao lugar dos crucíferos...) para dizer que a história descrita é real, está em ato, acontecendo realmente ali na Porciúncula, também lugar símbolo da opção pela minoridade, próxima dos leprosários. Nos Fioretti, diversamente, Francisco e Leão caminham por duas milhas dialogando sobre situações hipotéticas de onde “não estaria” a Em minha opinião, Maranesi exagera com semelhante posição. O que o texto oferece de histórico é a confissão de um rompimento entre Francisco e o grupo dos frades doutos, vibrantes com o “desenvolvimento triunfalista” da Ordem. Mas o texto nada diz da vida de Francisco. Tudo é parábola. Aliás, esse mesmo autor, no belíssimo livro sobre o confronto crítico do Testamento com as biografias a respeito no lugar e papel dos leprosos no processo de conversão e na vida de Francisco, também entende que o texto ajudou a Francisco reencontrar o “sentido último de suas opções e da sua posição de marginalizado” (p. 297). Creio que isso advirá com a experiência do Alverne, não com esta reflexão da parábola. Penso que o autor não valoriza suficientemente a primeira parte do texto e se centra demasiado na pessoa de Francisco, sem dar o devido peso ao contexto da Ordem, que estava cedendo à tentação do “fermento dos fariseus”, isto é, neste caso, à segurança do poder. 18 174 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 149-180, jul./dez. 2010 DA VERDADEIRA À PERFEITA ALEGRIA... perfeita alegria. Não estão na Porciúncula, mas estão no caminho de retorno de Perúgia (“Quando chegarmos a Santa Maria dos Anjos”), também levantando hipóteses de algo que eventualmente “poderia ocorrer”. Os verbos estão no futuro condicional: Se batermos, se dissermos, se ele nos agarrar pelo capuz, se ele disser ... No texto original, ao invés, a parábola retrata uma realidade concreta. 4) No texto original se encontram muitos nomes emblemáticos essenciais para a compreensão da parábola, tais como: mensageiro, Francisco (tanto como o protagonista da parábola, quanto como quem realiza os milagres por sua santidade), Mestres de Paris, prelados, bispos, arcebispos, reis da França e da Inglaterra. Como já vimos, todos esses nomes denotam situações de poder na tríplice dimensão: o poder da ciência, o poder político, o poder religioso, o poder sagrado. Nos Fioretti desaparecem todos esses nomes característicos. São substituídos por situações hipotéticas que desviam o foco da questão que Francisco abordava na sua parábola. Os Fioretti falam genericamente, no condicional: se o frade menor desse exemplo de santidade, se fizesse muitos milagres, se conhecesse os segredos das criaturas e das consciências... Por isso, podem ficar falando pelo espaço de duas milhas sem esgotar o assunto, apesar de explicitar apenas uma hipótese a mais que as quatro situações nomeadas por Francisco. 5) No texto original da Verdadeira Alegria, o irmão porteiro, ironicamente, reenvia Francisco aos crucíferos que lhe converteram “o amargo em doçura”, isto é, lhe revelaram sua nova visão de mundo, de pessoa humana e de Jesus Cristo. Foi descendo a estes últimos da sociedade, considerados mortos-vivos, que aconteceu a grande descoberta de Deus e dos novos valores que ele abraçou. Esta frase, porque incompreensível na nova reformulação do texto, é substituída por “vão para o hospital”, cujo sentido na Idade Média era de albergue ou hotel. Tal atitude significa que, hipoteticamente, os dois frades não são aceiScintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 149-180, jul./dez. 2010 175 ALDIR CROCOLI tos no convento simplesmente por serem considerados estranhos ou por não serem pessoas honestas, como o texto irá apresentar a seguir. 6) “Tu és simples e idiota... Nós somos tantos e tais que não precisamos de ti”. No texto original a razão da não acolhida é de que Francisco nada tem a oferecer à Ordem: é um simples, ignorante e analfabeto. Seria, antes, motivo de vergonha para a Ordem, constituída de pessoas de grande importância social. São ali apresentadas razões daqueles que moram dentro do convento (“não é hora decente de chegar” – os frades estão repousando; não devem ser incomodados –, “somos tantos e tais...”). É a condição dos que moram dentro do convento, ou melhor, do mosteiro, o verdadeiro empecilho para Francisco entrar. Já nos Fioretti o motivo da não acolhida é totalmente outro e está nos que chegam pedindo acolhida. Nas três vezes que o porteiro nega ingresso aos dois frades apresenta razões éticas: “Não dizem a verdade (= mentem); são dois vagabundos que andam enganando (falsidade) o mundo e roubando (cometem crimes) as esmolas dos pobres.”; “Fora daqui ladrõezinhos vis...”; “Vagabundos importunos”. Os dois irmãos são avaliados pelas suas supostas ações morais. Há assim um total deslocamento do critério de avaliação: no texto original as razões vêm dos que estão dentro do mosteiro; no texto alterado dos Fioretti o motivo é a moralidade dos que desejam entrar. 7) Na Verdadeira Alegria há uma conclusão: ir aos crucíferos, ou melhor, retornar para lá. O que segue pode ser visto como explicação ou justificativa da conclusão. A ida aos leprosos, vivida na “paciência e sem perturbação”, é a verdadeira alegria, a verdadeira virtude e a salvação da alma. Este é o ponto de convergência do texto. Mas nos Fioretti a conclusão é repetida três vezes para não deixar dúvidas: viver “prazenteiramente, pacientemente e com alegria e de bom coração” as contrariedades da vida. E na justificativa ou explicação é recordado o exemplo de Cristo que também sofreu injúrias e 176 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 149-180, jul./dez. 2010 DA VERDADEIRA À PERFEITA ALEGRIA... ofensas. Mas enquanto no texto original se propõe retomar o itinerário de autoesvaziamento de Cristo, que se encarnou por solidariedade misericordiosa, aqui são recordados os sofrimentos externos de Cristo, através de longa citação de Paulo, justamente porque o núcleo da conclusão é o “vencer-se a si mesmo”. O ponto de chegada do crescimento humano aqui não está centrado no amor ao outro, como é da essência de Deus que é amor e, portanto, também do ser humano, feito à sua imagem e semelhança. Para os Fioretti o ponto de convergência da caminhada de crescimento humano é uma espécie de autossatisfação pelo autodomínio nas adversidades. Há, pode-se perceber claramente, uma diferença fundamental entre as duas posições. 8) Por fim, talvez, a diferença mais marcante: o modo de ver Deus, espelhado nas duas versões. No texto original, o nome de Deus é lembrado, como se saísse da boca de um pobre. Nunca se diz que “Deus o fez falar assim contra nós”. O que fala alto nesta parábola de Francisco é o antropológico profundo, a dimensão ontológica da pessoa e da fé encarnada. E aí o que vale é a identificação com o dinamismo divino e não o uso abundante de citações bíblicas. Por isso, pode-se dizer que no texto original há uma visão encarnada da fé, vista como modo de Deus ser (assim como nas parábolas do Bom Samaritano (Lc 10,25-37) e do juízo final (Mt 25,31ss), onde Deus propriamente não é evocado, mas identificado com o modo de ser do samaritano ou de quem acolhe o necessitado). De fato, este é o modo de ser do Deus de Jesus Cristo, que ouve o clamor do povo, vê seu sofrimento e desce para o livrar e conduzir à abundância de vida (cf. Ex 3,7ss). Este é seu nome, a identidade pela qual quer ser reconhecido pelos tempos afora. São João vai dizer que “Deus é amor” (1Jo 4,8), isto é, alguém essencialmente voltado para fora, que vai ao encontro do mais fraco e necessitado. Nos Fioretti, ao contrário, Deus é citado sete vezes, Cristo, três vezes, e o Espírito Santo, uma vez. Parece, à primeira vista, um texto mais espiritual. Contudo, é de uma espiritualidade exterior e, talvez, Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 149-180, jul./dez. 2010 177 ALDIR CROCOLI até tendenciosa. Como o autor pode se atrever a dizer que “Deus o fez falar assim contra nós”, se no fundo está buscando uma justificativa religiosa para seu modo de pensar? Não é esta uma maneira de manipular Deus, que a Bíblia tanto combate? Deus está sendo usado para justificar uma antropologia estóica, porquanto não lhe importa uma identificação interior com o dinamismo de Deus que desce ao encontro das pessoas, as mais marginalizadas, e sim o autodomínio de si. Interessam aos Fioretti um estoicismo de fachada religiosa. No “vencer-se a si mesmo” não estaria embutida uma espécie de autosatisfação, um comprazer-se com o feito de ser capaz de autodomínio? Essa autosatisfação não estaria na mesma perspectiva de poder que Francisco tanto quer combater? Eu “apanho, mas tenho o orgulho e honra de me autocontrolar”. Não há um esvaziamento pleno de si como o proposto pelo texto original: estar entre os mortos-vivos, ser considerado um morto ambulante como os leprosos. Os Fioretti, na realidade, apontam mais, como já dissemos, para um estoicismo de fundo religioso do que para uma visão autêntica da fé cristã e de antropologia cristã. Essa é a diferença mais profunda entre os textos, que distam quase dois séculos um do outro no tempo e, certamente, muitos quilômetros no espaço. Esses elementos levantados tornam clara a evolução (pode-se chamar a isso de evolução?) ou distorção da parábola de Francisco. Conclusão Estas oito diferenças são suficientes para dar uma idéia da enorme distância existente entre o texto que aqui chamamos de original (surgido em torno de 1224) com o texto de Frei Hugolino de Monteggiorgio escrito por volta de 1336 e, 60 anos mais tarde, em 1390, traduzido para o italiano com enorme sucesso popular. Foi traduzido em prati- 178 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 149-180, jul./dez. 2010 DA VERDADEIRA À PERFEITA ALEGRIA... camente todas as línguas mais conhecidas. E durante mais de 500 anos se acreditou ser autenticamente de Francisco. Como se explica este fenômeno? Talvez a justificação possa ser atribuída a duas circunstâncias precisas. É o que se deseja dizer à guisa de conclusão geral. A primeira é devida à grande sintonia ou consonância entre o texto dos Actus com a mentalidade do tempo. A Igreja em geral pensava desse modo como os Fioretti. Tinha a visão de que o seguimento de Cristo passava pelo caminho da mortificação, da ascese, da penitência físico-corporal. Por isso Tomás de Celano, Boaventura e demais biógrafos medievais de Francisco o apresentam como homem penitente. A equação era esta: quanto mais penitência alguém faz, de maior santidade é detentor. Mostrar o fundador como alguém que dormia pouco, que nunca satisfazia completamente a fome, que aguentava o frio mais rígido, que tolerava as maiores agressões morais ou físicas... era o método para evidenciar sua santidade. Os autores dos Actus e dos Fioretti, pertencendo a este modo de pensar, modificam uma parábola para que ela confirme este horizonte de compreensão. E obtiveram muito êxito. Em segundo lugar, é possível afirmar que a parábola original não foi compreendida, porque também não era suficientemente entendida a proposta de vida de Francisco. Assim como havia um rompimento (rachadura) entre Francisco e um grande número de frades, sobretudo os mais instruídos – fator, aliás, do surgimento desta parábola – também esta estória, criada com muita perspicácia por Francisco para alertar seus confrades a respeito de um vírus que estava se disseminando na Fraternidade, não foi captada na sua intenção mais profunda. De fato, o Poverello era portador de um projeto alternativo de vida. Sem passar pelo túnel da convivência com os maiores excluídos de seu tempo, os leprosos, não nasce novo sol em Assis. Nasce um sol adaptado às circunstâncias e, por isso mesmo, alterado. Para tal fim, são modificadas palavras, omitidas frases ou nomes emblemáticos, acrescentadas con- Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 149-180, jul./dez. 2010 179 ALDIR CROCOLI clusões e citações bíblicas etc. de modo que se forme outro conjunto harmônico em si mesmo e com o contexto cultural. O que importa agora é ressaltar a mensagem da parábola original. Esta poderia ser sintetizada desse modo: a Verdadeira Alegria, ou a profunda realização humana, pode ser experimentada quando se consegue descer aos últimos, aos mais relegados da sociedade e ser seu irmão, ser um deles. Feliz, bem-aventurado é quem consegue percorrer o caminho do esvaziamento e da autodecentração de si como Jesus Cristo que, “sendo de condição divina, não se apegou zelosamente à sua igualdade com Deus, mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a condição de escravo e fazendo-se obediente ao Pai até à morte de cruz. Por isso seu nome foi exaltado acima de todo o nome”, isto é, experimentou a VERDADEIRA ALEGRIA da plenitude em Deus. Referências BÓRMIDA, Jerônimo. El relato de la verdadera alegría y lo socio-político. In: Quadernos Franciscanos, 96 (1996) p. 223-228. MARANESI, P. Facere misericordiam. Assisi: Porziuncula, 2008, p. 297300. MICCOLI, Giovanni. “Un’ esperienza cristiana tra vangelo e istituizione”, In: Società Internazionale Di Studi Francescani. Dalla “Sequella Christi” all’apologia della povertà. Spoleto: Centro Italiano di Studi sul Medioevo, 1992, p. 5-40. VAIANI, C. Teologia e Fonti Francescane. Milano: Biblioteca Francescana, 2006 p. 126-171. VAN ASSELDONK, O. “La nostra única speranza nella croce del Signore secondo gli scritti di Francesco d’Assisi”, em VV.AA. La Speranza. Studi biblici-teologici e apporti del pensiero francescano. Roma: Antonianum, 1984, p. 560-583. 180 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 149-180, jul./dez. 2010 OS ESPIRITUAIS, HOJE? OS ESPIRITUAIS, HOJE? Hermógenes Harada * Introdução O termo “espirituais”, nos estudos franciscanos, se refere a frades menores e à luta interna dentro da sua Ordem a cerca do ideal da vida franciscana, ocorrida no I século da origem e evolução do Franciscanismo, na Idade Média. “Hoje” sugere vagamente um modo de ser e pensar a nós referido, cujo interesse é estudar as “questões franciscanas”1. Trata-se, pois, de * Publicação póstuma. 1 Nos estudos franciscanos, a expressão Questão franciscana indica várias questões referentes às primeiras biografias sobre São Francisco e seus primeiros companheiros. Diz respeito a pesquisas crítico-historiográficas das fontes usadas nas primeiras biografias de São Francisco e nas narrações que relatam os primórdios e a evolução do franciscanismo. A “Questão franciscana” é o título que em 1902 S. Minocchi deu a um escrito que pesquisava a datação de alguns documentos franciscanos do século XIII. A expressão teve de imediato muita repercussão e sob esse título desencadeou discussões apaixonadas dos estudiosos das “coisas” franciscanas ao redor da historicidade dos “fatos” relatados pelos primeiros hagiógrafos de São Francisco e de seus primeiros companheiros. É pois uma questão análoga a dos problemas referentes a Cristo histórico e Cristo da Fé das primeiras comunidades cristãs, cujo testemunho é fonte para os nossos conhecimentos sobre Jesus e sua vida. Um nome famoso e apreciadíssimo no pioneirismo do despertar dessa questão é Paul Sabatier (1858-1928). Cf. DESBONNETS, Th. “Avantpropos”, in: DESBONNETS; VORREUX, 1968, p. 14; cf. MENESTÒ, E. “La ‘questione francescana’ come problema filológico”, in: Francesco d’Assisi e il primo secolo di storia francescana. Torino: Biblioteca Einadi, 1997, p. 117-143; cf. MANSELLI, Raoul, “Paul Sabatier e la ‘questione francescana’” in: La “Questione Francescana” dal Sabatier ad oggi, Atti del I Convegno Internazionale (Assisi, 18-20 de 10 de 1973), Assis, 1974, p. 51-70. Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 181 HERMÓGENES HARADA acontecimentos e pessoas do ontem longínquo, cuja questão nos diz respeito, por causa do nosso interesse, hoje. Esse interesse é científico e espiritual. Mas se é inter-esse, o nosso interessar-se não nos satisfaz, se permanecermos na indiferença e neutralidade mal engajada de curiosidade e satisfação da erudição cultural; ou na “inexistencialidade” de um cientificismo, corretamente atrelado ao funcionalismo “acadêmico”, a um status quo do saber “objetivista” como consumo e exercício de poder; nem no misticismo esteticista de um espiritualismo facilitado e cômodo, desencarnado. Se é ciência, a cientificidade na sua raiz deve estar no toque da paixão da busca da verdade, em cujo estímulo se abandona continuamente a terra firme do dogmatismo da certeza, para se lançar na aventura da precisão da dúvida racional; se é espiritualidade, deve estar exposta, corpo a corpo, ao confronto radical com as vicissitudes, as mais prementes da existência humana, em cuja interioridade abissal se dá o toque do Espírito, desse sopro vital da liberdade dos filhos de Deus, que sopra onde lhe apraz, nos desinstalando sempre de modo novo e sempre de novo de todo e qualquer apego e fixação a o que quer que seja, para a disposição grata e cordial da possibilidade de seguir os acenos do Radical-Outro no encontro. O encanto e o fascínio que “as questões franciscanas” despertam em nós, hodiernos, parecem emanar da disposição aos estudos, sejam quais forem as suas denominações, que estão no toque dessa radicalização, seja na busca absoluta da paixão da dúvida na inquirição científico-crítica ou na precisão e limpidez da recepção absoluta ao sabor da gratuidade do encontro, na espiritualidade. Os “espirituais” e suas posições e os acontecimentos do confronto entre eles e as assim chamadas “comunidades” nos poderiam despertar para uma questão sempre antiga e nova e hoje esquecida, acerca do serfranciscano. 182 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 OS ESPIRITUAIS, HOJE? No entanto, assim colocada a questão, o título e a sua explicação soam como se fossem promessa e programa de um artigo de pesquisa objetivo-historiográfica de interesse comum na área de estudos franciscanos. Esses ares de “importância acadêmica” que o nosso título pode insinuar camuflam e escondem o significado real do ponto de interrogação que está no fim da formulação do título. É que a interrogação não é a do questionamento da investigação nem da pesquisa científico-objetiva, mas é a expressão desajeitada de uma grande perplexidade, portanto é expressão de “desimportância”, para não dizer limitação subjetivo-particular, que diz respeito à sensação de não saber o que dizer e o que pensar, diante de um dos problemas mais intrigantes das “questões franciscanas”: os espirituais2. 1 Os espirituais, um ponto de interrogação da perplexidade Mas de que ponto de interrogação se pretende falar nessa perplexidade particular, subjetiva? Da interrogação, cujo ponto é o espiritual. Mas, para podermos falar desse ponto de interrogação, falemos antes como preparação, dos assim chamados “espirituais”, na história da Ordem Franciscana, no fim do I século da sua evolução como Franciscanismo3. É Cf. Chi erano gli Spirituali, Atti del III Convegno Internazionale (Assisi, 16-18 ottobre 1975), Assis, 1976; NANTES, René de, Histoire des Spirituels dans l’Ordre de Saint François. Paris, 1909; “Franciscains d’ Oc., Les Spirituels”, ca. 1280-1324 (Cahiers de Fanjeaux 10), Toulouse,-Fanjeaux, 1975; BARONE, G. “Spirituali”, in: Dizionario degli Institui di Perfezione. vol. VIII Saba-Spirituali, Roma: Edizioni Paoline, 1988, col. 2034-2040. 2 Dados, datas e fatos historiográficos e sua interpretação aqui relatados foram tirados de: GRATIEN DE PARIS, Histoire de la Fondation et de l’évolution des frères mineurs au XIII. Siècle. Bibliographie mise à jour par Mariano D’Alatri et Servus Gieben, Roma: Istituto Storico dei Cappuccini, 1982; IRIARTE, L. História franciscana. tradução de Adelar Rigo e Marcelino Carlos Dezen, Petrópolis: Vozes/Cefepal, 1985; MOORMAN, J. A History of the Franciscan Order, from its origins to the year 1517. Chicago: Franciscan Heraldpress, 1988; Dicionário franciscano. Petrópolis: Vozes/Cefepal, 1993; HOLZAPFEL, H. Handbuch der Geschichte des Franziskanerordens. Freiburg i. Br.: Herder, 1909. 3 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 183 HERMÓGENES HARADA que o ponto de interrogação da perplexidade particular e subjetiva está entalado justamente no destinar-se desses “espirituais”, cujas lutas e vicissitudes dentro da Ordem e da sua reação são como um cano, por onde entramos e nos entalamos, todos nós, hodiernos, porque voltar para trás não podemos, mas ir para frente nesse encanamento é que não vai. O termo “espirituais”4 designa frades menores que entre 1274, fim do generalato de São Boaventura, e 1318, fim do movimento dos espirituais como facção dentro da Ordem, portanto durante 44 anos, no fim do primeiro e no início do segundo século do desenvolvimento da Ordem, integravam um movimento de volta ao caráter originário do carisma fundacional da Ordem, iniciada por São Francisco de Assis, e lutavam pela sua manutenção como dever essencial da comunidade de toda a Ordem. Essa busca de restauração da Ordem tomou a forma da exigência de renovação, contestação e resistência à maioria dos frades menores, denominados “comunitários” ou simplesmente “comunidades”, acusando-os de afastamento e relaxamento do ideal originário dado por São Francisco. Esse grupo minoritário de renovadores se achava espalhado na Itália e na França meridional. Na Itália, principalmente nas províncias de Úmbria, da Marca de Ancona e Toscana. Na França, na Província de Provença. Os líderes espirituais desse movimento de reação eram Angelo Clareno (†1337)5 na Marca de Ancona, Ubertino de Casale (†1329)6 em Toscana e Pedro João de Stanislao da Campagnola fala da possibilidade de constatar como historiador “a existência empírica, dentro de uma área geográfica de um grupo de frades menores, que depois da metade do século XIII, contrastando com a evolução do movimento franciscano, se con-formava a uma interpretação rigorosa e literal da Regra e do Testamento de Francisco (considerados indispensáveis uma e outro)...” (“Gli Spirituali Umbri”, in: Chi erano gli Spirituali. Atti del III Convegno Internazionale (Assisi, 16-18 ottobre 1975), Assis, 1976, p. 75-105). 