EDITORIAL
SCINTILLA
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 7-9, jul./dez. 2010
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ENIO PAULO GIACHINI
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Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 7-9, jul./dez. 2010
EDITORIAL
SCINTILLA
REVIST
A DE FIL
OSOFIA E MÍSTICA MEDIEV
AL
REVISTA
FILOSOFIA
MEDIEVAL
ISSN 1806-6526
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 1-257.
jul./dez. 2010
Instituto de Filosofia São Boaventura – IFSB
Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval – SBFM
Curitiba PR
2010
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 7-9, jul./dez. 2010
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Editor: Dr. Enio Paulo Giachini
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Dr. José Antônio Camargo Rodrigues de Souza, UFG
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Capa: Luzia Sanches
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Catalogação na fonte
Scintilla – revista de filosofia e mística medieval. Curitiba: Instituto de Filosofia São
Boaventura, Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval, Centro Universitário
Franciscano, v.1, n.1, 2004Semestral
ISSN 1806-6526
1. Filosofia – Periódicos 2. Medievalística – Periódicos.
3. Mística – Periódicos.
CDD (20. ed.) 105
189
189.5
SUMÁRIO
EDITORIAL ........................................................................... 7
Enio Paulo Giachini
ARTIGOS ............................................................................... 11
Apocalittica come retorica: Continuità e metamorfosi ....... 13
Gian Luca Potestà
A fundamentação sociológica da teoria sobre a pobreza
dos espirituais em Pedro de João Olivi.
O. Min. (1274/1248-1298) ............................................. 31
Johannes Karl Schlageter OFM, Fulda
Joaquim de Fiore, apocalipticismo e escatologia nos
séculos XIII e XIV ............................................................. 65
Nachman Falbel
O Alter Christus: Cristocentrismo e construção da
imagem de Francisco na Arbor vitae crucifixae Iesu,
de Ubertino de Casale (1305) ........................................... 87
Ana Paula Tavares Magalhães
Los espirituales y la política imperial ................................. 127
Celina A. Lértora Mendoza
COMENTÁRIOS ...................................................................... 147
Da verdadeira à perfeita alegria, uma e(in)volução? ............. 149
Aldir Crocoli
Os espirituais, hoje? .......................................................... 181
Hermógenes Harada
TRADUÇÕES .......................................................................... 227
Comentário ao Apocalipse (Extrato) ................................. 229
Joaquim de Fiori
EDITORIAL
EDITORIAL
Enio Paulo Giachini
Temos a satisfação de apresentar aos leitores de Scintilla um número voltado especialmente ao movimento dos espirituais franciscanos.
Insistimos na coleta e publicação de trabalhos voltados ao tema por
vários motivos. Dentre estes, podemos destacar: Trata-se de um período e de pensadores de extrema importância para o pensamento medieval e franciscano. O estudo dos espirituais mereceria o empenho de
mais pesquisadores, visto guardar uma riqueza e um veio de pensamento inusitados. Com isso, estamos afirmando também que o “movimento” dos espirituais é ainda pouco estudado, apesar de sua importância e riqueza.
Dois pontos podem ser destacados no confronto com esses pensadores. A força radical de renovação, rumo às raízes de si mesmo. Na
contracorrente da massificação e padronização da ordem, esses homens
buscavam com valentia entusiasmante o rejuvenecimento de suas raízes:
o espírito de pobreza do Poverello de Assis e seu amor ao Cristo pobre. E, em segundo lugar, a grandeza de sucumbir com nobreza sob a
pressão da autoridade do poder tanto da Ordem quanto da Igreja.
O espírito de Francisco, que encantou o mundo a ponto de em
poucas décadas já ter conquistado mais de 40 mil seguidores pelo mundo
a fora, como qualquer outro evento originário, requer ser reinaugurado
por inteiro em cada época, em cada um que se sinta por ele convocado. Desde o princípio, onde se dá, é uma irrupção de vitalidade, que
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EENIO
NIOPPAULO
AULOG
GIACHINI
IACHINI
rompe com as convencionalidades mornas e estáticas do tempo.
Não será diferente em qualquer tentativa de atinar e dar espaço à originalidade de todo si-próprio em qualquer época.
Ainda no fulgor dos clarões vindos do pensamento fulgurante de
Joaquim de Fiore, os espirituais franciscanos buscaram interpretar o
espírito de sua época com a força radical das origens e devem ser para
nós um ponto de salto para a clarividência dos desafios próprios de
nossa época: massificação, despotenciação absoluta do pensar, subjugação ao poderio impessoal e avassalador do mercado e igualitação de
valores e modos de vida. O predomínio do mercado, ancorado pelos
tentáculos da mídia, felizmente, ainda, precisa de sangue originário
para sua sobrevida. Para isso, varre todo antro e gruta buscando sugar o
originário e novo, onde e como quer que surja. As carcaças que deixa
atrás de si são a facilitação de tudo, a promessa de colocar o que quer
que seja ao alcance de mão, olho e mente, a sanha ao novidadeiro e
sobretudo a instauração, no pleno sentido da palavra, do vazio; um rio
só corredeira.
Quem sabe, como apregoava Joaquim de Fiore, não estejamos na
iminência do ponto de salto para um novo devir, apenas que
despreparados por falta de tirocínio de esperança e de espera do Deus
vindouro? A era do “Espírito Santo”, a transformação que chega “suave como os passos de pombo” pode estar à porta. Nossos sentidos e
nosso pensar, porém, parecem estar despotenciados e por demais distraídos com os alaridos barulhentos e borbulhantes de nossa época
tresloucada.
Joaquim de Fiore, Pedro de João Olivi, Ângelo Clareno, Ubertino
de Casale e tantos outros, mas, sim, sobretudo Francisco,
embrenhando-se em grutas e matas, batido e chicoteado por um sentimento estranho, doce e terrível ao mesmo tempo, buscando uma
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EDITORIAL
nesga de luz para absorver e organizar minimamente a invasão desse
novo, são para nós pontos de referência distantes.
A espera do inesperado precisa que agucemos olhos e mente, disciplinando o sentir e o pensar, o viver e o morrer nessas épocas assoladas
pelo apelo rápido e fácil, superficial e passageiro.
Nossos agradecimentos aos colaboradores, em sua maioria estudiosos devotados a essa época dos espirituais, que se dispuseram prontamente em colaborar.
Desejamos a todos uma boa leitura.
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ARTIGOS
APOCALITTICA COME RETORICA...
APOCALITTICA COME RETORICA:
CONTINUITÀ E METAMORFOSI
Gian Luca Potestà *
Negli Stati Uniti, luogo di incontro di credenze, culture e società
che ribollono di fermenti apocalittici, si distingue già da molti anni fra
apocalissi (i testi riportabili a un genere letterario determinato),
apocalittica (i linguaggi, le dottrine, le prospettive improntate a testi
apocalittici) e apocalitticismo (soggetti, chiese e movimenti che si
caratterizzano per credenze e orientamenti apocalittici). Vorrei offrire
qualche spunto di riflessione lungo queste tre piste: in quest’epoca di
bagni apocalittici, vale forse la pena conoscere meglio la composizione
del liquido in cui siamo immersi, e la sua temperatura.
1 I testi apocalittici e le loro funzioni di propaganda
Innanzi tutto: che cosa si intende propriamente per testi apocalittici?
Nel canone biblico fissato dalle grandi Chiese compare una sola
apocalisse. Per questo a volte si pensa che di apocalissi ce ne sia appunto
una sola, quella attribuita al Giovanni autore del quarto vangelo. In
realtà ogni tradizione religiosa ha le sue apocalissi, anzi generalmente si
fonda su di un’apocalisse nel senso originario greco del termine:
Rivelazione come disvelamento. Giudaismo e cristianesimo contano
Atualmente professor de História do Cristianismo na Facoltà di Lettere e Filosofia
dell’Università Cattolica del S. Cuore, Milão.
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GIAN LUCA POTESTÀ
numerose apocalissi, in parte inserite nel canone biblico (sia ebraico,
sia cristiano), in parte rimaste fuori di esso, nella maggior parte prodotte
dopo la definizione del canone.
Le apocalissi si presentano in genere come trascrizioni di una visione
o di una serie di visioni. La più antica arrivata fino a noi è quella di
Enoch, in cui si racconta che il veggente, il patriarca Enoch, sarebbe
stato rapito in cielo, dove gli sarebbero stati mostrati i luoghi riservati
al giudizio divino sui morti. Fra le altre apocalissi giudaiche,
giudeocristiane o gnostiche attribuite a personaggi biblici, generalmente
profeti dell’Antico e apostoli del Nuovo Testamento, si contano almeno
tre apocalissi di Elia, un’ascensione di Isaia, una sezione del libro di
Daniele, un’Apocalisse di Pietro (la più antica e prestigiosa dopo quella
canonica), un’Apocalisse di Paolo, altre Apocalissi di Giovanni … Le
attribuzioni sono tutte false.
Non tutte le apocalissi consistono in resoconti di viaggi e di
ricognizioni dei luoghi ultraterreni. Esistono anche apocalissi orientate
in senso storico, per noi forse le più interessanti. Il veggente racconta
una sequenza di avvenimenti che presenta come gli eventi finali della
storia del suo popolo, della sua Chiesa o addirittura del mondo.
Prendiamo la sezione apocalittica del libro di Daniele. Il centro della
narrazione è rappresentato dalle drammatiche vicende avvenute in
Medio Oriente intorno al 168 a.C., quando il sovrano Antioco IV
Epifane compì una fortunata campagna militare che lo condusse dalla
Siria all’Egitto, e ritorno. A Gerusalemme Antioco fu protagonista di
atti gravissimi nei confronti della religione del popolo giudaico. Stando
a Daniele, le azioni più terribili furono compiute contro il Tempio,
luogo per eccellenza del culto divino. Antioco lo profanò, lo imbrattò,
lo contaminò: destituì il sommo sacerdote, alterò la successione
sacerdotale e osò far innalzare – “abominio della desolazione” – una
propria statua “nel luogo santo”.
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APOCALITTICA COME RETORICA...
La sezione apocalittica di Daniele rappresenta un modello, che come
tale verrà esplicitamente assunto e ripreso nell’Apocalisse di Giovanni
e in numerose altre apocalissi successive. Innanzi tutto per il suo carattere
pseudoepigrafico. La falsa attribuzione è fondamentale non solamente
per dare lustro all’opera. In questo caso, chi racconta le vicende del
profanatore è un individuo – forse un testimone oculare – molto ben
informato delle malefatte di Antioco e della resistenza oppostagli da
valorosi giudei osservanti della Legge, animati dall’eroico esempio di
Giuda Maccabeo e dei suoi fratelli. Raccontare quest’episodio in presa
diretta avrebbe naturalmente avuto ben minore forza evocativa e portata
mobilitatrice. Per i fini che si prefiggeva l’autore, risultò invece efficace
attribuire le visioni a un celebrato profeta vissuto al tempo della
deportazione dei Giudei a Babilonia, il quale avrebbe previsto con
addirittura quattro secoli di anticipo le oscenità perpetrate da Antioco.
Un primo tratto da sottolineare nell’apocalisse di Daniele (e nelle
apocalissi in genere) è che si tratta dunque di un testo di propaganda. Il
sapere che patimenti, sofferenze, martirii sono quelli eternamente
previsti per gli ultimi giorni da Dio, che per tramite di un veggente li
ha comunicati anzi tempo agli eletti perché si preparino a soffrire e a
resistere, nella certezza che alla fine verranno la liberazione e il riscatto,
se non addirittura la vendetta, è propagandisticamente molto più efficace
che invitare a resistere al buio, senza prospettive certe. Come per altri
testi dell’Antico Testamento, anche per Daniele i cristiani si
impegnarono a rileggerlo dal proprio punto di veduta. La sua sezione
apocalittica venne così reinterpretata in riferimento agli attesi eventi
finali, le allusioni ad Antioco furono viste come allusioni alla
persecuzione ultima dell’Anticristo, e questo garantì un supplemento
di interesse duraturo per quelle visioni.
Ma viene subito da chiedersi: come è possibile che, prima
dell’avvento dei metodi interpretativi della Scrittura progressivamente
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affermatisi a partire dalle grandi scuole esegetiche europee della fine
dell‘800, nessuno si fosse accorto del meccanismo di Daniele? In effetti,
se ne era accorto già il filosofo platonico Porfirio, che in Sicilia scrisse,
verso il 270, un trattato in cui smontava l’intero congegno
propagandistico. Come notò nel 1897 lo studioso francese J. Lataix,
«Porfirio diceva di Daniele all’incirca tutto ciò che i critici moderni
hanno pensato di scoprire. Secondo lui, il libro non era stato scritto da
Daniele. L’autore viveva in Giudea, al tempo di Antioco Epifane; più
che annunciare l’avvenire, racconta il passato». Ma conosciamo la
potenza della propaganda: non basta mostrare che una cosa è falsa per
smontarla! Il falso ripetuto infinite volte diventa vero, mentre il vero
viene fatto morire: il trattato di Porfirio venne fatto sparire - ad opera
di cristiani, si suppone –, al punto che oggi ne conosciamo i contenuti
solo indirettamente, dalle citazioni dei suoi avversari.
Dai tempi delle apocalissi attribuite a profeti e ad apostoli, la
produzione delle apocalissi non è mai cessata, ma è stata sempre guardata
con una certa diffidenza dalle gerarchie ecclesiastiche. Strumenti
formidabili di mobilitazione religiosa, sociale e politica, alimentano
spinte non facilmente governabili dalle istituzioni: depositari del
messaggio sono infatti il veggente con il suo carisma divinamente
certificato, ovvero la comunità che lo gestisce o che dispone della
rivelazione. Negli Stati Uniti, dove fin dall’inizio le forme di
cristianesimo dal punto di vista istituzionale sono state e restano
complessivamente più leggere rispetto a quelle europee, le più
importanti comunità religiose che hanno preso piede dai primi decenni
del 1800 si fondano su rivelazioni apocalittiche, dalla Chiesa di Cristo
dei Santi degli ultimi giorni (i Mormoni) alla Chiesa degli avventisti
del settimo giorno, nata sulla base di un calcolo riguardante il ritorno
di Cristo sulla terra, compiuto a partire da un rinnovato studio del
libro di Daniele.
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APOCALITTICA COME RETORICA...
Per quanto riguarda la Chiesa cattolica e le Chiese nate dalla
Riforma, dopo l’ultima esplosione di testi e personaggi apocalittici fra
Tardo Medioevo e prima Età Moderna, le gerarchie hanno
tendenzialmente cercato di disinnescare l’Apocalisse, e soprattutto di
evitare che se ne scrivessero di nuove. In ambito cattolico il genere
tornò alla ribalta tra fine ‘700 e inizi ‘800 in occasione della soppressione
dell’Ordine dei gesuiti e del crollo dell’Ancien Régime. Alcuni cercarono
di spiegare quelle vicende riportandole nella luce superiore del
complotto anticristiano, cui i gruppi dirigenti restauratori tentarono
di opporsi dando vita alla “Santa Alleanza” (l’espressione è presa dal
Libro di Daniele, dove originariamente si riferisce al patto stretto fra i
sovrani unitisi contro Antioco).
Al di fuori di queste cerchie reazionarie, in ambito cattolico le
uniche apocalissi che davvero hanno tenuto banco negli ultimi due
secoli, raggiungendo strati ampi di popolo, sono state quelle mariane
(capaci di stimolare la fede, senza peraltro pretendere di alterare il
depositum fidei custodito dalla gerarchia). Le più celebri sono le
rivelazioni di Fatima, avvenute tra maggio e ottobre 1917. La
particolarità di Fatima, rispetto ad altre apparizioni mariane, sta nel
fatto che l’apparizione originaria venne arricchita grazie alla progressiva
rivelazione di ulteriori segreti via via comunicati dalla Vergine all’unica
sopravvissuta, Lucia dos Santos. Fatima è un’apocalisse in progress. La
piena pubblicazione dell’ultima parte del suo segreto è avvenuta nel
2000 (esso presentava in forma appena velata il conflitto fra il
comunismo ateo e la Chiesa cattolica, l’attesa di una tribolazione
generale del clero e la speranza nella conversione futura della Russia).
Nella fase attuale la Chiesa cattolica appare priva di significativi
riferimenti apocalittici, e questo è un tratto che la distingue fortemente
dalle Chiese e sette che al di fuori dell’Europa risultano in rapida crescita
anche grazie al proliferare incontrollato di profezie e visioni apocalittiche
dei loro leader carismatici.
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GIAN LUCA POTESTÀ
2 Un linguaggio simbolico e oscuro
Un fattore certo non secondario della perdurante fortuna dei testi
apocalittici è rappresentato dal loro linguaggio e dalle loro dottrine.
Daniele si esprime in termini allusivi e oscuri, facendo massicciamente
ricorso a una simbolica dei numeri e degli animali. Il trionfo delle
figure e dei misteri si registra nell’Apocalisse di Giovanni, composta
intorno alla fine del I secolo, o ai primissimi del II, in un ambiente
giudeocristiano dell’Asia Minore polemico nei confronti sia di Roma
imperiale sia della Sinagoga.
A proposito del linguaggio allusivo e misterioso dell’Apocalisse,
da sempre suo motivo di forza, lasciamo la parola a un acuto critico
del XII secolo, il bavarese Gerhoh di Reichersberg, che in un’ampia
Indagine sull’Anticristo mirante a demitizzare una serie di credenze
sull’Anticristo affastellatesi in dieci secoli, definisce l’Apocalisse di
Giovanni “un libro pieno di passi oscuramente simbolici, del quale già
prima di noi si è detto che contiene tanti misteri quante sono le parole,
anzi che in ciascuna parola sono nascosti significati molteplici”.
L’Apocalisse di Giovanni, come già quella di Daniele, si fonda su di
una visione forte della storia come teatro di un grandioso conflitto,
giunto ormai alla scena finale, tra forze del bene e forze del male. Le
prime sono sottoposte a una serie di persecuzioni del drago, cioè del
Diavolo, messe in opera dai suoi agenti terreni, il principale dei quali è
la duplice bestia, che sale dal mare e che sale dalla terra. La bestia vincerà
la resistenza di due profeti e predicatori che oseranno opporsi ad essa,
li ucciderà e ne farà esporre i cadaveri sulla piazza grande di
Gerusalemme; ma – sul modello di Gesù – i due martiri risorgeranno
dopo tre giorni.
Ognuno di questi passaggi si presenta ambiguo e aperto a molte
interpretazioni possibili. Consideriamo un solo punto, la tanto discussa
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APOCALITTICA COME RETORICA...
questione dell’identità della seconda bestia. Che cosa vuol dire che la
bestia ha un marchio, imposto a tutti coloro che la seguono, e il marchio
è il 666? La questione ha intrigato gli interpreti a partire da Ireneo,
l’inventore dell’Anticristo come nemico dei tempi finali. Ireneo cercò
di decifrare il numero della bestia applicando i principi della gematria,
la scienza che faceva coincidere a ogni lettera dell’alfabeto (greco) un
valore numerico (alfa = 1, beta = 2, ecc.), e in questo modo arrivò a
stabilire che il 666 potrebbe equivalere in cifra a “Teitan” oppure a
“Lateinos”. Gli interpreti antichi e medievali si sono sbizzarriti nei
tentativi combinatori.
Tentativi ingenui propri di un mondo premoderno ormai morto
e sepolto? Niente affatto. Nel 1993 presso le Edizioni del celebre
monastero della SS. Trinità e di S. Sergio di Sergiev Posad, sede
dell’Accademia ecclesiastica moscovita, è apparso un volume dal titolo:
La Russia dinanzi al secondo avvento (inteso come la Parusia di Cristo
alla fine dei tempi), un’antologia di scritti apocalittici dai Padri fino al
tempo presente. Stampato in una tiratura iniziale di 100.000 esemplari,
il libro è stato più volte ripubblicato. Il testo è un concentrato delle
rappresentazioni apocalittiche e demonologiche, con cui alcuni fra i
settori più combattivi e oltranzisti dell’Ortodossia russa cercano di
fronteggiare la secolarizzazione, esaltando i caratteri nazionalistici,
antigiudaici e antimoderni presenti nella tradizione culturale e religiosa russa. Vi si legge fra l’altro che il sigillo dell’Anticristo è riconoscibile
nei codici a barre, e che il numero della bestia apocalittica sta nelle
carte magnetiche. In realtà l’idea non era affatto nuova. La si trova
ampiamente diffusa fin dal decennio precedente negli Stati Uniti grazie
a due fortunati libri di Mary Stewart Relfe: When Your Money Fails:
the “666 System” Is Here (1981, oltre 600000 copie vendute) e The
New Money System (1982), in cui denuncia la presenza del 666 nei
codici magnetici a barre e nelle numerazioni di determinate carte di
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credito americane. Ecco una semplice attestazione che l’apocalittica
non ha confini non solo temporali, ma neppure spaziali, sicché
affermazioni germogliate sul suolo del fondamentalismo protestante
americano possono attecchire facilmente anche su quello del
fondamentalismo ortodosso russo. Di fatto, nel marzo 2000 il sinodo
episcopale del patriarcato di Mosca confermò che il codice a barre
contiene il 666 e chiese al Governo di introdurre, per riguardo ai credenti
della Russia, un sistema di codice a barre differente da quello
internazionalmente in uso.
Il linguaggio cifrato dell’apocalittica si presta a molteplici
interpretazioni, e in un certo senso le sollecita. Nel contempo, gli
orizzonti entro cui queste sono ricercate appaiono sostanzialmente
stabili. L’apocalittica trae forza dal ricorrere degli schemi e dalla longevità
delle linee interpretative, che si radicano entro il terreno di una tradizione
di cui spesso non si riescono più a misurare profondità e consistenza.
È paradossale, ma quanto più il linguaggio apocalittico appare
ermetico e polimorfo, tanto più gli stilemi e i percorsi interpretativi si
snodano e si modificano lungo strade che sono però sempre le stesse:
che si tratti di “Teitan” o del codice a barre, la procedura interpretativa
applicata al 666 ci appare ingenuamente fondamentalista, quasi che il
testo contenesse davvero un segreto che ancora aspetta di essere
decrittato in re.
3 Gioacchino da Fiore e la ripresa critica del millenarismo
Come si legge nell’Apocalisse di Giovanni, Dio stesso porrà fine al
trionfo ingannevole della bestia, la manderà in un abisso di zolfo e di
fuoco insieme a tutti i suoi collaboratori (gli “pseudoprofeti”), e allora
finalmente Satana sarà legato per mille anni. In quel tempo Satana sarà
dunque nell’impossibilità di nuocere; i santi (ovvero i martiri della
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APOCALITTICA COME RETORICA...
fede) torneranno sulla Terra, e regneranno su di essa insieme a Cristo
risorto. Nell’Apocalisse l’instaurazione del regno millenario è presentata
come l’ultima fase della storia terrena, immediatamente precedente la
sconfitta definitiva di Satana, cui seguono il giudizio finale e la discesa
della nuova Gerusalemme dal cielo. L’attesa di una nuova Gerusalemme
era in linea con le rivendicazioni nutrite in ambienti giudaici dopo i
tragici eventi del 70. Ma mentre nelle cerchie osservanti si vagheggiava
la ricostruzione della Gerusalemme terrena e del suo Tempio,
l’Apocalisse di Giovanni precisa che la nuova Gerusalemme scenderà
dal cielo e non ci sarà in essa nessun tempio! Era una presa di distanza
da quegli ambienti giudaici con cui l’autore dell’Apocalisse era in
rapporto e in competizione. Quanto al millenarismo apocalittico,
anch’esso si innestava sulla dottrina giudaica, che, sul modello del
racconto della Creazione, suddivide la storia in sei giorni millenari,
destinati ad essere seguiti dal settimo millennio di pace corrispondente
al settimo giorno del riposo divino. Anche per questo aspetto Giovanni
si mantiene dunque entro un orizzonte giudaico; ma nel contempo ne
prende le distanze, in quanto il regno millenario non sarà quello del
messia futuro, ma quello dell’agnello già sacrificato, destinato a
prendere la guida dei santi (cioè dei martiri) richiamati alla vita.
Agostino fu abile a disinnescare le proiezioni millenaristiche e le
attese di una nuova Gerusalemme destinata a scendere dal cielo in terra, che avevano animato diversi movimenti apocalittici dei primi secoli,
e di cui egli stesso aveva inizialmente subito il fascino. Nel De civitate
Dei l’incatenamento del Diavolo è presentato non come un evento
imminente legato all’instaurazione terrena del Regno, bensì come la
condizione di cui la Chiesa già gode a seguito della prima venuta di
Cristo, per quanto l’intreccio umanamente inestricabile fra le due città
impedisce di comprendere pienamente ciò. In questo senso Agostino
si spinge ad affermare che «la Chiesa già ora è il regno di Cristo e il
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GIAN LUCA POTESTÀ
regno dei cieli, e dunque già regnano con lui i suoi santi, sia pure in
modo diverso da come regneranno allora», cioè nella condizione di
quiete ultraterrena (De civitate Dei XX, 9.1).
Il tabù agostiniano resse fino a quando non lo infranse Gioacchino
da Fiore. Negli ultimi decenni del 1100 l’abate calabrese osò
riconsiderare il ventesimo capitolo dell’Apocalisse in una nuova luce,
riferendone l’annuncio allo stato sabatico dello Spirito in terra, la cui
piena instaurazione riteneva imminente. Qui l’apocalittica mostra tutta
la sua forza di rottura, la sua capacità di additare spazi inesplorati entro
un orizzonte che Gioacchino presenta come ancora pienamente
intramondano e intrastorico. Da allora la ripresa del millenarismo ha
compiuto un lungo percorso, giungendo prima attraverso gli osservanti
minoriti spagnoli in Messico e attraverso i gesuiti portoghesi (Vieira)
in Brasile; poi, attraverso il puritanesimo inglese, fino al cosiddetto
premillenarismo americano. Anche lungo questa via il ricordo di
Gioacchino – trasfigurato, trasformato, alterato – ha goduto di enorme fortuna in età moderna e contemporanea.
Ma questo suo annuncio sarebbe rimasto forse lettera morta se
egli non avesse avuto un’altra idea geniale, rimettendo in moto
l’interpretazione dell’undicesimo capitolo dell’Apocalisse, quello in cui
si parla dei due testimoni martirizzati e uccisi dalla bestia. Anche su
questo passo pesava una tradizione interpretativa molto antica, che nei
due testimoni vedeva due personaggi biblici di cui abbiamo già fatto il
nome, il patriarca Enoch e il profeta Elia, originariamente risalente
all’Apocalisse di Elia (5.32), probabilmente uno scritto giudaico adattato
da un autore cristiano, la cui redazione finale va riportata fra II e III
secolo d.C.: si credeva che fossero stati rapiti da Dio, conservati in un
mondo a parte e che di lì sarebbero stati rispediti a terra per contrastare
senza successo il trionfo dell’Anticristo. Gioacchino fu di fatto il primo a intendere i due personaggi non come due singoli individui –
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APOCALITTICA COME RETORICA...
un’identificazione che non aveva fondamento biblico, e non conduceva
da nessuna parte – ma come due soggetti collettivi, due ordini nuovi
destinati ad agire nella storia e a diventare protagonisti degli attesi
conflitti finali. Protagonisti nel senso di militanti e di martiri. Non è
un caso che il suo messaggio sia stato fatto proprio dai nuovi ordini
religiosi affermatisi nella Chiesa romana a partire dal secolo XIII, in
primis dai frati minori (francescani) e dai frati predicatori (domenicani),
che se ne avvalsero come se Gioacchino avesse profetizzato loro stessi
(infinite metamorfosi della propaganda)!
Con Gioacchino noi vediamo portati al massimo livello tutti gli
aspetti che abbiamo finora via via cercato di mettere in luce. Egli è non
solo lettore e interprete di testi apocalittici, ma apocalittico egli stesso
(lega le sue più importanti acquisizioni teoriche a visioni o rivelazioni
personali) e fautore di un movimentismo apocalittico che lo convinse
a salire in una località impervia sulla Sila per prepararsi con pochi
compagni agli eventi finali, all’assalto dell’Anticristo e alla successiva
irruzione del tempo dello Spirito, la breve epoca sabatica di cui i nuovi
ordini sarebbero stati i protagonisti.
Prima che venga il millennio di pace e di libertà tanto attesa, gli
eletti dovranno affrontare l’ultima tribolazione, quella dell’Anticristo.
Disponendo le opere di Gioacchino lungo il suo percorso biografico,
ci si rende conto della straordinaria duttilità con cui egli incessantemente trasforma, senza quasi darlo a vedere, la materia apocalittica che
maneggia con impareggiabile abilità. Nelle sue opere più antiche, ancora segnate dal colossale scontro fra Papato e Impero, l’abate calabrese
pare indicare, sempre con cautela e prudenza, l’Impero come il nemico
principale da cui guardarsi. Poi però mette la sordina alla polemica nei
confronti dell’Impero (spiegando anzi che la Chiesa deve passare
attraverso la servitù nei confronti dell’Impero se vuole infine guadagnarsi
una libertà più vera e profonda). Siamo ormai al tempo della caduta di
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GIAN LUCA POTESTÀ
Gerusalemme (1187) e dell’adesione del Barbarossa e dei principali
sovrani d’Occidente all’appello papale alla Crociata. Gioacchino muta
proprio allora quasi fulmineamente i propri bersagli polemici, e dà
nomi nuovi ad alcune delle teste del drago dell’Apocalisse. In questo
modo punta a drammatizzare il conflitto con l’Islam, o meglio ad
avvertire il suo pubblico che è questa la vera e nuova frontiera dello
scontro apocalittico.
Visto in genere come un utopista lontano dalla realtà, Gioacchino
fu sensibilissimo al mutevole scenario di politica ecclesiastica dell’Italia
dell’ultimo quindicennio del secolo XII, cercando di fornire strategie
di lunga lena alla Chiesa romana, proiettandone con perfetta scelta di
tempo le vicende e le scelte (in parte fatte, in parte auspicate) sullo
sfondo di uno scenario apocalittico in continuo movimento. Alla fine
l’Anticristo sarà per lui un eretico sostenuto dall’Islam, destinato
addirittura a salire sul trono di Pietro.
Un aspetto fondamentale della propaganda apocalittica è la sua
estrema malleabilità, legata come abbiamo detto all’oscurità costitutiva
del linguaggio apocalittico e all’ambiguità dei possibili riferimenti. Di
fatto predicatori, movimenti, sette, centri di informazione e
disinformazione di matrice apocalittica continuano tuttora a dare
stupefacenti prove della loro capacità di trasformare continuamente il
proprio bersaglio. Manca ora il tempo per farlo, ma sarebbe interessante seguire i percorsi di alcuni predicatori apocalittici degli Stati Uniti
dell’ultimo ventennio, delle disinvolte acrobazie in cui negli anni di
Reagan pretesero di bollare l’Unione sovietica come l’Anticristo, salvo
poi a indicare l’Anticristo in Saddam Hussein. In maniera analogamente
disinvolta, gli Ebrei, già bollati per secoli come agenti dell’Anticristo,
in quanto fautori della ricostruzione del Tempio di Gerusalemme in
cui egli si insedierà come novello Antioco, nell’ultimo decennio sono
stati pienamente recuperati come alleati nel conflitto apocalittico contro
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Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 13-29, jul./dez. 2010
APOCALITTICA COME RETORICA...
l’Islam. Interessante in questo senso la recente unione di settori
apocalittici cristiani con ambienti ebraici americani, in vista di
un’alleanza a tempo contro il comune nemico islamico: alleanza a tempo, dico, perché proprio quegli apocalittici cristiani per gli Ebrei loro
attuali alleati non vedono altro destino finale che la conversione al
Messia Gesù di Nazareth.
4 Persecuzioni e martirio, violenza e vendetta divina
I testi storico-apocalittici assolvono tanto più efficacemente alla
loro funzione di propaganda, quanto più risultano capaci di inserire le
vicende di un popolo, di una Chiesa, di un gruppo o movimento
entro uno scenario che dia ragione delle persecuzioni e sofferenze subite
inserendole in un quadro più ampio e mostrandone il carattere
transitorio. Le apocalissi sono dunque testi consolatori nel senso più
alto del termine: chi li legge è chiamato a pazientare, ovvero a resistere,
sul modello dei martiri. Spingono in questo senso, oltre alla visione
fortemente polarizzata di bene e male, l’enfasi posta sul presente come
momento della scelta, la rappresentazione accelerata dello scorrere del
tempo che manca e la pretesa di computarlo in vista della liberazione
finale. D’altra parte, le apocalissi mirano a rinserrare le fila, a consolidare
gli incerti, a motivare i dubbiosi, a rafforzare i deboli, a impedire
l’abbandono delle antiche certezze e posizioni, in una parola: a fermare
l’apostasia. Per ottenere questo, devono evitare l’insorgere di qualsiasi
fenditura nel proprio corpo, sia esso ecclesiastico, sociale o politico. La
forza dell’apocalittica non sta nella lucidità dell’analisi, ma nella capacità
di mantenere unito un soggetto collettivo.
Interpretando in riferimento a due ordini militanti il capitolo
dell’Apocalisse relativo ai due testimoni destinati al martirio,
Gioacchino prefigurava un lato terribilmente moderno dell’apocalittica:
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GIAN LUCA POTESTÀ
essa richiede schiere di martiri, e dà ragione del loro martirio.
Tranquillizziamoci: si tratta certo di un martirio che non prevede altra
morte che quella dei testimoni stessi, di martirio subito, che esclude
assolutamente che sia inferto ad altri. E tuttavia, nelle rappresentazioni
apocalittiche la violenza subita potrà essere riscattata solo da un
intervento divino altrettanto violento contro le forze del male.
Come si legge nell’Apocalisse di Giovanni, “quelli che non sono
né caldi né freddi, i tiepidi, li vomiterò dalla bocca”. L’Apocalisse invoca
tensione, passione, ma anche martirio, fuoco, zolfo, violenza. A ben
vedere, nel nostro Occidente religioso e politico tutti questi elementi
sono ampiamente mancanti nell’attuale dibattito ideale. Se c’è violenza,
salvo casi eccezionali non la si pratica in nome e in forza di satanismi e/
o apocalitticismi. Se volessimo arrischiarci a definire in una battuta la
condizione religiosa, politica e culturale dell’Europa di oggi, la
definiremmo semmai di tiepido letargo nel suo desiderio di quiete e
sicurezza. E chi da noi prenderebbe oggi sul serio in considerazione le
parole della Prima Lettera di Paolo ai Tessalonicesi: «Quando infatti
diranno: “Pace e sicurezza”, allora la distruzione li assalirà improvvisa
come le doglie in una donna incinta, e non avranno scampo» (1 Ep.
Thess. 5,1-3)?
Gli apocalittici, con il loro carico ambiguo di minacce e di
ricompense celesti, con le loro letture avvincenti quanto semplificatrici
di processi storici che richiederebbero invece di essere considerati con
strumenti critici capaci di restituircene le tonalità chiaroscurali, con il
loro approccio ingenuo e fondamentalista sono invece ben presenti
nelle culture religiose e nello stesso panorama cristiano extraeuropeo.
Si tratta di fenomeni vastissimi, che in larga parte sfuggono allo sguardo
frettoloso e marginale di chi, in Europa o in Italia, continua a credersi
ancora al centro del mondo. Philip Jenkins ha scritto due libri molto
interessanti al riguardo. Nel primo (The Next Christendom: The Rise
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APOCALITTICA COME RETORICA...
of Global Christianity, Oxford University Press, 2002, tradotto anche
in portoghese) mostra che il cristianesimo è in espansione nel mondo,
come l’Islam e più dell’Islam. Ma spiega anche che il cristianesimo che
cresce, fuori dall’Europa, è soprattutto profetico, visionario,
apocalittico. Rispetto ad esso, la Chiesa romana si trova in una posizione
ben più marginale di quel che si potrebbe credere guardando le nostre
televisioni.
Soprattutto perché, come documenta il suo più recente The New
Faces of Christianity: Believing the Bible in the Global South (Oxford
University Press, 2006; trad. italiana: I nuovi volti del cristianesimo,
Vita e pensiero, 2008), nei cristianesimi extraeuropei i testi biblici sono
molto letti, generalmente secondo prospettive fondamentaliste: evitando cioè la fatica della mediazione interpretativa, nella convinzione
che i testi siano applicabili in maniera diretta e immediata ai bisogni e
alle urgenze dei lettori di oggi. Quelli apocalittici rappresentano una
produzione prelibata per questi gusti e stili di lettura. Ci si accosta ad
essi come se dovessero svelare un segreto: lungamente celato per noi,
perché fosse infine comunicato proprio a noi.
Se nell’Occidente europeo tutto appare tiepido e sonnolento, al di
fuori dell’Europa le religioni e lo stesso cristianesimo paiono invece
capaci di accendere nuovi entusiasmi e passioni. E non a caso lì le
grandi Chiese storiche paiono in genere inadeguate al compito,
teologico e pastorale insieme, di incanalare e orientare le nuove forme
religiose entro orizzonti culturalmente non fondamentalisti. Per quanto
riguarda in particolare il cattolicesimo, la condanna e lo sradicamento
della teologia della liberazione, voluti dalla Chiesa romana per evitare
l’infiltrazione marxista e respingere la politicizzazione della sfera
religiosa, ha in realtà prosciugato uno spazio più ampio di criticità e di
libertà di ricerca di nuovi linguaggi teologici e di nuove retoriche
religiose, che era stato tentativamente aperto grazie all’incontro di alcuni
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GIAN LUCA POTESTÀ
teologi latinoamericani con la criticità della teologia e della cultura
dell’Occidente europeo. Quello spazio non è stato per ora
adeguatamente colmato. Fossimo davvero apocalittici, dovremmo
chiederci se vi è ancora il tempo di farlo.
Per approfondire:
Su apocalissi, apocalittica e apocalitticismi dalle origini ai giorni
nostri: G. L. Potestà, Escatologia, apocalittica, millenarismo, in Atlante
del cristianesimo. Volume I, Dalle origini alle chiese contemporanee, Utet
2006, pp. 314-335.
Per il conflitto interpretativo intorno al Libro di Daniele nei primi
secoli del cristianesimo cfr. P.F. Beatrice, Pagans and Christians on the
Book of Daniel, «Studia Patristica» 25 (1993), pp. 27-45. Per l’opera
perduta di Porfirio, P. F. Beatrice, Le traité de Porphyre contre les
Chrétiens. L’état de la question, «Kernos» 4 (1991), pp. 119-138. Il
passo citato di J. Lataix sta in J. Lataix, Le Commentaire de Saint
Jérôme sur Daniel, «Revue d’histoire et de littérature religieuses» 2
(1897), pp. 164-173 (165).
Per le interpretazioni antiche del 666, a partire da Ireneo, cfr.
L’Anticristo. Volume I. Il nemico dei tempi finali, a cura di G. L. Potestà
e M. Rizzi, Fondazione Lorenzo Valla / Arnoldo Mondadori Editore
2005. Per l’apocalitticismo statunitense: P. Boyer, When Time Shall
Be no More. Prophecy Belief in Modern American Culture, Harvard
University Press 1992. R. C. Fuller, Naming the Antichrist. The History
of an American Obsesssion, Oxford University Press 1995. Per la retorica
dell’Anticristo nella Chiesa ortodossa russa nella fase attuale: M.
Hagemeister, Das Dritte Rom gegen den Dritten Tempel – Der Antichrist
im postsowjetischen Russland, in Der Antichrist. Zur Wirkungsgeschichte
eines apokalyptischen Motivs in Judentum, Christentum und Islam, edd.
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APOCALITTICA COME RETORICA...
M. Delgado – V. Leppin, Academic Press Fribourg 2010 (in corso di
stampa).
Per il profilo e l’opera di Gioacchino da Fiore, G. L. Potestà, Il
tempo dell’Apocalisse. Vita di Gioacchino da Fiore, Laterza, Roma-Bari
2004 (ed. spagnola: El tempo de l’Apocalipsis: Vida de Joaquin de Fiore,
Trotta 2010). Per l’interpretazione gioachimita di Enoch ed Elia come
due soggetti collettivi, ovvero due ordines della Chiesa, si veda
L’Anticristo. Volume II. Il figlio della perdizione, a cura di G. L. Potestà
e M. Rizzi, Fondazione Lorenzo Valla / Arnoldo Mondadori Editore
(in corso di stampa). Per gli aggiornamenti via via apportati da
Gioacchino al proprio quadro apocalittico in relazione al mutare delle
contingenze politico-ecclesiastiche, G. L. Potestà, Apocalittica e politica
in Gioacchino da Fiore, in Endzeiten. Eschatologie in den
monotheistischen Weltreligionen, hrsg. von W. Brandes u. F. Schmieder,
Walter de Gruyter, 2008, pp. 231-248.
Su fondamentalismi a apocalitticismi negli Stati Uniti d’America
dopo l’11 settembre 2001: V. Schwediauer, Der Kreuzzug im Irak.
Christian Right und Neokonservatismus als symbiotische
Herrschaftsideologien für den US-Krieg im Irak, Peter Lang 2006 (con
ampia bibliografia).
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A FUNDAMENTAÇÃO SOCIOLÓGICA DA TEORIA SOBRE...
A FUNDAMENTAÇÃO SOCIOLÓGICA
DA TEORIA SOBRE A POBREZA DOS
ESPIRITUAIS EM PEDRO DE JOÃO
OLIVI. O. MIN. (1274/1248-1298)
Johannes Karl Schlageter OFM, Fulda1
1 O abismo social entre pobres e ricos em Olivi, visto a partir
do ponto de vista sociológico?
Com a questão de uma fundamentação supostamente sociológica
de sua teoria espiritual sobre a pobreza, o franciscano medieval Pedro
de João Olivi não deverá ser enquadrado na história da sociologia
moderna. O que o separa dessa forma moderna de ciência social, desenvolvida apenas a partir do século XIX, não é apenas o espaço de
tempo de mais ou menos 600 anos. Olivi compreendia a si mesmo
primaria e essencialmente como um teólogo cristão, que queria servir
sobretudo à sua Ordem, na época ainda jovem, como mestre de teologia e espiritual2. Nesse contexto, Olivi colocava a mensagem bíblica
O autor Johannes Karl Schlageter OFM: Nasceu em 1937, Franciscano desde 1957;
Concluiu Doutoramento em teologia em Munique em 1970; professor universitário
dos franciscanos e capuchinhos em Munique de 1970 a 1986; exerceu funções no
âmbito da formação na província da Turíngia e editou textos de Olivi 1986-2003;
desde então vem realizando trabalhos sobre a história da província e da ordem. Tradução de Enio P. Giachini.
1
Em relação à forma de pensar e à importância social, cf. sobretudo as contribuições
em: BOURREAU, Alain; PIRON, Sylvain (eds.). Pierre de Jean Olivi (1248-1298). Pensée
scolastique, Dissidence spirituelle et Societé. Actes du colloque de Narbonne mars
1998. Paris, 1999 (Études de philosophie médiévale, 79).
2
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 31-63, jul./dez. 2010
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JOHANNES KARL SCHLAGETER
no ponto nuclear de seu pensamento; isso porque eram precisamente
os textos bíblicos que deviam ser explicitados, interpretados e colocados em aberto em sua força de atuação prática. Por isso, a maior parte
das obras de Olivi foi dedicada à explicitação teológica e à interpretação espiritual de escritos bíblicos, tendo em vista sempre seu significado prático para seu tempo3. Assim, os fenômenos e problemas sociais
não poderiam passar despercebidos para ele, uma vez que, à época, eles
tinham uma forte influência sobre a efetivação prática da mensagem
bíblica, especialmente na Igreja e na Ordem4. Abordando aquelas questões que ele trabalhou escolasticamente como sendo as bases da vida
da ordem, Olivi pesquisou, já bem cedo, a prática de vida de sua própria Ordem franciscana na sociedade de então. Nessas questões que
mais tarde foram compiladas sob o título Questiones de perfectione
evangélica (Questões sobre a perfeição evangélica), as questões voltaCf. de modo especial, VIAN, Paolo. L‘Opera esegetica di Pietro di Giovanni Olivi. In:
Pietro di Giovanni Olivi, Opera edita et inedita. Atti delle Giornate di Studio
Grottaferrata (Roma) 4 – 5 Dicembre 1997. Ed. ARCHIVUM FRANCISCANUM HISTORICUM
– COLLEGIO S. BONAVENTURA. Grottaferrata (Roma) 1999, p. 395-454.
3
Cf. especialmente BURR, David. Apokalyptische Erwartung und die Entstehung der
Usus-pauper-Kontroverse; SCHLAGETER, Johannes. Die Entwicklung der Kirchenkritik
des Petrus Johannis Olivi von der „Quaestio de altissima paupertate“ bis zur „Lectura
super Apocalypsim“; FLOOD, David. Politik und Theorie im Franziskanerorden am
Ende des 13. Jahrhunderts. In: Wissenschaft und Weisheit [WiWei] 47 (1984) 84-99;
100-131; 140-163; PIRON, Sylvain. Parcours d`un intellectuel franciscain. D`une théologie
vers une pensée sociale. Paris, 1999. Mas Olivi não se restringia aos fatores sociais que
codeterminam a efetivação da mensagem bíblica. O aspecto da alma e do espírito de
uma decisão a favor da mensagem bíblica, sobretudo do Evangelho de Jesus Cristo,
ocupava o centro de seus interesses e cunhou sua imagem de homem e de liberdade
humana de decisão. Cf. SCHLAGETER, Johannes. Die Auseinandersetzung zwischen
griechischem und biblischem Menschenbild im franziskanischen Freiheitsverständnis
des Petrus Johannis Olivi. In: WiWei 60 (1997) 65-86; SCHMUCKI, Albert. Selbstbesitz
und Hingabe. Die Freiheitstheologie des Petrus Johannis Olivi im Dialog mit dem
modernen Freiheitsverständnis Mönchengladbach, 2009 (Veröffentlichungen der
Johannes-Duns-Scotus-Akademie für franziskanische Geistesgeschichte und
Spiritualität, 27).
4
32
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 31-63, jul./dez. 2010
A FUNDAMENTAÇÃO SOCIOLÓGICA DA TEORIA SOBRE...
das a um ser-pobre no sentido do Evangelho de Jesus Cristo, tinham
uma grande importância, mas ao mesmo tempo uma importância
controversa, tanto dentro quanto fora da Ordem5. Isso porque a realidade social na Igreja da época havia se afastado muito do ser-pobre de
Jesus e de seus primitivos companheiros de caminho, como vem testemunhado nos escritos do Novo Testamento. É verdade que Francisco de Assis comprometera renovadamente a Ordem franciscana com
o ser-pobre de Jesus Cristo, compreendido como “pobreza suprema” e
imagem diretriz de todo caminho de Jesus6. Mas a realidade social da
Ordem quase não mais correspondia à finalidade firmada originariamente. Foi contra essa discrepância que Olivi investiu, com especial
ardor, em suas discussões sobre a “pobreza suprema” em conformidade
com o Evangelho. Na discussão teorético-escolástica sobre a compreensão franciscana da pobreza, Pedro de João Olivi, seguiu quiçá amplamente seus predecessores franciscanos, tais como Boaventura de
Bagnoregio e João Peckham. Olivi, porém, queria orientar essas discussões teóricas marcadamente na realidade social de pessoas pobres, a
fim de que, frente ao abismo social entre pobres e ricos, a compreensão teórica da pobreza dentro da Ordem pudesse estar conectada com
a situação e autocompreensão dos pobres. Isso fundamenta o modo
de ser próprio da teoria da pobreza de Olivi; isso porque, diversamenCf. SCHLAGETER, Johannes. Armutsstreit. In: Lexikon für Theologie und Kirche. 3. ed.
[LThK³]. Vol. 1, Freiburg/Basel/Rom/Wien, 1993, 1014s.
5
Cf. ESSER, Cajetan. Die Armutsauffassung des hl. Franziskus. In: FLOOD, David (ed.).
Poverty in the Middle Ages. Werl/Westf. 1975, p. 60-70 (Franziskanische Forschungen.
27); SCHLAGETER, Johannes. Wurde die Armutsauffassung des Franziskus von Assisi
von der „offiziellen“ Kirche schließlich abgelehnt? Francisci Armutsverständnis und
der Streit über „dominium Christi“ und „paupertas Christi“ unter Papst Johannes
XXII. (1316-1334). In: Franziskanische Studien 60 (1978) p. 97-119. Sobre a realidade e a compreensão da pobreza na Idade Média, cf. sobretudo LINGREN, Uta. Armut
I. Soziologie; SCHLAGETER, Johannes: Armut II. Theologie. In: Lexikon des Mittelalters
[LMA], vol. 1. München/Zürich, 1980, p. 984-986; 986-987.
6
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 31-63, jul./dez. 2010
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JOHANNES KARL SCHLAGETER
te de seus predecessores, ele entrou na abordagem de fenômenos e
problemas sociais que marcaram o ser-pobre de pessoas pobres e que
tinha algo a ver com o abismo social entre pobres e ricos. E uma vez
que ali surgem impostações de problemas, análises, tentativas de compreensão e discussões crítico-teóricas que lembram as diversas formas
da sociologia moderna, permito-me expor um discurso que intenta
uma fundamentação sociológica da teoria da pobreza de Olivi; isso
porque, do mesmo modo que as diversas correntes da sociologia moderna problematizam, analisam, interpretam ou criticam procurando
compreender os nexos sociológicos7, assim também Olivi procurou
problematizar, analisar, interpretar e criticar o abismo entre pobres e
ricos que ele já conhecia a partir da Bíblia. A partir dali ele chegou a sua
teoria da pobreza, ligando-a com uma interpretação “espiritual” da história. Essa teoria se apoiava, propriamente, na visão futurista de uma
nova era do Espírito Santo, ao modo como foi desenvolvida pelo abade cisterciense Joaquim de Fiore (circa 1135-1203)8. Foi isso que cunhou de maneira especial a teoria da pobreza de Olivi, a qual pode ser
compreendida por isso como teoria espiritual da pobreza.
2 O abismo social em seus efeitos
Se a fala de um abismo social entre pobres e ricos corresponde
propriamente falando à realidade social, isso é coisa que precisa ser
uma vez fundamentado. No próprio Olivi não encontramos esse modo
de falar de maneira expressa, embora, para ele, muitas palavras e imagens bíblicas apontem para uma separação, quase que insuperável, entre pobres e ricos. Assim, ele lê no Eclesiástico: “Por acaso a hiena vive
Cf. para isso, a descrição dos diversos métodos da sociologia moderna em: HELLE,
Horst Jürgen. Soziologie. I. Disziplin. In: LThK³ 9, p. 799-801.
7
8
Cf. SPEER, Andréas. Joachim vom Fiore. In: LThK3 5, p. 854s.
34
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A FUNDAMENTAÇÃO SOCIOLÓGICA DA TEORIA SOBRE...
em paz com o cachorro / e o rico em paz com o pobre? A presa do leão
é o asno selvagem no deserto; assim os pequenos são o pasto dos ricos.
A humildade é um tormento para o orgulhoso,/ um tormento para o
rico é o pobre”9. Por fim, na história edificante tirada do Evangelho de
Lucas, que conta sobre um homem rico e o pobre Lázaro10, a
contraposição entre um pobre e um rico, no além se transforma “num
abismo profundo e insuplantável”11. Aquele afastamento e indiferença
pelos quais o rico, em seu gozo de vida, não tomava conhecimento do
necessitado frente à sua porta, e não pôde ajudá-lo, acaba agora excluindo-o para sempre daquela proteção que consola o pobre Lázaro no
seio de Abraão, retirando-o da miséria sofrida. Uma tal visão do abismo que separa pobres e ricos parece intensificada e capaz de chamar
para a conversão apenas na medida em que os ricos, num falso caminho de busca de si-mesmos, aqui no aquém, se fecham totalmente
para a necessidade dos pobres. Essas palavras e imagens da Bíblia, comentadas muitas vezes por Olivi, parecem não ter muito a ver com a
realidade social de muitas pessoas. É possível ver tal realidade na medida em que, numa sociedade, não se consegue ver essa nefasta
contraposição entre pobres e ricos, mas antes se supõe haver passagens
graduais e transponíveis da camada ínfima dos pobres para a camada
superior dos ricos e super-ricos. Por isso, diversamente do que em
Olivi, são problematizadas palavras e imagens bíblicas da contraposição
Cf. Eclo 13,18s. Cf. para isso, SCHLAGETER, Johannes (Ed.). Das Heil der Armen und
das Verderben der Reichen. Petrus Johannis Olivi – Die Frage nach der höchsten Armut.
Werl/Westfalen 1989, p. 86 (Franziskanische Forschungen, 34). Die „Quaestio de
perfectione evangelica octava: De altissima paupertate“, publicada e comentada ali, é o
texto diretriz da teoria oliviana de pobreza.
9
Cf. Lc 16,19-31. Cf. para isso, PETRUS IOHANNIS OLIVI: Lectura super Lucam et
Lectura super Marcum. Critice editae a Fortunato IOZZELLI. Grottaferrata (Roma) 2010,
p. 521-540 (Collectio Oliviana, 5).
10
11
Lc 16,26; cf. SCHLAGETER, Das Heil, 97.
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35
JOHANNES KARL SCHLAGETER
entre pobres e ricos, porque muitas pessoas em nossa época acreditam
ter alcançado outro ocular em relação à realidade social. Mas também
Olivi não se contentou em interpretar e decifrar palavras e imagens
bíblicas. Ele problematizou e analisou a realidade social de sua época,
lançando mão de percepções que evidenciavam, de certo modo sociologicamente, um abismo profundo entre pobres e ricos. Escreveu então de forma fundamental: “Imagina-se que os incapazes
(Vermögenslosen) nada podem temporalmente nas coisas e
consequentemente nada podem junto às pessoas, nem para si nem
para os outros, e não se imagina que detenham poder,
correspondentemente ao mundo, de fazer o bem a alguém, de impingir
prejuízos a alguém, e o que é pior, são considerados como total e
absolutamente incapazes de se defenderem contra acusações de ricos e
poderosos”12. Olivi referia-se à observação e à opinião cotidiana em
seu tempo e mundo. Àqueles que, como pé-rapados (Habenichtse),
não tinham poder, não se atribuía nenhum poder e nenhuma faculdade, tanto no âmbito das coisas, na realidade material, portanto, quanto no âmbito pessoal e social, portanto no universo humano e na realidade. Bem outra era a situação junto aos ricos: “reputava-se que os
ricos e poderosos, ao contrário, tudo poderiam fazer, tanto a si mesmos quanto aos outros, tanto fazendo o bem quanto impingindo danos. [...] Por isso, os ricos não só gozam de grande reputação mas são
também adulados subservientemente e honrados”13. Todavia, Olivi não
avalia de imediato o que ele próprio descreve como uma percepção e
Cf. SCHLAGETER, Das Heil, 86: „inopes nihil reputantur temporaliter posse in rebus
ac per consequens nec in hominibus nec sibi nec aliis, nec reputantur secundum
mundum habere potestatem bene faciendi alicui aut aliquem damnificandi, et quod
plus est, omnino reputantur impotentes ad defendendum se a calumniis divitum et
potentum.“
12
Ebd.: „divites et pecuniosi reputantur per contraria omnia posse tam sibi quam aliis
tam in benefaciendo quam in damnificando. […] Unde divites non solum ab aliis
plurimum reputantur, sed etiam valde adulatorie subserviuntur et honorantur.“
13
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A FUNDAMENTAÇÃO SOCIOLÓGICA DA TEORIA SOBRE...
opinião geral e cotidiana. Todavia, ele deixou claro que essa observação
e opinião geral só é correta na medida em que as pessoas admitem
como válidos apenas valores temporais e poder mundano. Mas, para
ele, esse era o padrão de medida de sua época, com predomínio quase
que genérico, segundo o qual riqueza e poder, de um lado, e pobreza e
impotência do outro eram considerados de certo modo como idênticos, fazendo surgir assim, em sua plena atualidade, o abismo social
entre pobres e ricos. Isso porque o que separa pobres e ricos tem a ver,
é verdade, com a constituição econômica de uma sociedade; mas é só
a percepção e opinião generalizada que transforma os ricos em todopoderosos e os pobres em inúteis, uma vez que esse modo de ver olha
apenas para as possibilidades e habilidades temporais e terrenas. Isso
pode ser uma visão grosseira e questionável da realidade social. Todavia, na época de Olivi determinava a ordem social de forma decisiva,
permanecendo até os dias de hoje seus efeitos. Também em sociedades
mais igualitárias é comum ouvirmos a expressão: “Se tens algo, és algo”.
Nesse sentido, o abismo, testemunhado na Bíblia e descrito por Olivi,
entre pobres e ricos, mesmo na percepção em vigor dentro de nossa
sociedade, e sobretudo na realidade social de nosso mundo dividido,
parece ainda não estar superado.
Para Olivi, isso vem ligado com a estrutura sensório-geral da percepção humana:
imagina-se que eles (os pobres) não possuem ornato esplêndido e
pomposo e a cortesia de companhias do mundo – como aparece
no aparato esplêndido das vestes, dos vasos, e outros acessórios, de
bandejas, de palácios, de cavalos e cavaleiros, de séquitos, núncios
e servos. Mas esse aparato é avaliado como admirável pelos sentidos
humanos e pelas afeições sensíveis, de tal modo que reflete como
reverenciável, agradável e admirável também uma pessoa deformada e de costumes vis. O contrário disso tudo pode transformar
também os que são ornados pela ética e os hábeis de corpo em
desprezíveis e abomináveis. [...] Assim, do mesmo modo que o
pobre aparece no modo de ver dos outros como impotente e
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desprezível, o próprio pobre aparece para si mesmo intimamente como ainda mais impotente e desprezível. Isso porque
sente a si mesmo mais intimamente como impotente para tudo
aquilo que não consegue fazer sem o auxílio das posses temporais. Sente a si mesmo também mais íntima e constantemente
destituído de todo ornato, pompa e séquito (comitatus). Também percebe claramente que na visão de todos aqueles que estimam essas coisas, é quase nada. [...] Por isso, a não-posse é a
melhor oportunidade para experimentar-se como alguém que nada
é, tanto em sua existência quanto em sua aparência14.
Portanto, aquilo que alguém pode gerar para si mesmo em dispêndio e pompa, na percepção sensorial, em vista dos homens, que
assim avaliam as coisas, irá ter para ele um reconhecimento social tão
alto que já nada terá a ver com suas qualidades pessoais físicas e morais.
Mas aquele que não pode dispor para si desse dispêndio e pompa dificilmente encontrará o reconhecimento social que mereceria em virtude de suas qualidades pessoais. Segundo Olivi, nos pobres, esse menosprezo e depreciação sensório-exterior, essa negativa de reconhecimento social são internalizados. Isso porque os próprios pobres se apropriam amplamente daquela percepção e avaliação sensorial que se define pelas exterioridades, pelo dispêndio e pompa externos. Segundo
Olivi, isso leva a que os pobres não só em sua aparência externa e em
Ebd. 86s: „Cernuntur enim non habere splendidum et pomposum ornatum et
comitatum mundi – qualis apparet in splendido apparatu vestium, vasorum et aliorum
supellectilium, ferculorum, palatiorum, equorum et equitum, sociorum et nuntiorum
et ministrorum. Hic autem apparatus miro modo reputatur ab humanis sensibus et a
sensualibus affectibus, ita quod hominem etiam deformem et moribus vilem reddunt
reverendum, gratum et admirabilem. Contraria vero praedictis reddunt etiam moribus
ornatos et corpore aptos abiectos et viles. […] Sicut autem in aspectu aliorum pauper
apparet impotens et abiectus, sic ipsemet pauper sibimetipsi apparet multo magis
intime impotens et abiectus. Sentit enim intime omnino se impotentem ad omne illud,
ad quod sine adiutorio temporalium facultatum perveniri non potest. Sentit etiam
intime et continue omni ornatu, pompa et comitatu se destitutum. Cernit etiam clare
in aspectu omnium talia appretiantium se fere nullum. […] Unde inopia summa est
occasio sentiendi se esse nihil tam secundum existentiam quam secundum apparentiam.“
14
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seu reconhecimento social, mas internamente em sua própria existência, se sintam quase como um nada. Esse autodesprezo dos pobres que
alcança até o mais íntimo era para Olivi a última consequência do
abismo social entre pobres e ricos. Isso nem sempre pode ser visto de
forma assim tão nítida na realidade social. Todavia, até os dias de hoje,
pessoas, por exemplo, que não têm trabalho e só conseguem sobreviver com o auxílio dos outros, são atingidos por um tal menosprezo
social e por tal autodepreciação, como se fossem supostamente associais.
Se Olivi vê isso em sua concepção como oportunidade e chance para
que, nesse menosprezo e autodepreciação social, os pobres encontrem
a via para a virtude da humildade cristã, então até hoje não haverá
muitos pobres que queiram segui-lo. Em sua época e em seu mundo
isso pode ter sido diferente, porque ali, apesar de tudo, os valores cristãos estavam em alta, e foram revivificados na convocação para a conversão e a renovação de vida não apenas do ponto de vista franciscano.
Era isso que compunha o plano de fundo daquela esperança bíblicocristã, para dentro da qual Olivi fez desembocar definitivamente sua
análise do abismo social entre pobres e ricos.
3 O abismo social em sua origem
O próprio Olivi percebeu que o Ascenso para a humildade na
descoberta dos valores cristãos e da esperança cristã não é autoevidente.
Mas, segundo ele, isso se aplicava sobretudo aos ricos e mesmo para
aqueles que, nas igrejas e comunidades cristãs, têm acesso ao poder e à
riqueza: “Naqueles que possuem um bem comum, mesmo não sendo
próprio, não falta o poder e os aparatos, a partir de cuja falta, segundo
se fundamentou acima, pode nascer a humildade. Ao contrário, hoje,
os que em sua maioria possuem abundância de poder, de aparatos e
fama são mais aqueles que ostentam os bens comuns de igrejas e mosteiros do que aqueles que os têm como próprios. E vemos surgir quase
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mais ambições e presunções daqueles do que destes”15. Essa visão crítica de Olivi em relação às Igrejas e monastérios de sua época via suas
posses comuns sob a insígnia do poder e da riqueza. Assim, segundo
ele, as pessoas que mantinham essa posse comum sob suas mãos quase
não tinham motivos e chance para a humildade, mas antes para a ambição
e a arrogância, quase mais do que outros ricos. O abismo social entre
pobres e ricos, portanto, não foi superado pela posse comum das igrejas e
monastérios. Segundo uma visão crítica difundida (videmus – vejamos),
aqui quase mais que noutros lugares, ele aparece em sua corruptibilidade
nefasta. Foi precisamente essa visão crítica que fez com que Olivi buscasse questionar a respeito da origem desse abismo social.