4 5 VON AUW, L. Angelo Clareno et les Spirituels italiens. Roma, 1979. 6 POTESTÀ, L. Storia ed escatologia in Ubertino da Casale. Roma, 1980. 184 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 OS ESPIRITUAIS, HOJE? Olivi (†1298)7 na Provença. Esse confronto entre os espirituais e a comunidade ou os comunitários no interior da vida religiosa da Ordem Franciscana nesse período entre 1274 a 1318 é caracterizado como “questão da pobreza” ou “luta pela pobreza”8. Traçar mais em detalhes, com precisão, a história “verdadeira” desses espirituais e as vicissitudes que sofreram, é uma tarefa que exige muita competência de exatidão e abrangência historiográfica. Pois os dados e as suas interpretações acerca dos espirituais e dos comunitários e de suas interações e reações chegam a nós já filtrados dentro das perspectivas dos interesses partidários de cada uma das facções correspondentes. Como frades menores, no entanto, mesmo divididos em facções, pertenciam ao organismo humano religioso denominado Ordem Franciscana, como seus membros vivos, cuja referência era São Francisco de Assis. Por isso, os móveis que implicavam e constituíam as impulsões das ações e reações de ambos os lados se objetavam como nós intrincados de questões, onde se entrecruzavam diversas perspectivas de compreensão do todo do ser franciscano9. Aqui, não faremos MANSELLI, R. La “Lectura super Apocalipsim” di Pietro di Giovanni Olivi. Richerche sull’ escatologismo medievale, Roma, 1955; FLOOD, D. E. “Petrus Johannis Olivi. Ein neues Bild des angeblichen spiritualen Führers”, in: Wissenschaft und Weisheit 34 (1971) 130-41. 7 Cf. Dalla “Sequela Christi” di Francesco d’Assisi all’Apologia della Povertà. Atti del XVIII Convegno Internazionale, Assisi, 18-20 ottobre 1990, Centro Italiano di studi sull’alto Medievo, Spoleto, 1992. 8 Em situando a sua pesquisa sobre os espirituais da Úmbria, Stanislao da Campagnola nos chama a atenção para a necessidade de, mais do que definir os traços fundamentais de um modelo geral dos espirituais, levar em conta os tempos, os lugares, as pessoas das quais se fala. E explica: “seja porque não se podem vincular séries temporais e geográficas diferentes, colocando sob uma única divisa, fatos, elementos, episódios de um período, por assim dizer, pré-espiritual e outros da maturidade, ou de uma fase, em todo caso, diversa da história dos espirituais; seja porque problemas como aqueles, relativos à apropriação dos fatos, elementos, testemunhos do primeiro período, em novo contexto e em novo esquema interpretativo ou historiográfico, sempre mais eivado de alusões joaquimistas e de responsabilidade escatológica, mudam de medida e peso com o suceder-se e com o aguçar-se dos momentos da decadência “comunitária” desaprovada e com as conseqüentes repressões e maus tratos sofridos pelas minorias dissidentes e contestatórias” (op. cit. 74-75). 9 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 185 HERMÓGENES HARADA tentativa de traçar uma tal história, não somente por um tal empreendimento não pertencer ao tema propriamente de nossa exposição, mas principalmente devido à nossa total incompetência para um tal tipo de trabalho. Daremos, apenas de modo muito geral, alguns dados e informações, aliás já bem conhecidos dos que estudam a história da Ordem Franciscana, muitas vezes questionados e questionáveis sob o ponto de vista da exatidão historiográfica, para podermos situar melhor a interrogação de perplexidade que queremos colocar mais tarde. 1.1 O que aconteceu por fim aos espirituais? No confronto entre os espirituais e os comunitários entraram em jogo vários pontos antagônicos, mas todas essas contraposições podem ser reduzidas à oposição básica entre a observância estrita “ad litteram” da pobreza e a observância da pobreza no sentido mais lato, conforme as interpretações dadas e propostas pela Santa Sé, através de bulas e outros documentos correspondentes. A observância estrita da pobreza exigia a aceitação da obrigatoriedade do Testamento de São Francisco como pertencente à Regra. A observância lata da pobreza considerava o Testamento somente como exortação e convite para maior perfeição. Essa luta meramente interna na Ordem franciscana é uma questão muito antiga. Iniciou-se já no tempo de São Francisco, estava presente na elaboração da Regra, continuou e tornou-se mais explícita depois da sua morte, tomando uma forma de confronto no seio da Ordem franciscana, que esboçava um movimento de um certo caráter partidário, mas que não chegava a ser sectário no sentido mais estrito. A luta se tornou exacerbada, constituindo algo como duas facções dentro da Ordem, que se degladiavam, após o generalato e a morte de São Boaventura. No conflito entre essas duas facções, ao mesmo tempo em que surgiam, tanto numa como na outra, manifestações de legíti186 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 OS ESPIRITUAIS, HOJE? ma preocupação e cuidado pelo espírito e ideal de São Francisco, vinham à fala inúmeras tendências político-religiosas, negligências, relaxamentos, idiosincrasias regionais, principalmente desavenças e lutas pelo poder, ocultos no seio da Ordem dos Frades Menores. Essa luta começou a inquietar as autoridades eclesiásticas, envolvê-las na preocupação e no cuidado pela sua integridade pastoral-política, na medida em que as partes em litígio recorriam à Santa Sé para assegurar para si a legitimidade de sua tese. Nessa busca de apoio das autoridades eclesiásticas, revezavam-se sucessos e reveses para ambas as partes, conforme a posição tomada tanto pelos ministros gerais da Ordem como pelos papas, diante das reivindicações dos espirituais. Da parte da Santa Sé, a grande preocupação dos papas era manter a unidade e evitar a todo custo o cisma no seio da Ordem dos frades menores. Em geral, a atitude das autoridades maiores, tanto dos gerais da Ordem como dos papas, era de aceitar as reivindicações justas dos espirituais, no que se referia a abusos, negligências, relaxamentos introduzidos na Ordem, de exigir reformas; mas ao mesmo tempo, de combater a tendência de radicalismo fanático e separatista presente na insistência dos espirituais de exigir para toda a comunidade da Ordem a observância estrita ad litteram da pobreza. Entrementes, a desavença entre os espirituais e os comunitários se exacerbava cada vez mais, de tal sorte que os papas e os gerais da Ordem começaram a sentir a necessidade urgente de pôr fim à divisão e reconciliar as facções sob uma única observância comum, válida tanto aos espirituais como aos comunitários. Depois de várias tentativas de apaziguamento, tanto da parte dos papas como dos ministros gerais da Ordem, através de capítulos gerais e diversos documentos, foi oferecido aos frades menores um documento pontifício como proposta de uma definitiva determinação para a observância regular comum. Assim, o Papa Clemente V (1305-1314) promulgou no dia 6 de maio de 1312, na última sessão do Concílio de Viena, a bula Exivi de Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 187 HERMÓGENES HARADA Paradiso10. A bula se destacava pela moderação e esforço de conciliação. Admoesta a corrigir os abusos cometidos contra a pobreza, exige a seriedade em assumir a observância regular e propõe buscar a vida religiosa franciscana segundo o espírito de São Francisco. Mostra benevolência no que diz respeito à busca da vida franciscana mais autêntica, como exigiam os espirituais, mas no que toca à observância estrita ad litteram da pobreza, coloca como a medida comum a todos os frades a pobreza segundo o espírito de São Francisco acolhida dentro da compreensão determinada pelas inúmeras e sucessivas interpretações dadas nos documentos e fixada nas Constituições Gerais da Ordem. Para evitar a continuação e o recrudescimento das hostilidades entre as facções que se manifestavam nas perseguições, até mesmo físicas dos comunitários aos espirituais em minoria, Clemente V providenciou que se estabelecessem condições para eliminar ressentimentos e represálias. Assim, por exemplo, o provincial de Provença e 15 guardiões, que tinham tido comportamento demasiadamente rude e duro contra os espirituais, foram demitidos e substituídos por superiores mais benevolentes e imparciais para com os espirituais. Desse modo, sob o pontificado de Clemente V os espirituais se sentiram protegidos contra a perseguição dos comunitários e se conformaram com as determinações da bula Exivi de Paradiso. Tanto o Papa Clemente V como o Ministro Geral Gonçalves de Valboa (1304-1313)11 intensificavam a campanha de pacificação, convocando todos os membros da ordem a se unirem sob a observância regular proposta pela “Exivi de Paradiso é um documento extenso, cheio de esperança para uma maior reforma da Ordem. O papa provavelmente pensou que, se ele vigiasse os relaxamentos e ordenasse certas reformas a serem executadas, a Ordem se tornaria mais unida e isso atuaria com maior eficiência na obra que ele e seus predecessores esperavam dela. Mas as divisões tinham se tornado por demais profundas para poderem ser sanadas facilmente com um golpe de caneta” (MOORMAN, J. op. cit. p. 204). 10 Ensinou como regente em Paris, mestre de Duns Scotus, escreveu importantes tratados filosóficos sob o nome Gonsalvus Hispanus. 11 188 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 OS ESPIRITUAIS, HOJE? bula Exivi de Paradiso, exigindo de todos os frades menores, comunitários e espirituais a submissão aos seus superiores, tanto provinciais como Geral, combatendo todo e qualquer movimento de separação ou cisma. Com a morte de Clemente V em 1314, sucedeu-lhe João XXII (1316-1334)12. Com a morte do Ministro Geral Gonçalves de Valboa (1304-1313) sucedeu-lhe Alexandre de Alessandria (1314-1315) e a este, Miguel de Cesena (1316-1328). Tanto o novo papa como os ministros gerais da Ordem continuaram a campanha de unificação e pacificação, e pressionaram cada vez mais energicamente a submissão dos espirituais com tendências separatistas aos superiores provinciais e gerais, ao mesmo tempo em que pressionavam os comunitários a se reformarem para uma vida religiosa franciscana mais autêntica, conforme indicada e recomendada na bula de Clemente V. O novo Ministro Geral Miguel de Cesena trabalhou para que a bula de Clemente V fosse seguida por todos os membros da Ordem. Tentou acalmar a justa indignação dos espirituais contra os abusos dos comunitários e sua perseguição movida por eles. O Provincial de Provença, Etiene Alberti, em nome do ministro geral ofereceu aos espirituais perdão por tudo que se passou. Mas estes se perguntavam: perdoar o que, se o crime que eles cometeram não era outra coisa do que querer viver mais autenticamente o ideal de São Francisco e, depois da bula de Clemente V, de praticar a Regra franciscana conforme as determinações da bula Exivi de Pradiso. Recusaram pois a oferta do perdão, protestando contra os comunitários que demoravam em executar as reformas indicadas por Clemente V. João XXII, bem diferente de Clemente V, no caráter e no modo de lidar com a autoridade, estava como Clemente V determinado a manter a unidade da Ordem e restabelecer a concórdia entre espirituais João XXII foi feito cardeal por Clemente V no ano de 1312. Seu nome de nascimento é Jacques de Duèze. 12 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 189 HERMÓGENES HARADA e comunitários. De natureza enérgica, autoritário, se mostrou desde o início, à diferença do seu antecessor, pouco inclinado aos espirituais, principalmente contra os mais radicais. Entrementes, os comunitários consideravam que a morte do Papa Clemente V e do Ministro Geral Gonçalves de Valboa anularam as determinações e decisões tomadas em favor dos espirituais. Para a consternação dos espirituais, os superiores demitidos, devido a sua hostilidade exacerbada contra os espirituais, foram reintegrados nas suas funções anteriores. Indignados com essas e outras manobras dos comunitários, os espirituais do convento de Narbona e de Béziers recorreram ao papa e com ajuda dos habitantes da cidade expulsaram os comunitários de seus conventos e recolocaram como superiores os guardiães anteriores. Imediatamente um grande número de frades amigos da mesma província e até mesmo da província vizinha de Aquitânia se uniram aos “rebeldes” e constituíram uma fraternidade de 120 frades em dois conventos13. 1.2 O fim dos espirituais Esse acontecimento desencadeou novas hostilidades e um novo processo contra os espirituais de Provença e da Itália. João XXII mandou vir à sua presença Ubertino de Casale, Ângelo Clareno e dois outros representantes dos espirituais de Narbona para uma reunião, exigindo explicações sobre diversos pontos em litígio. Pelo modo Diz Gratien: “No capítulo provincial reunido em Carcassona (no fim de 1315 ou no início de 1316), tudo isso que se fez ilegalmente foi ilegalmente confirmado. Na custódia de Narbona foi colocado como superior Guilherme d’Astre, um dos adversários mais decididos dos espirituais. Dois dos superiores antigos, que contra todo o direito tinham tomado parte no capítulo, foram designados como delegados da Provença ao Capítulo Geral convocado em Nápoles para Pentecostes do ano seguinte (27.05.1316)” (GRATIEN DE PARIS, op. cit. p. 487). 13 190 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 OS ESPIRITUAIS, HOJE? como recebeu as explicações destes e pelos atos que se seguiram, se percebe que o papa já tinha a sua própria opinião formada sobre os espirituais, e que tinha tomado partido pelos comunitários. Assim, depois dessa audiência que se dá no fim do ano de 1316 ou no início de 1317, Ângelo Clareno foi colocado na prisão. No dia 27 de abril de 1317, o pontífice convocou 62 dos mais agitados “rebeldes” espirituais à sua presença e mandou que os outros fossem dispersos em diferentes conventos da província. Ubertino de Casale, porém, não foi convocado. Mas um certo frei Bernardo Délicieux (Dulcino), um inimigo ferrenho da inquisição e mais um outro frade, se ajuntaram voluntariamente aos acusados. Desses, frei Guilherme de Santo Amando, Geoffroy de Cornone, François Sanches e também Bernardo Délicieux tomaram a palavra para se defenderem e reivindicarem o direito de separar-se da Ordem dos frades menores e de fundar uma nova ordem. João XXII os meteu numa prisão, e os restantes foram colocados no convento de Avignon para serem vigiados até uma posterior determinação. Esta veio no dia 7 de outubro de 1317 com a bula Quorumdam exigit com apelo “à obediência” religiosa. Dos 60 espirituais que no convento de Avignon aguardavam novas determinações sobre seu futuro, 25 resistiram. Depois de os interrogar de novo, ao ver a sua decisão firme de não ceder, o ministro geral os entregou à mercê da Inquisição14. Cinco desses 25 frades negaram insistentemente “o direito ao papa de poder modificar a observância da Regra que, segundo eles, era o mesmo que o evangelho”. Foram condenados, 4 deles ao suplício e morte na fogueira e 1 à prisão perpétua. Segundo Gratien de Paris, João XXII, antes de publicar a bula teria provavelmente conversado com Ubertino de Casale. Este vendo que o papa não permitia aos espirituais de observar a Regra dos frades menores, O inquisidor era frade e se chamava Miguel de Moine e era um dos guardiães demitidos por Clemente V em 1313. 14 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 191 HERMÓGENES HARADA longe da jurisdição dos superiores comunitários, percebeu que não tinha chance de permanecer na Ordem e pediu ele mesmo a autorização de deixar a Ordem. No dia da publicação da bula Quorumdam exigit (7 de outubro de 1317) Ubertino de Casale, esse defensor ardoroso dos espirituais, foi incorporado ao mosteiro beneditino de Gembloux (na diocese de Liége)15. Segundo Gratien de Paris, mesmo antes da publicação da bula Exivi de Paradiso (1312), alguns dos espirituais de Toscana, perseguidos duramente pelos superiores dos comunitários, ocuparam vários conventos; depois, em número de uns quarenta, fugiram para a Sicília sob a condução de certo frei Henrique de Ceva, para escapar das censuras eclesiásticas. Foram acolhidos benevolamente por Frederico, rei da Sicília. A bula Quorumdam exigit ainda não era a condenação expressa dos espirituais, mas era um prenúncio. A condenação veio depois do interrogatório dos 25 “rebeldes” de Narbona, na bula Sancta Romana de 30 de dezembro de 1317. Nessa bula João XXII “condena e reprova todos os espirituais da Itália, da Sicília, do Condado de Tolosa, de Narbona e Provença, seja qual for a denominação sob a qual se escondem: Fraticelli, ou Irmãos da vida pobre16. E isto, apesar dos privilégios que eles pretendem ter obtido de Celestino V, privilégios aliás abolidos por Bonifácio VIII. Com eles são condenados os bizoques e os béguines, que tinham se tornado seus adeptos e exigiam hábito da Ordem Terceira”17. Os espirituais de Toscana, refugiados em Sicília ao redor de Henrique de Ceva estavam englobados nessa condenação. Mas João GRATIEN DE PARIS, op. cit., p. 493, nota 31. Segundo Holzapfel, não sabemos se foi efetuada a incorporação. Provavelmente não se deu a entrada de Ubertino na Ordem beneditina. Por ocasião do seu aparecimento posterior, Ubertino é chamado de ex-minorita, mas não ex-beneditino (cf. op. cit. p. 64). 15 Quanto à denominação Fraticelli cf. GRATIEN DE PARIS (op. cit. p. 497, nota 39). 16 17 GRATIEN DE PARIS, op. cit. p. 495-6. 192 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 OS ESPIRITUAIS, HOJE? XXII fez questão de emitir a bula Gloriosam Ecclesiam de 23 de janeiro de 1318, que os condenou e os excomungou especialmente. Concluamos esse parágrafo sobre o fim dos espirituais com a observação de Gratien de Paris: assim, “a comunidade em fim teve a última palavra sobre os espirituais. A causa deles estava perdida definitivamente. Os documentos Quorumdam exigit, Sancta Romana e Gloriosam Ecclesiam os tinham decepado para sempre da Ordem dos Frades Menores”18. 2 O espírito dos espirituais19 Segundo Teodosio Lombardi, os manuais da história da Ordem Franciscana falam dos frades implicados na luta acima relatada, divididos em três grupos: dos “zelanti”, dos “moderati”, dos “rilassati”, portanto em zelantes, moderados e relaxados. Essa classificação, aliás muito geral não serve para especificar e caraterizar os espirituais e os comunitários. Pois essas qualificações genéricas podem ser atribuídas, sob diferentes pontos de vista, tanto aos espirituais como aos comunitáriOp. cit. p. 496. Em nossa exposição, omitimos falar mais sobre João Pedro de Olivi, Ângelo Clareno e Ubertino de Casale, sobre seus pensamentos e sobre suas lutas e seus sofrimentos, e sobre o fim que levaram. Tudo isso pode ser lido em detalhes na bibliografia que indicamos bem no início de nossa exposição. Pois embora a exposição fale dos espirituais, o seu tema é na realidade o que está implícito no ponto de interrogação final do título, o qual podemos caracterizar, como já foi insinuado acima, como ponto de perplexidade da interrogação. 18 O título desse segundo capítulo exige uma boa exposição sobre doutrinas principais, mística e espiritualidade dos líderes principais do movimento dos espirituais, principalmente de João Pedro de Olivi e também de Ângelo Clareno e Ubertino de Casale. Não nos é possível uma tal pesquisa, não somente por causa da economia do espaço, mas principalmente pela limitação do nosso saber. Aqui, porém, entendemos a palavra espírito na acepção menos exigente, menos objetivo-real, mas já dentro do ponto de vista da interrogação subjetivo-particular, o qual queremos começar a colocar, embora de modo bem insuficiente e vago. 19 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 193 HERMÓGENES HARADA os ou a quaisquer outros grupos humanos20. Por isso, não se pode admitir que houvesse então facções organizadas como “partidos” dos zelantes, moderados e relaxados. Daí não se deve pensar que os espirituais fosse um nome usado para indicar os religiosos observantes, fiéis e zelosos, numa acepção geral. Do mesmo modo, o termo rilassati não indica tout court os comunitários; e moderati os que estariam no meio, no sentido de ser equilibrado, politicamente correto, na acepção usual defasada do dito latino: virtus in medio. Analogamente, a classificação: os da direita, os da esquerda, e os do centro; os tradicionalistas ou fundamentalistas, os progressistas, e os em cima do muro; ou os talebãs e os liberais, não seriam classificações de adequação precisa, embora tanto nos espirituais como nos comunitários se encontrem fenômenos que poderiam ser enquadrados nos binômios acima mencionados e outros. Não devemos pois entender a atitude dos espirituais a partir e dentro da ratio divisionis da classificação zelanti, moderati e rilassi. É mais claro e metodicamente mais enxuto considerar os espirituais como facção, algo como um “partido” dentro da Ordem franciscana, com o seu modo de ser e pensar todo próprio e minoritário, a ser estudado melhor a seguir. Evitemos, pois de lançar sobre a classificação-binômia espirituais – comunitários a malha de uma outra classificação tripartita zelanti, moderati e rilassi21. Resumindo, a divisão tripartita zelanti, Dentro dos espirituais, por exemplo, na perspectiva do rigorismo de observância externa, poderia haver pessoas zelosas, moderadas e relaxadas, que na perspectiva de bom senso na compreensão da essência da observância externo-material poderiam ser inversamente relaxadas, moderadas e zelosas. O mesmo se poderia dizer dos comunitários. Na literatura franciscana, porém, o termo zelanti é usado para indicar os discípulos mais próximos de São Francisco da primeira e mesmo da segunda geração dos frades menores que eram zelosos e zeladores da conservação do espírito originário deixado por São Francisco. 20 Cf. LOMBARDI, T. op. cit. p. 145: “Numa Ordem que, naquela época, contava com cerca de 40.000 indivíduos, as pessoas envolvidas no movimento ‘espiritual’ não ultrapassavam talvez a cifra de duzentos frades, e praticamente o problema dizia respeito às três províncias de Provença, Marca de Ancona e Toscana. Se o fenômeno espirituais teve tanta ressonância não foi por sua entidade numérica, mas pelas questões, trazidas à fala e pelas implicações que tiveram conseqüência sobre a questão da pobreza”. 21 194 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 OS ESPIRITUAIS, HOJE? moderati e rilassi é de conotação valorativa, moral, ao passo que, a divisão da classificação espirituais e comunitários conota concepção, compreensão e modo de ser da referência ao ideal e ao espírito originário de São Francisco. 2.1 A pobreza, o espírito dos espirituais? Assim, para perceber o que especificamente caracteriza o móvel da causa dos espirituais devemos considerar que o binômio que expressa as posições contrárias da questão em litígio entre as duas facções soa espirituais – comunitários ou comunidades, e não, por exemplo, espirituais e materiais, ou espirituais e pouco ou mesmo não espirituais, ou espirituais e mundanos etc. Atrás desse modo de oposição expressa no binômio espirituais-comunitários se esconde o pivô da questão franciscana. Segundo o texto citado de Lombardi, esse pivô se chama a questão da pobreza. É interessante anotar que no tempo da luta entre os espirituais e os comunitários a questão da pobreza significa “questionamento crítico acerca da pobreza franciscana”. No início, na origem da Ordem, em São Francisco e em seus primeiros companheiros, a “questão da pobreza” significa a busca apaixonada e apaixonante, de vida e morte, com adesão total e incondicional de toda a existência de quem busca, no nosso caso, de São Francisco de Assis e de cada um dos seus primeiros companheiros. Portanto nada a ver com questionamento ou crítica; nada a ver com a busca de explicação de como deve ser a pobreza, se material ou espiritual; se obriga tal qual está escrita no Testamento ad litteram ou já interpretada pelos homens. Essa paixão, essa absoluta positividade, palpável, real, sim “físico-material”, digamos corpo a corpo, esse sim incondicional à pobreza é sentido por todos nós, quando lemos os Escritos de São Francisco, na sua Regra em três versões, em suas admoestações, em suas cartas, em suas orações, e principalmente no seu Testamento. A intensidade dessa busca, dessa adeScintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 195 HERMÓGENES HARADA são à busca vem à fala de modo inequívoco nas primeiras biografias de São Francisco e nas coletâneas das narrações sobre os episódios e ensinamentos de São Francisco transmitidas no início oralmente22. Esse amor à pobreza, personificada como Senhora Pobreza e o encontro de união esponsal com ela, é o que caracteriza na origem da Ordem a questão, a busca da pobreza. Essa busca aparece nítida e claramente, segundo estudiosos da coisa franciscana, no escrito, o mais antigo sobre São Francisco, intitulado Sacrum Commercium Sancti Francisci cum Domina Paupertate. Diz Sacrum Commercium: “Francisco, como verdadeiro imitador e discípulo do Salvador, no princípio da sua conversão, dedicou-se com todo o empenho, com todo o desejo e com toda a deliberação a procurar, encontrar e conservar a Santa Pobreza, nada duvidou de adverso, nada temeu de sinistro, não se esquivou de nenhum labor, nem declinou de nenhuma angústia corporal, se lhe fosse dada apenas a possibilidade de chegar àquela a quem o Senhor entregou as chaves do Reino dos céus”23. Temos assim, por exemplo, a Legenda dos três companheiros, Legenda Perusina, O espelho da perfeição, os Atos do bem-aventurado Francisco e seus companheiros (I Fioretti de São Francisco de Assis) etc. 22 Sacrum Commercium de São Francisco com a Senhora Pobreza. Santo André: Editora Mensageiro de Santo Antônio, 2002, p. 20-21. Cf. BRUFANI, Stefano, “Il Sacrum Commercium: L’identità minoritica nel mito delle origini”, in: Dalla “Sequela Christi” di Francesco d’Assisi all’Apologia della Povertà, Atti del XVIII Convegno Internazionale (Assisi, 18-20 ottobre 1990), Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo, Spoleto, 1992, p. 203-222; Cf. BRUFANI, Stefano, “Sacrum Commercium Sancti Francisci cum Domina Paupertatis”, Introduzione, in: Fontes Franciscani, a cura di Enrico Menestò e Stefano Brufani e di Giuseppe Cremascoli, Emore Paoli, Luigi Pellegrini, Stanislao da Campagnola, apparati di Giovanni M. Boccali, Assis: Edizioni Porziuncola, 1995, p. 1693-1703; Cf. MANSELLI, R. “Evangelismo e povertà”, in: Povertà e ricchezza nella spiritualità dei secoli XI e XII. Atti dell’VIII convegno del Centro di Studi sulla spiritualità medievale (Todi, 15-18 ottobre 1967) Todi, 1969, 11, compl. p. 9-41. Cf. HARDICK, Lothar, “Pobreza, pobre”, in: Dicionário Franciscano. Petrópolis: Vozes/Cefepal, 1993, p. 586-599, cf. p. 587. 23 196 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 OS ESPIRITUAIS, HOJE? 2.2 A questão da pobreza, uma luta pelo espírito originário? O amor à Pobreza como ela aparece na sua límpida transparência nos Escritos, nas palavras, nas atitudes de São Francisco e seus primeiros companheiros no início, na origem da Ordem é pois o ponto nevrálgico ao redor do qual se desencadeia o movimento dos espirituais, nas suas reivindicações. Os espirituais se consideram como herdeiros legítimos da tradição autêntica do espírito de São Francisco. Assim, nas suas reivindicações, nas críticas às comunidades, na insistência em reclamar pela reforma urgente da observância mais estrita da pobreza, na persistência em afirmar que o Testamento é a consumação da Regra, e que por isso mesmo é tão obrigatório quanto a Regra etc., os espirituais se interpretam, se vêem como continuadores e participantes, sim partidários da luta pela observância da estrita Pobreza, da questão, isto é, da busca, corpo a corpo, de vida e de morte, do espírito originário de São Francisco, portanto, do carisma fundacional da Ordem franciscana24. Mas então, se tudo isso que os espirituais dizem e sentem de si tem um fundamento, por que foram tão rejeitados, combatidos e perseguidos, a ponto de alguns deles pagar a sua fidelidade ao espirito originário de São Francisco, portanto ao carisma fundacional da Ordem, com prisão, exílio, e sim até com a própria morte, como foi sucintamente relatado no primeiro capítulo dessa exposição? Segundo alguns documentos eclesiásticos, segundo certos escritos da espiritualidade cristã, carisma fundacional é o espírito, i. é, o sopro vital, o vigor essencial que, recebido através do seu fundador, faz surgir, crescer uma ordem ou congregação religiosa, unificando-a, vivificando-a, constituindo a sua identidade. Carisma fundacional de uma ordem ou de uma congregação é concreção, é corporificação, o vir à fala da insondável e inesgotável fonte da vitalidade espiritual da Cristidade que é Jesus Cristo, o Carisma do Pai, i. é, o esplendor e a manifestação da graça e da beleza do amor do Pai. Cf. JOÃO PAULO II, A vida consagrada. exortação apostólica pós-sinodal sobre a vida consagrada e a sua missão na Igreja e no Mundo. São Paulo: Paulus, 1996; Cf. FASSINI, Dorvalino Frâncico. Vida consagrada e formação. Porto Alegre: Província São Francisco de Assis, 2002. 24 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 197 HERMÓGENES HARADA As pesquisas historiográficas, com sua abordagem bem diferenciada e acurada, nos fazem suspeitar que a “coisa” ou melhor “a causa” não é tão simples assim. Aqui surgem perguntas, por exemplo, como essa: tudo isso que dissemos do carisma fundacional, da experiência e inspiração originária de São Francisco, donde é que sabemos de tudo isso? Ou é algo que a priori supomos como já existente, como algo verificável? Trata-se apenas de uma hipótese da Espiritualidade, ou é uma “realidade” perceptível, embora se exija para isso uma percepção toda própria, chamada espiritual? Não é assim que tudo isso que dizemos da experiência de São Francisco, por ser ela a mais íntima e pessoal e existencial, só pode ser captada nela mesma, ao passo que ela na realidade nos é transmitida através dos relatórios dos seus discípulos? E mesmo que fossem obras escritas ou ditadas pelo próprio Francisco, não chega a nós através de manuscritos, cuja transmissão até nós implica uma tradição complexíssima dos manuscritos, portanto através de uma transmissão mediada pelos pósteros, acerca de Francisco e dos seus escritos? E mesmo lá onde temos com toda certeza ou com grande probabilidade textos escritos pelo próprio punho de Francisco, donde é que tiramos o significado, o sentido de suas palavras? Já não as entendemos, a partir e dentro da representação ou imagem do Santo, transmitida pelos primeiros biógrafos de São Francisco? Assim, embora amemos Francisco, nos fascinemos por esse nosso irmão menor, tão simples, humilde e pobre; embora o acolhamos na afeição e confiança da simplicidade filial dos seus seguidores e admiradores, nós hodiernos, estudados ou não, somos colocados diante de todas as dificuldades que as ciências historiográficas em sua acribia e paixão pela “veracidade” histórica nos apresentam, não para “complicar” inutilmente com sua racionalidade e racionalização “intelectualista” a vivência da simplicidade e pureza, da inocência vital da espiritualidade, mas a partir e dentro da paixão científica pela verdade crítico-histórico-científica. 198 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 OS ESPIRITUAIS, HOJE? Ao se considerar o que acima chamamos de carisma originário fundacional, que se revela através da experiência originária de São Francisco e de sua inspiração, sob a perspectiva historiográfico-científica, acima mencionada, percebemos que a imagem “originária” de Francisco, a sua “prima et ultima intentio”, a sua “vida de pobreza estrita, radical” aceita sine glossa, sine glossa, sine glossa, pode já ser produto da compreensão que os primeiros companheiros de São Francisco, os seus primeiros zelantes discípulos herdeiros e curadores do “Espírito” franciscano, portanto os proto ou pré-espirituais, principalmente da Úmbria, transmitiram aos seus discípulos, tornando por assim dizer ocasiões ou mesmo causa do espiritualismo e do ideal de autenticidade que mobilizava e conduzia os espirituais da era posterior à luta, à autoafirmação25. No que toca à compreensão do espírito e espiritual, na exigência dos espirituais de voltar a e de conservar o espírito originário de Francisco, os traços captados por eles da fisionomia humano-espiritual de S. Francisco, na colheita biográfica das primeiras “vidas” do santo parecem estar retocados com coloração de sublimação e super-valorizados por uma aura de “vitae perfectae et merae contemplationis et raptus”26, que tanto Francisco como vários de seus primeiros companheiros parecem não mais viver na “De tudo isso, emerge a constatação, em si óbvia e deduzida, de que grande parte dos pressupostos do drama dos espirituais postula não somente interlocutores umbros, mas se configura sobre uma “silhueta” de Francisco e do seu ideal originário, delineada pelos discípulos zelanti umbros, mantenedores da vontade e das intenções ‘literais’ do Mestre e, ao mesmo tempo, depositários dos ‘secreta ordinis’ que eles transmitem oralmente ou por escrito” (STANISLAO DA CAMPAGNOLA, op. cit. p. 84); “Frei Tiago de Massa obteve essa história da boca de frei Leão; e frei Hugolino do Monte de Santa Maria, da boca de frei Tiago. E eu que escrevo, obtive-a da boca de frei Hugolino, homem digno de fé e bom”. Actus do bem-aventurado Francisco e dos seus companheiros, tradução sob a responsabilidade de frei Dorvalino Fassini OFM, São Paulo: Mensageiro de Santo Antônio, 1997, cap. 9, v. 71. 25 “Vida perfeita e da pura contemplação e êxtase”. É uma expressão freqüente nas “vitas” dos companheiros de Francisco, colecionadas nas Chronica XXIV Generalium. 26 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 199 HERMÓGENES HARADA terra das vicissitudes da existência humana, mas no céu de um espiritualismo diáfano, cuja sublimidade sabe ao misticismo que não conhece a Encarnação27. A nossa veneração e amor filial para com São Francisco e seus primeiros companheiros nos faz pensar sem mais que esses pré-espirituais ou os proto-espirituais, santos seguidores da altíssima pobreza e contemplação, imitavam a São Francisco, em vivendo a vida de oração e penitência na solidão dos eremitérios ou em pequenas moradias, modestas e pobres no campo, cheios de vitalidade, santidade, autenticidade do seguimento cristão. Examinando-se esse estilo pobre de vida, sob o ponto de vista mais crítico e historiográfico, a vida no eremitério pode significar não somente ou não necessariamente uma manifestação de engajamento ao ideal originário. Segundo Stanislao da Campagnola, esse retirar-se na vida solitária, em eremitério “não representava somente um traço de fidelidade ao ideal da origem, um momento no qual o ideal aparecia minado, seja pela nova atividade pastoral a qual se dedicavam agora os frades menores, seja pela realidade social dentro do imprevisível desenvolvimento urbano que impelia os religiosos a abandonar as moradias primitivas e precárias para se inserir nos aglomerados citadinos”28. Na medida em que a ordem crescia rapidamente em número, e com a entrada dos doutores, dos estudantes universitários, dos sacerdotes, de uma ordem predominantemente de irmãos leigos, se transformava numa ordem clerical, com exigência e necessidade de uma formação acadêmica cada vez mais “excelente”. A ordem comandada por esses novos elementos mais progressivos assumia novas tarefas, responsabilidades e desafios de evangelização, abriam-se novas fronteiras de pregação, missão, de pastoral; a vida comum se estruturava de modo novo, bem diferente do da vida primitiva. Nesses itens os frades zelosos e zelantes do espírito originário da Ordem apresentavam uma tendência que poderia induzir à suspeita, se no fundo essa vida nos eremitéri27 Cf. STANISLAO DA CAMPAGNOLA, op. cit. p. 87. 28 Id. Op. cit. p. 88, nota 50. 200 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 OS ESPIRITUAIS, HOJE? os não era uma espécie de fuga. Assim, o eremitério, e juntamente com ele a vida pobre, cheia de vicissitudes nas intempéries, ausência de objetos de luxo e de comodidades, ao mesmo tempo em que expressava lugar de intensa busca espiritual ou quem sabe espiritualista, se tornava também lugar de refúgio, onde se evitava ter que suportar o convívio com os comunitários, suas teses e seus modos diferentes de viver a vida “fraternal” em comunidade do mesmo ideal franciscano e se confrontar com decadências e afrouxamento da observância, existentes nos comunitários. Por outro lado, havia o grupo dos “observantes” comunitários, e segundo a sua auto-interpretação, grupo dos que tentavam manter-se autênticos no seguimento do espírito de São Francisco, mas evitando de fixá-lo na forma quase fundamentalista de ver o espírito originário de Francisco a modo dos espirituais mais radicais. Esse grupo, que era a maioria, se abria aos desafios e às necessidades dos tempos novos, auscultando os sinais dos tempos, implícitos nas situações da evolução da ordem em várias dimensões, e combatia o grupo minoritário dos espirituais como um grupo de rigoristas, fundamentalistas e separatistas. Essa oposição, em vez de fazer crescer para um confronto sério de cada posição consigo mesma e para um exame mais radical e clarividente dos seus próprios princípios e normas, desandou para uma disputa que crescia cada vez mais na fixidez de medidas, na compreensão da vida franciscana, ao redor de exterioridades e questiúnculas jurídicas, sem mais estar na inspiração da essência do ser cristão, pulsante, por exemplo, na imagem de São Francisco e de seus primeiros companheiros. 3 Espírito franciscano, hoje? Como já foi mencionado no início, o termo hoje com o seu ponto de interrogação expressa perplexidade. Perplexidade diante de um “fenômeno” da contradição interna dentro da Ordem franciscana. Dis- Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 201 HERMÓGENES HARADA semos também que essa perplexidade é de caráter subjetivo-particular. Em que sentido é subjetivo-particular, isso deve ser explicado melhor. Para isso, de tudo que viemos dizendo acerca dos espirituais, tentemos destacar um estado da questão e assim explicar de que se trata, quando designamos o ponto de interrogação como perplexidade que se expressa num ponto de inter-esse da existência chamada franciscana, cujo pivô está na pré-compreensão toda própria e singular do ser espiritual29. Para colocar o estado dessa questão subjetivo-particular da nossa perplexidade, recorramos a alguns dados tirados e resumidos a nosso modo, do verbete-artigo já mencionado, de Giulia Barone em Dizionario degli Istituti di Perfezione, vol. 8, verbete “Spirituali”, col. 2034-2040. Há na Ordem Franciscana um ponto nevrálgico, bem escondido e bem enraizado no cerne, o mais íntimo e profundo, digamos no coração do seu destinar-se, isto é, da sua história, cheia de lutas, sofrimentos e empenhos, que é algo como matriz, donde surgem e para onde convergem inúmeros e diversos problemas e conflitos, experimentados a duras penas pelos frades menores, em todas as épocas e em todos os lugares como acenos de um retorno contínuo a uma única e total interrogação da busca, isto é, da questão franciscana. Esse ponto de interrogação de onde e para onde se move a espiral da questão franciscana do espírito (isto é, do sopro vital), originário da sua identidade é: Francisco de Assis. É por isso que a questão dos espirituais inicia-se e já vem à fala na própria vida de Francisco, na origem e evolução da Ordem, e vem a nós através dos tempos, em multifárias vicissitudes da existência franciscana em repetição. Qualificamos esse “ser do espiritual” de subjetivo-particular, porque nas questões franciscanas, ao falarmos por exemplo do espírito originário de São Francisco e dos seus primeiros companheiros, é costume compreender “espírito” e “espiritual” dentro da classificação de uma compreensão predeterminada de que o espírito, o espiritual é próprio da “realidade” interior do sujeito, portanto, subjetiva, e que por ser subjetivo pessoal, individual, privativo e particular não possui propriamente uma validade comum, objetiva, geral. 