E ele acreditava encontrar uma resposta, uma vez que precisamente os bens comuns das igrejas e dos monastérios tinham em vista originariamente uma comunalidade, fundamentada, filosófica e biblicamente, no trato com os bens terrenos, que a Igreja abandonou injustamente. Uma palavra apócrifa, atribuída ao bispo romano Clemente I e
que encontrou um meio de permanecer até o direito eclesiástico da
Idade Média, aponta para a filosofia platônica: “o uso comum de tudo
que está neste mundo deveria pertencer a todas as pessoas. Mas por
causa da iniquidade um diz que isso é o seu e o outro que aquele é o
seu. E assim surgiu a divisão entre os mortais”16. Ademais, atesta-se a
Ebd. 89: „Non enim in habentibus communia, etsi non propria, est omnis defectus
potestatis et apparatus ex quo secundum primam rationem surgere potest humilitas,
immo utplurimum plus hodie abundant in potestate et apparatu et gloria ex eis surgente
qui tenent communia ecclesiarum et monasteriorum quam habentes propria; et maiores ambitiones et praesumptiones ex eis fere surgere videmus quam ex aliis.“
15
Citado em op. cit. 98 nota 19. Cf. [PSEUDO-CLEMENS:] Recognitiones lib. 10 nr. 5. In: Die
Griechischen Christlichen Schriftsteller der ersten drei Jahrhunderte, vol. 51, 327. Cf. especialmente Corpus Iuris Canonici, C 12 q 1 c 2 § 1. In: Ed. Emil FRIEDBERG, Leipzig ²1879,
Pars I, 676: „Communis usus omnium, que sunt in hoc mundo, omnibus hominibus esse
debuit, sed per iniquitatem alius hoc dixit esse suum, et alius istud. Et sic inter mortales
facta est divisio“. O próprio Olivi refere-se a esse texto do Corpus Iuris Canonici.
16
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origem platônica desse pensamento: “Sobre isso um grande sábio dentre os gregos, que sabia disso, disse que todos os bens deveriam ser
comuns dos amigos”17. Mas os bens comuns das Igrejas e monastérios
já não mais correspondem a esse modelo de um uso comum de todos
no mundo: “Ele não disse que o uso comum deveria pertencer a esse
ou àquele colégio, mas a todos os homens em comum. Assim seria,
então, no estado de inocência”18. Essa possibilidade paradisíaca de evitar toda partição dos bens e assim superar o abismo entre pobres e
ricos, foi aniquilada através da queda original e através da iniquidade
dos homens. Para Olivi, porém, essa oportunidade originária tornouse no modelo permanente de comunidade de bens. Ali, pareceu-lhe
modelar sobretudo a imagem da comunidade originária de Jerusalém,
como foi apresentada na história dos Atos dos apóstolos. Em virtude
de uma decisão livre, definida pela força do amor, surgiu entre os
cristãos primitivos uma comunidade na qual tudo pertencia a todos:
“A comunidade dos fieis era um só coração e uma só alma. Ninguém
considerava sua propriedade o que possuía. Tudo entre eles era comum. Com grande força os apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus e todos os fieis gozavam de grande estima. Não
havia entre eles indigentes. Os proprietários de campos ou casas vendiam e iam depositar o preço do vendido aos pés dos apóstolos. Repartia-se então a cada um segundo a sua necessidade” (At 4,32-35).
Olivi compreendia essa imagem ideal no sentido de um modelo originário paradisíaco de uma comunidade universal de todos os homens:
“correspondentemente a essa imagem pode-se admitir uma comunidade [...] da qual a história dos Atos dos apóstolos diz que “tinham
tudo em comum”. Mas se quisessem reivindicar algum direito sobre
Citado por SCHLAGETER, Das Heil 99 Anm. 20. cf. Corpus Iuris Canonici, C 12 q 1
c 2 § 2. In: Ed. FRIEDBERG I, 676: „Denique Grecorum quidam sapientissimus, hec ita
esse sciens, communia debere, ait, esse amicorum omnia“.
17
SCHLAGETER, Das Heil 98: „non dixit quod communis usus debuerit esse isti vel illi
collegio, sed omnibus hominibus generaliter. Sic enim fuisset in statu innocentiae“.
18
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aqueles bens comuns, como fazem hoje os membros dos colégios eclesiásticos e monásticos, não se poderia afirmar com pleno sentido que
“eram um só coração e uma só alma”19. Mais tarde, Olivi pôde fundamentar mais em detalhes essa imagem ideal da originária comunidade
de Jerusalém em uma interpretação expressamente franciscana20. Todavia, o que lhe interessa aqui é apenas arrolar essa imagem ideal frente
a um abismo social mesmo em comunidades eclesiais e monásticas:
Mas hoje, seguramente, luta colégio contra colégio, pois reivindicam algum direito sobre seus bens comuns, uma vez que ali
não há aquela comunidade universal que se estende a todos os
homens. Assim, o que pertence a um colégio não pertence a
outro. Há também uma experiência infame que ensina quantos
processos e intrigas há, quanta inveja e contendas por prendas
entre os detentores e os que as pleiteiam. Isso não se daria se ali
não houvesse reivindicação de direito, pelo menos no que diz
respeito à partição, ou se não houvesse apropriação, pelo menos
em relação ao necessário sustento. [...] Abreviando: se não extirparmos totalmente do coração do homem o amor à jurisdição
temporal e às coisas temporais, não poderá haver qualquer comunidade destituída do predito mal21.
Id. loc. cit. 99: „secundum hunc modum est accipienda communitas, […] de qua et
in Actibus dictum est ‘erant illis omnia communia´. Si enim aliquid iuris vellent sibi in
illis communibus, sicut faciunt hodie membra collegiorum ecclesiasticorum et
monasticorum, non plenarie dici posset Actuum IVo. quod ‘erat illis cor unum et anima
una´“ (Cf. At 4,32).
19
Cf. SCHLAGETER, Das Heil, 178s. Cf. especialmente PETER OF JOHN OLIVI: On the
Acts of the Apostles, Edited by David FLOOD. St. Bonaventure, New York, 2001, 9094; 124-137.
20
Id. loc. cit.: „Certum est autem quod collegium hodie pugnat contra collegium, quia
aliquid iuris sibi vendicant in suis communibus et quia non est ibi communitas illa
generalis quae est ad omnes homines. Unde quod est unius collegii, non est alterius.
Praebendati etiam et praebendandi quot causas et litigia, quod invidias et contentiones
pro praebendis inter se habeant, celebris experientia docet; quod non esset, si nulla
esset ibi iurisdictio saltem ad dispensandum aut si nulla appropriatio saltem quantum
ad necessarium sustentamentum. […] Et breviter: nisi totaliter tollatur amor iurisdictionis
temporalis et temporalium a cordibus hominum, non potest esse aliqua communitas
sine praedictis malis.“
21
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Assim, segundo Olivi, aquilo que os próprios embates e
afrontamentos sociais fizeram surgir nas comunidades eclesiais e monásticas foi o amor a bens terrenos e temporais, que provocou as mais
diversas reivindicações de direito, dos quais de um modo ou de outro
se quereria se apropriar. O próprio Olivi já deixara claro que ali não
estava em questão partilha justa ou o necessário sustento para a vida,
mas na maioria das vezes poder e riqueza, pompa e luxo para alguns
poucos22. Isso porque o amor aos bens temporais do qual fala Olivi
aqui, para ele, era idêntico com o pecado originário da cobiça, que
coloca o elemento tereno-temporal, como ídolo, no lugar de Deus e
da plenitude eterna prometida por ele. Aqui não vamos aprofundar
mais esse plano de fundo teológico da crítica social de Olivi. Isso porque para uma fundamentação sociológica da teoria espiritual da pobreza oliviana basta de início chamar a atenção para seus princípios de
uma teoria crítica da sociedade. Baseado na figura de uma comunidade de todos os bens e de todos os homens, universalmente unida,
fundamentada em Platão e na Bíblia mas por ele desenvolvida e ampliada, Olivi submeteu a sociedade vigente de sua época, adentrando
inclusive nas Igrejas e Ordens, a uma dura crítica; isso porque, para ele,
a origem da divisão social entre os homens e o surgimento do abismo
entre pobres e ricos jaz no coração do homem, que está possuído por
um amor distorcido ao terreno-temporal.
4 A realização espiritual de uma sociedade universal unida
Como será possível realizar uma sociedade, universalmente unida,
de todos os bens e de todos os homens, frente a uma história da hu-
22
Cf. nota 14.
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manidade determinada pelo pecado? Nessa questão, entre outros, Olivi
levou a sério um argumento crítico tirado de Aristóteles contra a concepção platônica da comunidade dos bens:
Aristóteles demonstra na política: Se tudo fosse comum, haveria no mundo desordens e dissensões infinitas. Seria impossível
aos homens, cheios de várias cupidez e corrupção, entrarem em
acordo na distribuição e aceitação de coisas comuns e se portarem ordenadamente, maximamente quando às vezes, mais precisam aqueles que menos servem à comunidade, e de outros que
se dedicam a tarefas mais nobres do que as tarefas da agricultura
e do que outras pelas quais se adquirem diretamente as coisas
temporais. Também seria difícil encontrar pessoas que se preocupassem cuidadosamente da agricultura e de outras coisas necessárias ao sustento da vida; pois ninguém cuida tão bem do
comum como cuida do próprio, sobretudo quando se considera
esse cuidado menos nobre. Da distribuição diversificada de tarefas mais e menos nobres iria surgir também inevitavelmente
inveja, contendas e discórdias; assim como da outra distribuição de coisas feita respectivamente de acordo com o status e a
tarefa e segundo o que exigem a necessidade e a indigência. Isso
aconteceria mais do que quando nem tudo fosse comum; pois
em virtude dessas comunalidades todos se sentiriam iguais em
tudo. Se agora se multiplicam os enganos, o roubo e o latrocínio, então seria pior; pois alguém deseja mais facilmente alguma coisa onde tem alguma parte, como um homem que tem
parte nas coisas comuns, do que alguém que nada tem, como
um homem que nada tem em coisas que são próprias dos outros. Em coisas que se guarda com menos cuidado poderia ocorrer
mais engano e latrocínio do que nas coisas que se guarda com
cuidado. Mas qualquer um cuida de modo mais dedicado e
mais cuidadoso do próprio do que do comum. Na distribuição
do comum também poderia facilmente multiplicar-se as preferências pessoais, por exemplo, aqueles que presidem as distribuições poderiam dar mais aos amigos do que aos outros. Poderiam facilmente multiplicar-se então as ficções e simulações de
várias necessidades. É portanto melhor e mais propício para a
44
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totalidade dos homens e para o bem comum que as coisas sejam próprias, do que se fossem comuns23.
Enquanto resume a fundamentação aristotélica tradicional da propriedade privada, atualizando-a no sentido da sociedade feudal e seu
status social, Olivi faz referência àqueles perigos que ameaçavam uma
comunidade de bens através da ambição e corrupção humanas. Se já a
fundamentação aristotélica de propriedade privada fora talhada de acordo com a antiga sociedade patriarcal escravocrata e sua regulamentação
problemática, a argumentação, como foi referida por Olivi, pressupõe
Cf. SCHLAGETER, Das Heil, 74f: „Aristoteles probat in Politicis quod si omnia essent
communia, infinitae essent in mundo deordinationes et dissensiones. Impossibile enim
esset homines cupiditatibus variis et corruptionibus plenos in distributione et acceptione
rerum communium concordare et ordinate se habere, maxime cum aliquando pluribus
indigerent qui minus communitati prodessent, et plus illi qui vacarent officiis nobilioribus
quam sint officia agriculturae et quaecumque alia quibus temporalia directe acquiruntur.
Difficile etiam esset invenire qui de agricultura et de aliis ad victum necessariis curam
diligentem haberent, quia nullus ita curat de communibus sicut de propriis, et maxime
quando cura huiusmodi ignobilis aestimatur. Ex distributione etiam varia officiorum
nobiliorum et ignobilium necessario orirentur invidiae, lites et discordiae; sicut et ex
alia distributione rerum facta secundum decentiam status et officiorum et secundum
exigentiam necessitatum et indigentiarum, et magis quam si omnia non essent communia,
quia ratione talis communitatis magis reputarent se omnes in omnibus pares. Si etiam
nunc multiplicantur fraudes et rapinae et furta, multo magis hoc fieret tunc, quia
facilius quis concupiscit id in quo aliquid habet, sicut habet homo in rebus communibus,
quam id in quo nihil habet, sicut homo nihil habet in rebus aliorum propriis. In rebus
etiam minus diligenter custoditis facilius possent fraudes et furta committi quam in
diligenter custoditis. Fortius autem et diligentius custodit quilibet propria quam
communia. In distributionibus etiam communium facilius possent multiplicari
acceptationes personarum, utpote quod qui praeessent distribuendis, plus darent amicis
quam aliis. Multiplicarentur etiam tunc de facili fictiones et simulationes variarum
necessitatum. Ergo melius et expedientius est universitati hominum et bono communi
quod res sint propriae, quam si essent communes.“ Cf. ARISTOTELES: Politica lib. 2 cap.
2-4. In: Opera (cum Averrois Commentariis), Tomus III. Venetiis 1562 Nachdruck
Frankfurt / Main 1962, 234b-238a; Opera, Edition der ‚Academia Borussica’ von
Immanuel BECKER / Otto GIGON, Bd. 2. Berlin ²1979, 1262b-1267b.
23
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a ordenação de uma sociedade feudal e de classes que nem sequer conhecia fundamentalmente e do ponto de vista da base da lei uma igualdade de direitos e oportunidades. Em sua crítica desse argumento
escreveu então Olivi:
Tudo isso que se toca nesse raciocínio encontra lugar junto àqueles
que abandonam o que lhe é próprio, obrigados ou não totalmente
livres e de boa vontade, e com tal defeito da vontade e da imperfeição, nesse defeito, se dedicam ao que é comum ou à comunalidade.
Por isso, o raciocínio de Aristóteles é bom, em parte contra Platão,
que simplesmente decidiu que tudo deveria ser comum, também
as esposas, e que tudo deveria ser trazido para essa comunidade,
tanto o perfeito quanto o imperfeito, tanto o voluntário quanto o
involuntário. Mas isso não encontra lugar naqueles que professam
voluntariamente essa comunidade, amam-na, sobretudo naqueles
que amam a altíssima pobreza24.
É só a entrega perfeita e voluntária e amorosa a uma comunidade
com intenção universal que irá realizar aquela sociedade modelar de
todos os bens e de todos os homens, que Olivi tinha em mente como
alternativa curativa, primeiramente na imagem da comunidade originária, e agora no amor franciscano pela altíssima pobreza. O decisivo
para Olivi, portanto, não era a comunidade exterior de posses e direitos, mas o ser-pobre espiritual internalizado, era vivido sobretudo no
amor à altíssima pobreza de Jesus Cristo como a imagem diretriz de
seu caminho e de seu anúncio do Reino de Deus e assim se expressa
Cf. SCHLAGETER, Das Heil, 167: „omnia ista quae in hac ratione tanguntur, locum
habent in illis qui coacte aut non plene voluntarie propria relinquerent et cum tali
defectu voluntatis et imperfectionis in hoc defectu inclusae communibus seu
communitati se darent. Unde ratio Aristotelis bona est in parte contra Platonem qui
simpliciter censuit debere omnia esse communia etiam uxores, et quod omnes ad istam
communitatem traherentur tam perfecti quam imperfecti, tam voluntarii quam
involuntarii. In voluntariis autem professoribus et amatoribus communitatis locum
ista non habent et maxime in amatoribus altissimae paupertatis.“
24
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decisivamente na vida e no anúncio de seus discípulos e apóstolos e
como alternativa frente à ordem social vigente.
Com isso, Olivi está se referindo ao texto da Regula bullata dos
frades menores, onde no 6. capítulo se diz:
Essa é aquela sublimidade da altíssima pobreza / que vos institui a vós, meus caríssimos irmãos, / em herdeiros e reis do reino
dos céus, / feitos pobres em coisas, mas ricos em virtudes. / Essa
deve ser a vossa porção, que vos conduz à terra dos viventes. /
Pertencendo total e plenamente a ela, / por causa do nome de
nosso Senhor Jesus Cristo, buscai / nada mais querer possuir
para sempre debaixo do céu25.
Na medida em que aderiu a isso, Olivi definiu claramente a realização alternativa da sociedade exemplar em sua época como projeto
espiritual franciscano. Descreveu-o de forma ainda mais precisa:
O mais excelso louvor da altíssima pobreza, pelo menos no modo
de uma reivindicação de direito, não se volta mais para essa
terra do que para aquele, não se volta mais para essa do que para
aquela casa. E quem o observa integralmente será mais solícito
em cuidar dessa pobreza para si do que para os outros; e assim,
inevitavelmente, irá desaparecer qualquer motivo de divisão e
Cf. Regula Bullata cap. 6, 4-6: „Haec est illa celsitudo altissimae paupertatis, quae
vos, carissimos fratres meos, heredes et reges regni caelorum instituit, pauperes rebus
fecit, virtutibus sublimavit (cfr. Iac 2, 5). Haec sit portio vestra, quae perducit in terram
viventium (cfr. Ps 141, 6). Cui, dilectissimi fratres, totaliter inhaerentes nihil aliud pro
nomine Domini nostri Iesu Christi in perpetuum sub caelo habere velitis.“ In: ESSER,
Cajetan: Die Opuscula des hl. Franziskus von Assisi. Neue textkritische Edition. Zweite,
erweiterte und verbesserte Auflage, besorgt von Engelbert GRAU (Spicilegium
Bonaventurianum, 13). Grottaferrata (Roma) 1989, 369 [A seguir citada como: ESSER
/ GRAU, Opuscula] – Para a tradução em alemão cf. Franziskusquellen. Die Schriften des
heiligen Franziskus, Lebensbeschreibungen, Chroniken und Zeugnisse über ihn und
seinen Orden, Im Auftrag der Provinziale der deutschsprachigen Franziskaner,
Kapuziner und Minoriten herausgegeben von Dieter BERG / Leonhard LEHMANN.
Kevelaer 2009, 98 [A seguir citado como: Franziskus-Quellen]. Cf. para isso Tg 2,5; Sl
142,6. Português: SILVEIRA, I. OFM; REIS, O. (Orgs.). Escritos e biografias de São Francisco de Assis. Crônicas e outros testemunhos do primeiro século franciscano. Petrópolis:
Vozes; cefepal; Família Franciscana do Brasil, 1981.
25
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inveja que pudesse surgir entre eles a partir de alguma apropriação ou jurisdição ou distribuição de pensões26.
De forma ainda mais clara que a Regula bullata, o próprio Olivi
formula a “altíssima pobreza” como ideal espiritual, que não só
facticamente não conhece mais apropriação, mas que é amada, prezada, protegida e observada acima de tudo e perfeitamente. Que isso
nem sempre é visto e realizado por aqueles que fizeram votos desse
ideal, isso Olivi deixou claro logo na sequência:
Se se afirma que, ao voto da altíssima pobreza não contradiz o amor
às coisas temporais, mas apenas a posse ou jurisdição exterior ilícita
a esse voto; mas que a causa dos males citados é mais o amor às
coisas do que propriamente a posse ou jurisdição exterior, deve
saber então aquele que afirma isso que assim como o voto da castidade (não-matrimonial) ou da virgindade não se opõe apenas a
coabitação factual mas também a afeição à coabitação e ao amor ao
ato conjugal, assim igualmente contradiz imediatamente ao voto
da pobreza aquele amor à posse e à jurisprudência como são diretamente excluídos pelo voto. Quem quer que seja que tenha professado isso é de algum modo afeiçoado por um livro ou uma casa ou
um terreno ou qualquer outra coisa, como se fosse próprio dele ou
do colégio, não está livre de mancha que diminui ou destroi desde
o fundo a verdade desse voto27.
Cf. SCHLAGETER, Das Heil, 99: „Summa professio autem altissimae paupertatis non
est applicata saltem per modum iurisdictionis ad hanc terram plus quam ad illam nec
ad hanc domus plus quam ad aliam. Et observator eius perfectus sollicitior erit sibi
custodire hanc paupertatem quam alteri; et ita cessabit necessario inter eos omnis ratio
divisionis et invidiae quae surgere potest ex quacumque appropriatione vel iurisdictione
vel pensionum distributione.
26
Id. op. cit. 99s: „Si dicatur quod professioni paupertatis etiam altissimae non opponitur
amor temporalium, sed solum exterior possessio vel iurisdictio tali professioni illicita;
amor autem rerum plus est causa praedictorum malorum quam ipsa exterior possessio
vel iurisdictio: scire debet qui hoc dicit quod – sicut professioni castitatis seu virginitatis
non solum opponitur actualis concubitus, sed etiam concumbendi affectus et amor
operis coniugalis – sic voto paupertatis omnis amor possessionis et iurisdictionis per
votum exclusae sibi directe opponitur. Unde quicumque professor eius ad librum vel
ad domum vel ad terram vel ad quodcumque aliud acsi ad proprium sibi vel collegio
aliquo modo afficitur, non est sine aliqua macula aut diminuente aut funditus destruente
veritatem huius voti“.
27
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Olivi se contrapunha veementemente a um argumento, aparentemente da própria ordem, que queria restringir a “altíssima pobreza” à
renúncia das posses e direitos exteriores. Parece estranho ali que ele
colocasse o amor de desejo sexual, que sempre tem algo a ver com a
relação entre as pessoas, no mesmo patamar daquele amor que deseja
apropriar-se de coisas. Ali, Olivi partia da experiência de então, segundo a qual o amor de desejo sexual era mais desaprovado junto a seus
endereçados teológicos do que o amor às coisas, supostamente inocente. No entanto, o amor às coisas temporais-terrenas de modo algum
parecia a Olivi ser assim tão inocente. O mal que ele via surgir na
reivindicação de posse e direitos em relação ao bem comum eclesiástico e monacal28, para Olivi, tinha sua origem não tanto nas posses e
jurisprudências exteriores mas muito mais no amor interior e na afeição às coisas temporais. Àqueles que viam isso de modo diverso, afirmando coisas diversas, Olivi supunha estarem sob uma relação “carnal”, de desejo de busca de si, em relação ao terrenal e temporal:
Se tivessem, pois, um olhar bem claro no espiritual como
tenham talvez no carnal, veriam que não se destroi menos o
espírito e o voto da pobreza pela afeição desordenada em
relação às coisas temporais, para se lidar com elas de algum
modo ilícito ao voto, do que aquela afeição impura destroi a
castidade e seus votos; quando se sopesa tudo, aquele é tão
intenso e tão grande quanto esse. Por isso, em todo aquele
que professou essa pobreza torna-se perigosa toda afeição pela
qual um homem se afeiçoa a um terreno, como sendo próprio, ou a algum domicílio, livros ou quaisquer outras coisas, como coisas que seriam próprias dele, de seu colégio ou
de parte de seu colégio, sobretudo se elas (as afeições) já
estão enraizadas e habituadas por um costume freqüente.
Mas são-lhe ainda mais perigosas quando chegam ao extremo de contender reivindicando aquelas coisas para si, para
seu colégio ou para parte de seu colégio, como propriedade.
28
Cf. acima, nota 20.
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JOHANNES KARL SCHLAGETER
Algo assim aqueles que são oriundos dessa terra afirmam e
querem deter um direito maior em relação aos domicílios
daquela terra, aos livros e esmolas, destinados a esses domicílios do que aqueles outros que não são oriundos de, nem
habitam nessa terra, e contendem sobre essas coisas entre si
com palavras a ações29.
Se alguém estivesse tão possuído pela vontade de posses como
alguém está possuído pelo desejo sexual, então, para Olivi isso tem o
mesmo grau de perigo. A exposição oliviana intensiva e extensiva girava em torno do núcleo interno que, segundo sua opinião, era de importância decisiva para o projeto espiritual franciscano de um modelo
de comunidade universal alternativa. A recusa a essa apropriação e à
jurisprudência em relação aos bens desse mundo e desse tempo, como
é exigida pela regra dos frades menores, não deveria esgotar-se numa
recusa externa à posse e à jurisprudência, mas deveria definir decisivamente a atitude interior. Mas isso permaneceu nos quadros daquilo
que determinou a Regula bullata, em seu capítulo 6, e o que precede o
texto da regra acima citado:
Os irmãos não devem se apropriar de nada, nem de casa nem de
lugar nem de qualquer coisa. E como peregrinos e forasteiros nesse
SCHLAGETER, Das Heil, 100: „Si haberent isti oculos in spiritualibus multum
illuminatos, sicut forte in carnalibus habent, viderent quod non minus labefaciat
mentem et paupertatis professionem affectus inordinatus circa temporalia qualicumque
modo tractanda modo illicito professioni tali quam affectus ille morosus castitatem et
eius votum, si tamen omnibus pensatis ille sit aeque intensus et aeque magnus sicut et
iste. Unde in quocumque professore huius paupertatis periculosissimi sunt omnes
affectus, per quos homo afficitur ad aliquam terram sicut ad propriam aut ad aliqua
loca vel ad aliquos libros vel ad quascumque alias res sicut ad proprias sibi vel suo
collegio vel parti sui collegii, et maxime si sunt per multam consuetudinem radicati et
habituati. Tunc autem sunt periculosiores ei, quando exeunt usque ad contentionem
vendicantem sibi illa aut suo collegio vel parti collegii acsi propria, utpote si hii qui sunt
de terra una reputant et volunt se maius ius habere in locis illius terrae vel in libris seu
elemosynis illis locis deputatis quam alii qui non sunt origine aut inhabitatione de illa
terra, et si pro huiusmodi inter se ore et opere contendant“.
29
50
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A FUNDAMENTAÇÃO SOCIOLÓGICA DA TEORIA SOBRE...
mundo, que servem ao Senhor em pobreza e humildade, podem
seguir confiantes pedindo esmolas, e não devem se envergonhar
disso, porque o senhor se fez pobre neste mundo por nós30.
De certo, que poderíamos compreender esse texto da regra de forma puramente jurídica, no sentido de uma recusa à propriedade meramente exterior. Contrariamente a isso, Olivi radicaliza a proibição da
apropriação no espírito do voto da altíssima pobreza como negação
espiritual de todo e qualquer amor apropriador e afeição frente às coisas desse tempo e desse século. Importa para ele de modo central essa
atitude interior de liberdade espiritual que não se liga com essa ou
aquela terra, a esse ou àquele domicílio, a esse ou àquele livro ou a
qualquer outra coisa com desejo de apropriação. Ali, Olivi sentiu que
os laços “nacionais” em relação a esse ou àquele país, abordados de
maneira própria por ele, seriam um perigo ameaçador, na época, para
o projeto espiritual franciscano de uma alternativa comunidade universal entre homens e bens. Ali não se tinha em mente ainda nenhum
“nacionalismo” dentro das dimensões modernas.
Todavia, também as controvérsias entre o condado sulista da
Provença, donde provinha Olivi, e o Reinado franco do norte, em
cuja capital, Paris, ele continuara seus estudos, estavam muito acirradas na época31. Olivi parece tocar ali também no fato de que essas
Regula Bullata 6,1-3: „Fratres nihil sibi approprient nec domum nec locum nec
aliquam rem. Et tanquam peregrini et advenae (cf. 1Ptr 2,11) in hoc saeculo in paupertae
et humilitate Domino famulantes, vadant pro elemosynis confidenter, nec oportet eos
verecundari, quia Dominus pro nobis se fecit pauperem in hoc mundo (cf. 2Cor 8,9)“.
In: ESSER/GRAU, Opuscula (como na nota. 24), p. 368-369. – Para a tradução em
alemão, cf. Franziskus-Quellen (como na nota 24) 98. Cf., para isso, 1Petr 2,11 e 2Cor
8,9. Português: SILVEIRA, I. OFM; REIS, O. (Orgs.). Escritos e biografias de São Francisco
de Assis. Crônicas e outros testemunhos do primeiro século franciscano. Petrópolis:
Vozes; cefepal; Família Franciscana do Brasil, 1981.
30
Cf. COULET, Noel. Provence, Landschaft (ehemals Grafschaft) in Südfrankreich. B.
Mittelalter. In: LMA 7, p. 276-280.
31
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controvérsias incomodavam também a vida e as relações entre os
confrades que provinham desse ou daquele país. Isso porque pode ter
sentido que essas ligações restritas ao “nacional” eram um tanto estranhas em seus irmãos. Em todo caso, segundo Olivi, em seu conjunto,
é só a internalização espiritual da altíssima pobreza que irá levar o projeto franciscano de uma comunidade universal alternativa àquela plenitude “espiritual”, buscada por ele, junto como outros irmãos e irmãs
de mesmo ideal, dentro e fora da comunidade estrita dos irmãos menores. Nesse sentido, Olivi pode fazer referência à visão de Joaquim
de Fiore, que tinha em mente uma terceira e última era, a era do Espírito Santo, que levaria à plenitude toda a história da salvação:
No Antigo [Testamento] refulge a autoridade da majestade e da
severidade do Pai, mas no Novo, a força da bravura juvenil e da
engenhosidade sapiente do Filho. E uma vez que temos duas
partes célebres dessa imagem, a integridade da ordem e da imagem exige que se introduza uma terceira era no mundo, que
deve pertencer totalmente ao amor, à ebriedade espiritual e à alegria, de tal modo que, tanto quanto possível, também o corpo seja
absorvido pelo espírito. E essa deve ser assim, que ela parece proceder no modo do espírito dos dois povos e Testamentos, como que
do Pai e do Filho, e que ela não seja menos universal no mundo do
que as que foram mencionadas antes, a fim de que a igualdade
nas três pessoas seja claramente exposta nelas32.
Id. loc. cit. 158: „ideo etiam in Veteri refulget auctoritas paternae maiestatis et
severitatis, in Novo vero vigor iuvenilis strenuitatis et sapientialis ingeniositatis Filii.
Cum igitur duas partes celebres huius imaginis teneamus, integritas ordinis et imaginis
exigit statum tertium in mundo introduci qui totus sit amoris et spiritualis ebrietatis et
iucunditatis, ita quod etiam – prout est possibile – absorbeatur caro a spiritu. Et
oportet etiam quod talis sit, ut per modum Spiritus procedere videatur ab utroque
populo et Testamento acsi a Patre et Filio, et quod sit non minus universalis in mundo
quam praedicti, ut trium personarum aequalitas in eis clare praesentetur.“ Em relação
ao posicionamento de Olivi frente à apocalíptica de Joaquim de Fiore, cf. integralmente
SCHLAGETER, Johannes. Apokalyptisches Denken bei Petrus Johannis Olivi. Versuch
einer fundamentaltheologischen Wertung; In: WiWei 50 (1987). p. 12-27; Olivis
Sicht der Endzeit und Joachim von Fiore. Wie verarbeitete Olivi in seiner Konzeption
einer endzeitlichen Erneuerung der evangelischen Armut die Endzeitvorstellungen
Joachims von Fiore? In: Id. 150-163.
32
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A FUNDAMENTAÇÃO SOCIOLÓGICA DA TEORIA SOBRE...
A imagem de um tríptico, que por assim dizer deveria refletir a
trindade das pessoas divinas na história da salvação, ainda não seria
completa enquanto ainda faltasse a terceira asa da figura, com a apresentação do Espírito Santo. Olivi e também Joaquim de Fiore, porém, não pensavam que a era do Espírito Santo devesse pois dissolver
e superar pois o Antigo e o Novo Testamento.
Assim como o Espírito Santo procede do Pai e do Filho, mas é e
continua sendo igualmente um com eles, assim a era do Espírito surge
dos dois Testamentos, e nela irá se mostrar seu sentido verdadeiro,
espiritual, justo a partir e na letra do Antigo e do Novo Testamento.
Por isso, em sua teoria da pobreza, a partir da letra e sobretudo do
Novo Testamento, Olivi queria apresentar por fim o sentido verdadeiro, espiritual da vida pobre de Jesus e de seus consecutivos seguidores e assim levar à profundidade espiritual a compreensão franciscana
da pobreza. A força absorvente que na era do espírito Olivi atribuía ao
“Espírito”, contra a “carne”, própria de um desejo egoísta, deveria tornar-se visível precisamente numa compreensão franciscana, espiritualmente internalizada, da altíssima pobreza e da renúncia universal de
qualquer apropriação. Nesse sentido, como que chamado, Olivi chegou finalmente à visão joaquimita de uma era do Espírito Santo própria do fim dos tempos. Com isso, pois, a teoria social crítica de Olivi
poderia assumir uma esperança apocalíptica futura, embora para ele a
esperada plenitude espiritual do fim dos tempos já havia se iniciado
com o projeto espiritual franciscano de uma sociedade modelar, realizada alternativamente, e assim, com Francisco de Assis.