29 202 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 OS ESPIRITUAIS, HOJE? De que problema se trata nessa questão? Historiograficamente ele aparece, por exemplo, de modo bem concreto no fato mencionado e analisado por Barone, a saber: 5 anos antes da sua morte, Francisco, fundador e alma da Ordem franciscana renuncia ao seu cargo de ministro geral da Ordem. Por que?30 Acerca do por quê dessa decisão há várias sugestões de interpretação. Mencionemos as principais: • A constatação, da parte de Francisco, dos limites do seu corpo, cujas forças se debilitavam cada vez mais, devido às enfermidades e fraquezas. Trata-se, pois, de cansaço e da sábia percepção precisa da inadequação de suas forças e capacidades diante das tarefas cada vez mais exigentes, complexas e volumosas, principalmente em referência às exigências administrativas dessa Ordem que se expandia e tomava forma e corpo de proporção européia • Talvez pressentindo a morte iminente, a tentativa de concentrar todas as suas forças para dedicar-se inteira e indivisamente à tarefa do líder carismático, no fomento e na consolidação espiritual dos membros da Ordem, deixando outros tipos de tarefas e atividades, principalmente as administrativas, a outros. • A impossibilidade interna de assumir como coordenador geral a liderança da Ordem por ele fundada, cujo carisma fundacional Francisco sente ter recebido do Senhor, na sua evolução para direção, forma e modo de ser do crescimento, escolhidos por uma facção dos influentes na Ordem e da própria Igreja Romana. Esta encorajava, exortava, tecia elogios e favorecia a Ordem com inúmeros e abundantes privilégios, dava-lhe tarefas novas, importantes, encargos e títulos, para que a Ordem dos frades menores se tornasse no seu modo de ser, 30 Cf. FRANK, I. W. Franz von Assisi, Frage auf eine Antwort. Düsseldorf, 1982. Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 203 HERMÓGENES HARADA digamos, cada vez menos diversa das outras ordens, para poder colocála a serviço do próprio programa de evangelização, para combater heresias, para assim transformá-la numa grande e poderosa instituição eclesiástica à disposição dos planos missionários, pastorais e até mesmo políticos da Igreja Romana no fomento, manutenção e expansão da sua influência e do seu poder. Sem excluir nenhuma dessas motivações acima mencionadas para a explicação do por quê do fato da renúncia de São Francisco do Generalato, 5 anos antes da sua morte, o último item apresentado acima parece explicar melhor todo o movimento de conflitos e lutas no fim do primeiro século da origem e da evolução da Ordem franciscana, entre os assim chamados espirituais e comunitários. Como já foi rapidamente mencionado no capítulo 2.1, o pivô da questão que cria o binômio espirituais e comunitários se chama a questão da pobreza. Essa questão da pobreza nas suas discussões entre os espirituais e os comunitários, na tentativa de definir a essência da vida franciscana, girava ao redor de questões como: quando se luta pela pobreza, trata-se da pobreza material ou espiritual? viver sem nada de próprio ou no uso dos bens, sem ser seu proprietário? se é só uso, e não posse, é uso pobre – usus pauper – ou uso moderado – usus moderatus? o Testamento de são Francisco deve ser assumido como obrigatório, juntamente com a Regra, como consumação da própria Regra, portanto deve ser vivido sine glossa ou apenas como uma admoestação “espiritual”, não obrigatória, com interpretações apropriadas para situações da mudança da época e circunstâncias? Todo esse leque de questões, se examinarmos bem, embora atrás de todas essas posições divergentes sempre de novo se possa encontrar uma faísca de pulsões de grande ou pequeno amor à causa franciscana, na sua forma e nas suas ações são modus deficiens da questão, cuja essência possui um outro hálito, isto é, espírito que vem da inspiração originária, em cujo toque 204 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 OS ESPIRITUAIS, HOJE? o indivíduo Francisco é São Francisco de Assis. O toque da inspiração originária sob cujo impulso Francisco é aquele que é, não empiricamente, mas propriamente no vigor do ser da sua essência se chama: Seguimento de Jesus Cristo. O ponto de interrogação hoje portanto incide justamente nisso: a essência do ser franciscano vivido e transmitido por São Francisco, e isto, mesmo ou apesar do retoque “espiritualista” feito tanto pelos pré-espirituais como também pelos espirituais não consiste na pobreza nem estrita, nem moderada; não no Testamento sine glossa, nem na Regra segundo o modo como a sábia Igreja interpreta para o fomento da Ordem através dos séculos; nem na penitência, nem no minorismo ou fraternismo, nem na contemplação, nem na união mística, nem na evangelização; mas sim tout court, imediata e concretamente, corpo a corpo, no Seguimento de Jesus Cristo, nada mais, nada menos. Dito de outro modo, em vez de interpretar o Seguimento em o classificando a partir de pobreza, Testamento, Regra, penitência, minorismo, fraternismo, vida comum, vida eremítica, contemplação, mística, tentar compreender todas essas assim chamadas categorias fundamentais da espiritualidade em geral e principalmente da espiritualidade franciscana, a partir e dentro da compreensão ela mesma própria do Seguimento de Jesus Cristo31. Acima dissemos que no coração do destinar-se da Ordem franciscana, a matriz donde surgem e para onde convergem as vicissitudes da história da Ordem em todas as suas dimensões, sublimidades e decadências, donde e para onde pulsa a vida franciscana em todos os tempos e lugares, em todas as suas interrogações, este ponto da matriz-de-fundo No modo como está formulada uma tal colocação é insuficiente, é simplista. Assim, podem surgir mil e mil objeções contra a proposta, que são muito úteis para não cairmos no simplismo. Isto principalmente porque o seguimento não é uma categoria entre outras categorias espirituais, nem um conceito genérico que subsume outros conceitos qualificativos do ser franciscano debaixo da sua extensão. Aqui surge uma questão dificílima da hermenêutica, num sentido todo especial, que ora não podemos tratar adequadamente. 31 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 205 HERMÓGENES HARADA para onde se move a espiral da questão franciscana do espírito originário da sua identidade é: Francisco de Assis. Mas Francisco de Assis não é outra coisa do que a personificação do Seguimento de Jesus Cristo. Daí o aceno: Franciscus alter Christus. Este se corporifica como Pobreza estrita, sine glossa do Testamento, o Cristo Crucificado que é denominado como figura feminina: a Senhora Pobreza. Portanto, todos os termos que se referem a Francisco, pessoa-matriz do ser franciscano coincidem com o Seguimento, corpo a corpo, nu e cru, numa concreção-identidade, do Cristo Crucificado: a Senhora Pobreza. Mas tal colocação é impossível! Pois, factualmente, isto alvora o indivíduo Francisco na sua vivência pessoal subjetivo-particular, sim, digamos inefável, para não dizer irracional na medida matriz de todo o ser franciscano32. E quem me garante que tudo que acima insinuamos sob os termos como Seguimento, Alter Christus, Pobreza estrita, Senhora Pobreza, e mesmo Cristo Crucificado, na sua compreensão, não passa de simples fantasia, especulação, certamente cum fundamento in re, mas inteiramente subjetivo-particular, se não tanto dos primeiros companheiros de São Francisco, ou de seus primeiros biógrafos, portanto dos pré-espirituais, dos espirituais da primeira geração, e através destes dos espirituais da segunda geração, e assim por diante, mas também da terceira, quarta, e dos espirituais e espiritualistas de todos os tempos? O nosso ponto de interrogação, cheio de perplexidade, de não saber o que dizer e o que pensar incide portanto nesse ponto da realidade, há pouco acima nomeado como o seguimento, corpo a corpo, nu e cru, numa concreção-identidade, do Cristo Crucificado, da Senhora Pobreza. Aliás, é a isto que chamamos vagamente na espiritualidade de É o que fazem os espirituais, quando apelam para a vida de Francisco e seu Testamento contra a interpretação amenizada da vida da pobreza dos comunitários. Assim, os espirituais se fazem um grupo que acentua a experiência pessoal, individual, ao passo que os comunitários, um grupo que coloca o acento na vida comum. 32 206 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 OS ESPIRITUAIS, HOJE? dimensão do espírito originário e da experiência de São Francisco, a partir e dentro da qual termos como espírito, os espirituais, espiritual, recebem pretensamente o seu sentido. Que se não saiba nem o que dizer nem o que pensar pode vir e vem certamente da limitação individual, subjetivo-particular. A tal ponto que um tema assim, uma interrogação assim, nem se quer deveria ser mencionada num artigo ou numa escrita que de alguma forma tem caráter de ser público, pois tais questões são pseudo-problemas. Espírito e espiritual são termos que todo mundo compreende e sabe o que é de imediato, obviamente como os termos vida, ser, amor, Deus, pobreza, Cristo Crucificado etc. Assim está de alguma forma justificado o caráter privativo, particular e subjetivo do ponto de interrogação do título do nosso tema: Os espirituais, hoje? Com o risco de a nossa interrogação perplexa subjetivo-particular permanecer ou tornar-se cada vez mais privativo-pessoal, tentemos caracterizar melhor a interrogação, formulando a questão através de alguns dos seus pontos mais nevrálgicos. 3.1 A dimensão chamada espírito? Se observarmos as contraposições de discussões entre os espirituais e os comunitários, percebemos de imediato que os espirituais ao insistir na “volta à origem”, ao São Francisco, se engajam na vida de autenticidade e na renovação do ser franciscano, acentuando a vivência, a experiência, a santidade e perfeição pessoal, a exemplo de São Francisco e seus primeiros companheiros. Ao passo que os comunitários acentuam mais a busca da estruturação comunitária e participação no grupo social, como comunidade institucional constituída com determinadas tarefas e metas; são, pois, frades que querem ser franciscanos, aceitam a espiritualidade de São Francisco, mas constituem não mais apenas pequenos ajuntamentos fraternais de irmãos que viviam de modo muito pobre e primitivo nas pequenas moradias, nos eremitérios, nos lugares Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 207 HERMÓGENES HARADA quaisquer da zona rural, mas sim em grandes conventos, casas de estudo, nas cidades, com mentalidade mais urbana, digamos, progressista, crescendo e se instalando cada vez mais como uma grande instituição eclesial, com novas tarefas, encargos, se adaptando às exigências e às necessidades dos novos tempos, a pedido e exortação da Igreja. Assim, se usarmos uma classificação hodierna, sem entrar no mérito da validez de sua “ratio divisionis”, podemos dizer que os espirituais viviam, mutatis mudandis, a vida religiosa franciscana no estilo e na concepção de uma espiritualidade subjetiva, particular, de perfeição e santidade pessoal, ao passo que os comunitários no estilo e na concepção de uma espiritualidade eclesial-social para não dizer eclesiástico-monacal modernizada. Porque a espiritualidade de perfeição e santidade pessoal lida com a esfera íntima, pessoal, subjetivo-particular, os espirituais nos aparecem acentuadamente edificantes e intensos na piedade, contemplação e virtudes; são homens “interiores”, de muita fé e edificação, mas um tanto unilaterais, sem muita abertura para a dimensão eclesialsocial, fechados numa compreensão quase fundamentalista da vida religiosa, alienados das novas exigências e necessidades das novas épocas. Assim, toda a questão, queiramos ou não, mesmo cientes de outros aspectos e de outras perspectivas, acaba se reduzindo à problemática do relacionamento entre um espiritualismo centrado na esfera íntima pessoal, subjetivo-particular do homem, e uma espiritualidade centrada na dimensão social comunitária eclesial33. Numa colocação, assim superficial e simplificada, podemos dizer que do lado da esfera pessoal está por exemplo a vida interior, o cultivo da oração pessoal e da piedade, a contemplação, o relacionamento vertical com Deus, na intimidade de Tu a Tu, a santidade e a perfeição pessoal, o cultivo das virtudes, as vivências, o coração, o carisma, a intuição, o viver intensamente a vida pessoal, em pequenas fraternidades, de modo caseiro etc. Do lado da esfera eclesial-social e comunitária temos: a doação aos irmãos, a ação, as responsabilidades pelo mundo, pela sociedade, pela humanidade, o engajamento pelos valores ético-social-políticos, o conhecimento, o interesse e a preocupação pelos estudos e as ações sociais, a familiaridade com o jurídico, com a disciplina, com a sistematização, o poder, a organização, a qualidade máxima, a excelência dos seus empreendimentos, na gestão e administração etc. 33 208 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 OS ESPIRITUAIS, HOJE? Sem dúvida, uma tal explicação classificatória, sem analisar cada vez o fenômeno concreto como tal, não leva em conta os entre-cruzamentos nessas variações de diferentes perspectivas que, por sua vez podem mudar de polaridades, criando com o avolumar-se das variações, um emaranhado quase inescrutável de significações. E pode muito bem ser que todas essas significações classificatórias sejam, em grande parte, projeções das nossas dificuldades e medidas, lançadas sobre as colocações medievais dos problemas dos espirituais. Mas, seja como for, o ponto de insistência dos espirituais, seja da segunda ou da primeira geração, em voltar a e conservar o espírito originário transmitido por São Francisco e dele herdado, que se expressa como Seguimento de Jesus Cristo, Pobreza, Testamento etc. etc. não pode ser devida e propriamente captado, se o classificarmos como pessoal, subjetivo e particular ou moral, místico ou piedoso no sentido usual. O título desse terceiro capítulo soa Espírito franciscano, hoje? A essa altura da exposição, começa a surgir uma inquietação, uma espécie de frustração, ou melhor digamos perplexidade. É que estamos marcando passo, girando vazio, no vazio a modo de antigas locomotivas, das assim chamadas “maria fumaça”. A locomotiva “maria fumaça”, puxa filas de vagões, carregados de imenso peso; mas não consegue ir para frente numa subida, porque o peso puxa para trás todo o combóio, de tal sorte que mal consegue segurar o conjunto que por assim dizer fica parado, mas que está sendo puxado pela locomotiva da frente, cujas rodas giram freneticamente, marcando passo, no vazio. Esse medium da perplexidade de não saber o que dizer, o que pensar, como que ao dizer girando no vazio, numa repetição infrutífera nos pode induzir a compreendermos melhor o que se quer dizer com interrogação subjetivo-particular da perplexidade. Aqui, a essa altura da reflexão, a interrogação perplexa e titubeante, se expressa mais ou menos Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 209 HERMÓGENES HARADA como que num ímpeto, surgido da própria perplexidade, numa espécie de reação indignada contra tantas hesitações e senões intermináveis: Para que tanta lenga lenga de perspectivas e pontos de vista, por que não dizer direta, imediata, simplesmente, sine glossa, isto é, concreta e imediatamente a coisa ela mesma do espírito franciscano: viver como, imitar, seguir a Cristo pobre, humilde, crucificado? Mas, quem vive e pode viver assim tão abstrato-formalmente, tão “espiritualmente”, assim tão direto, sem mediação, tão radical, sim “irracional”, “coisal”, sem levar em conta as vicissitudes da Terra dos Homens? Que um indivíduo ou alguns indivíduos, santos, radicais ou quem sabe fanáticos talebãs consigam viver uma tal existência religiosa, tudo bem, talvez fosse possível; isto, no entanto, é para poucos, pouquíssimos. Mas uma comunidade inteira que cresceu rapidamente e se tornou uma ordem? Não devemos, pois, distinguir entre São Francisco, indivíduo e a sua vida espiritual, interna, subjetivo-particular, sua história e experiência pessoal e a vida e a história da comunidade da Ordem em evolução e crescimento como uma grande instituição eclesial-eclesiástica? Não é assim que, por mais que o fundador de um movimento tenha sido santo, genial, criativo, ele como indivíduo, a sua história pessoal não pode prender o movimento ou a ordem a fixar-se nele, mas sim libertá-la para a sua missão, tarefa e inspiração? O fundador, ele mesmo, não é apenas primeiro passo, uma etapa inicial que deve ser deixada para trás, que deve ser superada? Esses e outros arrazoados similares fazem com que a questão dos espirituais perca inteiramente a sua força, o seu mordente, e se transforme num problema factual da falta de equilíbrio, de bitolamento ideológico e fixidez mental ou problema de não adaptação à evolução e crescimento de um movimento que a partir de uma existência interna espiritual pessoal individual se desenvolve para um organismo social comunitário, adaptado às novas exigências da época. Nesse sentido, 210 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 OS ESPIRITUAIS, HOJE? Stanislau da Campagnola, falando dos líderes dos espirituais Pedro João de Olivi (†1298), Ângelo Clareno (†1337) e Ubertino de Casale (†1329), diz: “eles estavam cercados de uma fileira de numerosos discípulos e admiradores. Sendo de inteligência aguda, eram no entanto de pouca elasticidade e sem capacidade de adaptação; com idéia fixa, além disso, de que a pobreza era a expressão integral do franciscanismo. Assim, eles não chegaram a ou não quiseram reconhecer o ideal franciscano na mais ampla integridade da vida evangélico-apostólica, confundindo entre eles Evangelho e Regra franciscana e negando ao papado o direito de comentar e adaptar a Regra às exigências do apostolado e da santificação contemporânea”34. 3.2 O vazio da perplexidade como espírito, hoje? No entanto, diante de todas essas interrogações, que parecem esvaziar e neutralizar o sentido da luta dos espirituais pela vida franciscana originária, no que ela tem de mais real, mais engajado, relativizando-a em infindas classificações determinativas da questão, isto é, da busca do espírito originário de São Francisco de Assis, a interrogação subjetivo-particular e pessoal da perplexidade pode ser medium no qual “algo” como sentido da busca dos espirituais, portanto, o sentido do que é espiritual e espírito na experiência da existência franciscana em São Francico e seus primeiros companheiros pode começar a aparecer. Se de fato aparece e vem à fala, é uma outra questão. Mas que se prepare, que se disponha a receber a possibilidade do espírito, o gosto pelo sabor ou saber do espírito, seja talvez a possibilidade impossível denominada hoje. Essa possível impossibilidade hoje é a objetividade das nossas abordagens “na vida e nas ciências” da dimensão-espírito. E o STANISLAO DA CAMPAGNOLA, L’ Angelo del sesto sigillo e l’ Alter Christus (genesi e sviluppo di due temi francescani nei secoli XIII-XIV, Roma: Ed. Laurentianum/Ed. Antonianum, 1971, p. 233. 34 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 211 HERMÓGENES HARADA que denominamos de subjetividade das vivências e experiências da vida interior, da espiritualidade do cultivo pessoal da alma na sua santidade e perfeição é variante da objetividade, colocada no mesmo “galho”, mas no polo oposto, que continuamente dá “galhos”, cujo emaranhado de pontos de vista dos diferentes enfoques objetivista-científicos especializados nos coloca em perplexidade que por sua vez, se não estamos vigilantes, nos empurram para a simplicidade, imediatez das vivências, do sentir o coração, que não é outra coisa do que a reação ressentida contra a objetividade, portanto uma modalidade da objetividade, colocada na mesma bitola da plataforma horizontal de um balanço, no extremo oposto ao da objetividade. 3.2.1 Um texto espiritual dos espirituais Depois dessa observação um tanto à margem do fio condutor da nossa exposição, experimentemos ouvir um trecho do texto dos espirituais na fala de um dos seus representantes mais profundos na compreensão do que é espírito no sentido da volta ao espírito originário de São Francisco. O texto é de Ângelo Clareno, na sua famosa escrita O livro das Crônicas35. Diz Clareno no início do Prólogo de O livro das Crônicas: “A vida de São Francisco, homem de Deus, pobre e humilde (cf. Sl 82,3), foi escrita por quatro importantes pessoas, todos frades preclaros pela ciência e santidade. São eles: João e Tomás de Celano, Frei Boaventura, um dos ministros gerais após Francisco, e Frei Leão36, homem de admirável simplicidade e santidade, companheiro do mesmo beato Francisco”. O trecho aqui exposto foi tirado da acurada tradução feita do latim por frei Orlando Bernardi OFM. A tradução está para ser publicada em breve. Frei Orlando generosamente permitiu que tirássemos o trecho do texto. 35 Sobre o relacionamento entre esses quatros biógrafos, cf. GRATIEN DE PARIS, op. cit. Introdução, VII-XXI. 36 212 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 OS ESPIRITUAIS, HOJE? “Quem ler e diligentemente examinar (...) o quanto ali se narra, poderá conhecer (...) a vocação do Seráfico Pai, sua conversão, sua santidade, sua inocência, sua vida e sua intenção primeira e última. Além disso conhecerá como Cristo o amou de modo singular e se mostrou benigno e familiar com ele, purificando-o, iluminando-o e informando-o. Depois o atraiu a si para que seguisse os passos de sua perfeição e por último, aparecendo-lhe como Crucificado, o transformou de tal maneira em si mesmo que a partir de então não mais viveu para si, mas totalmente crucificado com Cristo (...)”. “Cristo Jesus o considerou fiel, obediente, agradecido, simples, reto e humilde conforme seu coração (cf. Ap 1,5; 1 Sm 2,35). Revelou-lhe então a perfeição primeira e última de sua vida evangélica, de sua mãe, de seus apóstolos e evangelistas. Abriu-lhe seus ouvidos (cf. Is 50,5) e o formou, com mão forte (cf. Is 8,11) nas coisas celestes, incorruptíveis e perfeitas e se colocou a si mesmo em seu coração, em sua boca e em seu braço (cf. Ct 8,6) (...)” Resumindo, seguem as palavras de Cristo a Francisco, onde Cristo revela a Francisco, passo a passo a realização da sua missão, recebida do Pai, que culmina na Cruz, e a escolha dos seus seguidores e continuadores da sua missão. Continuando a citação do texto de Clareno, Cristo diz a Francisco “os que escolhi como meus seguidores, foram configurados em minha morte (Cf. Fl 3,10) e associados a minhas dores e paixões (cf. Fl 3,10) e entenderam o início da abertura do livro da vida (cf. Ap 20,12) onde está escrito a comunicação do meu amor” (...). “Nosso Salvador Jesus Cristo ao lhe aparecer disse: Francisco, segue-me (Cf. Mt 9,9; Mc 2,14; Lc 9,59; Jo 2,19) e mantenha-te preso aos vestígios de minha vida pobre e humilde. Configurar-te e assemelhar-te a mim de maneira sensível, intelectual e eficiente é a finalidade de minhas promessas e da perfeição da graça e da glória. Na verdade, se aderires a mim com todo o teu coração, com toda a tua alma, com toda a Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 213 HERMÓGENES HARADA tua mente e com todas as tuas forças (cf. Dt 6,5; Lc 10,27), de tal maneira que todo pensamento esteja em mim e de mim parta, que toda tua palavra saia de mim, para mim e esteja diante de mim e todo o teu agir seja sempre por causa de mim e para a maior honra e glória (cf. 1 Tm 1,17; Ap 4,11; 5,12) de meu nome, então serás meu servo e eu estarei contigo e falarei por tua boca (cf. Is 41, 9.10; Ex 4,12.15). Quem te ouvir me ouvirá (cf. Lc 10,16), quem te receber me receberá (cf. Mt 10,41), quem te bendisser será abençoado (cf. Gn 12,3; 27,29) e quem te amaldiçoar será amaldiçoado (cf. Gn 12,3; 27,29)”. Observemos brevemente esse texto, só para percebermos a tonância, em que ele pode estar e ser ouvido, se de antemão não o classificamos como um texto projetado subjetivamente por um sujeito que está imbuído de uma espiritualidade de perfeição e santificação pessoal do estilo espiritualista37. O que detectamos como acréscimo subjetivo sobre o fato, através de fórmulas e formulações padronizadas de uma espiritualidade dos espirituais – sem negar a objetividade de todos esses acréscimos – pode estar acenando para uma compreensão mais própria da história, não tanto a partir do binômio objetivo-subjetivo, mas sim como participação criativa na recepção livre do sopro vital, isto é, Com outras palavras, como já foi observado anteriormente, seja qual for a nossa constatação factual das palavras e dos atos dos espirituais, desde os mais altos e sublimes até os mais bitolados, fundamentalistas e intransigentes, aquilo que neles há de mais interessante como o fundo, como o toque inicial de suas intenções, não pode ser devida e propriamente captado, se o classificamos como pessoal, subjetivo e particular, místico ou piedoso no sentido usual, e se não tentamos renovar a compreensão do que seja o espírito e o espiritual, de modo inteiramente radical e novo. E o comentário que segue acima é, do ponto de vista objetivo, mera “chutação” especulativa. Serve somente para criar um vazio perplexo de interrogação, onde talvez se torne possível um espaço menos fixo de indagação. É que pode haver a fixidez numa indagação, onde se abrem continuamente interrogações, sem se dar conta de que as próprias interrogações, mesmo que sejam contrárias, sim contraditórias entre si, são produtos do mesmo horizonte, donde haurem suas significações, como que do mesmo fundo do sentido do ser já bem determinado. 37 214 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 OS ESPIRITUAIS, HOJE? do espírito originário do toque da existência humana no destinar-se do seu ser como pessoa-humana. Essa participação ao destinar-se do ser da existência humana como pessoa-humana poderia ser o sentido mais de acordo com o que chamamos de historicidade. Assim, façamos brevemente um excurso sobre o que denominamos fato histórico. 3.2.2 Excurso: historicidade da história como factualidade? Clareno fala da vida de São Francisco. A vida aqui seria na nossa linguagem, hoje, biografia. A biografia deve ser objetiva. Falar dos fatos reais, averiguados e averiguáveis de um sujeito ou sujeitos, aqui no nosso caso, de Francisco de Assis, que de fato existiu. Tudo quanto não é verificável e verificado como fato, pode ser útil e influenciar a confirmação ou não dos fatos, mas não pertence aos fatos objetivos, mas sim à esfera subjetiva de interpretação pessoal, particular, quer de um indivíduo, quer de um grupo de indivíduos, que comungam da mesma experiência e vivência. Essa maneira já preestabelecida de entender a vida humana como fatos biográficos, objeto da pesquisa, parece caracterizar a abordagem historiográfica que hoje apresenta cuidado, exatidão, diferenciação acurada na abordagem do objeto da sua pesquisa, levando em conta todos os elementos também subjetivos. No fundo, porém, na última instância, o que dá certeza, garantia da verdade da pesquisa é o fato e sua averiguabilidade, a confirmação da realidade como fato. No entanto, na compreensão do que seja fato histórico, usualmente quem não está acostumado com a precisão e acurada diferenciação que encontramos nas abordagens das ciências historiográficas, confunde o fato e sua factualidade com a coisa e coisidade de um realismo ingênuo. E representamos o fato histórico como se ele fosse algo como uma coisa física, ocorrente e existente diante de nós como esta ou aquela coisa. Essa maneira de representar o fato como coisa física é resto decadente de um modo de pensar e interScintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 215 HERMÓGENES HARADA pretar a realidade que denominamos concepção substancialista do universo. Fato histórico não é substância nesse sentido deficiente. Por isso, não pode ser tratado como se fosse substância. A concepção substancialista no seu vigor originário é todo um mundo de compreensão profunda da realidade, cuja expressão temos, por exemplo, na concepção grega e medieval do universo. São Francisco e as “coisas” franciscanas, cuja epocalidade é medieval, só pode ser entendida, a fundo e na sua riqueza, se levarmos em conta e a sério que o fundo ontológico da paisagem histórica primitiva do franciscanismo é a concepção substancialista medieval. A palavra-chave, na qual se expressa de modo optimal a idéia da substância é pessoa. Por isso, toda a ontologia, portanto o conceito do ser na intuição originária do pensamento medieval é Pessoa. Ser por excelência é Deus, o Ens a se. A aseidade aparece de modo próprio e único como pessoa. Só que em vez de pessoa se usava mais a palavra ser ou melhor espírito38. A decadência consiste em hoje entendermos a substância, não como todo um mundo de paisagem, cujo fundo ontológico é espírito ou pessoa, mas como produto da entificação concentrada como átomo-algo, abstrato e formal. Esse algo é o resto abstrato e formal de uma compreensão da substância já coisificada. A palavra fato vem do latim factum. Factum é particípio passivo passado do verbo facere (facio, feci, factum, facere = faço, fiz, feito, fazer) e significa feito. O fato é pois o que está sendo ou foi feito. Nesse sentido, o perfeito é o que foi feito, atravessando ou através de (per = de cabo a rabo), isto é, de início até a consumação, passando por mil e mil peripécias e vicissitudes do destinar-se de uma vida (isto é, da história). Consumação aqui não é simplesmente o último ponto de uma série de sucessão de pontos; nem o início, o primeiro ponto dessa mesma sucessão. Essa maneira linear de representar o ser ou destinar-se Sobre esse assunto, cf. ROMBACH, Heinrich. Substanz, System, Struktur. Die Ontologie des Funktionalismus und der philosophische Hintergrund der modernen Wissenschaft. Band I. Freiburg i. Br. / München: Verlag Karl Alber, 1965, p. 57-78. 38 216 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 OS ESPIRITUAIS, HOJE? da existência humana, mesmo que se o represente dinâmica e evolutivamente, não traz à fala o próprio do tornar-se humano, mas o reduz ao modo de mover-se de uma coisa a modo físico-geométrico, abstrato-formal. Os medievais usam muito o verbo facere, fazer. Usualmente, como nós hodiernos compreendemos o verbo fazer, como fabricar, produzir, operar, obrar? A nossa perplexidade em não conseguirmos captar bem em que consiste o sentido do fazer, presente vagamente em todas essas acepções do fazer e seus sinônimos, parece indicar que o seu sentido foi formalizado, isto é, esvaziado do conteúdo para funcionar como indicativo de uma atuação a modo geral, neutro, indiferente ao processo de engajamento constitutivo do ser da existência humana. Fazer sofre entre nós a redução do seu sentido ao achatamento significativo, geral e formal de um modo de ser, cuja entificação produz ente a modo de coisa-algo abstrato, como instante geométrico de pontos referenciais de movimento também formalizado, vazio de conteúdo. Ser aqui é algo; algo no algo; algo ao lado do algo; algo no algo no algo no algo e conjunto de algos que por sua vez não passam de pontualização atomizada de um quê... E o movimento desse quê, a atuação sobre esse quê é fazer. Por isso o feito assim, o fato é representado como algo ocorrido como ponto-coisa. Nesse sentido dizemos: aconteceu ou não aconteceu? É fato? Existiu? Ocorreu? Para o medieval, no entanto, facere como verbo não é propriamente um ato do sujeito. É antes um certo nível da intensidade e do modo de ser substância bem concreto e vivo que constitui por assim dizer o primeiro grau na escalação da atuação de ser, que conforme a intensidade e grau de excelência nas diferentes ordenações das esferas do ser, culmina no modo de ser do em si e do a se, cujo sentido é o sentido optimal de todo o fazer, agir, atuar, produzir que é: ser. E o ente no qual esse ser vem à fala de modo o mais excelente se chama Deus Criador. Trata-se aqui de uma concepção totalizante do ser, isto é, ontologia. Do ser, entendido não como ser do ente na acepção da factualidade da ocorrência de algo (“ontologia” Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 217 HERMÓGENES HARADA em certas manualísticas que opõem ou enfileiram uma ao lado da outra, “ontologia” e “antropologia”), mas entendido como desvelamento e ocultamento do sentido do ser, o mais vasto, o mais profundo e o mais originário, que cada vez de novo e sempre novo se abre (e se oculta ao mesmo tempo) como possibilidade de ser como clareira através da qual surgem mundos. Nesse sentido, o que denominamos “filosofia medieval”, que ao nosso ver não é outra coisa do que “teologia e mística” medieval, é ontologia, isto é, sentido do ser, vindo à fala como uma possibilidade criativa da gênese do mundo da vitalidade, criatividade do espírito, isto é, do sopro vital, dinâmica do modo de ser pessoa; tudo, isto é, cada ente no seu ser não é outra “realidade” do que gênese, isto é, nascimento, crescimento e consumação da vontade do encontro. Essa vontade do encontro, como o ser da existência medieval na sua concretização empírica como “cristianismo” medieval, recebe o nome de Amor de Deus (na acepção do genitivo subjetivo e objetivo), cujo vir à fala se chama encarnação. Essa vontade do encontro na sua ordenação estruturante aparece como gênese, conservação e consumação do universo, como comunicação do ente supremo denominado Deus, do seu ser na bondade difusiva de si como doação de si a cada ente, sempre novo e de novo, e na pertença de cada ente, sempre novo e de novo como participação no ser dessa doação como recepção alegre e cordial da filiação divina; e isto desde a mais ínfima e insignificante esfera dos entes sem vida, materiais, até a suprema excelência do ser-pessoa, denominada Deus, numa escalação dimensional da intensificação do ser que sucessivamente recebe os nomes alma (anima: vida vegetal como dinâmica da autoalimentação); ânimo (animus: vida animal como dinâmica do sentir, isto é, da sensibilidade como automobilização, automotivação, autoconstituição); razão (ratio, animal rationale: vida como dinâmica de autocriação, isto é, abertura e estruturação do sentido do ser que possibilita o nascer, o crescer e o consumar-se como decisão de ser na concreta e encarnada possibilida218 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 OS ESPIRITUAIS, HOJE? de de um mundo novo como época, como histórica, isto é, expansão e convergência da unidade ordenada como totalidade: uni-verso. E a partir do Homem (como animal, isto é, ânimo racional) se deslancha o constituir-se, o auto-estruturar-se contínuo de ordenação de mundos; de mundos cada vez novos e cada vez retomados na sua totalidade, desvelando as diferentes intensidades e qualificações no crescimento do ser-pessoa como dimensão do intelecto, espírito, mente até se adentrar na possibilidade do ser, descrita como ser in se no modo de a se (pessoa) isto é, ser de Deus, cujo ser é chamado por Mestre Eckhart de deidade. Esse ser do serpessoa como abismo do mistério do Amor de Encontro e do Encontro do Amor Trino e Uno, fonte e dinâmica da possibilidade insondável e inesgotável da nossa filiação divina, é o ontologicum, o feito, o fato primordial originário do pensamento medieval. Para o medieval e seu texto, quando ali se fala de espírito e espiritual, é necessário ter-se em mente toda essa paisagem da ontologia medieval, em toda a sua diferenciação e dinâmica da sua estruturação, da sua dinâmica, força mobilizadora da existência humana medieval. E isto provavelmente vale também, e quem sabe, principalmente de alguém como Ângelo Clareno, como nossos confrades medievais denominados “espirituais”, quando falam do sentido primeiro e último da existência franciscana. 3.2.3 Em se referindo por cima à paisagem de fundo do texto de Clareno A história e a historicidade, cuja gênese do ser vem à fala como “mística-onto-teológica” acima insinuada, possuem “razões e corações” que a factualidade historiográfica desconhece, por classificá-las como pertencentes à dimensão factual da vivência individual subjetiva e particular de uma experiência moral, piedosa e religiosa. Ao passo que a pressuposição básica dos medievais, portanto, por exemplo, dos espiScintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 219 HERMÓGENES HARADA rituais, é exatamente que os feitos narrados39 como experiência de Jesus Cristo e de seus seguidores, no nosso caso de São Francisco e de seus primeiros companheiros, são “realidades” fundamentais ontológicas, das quais toda e qualquer realidade e seus fatos recebem o seu significado, seu sentido, o quilate da sua “realidade e realização”. Ontologia aqui significa, pois, a medida optimal na excelência da intensidade qualitativa do ser. Sendo assim, em primeiro lugar e de antemão, isto é, a priori, o fato originário é a experiência pessoal, isto é, a modo do ser-pessoa e enquanto modo de ser-pessoa, chamado Francisco, no encontro corpo a corpo, de alma a alma, portanto, “pessoal”, “íntimo” com Cristo Crucificado e no vir à fala do “Espírito do Senhor e do seu santo modo de operar”40. A assim chamada experiência pessoal (tida por nós como particular, individual e subjetiva) de São Francisco não é um fato entre outros fatos, mas sim o vir à fala do feito originário. É a concreção da facticidade, do lance do horizonte, a partir e dentro do qual todos os outros fatos devem ser entendidos e recebem o seu sentido. A história e a historicidade que dali se deslancha, sua Surge a pergunta: esses fatos narrados são fatos no sentido de interpretação historiográfica objetiva ou subjetivo-pessoal? Podemos agravar a pergunta: a pergunta que pergunta se os fatos narrados são objetivos ou subjetivos é um fato no sentido historiográfico ou subjetivo? Aqui percebemos que o nosso interesse historiográfico já de antemão emposta a pergunta na averiguação e confirmação da certeza da ocorrência de uma ou mais experiências como fato ocorrente. E não se volta na pergunta sobre a sua própria pergunta, indagando o sentido do ser que sub-põe na compreensão do que seja ocorrência. Com isso, de antemão, supõe que, para serem reais, os “conteúdos” dos fatos devem ter o mesmo modo de ser da ocorrência. Como, porém, eles escapam dessa “malha” grossa de “suposição” significativa, são considerados subjetivos, menos reais. A questão se agrava ainda mais porque os termos como pessoal, particular, individual, dentro dessa perspectiva, são como que sinônimos de subjetivo, ao passo que o índice da excelência no ranking da realidade vai para o que denominamos de geral, comum, sem se perceber que esse tipo de generalidade ou comunidade está ocultando uma intersubjetividade dominante toda própria, cuja tipicidade vai na direção do inter-esse da previsibilidade e calculabilidade de um modo de saber quantitativo-físico-matemático, cujo ser não está suficientemente analisado. 39 40 SÃO FRANCISCO DE ASSIS, RB, X, 9. 220 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 OS ESPIRITUAIS, HOJE? transmissão, seu proceder seguem então a lógica desse fenômeno da facticidade originária primordial. Por isso na seqüência histórica da transmissão da herança franciscana relatada por Clareno, por primeiro vem o mais antigo historiador, João Celano; depois o seguinte, Tomás de Celano, e depois o mais recente, São Boaventura; e de repente o anterior aos historiadores como que os envolvendo, como que indicando a repercussão primordial do toque originário, aquele que pertence à origem, frei Leão. Temos assim a sucessão: João de Celano, Tomás de Celano, frei Boaventura} • Frei Leão ← São Francisco} ⇐}O Espírito do Senhor e seu santo modo de operar: = Jesus Cristo Crucificado do Mistério da Encarnação. Dito com outras palavras: o modo de ser, ver, sentir, agir e atuar, no qual a realidade não é constituída e interpretada enquanto realidade a partir e dentro do “realismo” ontológico a modo da realidade físico-material, mas sim a partir do ser, isto é, do sentido do ser que vem à fala no modo de ser-pessoa, no seu ser, ver, sentir, querer, agir e atuar, considerando todas as outras dimensões do ser como concreção-repercussões em diversos níveis e áreas desse mesmo sentido do ser, é a concepção dos entes na sua totalidade, característica do pensamento medieval, fundo da paisagem da fala, por exemplo, dos espirituais. Essa concepção se chama espiritual, pois um tal sentido do ser chama o ser de espírito41. Esse espiritual, esse espirito, porém, não tem nada a ver com a divisão dos entes pelo binômio material-espiritual, matériaespírito da metafísica. É antes a palavra-chave, o conceito-chave do pensamento medieval, para indicar o sopro vital, a vida, a essência do que a Boa Nova do Evangelho chamou de Amor de Deus (genitivo subjetivo: amor que Deus tem para conosco), a se, difusivo de si, do Amor Não se trata, pois, de espiritualismo. A interpretação da vivência e experiência pessoal dos medievais como espiritualista, pietista, misticista etc., distorce a perspectiva da concepção medieval, pois interpreta o sentido do ser todo próprio denominado espiritual do pensamento medieval, a partir do sentido do ser, cuja característica é a dominância e dominação do binômio subjetividade-objetividade, sujeito-objeto. 41 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 221 HERMÓGENES HARADA que nos amou primeiro, e se nos doou pessoal, livremente em Jesus Cristo, seu Filho encarnado e crucificado, nos fazendo seus filhos, para participarmos da Plenitude da Realização, que consiste na RealidadeMistério do Amor da Santíssima Trindade na Realidade-Mistério da Encarnação. É o que São Francisco chama de Espírito do Senhor e do seu santo modo de operar. Se tudo isso é válido, o texto de Ângelo Clareno acima citado, onde fala do relacionamento de intimidade profunda e pessoal de Cristo com Francisco, e de sua radical e total entrega a Ele, não é outra coisa do que, à semelhança da ponta visível de um iceberg submerso, manifestação pontualizada de toda uma riquíssima possibilidade inesgotável e insondável do ser. Essa realidade originária, o toque primordial, o “big bang” do universo medieval cristão é a condição da possibilidade da compreensão, da realização da história do mundo franciscano, da sua origem, sua evolução, da sua estruturação e lógica, do sentido da sua crise e de lutas internas. Não é ela, essa realidade, o ser-espírito, que sempre de novo acompanha cada passo das vicissitudes do ser franciscano, no destinar-se de cada epocalidade, até hoje, com insistente, penetrante indagação, críticoquestionante do sentido do ser franciscano, o ser da história franciscana e sua historicidade? Para além, ou melhor, para aquém de toda a polêmica, de todas as vicissitudes de controvérsias, rixas, intrigas, estreitamento do ânimo e da inteligência, da ambição do poder, ressentimentos, sofrimentos e heroísmos de entrega e abnegação dos espirituais, das atitudes ambíguas, imposições autoritárias, mas também das preocupações e cuidados pastorais e pastoralistas da parte da Ordem e da Igreja, sim para além ou para aquém de tudo isso, o verdadeiro sentido da “rebelião” dos espirituais contra os comunitários não significaria em última instância o aceno da necessidade livre de retomada, sempre nova e cada vez mais precisa e radical “das questões franciscanas”, a partir e dentro do horizonte da Cientificidade própria que vem do Espírito do Senhor e do seu modo de operar? 