5 Esperança para um mundo dividido hoje?
Com sua esperança apocalíptica do futuro, Olivi fracassou na refutação das pessoas que detinham autoridade na Ordem e na Igreja e
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acabou condenado. Os “espirituais” na Ordem, na Igreja e no mundo,
mais tarde, sob o pontificado de João XXII, no século XIV, acabaram
se tornando uma pequena minoria perseguida, que nem sequer pôde
conservar da aniquilação suas relíquias de princípio tão veneradas33.
Todavia, isso não inutiliza inteiramente e para sempre a herança dos ideais
de Olivi, como já demonstrou a retrospectiva do movimento de reforma
franciscano no final da Idade Média e no começo da Modernidade, voltando a lançar mão da teoria da pobreza oliviana e da compreensão da
regra dos frades menores34. O próprio Olivi tinha em mente uma reforma
da Ordem, sobretudo levando em conta a coerência prática de sua teoria
da pobreza, com a qual exigia de seus irmãos o “usus pauper”, o “uso
pobre” das coisas35. Olivi não se contentou portanto em falar a linguagem
da interiorização espiritual da altíssima pobreza. A altíssima pobreza deveria tornar-se atuante também na lida prática com as coisas, e quiçá de tal
modo que essa lida, novamente, estivesse mais em consonância com a
prática de vida de pessoas pobres. Isso porque a práxis de vida vivenciada
Cf. EHRLE, Franz. Die Spiritualen, ihr Verhältnis zum Franziskanerorden und zu
den Fratizellen. In: Archiv zur Literatur- und Kirchengeschichte des Mittelalters 1 (1885)
509-569; 2 (1886) p. 106-164. 249-336, 3 (1887) 553-623; BURR, David. The
persecution of Peter Olivi. Philadelphia, 1976.
33
34
Cf. F LOOD , David (Ed.). Olivi´s Rule Commentary. Wiesbaden, 1972.
(Veröffentlichungen des Instituts für Europäische Geschichte, 67)
Cf. para isso, BURR, D. Apokalyptische Erwartung und die Entstehung der UsusPauper-Kontroverse (como na nota 3). In: WiWei 47 (1984), p. 84-99. Albertino de
Casale (1259-1330), discípulo e posterior defensor de Olivi, tinha em mente de
maneira especial essa consequência prática do “usus pauper”. A partir disso, os meros
direitos de posse e as jurisprudências significavam tão pouco para Ubertino que ele
pôde declará-las até como sendo espiritualmente limitadas, uma vez que se mantenha
conservado o “usus pauper”, o “uso pobre” das coisas. Cf. para isso DAVIS, Charles T.
Ubertino da Casale and his conception of „altissima paupertas“. In: Studi Medievali 3.
Series 22 (1981), p. 1-56. Cf. para isso, UBERTINO VON CASALE. Tractatus de altissima
paupertate. Wien: Nationalbibliothek, Ms. Palat. Lat. 897. Nesse tardio Tratado sobre a
altíssima pobreza, ainda não editado, importa a Ubertino decisivamente abordar as
consequências práticas do “usus pauper” na interiorização espiritual da altíssima pobreza, que ele asseverava junto com Olivi.
35
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A FUNDAMENTAÇÃO SOCIOLÓGICA DA TEORIA SOBRE...
por muitos de seus irmãos já havia se tornado num problema existencial já desde bem cedo:
e visto que desde o começo eu ouvia os atos grandiosos da
altíssima pobreza, como ela se presta de modo supremo para o
aperfeiçoamento abrangente das virtudes, comecei a admirarme grandemente como poderia haver uma tal imperfeição de
virtudes em tantos que professaram essa pobreza, uma tal tibieza em relação ao ócio na contemplação, na pureza do corpo, no
exercício de atos penosos e do zelo amoroso do amor e da dedicação fraterna. Como ou de onde poderia haver neles uma tal
avidez tão ardente em providenciar seu sustento de vida através
de múltiplas relações estreitas com pessoas mundanas, cheios
de adulações e métodos indecentes, assim como através de muitas intenções ocultas e dissimuladas, pelas quais fazem uso dos
bens espirituais, como por exemplo, confissões, pregações, celebração da missa, com ostentação sensacionalista de venerar a
Deus e de rigor penitencial, manipulando inclusive o direito de
exéquias e semelhantes para alcançar tais ganhos? E como também e de onde há neles tal vontade de erigir casas e jardins,
inventando diversos caminhos e diversos vínculos para criar coletas temporais, como por exemplo, entrar em testamentos e
coisas do gênero? Então me admiro até que Deus mostre em
mim mesmo através de uma experiência viva que tudo isso provém do amor desordenado a um uso exorbitante36.
36
Cf. PETRUS IOANNIS OLIVI. De usu paupere. The Quaestio and the Tractatus, Edited by
David BURR. Firenze/Perth (Australia) 1992, 25: „a principio audienti mihi magnalia
paupertatis altissime, quomodo videlicet ad virtutum universalem perfectionem altissimo
modo valet, admirari vehementer cepi unde in multis professoribus eius tanta virtutum
imperfectio esse posset tantusque tepor ad contemplationis otium et ad macerationem
corporum et ad exercitium laboriosorum operum et ad caritatis et pietatis fraterne
benignum zelum; et quomodo aut unde in eis esse poterat tantus ardor procurandi
victum, tam per familiaritates secularium multimodas multis adulationibus et modis
indebitis plenas et per multas intentiones sub occulto enigmate bona spiritualia ad
procurationem questuum huiusmodi varie retorquentes, ut sunt confessio, predicatio,
missarum celebratio, divini cultus et penitentialium austeritatum celebris ostentatio,
sepulturarum quoque iurisdictio et consimilia; quomodo etiam et unde in eis tanta
voluntas edificandi domos amplas et ortos, et propter hoc excogitandi vias diversas et
coniuncta varia ad procurationes temporalium elemosinarum ut sunt testamentis interesse et consimilia; usquequo ostendit mihi Deus per vivam in memetipso experientiam
quod ex amore inordinato usus opulenti hec omnia proveniebant“. – Para a tradução
em alemão, cf. SCHLAGETER, Das Heil, p. 17s.
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À imagem ideal da altíssima pobreza, à imagem guia da vida pobre
de Jesus Cristo, professada na Regra pelos irmãos menores, na realidade da Ordem franciscana, em muitos irmãos, contrapunha-se uma
práxis de vida totalmente diversa. Frente aos valores espirituais, a saber, a riqueza daquelas forças e virtudes do reino de Deus que deveriam surgir da vida da altíssima pobreza, eram tíbios e indiferentes. Em
vez disso, todo o zelo de muitos irmãos era colocado na criação do
sustento da vida, que ultrapassava em muito o necessário para a vida, e
que deveria ser conquistado através de métodos bastante questionáveis,
com intenções ocultas, impuras, e até com atividades espirituais amplamente perversas. Em tudo isso, para Olivi, tratava-se de um “usus
opulentus”, um “uso opulento” das coisas deste mundo, que pode ser
comparado muito mais com a vida dos ricos do que com a vida dos
pobres. Quando Olivi fundamenta sua visão crítica da Ordem como
uma “experiência viva em mim mesmo”, presenteada por Deus, então,
do ponto de vista estritamente existencial, isso pode ser levado a sério.
Mas a discrepância entre ideal de ordem e realidade, vivenciada por
Olivi, surgiu basicamente a partir do abismo social entre irmãos pobres e ricos, entre uma ordem de mendicantes que se tornara rica e a
camada mais pobre da sociedade. Esse abismo que então se abriu novamente na ordem franciscana de modo algum foi tomado por Olivi
do ar, sem fundamento37. Esse abismo e sua causa íntima parece já ser
conhecido de seus estudos do convento de estudos de Paris, grandioso
e ricamente aparamentado38. Ali ele via a decisiva ameaça demoníaca, e
por assim dizer a ameaça do anticristo do fim dos tempos:
Assim como o diabo, através da riqueza e do domínio secular, enfeitou indizivelmente a Igreja na sujeira, enredando sua liberdade
Cf. por exemplo RAPP, Francis. Les Mendiants et la Societé Strasbourgoise à la fin du
moyen-âge. In: Poverty. Ed. FLOOD (como na nota 5), p. 84-102.
37
38
Cf. SCHLAGETER, Das Heil, p. 18, nota 3.
56
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espiritual nas intrincadas armadilhas, de tal modo que no fim dos
tempos, segundo Jó, os tendões dos testículos de Leviatam estarão
entrelaçados, e com ele deve gerar o erro do Anticristo na (Igreja).
É por isso que eu pondero, sem qualquer dúvida, que através do
excesso do uso opulento e de sua múltipla criação, ele [o diabo] ele
puxou indizivelmente o adorno da altíssima pobreza para a sujeira
e através de uma admirável confusão de dúvidas escrupulosas e de
armadilhas, as mais embrulhadas, algemou-a com muita astúcia.
E é isso que temo acima de tudo, que ele gere um escândalo indizível para a altíssima pobreza39.
Com essa visão do fim dos tempos da ameaça do Anticristo, que
irá enredar os irmãos da Ordem junto com toda a Igreja, Olivi intenta
sobretudo admoestar seus irmãos para uma conversão, que deverá afastálos do “uso opulento” para um “uso pobre”, e assim para uma proximidade maior para com os pobres. Isso porque é só assim que os irmãos poderiam fechar o abismo que se abriu entre irmãos ricos e pobres na Ordem, assim como entre o modo de vida preferencialmente
opulento de muitos irmãos e a práxis de vida da camada baixa e pobre
da sociedade. Frente a esse abismo, Olivi não propaga uma divisão da
Ordem40, mas prefere propagar uma renovação, na medida do possíCf. OLIVI, De usu paupere, Ed. por BURR (Como na nota 35), p. 25: „Unde
indubitanter perpendo quod sicut diabolus per divitias et dominationes mundanas
ecclesie decorem ineffabiliter fedavit et eius spiritualem libertatem laqueis perplexissimis
irretivit, ita ut in fine temporum nervi testiculorum Leviathan perplexi sunt, sicut
habetur Iob, per quos debet Antichristi error in ea generari; sic per opulenti usus
excessus et varios questus eius decorem paupertatis altissime ineffabiliter fedavit et
miranda perplexitate scrupulosarum dubietatum et laqueorum nodissimorum laquorum
[!laqueorum] astutissime vinculavit. Et hoc est quod super omnia timeo paupertati
altissime scandalum ineffabile generari.“ – para a tradução alemã, cf. SCHLAGETER, Das
Heil, 18, nota. 2. Cf. para isso Jó 40,12a Vulgata!
39
Contra essas tendências de divisão entre os „espirituais“ franciscanos, que se iniciou
sobretudo durante o curto pontificado do Papa Celestino V, Olivi se contrapôs em sua
Epistola ad Conradum de Offida, de 1295. Cf.. PETRUS IOHANNIS OLIVI. De Renuntiatione
Papae Coelestini V. Quaestio et Epistola, Ed. Livarius OLIGER. In: Archivum
Franciscanum Historicum 11 (1918) 309-373. Cf. aqui, p. 366-373, mas especialmente p. 370-373.
40
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vel amplificadora. Um sinal para isso deveria ser uma maior proximidade para com as camadas mais pobres da sociedade. Essa atitude
surgiria, segundo Olivi, a partir da generosidade para com os pobres,
recomendada pelo Evangelho de Jesus Cristo, que vende tudo para
socorrer aos pobres41, como foi adotado pelas regras dos frades menores42. Olivi descreveu essa generosidade do seguinte modo:
Totalmente generoso é quem doa rápida, alegre, abundantemente, com razão, a partir de uma causa razoável doa por exemplo a um indigente, e quem doa de modo irressarcível, sem
qualquer esperança de recompensa temporal. Mas quem quiser
ser e estar na altíssima pobreza e em constante indigência, adotando e observando uma tal pobreza, torna-se e é muito capaz
não apenas de doar segundo as cinco condições acima descritas,
mas também de desfazer-se, embora não encontre ninguém a
quem possa doar43.
Já essa liberalidade poderia reconduzir a ordem a seu ser-pobre
originário, para a altíssima pobreza. Com maior razão, isso deveria ser
aplicado para a dedicação amorosa (pietas) para com os pobres, da
qual Olivi pensava:
A dedicação amorosa acrescenta algo à liberalidade. O generoso
é movido propriamente pela largueza e amplidão de seu coração, o amoroso ou misericordioso, porém, é movido pela compaixão para com a pessoa, à qual faz o bem. Isso porque o pobre
voluntário tem um grandioso incitamento para dedicar-se amoCf. a exigência de Jesus feita ao jovem rico em Mc 10,17-23; Mt 19,19; 16-22; Lc
18,18-23.
41
Cf. Regula Bullata 1, 5-8; Regula non Bullata 1, 4-7. In: ESSER / GRAU, Opuscula
(como na nota 24) p. 367; 378; Franziskus-Quellen (como na nota 24) p. 95; 71.
42
Cf. SCHLAGETER, Das Heil, p. 95: „Perfecte enim liberalis est qui dat celeriter, hilariter,
abundanter, rationabiliter, ex causa scilicet rationabile utpote egenti, et qui dat irredibiliter
absque omne spe remunerationis temporalis. Qui autem vult esse in altissima paupertate
et continua egestate tam in assumptione talis paupertatis quam in conservatione,
potentissimus fit et est non solum ad dandum secundum quinque condiciones praedictas,
sed etiam ad derelinquendum, quamvis non inveniretur aliquis cui dari posset.“
43
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rosamente e ter compaixão para com os outros por quatro razões ou motivos, a saber, em virtude da experiência, em virtude
de mútua conformidade, em virtude de condecência, em virtude do desprezo e do desfazer-se daquilo que deve ser doado44.
Essa dimensão totalmente pessoal da dedicação e da compaixão
era seguramente muito importante para Olivi. Mas infelizmente ele
próprio não trouxe nenhum exemplo para isso a partir de sua experiência pessoal, mas, citando as Escrituras, remetia para a compaixão de
Jesus Cristo em consequência da experiência de sua fraqueza e de seu
sofrimento45, e pensava: “Não é de se admirar se alguém que professou essa pobreza, em virtude da experiência de necessidade e indigência, pode se compadecer mais dos indigentes”46. Olivi trata de modo
mais extenso a “mútua conformação”:
Não é de se admirar que alguém que professou essa pobreza, em
virtude da conformação com os pobres, possa ser mais misericordioso”. A partir dali vemos que cada ser vivo ama aquilo que
lhe é igual, e prefere estar ligado com o que lhe é igual [...]. Isso
porque, numa propriedade maximamente amada e querida,
muito evidente e que muito distingue dos outros – como é a
pobreza a quem a professa verdadeiramente – a semelhança e a
conformidade causa muita sociabilidade e amabilidade entre os
que são semelhantes entre si. É impossível, portanto, que o perfeito amante dessa pobreza não se deixe comover e voltar-se a
abraçar os pobres assim como sentir junto com eles sua pobreza
e suas calamidades. Do contrário, seguramente, ele não é um
Id. 96: „Addit enim pietas super liberalitatem. Liberalis enim movetur ad dandum ex
largitate et latitudine cordis, pius vero seu misericors ex compassione personae cui bene
facit. Voluntarius enim pauper habet incitamentum magnum habendae pietatis et
compassionis ad alios quadruplici ratione seu motivo, scilicet ratione experientiae, ratione
conformitatis mutuae, ratione condecentiae, ratione contemptus et abdicationis rei
donandae.“
44
45
(Hb 5,15).
SCHLAGETER, Das Heil, p. 96: „non mirum, si professor huius paupertatis ratione
experientiae quam habet de angustia egestatis, magis potest egenis compati.“
46
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amante e reconhecedor dessa pobreza. Essa conformação também dá oportunidade e facilidade aos pobres de, em qualquer
necessidade, recorrer aos que professam essa pobreza, e a esses
próprios dá maior ocasião e oportunidade de ter misericórdia
com tal gente47.
Essa proximidade pessoal para com os pobres em compaixão e misericórdia, na oportunidade e capacidade de entrar em contato e solidariedade mútuos, e assim tornar-se em ponto de socorro em suas necessidades,
isso deveria destacar aqueles que amam e professam verdadeiramente a
altíssima pobreza. Talvez tenha sido essa falta de prontidão para a compaixão e para a misericórdia, que, no grande e rico convento de Paris, levou
Olivi à visão, presenteada por Deus, no efeito escandaloso e catastrófico
do “usus opulentus”, do trato opulento com os bens temporais48. Em
todo caso, algo assim lhe parecia extremamente indecente: “em razão da
decência, ela [a altíssima pobreza] possui um incitamento também para a
piedade. Pois é extremamente indecente, querermos ser socorridos por
outros e não sentir igualmente compaixão com os necessitados ou o tanto
possível socorrê-los com misericórdia”49.
Id. 97: „non est mirum, si professor huius paupertatis ex conformitate quam habet
ad egenos, magis potest esse misericors. Unde et videmus quod omne animal diligit sibi
simile et ad sibi simile libentius associatur […]. Similitudo enim et conformitas et
maxime in proprietate multum dilecta et cara et multum evidenti multumque ab aliis
distinctiva – qualis est paupertas veris professoribus suis – multam causat societatem et
diligibilitatem inter sibi similes. Perfectus igitur amator huius paupertatis impossibile
est, quin multum moveatur et afficiatur ad amplexum pauperum et ad compatiendum
inopiae et calamitatibus eorum. Conformitas etiam haec magnam dat occasionem et
facilitatem pauperibus recurrendi pro quibuscumque necessitatibus ad professores
huius paupertatis, et eo ipso maiorem dat occasionem et facultatem talibus miserendi.“
Sobre essa força de atração entre conformantes, cf. a indicação de Olivi Eclo, 13,19s.
47
Em relação a esse local biográfico da fundamental visão espiritual de Olivi, cf.
SCHLAGETER, Das Heil, p. 18, nota 3.
48
Cf. loc. cit., p. 97: „Ratione etiam condecentiae habet incitamentum pietatis. Indecens
enim est supra modum velle sibi ab aliis subveniri et consimiliter indigentibus non
compati aut, in quibus potest, nolle misericorditer subvenire“.
49
60
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A FUNDAMENTAÇÃO SOCIOLÓGICA DA TEORIA SOBRE...
Um tal abismo indecente em relação aos pobres pode surgir ali
onde falta uma postura espiritual, determinante para a altíssima pobreza, frente às coisas temporais, a saber, seu desprezo e o delas se desfazer. Ao contrário disso, Olivi pode constatar pessoalmente: “o que quero doar ao outro não é nada de grandioso, o que desprezo desde o fundamento através do voto da pobreza, sim, aquilo de que me desfiz plena e
totalmente”50. Mas onde, em virtude de um trato opulento com as coisas
temporais, esse voto não é mantido verdadeiramente, sim, de certo modo
se o faz retroceder, ali para Olivi se efetiva de novo o abismo social pernicioso entre pobres e ricos, mesmo dentro da Ordem franciscana. A isso,
Olivi precisou contrapor a máxima reformatória do usus pauper, de um
trato com as coisas temporais realmente pobre; pois na Ordem só através disso poderiam voltar a manifestar-se as forças e virtudes nobres do
reino de Deus na altíssima pobreza.
A linguagem espiritual de então e a visão de Olivi podem parecem
muito afastadas da necessidade real do mundo de hoje e de nossa época, assim como do abismo social que encontramos hoje entre ricos e
pobres, entre abastados e carentes, entre o grande poder e a impotência. No entanto, a opção pelos pobres tantas vezes asseverada na Ordem e na Igreja, não pode ser vivida do lado dos ricos, nesse lado do
abismo social entre ricos e pobres, entre abastados e carentes, entre
poderosos e impotentes. Nesse sentido, a máxima de Olivi do usus
pauper, do ser-pobre vivido realmente do lado dos pobres, mostra a
direção decisiva de um lugar de mudança premente dentro da Ordem
e da Igreja, na direção de uma escolha feita que modifica o estilo de
vida não solidário, vigente em muitos países, em muitos lugares da
Ordem e da Igreja. Ali não está em questão primeiramente a mudança
das relações de direito frente às coisas desse mundo e dessa época, elas
Id. „Non enim est magnum quid me velle dare alii quod per paupertatis professionem
funditus contempsi et a me penitus abdicavi“.
50
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61
JOHANNES KARL SCHLAGETER
irão só se configurar de modo diverso e ter nova regulamentação quando
se modificar a atitude interior. Por isso, o amor que deseja e se apropria do mundo e da configuração temporal de agora, será modificada
a partir do fundamento. Mas isso se torna possível numa perspectiva
de esperança do novo mundo de Deus, de seu reino de amor e de paz,
cujos herdeiros são os pobres e aqueles que, com Jesus cristo, se colocam ao lado dos pobres51. Que esse novo mundo de Deus é pressentido e vivido apenas por poucos, isso não diminui seu valor num mundo dividido. O que se dá é bem contrário, como vêem claramente
alguns pensadores. Assim, escreveu Carl Freidrich von Weizsäcker,
certa vez: “uma configuração eticamente tão questionável, intelectualmente tão embotada, completamente ambivalente, como é a sociedade humana das culturas desenvolvidas, até os dias de hoje, só poderá
frear o escorregar para dentro da autodestruição se nela viverem algumas pessoas que se recusam radicalmente a participar de suas atividades, por causa da verdade. E foi praticamente só ali onde cristãos
ousaram fazer tal coisa que floresceu uma compreensão espontânea do
sermão da montanha, foi assim em Francisco de Assis”52. Penso que
aqui, como em Olivi, está em questão a “verdade” do novo mundo de
Deus, que já pode ser pressentido em Jesus Cristo e que oferece forte
resistência ao “escorregar para dentro da autodestruição”. Os espirituais franciscanos, na medida em que seguiram realmente a Olivi, no
tempo e no mundo só se “recusaram radicalmente a praticar aquelas
atividades” que na Ordem e na Igreja desembocavam numa divisão e
numa destruição da comunidade e da sociedade, mas justamente através disso esses irmãos e irmãs queriam tornar-se espiritualmente livres
num serviço de amor desinteressado para com todos os homens e para
51
Cf. Tg 2,1-13; 5,1-8.
Cf. WEIZSÄCKER, Carl Friedrich von. Der Garten der Menschlichen. München/Wien,
1977, p. 505.
52
62
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 31-63, jul./dez. 2010
A FUNDAMENTAÇÃO SOCIOLÓGICA DA TEORIA SOBRE...
toda a criação de Deus, precisamente em sua mudança de lugar de
habitação e em sua dedicação para com os pobres e para com as irmãs
e irmãos especialmente ameaçados no tempo e no mundo. Tenho a
esperança de que isso possa se renovar verdadeiramente, oxalá também
numa renovação da Ordem e da Igreja53.
Cf. SCHLAGETER, Johannes. Eschatologische Hoffnung als Hoffnung für die Welt;
Eine Kirche mit weltoffener Spiritualität in einer säkularisierten Gesellschaft. In: Geist
und Welt. Seminar Spiritualität 3, editado por Anton ROTZETTER. Zürich/Einsiedeln/
Köln, 1981, p. 41-60; 69-90.
53
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 31-63, jul./dez. 2010
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JOAQUIM DE FIORE, APOCALIPTICISMO...
JOAQUIM DE FIORE,
APOCALIPTICISMO E ESCATOLOGIA
NOS SÉCULOS XIII E XIV
Prof. Nachman Falbel *
O apocalipticismo teve em Joaquim de Fiore um dos seus pensadores mais originais e influentes na Idade Média, período este que
herdou do cristianismo antigo uma longa e rica tradição interpretativa
sobre o livro da Revelação, o último do conjunto de textos que compõe as escrituras do Novo Testamento. No prefácio à sua obra “Visions
of the End, Apocalyptic Traditions in the Middle Ages”, o historiador
Bernard McGinn afirma corretamente que o apocalipticismo fez parte das três religiões monoteístas, a saber, judaísmo, cristianismo e
islamismo. Na longa introdução de seu importante livro, o autor aborda
a questão das tentativas de se fazer uma distinção entre apocalipticismo,
profetismo, escatologia, milenarismo, fundamentada na bibliografia
de estudiosos que se esforçaram em definir suas categorias conceituais
e nuances teóricas bem como seus elementos diferenciadores1. Apesar
da importância que a discussão possa ter frente às problemáticas definições concernentes às associações e inter-relações entre os diversos
componentes que se manifestam no que se convencionou denominar
como “literatura apocalíptica”, estamos convictos de que dificilmente
chegar-se-á a uma proposição unificadora que satisfaça a todos os estu-
*
Universidade de São Paulo.
MCGINN, B. Visions of the End, Apocalyptic Traditions in the Middle Ages. New York:
Columbia University Press, 1998, pp. XIV-XXV e Introduction, pp. 1-36.
1
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 65-86, jul./dez. 2010
65
NACHMAN FALBEL
diosos2. Desde o surgimento dos primeiros textos apocalípticos no
mundo judaico, a partir do terceiro e segundo século antes de nossa
era, a sua inclusão no cânone da Bíblia Hebraica sofreu forte rejeição
por parte das autoridades religiosas judaicas, podendo se considerar
como exceção as passagens existentes no livro de Ezequiel e mais ainda
nos capítulos 7-12 do livro de Daniel. Podemos supor que obras de
caráter apocalíptico como 1 Enoque, 4 Ezra e 2 Baruque foram posteriormente oficialmente marginalizadas e consideradas apócrifas devido a seu teor provocativo, ainda que fossem fruto de realidades históricas e que seu conteúdo visasse tanto predicar uma mensagem salvífica
como dar consolo ao povo de Israel sob o jugo e domínio de forças
opressoras estrangeiras3. Do mesmo modo, sabemos que a aceitação
Uma contribuição para a discussão a respeito da definição sobre o entendimento do
gênero se encontra no artigo de F. Raphaël, “Esquisse d’une Typologie de L’Apocalypse”,
in: GAUTHIER, P. L’Apocalyptique. paris, 1977, pp. 11-38. O autor recorre ao conceito
de “ideal-tipo” de Max Weber e à estrita definição de “milenarismo” de Yonina Talmon,
Millenarian movements, in: Archives Européennes de Sociologie, t. 7, 1966, pp. 159200. Importantes para a compreensão do tema são os estudos de COLLINS, John.
Apocalypse: The Morphology of a Genre, Semeia 14, Society of Biblical Literature,
1979, e HELLHOLM, D., The Problem of Apocalyptic Genre and the Apocalypse of
John, Semeia, 36, 1986. Os dois primeiros volumes da The Encyclopedia of
Apocalypticism, respectivamente volume 1: The Origins of the Apocalypticism in Judaism
and Chritianity. Ed. por J.J. collins, e o volume 2: Apocalypticism in western History
and Culture, Ed. Bernard McGinn, dão uma visão ampla sobre o tema. Desde a
publicação da obra de Norman Cohn, The Pursuit of the Millenium, em 1957 (edição
ampliada, London, 1970), vem se acumulando uma extensa bibliografia. Norman
Cohn complementaria seu trabalho com um estudo adicional “Cosmos, Caos and the
World to come, the ancients roots of the apocalyptic faith”, em 1993, edição em
português: Companhia das Letras, São Paulo, 1996.
2
Os estudos iniciais sobre o apocalipticismo escatológico no judaísmo teve como marco
pioneiro a obra de R.H. Charles, Eschatology, the doctrine of a future life in Israel, Judaism
and Christianity, cuja primeira edição se deu em 1899. Em 1963 a editora Schocken
Books, New York, reeditaria a obra com uma importante introdução de George Wesley
Buchanan na qual historiciza os debates havidos ao redor do tema naquele período. Para
uma visão atualizada, vejam-se as importantes obras de Michael E. Stone, Jewish Writings
of the Second Temple Period. Philadelphia, 1984 e a de James H. Charlesworth, ed., The Old
Testament Pseudepigrapha, vol. I, Apocalyptic Literature and Movements, New York, 1983.
3
66
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JOAQUIM DE FIORE, APOCALIPTICISMO...
do livro da Revelação no cânone do Novo Testamento foi problemática e nem sempre aceita com unanimidade pela Igreja nos primeiros
séculos de sua existência, o que não impediu de ser amplamente difundido, apesar de seu teor enigmático, e por isso mesmo, objeto de
múltiplas interpretações desde os seus primórdios. Seu conteúdo e seu
extraordinário, e não menos desafiador, simbolismo acumulou através
do tempo inúmeros comentários e interpretações desde Victorino de
Pettau (f. c. 304), de Ticônio (séc. IV), de Agostinho, do assim denominado Beatus de Liebana e outros4. No período medieval os comentários e interpretações sobre o livro do Apocalipse iriam multiplicar-se com a crença de que em seu feérico simbolismo encontravam-se
significados proféticos e escatológicos para o conhecimento do destino e da trajetória histórica da humanidade desde os primórdios da fé
monoteísta bem como o anúncio da fé cristã e o que a esperava no
futuro. Por outro lado tais interpretações sobre o livro da Revelação
seriam não somente o reflexo das tensões e conflitos existentes na instituição eclesiástica e na sociedade medieval em seus múltiplos momentos de crise, mas também dos anseios e dos temores decorrentes
da psique e da religiosidade dos homens daquele tempo.
Longa é a lista de autores medievais que fizeram a leitura do
Apocalipse, o extraordinário texto inspirador de motivos centrais nas
obras teológicas desses autores impregnadas de uma espiritualidade
profunda e que o nosso abade calabrês interpretou com o método
original que se encontra na elaboração de grande parte de suas obras, o
V. artigos de Paula Fredriksen, “Tyconius and Augustine on the Apocalypse”, in: The
Apocalypse in the Middle Ages, eds. Richard K. Emmerson and Bernard McGinn,
Ithaca-London, Cornell University Press, 1993, pp. 20-37 e de E. Ann Matter, “The
Apocalypse in Early Medieval Exegesis”, in: ibidem, pp. 38-50. O estudo, entre
outros, sobre o conteúdo milenarista do capítulo 20 do Apocalipse, de P. Prigent, “Le
millenium dans l’Apocalypse johannique” in: GEUTHNER, Paul. L’Apocalyptique. Paris,
1977, pp. 139-156, aponta os paralelismos das fontes judaicas com as do cristianismo
primitivo.
4
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67
NACHMAN FALBEL
Liber Figurarum, o Liber Concordie Novi et Veteris Testamenti, o Expositio
in Apocalypsim, o Psalterium Decem Chordarum, o Tractatus super
Quatuor Evangelia, o De Articulis Fidei, o Adversus Iudaeos e demais
escritos. Neles podemos encontrar subjacentes os rastros das idéias e
concepções de Agostinho, que se impôs e predominou durante grande
parte dos séculos medievais, bem como de Gregório Magno, Beda e
outros do alto medievo. Porém, posteriormente, no século XII, Rupert
de Deutz (c.1075-1129/30), Honório de Autun (Augustodinensis),
Anselmo de Havelberg, Hugo de S. Victor, assim como Bernardo de
Claraval, mentor dos cistercienses, Ordem à qual Joaquim de Fiore
esteve ligado no início de sua carreira monástica, e antes dele, já faziam uso de uma exegese tipológica peculiar que se distanciava pouco a
pouco da patrística tradicional em vários aspectos5. Caso aparte representa a obra de João Scotus Erígena (810-877) que para o historiador
E. Gebhart teria tido uma influência sobre Joaquim de Fiore6. Pensador original, Scotus Erígena, também formulou uma concepção de
três etapas na história da humanidade, assinaladas respectivamente por
sacerdócios. O primeiro sacerdócio, o do Antigo Testamento, que viu
a verdade através das nuvens de mistérios ininteligíveis; o segundo sacerdócio, o do Novo Testamento, iluminado com alguns raios de
verdade e com alguns símbolos obscuros; o terceiro sacerdócio, o da
Vida Futura, que deixará ver a Deus sem mediação. Ao primeiro,
corresponderia a lei natural, ao segundo corresponderia o reino de Deus.
O primeiro elevou a natureza humana corrompida; o segundo a enobreceu pela fé, pela esperança e pela caridade; o terceiro a iluminaria
pela contemplação. O primeiro, figurado pela arca material, foi dado
a um povo carnal a quem só a letra comovia. O segundo, figurado
Sobre o vínculo de Joaquim de Fiore com os cistercienses, vide o artigo de ZIMDARSSWARTZ, Sandra. “Joachim of Fiore and the Cistercian Order: A Study of De Vita
Sancti Benedicti”, in: Simplicity and Ordinariness, Studies in Medieval Cistercian
History, IV, Cistercian Publications, Kalamazoo, Michigan, 1980, pp. 293-307.
5
6
GEBHART, E. La Italia mística. Buenos Aires: Ed. Nueva, 1943, pp. 44-65.
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JOAQUIM DE FIORE, APOCALIPTICISMO...
pelos símbolos tangíveis dos sacramentos, encaminha as almas à vida
espiritual que não se realizará plenamente senão no paraíso. Assim se
dissiparia na luz da Igreja futura a aparência da Igreja presente. Scotus,
em sua homilia sobre o primeiro capítulo de João, não teme dizer que
o Espírito Santo, assim como Cristo, é o principio da vida divina7.
Observa-se em vários de seus escritos, em que segue a tradição
neoplatônica através da patrística grega – cujos representantes mais
conspícuos ele próprio traduziu –, o quanto ele se identificou com
essa espiritualidade. Para ele, a Igreja do Novo Testamento não era
mais que a imagem simbólica da Igreja Eterna. Mas ele ainda apontaria uma terceira revelação, a do Paracleto, que teria lugar numa Igreja
superior, celestial, na qual a Igreja do Verbo se elevaria à Igreja do
Espírito8. Quanto aos escritos de Rupert de Deutz, Honório de
Autun e Anselmo de Havelberg certos estudiosos, com razão, encontram elementos que definiriam uma tendência para mudança da concepção patrística da história, ou da teologia da história, como bem
assinala Ratzinger em seu estudo sobre S. Boaventura9. Foi através de
Comment. In Evang. Joann., Migne PL, CXXII, 308. V. FALBEL, N., Os Espirituais
Franciscanos. São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 52ss. Sobre Scotus Erígena, vide a obra
fundamental de CAPPUYNS, Maïeul, Jean Scot Erigène sa vie, son oeuvre, sa pensée. Paris:
Desclée de Brouver, 1933, ed. anastática Bruxelas, Civilization et Culture, 1964.
Importante para o conhecimento de seu pensamento escatológico são alguns estudos
apresentados no encontro History and Eschatology in John Scottus Eriugena and His
Time. Proceedings of the Tenth International Conference for the Promotion of
Eriugenian Studies, Maynooth and Dublin, August 16-20,2000, eds. McEvoy, J.
and Dunne, M. Leuven, Leuven University Press, 2000.
7
8
Expositiones super Hierarchiam S. Dionysii, 1.2, prol, MignePL, CXXII, 266.
RATZINGER, J., La théologie de l’histoire de Saint Bonaventure, Paris: PUF, 1988, pp.
110-11. O estudo (tese) de Ratzinger remonta a 1959, publicado com o título
Geschichtsteologie des Heiligen Bonaventura. Pertinente é a lembrança do autor, que a
atitude da patrística em relação às estruturas deste mundo se diversifica em duas direções: a da “teologia imperial”, como voltada à construção cristã do mundo, em suas
estruturas, cujo representante no Ocidente, após Eusébio, seria Orósio, e a “teologia
pneumática”, da vitória cristã sobre o mundo no sentido neo-testamentário, tendo
como seu maior defensor Agostinho.
9
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69
NACHMAN FALBEL
Agostinho que a historização do cristianismo se fixou na doutrina de
que Cristo é o fim dos tempos e seu nascimento assinala e desemboca
na última idade, assim como foi concebida na periodização das seis
idades do mundo do fecundo autor da Civitas Dei e de boa parte dos
pensadores da patrística que o antecederam. Rupert de Deutz em sua
obra De sancta Trinitate et operibus eius se aproximou de uma teologia
da história trinitária dividindo sua obra em três partes, a saber, da Criação à Queda, que corresponde ao tempo do Pai, da Queda à Paixão,
que corresponde ao tempo do Filho e, da Ressurreição de Cristo à
consumação do saeculum, que corresponde ao tempo do Espírito Santo.
Sua exegese, que se pode definir como “teologia bíblica”, se fundamenta numa reflexão sobre tópicos das Escrituras Sagradas, enquanto
sua interpretação de certo modo vai além da concepção agostiniana ao
introduzir o papel do Espírito Santo na história da salvação do mundo, que se inicia com Cristo10. Para Rupert de Deutz, a cada pessoa da
Trindade corresponde um tempo, a saber, o tempo da criação, da
Sobre ele vide a importante obra de VAN ENGEN, John H. Rupert of Deutz. Berkeley:
University of California Press, 1983. A postura negativa de Rupert de Deutz frente à
filosofia ou a dialética, aplicada à teologia se coaduna com a linha da “teologia bíblica”,
ao ponto de se opor às artes liberais, aspecto lembrado por Guillermo Fraile, em sua
Historia de La Filosofia, Madrid: BAC, 1966, v. II, pp. 529-30. Seu contemporâneo
Gerhoh de Reichersberg (1093-1169) teria olhar idêntico frente a “teologia filosófica”
–se assim podemos denominá-la – ao escrever ao papa Eugenio III: “Quapropter
quoniam scientia illorum cum nulla sit, inflatur adversus scientiam Dei, pulchre satis
eorum spiritui congruit illud de fabella Aesopi, ubi rana sufflando tentans se extendere
ad magnitutem bovis, dum conatur, et pellem frustra distendit, tandem ultra vires
sufflando crepuit. Sic et huius temporibus quidam causidici, et legistae vel sophistae,
seu dialectici, vel potius haeretici sophistice loquentes, ideoque odibiles, contra legem
divinam, quase contra Moysen et contra sacerdotium legitimum et vere leviticum,
quase adversus Aaron dimicantes... Insipientia enim illorum manifestata, et per Sanctam
Scripturam confutata evidens erit, quod non de Spiritu Sancto inspirata, sed per spiritus
malignos et immundos conspirata sit loquacitas huiusmodi hominum veritati
resistentium, et ipsam veritatem Dei in iniustitia retinentium. Quasi enim captivam
detinent veritatem sanae doctrinae circumventam suo mendacio, per spiritus malignos
conflato, ut magna in eo inveniatur veri similitudo et bonitatis imago (Liber de corrupto Ecclesiae Statu, ad Eugenium III: PL 194,96-97), apud FRAILE, op. cit., p. 530.
10
70
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JOAQUIM DE FIORE, APOCALIPTICISMO...
redenção e o tempo da ressurreição. No entanto, Rupert de Deutz
associa esse último tempo aos sete dons do Espírito Santo, que contém em sua explicação um esquema da “terceira semana do mundo”,
de tradição patrística, da redenção ou salvação, representada na história
da Igreja: o da sabedoria, representado pela paixão de Cristo; o da
inteligência, representado pelas Escrituras dadas aos apóstolos; o do
conselho, associado à rejeição de Cristo pelos judeus; o da força, representado pelos mártires; o da ciência, referente ao tempo dos doutores;
o da piedade, representado pela conversão de Israel e do temor, e o
do juízo final11. Temos aqui uma elaboração que, se de um lado,
resume uma tradição teológica anterior, no entanto, já contém o
esboço de um tempo do Espírito Santo que embute a idéia de uma
Igreja espiritual joaquimita. Em sua época, Rupert de Deutz não seria
o único pensador a abrir uma nova senda para uma nova reflexão sobre
a concepção tripartita da história do mundo. Seu contemporâneo
Honório Augustudinensis (de Autun, c. 1090 – c. 1151)12, foi um
prolífico autor cuja obra abrange boa parte do conhecimento das “ciências” resultante da compilação de autores antigos e dos contemporâneos mais próximos que o antecederam. Na terceira parte do De
Imago Mundi, de caráter enciclopédico, ele adota uma história do
mundo dividida em seis idades, a saber: 1- do princípio do mundo até
Sem; 2- de Sem a Abrahão; 3- de Abrahão a David; 4- de David a
Nabucodonosor; 5- do cativeiro da Babilonia a Jesus Cristo; 6- de
Jesus Cristo a Frederico I13. Em sua concepção, a história de todos os
povos se processa conforme essa periodização. Honório Augustudinensis
acreditava que o mundo não perduraria eternamente mas findaria numa
RATZINGER, J. op. cit. pp. 113-114. V. também MAGRASSI, M., Teologia e storia nel
pensiero di Ruperto di Deutz. Roma: Pontificia Universitas de Propaganda Fide, 1959.
(Studia Urbaniana, vol.2,
11
As datas de nascimento e morte de Honório de Autun assim como sobre seu lugar de
origem são discrepantes entre os estudiosos.
12
13
De Imago Mundi III 1, MignePL CLXXII, 165.
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71
NACHMAN FALBEL
apocatástase em que todas as coisas voltariam à Deus por uma reintegração cósmica14. No Expositio in canticum canticorum ele se refere
aos dez estados ou ordens da Igreja e seu significado, considerando
como marco divisório a aparição de Cristo, cinco antes e cinco após15.
No entanto, em sua elaboração também comparece a tríade histórica
do tempo agrupando e relacionando três grupos de 50 salmos com a
“forma mundi, qui in tria tempora dividitur: ante legem, sub lege, sub
gratia”agostiniana, que seriam representados por Abel, Moisés, Cristo,
et finis mundi, desenvolvida porém além da fórmula agostiniana16.
Seu contemporâneo, Anselmo de Havelberg (c. 1100-1158), bispo e
membro da recém fundada Ordem Premonstratense, que teve uma
ampla atuação nos assuntos eclesiásticos de seu tempo, também preocupou-se com a reforma da Igreja e a união de todos os seus componentes, o que também explica sua reflexão histórica e os significados
de sua trajetória temporal, tendo como ponto de partida a figura de
Abel 17. A observação de McGinn, citando o historiador E.
Kantorowitcz, nos dá o significado maior dessa aspiração unificadora
Ele sofreu a influência de Scotus Erígena e sua obra Clavis physicae, de natura rerum
é na verdade uma apresentação de idéias daquele pensador.
14
Expos. In cant. cant., c.7,5 MignePL, CLXXII,460. V. FLINT, Valerie. The
Commentaries of Honorius Augustodinenses on the Song of Songs, in: Revue
Bénédictine, 84, 1974, pp. 196-7.
15
Exp. In Ps. Prol., MignePL, CLXXII, 273 D; Exp. in cant. cant. Prol., MignePL
CLXXII, 351C, 358A apud Herbert Grundmann, Studi su Gioacchino da Fiore,
Marietti, Genova, 1989, p. 92. A obra original de Grundmann foi publicada em
alemão sob o título Studien über Joachim von Floris, em 1927, e ainda permanece
como um trabalho fundamental para os estudos joaquimitas.
16
V. LEES, Jay T., Anselmo of Havelberg: deeds into words in the twelfth century. Leiden:
Brill, 1998, p. 216: “Anselm makes his call to ecclesiastical reform a joyful battle cry
meant to unite all the faithful, monks, canons, laymen, greeks, and latins, in a common
effort at spiritual renewal”. Para a idéia de um marco inicial da Igreja com a figura de
Abel, vide o artigo de Yves Congar, “Ecclesia aba Abel”, in: READING, Marcel (ed.).
Abhandlungen über Tehologie und Kirche: Festschrift für Karl Adam, Düsseldorf-Patmos,
1952, pp. 79-108.
17
72
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 65-86, jul./dez. 2010
JOAQUIM DE FIORE, APOCALIPTICISMO...
da Igreja em Anselmo18. Nele encontramos uma percepção da fé
como um movimento de mudanças, mutationes progressivas, em que
os sete selos do Apocalipse fornecem o esquema de sete períodos históricos, adotado por muitos pensadores da Igreja, assim como o fará
Joaquim de Fiore19. Em Anselmo o esquema dos tempos após Cristo,
configurados conforme a sequência: o cavalo branco, assinalando a
vinda de Cristo; o vermelho, o tempo dos mártires, o negro, o tempo
das heresias teológicas de Arius, Sabelio Nestório etc., o esverdeado,
os falsos cristãos ao mesmo tempo que a fundação das novas ordens, a
visão sob o altar como o testemunho dos santos imolados na nova
religião, o terremoto como a perseguição provocada pelo Anticristo, e
o silêncio no céu, como a visão da eternidade20. No seu escrito Dialogi
ou Antikeimenon ele explicita esse movimento da consciência ascendente no conhecimento da fé ao afirmar que no Velho Testamento se
anuncia claramente o Pai, mas o Filho ainda não é anunciado de forma
expressa. Do mesmo modo, no Novo Testamento o Pai e o Filho, são
anunciados, enquanto o Espírito Santo ainda não é inteiramente anunciado, sendo seu conhecimento desvelado gradativamente21. Passa a
ser correta a interpretação de estudiosos de que Anselmo em sua obra
visava chamar a atenção de seus contemporâneos sobre a ação do Espírito Santo no tempo da humanidade, no tempo histórico22. Vale lemMCGINN, B. Visions of the End, p. 95: “In a brilliant short paper on The Problem of
medieval World Unity, E. Kantorowicz has claimed that the medieval Myth of World
Unity has a predominantly messianic or eschatological character”. A citação de
Kantorowitcz é tirada do Selected Studies, Locust Valley, N.Y.: Augustin, 1965, p. 78.
18
19
V. WANNENMACHER, Julia Eva. Hermeneutik der Heilsgeschichte. De septem sigillis und
die sieben Siegel in Werk Joachims von Fiore. Leiden: Brill, 2005.
20
Dialogi l. 1, c. 7-13, col. 1149-1160, MignePL CLXXXVIII.
21
Dialogi l. 1, c. 6, col. 1147s e l. 2, c. 23, col. 1200-1202, MignePL CLXXXVIII.
Na recente tradução ao inglês do Dialogi, Ambrose Criste, OPraem e Carol Neel,
Anticimenon: On the Unity of the Faith and the Controversies with the Greeks,
Cistercian Publications, Liturgical Press, Collegeville, Minnesota, 2010, que inclui
uma bibliografia atualizada sobre Anselmo, expressam na Introdução, p. 7: “Anselm’s
goal in crafting the work at hand was ambitious: to illuminate for his contemporaries
the agency of the Holy Spirit in human time”.
22
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 65-86, jul./dez. 2010
73
NACHMAN FALBEL
brar que o “tempo histórico” de Anselmo e seus contemporâneos próximos bem poderia servir de contexto para suas especulações
apocalípticas e escatológicas. Desde a segunda metade do século XI e
inícios do século XII grandes mudanças estavam se dando na instituição eclesiástica, em especial em sua relação com o regnum, na tentativa
de eliminar os males que a vinham assolando há longo tempo. O impulso de reforma da Igreja assumira novas proporções, visando eliminar a investidura laica, que se tornou uma questão central no período
que antecede o papado de Gregório VII e que efetivamente entrara em
confronto com o poder secular para erradicá-la de uma vez por todas,
a par de outros males como a simonia e a conduta não condizente de
clérigos com a vida religiosa. Os graves acontecimentos da “querela das
investiduras” e suas repercussões, que adquire dimensões universais após
a eleição de Gregório VII e o desafio à Henrique IV, tinha como
epicentro secular o imperador do Sacro Império Romano Germânico,
e por isso mesmo talvez explique a coincidência de que boa parte dos
teólogos, voltados à uma reflexão histórico-escatológica seja de origem germânica. Os libelli de lite, as bulas, documentos, declarações,
epístolas, emanados de ambos os poderes, espiritual e temporal,
contêm em seu conjunto um considerável número de textos e passagens que revelam o elevado nível de tensões e expectativas de caráter
escatológico, senão apocalíptico, presentes naqueles anos. Kurt-Victor
Selge, observa que Herbert Grundmann já havia demonstrado com
profundidade a conexão do pensamento de Joaquim com a luta política entre o império e o papado pela libertas ecclesiae de seu tempo23.
Mesmo após a Concordata de Worms, em 1122, e os acontecimentos
posteriores a ela, não se amainaria o clima de exaltação gerado nesses
anos de confronto entre as duas instituições regentes da sociedade
No posfácio da edição italiana da obra de H. Grundmann, Studi su Gioacchino da
Fiore. Roma: Marietti, 1989, p. 206. A referência de Selge é o estudo de GRUNDMANN,
Libertà della chiesa e potere imperiale intorno al 1190 nella visione di Gioacchino da
Fiore. Deutsches Archiv, 19, 1963, pp. 353-396; cf. Ausgewählte Aufsätze, II, 1977, pp.
361-402.
23
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medieval, na qual a antiga crença do tempo da vinda e atuação do
Anticristo, que antecede o juízo final, é revivida não apenas como
metáfora ou alegoria aplicada à figura do Imperador (e por vezes ao
Papa) mas como realidade presente no curso decisivo da história24.
Nas obras De investigatione Antichristi25 e no De quarta vigilia
noctis, de teor claramente apocalíptico, Gehroh de Reichersberg
(1093-1169), defensor da reforma gregoriana no período da disputa entre Alexandre III e Frederico Barbaruiva, vê a interferência
do Anticristo em quatro etapas da trajetória histórica da Igreja inspirado na leitura de Mt 14:22-33 na qual é narrado o caminhar de
Jesus sobre as águas do mar da Galiléia durante a ‘quarta vigília’: a
primeira, representada pelas perseguições de Nero, é o período do
Anticristo sanguinário, a segunda, pela heresia, é período do
Anticristo fraudulento, a terceira, pela corrupção dos costumes, é o
período do Anticristo impuro caracterizado pela luta entre Gregorio
VII e Henrique IV, e o quarto assinala o período da avarícia, representada pelo Anticristo que provoca a existência do clero simoníaco
e também corroí a cúria romana 26 . Assim como Gehroh de
Reichersberg, Joaquim de Fiore também acreditava na vinda de vários
Sobre a intensa expectativa da vinda do Anticristo, vide a importante obra de
EMMERSON, Richard Kenneth. Antichrist in the Middle Ages: A Study of Medieval
Apocalypticism, Art, and Literature, Seattle, University of Washington Press,1981;
RUSCONI, Roberto”. Antichrist and Antichrists”, in: Encyclopedia of Apocalypticism. vol.
2, ed. Bernard McGinn,, New York/London: Continuum 2000, pp. 287-325.
24
Gehroh de Reichersberg, nessa obra, faz referência ao Ludus de Antichristo, uma peça
de caráter escatológico, considerada a melhor dramatização medieval sobre a lenda do
Anticristo, vide EMMERSON, K., op.cit., p. 166.
25
MCGINN, B. “Apocalypticism and Church Reform, 1100-1500”, in: Encyclopedia of
Apocalypticism, Apocalypticism in Western History and Culture, vol. 2, ed. Bernard
McGinn, New York/London: Continuum, 2000, pp. 82-83. É nesse mesmo tempo
que a influente mística alemã, Hildegard de Bingen (1098-1179), em seu escrito
Scivias, no Liber divinorum operum assim como em outros textos saídos de sua pena
dirige fortes críticas ao clero, impregnadas de idéias reformistas de teor apocalíptico.
26
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Anticristos como bem demonstrou Robert E. Lerner27. Também o
cronista de Frederico Barbaruiva, o bispo Otto de Freising (c. 1101158) no capítulo final de sua obra Chronica sive Historia de duabus
civitatibus, reflete sobre o final dos tempos. Porém, certamente está
voltado à história passada e aos acontecimentos de seu tempo, certamente com a intenção de ilustrar o imperador alemão. Em sua divisão
entre civitas terrena e civitas Dei, Otto de Freising aplica uma divisão
trinitária28. O mesmo contexto está associado à atmosfera gerada
pelas Cruzadas, que teriam um papel decisivo para a transformação da
sociedade medieval desde que, em 1095, o papa Urbano II mobilizou
a cristandade ocidental para a libertação e a retomada dos lugares santos da Terra Santa então nas mãos dos muçulmanos. As crônicas latinas, assim como as hebraicas, relativas às Cruzadas e que descrevem os
dramáticos acontecimentos, entre eles a conquista de Jerusalém em
1099, revelam o quanto esse clima de expectativa apocalíptica se encontrava presente nos anos em que elas se deram29.
V. em especial o estudo “Antichristi e Antichristo in Gioacchino da Fiore”, na importante obra de Lerner, R.E., Refrigerio dei Santi, Gioacchino da Fiore e l’escatologia
medievale, Roma: Viella, 1995, em especial p. 118ss: “In contrasto com questa tradizione,
gli scritti profetici della maturità di Gioacchino da Fiore dimostrano che egli credeva
nella venuta di molti anticristi, attribuendo però un‘importanza particolare a due di
essi, i più terribili, la cui venuta egli collocava in um tempo futuro”.
27
Sobre a obra, publicada em latim por A. Hofmeister, Cronica sive Historia de duabus
civitatibus MGH, SSRerum Germanicarum, XL, Hanover-Leipzig, Hahn, 1912, e
sua tradução por Charles Christopher Mierow, The Two Cities: A Chronicle of Universal History to the Year 1146 A.D., New York: Columbia University Press, 1928, vide
deste último “Bishop Otto of Freising, Historian and Man”, in: Transactions and
Proceedings of the American Philological Association, LXXX, 1949, 393-401; idem
“Otto of Freising: a “Medieval Historian at Work”, in: Philological Quarterly, XXIV,
1945, pp. 97-105 e o elucidativo estudo de LAMMERS, Walther. Weltgeschichte und
Zeitgeschichte bei Otto Von Freising, in: Die Zeit der Staufer, Katalog der Ausstellung.
Stutgart, 1977, Band V Supplement, Vorträge und Forschungen, Württenbergeschen
Landesmuseums, herausg. Reiner Haussheer und Christian Väterlein, pp. 77-90.
28
A manifesta expectativa nesse período levou ao fenômeno da conversão de alguns
cristãos ao judaísmo, a exemplo do normando Obadia, o Prosélito. V. FALBEL, N. Kidush
Hashem: Crônicas Hebraicas sobre as Cruzadas, São Paulo: Edusp-Imprensa Oficial,
2001, pp. 271-333.
29
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Nesse aspecto podemos afirmar que um exame de conjunto da
teologia da história assim como esta se apresenta em Rupert de Deutz,
em Honório de Autun e em Anselmo de Havelberg30, e ainda em
outros pensadores do século XII, indica que apesar de adstritos ao
pensamento agostiniano tradicional suas reflexões continham germes
de uma mudança inovadora que certamente tiveram um papel formador nas concepções de Joaquim de Fiore. Assim como Anselmo de
Havelberg leu os escritos de Rupert e Honório, não menos provável
que Joaquim os tenha lido e vislumbrado centelhas inspiradoras para
sua própria obra concomitantemente às fontes patrísticas, cuja leitura
e estudo se revelam em seus escritos. Contudo, determinar os autores
e obras que tiveram papel decisivo na gestação do pensamento de Joaquim de Fiore constitui um verdadeiro desafio, considerando-se a
multiplicidade de hipóteses e sugestões aventadas no meio acadêmico
desde o século XIX31.
Os estudiosos da obra de Joaquim de Fiore o consideram um
marco diferenciado devido o tratamento exegético inovador dado ao
livro do Apocalipse. Conforme bem afirma E. Randolph Daniel sua
interpretação é radicalmente nova no método utilizado para a
“historização” do livro de João, sendo que o método exegético da
concórdia não encontra antecedentes32. É sob o mistério da Trindade
Sobre ele, vide EDYVEAN, W. Anselmo of Havelberg and the Theology of History. Rome:
Pontificia Universitas Gregoriana, 1972.
30
A bibliografia, sob essa questão, é extensa, mas creio que uma síntese útil pode ser
encontrada no artigo de BLOOMFIELD, Morton W. “Joachim of Flora, A Critical Survey
of his Canon, Teachings, Sources, Biography and Influence, in: Traditio, XIII, 1957,
pp. 249-311.
31
“Joaquim of Fiore: Patterns of History in the Apocalypse”, in: The Apocalypse in the
Middle Ages, p. 73. Devo observar que dentro dos limites do presente artigo sintetizo
certos aspectos de seu pensamento sobre o qual escrevi no capítulo “Joaquim de Fiore e
sua contribuição à formação do pensamento espiritual”, incluindo as fontes, em minha
obra Os Espirituais Franciscanos. São Paulo: Perspectiva, 1995, pp. 49-77.
32
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NACHMAN FALBEL
que Joaquim constrói a periodização que representa as três idades do
mundo (status mundi) figurada por um “ordo” diferente em cada uma
das idades. O período do Pai, no qual os homens viviam segundo a
carne (in quo vivebant homines secundum carnem), é aquele no qual
prevalece a lei, o tempo dos desposados e laicos e nele predomina o
Velho Testamento. A este tempo se sucede o período do Filho, o
período da Graça, no qual os homens vivem num estádio intermediário, entre a carne e o espírito (in quo vivitur inter utrumque, hoc est
inter carnem et spiritum). Este é o período do “ordo” dos clérigos e
nele predomina o Novo Testamento. O terceiro período é o do Espírito Santo, o período do Amor, do “ordo” dos monges, no qual predominará o Espírito (in quo vivitur secundum spiritum) caracterizado
pelo Evangelho do Espírito Santo ou o Evangelho Eterno (evangelium
aeternum), que significa o conhecimento resultante de uma interpretação espiritual superior dos dois Testamentos (O Velho e o Novo).
Este espírito eterno extraído das Escrituras pelo “spiritualis intellectus”,
por uma interpretação espiritual superior, é o que subsistirá, enquanto
que a letra dos anteriores, assim como nós a conhecemos até agora,
desaparecerá no futuro. Esta “intelligentia spiritualis” será um dom
outorgado aos “viri spirituales”, fundamento da nova Igreja Espiritual
(ecclesia spiritualis), assentada sobre um novo “ordo” (ordo iustorum,
ordo monachorum), que tomará o lugar da Igreja carnal, corrompida,
predominante até o seu tempo33. Em sua periodização trinitária Joaquim delimita o primeiro período iniciando-se com Adão e culminando com Cristo; o segundo de Cristo até o ano de 1260; e o terceiro
de 1260 até o final dos tempos. Cada período ou idade, possui um
precursor e um iniciador durando 42 gerações, tese fundamentada no
verso de Mt 1:17 ou seja de Abrahão a Davi, de Davi ao exílio na
FALBEL, N. ”São Bento e a ordo monachorum de Joaquim de Fiore”, Revista USP, SP,
(30), junho-agosto, pp. 273-276.
33
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Babilonia, do exílio da Babilonia à Cristo, equivalente à três vezes
quatorze gerações. Cada geração compreende trinta anos, desse modo
temos trinta como multiplicador de quarenta e dois que perfaz 1260,
ano em que se iniciará a terceira idade que teve como precursor a São
Bento e terminará com o Juízo Final34. Como precursor do segundo
período é assinalado o rei Ozias e se inicia com Zacarias, pai de João
Batista. O surgimento de cada período ou idade é turbulento e anuncia a vinda do Anticristo. Em outro lugar dá a entender que o Anticristo
já nasceu e está vivo, quem sabe em Roma, o que poderia ser interpretado como sendo o Papa. Porém devemos observar que juntamente
com o sistema trinitário, como já haviam observado estudiosos como
Marjorie Reeves e B. Hirsch-Reich, Joaquim de Fiore não deixou de
seguir também o sistema tradicional binário, alicerçado sobre a dualidade
do Velho e do Novo Testamentos, velha e nova Jerusalém, tribo de
Judá e Igreja Romana. Sob esse aspecto, o sistema binário ainda teria
um papel relevante na teologia da história do abade calabrês, enquanto
que o trinitário permaneceria no nível “místico-profético”, o que não
daria ao terceiro “status” uma autonomia absoluta, porém diretamente
dependente dos demais35. Por outro lado, como lembra M.W.
Bloomfield, citando M. Reeves, o aspecto pessimista existente que na
visão histórica joaquimita derivaria do sistema binário, enquanto que
o seu aspecto otimista derivaria do sistema trinitário. O fato decisivo é
que a história termina com a grande tribulação, com o surgimento de
Vide sobre o significado do ano 1260 e a alternativa do ano 1200 em Mottu, op.
cit., pp. 267-269 e respectivas notas de rodapé.
34
Sobre isso, vide REEVES, Marjorie, The Influence of Prophecy in the Latter Middle
Ages. A Study in Joachinism. Oxford: Clarendon Press, 1969, pp. 16-27; idem, The
Liber Figurarum of Joachim of Fiore, Mediaeval and Renaissance Studies, II, 1950,
pp. 57-81; HIRSCH-REICH, B. The Seven Seals in the Writings of Joachim of Fiore,
Recherches de Théologie ancienne et médiévale, XXI, 1954, pp. 211-47; POTESTÀ,
Gian Luca. Il tempo dell’Apocalisse. Vita di Gioacchino da Fiore, Roma-Bari: Laterza,
2004, pp. 5-6;
35
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Gog antes do Segundo Advento, mas “essa crise de Gog, no esquema
trinitário desenvolvido por Joaquim, não é no entanto nunca identificado com a última perseguição da Igreja, o antichristus ultimus et
pessimus, ou a sétima cabeça do Dragão. Essa deve preceder a Idade do
Sábado do terceiro status, mas no seu final virão as hostes de Gog, o
último golpe, como se fosse da cauda do Dragão, em que aparece na
Figura do Dragão”36.
Sejam quais forem as fontes inspiradoras de Joaquim – e não foram
poucas – o que se destaca em sua concepção é o papel atribuído ao Espírito
Santo na economia religiosa como o período “electus est ad libertatem
contemplationis scriptura attestante qui ait: Ubi spiritus ibi libertas”. O
método é o da “concordância” entre o Velho e o Novo testamento,
“secundum coaptationem concordiae” que se diferencia do tradicional
método alegórico predominante na exegese cristã medieval. O princípio
hermenêutico emana do “misticus intellectus qui sicut dicut est a duobus
procedit”. Este princípio é o que rege a “concórdia” das duas partes das
Escrituras Sagradas, que contém a fé de Israel e da Igreja de Cristo. O
gênero da exegese profética de Jaoquim está ligado diretamente à interpretação do livro do Apocalipse, fonte inspiradora da escatologia, do
apocalipticismo, do profetismo e do milenarismo posterior, livro ao qual
dedicou grande parte de seu labor intelectual, a fim de revelar o significado
hermético e simbólico nele contido. O conjunto de suas obras lembradas
acima e as diretamente voltadas à interpretação do livro do Apocalipse,
isto é, o Expositio in Apocalypsim, o Enchridion super Apocalypsim e o Liber
introductorius in Apocalypsim servirá como um manancial e fonte criativa
BLOOMFIELD, W.C.; LEE, Harold. “The Pierpont – Morgan Manuscript of De Septem
Sigillis”, in: Recherches de Théologie Ancienne et Médiévale. XXXVIII, 1971, 137-148.
O texto De Septem Sigillis foi publicado por Marjorie Reeves e Beatrice Hirsch-Reich,
The Seven Seals in the Writings of Joachim of Fiore, in: Recherches de Theólogie Ancienne
et Médiévale, XXI, 1954, pp. 211-247. A citação de Bloomfield é extraída desse último
trabalho, p. 222.
36
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para uma verdadeira corrente de literatura apocalíptica que se manifestará
séculos após a sua morte37. A difusão de seu pensamento deveu-se, em
boa parte, a certos círculos franciscanos que a partir da década de 1250
incorporaram suas idéias ainda que associadas a uma ótica própria, que se
distanciaria cada vez mais dos textos originais de seu autor. Conforme um
estudo de Morton Bloomfield e Marjorie Reeves, as idéias de Joaquim,
de início difundidas entre os membros da Ordem Florence e Cisterciense
na Calabria e na Itália, atravessaram os Alpes expandindo-se pelo continente para a Inglaterra, França, Espanha e Alemanha, conforme atesta o
grande número de manuscritos encontrados nas bibliotecas européias38.