222 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 OS ESPIRITUAIS, HOJE? Conclusão Se observarmos bem as colocações das reivindicações dos espirituais, principalmente de um Ângelo Clareno, de um João Pedro de Olivi, percebemos no fundo de todas as suas articulações e formulações na luta pela pobreza, seja explicita, seja implicitamente, um questionamento muito agudo sobre o ser do espírito da Ordem, da Igreja e da Sociedade, que parece ameaçar certas teses fundamentais sobre as quais a Ordem, a Igreja e a Sociedade medieval de então firmavam sua estabilidade, ordem e paz. O título desse artigo é Os espirituais, hoje? O problema, como foi dito, é esse ponto de interrogação. Interrogação que ao estar perplexo, sem saber o que dizer e o que pensar dos espirituais e do seu espírito, desandou numa lenga lenga que parece não saber bem o que pergunta...Talvez esse tema teria sido excelente ocasião para mostrar como, tanto na Ordem como na Igreja, domina sempre de novo a empáfia, a política do poder que por fim acaba abortando, asfixiando movimentos de renovação e de volta à fonte originária de inspiração e aspiração carismática. Ou, numa outra versão, de mostrar como todo e qualquer movimento de renovação carismática, se não cuidar, se não se abrir aos sinais dos tempos, ou não ficar atento às sábias admoestações e orientações da Igreja acaba virando fanatismo e fundamentalismo talebã... Em vez de aproveitar de todas essas chances de desdobramento, a exposição acabou de modo muito diletante, questionando no fundo as abordagens historiográficas da questão dos espirituais, perguntando, o que são fatos, história e historicidade para essa abordagem historiográfica. E indagando, de modo muito pretencioso-ignorante, se nas questões franciscanas não está faltando uma abordagem mais precisa sobre o que está realmente em questão quando se fala de espírito e espiritual, como se fosse possível escapar aos grandes e profundos conhecedores da causa franciscana uma tal questão. E pior, terminando Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 223 HERMÓGENES HARADA a reflexão com uma apelação piedosa, melhor piega de uma posição classificável como eflúvio espiritualista de uma espiritualidade de perfeição pessoal, particular e subjetiva, falando do Espírito do Senhor e do seu santo modo de operar...!?? Assim, por fim, a nossa exposição, demonstrou ao vivo a perplexidade pessoal, subjetiva, expressa no ponto de interrogação do título Os espirituais, hoje? * À guisa de uma nota final: Espírito de São Francisco, Ordem franciscana, dos frades Menores, nós de alguma forma espirituais..., nós franciscanos, o que somos, quem somos, afinal realmente, quando abordamos o espírito de seguimento de São Francisco, o Espírito do Senhor e do seu santo modo de operar, assim historiograficamente, sem entrarmos na crise da perplexidade acerca do nosso ser-franciscano? E nós, ao mesmo tempo, modernos, intelectuais, de alguma forma historiográficos, ou ao menos acadêmicos, pertencentes à grande comunidade da humanidade do saber científico, o que somos, quem somos afinal, realmente, quando vivemos, nos movemos e somos no horizonte do saber crítico-científico, quando julgamos, sim até somos capazes de desprezar a ignorância dos simples e iletrados, falamos de tudo, da religião, da espiritualidade, da religiosidade popular, do espírito, do passado, dos outros povos não europeus, sem entrarmos na crise da perplexidade diante do nosso saber, pensando saber o saber do nosso saber, certo, objetivo, objetivante e objetivista, num dogmatismo ontológico acerca do ser, do sentido do ser, da realidade, sem assumir a acribia e paixão pela busca dos fundamentos do nosso saber, na precisão e no zelo da dúvida radical, característica da nossa cientificidade moderna? Como o nosso artigo, no fundo, não disse nada ou pouco conseguiu dizer, tentemos salvá-lo, citando a Introdução, escrita por Kierkegaard para o seu livro Com temor e tremor, falando do saber de Descartes e da Fé de Abraão: * “Não somente no mundo do agir, mas também no mundo das idéias, o nosso tempo agencia uma verdadeira liquidação. Tudo se compra num preço tão irrisório que surge uma pergunta, se por fim se ache alguém que tem ainda oferta. Cada escrivão especulativo, que conscienciosamente coloca ponto no í sobre o passo significativo da nova Filosofia, cada docente, repetidor, estudante, cada marcador e instalado na Filosofia, não permanece insistente em duvidar de tudo, mas vai adiante. Talvez fosse intempestivo e inadequado lhes perguntar, aonde, pois chega propriamente; mas certamente é cortês e modesto, considerar como suposto que tenha duvidado de tudo, já que senão seria estranho dizer que tenha ido adiante. Esse movimento prévio certamente todos o têm feito e se supõe que o tenham feito com tal facilidade, que não acham ser necessário gastar uma palavra, nem sequer, sobre a pergunta: como aquele que com angústia e preocupado busca, encontraria algo como uma pequena informação, como um aceno condutor, uma pequena norma dietética, de como se deve comportar diante dessa imensa tarefa? “Mas Cartesius o tem feito!?” Cartesius, um honrado, 224 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 OS ESPIRITUAIS, HOJE? humilde, honesto pensador, cujos escritos certamente ninguém pode ler sem a mais profunda comoção; ele fez o que disse, e disse o que fez. (...) Isto é no nosso tempo uma grande raridade! Cartesius, como ele mesmo repete muitas vezes, em referência à Fé, jamais duvidou. (...) O que, aqueles antigos gregos, que entendiam, pois, um pouco da Filosofia, consideravam como uma tarefa para toda uma vida – porque a disposição para duvidar não se conquista em dias e semanas; o que esse velho combatente tinha alcançado, ele que através de todas as armadilhas conservou o equilíbrio da dúvida, intrépido negou a certeza dos sentidos e a certeza do pensamento, ele que incorruptível desafiou a angústia do amor próprio e as insinuações do sentimento; - com isso, cada qual, no nosso tempo, faz o seu começo. No nosso tempo ninguém permanece insistente na Fé, mas vai adiante. Uma pergunta que indaga aonde se chega, representaria talvez uma louca ousadia, enquanto é pois um sinal de educação e formação, se eu suponho, que cada um tem a Fé, já que seria estranho dizer: a gente vai adiante. Naqueles antigos tempos, era diferente; então a Fé era uma tarefa para toda uma vida, porque se supunha que a disposição para crer não se deixa adquirir em dias nem em semanas. Quando então o experiente ancião se aproximava da morte, tinha combatido o bom combate e conservado a Fé, jovem bastante era o seu coração para não esquecer aquele temor e aquele tremor que tinha disciplinado o adolescente, temor e tremor, do qual o varão tornou-se quiçá senhor, por sobre o qual, porém, nenhum homem pode crescer – a não ser que se tenha conseguido ir adiante o mais cedo possível” (KIERKEGAARD, Sören, Die Krankheit zum Tode; Furcht und Zitter. Frankfurt am Main und Hamburg: Fischer Bücherei, 1959, pp. 110-111). Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010 225 TRADUÇÕES COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO) COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (Expositio in Apocalypsin) Joaquim de Fiori * 1. O Apocalipse é o último de todos os livros escritos em espírito de profecia e contidos no cânon das Escrituras Sagradas. Por onde se vê que é por isso que esse livro é chamado de revelação, pois através dele nos são transmitidas as obras de Cristo, geradas ou em processo de geração nessa plenitude dos tempos. Meu Pai opera até hoje e eu também opero (Jo 5,15). O Pai operou antigamente nos patriarcas (cf. Hb 1,1), opera agora no Filho Cristo, a fim de que todos glorifiquem o Filho como glorificam o Pai (cf. Jo 5,23). Pois não é em vão que uma roda se encaixe na roda (cf. Ez 1,16; 10,10), como o Novo Testamento procede do Velho ou o intelecto da letra espiritual, uma vez que a chave de toda nossa fé consiste na confissão de Pai e Filho. Em terceiro lugar, esperamos realmente um mundo futuro onde não se desposarão nem serão desposados, não vencem nem serão vencidos, mas serão como anjos de Deus no céu (Mt 22,30; Mc 12,25; Lc 20,36) e, disse, serão filhos de Deus, uma vez que são filhos da ressurreição (Lc 20,36). Por isso, teremos corpos espirituais e até mesmo repletos do espírito divino, para que a confissão de nossa piedade, que possuímos no Pai e no Filho, seja consumada no Espírito Santo e não necessite mais de nenhuma perfeição, pois, na realidade, já * Tradução de Fr. Orlando Bernardi. Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 229-257, jul./dez. 2010 229 JOAQUIM DE FIORI possuímos em nós o que ao mesmo tempo esperamos no fundamento da esperança. Dessa forma o gênero humano, após a culpa do primeiro homem, necessitava voltar, aos poucos, para o conhecimento de seu criador, a fim de que em primeiro lugar e, por certo tempo, se fundasse no Pai e depois brotasse no Filho e, por fim, experimentasse a doçura do fruto no Espírito Santo, mas também para que, depois de um longo tempo, levado ao gáudio celeste, goze amplamente e tanto mais aumente para ele a alegria da glória que conquistou quanto mais suportou a tristeza sofrida em seu exílio. Por isso, o primeiro Testamento se refere ao Pai, porque por meio dele Deus Pai se revelou aos pais. O segundo se refere ao Filho, porque por ele Cristo tornou-se conhecido aos filhos dos patriarcas, isto é, a nós. Sabiamente o Espírito Santo, que é a terceira pessoa da santa Trindade, foi dado de modo admirável aos apóstolos no dia da páscoa, a fim de que permanecessem na expectativa que lhes seria ainda dado; certamente é pela mesma razão do mistério que o dia de pentecostes designa ultimamente o dia da solenidade (cf. Esd 8,18). Mas continuemos brevemente o que não pode ser abreviado por causa da dignidade do discurso, isto é, aquelas coisas que foram dadas no dia da páscoa (cf. Jo 20,22s): os olhos não perceberam algo e muito menos sua grande força foi percebida, como posteriormente aconteceu, porém no dia de pentecostes as línguas de fogo foram percebidas pelos olhos e o estrépito pelos ouvidos (cf. At 2,2-6) e foi sentida também a grande força do amor e da sabedoria. De fato, tudo isso nada mais designa senão o que possuímos pela fé e pela esperança. Pois o que mais afirma nossa fé senão que acreditamos que os batizados em Cristo foram mortificados pelo pecado, foram ressuscitados pela justiça na forma da paixão e ressurreição do Senhor e que foi dado o Espírito Santo a todos que 230 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 229-257, jul./dez. 2010 COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO) foram catolicamente batizados? Portanto, recebemos agora pela imposição de suas mãos o Espírito Santo que os apóstolos receberam no dia da Páscoa, para a remissão dos pecados (cf. Jo 20,23); no futuro, porém, esperamos o mesmo Espírito para a glória e a felicidade, de acordo com a plenitude e virtude de seus dons. No entanto, as ações do Testamento passado certamente nos confiam, de viva voz, as histórias literais para que a raiz de nossa fé se firme num fundamento sólido. Os acontecimentos, porém, do Novo Testamento eram ainda futuros quando Cristo entrou no mundo e porque historicamente ainda não podiam ter sido escritos, foram condensados no livro do Apocalipse como palavras proféticas a fim de que a idade juvenil aprendesse voando com a andorinha (cf. Jr 8,7) a receber o alimento espiritual e pudesse por meio da sabedoria rejeitar as palavras históricas como carne deteriorada ou cadáver. Certamente, no futuro, faltam não apenas as palavras históricas e aquelas coisas que parecem ter sabor de terra, mas também cessarão as palavras místicas que através de figuras e enigmas são apresentadas aos prudentes, e isso porque já não vemos por meio de algumas figuras, mas veremos em espírito a face de nosso Deus criador, tornados semelhantes a ele, de acordo com João que afirma: Sabemos que, quando aparecer, seremos semelhantes a ele, pois o veremos como ele é (1Jo 3,2). Por isso, verdadeiramente afirmamos que podemos expor o assunto do livro do Apocalipse e desvencilhar qual seja a intenção da obra. Pois é fácil para Deus conceder aos que pedem desde que haja fé. Com efeito, a mente se recusa a escavar e fatigar-se com trabalhos inúteis, a não ser que julgue existir um tesouro em algum lugar. Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 229-257, jul./dez. 2010 231 JOAQUIM DE FIORI 2. Por isso, deve-se agora considerar o curso dos tempos passados aos quais se dedicavam as obras do Antigo Testamento, no volume sagrado, a fim de que possamos compreender distintamente também essa sexta idade, que contém em si toda plenitude do Novo Testamento, e de que maneira se atribuem os tempos próprios a cada uma das partes do Apocalipse. Em primeiro lugar, expor simplesmente e depois, com a autoridade de Cristo, comprovar para as autoridades idôneas. É costume na Igreja afirmar que somente existem seis idades do mundo, de acordo com os seis dias em que Deus fez toda sua obra. A sétima, porém, não está nas obras, mas foi dada às almas que descansam. Por isso, nas obras há seis idades do mundo, das quais cinco pertencem ao Antigo Testamento e a sexta ao Novo. Como afirma o Apóstolo, nós estamos naquela que se tornou a plenitude dos tempos (1Cor 10,11). A primeira idade começou com Adão e terminou no tempo do justo Noé. A segunda começou com Abraão, a terceira com Davi, a quarta com a deportação para a Babilônia, a quinta com o advento do sacratíssimo salvador do mundo e a sexta foi iniciada por ele. Desde o início não se sabia quando Deus todo-poderoso dispunha isso, mas ficou conhecido quando se iniciou a sexta idade, depois que Cristo ressuscitou dos mortos, quando também desvendou aos discípulos o sentido para que entendessem as escrituras (cf. Lc 24,27). Isso é verdadeiro a respeito do passado. Isso porque, o que ainda era futuro no Novo Testamento, ainda estava em gérmen e não se podia saber nem averiguar, a não ser apenas no espírito da profecia. Mas também o futuro não existia. Já percebemos que devia-se enviar algum profeta depois dos apóstolos e evangelistas que reunisse as histórias eclesiásticas como indicadoras de algo, assim como outrora 232 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 229-257, jul./dez. 2010 COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO) se fazia no Antigo e para que o livro não fosse obrigado a permanecer sob o pedagogo (cf. Gl 3,24s), para a contemplação, como outrora, do povo judeu. Pois onde se fala da profecia do Espírito o pesquisador das Escrituras se cala e se presume que empalidece como assombrado pelo poder. Daí que se diz das almas santas: Quando soava a voz sobre o firmamento que estava por cima de suas cabeças e quando paravam deixavam pender as asas (Ez 1,25; cf. 10,1). Com efeito, quando penetramos para contemplar os mistérios secretos, somos levados, com asas para o mais alto dos céus, mas quando soa a voz sobre o firmamento, rapidamente depomos as asas, pois é necessário que o homem, por mais que esteja pleno da graça, silencie e cale sua voz, porque o próprio Espírito fala. Embora os santos animais tenham asas para contemplar, pelas quais podem compreender aquelas coisas que estão colocadas debaixo do firmamento, quer dizer, no volume das Sagradas Escrituras, quando se faz ouvir a voz por cima do firmamento, deixam pender as asas, porque quando o Espírito da profecia fala alguma coisa pelos profetas, que não está nos códices sagrados, rapidamente abandonam sua contemplação e para que se dê a honra ao Espírito Santo se submetem a sua liberdade. Na verdade, isso raramente acontece e mais raramente ainda é recebido no Novo Testamento, para que também possamos progredir contemplando o livro e afastar os absurdos dos falsos profetas. Por causa disso, teve que escrever uma profecia geral para conhecer as práticas desse tempo aquele a quem quase o mundo todo reconheceu ser o dileto de Cristo e o camareiro do palácio celeste, para que a Igreja dos cristãos soubesse excluir as profanas novidades e evitar as peregrinas profecias que lhe fossem contrárias. Afasta quem quer restringir o fim do mundo para um circulo menor de anos, a fim de Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 229-257, jul./dez. 2010 233 JOAQUIM DE FIORI perturbar os corações indecisos com um temor infecundo, ou a quem prometer milhares de anos para permitir continuar apegado aos prazeres. Tu, porém, guarda a forma e a medida das escrituras que te foi dada, compreendendo piedosamente que aquele que possui a chave (cf. Ap 3,7; 5,2-5) explica humildemente aos que é negado o acesso. Não extingas o espírito, mas permita provar se provém de Deus (cf. 1Ts 5,19-21). Isso porque está escrito no livro do profeta Daniel: Vai, Daniel, essas palavras permanecem secretas e lacradas até o tempo predeterminado (Dn 12,9). Pois muitos passarão e o saber será múltiplo (Dn 12,4). Quem, afinal, afirma isso proibiu que o espírito seja extinto. E quem disse: não acrediteis em qualquer espírito, mas examinai os espíritos para ver se provêm de Deus (1Jo 4,1), indubitavelmente acrescentou cautela no discernimento. No entanto, para que possamos rejeitar conjecturas apócrifas e esquadrinhar, com a ajuda do Senhor, as coisas profundas desse livro, deve-se antes de tudo considerar que como o universo dos tempos continua em seis grandes etapas, da mesma forma a sexta idade, que é a presente, deve ser limitada em seis pequenas idades. Como o conjunto todo das antigas escrituras era cercado por sete selos, da mesma forma esse livro se manifesta através de sete revelações, a respeito das quais cada um dos Testamentos dá notícia. Essas, para dar fé aos que perguntam, desde muito tempo são convertidas em figuras. Com efeito, os sete tempos desde Jacó patriarca até Cristo se mostram diferentes com novos combates, nos quais a escritura do Antigo Testamento se encontra reunida, e de igual maneira desde a chegada de Cristo até o fim do mundo reunimos sete, agora a respeito do fim do mundo e da revelação desse livro. Assim como o que foi realizado em cinco idades só ficou claro que eram coisas espirituais no final da quinta, quando 234 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 229-257, jul./dez. 2010 COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO) apareceu o Cristo Senhor, da mesma forma as coisas que o livro do Apocalipse continha a respeito dos tempos eclesiásticos só puderam se revelar racionalmente no final da quinta revelação. Além disso, o que dissemos dos sete tempos que se iniciaram em Jacó patriarca, se tem outra compreensão, de modo que os testemunhos são apresentados de dois admiráveis modos e com diferentes fins, mas que se unem numa só compreensão. Por isso me é por demais trabalhoso explicar, contanto que não seja mais obscuro ao ouvinte. Por causa disso não seja oneroso se nos demorarmos no fundamento para que – se não nos demoramos aqui – a casa sobreposta não caia. 3. Quando se quer chegar à doçura da noz, em primeiro lugar, se faz necessário retirar a casca e depois a pele, chegando por fim ao miolo. Da mesma forma acontece com o mistério que nos ocupa agora, de dois modos admiráveis se chega ao invólucro. Em terceiro lugar permanece como carne vivente, a qual se busca. Deve-se então remover a túnica para que apareça a veste, tirar a veste a fim de que se mostre a carne. Abre-se o sepulcro para que apareça o lençol de Cristo (cf. Lc 24,12; Jo 20,5ss). Retire-se o lençol para que saia então o Cristo vivo. Por isso, abre-se o sepulcro quando se abre esse mistério geral que se encontrava inteiramente ali dentro. Retiram-se os lençóis quando se chega ao segundo gênero do mistério que se esconde nas figuras. Cristo, porém, que é a verdade, designa a compreensão espiritual. a. Por isso a respeito da primeira série geral dos tempos, devem-se em primeiro lugar ver aquelas coisas que admitem distinção em cinco e sete partes, isto é, em cinco épocas desde Adão até Cristo, e em sete pequenas épocas que se deduzem de seis partes da idade. Grande é esse mistério e é um leal e verdadeiro sacramento. Penetremos mais para Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 229-257, jul./dez. 2010 235 JOAQUIM DE FIORI dentro a fim de que se tome um sólido fundamento. Embora não haja dúvidas de que desde Abraão até Cristo transcorreram cinco épocas, embora se deva dividir a sexta época em pequenas etapas, o que se comprova da série desse livro, para que, nessa parte, não decepcionemos a alguém menos crédulo, julgamos ser bom nalgum ponto apresentar testemunhas sobre o valor da obra, que mostram por meio dos testemunhos evidentíssimos das obras, bem como provavelmente fortifiquem também a outros com testemunhos verdadeiros. É patente a todos os católicos que foram doze as tribos que dividiram entre si a terra dos cananeus a mando do Senhor. Cinco dessas tribos, que pareciam ser as maiores, receberam por primeiro a herança. Por fim, sete tribos dividiram, por sorte, entre si a terra (cf. Js 12,16; 13,7s; 18,5.7.10ss). As cinco tribos foram portanto as de Rubem, Gad, Manasses, Efraim, junto com a de Judas. Portanto, essas cinco tribos designam cinco idades do tempo; mas as sete que receberam as heranças por últimas indicam as sete porções dessa sexta etapa, que agora herdam suas moradas no final dos séculos. Um homem previdente se indaga diligente e escrupulosamente por que apenas duas tribos e meia foram dividas, por arte da providência, igual e proporcionalmente, recebendo as regiões orientais da margem do Rio Jordão e por que apenas duas tribos e meia dessa parte? Admire-se esse grande e manifesto mistério, em nada diferente do mesmo! Com efeito, direta e evidentemente duas tribos e meia foram designadas para a parte oriental do rio, porque existiram duas idades e meia sem lei, desde Adão até Moisés, duas e meia, porém, sob a lei, desde Moisés até Cristo. Desse modo, também sete tribos, que significam a multidão dos fiéis, de acordo com o número septiforme da graça, receberam a herança por últimas. 