Mas E. Randolph Daniel sugere que a expansão ter-se-ia dado mesmo
antes de 124039. Marjorie Reeves lembra que a provável causa para a
aceitação da hipótese de uma expansão posterior das idéias de Joaquim foi
a sua condenação no Concílio de Arles, em 1263, que dava a entender que
as doutrinas do abade calabrês ainda eram pouco conhecidas e permaneciA questão do método exegético de Joaquim de Fiore é abordada com profundidade
no excelente estudo de Henry Mottu, La manifestation de l’Esprit selon Joachim de
Fiore. Paris: Delachaux & Nestlé S.A., 1977. Me utilizei da versão italiana La
manifestazione dello spirito secondo Gioacchino da Fiore, Ermeneutica e teologia della
storia secondo Il “Trattato sui quattro Vangeli”, Marietti, Casale Monferrato, 1983. Na
nota introdutória à obra, p. XI, Gian Luca Potestà chama a atenção que “attraverso
l’analisi del Tractatus super quatuor Evangelia, uno degli scritti più maturi e radicalmente espressivi Del suo pensiero, Mottu mostra come l’exegesi gioachimita non sia
semplicemente allegorica e mística (secondo la riduzione interpretativa già operata da
Ernesto Buonaiuti) ma profetica, in quanto reinterpreta il contenuto spirituale della
sacra pagina in una prospettiva storico-apocalittica.”
37
BLOOMFIELD, M. W.; REEVES, M. E. The penetration of Joachim into Northern
Europe, in: Speculum, XXIX, 1954, pp. 772-793. O levantamento dos manuscritos
feito por Marjorie Reeves em seu notável estudo The Influence... pp. 511-540 comprova essa assertiva. Randolph Daniel baseia-se na Cronica de Salimbene (Chronica,
MGH, SS, t.XXXII) bem como nos dois textos pseudo-joaquimitas, o Super Hieremiam
Prophetam e o Super Esaiam Prophetam citados pelo próprio Salimbene.
38
DANIEL, Randolph E. A re-examination of the origins of Franciscan Joachitism, in:
Speculum. XLIII, 1968, pp. 671-678. Segundo o mesmo autor, a difusão do joaquinismo
nos meios franciscanos do sul da Itália teria sido nos inícios de 1240.
39
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am na obscuridade. A fama de Joaquim, porém, já se fazia notar com a
disseminação de sua Ordem antes e logo após sua morte, assim como
entre certos meios cistercienses e franciscanos40. No entanto, sua menção
por cronistas como Sicardo, bispo de Cremona, que escreveu entre 1201
e 1215, Roberto de Auxerre, que escreveu antes de 1215, ou Roger de
Wendover cujo Flores Historiarum é dos anos 1230, evidencia o quanto
sua doutrina estava difundida nesse tempo. A narrativa na Chronica de
Roger de Hoveden sobre o encontro de Ricardo Coração de Leão com
Joaquim em Messina entre 1190 e 1191, durante a Terceira Cruzada,
assim como o Chronicon Anglicanum de Ralph Coggeshall também confirmam a fama do “profeta“ calabrês. A presença de expressões e idéias
joaquimitas é inegável nas duas obras pseudo-joaquimitas Super Hieremiam
Prophetam e o Super Esaiam Prophetam possivelmente produzidas no sul
da Itália e que passaram a fazer parte das leituras de franciscanos como
Hugo de Digne, Bartolomeo Guiscolo, Gerardo da Borgo San Donnino,
João de Parma e outros, como se pode depreender da Crônica de Salimbene,
ele mesmo leitor desses mesmos textos41.
REEVES, Marjorie. The Influence... pp. 38-39. A autora observa que um meio efetivo
de divulgação de suas idéias foram as figurae, ou seja, as “imagens descritivo-explicativas”
que constam no Liber Figurarum, cuja iconografia parece ter sido amplamente difundida. Sobre o texto Leone Tondelli, que escreveu o primeiro volume da segunda edição,
publicado em 1953, sendo o segundo conjuntamente com M. Reeves e B. HirschReich, Il Libro delle Figure dell’Abate Gioachino da Fiore. 2ª. ed. Turim: Società Editrice
Internazionale, 1954. Também REEVES, M.; HIRSCH-REICH, B. The “Figurae” of Joachim
of Fiore. Oxford: Clarendon Press, 1972.
40
DANIEL, R.E., op. cit. pp. 674-5. O Super Hieremiam Prophetam teve sua primeira
edição em Veneza, Lacaz de Soardis, 1516 e Super Esaiam Prophetam, em Veneza,
1517. Vide também WEST, Delno C., Between flesh and spirit: Joachim pattern and
meaning in the Cronica of Fra Salimbene, in: Journal of Medieval History, vol. 3, issue
4, December, 1977, pp. 339-352. GRUNDMANN, H., op. cit., no capítulo IV de seu
estudo “La sopravvivenza delle idee gioachimite”, pp. 169-204, traça um histórico da
expansão de suas doutrinas e escritos em alguns centros, sem que nem sempre se possa
saber com certeza se, nessas primeiras décadas o conhecimento de suas idéias se fundamentava em escritos autênticos ou não.
41
82
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Até onde, durante o século XIII, idéias joaquimitas foram absorvidas por movimentos heréticos a exemplo dos seguidores de Amaury
de Bène, Gerardo Segarelli e Dolcino de Novara, lideres dos PseudoApóstolos ou Apóstolos de Cristo, assim como outros heresiarcas,
ainda é uma questão aberta que deverá merecer a atenção dos estudiosos, apesar das tentativas pontuais de esclarecer a sua influência em
certos heterodoxos42. Boa parte desse pseudo-joaquimismo não era
mais do que interpretações que extrapolavam a doutrina trinitária original de Joaquim de Fiore tendo como fundo e intenção a crítica e a
revolta contra a instituição eclesiástica, vista como corrupta e afastada
da vida evangélica, assim como a entendiam as heresias desejosas de
reforma. Mas em meados do século XIII, conforme vimos acima, os
escritos fundamentais de Joaquim já eram conhecidos, e seriam ainda
mais a partir de 1254, quando Gerardo da Borgo San Donnino publicou o Introductorius ad Evangelium aeternum, identificando nos
principais escritos de Joaquim o próprio Evangelho Eterno, ao mesmo tempo em que provocava uma explosiva querela interna na OrSobre eles, vide FALBEL, N. Heresias Medievais. São Paulo: Perspectiva, 1977. Em
relação à Amaury de Bène Paul Fournier em seu Études sur Joachim de Flore et ses doctrines
(Paris: 1909, reprod. Frankfurt-Am Main: Minerva GMBH, 1963, p. 40), escreveu
que “Dès le début Du XIIIe siècle, nous retrouvons chez les disciples d’un hérésiarque
francais, Amaury de Chartres, des croyances qui sont vraisemblablement inspirées par
les prohéties de Joachim de Flore. Comme Joachim, ces hérétiques partage l’histoire en
trois périodes, celle du Père, celle du Fils et celle de l’Esprit”. No entanto, G.C.
Capelle, em sua obra Autour du décret de 1210: III- Amaury de Bène, étude sur son
panthéisme formel (Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1932, p. 81-5), coloca em
dúvida essa possibilidade, aventando a hipótese que ambos “se inspiraram de uma
mesma fonte”. No prefacio a essa obra, pp. 5-6, Étienne Gilson também contesta a
opinião geralmente aceita sobre o próprio panteísmo de Amaury de Bène ao afirmar
que “La conclusion qui s’en dégage est, qu’en somme, Amaury de Bène est à lui-même
sa propre source. Son panthéisme ne se retrouve ni chez les Chartrain, ni chez Scot
Erigène, mais est issu de ses propres réflexions sur la nature de Dieu et des relations du
monde à Dieu”, contrario à concepção de um estudioso de sua obra como Mario Dal
Pra (Amalrico de Bène. Milano: Fratelli Bocca Editori, 1951), que enfatiza a influência
de João Scotus Erígena.
42
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83
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dem Franciscana43. Esta última querela seria logo associada à contenda
externa com os magistri seculares devido a presença e influência das
ordens mendicantes na Universidade de Paris44.
Efetivamente, foi nos círculos iniciais dos Espirituais Franciscanos,
que viam a si mesmos como os arautos de uma nova Igreja, que o
pensamento joaquimita teve maior aceitação, introduzindo-se na notável produção literária de sua elite e liderança intelectual, impregnando as obras que saíram de suas penas. Refiro-me em particular a Pedro
de João Olivi45, Ubertino de Casale, Angelo Clareno e seus seguidores. E, mesmo que nem sempre possamos identificar referencias expressas às obras de Joaquim, ainda assim manifestações de expectativa
apocalíptica e escatológica perpassam como fio central em suas obras46.
Nesse mesmo contexto, o genial e visionário médico catalão Arnaldo
de Vilanova, identificado e defensor dos Espirituais, também apresenApesar da bibliografia existente sobre a questão do Evangelium aeternum, indispensável se faz a leitura de DENIFLE, S. Das Evangelium aeternum und die Comission zu
Anagni, in ALKG, I, 1885, pp. 49-141.
43
44
V. FALBEL, N., Os Espirituais Franciscanos, pp. 69-77.
Pedro de João Olivi (1247-1297), que se destacou como líder dos Espirituais na
Provença, teve uma fecunda atividade intelectual, e em sua Lectura super Apocalipsim
vemos o quanto se identificara com o joaquimismo. Sob esse aspecto ainda permanece
como fundamental a obra de Raul Manselli, La ‘Lectura super Apocalipsim’ di Pietro di
Giovanni Olivi: Ricerche sull’ escatologismo medioevale (Roma: Istituto Storico Italiano per Il Medio Evo, Studi storici 19-21, 1955). Novos estudos e questionamentos
sobre Olivi encontram-se na coletânea, incluindo bibliografia de 1989-1998, Pierre de
Jean Olivi (1248-1298), Pensée scholastique, dissidence spirituelle et société, Actes du
colloque de Narbonne (mars 1998), ed. por Alain Boureau et Sylvain Piron, Paris: Lib.
Phil. J. Vrin, 1999.
45
Sobre eles, dediquei alguns capítulos em meu estudo “Os Espirituais Franciscanos”,
citado anteriormente, nele incluindo as referências das fontes e a bibliografia específica.
No entanto, devo observar que desde os anos 1972, quando apresentei minha tese de
doutorado sobre o tema, bem como sua publicação somente em 1995, até hoje,
avolumaram-se os estudos sobre essas marcantes figuras enriquecendo sobremaneira
nosso conhecimento sobre os mesmos.
46
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ta uma obra marcada por um joaquimismo exaltado, na qual especula
sobre a vinda do Anticristo e a reforma da Igreja47. Os padrões da
exegese joaquimita, a saber, os três status, as sete idades do mundo, o
duplo sete selos e suas “aberturas” (apertiones) estão presentes em uma
série notável de pensadores e exegetas medievais que foram contaminados por seus escritos, como Adam de Marisco (Marsh) e Rogério
Bacon, mesmo que esses não fizessem parte de grupos Espirituais da
Ordem Franciscana48. Daí podermos entender a reação de determinadas personalidades que viam em certas doutrinas vinculadas à obra de
Joaquim senão uma ameaça à Igreja ao menos uma visão e interpretação errônea de verdades teológicas aceitas e compartilhadas universalmente pelo conjunto de seus fiéis49. Teólogos de vulto como Tomás
de Aquino (1225-1274), que em sua postura teológica mostrou-se
radicalmente crítico à escatologia joaquimita, e, de outro lado,
Boaventura (1217-1274), que demonstra plena familiaridade com seus
escritos no Collationes in Hexaemeron e mais ainda no Breviloquium
Sobre ele, vide meu estudo “Arnaldo de Vilanova, sua doutrina reformista e sua
concepção escatológica”, tese de livre-docência, Universidade de São Paulo, 1977. A
mesma observação da nota anterior aplica-se a esse trabalho.
47
V. BURR, David. “Mendicant Readings of the Apocalypse”, in: EMMERSON, Richard
K.; MCGINN, Bernard. The Apocalypse in the Middle Ages. Ithaca-London: Cornell
University Press, 1992, pp. 89-102. A adoção da exegese joaquimita posterior à sua
morte é também tratada por Henri de Lubac, Exégèse Médiévale, Les quatre sens de
l’Écriture, seconde partie, II, Paris: Aubier, 1964, pp. 325-344.
48
Importante, sob esse aspecto, é o estudo de Bernard McGinn, “The Abbot and the
Doctors: Scholastic Reactions to the Radical Eschatology of Joachim of Fiore”, in:
Church History, vol. 40, n. 1 (mar., 1971), pp. 30-47, reeditado com o capítulo 7 de
seu livro The Calabrian Abbot. Joachim of Fiore in the History of Western Thought,
New York: MacMillan, 1985, pp. 207-234, com o título “Ther Abbot and the Doctors:
Joachim, Aquinas and Bonaventure”; também o capítulo 3 da obra de H. de Lubac, La
postérité spirituelle de Joachim de Flore, I. de Joachim à Schelling, P. Lethielleux, 1987,
pp. 123-160.
49
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 65-86, jul./dez. 2010
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NACHMAN FALBEL
e foi influenciado por seu pensamento, evidencia o quanto a obra do
abade causara impacto na escolástica daquele tempo50.
Para terminarmos se faz oportuno lembrar as palavras de Marjorie
Reeves, a notável scholar, cuja obra é um marco divisor para o conhecimento do joaquimismo:
O significado histórico de Joaquim repousa na caráter dinâmico
de certas idéias centrais que ele anunciou. Elas atuaram subterraneamente nos séculos que se seguiram, florescendo de tempos em tempos para uma nova vida em um grupo ou individualmente. Sua qualidade vital emergiu do fato que elas atuaram
na imaginação, promovendo a esperança e desse modo a ação51.
V. RATZINGER, J. op. cit.; FALBEL, N., “São Boaventura e a Teologia da História de
Joaquim de Fiore”, in: S. Boaventura, 1274-1974, II, Studia, Grottaferrata, 1973, pp.
571-584; E. RANDOLPH, Daniel. St. Bonaventure’s Debt to Joachim, in: Medievalia et
Humanistica, 11, 1982, pp. 61-75.
50
REEVES, M., The Influence... p. 136: “The historical siginifcance of Jaochim lies in the
dynamic quality of certain key ideas which he proclaimed. They worked underground
in the following centuries, form time to time springing to new life in a group or in
individual. They vital quality arose from the fact that they worked in the imagination,
moving to hope and so to action”.
51
86
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 65-86, jul./dez. 2010
O ALTER CHRISTUS: CRISTOCENTRISMO E CONSTRUÇÃO...
O ALTER CHRISTUS: CRISTOCENTRISMO
E CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DE
FRANCISCO NA ARBOR VITAE
CRUCIFIXAE IESU, DE UBERTINO DE
CASALE (1305)
Ana Paula Tavares Magalhães *
Resumo: O cristocentrismo, pensamento que tende a estabelecer
o advento de Cristo como elemento central da História, marcou o
pensamento teológico e filosófico da Ordem Franciscana, com destaque para Boaventura de Bagnoregio, seu expoente máximo. Trata-se
de uma matriz patrística, cujas idéias fundamentais podem ser observadas em Agostinho de Hipona. A esse pensamento, associou-se o
papel fundamental atribuído a Francisco de Assis na história da Igreja
na crônica franciscana. Ubertino de Casale, representante de um pensamento rigorista no interior da Ordem, apropriou-se desses dois elementos, conferindo-lhes novos significados em sua obra, ao mesmo
tempo que atribuiu aos Espirituais Franciscanos uma suposta solução
de continuidade em relação aos mesmos.
Os ideais da estrita observância – com a ênfase no usus pauper que
ela forçosamente acarreta – e da reconstrução do cristianismo primitivo – destacando-se o papel histórico fundamental de Francisco de Assis e a urgência de seu projeto – teriam permeado a luta travada pelos
*
Universidade de São Paulo.
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010
87
ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES
Espirituais Franciscanos, em meio a uma conjuntura política e social
marcada por uma série de conflitos – com o clero secular, com os
mestres parisienses, com a própria Ordem Dominicana e em vista dos
chamados Conventuais, membros da Ordem que se mostravam partidários de uma “observância ampla” (marcada por uma percepção mais
subjetiva do usus pauper e por formas de conduta tendentes a privilegiar o comportamento individual frente ao coletivo). A obra Arbor vitae
crucifixae Iesu (1305), de Ubertino de Casale (1259-1328), situa-se na
linha das discussões que durante muitos anos povoaram a história da
Ordem e da Igreja, opondo Conventuais e Espirituais, naquilo que
ficou conhecido como a “Questão Espiritual”.
Escrita no ano de 1305, a Arbor vitae de Ubertino apresenta uma série
de pressupostos vinculados ao partido espiritual no interior da questão
que se processava dentro da Ordem Franciscana. Não se configura, entretanto, como um escrito concretizado com o fito de atender à demanda de
uma solução urgente – caso do Rotulus iste1, produzido em meio às disA pesquisa científica acerca do franciscano Ubertino de Casale, que marcou trajetória na
história da Ordem e da Igreja Católica entre os séculos XIII e XIV, remonta ao fim do século
XIX. Em sua preocupação com a chamada magna disceptatio (1309-1312) – opondo
Espirituais e Comunidade, facções em que se encontrava cindida a Ordem Franciscana –
e com as conseqüentes ocorrências processadas no Concílio de Viena (1312) – no qual
coube a Ubertino o destaque como ferrenho defensor das idéias e da pessoa do também
franciscano Pedro de João Olivi, este profundamente envolvido com a questão da pobreza,
que abalava a instituição fundada por Francisco –, Ehrle (EHRLE, F. Zur Vorgeschichte
des Conzils von Vienne, in: Archiv für Litteratur und Kirchengeschichte des Mittelalters, 2
(1886) 353-416, 3 (1887) 1-195; Die Spiritualen, ihr Verhältniss zum Franziskaner
Orden und zu den Fraticellen, ivi 3 (1887) 553-623, 4 (1888) 1-190) recolheu e comentou parte dos documentos relativos ao supradito Concílio, dentre os quais o chamado
Rotulus iste, opereta produzida por Ubertino em meio ao calor das discussões acerca da
ortodoxia dos escritos de Olivi, na qual procura defender as posições de seu companheiro
– já falecido por esta data –, ao mesmo tempo em que procede a uma crítica mordaz às
idéias e ao comportamento da chamada Comunidade, composta por aqueles frades que,
no interior da Ordem Franciscana, tendiam a uma interpretação ampla da Regra, opondose àqueles que, como Olivi e conseqüentemente também Ubertino, faziam a apologia da
observância estrita – os chamados Espirituais.
1
88
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O ALTER CHRISTUS: CRISTOCENTRISMO E CONSTRUÇÃO...
cussões a respeito da ortodoxia dos Espirituais e da probidade dos escritos
de Pedro de João Olivi. Por essa razão, permanece um escrito essencialmente teórico: muito embora fosse produto de um contexto de luta, não
foi redigido por força de uma disputa religiosa.
A perspectiva espiritual de renovação da Igreja – para dar a ela,
enfim, a função de depositária do ideal da pobreza evangélica2 –, e
em particular da Ordem – acentuando o papel histórico fundamental de Francisco de Assis –, está presente em todo corpo da
obra, figurando como uma verdadeira defesa dos pressupostos do
grupo dos frades rebeldes. A vida de Jesus Cristo é a árvore da vida
à qual se refere o escrito: sua raiz, seu caule, suas folhas representam o símbolo da vida para a humanidade. Como elemento fundamental da obra figura o motivo da redenção, que a preenche
perfazendo seu sentido e sua finalidade3.
Tendo como suporte a tese agostiniana – com base na exegese do
texto paulino – da relação Cristo-cabeça/Igreja-membros, de acordo
com Ubertino haveria uma economia entre Cristo-cabeça e Igreja de
fiéis autênticos. Esta, contudo, só pode resultar em ser restritiva no
que se refere à parte da Igreja envolvida, fazendo-a possivelmente coincidir com o grupo dos Espirituais. A importância da relação estabelecida
reside, portanto, no fato de que ela não se processa entre Cristo e a
Igreja em geral, mas antes entre Cristo e os chamados eleitos, ou seja,
aquela parte da Igreja que permanece, no entender de Ubertino, fiel a
ele. Dessa forma, para além das referências tradicionais à recíproca presença de Cristo na Igreja e vice-versa – de resto, presentes no corpo do
THOMAS, Hans Michael. Franziskanische Geschichtsvision und europäische
Bildentfaltung: die Gefährtenbewegung des hl. Franziskus, Ubertino da Casale, der
“Lebensbaum”, Giottos Fresken der Arenakapelle in Padua, die Meditationes vitae Christi
Heilsspiegel und Armenbibel. Wiesbaden: L. Reichert, 1989, p. 15.
2
3
Idem, Ibidem, p. 12.
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89
ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES
texto –, a relação que prevalece tende a ser aquela entre Cristo e seus
“membros eleitos”4.
Um exame da totalidade da Arbor vitae permite destacar uma série de
passagens nas quais se ressalta a relação especial imanente entre Cristo e os
seus5. Fazem aparição, naturalmente, as tradicionais referências à recíproca
presença de Cristo na Igreja e da Igreja em Cristo6. Prevalece, contudo, o
pressuposto da relação entre Cristo e seus membros eleitos. De um ponto
de vista eclesiológico, é significativa a insistência de Ubertino na relação
entre Cristo e seus fiéis, fato observado sobretudo na parte do capítulo IV
dedicada à paixão de Jesus. Assim, este havia provado todas as dores dos
eleitos, querendo, igualmente, comunicar-lhes suas próprias dores, na
medida em que estas se apresentavam a cada um: “A ‘paixão’ torna-se um
conotativo eclesiológico, um critério de leitura da história, um sinal de
reconhecimento dos eleitos de Cristo”7.
Expoente importante do grupo, Ubertino de Casale conduziu adiante as queixas contra o relaxamento dos costumes que imperava, de
acordo com os Espirituais, no seio da Ordem e da Igreja. Ao estabelecer a intimidade exclusiva existente entre Cristo e seus fiéis seguidores
espirituais, Ubertino recuperava a tensão entre Igreja Carnal e Igreja
Espiritual, tendo como base as vicissitudes dos Espirituais: assim, tal
intimidade não se referia a toda a Igreja, mas apenas àquela parcela em
“Sicut autem tunc in primitiva ecclesia dabatur spiritus sanctus visibilibus signis
predicantibus apostolis ceterisque discipulis. Sic usque ad finem mundi benedictus
Iesus eundem spiritum membris suis inspirare non definit secundum illam mensuram
qua istos dum vineret sui amoris et doloris portavit merito: et tunc in sui fruitionis
gaudio portat in illo beatitudinis regno” (UBERTINO DE CASALE. Arbor vitae
crucifixae Jesu. ed. C. T. Davis, Torino, 1961, IV, 36, 370b).
4
5
Ibidem, 369b; 37, 386b.
6
Ibidem, 5, 228a; 300b.
POTESTÀ, Gian Luca. Storia ed escatologia in Ubertino da Casale. Milano: Università
Cattolica del Sacro Cuore, 1980, pp. 50-51. V. Arbor vitae..., IV, 21, 331b; IV, 19,
328a; IV, 9, 311a e 308a.
7
90
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O ALTER CHRISTUS: CRISTOCENTRISMO E CONSTRUÇÃO...
seu interior que efetivamente se esforçava por renovar a experiência
evangélica. Dessa forma, somente a Igreja Espiritual, qual seja, a comunidade de fiéis que vivia estritamente segundo o exemplo de Cristo, pertencia realmente a Cristo, ao passo que a Igreja Carnal possuía
idêntica função à da sinagoga contra a Igreja das origens. Ela devia,
pois, percorrer um caminho de purificação, que só terminaria de se
cumprir no tempo escatológico8.
É possível, portanto, discernir a tensão na qual, de acordo com o
frade Ubertino, se encontrava a Igreja daquele momento: inteiramente dependente de Cristo, ela repercorria, na figura dos eleitos, sua vida e
sua morte; no presente momento, o vínculo entre Cristo e os seus restringia-se ao pequeno número de eleitos – os verdadeiros fiéis – o qual, contudo, ao aproximar-se o tempo final, tornar-se-ia maior, sendo que a condição por hora em vigor para os eleitos estender-se-ia a toda Igreja, manifestando plenamente a ligação entre Cristo e sua esposa. Ao completar-se essa
obra, transposta para o futuro escatológico, dever-se-ia completar, portanto, a esperada renovação no seio da Igreja.
É com grande insistência que Ubertino retoma a passagem de Paulo “Não sou eu que vivo; é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20). Ela
atesta, por um lado, que para o Apóstolo só se pode falar dos cristãos
como membros verdadeiros de Cristo com a condição de que estes
efetivamente tomem sua figura como modelo; por outro, que esta
íntima união já é uma realidade efetiva naquilo que concerne aos eleitos. Os verdadeiros fiéis de Cristo são, portanto, reconhecíveis a partir
de sua identificação com ele9. O versículo representa, ainda, uma mani8
Idem, Ibidem, p. 51.
“Sic et in charitatis ardore recepto spiraculo, spiritus Christi omnia expiret Christo diformia,
semper aspiret Christo conformia, intus inspiret et recolligat ipsius recepta flagitia seu
suplitia, et totaliter vivens non sua sed amati Iesu vita, clamet cum Apostolo: Mihi vivere
Christus, etc. (Fl. 1,21) et Vivo ego, iam non ego, vivit vero in me Christus” (Arbor vitae...,
IV, 29, 357a. V. também III, 3, 150a; III, 14, 237b; IV, 5, 290b; V, 14, 491b).
9
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ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES
festação da temática fundamental da espiritualidade cristã, que é aquela da renúncia ao homem carnal para ceder espaço ao homem espiritual. Tal ação, operada pelo Espírito Santo, deveria fazer reviver o Cristo
no interior dos fiéis, e traria como condição primeira a quotidiana
morte destes, a fim de que o homem exterior deixasse espaço para o
homem interior10. Assim, de acordo com a doutrina de perfeição de
Ubertino de Casale, a alma deve morrer para si e para as coisas materiais, a fim de permanecer apenas em função da vontade divina. Dessa
maneira ele teoriza no quarto livro da Arbor vitae, postulando de que
forma seria possível atingir a perfeição evangélica. Trata-se, fundamentalmente, de um percurso que consiste em morrer para o amor de si
mesmo e de todas as criaturas, bem como de transferir-se unicamente
para a vontade divina11. O fiel deveria deixar-se absorver, por intermédio do Espírito Santo, pelo amor e pela vontade divinos, realizando a
progressiva anulação da própria vontade e o desligamento de si mesmo, de tal modo a não desejar nada além do próprio Cristo12.
“Nec dum mens nostra impia quando a Spiritu sancto vult duci ad perfectionis
fastigia [potest] excusare se sub similitudine aliorum dicendo: suficit mihi facere quod
talis facit vel quod faciunt ceteri in communi; quia in situ corporis proprium locum
habet quodlibet membrum et speciale officium, ad quod influit spiritus vivificationis
nature. Sic in Christo Iesu, cuius nos sumus corpus et membra, de membro Spiritus
sancti influit cuilibet membro electo illa operanti et facere que congruunt illi statui
spiritualis mensure, in qua Christus Iesus ipsum in se locavit in merito sue vite passibilis
et locaturus est in gloria divinitatis” (Ibidem, IV, 36, 370b).
10
“et voluntatis plena et contenta de eo quod fecit Deus in se ipso et in omni creato et
maxime de mensura distributa unicuique electo in participatione meriti mortis Christi,
ut nihil velit de se, nec de aliquo creato, nisi illud quod predestinatrix gratia unicuique
disponit in Christo Iesu propter ipsius ineffabilem charitatem” (Ibidem, 37, 389a).
11
“Sicut humanitas Christi non est suppositum nec persona sed radicatur et inferitur
persone filii Dei, ita ut sit sua persona, sic voluntas tua et amor tuus absorbeatur per
influxum Spiritus sancti ab amore Dei et voluntate ipsius, quod ipse Spiritus sanctus
quasi videatur esse tua voluntas at amor, ut nihil propter te velis, sed solum propter
Iesum, immo nihil velis nisi ipsum” (Ibidem, 382b).
12
92
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O ALTER CHRISTUS: CRISTOCENTRISMO E CONSTRUÇÃO...
A idéia de que a assimilação a Deus é atingida pelo fiel mediante a
autoespoliação de todo e qualquer elemento mundano é comum às
doutrinas de perfeição professadas por Ângelo Clareno, Ângela de
Foligno, Iacopone de Todi e Ubertino de Casale, entre outros. A renúncia do fiel a si mesmo encontra-se munida de dois aspectos: exterior e interior (ou carnal e espiritual). A respeito desses níveis, é possível
afirmar que atos de devoção e obras de penitência prestam-se como preventivos no caminho de uma vida espiritual mais elevada. Entretanto, é
preciso ressaltar que a conferência de um valor fundamental ao ódio de si
mesmo como móvel para atingir a perfeição cristã não representa um fato
novo no conjunto da produção literária dos Espirituais. Trata-se, com efeito,
de uma tônica constante nos escritos franciscanos dos séculos XIII e
XIV. Ubertino declara na Arbor vitae que o ódio de si é o elemento
fundamental de todo estado de perfeição13.
A união com Jesus torna-se possível na medida em que o fiel torna-se capaz da renúncia e do ódio evangélico. Trata-se de uma relação
proporcional, pela qual quanto mais se renuncia a si mesmo, tanto
mais se deixa espaço para o ingresso de Jesus na alma. Em sua Arbor
vitae, Ubertino de Casale fala de transformatio14. O termo análogo
utilizado por Clareno para definir a experiência pela qual o fiel passa a
acolher e hospedar Jesus em sua própria alma é inhabitatio. Para este,
bem como para Ubertino, os esforços para igualar-se a Cristo assumiam um duplo significado: por um lado, tratava-se de modelar-se conforme o exemplo dos santos, superando as tentações individuais; por
outro, a perspectiva do ódio de si consistia na fidelidade ao radicalismo da experiência franciscana, perfazendo, dessa forma, um aspecto
coletivo. O itinerário consistia na retomada do percurso de Jesus Cris-
13
“Odium sui est fundamentum omnis status perfecti” (Ibidem, 385b).
14
Ibidem, II, 5, 109a; III, 15, 243b; IV, 15, 323a; IV, 37, 390a.
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ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES
to, o qual continuava a sofrer no próprio corpo o martírio que os
eleitos sofriam por ele15.
Trata-se de uma perspectiva – muitas vezes conhecida como imitatio
Christi16- que não se restringiria às práticas individuais de ascese, meditações e penitências, mas, antes, deveria abranger a Igreja em seu complexo e
em sua totalidade, resultando num movimento de purificação e de aperfeiçoamento generalizados. A força motriz desse processo seriam, naturalmente, seus membros eleitos. Cada um destes possuía uma tarefa específica a realizar no interior do vasto organismo que é a Igreja; sendo assim,
impunha-se-lhes a necessidade de que ninguém permanecesse inoperante.
Ubertino desejava sublinhar, além disso, a ação do Espírito Santo, por
intermédio da qual cada qual atuava por si a fim, contudo, de que todo o
organismo eclesiástico se conformasse a Cristo.
Nesse contexto, a Ordem Franciscana passaria a assumir o papel
de membro individual, dotada de uma atribuição específica a ser levada adiante, de uma missão particular a ser cumprida: “Aqui se consideSobrevém a associação entre Cristo e os chamados eleitos, aos quais se procurava
identificar o grupo dos Espirituais Franciscanos.