236 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 229-257, jul./dez. 2010 COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO) O novo mistério das igrejas concorda com esse antigo, já que conhecemos as cinco igrejas principais que são a de Roma, a de Constantinopla, a de Alexandria, a de Antioquia e a de Jerusalém, o profeta diz. Haverá cinco cidades na terra do Egito, que falarão a língua de Canaã; e uma delas será chamada cidade do sol (Is 19,18). Assim, a tribo de Rubens concorda com a igreja de Jerusalém, pois ambas perderam a primogenitura – Rubem, porque subiu o leito de seu pai (Gn 49,4; 35,22), esta porque, com a semente da palavra, procurava judaizar os fiéis gentios (At 15,1.5) que professavam a fé. Gad recebeu a segunda herança após Rubens; a segunda igreja a ser fundada depois da de Jerusalém foi a igreja da Antioquia. Manasses foi o primogênito de José, mas o escolhido foi seu irmão menor Efraim (Gn 48,14.19); antes escrevia-se, primeiramente, a igreja de Alexandria, mas agora vem registrada antes a de Constantinopla, que é mais jovem que aquela. A tribo de Judá é tribo régia, onde foi fundado o templo, sabe-se comprovadamente estar referida à igreja romana, cujo sacerdócio real é presidido por Deus (1Pe 2,9). Esta é a cidade do sol, aquela a própria igreja de Cristo. As sete tribos referem-se às sete igrejas de João, a fim de que os dois testamentos dêem fé da verdade una. Assim, as cinco igrejas principais significam que há cinco tribos principais. As sete tribos restantes significam que foram instituídas sete igrejas na Ásia pelos apóstolos. O fato é que, seja em cinco tribos ou em cinco igrejas, designam cinco idades do mundo, desde Adão até Cristo e até o final do tempo dos apóstolos, quando começou a dar-se o final do povo circunciso, por causa do que está escrito: Comereis as colheitas antigas, bem conservadas, e lançareis fora as velhas, para dar lugar às novas (Lv 26,10). Portanto, não são eliminadas as coisas antigas tão logo tenha começado o novo, mas deve-se esperar até o ponto Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 229-257, jul./dez. 2010 237 JOAQUIM DE FIORI em que a nova plantação vinge. Realmente, nas sete tribos e nas sete igrejas, são designadas setes gerações dos tempos novos, que se sucedem seriadamente, e sucessivamente perpassam do primeiro advento de Cristo até o final, dos quais explana o livro do Apocalipse, como dissemos acima. As cinco idades do mundo, portanto, têm suas histórias, pelas quais proclamam as obras geradas antigamente. Mas, como dissemos, este livro, tão distinto ou dividido como parece ser distinta essa idade por suas obras, se dedica a esta sexta idade. Cremos que basta mencionarmos dois testemunhos, admiravelmente concordantes entre si, para esse assunto. Mas como está escrito: Toda palavra se confirma na boca de duas ou de três testemunhas (Mt 18,16), daremos a Cristo também uma terceira. E uma vez que para Deus filho, poder e querer são sempre o mesmo, lê-se que às vezes sentia fome, às vezes passava sede junto com os discípulos, lemos também que surpreendia a turba, o que se deu duas vezes apenas, pela razão de que a sabedoria nada faz em oposição à sabedoria, como o ser do Pai ensina por suas obras a sabedoria. Primeiro abençoou cinco pães, certamente não de trigo, mas de cevada (cf. Jo 6,9ss; Mc 6,41; Mt 14,17; Lc 9,16); depois sete, que de modo algum eram de cevada, mas crê-se terem sido de trigo (cf. Mc 8,2; Mt 15,36). E o que pelos cinco pães quis significar senão os cinco livros de Moisés ou mesmo os livros das histórias que o espírito divino uniu em cinco idades do mundo para indicar algo ao povo infantil dos judeus? O que pelos sete pães quis indicar senão esse livro que só ele, entre todos os outros, consta ter sido composto pelo espírito septiforme? No último momento da quinta idade, portanto, quando esse livro ainda não fora composto, o Senhor abençoou com cinco pães. Abençoam-se agora também os sete pães na última abertura do quinto 238 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 229-257, jul./dez. 2010 COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO) selo, para que a multidão que já há três dias (Mc 8,2; Mt 15,32) o segue não desfaleça no caminho, por não ter o que comer, tendo já comido os fragmentos que sobraram do pão de cevada – não que essa explicação seja falha no ler, mas porque o espírito delicado requer de algum modo um novo alimento e embora satisfeito de muitas iguarias, contudo ainda está faminto de não sabe o que, de acordo com o homem sábio: A vista não se cansa de ver, nem o ouvido de ouvir (Ecle 1,8). Pois, assim como a carne satisfeita com muitas iguarias não deixa de sentir fome, da mesma forma também a alma instruída com muitas escrituras. Por mais forte e gordo que seja o homem, contudo se não possui o que comer, enfraquece e sem forcas definha. Da mesma forma também a mente do homem, embora saiba muitas coisas, deseja sempre mais e se renova com aquelas coisas sempre de novo acrescidas mais do que com aquelas que gera no estômago da mente. O que significam os três, melhor e mais fluentemente será mostrado na obra da concordância. Aqueles três dias são aqueles que, depois de três dias, Jesus Cristo é encontrado pela mãe no templo (cf. Lc 2,46), são também os três anos depois dos quais Davi chamou de volta a Absalão rejeitado. Mas, se for do agrado, coloquemos essas coisas na casca da noz a fim de que mostremos algo da pele, enquanto em terceiro lugar trazemos a gordura do alimento. b. Desde Moisés até João Batista, lê-se terem se consumado sete tribulações, de acordo com aquilo que está escrito: ferir-vos-ei sete vezes pelos pecados (Lv 26,24). Contudo, note-se que se deve tomar as duas últimas tribulações em lugar de uma, porque no sexto dia deve-se colher o fruto em dobro. O que corretamente está designado no Pentateuco de Moisés, onde por aquilo que foi realizado corporalmente por aquele povo, mostra-se algo que devia ser realizado no espí- Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 229-257, jul./dez. 2010 239 JOAQUIM DE FIORI rito. Com efeito, Moisés ordenou aos filhos de Israel (Ex 16) que saíam da terra do Egito, que ajuntassem para si, por cinco dias, uma medida individual de maná celeste e apenas na sexta-feira ajuntassem em dobro, uma medida para o mesmo dia e outra para o sábado, dia em que não era permitido fazer ação alguma. Desse modo, em seis dias se juntavam sete medidas de maná. Aquele maná vindo do céu significava a divina escritura que, em seis tempos determinados, foi reunida dos feitos daquele povo, para que no devido tempo alimentasse as mentes dos espirituais. Há tempo para colher e tempo para comer (cf. Ecle 3,2ss). Outros colheram e nós, indigna e imerecidamente, tomamos posse de suas obras (cf. Jo 4,38). Com efeito, com os cinco dias em que se colhiam cinco medidas de maná, se designam os cinco tempos, nos quais são abertos os cinco selos. O maná, porém, significa as palavras espirituais que descem do céu. Ademais, na sexta-feira se juntam duas medidas, porque na sexta abertura do selo se realizam ao mesmo tempo dois mistérios, quer dizer, na abertura do sexto selo se revelam o sexto e o sétimo selo, o sexto, porém, antes do sétimo. Contudo, foi muito bem prescrito que se comesse cada quantidade em cada dia a fim de que nada sobrasse para o dia seguinte (cf. Ex 16,19s), porque aquela escritura que indica a obra do Senhor que deve ser feita nos tempos, sem dúvida são realizadas em cada tempo, umas depois das outras. Mas aquele maná guardado até a manhã seguinte apodrece. Que outra coisa deve significar isso, senão que toda escritura se realiza ao ser consumada e porque significa o devir do que foi feito, para o julgamento e não para a justiça daquele que espera mais que o sinal que lhe foi dado (cf. Mt 12,39; 16,4; Lc11,29)? Como se aquele maná que anunciava o Cristo futuro apodrecesse nos corações dos judeus e dele se desenvolvessem os ver- 240 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 229-257, jul./dez. 2010 COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO) mes para seu julgamento e para as condenações, conforme com o que o Senhor afirma: A palavra que vos anuncio, ela mesma vos julgará no último dia (Jo 12,48). Com efeito, a palavra de Deus e do maná é alimento para os que crêem, os fiéis, ou verme e condenação para os que não crêem. Eis então quais são os escritos sobre aquelas coisas que no tempo presente esperamos deverem se consumar. Tudo isso, se for acreditado, é maná e bebida de salvação. Contudo, se forem reservadas para o futuro apodrecem, e daí se apresentam aos não crentes como vermes para o julgamento e para a ruína. Sete são os combates gerais que se deram sob a lei, conforme aquilo que está escrito: De seis perigos te salva e no sétimo não sofrerás mal algum (Jó 5,19). Descreve seis tribulações porque duas são tomadas por uma. Da mesma forma, se descrevem sete batalhas, mas de vez em quando se descrevem só seis, porque a Igreja dos eleitos é instituída, provada, purificada e libertada em seis tribulações e na sétima o mal já não a atinge, porque descansa de todos os trabalhos (cf. Ap 14,13). Contudo, enumeram-se sete batalhas, que pertencem à série das histórias: primeiro dos egípcios, segundo dos cananeus, terceiro dos sírios, quarto dos assírios, quinto dos caldeus, sexto contra os medos da Babilônia e contra os filhos de Israel, um resto que parece ter sucumbido no quarto tempo dos assírios (cf. 2Rs 17). A sétima batalha foi a dos gregos, quando o rei Antíoco profanou a cidade santa e o templo (cf. 1Mc 1,56s) e quem pode fugir se escondeu nas montanhas. c. São esses portanto os sete selos com que o livro estava selado, porque o que significavam era desconhecido até que Cristo os abrisse. Cristo os abriu quando realizou o que neles estava escrito. Pois se buscas o que tipicamente os egípcios significavam, encontramos novos egípcios piores que aqueles que perseguiam também a Cristo e os após- Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 229-257, jul./dez. 2010 241 JOAQUIM DE FIORI tolos e mantinham presos os fiéis nas obras da carne, proibindo-os de alimentar-se com a liberdade da graça e de ir pregar ao povo dos gentios. Por isso, o primeiro combate da Igreja com os judeus aconteceu por exemplo como foi com os novos egípcios, quando na luta se abriu o primeiro selo. Eis que aparece o núcleo que a casca escondia; aparece a verdade viva, que os lençóis escondiam no sepulcro. A quem acreditou que era assim, me seja suficiente apenas tocar brevemente no tema. A quem, porém, exige para si uma fé mais plena, espere a íntegra da obra a fim de saber o que julga e o que condena. Ninguém duvida que todas essas coisas são possíveis para Deus e, apesar disso, muitos julgam não poder vir a ser o que sabem ser possível. Mas passemos para os restantes selos, mostrando, não expondo, de que modo, nos tempos próprios, esse selos são abertos por Cristo Senhor. O segundo selo contém as guerras dos cananeus; na Igreja isso significou o conflito com os pagãos. Abriu-se então o segundo selo nos tempos dos pagãos. O terceiro selo contém as lutas dos sírios e de outros povos, pelas quais na Igreja surgiram as guerras dos persas e dos godos, dos vândalos e dos longobardos. O quarto selo contém as guerras dos assírios, pelas quais o povo pestífero dos sarracenos se insurgiu contra a Igreja, os quais praticaram ações no povo cristão iguais às que fizeram aqueles outros no povo de Israel. Seguem-se os caldeus sob o quinto selo e por eles se significam os novos caldeus e babilônios que perseguem a nova Jerusalém espiritual. Por isso, o quinto selo é aberto na quinta batalha. O sexto selo, porém, mostra a perseguição da Babilônia e a repetida perseguição dos assírios, descrita no livro que se chama Judite; ali, na sexta parte do livro mostra-se claramente que coisas semelhantes aconteceriam no sexto tempo da Igreja. Sob o mes242 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 229-257, jul./dez. 2010 COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO) mo selo, na época de Antíoco, segue-se um período de muita violência e na Igreja se dá a tribulação do anticristo, a qual dará fim a todas as lutas. O sétimo selo impõe o fim da lei, a sétima abertura revela que tudo se consumou. Sob esse selo, foi enviado João Batista, de quem se diz: a lei e os profetas até João (Lc 16,16) Batista. Sobre isso pregou Elias, de quem se diz: Quando Elias vier, ele mesmo restabelecerá tudo (Mc 9,12). E o profeta: Eis que vou enviar-vos Elias, antes que chegue o dia do Senhor, grande e terrível (Ml 3,23). Em oitavo lugar, porém, o abrir o primeiro selo deve significar o tempo da ressurreição do Senhor, no qual o Espírito Santo foi enviado sobre cento e vinte fiéis (cf. At 1,15), ornando aquela santa Igreja com dons celestes e dando origem a um tipo de Jerusalém celestial, a respeito da qual se trata plenamente em oitavo lugar no final desse livro na parte sétima. II. 1. Antes de dizermos qualquer coisa, precisamos adiantar alguns pontos a respeito do livro do Apocalipse. Primeiro, que esse livro vem munido de um título, de uma saudação e de um prefácio e depois que está dividido em sete partes e termina com os tempos. O título é o que se apresenta antes da saudação; o prefácio é o que a segue, até aquele lugar em que se afirma: E escreve ao anjo da Igreja de Éfeso (Ap 2,1). Embora não apenas nessa primeira parte, mas também em cada uma das sete partes parece proceder como no prefácio: primeiro colhese como num lago e depois como se desembocasse num rio. A primeira parte de sete trata das igrejas, a segunda dos sete sinais, a terceira dos sete anjos com tubas sonantes, a quarta da mulher revestida de sol e de seu parto, a quinta dos sete anjos que saem do templo da tenda e têm sete taças cheias da ira de Deus para serem derramadas sobre a terra, a sexta da ruína da Babilônia, da luta de Cristo com a Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 229-257, jul./dez. 2010 243 JOAQUIM DE FIORI besta e daqueles que eram com ela pseudoprofetas e, por último, da destruição do diabo que devia seduzir os povos. A sexta parte, como foi dito, se divide em duas e deve ser tomada como duas. A sétima parte, contudo, trata do juízo e da glória da cidade celestial. b. Tudo isso está indicado naqueles oito dias que o filho unigênito de Deus consagrou com a primeira e a segunda aparição, depois que ressuscitou dos mortos. Essa é a sua configuração: de princípio, a primeira parte concorda com o dia da ressurreição, a segunda com o segundo, a terceira com o terceiro, a quarta com o quarto, a quinta com o quinto e a sexta com o sexto. Falta, porém, o sétimo dia, ao qual não se lhe atribui nenhuma parte do livro, porque de fato a sétima parte deve ser atribuída ao oitavo dia. c. Por isso, na primeira parte se trata da cura pastoral na forma de sete estrelas ou anjos; a segunda trata das lutas dos mártires no mistério dos sete selos; a terceira, da luta dos doutores na forma dos anjos com tubas que soam; a quarta, da luta dos eremitas e das virgens na forma da mulher revestida de sol e daqueles que são de sua raça; a quinta, do zelo dos homens espirituais, cuja luta se opõe às perversões do mundo que percebe com seus olhos. A sexta parte, contra a Babilônia, quer dizer, contra as perversões do mundo, às quais se aplica uma condenação definitiva. A seguir contra muitos povos que se insurgem contra o nome de Cristo e por último, porém, contra o filho da perdição (cf. 2Ts 2,3) e contra os povos, seduzidos para essas lutas. Dessa forma, depois de terminado o tempo, se descreve a glória do reino celeste na figura da cidade preciosa. 2. Nesse livro chamam a atenção, do ponto de vista espiritual, cinco grupos: os apóstolos, os mártires, os confessores e as virgens e em seguida os clérigos ou os monges da Igreja universal e todos os que 244 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 229-257, jul./dez. 2010 COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO) vivem na unidade da fé. Contra eles, o diabo enviou suas tropas: os judeus, os pagãos, os arianos e os árabes e, por último, uma turba universal da multidão desesperada. Os quatro animais, isto é, o leão, o boi, o homem e a águia, significam quatro grupos especiais (2Ts 2,3); o leão indica a ordem dos pastores, o boi, a dos mártires, o homem, a dos doutores e a águia, a dos contemplativos. Essas são as quatro comitivas espirituais do rei do sul (cf. Dn 11,5ss), contra as quais o rei do norte dirigiu animais muito ferozes, isto é, a leão, o urso, o leopardo e outro cuja figura Daniel não indicou (Dn 7,4ss). Significavam aquela espécie de perseguidores, acima mencionada, os judeus, os pagãos, os arianos e os árabes. Em quinto lugar se mostra a cadeira (Ap 4,6), isto é, a Igreja universal, da qual saem os homens espirituais, cheios de zelo, a fim de derramar suas pragas de acordo com as perversões da Babilônia. Na quinta luta termina o conflito da Igreja. Mas o que se segue no sexto selo é como ver a novidade de outro tempo. Assim, o primeiro tempo foi dos apóstolos, o segundo dos mártires, o terceiro dos doutores, o quarto dos eremitas e das virgens e o quinto da Igreja universal. Com efeito, o sexto tempo foi reservado para o juízo dos maus, no qual o povo israelita se converterá para a fé, por meio de alguma paz entre as duas últimas tribulações nas quais se duplica a abertura do sexto selo. Como antigamente, quando a Babilônia foi vencida, a velha Jerusalém foi edificada em tempos de angústia (cf. Dn 9,25), e não muito depois se seguiu a terrível calamidade de Antíoco, da mesma forma agora se faz algo semelhante no sexto tempo. Por conseguinte, os tempos dos apóstolos e dos mártires se estenderam até Constantino Augusto; o tempo dos doutores e dos que levavam vida solitária foi até o famosíssimo príncipe Carlos; o tempo dos monges Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 229-257, jul./dez. 2010 245 JOAQUIM DE FIORI e dos clérigos se estendeu desde o mesmo príncipe até hoje. Em todo o caso, eis que se aproxima um tempo de grande tribulação. Quando se diz paz e segurança (1Ts 5,3), é como se surgisse um turbilhão. A temporalidade compreende, portanto, seis etapas do mundo; a sexta idade do mundo compreende no mesmo sentido seis tempos. 