15
Uma série de pressupostos, referentes, basicamente, à vida pessoal do cristão, podem
ser caracterizados, em conjunto, como aquilo a que se denomina imitatio Christi. Tratase de um corpo de atitudes, práticas e valores construídos ao longo da vida da Igreja
Católica e do cristianismo, representado por um movimento de interiorização em oposição ao mundo exterior. Em fins da Idade Média, Thomas de Kempis (1380-1471),
um monge holandês, escreveu quatro pequenos tratados em latim, cuja compilação e
posterior tradução – seu mais célebre tradutor é Lamennais – recebeu o nome de
imitatio Christi. A título ilustrativo, o primeiro livro – Conselhos úteis para entrar na
vida interior – aconselha a imitação de Jesus Cristo e o desprezo às vaidades do mundo;
os sentimentos humildes a respeito de si mesmo; a obediência e a renúncia; evitar
entrevistas inúteis; evitar julgamentos temerários; suportar os defeitos alheios; trabalhar
com fervor no aprimoramento da vida. Ressaltam-se ainda as vantagens da adversidade;
a resistência às tentações; as obras de caridade; o exemplo dos santos; o amor à solidão e
ao silêncio; a compunção do coração; a consideração da miséria humana; a meditação a
respeito da morte. (L’Imitation de Jésus-Christ. Trad. de Lamennais. Paris: Seuil, s/d).
16
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ra ‘membro’ não só o simples fiel, mas também uma comunidade,
que pode ser uma ordem religiosa (ou a parte ‘eleita’ dela). Estimulando cada um a não se contentar em cumprir aquilo que fazem os outros
em comum, Ubertino parece aludir, de fato, à condição da Ordem
Franciscana, na qual cada um deve viver em particular a escolha da
pobreza, sem delegá-la a outros. Apenas desse modo a Ordem em seu
complexo poderá permanecer fiel à função específica que deve executar na Igreja”17.
Não bastava, com efeito, reviver a experiência de Cristo em nível
individual – a saber, relegando-a difusamente àqueles religiosos que,
embora dotados de profunda capacidade ascética, atuavam num plano
de vivência que não transbordava para além do indivíduo; na verdade,
subjacente ao papel histórico e religioso da Ordem Franciscana no seio
da Igreja, encontrava-se a necessidade de tomar a experiência e a vivência
do Cristo como modelos de regramento coletivo – uma empreitada
que pertenciam a um tempo a todos e a cada um; mais ainda: pertencia à Ordem em seu complexo.
A exigência de Ubertino não deixava dúvida de que o acento recaía
não na pobreza enquanto virtude exemplar de Francisco, mas sim na
intentio franciscana segundo a qual aquela pobreza deveria caracterizar
a experiência de toda a Ordem. O pensamento de Ubertino, naquilo
que concerne à intenção profunda de Francisco em relação à Ordem e
ao projeto do fundador, não poderia deixar de trazer como conseqüência,
por um lado, a existência da Ordem por oposição radical aos padrões
de organização eclesiástica de seu tempo, bem como às formas de vida
religiosa anteriores; por outro, a crítica à organização atual da própria
Ordem, denunciando o fato de que o projeto inicial encontrava-se
desativado e mistificado. Assim como se havia observado um
17
POTESTÀ, Gian Luca. Op. cit., p. 54.
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010
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ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES
paralelismo entre as trajetórias de Cristo e da Igreja, Ubertino estabeleceu uma continuidade histórica e ideal entre Francisco e os Espirituais.
Queria mostrar, além disso, que a condição evangélica da Ordem encontrava-se decadente desde os tempos em que Francisco vivia18.
O fato de que Francisco assinalava uma nova época na história da
Igreja e, consequentemente, da humanidade, é uma convicção profunda que perpassa a obra de Ubertino de Casale. Ele encara Francisco
como uma figura plena da perfeição cristã em seus vários aspectos e,
pouco a pouco, o caracteriza como uma verdadeira imagem de Cristo,
perfeita, na medida em que isso pode ser concedido a uma criatura
humana. Dessa forma, assim como, no décimo terceiro dia, a figura
de Jesus apresentou-se aos três reis magos, da mesma forma, no décimo terceiro século, constituiu-se uma verdadeira manifestação da sabedoria cristã, sendo grandemente multiplicados os esplendores da
divina sabedoria. Sobretudo pela religião da pobreza, fora renovada a
vida evangélica em Francisco, o patriarca dos pobres19. De acordo com
Ubertino, Francisco era comparável a Cristo não em virtude de uma
série de aspectos exteriores que podem ser perfeitamente documentados – como afirma toda uma tradição do século XIV que culminaria
com Bartolomeu de Pisa –, mas sobretudo em virtude de ter
repercorrido plenamente a vida de Cristo. Sua ressurreição seria dada
pelo cumprimento estrito da Regra na Ordem Franciscana.
Francisco, homem abençoado por Deus de maneira singular, como
atesta o prodígio dos stigmata que o modelaram, bem como o constante esforço por conformar-se perfeitamente a Cristo, teria em comum com Cristo, de acordo com Ubertino e com outros Espirituais,
o destino de ressurgir. Ubertino atribui a Conrado de Offida e outros
frades “dignos de fé” a afirmação de que a Francisco de Assis seria con18
Arbor vitae..., V, 3, 431a.
19
Ibidem, II, 7, 129b-130a.
96
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O ALTER CHRISTUS: CRISTOCENTRISMO E CONSTRUÇÃO...
cedida uma ressurreição. Assim, da mesma forma que, de maneira excepcional, Francisco assemelhou-se a Cristo sobre a terra, deveria ressuscitar, de forma a reforçar a fé e a verdade da vida evangélica que
Cristo queria renovar em Francisco. Ubertino deseja ressaltar, para além
da semelhança, a identidade de Francisco em relação a Cristo. Assim,
Francisco encontrava-se, tanto na alma quanto no corpo, modelado e
iluminado pelos stigmata. Tratava-se de um espelho perfeito que refletia fielmente a imagem de Cristo. Assim, belíssimo e formosíssimo
era Francisco, porque carregava os sinais de uma semelhança muito
bela. Era, de fato, candura de luz eterna e espelho da majestade, imagem da sua bondade. Já que o corpo de Francisco fora modelado de
acordo com a visão do Crucificado, sua carne foi puríssima e a alma,
de uma pureza quase divina20.
Nas relações entre Francisco e Cristo, os Espirituais detectam uma
sequela, que pode passar, ainda, por uma prática de ascese; uma imitação, que tende à união, que os Espirituais percebem como uma unidade; uma similitude e, mais do que isso, uma assimilação. É no terceiro
capítulo da Arbor vitae – o mais explicitamente cristocêntrico – que
Ubertino fornece o maior número de afirmações nesse sentido. Assim, Ubertino afirma que Francisco empenhou-se em conformar-se
ao próprio Jesus, que é evidente que o bem-aventurado Francisco foi
semelhante a Jesus, que Francisco buscava assiduamente a semelhança
com Jesus. Ele afirma, ainda, que era o próprio Cristo quem operava
em Francisco tal assimilação. Assim, Jesus, perfeito, havia feito transfigurar Francisco à imagem de sua própria vida, de forma que vivesse à
sua maneira, pela perfeita obediência ao Evangelho. A esse ponto, Jesus poderia dizer de Francisco de Assis que a ele fora conferida uma
descendência nova, para além daquela de Abel21.
20
Ibidem, V, 4, 434a.
21
Ibidem, 3, 429b.
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010
97
ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES
Ao Francisco seráfico de Boaventura, Ubertino de Casale opunha
o seu Francisco histórico, associado a um projeto eclesial; ao santo
conforme os exemplos antigos de Boaventura, Ubertino de Casale
opunha o fundador de um novo povo. De acordo com a perspectiva
boaventuriana, a história da Ordem era um dado separado da vida
exemplar de Francisco e relacionado, naturalmente, às imposições das
novas estruturas e à necessidade de absorver novas funções. Para
Ubertino, em contrapartida, um conflito já experimentado por Francisco adentrava a história da Ordem e colocava-se entre aqueles que
desejavam manter a identidade original e aqueles que, para adequar-se
aos tempos, atenuavam o radicalismo do projeto. Um biógrafo de
Francisco descreve a dificuldade inerente à Regra no que tange à definição dos detalhes da vida conventual e apostólica; e, por outro lado, o
ideal que ela propõe revela-se tão elevado que permanece dificilmente
praticável. Por essas razões, a Ordem Franciscana surgia como aquela
na qual a vida espiritual encontra sua maior liberdade de expressão,
mas também como aquela em que as exigências do fundador deixavam um intervalo marcante entre o objetivo e a realidade concreta.
Daí, por um lado, a mediocridade em que muitas vezes parece tombar
a comunidade; por outro, os protestos elevados pelos religiosos ferventes em função de uma observância mais rigorosa da Regra22.
Era, com efeito, bastante comum entre os representantes espirituais, bem como entre correntes heréticas populares – caso dos Beguinos
–, atribuir o papel de renovador da Igreja a Francisco de Assis. O ponto central da Arbor vitae é a pessoa de Francisco, o santo fundador da
própria Ordem, e sua intenção de renovação por meio da vida evangélica. Ele era aquele que, no início dos novos tempos, havia aspirado a
permanecer na pobreza, para tornar-se parecido com Cristo em sua
22
GOBRY, Ivan. St. François d’Assise et l’esprit franciscain. Paris: Seuil, 1957, p. 82.
98
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vida23. O fundamento central de uma série de capítulos – o qual representa, por sua vez, uma série de pressupostos vinculados ao grupo Espiritual – é, portanto, a figura de Francisco, ressaltando seu papel renovador e o espírito de pobreza evangélica.
Entre os séculos XIII e XIV, as duas celebrações mais importantes
e difundidas na literatura franciscana – e profundamente conectadas
uma à outra – eram aquela de Francisco de Assis como o anjo do sexto
sigilo anunciado pelo Apocalipse e aquela de renovator vite Christi.
Ambas as celebrações constituíam, entretanto, faces de uma mesma
epifania: aquela da segunda manifestação de Cristo no espírito da perfeição evangélica: “no princípio do sexto estado um homem angélico
seria dado ao mundo, relacionado a Cristo pela concórdia, pois surgiria unicamente como o renovador da vida de Cristo”24.
23
THOMAS, Hans Michael. Op. cit., p. 13.
“(...) patet quod illuminatio data Ioachin dicit in principio sexti status unum angelicum
virum mundo dari, quem Christus per concordiam respicit, quare vite Christi renovator
singulariter apparebit” (Arbor vitae..., V, 3, 421a). Além dessas duas manifestações
principais, Ubertino propõe outras periféricas, a saber, associando Francisco a diversos
personagens bíblicos. Em cada uma dessas figuras ele pretende colocar em evidência
não somente a profunda renovação produzida na história a partir de sua vinda, mas
também o desenvolvimento contraditório de sua experiência, mal compreendida e
refutada pela maior parte de seus seguidores. Assim, a vocação de Francisco é comparada àquela de Mateus. De acordo com Ubertino, o chamado de Mateus representa um
fato novo em confronto com a escolha dos Apóstolos precedentes, escolhidos entre
pescadores. Ao chamar Mateus, o Senhor manifestava de modo particular sua piedade,
uma vez que escolhia, como seu Apóstolo, um pecador público. Ubertino compara o
caso com o chamado de Francisco, o qual era filho de um próspero comerciante. Da
mesma forma que não faltou o escândalo entre os fariseus e escribas em virtude do
chamado de Mateus, assim, também deveu ser motivo de escândalo que Cristo, ao
escolher Francisco, tenha voltado sua preferência aos pecadores e aos simples. Para a
identificação de Francisco ao anjo do sexto sigilo, recorrente sobremaneira no quinto
livro da Arbor vitae, Ubertino apóia-se, em primeiro lugar, na autoridade de Boaventura,
citando, para tanto, uma pregação realizada em Paris no dia 16 de maio de 1266, por
ocasião de um capítulo geral – no qual, pela primeira vez, teve-se notícia de Pedro de
João Olivi. O próprio Boaventura, em sua Legenda S. Francisci, opera a identificação
24
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A identificação de Francisco como renovator vite Christi faz suas
primeiras aparições ainda no século XIII, quando os autores, de maneira geral, rejeitavam referências escatológicas e elencavam os
paralelismos entre Cristo e Francisco de Assis a partir de uma perspectiva puramente devocional. Isso significava, por um lado, ressaltar a
coerência e a continuidade externas presentes entre os dois personagens, e por outro, recusar qualquer referência escatológica que pudesse
associá-los de maneira histórica e necessária. Afirmar que Francisco
fosse o vite Christi renovator não significava somente que Francisco,
por seu apostolado, tivesse restaurado a vida segundo o Evangelho,
mas que ele recomeçara a história do Cristo, no sentido da leitura
joaquimita da história do mundo25. Para os Espirituais, Francisco era
o novo Cristo. Assim como na segunda idade surgira o homem novo
Jesus Cristo, com uma vida nova, da mesma forma, no sexto estado,
surgiu o homem novo Francisco de Assis, com o estado evangélico,
configurado de acordo com Cristo em sua carne. Ubertino de Casale
desejou conectar tal identidade Cristo-Francisco à sua perspectiva
entre Francisco de Assis e o anjo do sexto sigilo, “ascendente do leste e tendo o sinal do
Deus vivo”. Tal asserção acabou por tornar-se uma bandeira entre os Espirituais
Franciscanos, sobretudo para Pedro de João Olivi e Ubertino de Casale. Isto, por sua
vez, acabou por contribuir para colocar as Ordens Mendicantes, em especial a
Franciscana, no papel de novas ordens de frades espirituais. Francisco e Domingos
passaram, com efeito, a ser encarados como os dois profetas de uma nova era, Enoch e
Elias, a desempenhar um papel fundamental naquela idade da Igreja. Além disso,
Ubertino reivindicava análogo parecer da parte de João de Parma, para o qual, conforme Ubertino, não só o sexto sigilo teria tido início com Francisco e sua Ordem, como
também a iniquidade da Igreja deveria consumar-se através da transgressão da experiência e da Regra do Pai Seráfico, levadas a cabo por aqueles franciscanos que se haviam
afastado da obediência estrita e por prelados perversos que agiram no sentido de favorecer a transgressão.
VAN DIJK, Willibrord-Christian. “La répresentation de Saint François d’Assise dans
les écrits des Spirituels”, in: Cahiers de Fanjeaux, 10 – Franciscains d’Oc – Les Spirituels
– ca. 1280-1324. Privat Editeur, 1975, p. 220.
25
100
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cristocêntrica acerca da história da Igreja. Esta resumia-se em situar o
advento de Cristo como evento central e fundamental, não determinado pela queda original, e tampouco subordinado às vicissitudes da trajetória humana. Além disso, o reconhecimento de Francisco como o alter
Christus deve ser lido à luz da teoria do tríplice advento de Cristo. Assim,
com base em seu cristocentrismo, Ubertino propõe três adventos para
Cristo, a saber, o primeiro na carne a fim de redimir o mundo e fundar a
Igreja; o segundo no espírito da vida evangélica, que reforma e conduz à
perfeição a Igreja antes maculada; o terceiro no juízo, conferindo glória aos
eleitos e selando tudo26. Este segundo advento corresponderia, portanto, à
reforma da Igreja por obra de Francisco de Assis, e em seguida dos viri
seraphici, no sexto e no sétimo tempos.
Ubertino pode ser considerado, a partir dessa perspectiva, como
herdeiro de toda uma tradição franciscana que atribui determinado
papel a Francisco no desenrolar dos acontecimentos quando do ocaso
dos tempos. De acordo com tal tradição, seguida pelo frade e que
remonta a frei Leão, o autor da Arbor vitae espera uma ressurreição e
uma ascensão de Francisco, prelúdio de um novo Pentecostes: “pela
evidente ressurreição e nova e sublime ascensão [de Francisco] com
muita alegria esperamos o Pentecostes do Espírito Santo”27.
O caráter absolutamente evangélico da Regra pressupõe, portanto,
indicações muito precisas nos planos das convicções e do comportamento do fiel. Assim, a doutrina cristã coincide com o Evangelho e,
consequentemente, com a Regra evangélica de Francisco de Assis. Mas
a chamada lex Evangelii não fora jamais superada, sendo o modelo da
Arbor vitae..., V, 1, 413b. A leitura do advento enquanto acontecimento independente da queda do homem, pelo pecado original, representa, ainda, um aspecto importante da tradição teológica franciscana, tendo em Boaventura seu expoente principal.
26
“cuius claram ressurrectionem et ascentionem sublimem et novam Spiritus sancti
pentecostem cun multo gaudio expectamus” (Arbor vitae..., 1, 419a).
27
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vita apostolica aquele que em mais alto grau conduz à perfeição no
interior da experiência religiosa comunitária, consistindo em repercorrer
a vida de Cristo e dos Apóstolos. Esta precisão é importante, uma vez
que estabelece a vita apostolica como modelo mais alto de experiência
religiosa comunitária, ao mesmo tempo que se volta contra todo
espiritualismo que presuma superar a vida e a experiência dos primeiros Apóstolos. Dessa forma, a singularidade da experiência dos Apóstolos marcava sua superioridade em relação aos santos do sexto estado
e aos chamados viri seraphici descendentes de Francisco de Assis. Assim, os Apóstolos, pela proximidade que tiveram com Cristo e pela
missão recebida por eles, não possuem termo de comparação. Ubertino
sustenta apenas que, nos primeiros tempos, a massa dos convertidos
não possuía ainda aquela disposição interior que permite compreender
e praticar a perfeição cristã em sua totalidade e altitude. Contudo, não
faltam murmurações e repreensões. Assim, a segunda parte do pensamento em questão refere-se às murmurações dos fariseus antigos contra Cristo, bem como as murmurações dos fariseus recentes – a Comunidade – contra Francisco e contra os seus filhos autênticos – os
Espirituais. Tais críticas conduzem Ubertino a escrever que não há um
pensamento mais triste do que crer que Cristo tenha sido chamado ao
mundo para chamar os pecadores e os simples com o fito de impedirlhes de usar de misericórdia28.
Em associação a isso, Ubertino identificou Francisco também a figuras do Antigo Testamento, tais como Abraão, que teve dois filhos, um dos
quais Ismael, ilegítimo, que lutou com Isaac, legítimo. Da mesma forma,
Francisco teria tido uma dupla descendência: aqueles que, na Igreja e no
interior da Ordem, transgrediam a Regra e perseguiam os filhos legítimos;
e estes últimos, que eram identificados com os Espirituais, que guardavam
28
Arbor vitae..., III, 5, 167b-168a.
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os preceitos originais da Regra, cumprindo, com isso, a lei evangélica.
Observa-se também o paralelismo com Benjamim que, nascendo, fez
morrer sua mãe, Raquel, assim como Francisco, cujo advento no interior
de uma Igreja degradada, faria com que esta desaparecesse, cedendo lugar à
Igreja dos viri spirituales29.
É preciso ressaltar, ainda uma vez, que a perspectiva de Ubertino
de Casale é eminentemente cristocêntrica, encontrando-se ausente qualquer eventual pretensão de antepor Francisco a Cristo. É, com efeito,
o contrário que se processa, uma vez que o elemento que Ubertino
mais admira em Francisco é justamente seu modelo de vida conforme
Cristo e seu Evangelho.
É notável, com efeito, no interior do grupo espiritual, a identificação entre imitatio e sequela Christi (os dois termos são tomados como
sinônimos nas cartas de Ângelo Clareno). Assim, a plena identificação
com Cristo encontra-se relacionada a concrucificar-se com ele. A cruz
é, portanto, tomada como elemento central, fundamento com o qual
coincide perfeitamente a Arbor vitae de Ubertino de Casale. Assim, o
seguir implica na escolha de um caminho que, uma vez corretamente
percorrido, conduz à cruz. De acordo com a Carta 1, trata-se de
condividir o mistério da sua paixão, cruz e morte30, e até mesmo chegar a ser crucificado juntamente com Jesus Cristo31, tornando-se, dessa maneira, filho de Deus32. O nexo evangélico seguimento-cruz é tamIbidem, V, 3, 424a. No terceiro livro, Francisco é também comparado a Moisés e a
Salomão (Arbor vitae..., III, 13, 228b).
29
CLARENO, Angelo. Carta 1, p. 3, rr. 2-4, apud: POTESTÀ, Gian Luca. Angelo
Clareno: dai poveri eremiti ai fraticelli. Roma: Istituto Storico Italiano per il Medioevo,
1990, p. 63.
30
Gl 6,14 (“Quanto a mim, não aconteça gloriar-me senão da cruz de nosso Senhor
Jesus Cristo, por quem o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo”).
31
32
1Jo 1,12 (“Mas a todos que o receberam deu o poder de se tornarem filhos de Deus”).
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bém proposto por intermédio do postulado de Mt 16,24 (“Se alguém
quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me.”),
o qual, juntamente com Mt 19,21 e Lc 14,2633, representa o fundamento da via seguida por Francisco, conforme a Regra não bulada. A
idéia de uma plena identificação com Cristo, chegando-se a ser crucificado com ele, reporta às matrizes paulinas da reflexão de Clareno34.
De acordo esta perepctiva, os termos christiformis/christiformiter –
cruciformis/cruciformiter, substancialmente eqüivalentes, são insistentemente enunciados a fim de indicar o estilo da vida que o fiel é chamado a percorrer seguindo Cristo. A cruz encontra-se, portanto, relacionada com a perfeição evangélica: “onde o exemplar perfeitíssimo é a
vida daquele que teve um cruciforme início, meio e fim”35. Em Ângelo Clareno, assim como em Ubertino de Casale, o cristocentrismo
coincide com a visão da cruz como elemento fundamental. A
centralidade atribuída à cruz confere uma marca indelével, seja à
cristologia de Clareno, seja à sua proposta de vida evangélica. A divindade revela-se, por meio dela, em sua condição de máxima exinatio. A
cruz ultrapassa toda medida humana. Dessa forma, aquilo que é alto
do ponto de vista humano não o é do ponto de visto do Deus crucificado. Ao mesmo tempo em que revela a autêntica glória de Deus, a
cruz transforma aqueles que dela participam em filhos de Deus e her“Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens e dá aos pobres, e terás um tesouro nos
céus. Depois, vem e segue-se”; “Se alguém vem a mim e não odeia seu próprio pai e
mãe, mulher, filhos, irmãos, irmãs e até a própria vida, não pode ser meu discípulo”
(CLARENO, Angelo. Carta 3, p. 13, rr. 28-29; Carta 13, p. 67, rr. 6-7; Carta30, p.
159, rr. 23-24; Carta 44, p. 212-213, rr. 36-7; Carta 47, p. 232, r. 11; Carta 64, p.
300, rr. 10-11, apud: POTESTÀ, Gian Luca. Angelo Clareno..., p. 63).
33
Para Gl. 6,14, Carta 54, p. 271, r. 22, apud POTESTÀ, Gian Luca. Angelo Clareno...,
p. 62.
34
“Unde perfectissimum exemplar est vita eius que habuit cruciforme initium, medium
et finem” (CLARENO, Angelo. Carta 41, p. 199, rr. 27-29, apud: POTESTÀ, Gian
Luca. Angelo Clareno..., p. 62). Assim, é através da experiência da cruz que Francisco
atinge a mais íntima união com Jesus.
35
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deiros do Reino. A vida evangélica, indicada de modo especial aos
companheiros, culmina, portanto, na experiência da cruz, por intermédio da qual o fiel chega a experienciar a glória divina. Ao postular a
cruz como ponto de referência fundamental, Clareno repropõe a mensagem de Francisco conforme a tradição interpretativa específica dos
Espirituais Franciscanos36.
É possível, em contrapartida, que a ressurreição de Francisco de
que nos fala Ubertino, bem como os demais, constitua uma ressurreição mística, não devendo, nesse caso, ser entendida em sentido estrito.
Ela figuraria, portanto, como um dos ideais franciscanos no interior
de uma Ordem degenerada: “Nós temo-lo visto, sem jamais pensar
em exaltar Francisco acima de Jesus, aplicar-se a ele de forma
inconsiderada, num entusiasmo cândido, as palavras da Escritura que
concerniam ao Salvador: após ter falado dos profetas, dos Apóstolos,
dos doutores e dos santos, eis que o Cristo nos fala hoje de seu filho, o
seráfico Francisco (...); é-nos necessário revestir os sentimentos do bemaventurado Francisco, ele que, após ter vivido no mundo ‘in forma
Christi crucifixi’, recebeu então um nome glorioso no céu, ele, cuja
glória nós contemplamos, como de um filho único, recebido de seu
Pai Jesus Cristo (...). Havia ali, verdadeiramente, algo além de inocentes transposições, um excesso de linguagem e de imaginação simbólica, seguindo uma tradição já bem estabelecida na ordem? Todavia, no
interior de uma atmosfera exaltada, tais metáforas poderiam acarretar
uma perigosa carga emocional”37.
O valor histórico-escatológico atribuído a Francisco transformava-o em iniciador de uma nova experiência de vida religiosa. Nesse
36
POTESTÀ, Gian Luca. Angelo Clareno..., p. 64.
LUBAC, Henri de. La posterité spirituelle de Joachim de Fiore: de Joachim à Schelling.
Paris: Lethielleux, 1978, p. 105.
37
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aspecto, observamos o distanciamento em relação a Boaventura, que
considerava Francisco como exemplo individual e modelo atemporal.
A perspectiva histórico-escatológica de Ubertino o conduz, portanto,
a acentuar o projeto eclesial de Francisco, bem como os desvios processados no interior da Ordem. O interesse que Ubertino nutre pelo
movimento franciscano é tal que, ao expor a vida de Francisco, ele
omite muitas notas biográficas, referentes à juventude e à conversão,
bem como à morte e à canonização. Contudo, o valor histórico e
escatológico atribuído ao santo, enquanto iniciador de uma nova experiência religiosa, o conduz a alterar a idéia central de Boaventura.
Trata-se de uma diferença muito acentuada de perspectivas. Para
Boaventura, Francisco deve ser observado como uma figura tranquila,
um modelo atemporal de santo que, com o exemplo de suas virtudes,
clama à ascese e à mortificação individual, a partir de uma dimensão,
contudo, sobrenatural, estranha às vicissitudes da Ordem; Ubertino,
em contrapartida, volta sua atenção para a figura dilacerada de Francisco, com o fito de compreender e valorizar seu projeto eclesial, bem
como de demonstrar de que forma sua intenção original encontrava-se
distante das realizações históricas concretas. Assim, a importância da
Ordem Franciscana no contexto da renovação da Igreja é tal que “Israel será convertida com os espólios do povo, e surgirá, cristiforme, por
meio da vida e da imagem de Jesus na regra evangélica reformada”38.
A Apologia pauperum de Boaventura consiste em uma defesa dos
ideais e práticas mendicantes contra as acusações dos mestres parisienses
ao mesmo tempo que eleva a virtude da pobreza, conferindo-lhe valor
inquestionável. Comparada com as idéias e o projeto atribuído a Francisco, contudo, a Apologia representa uma mudança de bases: ao passo
que o santo fundador da Ordem jamais pensara em conferir uma raison
d’être para a pobreza – na medida em que a tomava como a própria
“Convertetur Israel cum reliquis gentium, et apparebit christiformis vita [et] imago
Iesu in evangelica regula reformata” (Arbor vitae..., V, 1, 414a).
38
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pregação de Cristo e o fundamento da vida evangélica –, Boaventura o
fez. Nesse sentido, a pobreza, de fim em si mesma e sua própria justificação, era convertida em uma entre algumas vias pelas quais a perfeição de Cristo podia manifestar-se. Sendo a caridade o fundamento de
toda bondade, Cristo teria reduzido a ela tudo aquilo que concernia à
lei de Deus39. A perfeição – sempre subordinada à virtude da caridade –
podia manifestar-se de forma absoluta (secundum se) – tal qual existiu em
Cristo –, mas também em vários graus entre os homens. Esta segunda
manifestação poderia ser genérica (in genere) ou consoante as circunstâncias (ex circunstantia)40. Dessa forma, a absoluta bondade (ou seja, a perfeição) e a absoluta maldade (ou seja, a imperfeição) seriam imutáveis, assim
como a relativa perfeição e a relativa imperfeição seriam mutáveis. Portanto, a genérica perfeição poderia, em certos casos, tornar-se imperfeição, na
medida em que motivada pela vanglória; do mesmo modo, a genérica
imperfeição converter-se-ia em perfeição na medida em que pressupusesse sofrimentos gloriosos por Deus41.
Ubertino procura justificar a pobreza à luz da leitura do próprio
Evangelho. Dessa forma, é sabido que, antes de Francisco, os crentes
conheciam o Evangelho, o qual, entretanto, é uma mina profunda e
fértil. Assim, não se pode negar que as gerações anteriores ao santo
tenham absorvido do Evangelho figuras que também não são negadas
“Sciendum est igitur, quod radix, forma, finis, complementum et vinculum perfectionis
caritas est, ad quam magister omnium Christus Legem, Prophetas et per consequens
universa Dei documenta reducit” (BOAVENTURA, S. Apologia pauperum contra
calumniatorem, in: Obras de San Buenaventura. Eds. Fr. Bernardo Aperribay, O.F.M.;
Fr. Miguel Oromi, O.F.M.; Fr. Miguel Oltra, O.F.M. Madrid: Biblioteca de Autores
Cristianos, 1949, p. 380).
39
40
Idem, Ibidem, p. 354.
“Cum igitur tam multiformiter dicatur tam perfectus quam imperfectus actus, clarum
est, quod sicut malum in genere, potest fieri bonum ex circumstantia, ut occidere
hominem quia maleficus est, et quia lex iubet et reipublicae confert, et e converso
bonum in genere potest fieri malum ex circumstantia, utpote dare eleemosynam propter
vanam gloriam” (Idem, Ibidem).
41
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por Francisco, tais como Cristo glorioso e juiz, pantocrator, entre outros
aspectos. Não obstante, o Evangelho lido e praticado por Francisco
colocava em relevo Cristo pobre, humilde e crucificado. Francisco fazia,
portanto, da pobreza, o fundamento de sua própria vida e da própria
Ordem. Também Pedro de João Olivi apóia-se na leitura do Evangelho
a fim de justificar a prática da pobreza. Ela teria sido aconselhada e
praticada por Jesus Cristo e figurava, portanto, nos escritos dos
evangelistas. Assim, de acordo, respectivamente, com o Tractatus de
usu paupere e com a nona questão42.
Assim, se a figura de Francisco sinalizava um alter Christus, isto não
consistia em fato que convinha simplesmente admirar, mas sobretudo
representava um austero exemplo de vida a ser seguido. Assim, de acordo
ainda com Olivi, Francisco teria desejado repetir o Cristo não na glória de
sua grandeza, mas no sofrimento de sua humanidade e foi este sofrimento
que Francisco quis repetir entre os homens e indicar a seus irmãos como
exemplo. Assim, viver secundum formam sancti evangelii não significaria,
para Francisco, somente a adesão à pobreza pregada pelo Evangelho, e sim
compreender a pobreza como uma das maneiras – e até mesmo como a
maneira mais acessível naqueles tempos – de aceitar o sofrimento, a dor e
a humilhação: a maneira pela qual, se podia, naqueles tempos e naquelas
condições de vida, realizar o sofrimento43.
“Constat enim multipliciter tam ex textu quam ex dictis sanctorum quod forma
evangelice paupertatis tradita apostolis Matthei decimo, Nolite possedere aurum, et Luce
decimo, Nolite portare saccum, et Luce nono, Nihil tuleritis in via, et Marci sexto,
Precepit eis ne quid tollerent in via, fuit eis imposita sub precepto, sed in eis fit expressior
et vocalior mentio de paupere usu quam de abdicatione universalis dominii.(...) pauperis
usus instar evangelii Christi in ea singularius explicantus, ut est vilitas indumentorum
et coborum et nuditas calciamentorum et mutatoriorum et defectus equitationum et
interdictio usus pecuniarum (...)” (BURR, David (ed.). De usu paupere – The Quaestiones
and the Tractatus. Firenze/Perth, 1992, p. 117).