3. Mas daqui nascem duas questões não supersticiosas nem estéreis. Se alguém afirma que os próprios tempos são diferentes em cada parte, como então cada uma das cinco partes se divide em sete divisões? E se existem tempos próprios dos pastores, dos mártires, dos doutores e das virgens e igualmente da Igreja universal: como no primeiro tempo que se afirma ser próprio dos pastores existiram mártires, doutores, contemplativos e quem levava vida comum? A isso se responde: Se as ordens singulares são distribuídas assim tão distintamente em idades singulares, de modo a não receberem qualquer comunhão umas das outras, nem esse livro seria de difícil compreensão nem a mutação dos tempos seria confusa ao juízo. Assim, o que nesse livro se trata conforme as espécies é diferente daquilo que passa para o gênero do que é necessário de modo especial em cada tempo, e é diferente do que se faz de modo comum; isso porque é pela mesma necessidade que somos obrigados a discutir aquilo que é, para que não se deixe de lado o gênero na espécie, e nem se confunda a espécie no gênero. Por exemplo, a escritura nos fala de quatro animais, pelos quais se designam os quatro evangelistas e quatro classes de santos: o leão, o boi, o homem e a águia (Ap 4,6ss). Têm-se aqui quatro especiais, pois nem o leão é boi, nem o boi é homem e nem o homem é águia. Embora sendo assim, descobre-se que cada um dos animais, de acordo com Ezequiel, possui quatro rostos, isto é, do leão, do boi, do ho246 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 229-257, jul./dez. 2010 COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO) mem e da águia (Ez 1,6-10). Por causa disso, também se sabe que o leão participa de três propriedades do boi, do homem e da águia; o boi, do leão, do homem e da águia; o homem, do leão, do boi e da águia, e a águia, do leão, do boi e do homem. Da mesma forma também o tempo dos pastores ou dos apóstolos possuiu mártires, doutores e virgens, bem como o tempo dos mártires teve pastores, doutores e virgens e o tempo dos doutores teve pastores, mártires e virgens, também no tempo das virgens havia pastores, mártires e doutores. De modo semelhante, deve-se entender o quinto tempo que acima anunciamos pertencer mais especificamente à “cadeira”, onde mesmo que se incluam coisas do sexto, por causa disso não se acrescenta nenhuma dificuldade. Por isso voltemos, agora, para as ordens. A primeira ordem na Igreja é a dos pastores, primeira no tempo e na dignidade. No tempo é a primeira não porque começou imediatamente e logo desapareceu para que se iniciasse uma segunda, mas primeira porque por primeiro começou. Iniciou-se de Cristo e em Cristo de Pedro. Ele mesmo depois de Cristo é o primeiro de todos os pastores, pois não precisa ser comprovado por palavras que é o primeiro em ordem de dignidade, uma vez que não pode ser tido como católico quem disser que um cristão não está sujeito ao Pontífice romano, independente do gênero ou da virtude. Se a primeira classe é dos pastores quer pela dignidade, quer pelo tempo, de modo algum deve-se crer que seja por simples vontade que a primeira parte do livro (Ap 3-4) trate dos pastores, mas pelo exigente juízo da razão. E porque os pastores não são pastores para si mesmos, mas para as igrejas que lhes foram confiadas; acrescentam-se nessa parte, aos pastores, as plebes dos submissos, isto é, a Igreja, pelas Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 229-257, jul./dez. 2010 247 JOAQUIM DE FIORI quais se designa a totalidade dos fiéis, de acordo com o que acima se dispôs quando se fez menção das sete tribos. Por que a ordem dos pastores é compreendida pelo número sete? Porque sete são os tempos próprios para as sete ordens e nelas por sete tempos não faltaram pastores. Por isso que o tempo próprio dos pastores é chamado de primeiro tempo e o dos mártires segundo, o dos doutores terceiro, o das virgens quarto e o dos monges quinto. Por isso, os convertidos e os casados devem ser incluídos no sexto lugar. Embora sua instituição descenda da ordem dos monges. No primeiro tempo, todas essas ordens existiram, por assim dizer, na família dos pastores, depois na dos mártires, em terceiro lugar na dos doutores, em quarto na das virgens, em quinto na dos monges, em sexto na dos convertidos e dos casados, em sexto lugar, nos últimos tempos esses dois manifestaram-se quase que simultaneamente. Sendo assim, pode-se considerar o que foi próprio de cada um e como todos através de cada um se comunicam com cada um. Foi próprio dos apóstolos esvaziar a letra para que se instituísse o espírito; o próprio dos mártires foi esvaziar a idolatria a fim de instituir a cultura do único Deus; o próprio dos doutores foi vencer as heresias para instituir a verdade de Cristo; o próprio dos contemplativos foi tirar do mundo a luxúria para que se percebessem as alegrias dos céus; foi próprio dos monges forçar os vagantes e os inconstantes a fim de que guardassem a virtude da unidade. Essas são as cinco principais ordens, atribuídas às cinco partes do livro e com eles se aperfeiçoam as cinco partes da cidade celeste, às quais se ajunta também a ordem dos convertidos, como pertencentes ao subúrbio, e a dos casados, como se pertencesse a aldeias, das quais se diz: Em todas as suas aldeias se cantava aleluia (Tb 13,22). Assim, porque cada uma das ordens foi 248 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 229-257, jul./dez. 2010 COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO) esclarecida por cada um dos tempos, de modo semelhante, cada um dos tempos é atribuído a cada uma das ordens. Na verdade, porque em cada um dos tempos e em cada combate todas as ordens estão presentes, corretamente prova-se que cada uma delas possuía algo comum com todas. No entanto, de maneira melhor se mostrará se tudo isso de que falamos for repetido abaixo. 4. A primeira ordem é a dos pastores, e por isso na primeira parte se trata dos pastores. Contudo, visto que a mesma ordem passando dos tempos para os tempos participa das opressões de todos, uma ordem implica sete anjos, que são a Igreja de Éfeso, de Esmirna, de Pérgamo, de Tiatira, de Sardes, de Filadélfia e de Laodicéia. Nelas, se conseguirmos intuir com sutileza, vamos encontrar que o primeiro anjo se refere a um tempo próprio, isto é, dos apóstolos, o segundo ao tempo dos mártires, o terceiro dos doutores, o quarto das virgens, o quinto dos monges, o sexto dos convertidos e casados. No entanto, nessas ordens deve-se notar principalmente que os apóstolos instituíram evangelistas e os evangelistas doutores, os doutores instituíram contemplativos, e os contemplativos instituíram monges e os monges, convertidos. Finalmente dos convertidos para os casados difundiu-se a imitação das boas obras. Disso aconteceu que, quase sempre, uma fé une duas ordens em uma só, conforme o que se lê que os primeiros diáconos habitavam com os apóstolos (Cf. At 6,2ss), mas agora com os bispos, como agora também vemos os convertidos habitarem com os monges de sua ordem. Como a segunda ordem é a dos mártires, corretamente na segunda parte se trata dos mártires. Essa ordem começou com Cristo quando suportou por nós o suplício da cruz e em Cristo desde o beato Estévão (cf. At 7,57s) que, por primeiro, devolveu a Cristo o que recebera. Daí Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 229-257, jul./dez. 2010 249 JOAQUIM DE FIORI que, na segunda parte, se descobre o cordeiro quase morto (cf. Ap 5,6s), isto é, Cristo sofredor na cruz, que veio e recebeu o livro da direita daquele que estava sentado quando veio da morte e ressuscitou dos mortos. Como abriu o túmulo, também abriu o entendimento a seus discípulos para que compreendessem as escrituras, a partir de então começaram a se abrir os selos, acima mencionados. Os sete selos são os sete mistérios das paixões, de tal forma que no sexto se lembram simultaneamente duas paixões, e designam as paixões dos fiéis que se aperfeiçoam em seis tempos, quer dizer, naquela ordem de que falamos acima. Dessas paixões, porém, quatro são passadas, a primeira por meio dos judeus, a segunda pelos pagãos, a terceira pelos arianos, a quarta pelos sarracenos, a quinta geral que os filhos da Babilônia fizeram. A sexta e a sétima serão realizadas na sexta abertura do selo (cf. Ap 6,12-17), onde porém, embora a sétima não apareça explicitamente, é deduzida das palavras escritas abaixo. Na sexta parte do livro (Ap 17ss; cf. 17,7-14) aparece claramente. Portanto, tendo-se completado os seis combates, infere-se a soma dos mártires (Ap 7,4ss), cento e quarenta e quatro mil de todas as tribos dos filhos de Israel, e depois essa grande multidão, que ninguém podia enumerar (Ap 7,9). Então são soltos os quatro anjos, a quem foi dado fazer mal à terra e ao mar (Ap 7,2; 9,15) sob a mesma abertura do sexto selo, e assim depois da abertura do sétimo selo (Ap 8,1; 10,7) acontece o fim. A terceira ordem eclesiástica é a dos doutores, que começou com Cristo e em Cristo desde o apóstolo Paulo, e por isso a terceira parte do livro trata dos doutores, pela ordem como acima. Contra os primeiros pregadores dos judeus se levantaram os hereges, que (At 15,5) acreditava-se serem da seita dos fariseus e pervertidos se fizeram pseudoapóstolos (cf. Hb 6,5s; 2Cor 11,13); contra os segundos, se 250 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 229-257, jul./dez. 2010 COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO) opuseram os nicolaítas (cf. Ap 2,6.15); contra os terceiros, os arianos, contra os quartos os moamequitas, contra os quintos os paterinos, contra os sextos os pseudoprofetas (cf. Ap 19,20) dos quais o vocábulo ainda é pouco conhecido e por último o anticristo com seus ministros. O sétimo anjo, porém, quando soar a tuba, se consumará o mistério de Deus. A quarta ordem da Igreja é a dos eremitas e dos virgens de ambos os sexos e por isso na quarta parte do livro se trata das virgens. Foi iniciado pela virgem e por seu filho. João, porém, foi dado a Maria como filho em lugar de Cristo (Jo 19,26), porque era previsto para o futuro que crescesse a ordem dos virgens em ambos os sexos. Tens, portanto, a mulher vestida de sol (cf. Ap 12,1), que significa a Igreja das virgens, cuja ordem foi iniciada por Maria quanto às mulheres e por Cristo e em Cristo por João quanto aos filhos virgens. O dragão diabo, tendo sete cabeças com sete diademas (Ap 12,3), são sete reis a respeito dos quais se afirma: E os reis são sete (Ap 17,9), mas os dez chifres são dez reis (Ap 12,3; 17,12) futuros que reinarão sob o mesmo tempo. Repara: a palavra e o tempo. Os anjos do dragão (Ap 12,7s) são os perseguidores dos mártires. Miguel Pedro e Miguel em Pedro, como o diabo em Herodes (cf. At 12,1ss; Ap 12,7). Com efeito, foi este a primeira cabeça do dragão. Os anjos de Miguel são os santos mártires de quem se diz: Eles o venceram pelo sangue do Cordeiro e não amaram suas almas até a morte (Ap 12,11). Esse combate aconteceu após a ressurreição do Senhor, mas foi consumado nos dias de Constantino. A mulher, porém, fugiu da presença da serpente para a solidão (cf. Ap 12,6), onde permanece por um tempo e por tempos e por meio tempo (Ap 12,14), que nada mais significa que todo o tempo da Igreja dife- Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 229-257, jul./dez. 2010 251 JOAQUIM DE FIORI renciado por meio do setenário. No entanto, o dragão fez guerra ao resto da descendência da mulher (cf. Ap 12, 17), quer dizer, aos eremitas e aos monges, que vivem castamente, ou a todos os fiéis. Tirou também do abismo um animal que tinha sete cabeças e dez chifres (cf. Ap 13,1). Certamente esse animal possui sete tempos, por isso é que na quarta parte se escreve a revelação desse animal, porque no quarto tempo se manifestou com a máxima força. Essa fera é a reunião dos infiéis que a modo de animais perseguem os cristãos. Daniel divide essa fera em quatro (cf. Dn 7,4-7). A primeira semelhante ao leão, a segunda semelhante a um urso, a terceira semelhante a um leopardo e possuía quatro cabeças, a quarta era diferente das outras. Daniel apresenta sete cabeças em quatro animais, o que João apresentou em um animal. João menciona assim o leão, o urso e o leopardo: E a fera que vi era semelhante ao leopardo e seus pés como de um urso e sua boca como a boca de um leão (Ap 13,2). Em lugar da quarta fera de Daniel, João apresentou dez chifres (cf. Ap 13,1; 12,3; 17,3-12). Colocou o tempo próprio dessa fera no povo ferocíssimo dos sarracenos e por isso na quarta parte do livro, porque essa é a mesma quarta fera de Daniel, também essa perseguição se originou no quarto tempo, quer dizer, no tempo dos eremitas e das virgens. Também afirma que a própria cabeça estaria morta e rapidamente teria voltado (cf. Ap 13,3); é claro que os povos bárbaros foram por assim dizer totalmente esmagados pelos combates superiores dos francos e muitos deles foram trazidos para o serviço dos cristãos e deve acontecer que a fera que parecia estar profundamente presente se levante numa cabeça, isto é num reino; que essas coisas devem acontecer só se podem explicar por palavras. Outra besta que se levanta da terra e que tem dois chifres semelhantes aos do cordeiro (cf. Ap 13,11) virá em sua 252 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 229-257, jul./dez. 2010 COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO) ajuda e significa a seita dos pseudoprofetas, como João abaixo mostrou (cf. Ap 15,13; 19,10). Como Janes e Jambres realizavam sinais diante do faraó (cf. 2Tm 3,8; Ex 7,11) e Simão, o mago, diante de Nero, da mesma forma estes fazem-no diante da besta que sobe do abismo, isto é da nação dos gentios, que também o apóstolo lembra duas ou três vezes (cf. Ap 16,13s; 19,20). Depois que S. João fez menção da primeira besta (cf. Ap 13,11), que no quarto tempo fez desaparecer uma parte do povo cristão, levado pela necessidade mostrou aquelas coisas que essa fera realizaria no sexto tempo por meio deles, começou a falar das coisas das virgens fazendo uma digressão para se livrar dos que pertencem à besta. Agora, porém, volta para aquilo que deixara de lado e recorda o número das virgens que era de cento e quarenta e quatro mil, de quem também disse: Esses são aqueles que não se mancharam com mulheres, pois são virgens (Ap 14,4). Esse número é igual ao número dos mártires, que é tomado dos doze patriarcas (cf. Ap 7,4-8), para que naquela cidade existam tantos virgens assinalados como mártires, além da grande multidão que ninguém podia enumerar (cf. Ap 7,9). A respeito dessas coisas é difícil uma palavra importante nesse lugar. Por isso, em primeiro lugar, deve-se conceber que o combate é de Cristo, que foi levado para Deus e para seu trono (Ap 12,5); em segundo lugar, de Miguel e seus anjos (Ap 12,7), esse combate anuncia o dos mártires; em terceiro, da perseguição do diabo que perseguiu a Igreja no tempo dos arianos e introduziu uma doutrina errônea após a mulher, como se fosse água de um rio (Ap 12,15). Por ocasião dessa perseguição aconteceu que muitos, tendo assumido asas (cf. Ap 12,14), fugiram para a solidão. Isso, apesar de ter acontecido também em ou- Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 229-257, jul./dez. 2010 253 JOAQUIM DE FIORI tros tempos, ficou claro principalmente no quarto tempo. Em quinto lugar se apresenta outro anjo, que anuncia a proximidade do julgamento do Senhor. Afirma: E vi outro anjo que voava pelo zênite do céu e segurava o Evangelho eterno para anunciá-lo aos habitantes da terra e a toda nação, tribo, língua e povo, dizendo em altas vozes: temei o Senhor e lhe dai glória porque chegada é a hora de seu juízo (Ap 14,6). Em seguida, em sexto lugar, são apresentados dois outros anjos, de quem se afirma: Um segundo anjo o seguiu dizendo: “caiu, caiu a grande Babilônia que com o vinho de sua furiosa prostituição embriagou todas as nações”. E mais um terceiro anjo o seguiu dizendo com voz forte: Se alguém adorar a besta e sua imagem etc. (Ap 14,8). A seguir, em sétimo lugar, se indica o sábado, quando afirma: E ouvi uma voz do céu que me dizia: Escreve: bem-aventurados os mortos que morrem no Senhor (Ap 14,13). Em seguida se trata do fim dos tempos, quando se realiza a colheita dos bons e a vindima dos maus (cf. Ap 14,14-20). A quinta ordem da Igreja universal é daqueles que levam vida comum. Essa ordem, porque atua em parte na Igreja e em parte nos mosteiros, é designada ao mesmo tempo o templo e a tenda (cf. Ap 15,5). O templo certamente significa a Igreja, por causa da solidez da fé, a tenda indica a vida cenobítica, pelo fato de não terem aqui uma herança permanente, mas futura (cf. Hb 13,14). Acima, contudo, foi dito que diante do trono existe como que um mar vítreo semelhante a cristal (Ap 4,6). A sede de Deus é a mesma que o templo e a mesma que a tenda. Daí que se faz menção também aqui do mar vítreo, porque se afirma que o mar está misturado com fogo (Ap 15,2), porque o mar de bronze (cf. 2Rs 25,13; Jr 52,17) está cheio de água. Por isso no mar de bronze se designa a vida ativa, que é própria dos pregadores, no mar vítreo, porém, se indica a vida especulativa, que é própria daque254 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 229-257, jul./dez. 2010 COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO) les que moram nos claustros. Aqueles, portanto, que venceram a besta e sua imagem e o número de seu nome (Ap 15,2) reúnem-se sobre esse mar, porque para os que quiserem ser perfeitos é necessário que, desprezando a carne, vençam a besta e, fugindo dos pecados criminosos, superem a imagem e, precavendo-se da multidão dos vícios, vençam o número. O número é do homem e seu número é seiscentos e sessenta e seis (Ap 13,18). Julgo ser algo supersticioso buscar a certeza desse número, porque nele pode existir alguma obscuridade que não se pode saber a não ser no tempo em que reinar a besta. Por agora é suficiente saber que designa a multidão dos vício, e aqueles que podem vencê-los se tornam apologistas do Senhor. Saem do templo da tenda sete anjos vestidos de jaspe ou de pedra pura (Ap 15,6), que é o homem novo, que foi criado segundo Deus (cf. Ef 4,24) e vestidos ao redor do peito com cinturões de ouro (Ap 15,6), não tendo apenas a castidade do corpo, sinalizada pelo fato de cingir os rins, que se sinaliza o contorno das costas, mas também da mente, que é sinalizada no contorno do peito. Esses são os homens espirituais que assumem o zelo pelo nome de Deus, que combatem os delitos do povo com grande indignação da mente e derramam o fogo do zelo por cima da plebe pecadora, conforme o que diz Isaías: Obceca o coração desse povo (Is 6,10) etc. Por isso a quinta parte do livro designa a ira de Deus realizada no povo, porque está escrito: Por três anos vim buscar fruto nessa árvore e não encontro. Arranca-a, portanto (Lc 13,7ss). Roga o camponês e lhe é dada a indulgência de um quarto ano. No quinto, porém, não havendo mudança será arrancada. Portanto, quanto a Deus, então o gênero humano será arrancado, uma vez que por causa dos delitos anteriores e do coração impenitente o Senhor os abandonou em seus caprichos (cf. Sl 80,13; 105,29; Mq 3,4). Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 229-257, jul./dez. 2010 255 JOAQUIM DE FIORI Quatro são as obras de Cristo: o nascimento, a paixão, a ressurreição e a ascensão. Em dignidade, porém, a ressurreição se antepõe. A ressurreição pertence à fé apostólica, a paixão à paciência dos mártires, o nascimento à humildade dos doutores e a ascensão à esperança dos contemplativos. Em quinto lugar vem o fogo divino sobre os reunidos num coração (cf. At 2,3s) e lhes ensinou toda equidade (cf. Jo 16,13). Na verdade a caridade é a plenitude dos mandamentos. Portanto, em quinto lugar se realiza a perfeição dos bons no fogo da caridade de Deus, mas também em quinto lugar se realiza a ira do fogo sobre a malícia dos pecadores. Esse juízo, porém, acontece em cada tempo porque cada tempo possui suas proporções, mas de modo especial nesse quinto tempo em que existe a propriedade dessa coisa. 5. A sexta parte é dedicada à ceifa do século, e dos ceifados na quinta parte ninguém (cf. Ez 15) será entregue ao fogo. Nela, pois, se mostra o julgamento da besta, principalmente daqueles homens que perseguiram a Igreja, e em geral, porém, onde quer que se tenham propagado os frutos da Babilônia. Quem fará isso? A besta com seus chifres. Babilônia (Ap 17,5) é o povo, que se chama cristão, mas não é, pois contamina a terra do Senhor (cf. Jr 2,7; 16,18) e polui as coisas santas. O Senhor suscitará contra a imundície do povo uma gente terrível, significada pela besta, e como os operários cortam muitos bosques para tornar a terra preparada e limpam os caminhos do campo do mundo. Os eleitos começam a ser confortados no senhor, mas a besta lutará contra eles e com ela os pseudoprofetas. Mas o Senhor se levanta em juízo e triunfará sobre aquela gente e haverá paz. A Jerusalém nova será edificada na angústia dos tempos (cf. Dn 9,25). Nos últimos dias, contudo, o diabo que outrora fora amarrado será solto (cf. Ap 20,2s) e seduzirá povos que estão nos quatro cantos da terra, Gog 256 Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 229-257, jul./dez. 2010 COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO) e Magog (Ap 20,7), e os incita contra a Igreja. Mas virá fogo do céu (Ap 20,9) e os consumirá. Tudo isso acontecerá no final da sexta abertura e então será sábado. A seguir a ressurreição para o julgamento (Cf. Ap 20,13), e então será revelada a glória da cidade celeste (cf. Ap 21,2.1022,5). Para ela nos conduza o Senhor, que vive e reina por todos os séculos dos séculos. Amém. Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 229-257, jul./dez. 2010 257 Normas para publicação • Os artigos devem ser formulados obedecendo às normas técnicas de publicação da ABNT, e encaminhados à nossa editoria em modelo eletrônico e com cópia impressa. • A editoria da Revista se reserva o direito de, após criteriosa análise consultiva, publicá-los ou não. 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