42
MANSELLI, Raoul. “L’idéal du Spirituel selon Pierre Jean-Olivi”, in: Cahiers de
Fanjeaux, 10 – Franciscains d’Oc – Les Spirituels – ca. 1280-1324. Privat Editeur,
1975, p. 109.
43
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O ALTER CHRISTUS: CRISTOCENTRISMO E CONSTRUÇÃO...
A difícil descoberta da pobreza, a resistência a ela inclusive por
parte da hierarquia eclesiástica, a inspiração divina para seguir uma nova
vida são bastante evidenciadas no opúsculo Sacrum Commercium44,
um tratado bastante sugestivo, e Ubertino possui o mérito, se não de
havê-lo descoberto, ao menos de revelar seu conteúdo a um certo número de fiéis. Assim, a pobreza, incompreensível aos contemporâneos
– até mesmo aos devotos e fervorosos –, tornava-se a esposa de Francisco e de Cristo, o qual a praticava desde o nascimento na manjedoura, em seguida em sua existência errante, e por fim a observava também no momento da morte, em que surgiu nu sobre a cruz, foi sepultado em túmulo alheio e, finalmente ressuscitou, deixando na tumba
aquilo que não lhe pertencia. Ubertino retoma especialmente o Sacrum
Commercium com o fito de fazer observar que nele é recordado o precoce abandono da pobreza por parte de certos Menores, oferecendo-se
então a ocasião para denunciar aquilo que considera como o relaxamento da Ordem e da Igreja.
Ubertino escreve sobre o opúsculo, afirmando que Francisco, como
explorador acurado, começou uma busca, percorrendo praças das igrejas
e interrogando os eclesiásticos e o povo em geral a fim de apurar o
quanto amavam a pobreza evangélica. Como somente obtivesse respostas
depreciativas do valor da pobreza, resolveu dirigir-se aos superiores, os
quais, ao contrário do povo estulto, conheceriam a forma de vida de
Cristo. Mas eles próprios também consideraram impossível a vida sem
a posse de bens temporais. Francisco, entretanto, maravilhado e ébrio
pela pobreza de espírito, voltou-se para Jesus em sua oração. InvocandoO título completo da famosa opereta é Sacrum commercium sancti Francisci cum
domina Paupertate. Seu autor, bem como a data da composição, permanecem incertos.
Alguns, provavelmente sugestionados por um certo frescor que emanaria do escrito,
querem situá-lo nos anos imediatamente posteriores à morte de Francisco (1226);
outros, influenciados por uma certa apreensão que emana de suas páginas, preferem
assinalar um período posterior, entre 1260 e 1270.
44
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o, pediu-lhe que lhe mostrasse a pobreza, pois encontrava-se cheio de
amor por ela, não encontrando a paz sem ela. Menciona como a pobreza
acompanhara fielmente Cristo durante toda a sua vida, e pede para ser
assinalado com o privilégio de amá-la mais do que qualquer outra
coisa; que fosse próprio dele e dos seus nada possuir sob o céu, bem
como nutrir-se com coisas alheias, sempre respeitando o uso pobre45.
Assim, os confrontos conduzidos por Ubertino pressupõem a preocupação em definir o papel de Francisco em contraste com o encaminhamento dado posteriormente pela Ordem. Nos dizeres de Potestà, “mostrar a função histórico-salvífica de Francisco em relação à sua própria época
e ao mesmo tempo a responsabilidade da Ordem, que não soube compreender-lhe o significado profundo, interpretando redutivamente o seu
ensinamento. Nenhuma dessas celebrações visa, portanto, confinar Francisco no papel de um modelo pessoal inimitável, mas pretende antes mostrar o projeto eclesial que ele possuía, concebido concretamente, e a
incompreensão à qual este se encontrava submetido”46.
De acordo com Ubertino e as correntes espirituais em geral – mas
também de acordo com a essência do movimento e da Ordem
franciscanos –, o voto de pobreza comporta três elementos
fundamentais. Em primeiro lugar, a renúncia à propriedade; em segundo
lugar, a renúncia ao direito de possuir – inclusive qualquer coisa que
eventualmente, por exemplo, através de um testamento, possa ser
recebida no futuro; em terceiro lugar, o uso pobre das coisas oferecidas
e das quais o menor se serve.
Olivi, reivindicando a autoridade dos escritos de alguns santos,
expressa-se de maneira semelhante em seu Tractatus de usu paupere.
Ele procura fundamentar a prática da pobreza como legado deixado
por Cristo, a qual se encontra imbuída da interdição à propriedade e
45
Arbor vitae..., V, 3, 423b-424.
46
POTESTÀ, Gian Luca. Storia..., p. 120.
110
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O ALTER CHRISTUS: CRISTOCENTRISMO E CONSTRUÇÃO...
ao direito de possuir e da obrigatoriedade do uso pobre47. De acordo
com Ubertino, o usus pauper consistia na prática de vida e uso das
coisas enquanto necessidades – usus facti. Não representava um simples
ato, e sim um modelo de vida a ser seguido, um modelo de pobreza e
oposto à riqueza. Mais do que uma mera obrigação moral ex bono et
equo, ele era inerente ao voto de pobreza. Este, por sua vez, era
considerado de maneira equiparável aos votos de obediência e de
castidade. Assim como estes últimos, o voto de pobreza deveria ser
integralmente observado, uma vez que assim como somente àquele
que não fez voto de castidade é permitido ter uma esposa, de igual
modo somente àquele que não prestou juramento à pobreza é
permitido possuir bens48. Do voto de pobreza sem a prática do usus
pauper encontrava-se excluída a perfeição, e esse era o teor da crítica
dirigida aos Conventuais de seu tempo.
Trata-se, também, e em escala semelhante, da crítica dirigida por
Pedro de João Olivi àqueles frades que pretendiam que o voto de
“Ubi et adiunxi tres auctoritates, unam Ieronimi, aliam Chrisostomi, alteram Eusebii,
in quibus expresse dicitur quod in illo verbo, Nolite solliciti esse, etc., prohibuit eis
Christus non cogitare de futuris, hoc est non providere sibi in futurum pro necessitate
nondum iminente, quod utique spectat ad modificationem usus non minus quam ad
abdicatonem dominii. (...) Christus abdicaverit a se et ab apostolis omne temporale
dominum et omnem facultatem seu possibilitatem acquirendi ipsum nisi per summos
escessus pauperis usus eorum, unde et omnes magistri nostri quando volunt probare
quod in pauertate Christi et apostolorum includitur abdicatio proprietatis in speciali et
in communi, semper recurrunt ad auctoritates illas que expressius de paupere usu
loquuntur quam de abdicatione iuris habiti vel possibilis haberi, quod nisi timerem
nimiam proplixitatem luce clarius ostenderem pertractando in speciali omnes auctoritates
que de paupertate Christi vel apostolorum vel utrumque simul in laudem paupertatis
evangelice comuniter a doctoribus vel disputantibus assumuntur, quarum plures recitavi
in quarta parte prime questionis de paupertate, et ubi necesse fuerit paratus sum eas ad
propositum applicare” (BURR, David (ed.). Op. cit., pp. 117-119).
47
LEFF, Gordon. Heresy in the Later Middle Ages: The Relation of Heterodoxy to
Dissent c.1250 – c.1450. Machester: Manchester University Press; New York: Barnes
& Nobles, 1967 (2 vols.), p. 145.
48
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111
ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES
pobreza se sustentasse de forma independente do uso restrito das coisas colocadas à disposição dos Menores. Assim, na Quaestio de usu
paupere, na chamada nona questão, Olivi defende o usus pauper como
elemento inseparável do voto de pobreza49.
E, mais adiante, observamos a definição feita pelo frade do que
seria o usus pauper, ou seja, a forma de vida professada na Regra de
Francisco de Assis e manifesta no voto professado pelos Franciscanos:
“Na verdade, este é prever que nunca recebam ou tenham além daquilo que a necessidade presente exige (...) não possa receber coisas para
uso a não ser exclusivamente para a presente e extrema necessidade”50.
Assim, a obediência à Regra consistia em observar o voto de pobreza, do qual não se podia excluir, por conseguinte, o usus pauper. A
desobediência a esse preceito implicava, necessariamente, em incorreção na observância da Regra. Assim, Olivi, apoiando-se no frade Guilherme de Mara – o qual retirara parte de suas idéias do Quolibet I de
Tomás –, defende o cumprimento pelos frades do voto contido na
Regra, consistindo em pecado mortal o atentado contra ele51.
Com efeito, Ubertino não menciona frequentemente a pobreza, fazendo, antes, alusão a categoria como penuriosa paupertas, penuria usus ou
usus pauper. Não se trata de uma precisão de pouca monta, seja no plano
“Nono queritur an usus pauper includatur in consilio seu voto paupertatis evangelice
ita quod sit de eius substantia et integritate (...) Nichil inducens in evidentia pericula
multarum transgressionum et peccatorum est expediens ad perfectionem nec spectans
aliquo modo ad evangelica consilia et vota” (BURR, David (ed.). Op. cit., p. 3).
49
“Hoc enim est vovere quod nunquam res recipiantur vel habeantur nisi quantum
presens necessitas exigit (...). non posse recipere res ad usum nisi solum pro presenti et
extrema necessitate” (Idem, Ibidem).
50
“Est ergo considerandum quidsit illud ad quod religiosus voto professionis se adstringit.
Et si religiosus profitendo voveret se regulam servaturum, videretur se obligare voto ad
singula quae continentur in regula, et sic, contra quodlibet eorum agendo, peccaret
mortaliter.” (...) Facere contra votum est peccatum mortale; sed religiosi voto professionis
adstringuntur ad regulam; ergo peccant mortaliter transgrediendo ea quae in regula
continentur” (DELORME, P. Ferdinandus M., O.F.M. “Fr. P.J. Olivi Quaestio de
voto regulam aliquam profitentis”, in: Antonianum, XVI, 1941, p. 134).
51
112
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teórico, seja no plano histórico: tal qualificação acabara por provocar um
aceso debate entre os Menores nos séculos precedentes. No entender dos
chamados zelantes – tais como Ubertino e os Espirituais – tornou-se bastante claro que a pobreza, entendida como renúncia jurídica à propriedade
e ao dinheiro, não era suficiente, se se queria evitar a hipocrisia, traduzindo
isso por afirmar-se pobre, mas conduzir uma vida bastante confortável e
opulenta. Tamanha era a multidão que frequentava o convento, tamanha
a generosidade de seus benfeitores, que o convento, embora legalmente
privado de propriedades e de dinheiro, podia fornecer uma existência completamente livre de privações. Daí a convicção dos Espirituais de que a
pobreza, para ser efetiva, para além de impor àquele que a professava a
renúncia legal aos bens terrenos, deveria exigir necessariamente um uso
não somente frugal – esta é uma obrigação para todos os cristãos –, mas
sobretudo pobre dos bens que pertencia a outros, principiando pelas roupas e alimentos. O uso pobre, portanto, torna-se parte integrante do voto
de pobreza. De resto, uma paupertas penuriosa havia sido praticada tanto
por Francisco quanto por Cristo.
Da mesma forma, Pedro de João Olivi procurou coadunar a ausência de propriedade e o usus pauper, de forma a compor o ideal da
altissima paupertas. É o que consta do Tractatus de usu paupere52.
“Videsne quam expresse et quam absolute diffiniunt quod curiositas et superfluitas
directe obviant paupertati? Non dicunt a latere vel oblique sed directe. Non dicunt
quod non congruant sed quod obvient, et tamen constat quod paupertati pro quanto
dicit abdicationem iuris in proprio vel communi directe non obviant, sed solum pro
quanto dicit abdicationem usus superflu et curiosi. Patet igitur quod in paupertate
regule nostre sine scrupolo alicuis dubietatis includi et significari sentiebant usum
pauperem seu moderatum propter quod tanquam pro gravi et enormi offensa tanquam
penam tanquam stricte imposuerunt. (...) In precedentibus etiam et subsequentibus
frequentissime ponit usum necessarium, et numquam concedit quod possit tradi pecunia
pro opulentia in eis fovenda, sed solum pro necessitatibus ipsorum presentibus vel
imminentibus, sicut patet ubi agit de personis nominandis vel subrogandis ad elimosinas
pecunie recipiendas. Ibi enim semer ponit quod pro necessitatibus ingruentibus vel
imminentibus hoc fiat (...) Ecce quod ubique innuit quod etiam illa quod huisusmodi
pecuniariis licent non liceant nisi pro solis necessitatibus, non autem pro opulentiis vel
superfluitatibus. (...) Sed evangelica paupertas in se essentialiter includit usum pauperem
vel moderatum” (BURR, David (ed.). Op. cit., pp. 102-103; p. 113; pp. 147-148).
52
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Esses representam alguns exemplos de como o voto de pobreza,
para além da mera recusa da propriedade e do direito de possuir, presumiria o chamado usus pauper, que consiste no uso moderado – e visando às mais prementes necessidades – das coisas que eram colocadas à
disposição dos frades. Conseqüentemente, o usus pauper deveria integrar o voto de pobreza na condição de elemento inseparável deste,
figurando como pressuposto para o cumprimento da verdadeira pobreza evangélica. Dessa forma, não se poderia negar o usus pauper, ou
tentar excluir sua observância do voto de pobreza. De acordo com
Olivi, no Tractatus de usu paupere, tal atitude “em primeiro lugar,
significa destruir a doutrina, a perfeição e vida evangélica. (...). Em
segundo, é verdadeira apostasia. (...). Em terceiro, é a inclinação da
multidão ao novo e ruinoso lapso e, em conseqüência, ao escândalo
universal do orbe, subversivo tanto aos costumes quanto aos fiéis. (...)
Em quarto, é nutrir e incitar todo relaxamento, torpeza e imperfeição,
e favorecer a vida ociosa, carnal e não devota. Em quinto, é difamação
pública de nosso estado e de todos os nossos. (...) Em sexto, é arma de
excitação e de incitação para nossos detratores e adversários. (...) Em
sétimo, é a preparação do caminho para a seita infernal do anticristo”53.
Ubertino afirma que, em seu tempo, vigorava uma monstruosa
doutrina, a qual estabelecia que o uso pobre não se encontrava incluso
no voto de perfeição da altíssima pobreza, imposta aos apóstolos e
professada na Regra por Francisco. Apoiava-se, ainda, na autoridade de
Hugo de Digne, o qual, em sua obra De finibus paupertatis, concluíra
“Primum est exterminatio evangelice doctrine, perfectione et vite (...). Secundum est
vera apostasia. (...) Tertium est inclinatio multitudinis ad novum at ruinosum lapsum
ac per consequens ad universalis orbis scandalum tam morum quam fidei subversivum.
(...) Quartum est nutrimentum et incitamentum omnis laxationis, tepiditatis et
imperfectionis, et hoc potissime viventibus otiosis, carnalibus et indevotis. Quintum
est publica diffamatio nostri status et omnium nostrum. (...) Sextum est armamentum
animativum et incitativum detractorum et adversariorum nostrorum. (...) Septimo est
preparatio vie ad infernalem sectam antichristi” (IDEM, Ibidem, pp. 147-148).
53
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que o frade Menor, uma vez que não possuía nada sob o céu, assim,
pelo seu voto, deveria observar o caráter da pobreza referente ao uso
pobre e restrito54.
De acordo com Ubertino, Cristo havia transmitido a pobreza como
regra de vida a Maria e aos apóstolos. Pode-se acrescentar, ainda, que, por
intermédio de seu exemplo, não deixara de advertir que aquele que se
dedicava a uma vida de perfeição deveria seguir o critério do uso pobre.
Entre as virtudes que Jesus teria trazido ao mundo, encontravam-se o
amor à altíssima pobreza e a observância à mesma pessoalmente e na pessoa de sua santíssima mãe, bem como entre os discípulos, especialmente
nos Apóstolos55. A afirmação de que a pobreza fora instituída por Cristo
aos Apóstolos é uma tônica não só espiritual mas também franciscana de
uma forma geral. É assim que observamos Olivi, em seu Tractatus de usu
paupere, citar Boaventura a fim de sustentar a tese de que o estado de
pobreza era inerente à vida dos companheiros de Cristo56.
Arbor vitae..., V, 6, 443b-444a. Trata-se, ainda, da temática da nona questão em
Olivi: BURR, David (ed.) Op. cit., p. 14.
54
55
Arbor vitae..., III, 9, 184a.
“‘Sancte autem paupertatis exemplar et forma in vita recessit apostolorum, quam
perfectionis magister Christus eisdem instituit quando ipsos ad predicandum misit,
sicut legitur in Matheo, Nolite inquit possidere aurum, etc., ubi glossa, Propemodum
necessaria vite amputat, ne vel curent de crastino qui docent omnia regi a Deo, nec ipsa
necessaria nec cellarium secum vehant, nil preter vestimentum nec etiam minima.’
Quibus premissis subdit Bonaventura, ‘In hiis igitur verbis domini apostolis et
predicatoribus veritatis extreme ac penuriose paupertati formam servandam imponit
quantum ad carentiam non solum possessionum sed etiam pecuniarum et aliorum
mobilium quibus sustentari vel communiri solet communi vita hominum, ut tanquam
pauperes in summa rerum constituti essent et sine calciamentis incederent, ut sic
paupertatem altissimam actu et habitu quasi quodam perfectionis insigne preferent,
hanc paupertatis normam tanquam speciali prerogativa perfectam et Christus in seipso
servavit et apostolis servandam instituit et hiis qui eorum cupiunt immitari vestigia
consulendo suasit. Deinde ista tria scilicet quod in seipso servavit, et quod apostolis
servandam instituit, et quod aliis consulendo suasit, probat per plures auctoritates
sanctorum’” (BURR, David (ed.). Op. cit., p. 94).
56
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ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES
Ubertino insiste, ainda, na questão do usus pauper, a ponto de
manifestar seu desejo de impor a todos os prelados uma pobreza em
certa medida não diferente daquela dos Menores. Entre outras coisas,
ele lembra que os prelados devem considerar-se como advenae et
peregrini, e respeitar o uso pobre. Recorda que o acúmulo de esmolas
é contrário ao espírito evangélico, ratificando dessa forma a necessidade do usus pauper. Os prelados, por sua vez, defenderiam as próprias
posses alegando que não se trata de bens pessoais, e sim comuns, pertencendo, na verdade, à Igreja. Ubertino reconhece-o, mas isso não
basta para livrá-los do pecado do fausto, dado que até mesmo o culto
a Deus deve ser privado de pompa57.
Ubertino tornara a pobreza inseparável do uso, assim como a
perfeição encontrava-se subordinada ao ideal de vida conforme o
exemplo de Cristo58. Ela requeria hábitos rotos, ausência de residência
fixa, andar a pé, receber esmolas, mas nada guardar para provisão. Tudo
isso fazia dele um radical, ao mesmo tempo entusiasmado pelo seu
ideal e indignado pela sua transgressão. Examinado a fundo, ele possuía
as próprias fontes franciscanas a seu lado, tendo em vista o teor e o
significado da figura de Francisco de Assis.
Uma das peculiaridades de Ubertino em relação aos escritos que
ele utiliza consistia em ressaltar e acentuar a intentio profunda de Francisco, seu projeto formulado para a Ordem. Paralelamente, pressupunha buscar os motivos de sua falência, que para ele parecia, naquele
momento, inegável. Naturalmente, procurava a responsabilidade subjetiva para o desvio em relação ao projeto original do santo fundador,
não chegando a considerar a possibilidade ou não de compatibilidade
57
Arbor vitae..., II, 3, 94a.
Também de acordo com Pedro de João Olivi, o usus pauper identificava-se à perfeição,
a saber: “paupertas penuriosa valet ad exercicium perfecte virtutis” (BURR, David
(ed.). Op. cit., p. 96).
58
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entre a sociedade eclesiástica de sua época e o Francisco presente em
seus escritos. É importante, em contrapartida, sublinhar o valor e o
significado de seu engajamento. Assim, aquilo que é relevante para
Ubertino é relevar os aspectos que, para Francisco, deveriam fazer da
Ordem um novo povo, “que fosse dissimilar em humildade e pobreza
de todos aqueles que o precederam”59.
Dessa forma, ao mesmo tempo, observa-se uma tendência a reivindicar para a Ordem seu caráter diferencial em relação às demais
Ordens, passadas e de seu tempo, e também por oposição ao clero de
uma forma geral. Com efeito, após dedicar algumas colunas à humildade e à pobreza de Francisco60, Ubertino concentra-se sobre estas virtudes evangélicas, as quais, se tivessem sido transmitidas à Ordem em
seu complexo, torná-la-iam uma entidade absolutamente nova no corpo
da Igreja. Assim, a considerar a especificidade da concepção de Francisco, a Ordem, segundo Ubertino, se se houvesse apoderado adequadamente das virtudes da pobreza e da humildade, converter-se-ia numa
entidade absolutamente nova no corpo da Igreja Católica. Em
contrapartida, como não se observasse tal ocorrência naquele momento, era justo supor que, à medida que relaxava em relação à observância
estrita, perdia, progressivamente sua identidade no seio da instituição
eclesiástica, confundindo-se com as demais Ordens e até mesmo com
o clero secular61. À medida que seus componentes se dirigiam para a
via prelationis, inclinavam-se aos estudo e passavam a viver em estabelecimentos urbanos, a Ordem se aproximava à forma de vida e de
comportamento de outras ordens, e perdia suas características individuais originais. A recusa de tais elementos pelo próprio Francisco de“Qui esset dissimilis in humilitate et paupertate ab onibus aliis qui precesserunt”
(Arbor vitae..., V, 3, 427b).
59
60
Ibidem, 423b-425a e 425b ss.
61
Ibidem, 422b-423.
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monstrava uma consciência da função histórica absolutamente nova
que o movimento desempenhava no conjunto da Igreja, pois, ao citar
o Pai Seráfico, Ubertino assim afirma: “[Jesus Cristo] disse a mim que
desejava dar ao mundo, por nosso intermédio, uma perfeição nova e
não experimentada nos tempos anteriores da Igreja”62.
Pedro de João Olivi também concebia a Ordem como imbuída
de uma série de características que a diferenciavam e conferiam-lhe um
papel especial no interior da vida da Igreja. Assim, a Ordem Franciscana
encontrar-se-ia dotada de uma característica própria e excepcional, de
forma que deveria exercer no interior da Igreja uma função diferente
daquela das outras, respondendo às necessidades mais profundas da
instituição eclesiástica63.
Assim, a crítica de Ubertino ao amor aos livros não deve ser confundida com simples antiintelectualismo; ela revelava a preocupação
com o desvirtuamento da Ordem. Francisco teria previsto que da intenção de saber originar-se-ia um novo fundamento para a Ordem,
bastante diverso daquele originário, marcado pela minoritas. Assim,
uma narrativa a respeito do irmão Leão, um dos primeiros companheiros de Francisco, afirma: “E eu [frei Leão] já fui tentado a ter
livros. Mas porque disto resultava conhecer a vontade do Senhor, [melhor era] carregar o livro onde se encontravam a escrita do evangelho
do Senhor (...)”64.
Igualmente, a via prelationis seria conducente à perda da identidade da
Ordem face ao mundo e à Igreja. Além disso, o ingresso no mundo secu“[Iesus Christus] dixit mihi quod unam perfectionem novam per nos volebat dare
mundo prioribus temporibus ecclesie inexpertam” (Ibidem, 7, 499b).
62
63
MANSELLI, Raoul. “L’idéal...”, p. 109.
“Et ego [fra Leo] iam tentatus fui habere libros. Sed ut de hoc cognoscerem domini
voluntatem tuli librum ubi erant evangelia domini scripta (...)” (Arbor vitae..., V, 3,
427b).
64
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lar conduziria a privilégios inerentes ao clero secular, uma vez que a “autoridade pomposa” sobrepor-se-ia à virtude da humildade65.
Da mesma maneira, a vida citadina perfazia elemento não pertinente ao projeto de Francisco. A crítica aos estabelecimentos urbanos
representava, nesse contexto, a crítica ao contato com os poderosos, ao
vão estudo e às conversas impróprias66. A oposição aos estabelecimentos urbanos pode ser observada de duas maneiras, a saber: como inerente à existência da Ordem; como busca da retomada de uma experiência eremítico-contemplativa. Assim, no quinto livro da Arbor,
Ubertino transcreve e comenta os rotuli de fra Leão, na medida em
que estes retomavam a atitude de Cristo para justificar a habitação em
eremitérios. A escolha eremítico-contemplativa figuraria, portanto,
como parte da intentio de Francisco. Ele limita-se, utilizando-se, para
tanto, da memória dos primeiros companheiros, a assinalar o contraste entre o projeto de vida retirada e contemplativa de Francisco e as
condições de vida da Ordem, então estabelecida nas cidades67.
No terceiro livro, por outro lado, a idéia da intentio de Francisco –
à qual subjaz a concepção da novitas franciscana – parece abandonada.
A orientação para a vida eremítico-contemplativa é aqui identificada a
um monaquismo das origens – ao qual subjaz uma concepção de continuidade entre as regras monásticas antigas e a Regra de Francisco de
Assis. Dessa forma, no terceiro capítulo do terceiro livro, intitulado
Iesus desertum incolens, encontra-se um comentário acerca do período
transcorrido no deserto, entre o batismo de Jesus e o seu ingresso na
vida pública. Com efeito, com a escolha do deserto, Jesus teria mos“In humilitate vero profunda et extirpatione totius mundane glorie, sic perfectissime
imitatus est Christum (...). Nam salutem animarum volebat procurare cum humilitatis
virtute: non cum pomposa auctoritate” (Ibidem, 422b).
65
66
Ibidem, III, 9, 207.
67
Ibidem, V, 3, 427ss.
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trado que a vida solitária e austera resulta na maior perfeição68. Ressalta Potestà que a proposta do distanciamento do mundo é formulada
por Ubertino nos termos de uma cultura monástica, qual seja, aquela
de Bernardo69. Com efeito, é possível estabelecer algumas fontes dessa
espiritualidade presentes na Arbor, tais como Bernardo, Nicolau de
Claraval, a Regra de Basílio, bem como textos monásticos provenientes da tradição grega. De fato, é de se supor o interesse suscitado entre
os Espirituais por fontes trazidas há pouco por Ângelo Clareno. O
antigo monaquismo grego correspondia às aspirações profundas dos
Espirituais: ignorando todo tipo de hierarquia, oferecia comunhão
eclesial a eremitas que permaneciam excluídos do contato constante
com os bispos.
A idéia de reviver um patrimônio espiritual e cultural monástico
pressupunha, por um lado, a transformação da relação entre os frades
e o século, pertinente ao tema da intentio de Francisco; por outro lado,
é redutiva da especificidade histórica da Ordem Franciscana relativamente às ordens precedentes, ao enfatizar uma relação antes de continuidade que de ruptura. Trata-se de uma tentativa de conciliar novidade revolucionária e pertença à tradição antiga.
O sentido dado por Francisco para o exire de seculo, de acordo
com o texto hagiográfico, era fruto da experiência do encontro com o
leproso, mas não requeria, originariamente, um abandono do mundo
em sentido material. Ubertino, por seu turno, insistia no
distanciamento de um mundo que figura como elemento
irrevogavelmente prejudicial à experiência religiosa pertinente à Ordem e à perfeição evangélica a que ela deveria conduzir. Com o intento
de retomar a experiência de Francisco, sobretudo naquilo que se referia
68
Ibidem, V, 3, 145a-160a.
69
POTESTÀ, Gian Luca. Storia., p. 213.
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à pobreza e à recusa do poder, Ubertino propunha o retorno às fontes
pré-franciscanas de espiritualidade. Assim, “a fim de lutar contra uma
ordem mundanizada, ele passa a recusar o mundo enquanto tal”70.
Tomando como base todo o conjunto de alusões à pessoa do fundador e aos rumos da Ordem que constam da Arbor vitae, podemos
afirmar que é certa, para Ubertino, a presença de uma intentio
franciscana, para além da idéia do seguidor e imitador da vida de Cristo. Com base nesse “motivo”, Ubertino posicionou-se em defesa daquilo que o movimento e seus ecos populares nomearam viri spirituales.
Estes são identificados aos filhos legítimos de Francisco, ao passo que
os demais são considerados como filhos ilegítimos do Pai Seráfico71.
Os Espirituais deveriam, segundo Ubertino, esperar um novo advento de Francisco, de forma que ele cumprisse idêntica trajetória à de
Cristo. Assim, a experiência de Francisco encontrava-se historicamente liquidada, mas se ele é verdadeiramente renovator vite Christi não é
de todo impróprio aspirar a uma futura retomada. Para tanto, apoiava-se na tradição, sustentando ter como base Conrado de Offida, para
afirmar uma futura ressurreição de Francisco. A idéia não era nova:
encontrava-se em voga nos meios espirituais e faz uma aparição na
Lectura de Olivi, muito embora de maneira assaz discreta e cautelosa.
Ubertino, em contrapartida, emprega-a com destaque no interior de
sua teorização, nomeando inclusive os frades que a sustentavam. Os
frades rebeldes deveriam, pois, aceitar como temporárias as dificuldades por que passavam, na certeza de seu ulterior desígnio. Assim, sofrimento presente e júbilo futuro deveriam ser considerados correlatos,
70
Idem, Ibidem, p. 217.
Nesse ponto, Ubertino chega a referir-se a Ismael, nascido da escrava de Abrãao. Este
Ismael sectário encontrar-se-ia, portanto, golpeando os filhos legítimos da Regra por
meio de perseguições, repreensões, ordens irracionais e sentenças crueis (Cf. Arbor
vitae..., V, 3, 424a).
71
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reconhecendo-se que constituíam partes da obra realizada pelo Espírito de Deus. Assim como Deus permitira as perseguições levadas a cabo
contra seu filho, até que se culminasse na crucifixão, também permitia, nos últimos tempos, que os prelados vivessem na falsidade e fizessem o mal, perseguindo e humilhando os eleitos72. Aqui, opera-se a
transferência perfeita da herança espiritual de Francisco para os Espirituais. Trata-se do momento da obra no qual esses são associados ao
próprio Jesus, em função da similitudo que guardam com ele por causa de seu sofrimento (paixão). Assim, o cristocentrismo, associado à
centralidade histórica de Francisco, coaduna-se, por fim, na Arbor vitae,
a uma concepção fundamentalmente espiritual: a noção de que o “exército espiritual”, formado a partir da existência da Ordem Franciscana,
encontrava-se imbuído de uma função essencial para o cumprimento
do ideal salvífico: lutar contra as hostes do Anticristo e triunfar sobre a
Igreja carnal. Observa-se, dessa forma, uma relação de continuidade,
histórica e ideal, entre Francisco e os Espirituais73. É possível, também, encontrar em Pedro de João Olivi uma correlação bastante clara
entre o sofrimento presente e o júbilo futuro. Tal correlação encontrase presente na Lectura, bem como em carta endereçada aos filhos de
Carlos d’Anjou. Tal missiva constitui, de acordo com Raoul Manselli,
uma chave que permite compreender o sentido profundo da Lectura.
Da mesma forma, a Lectura, por sua vez, permitiria compreender a
carta em toda sua extensão e profundidade74. De suas linhas, emerge
um ideal, que é justamente aquele do franciscano, tal qual Olivi deseja
ser e tal qual Olivi deseja fazer conhecer, com simplicidade, porém de
maneira muito clara, aos príncipes aos quais a carta é destinada.
72
Arbor vitae..., III, 10, 208; V, 37, 394.
“Et ex his aperte claret quod ex tunc mala cepit pullulare radix que nunc in pessimum
fructum excrevit” (Ibidem, V, 3, 430a).
73
74
MANSELLI, Raoul. “L’idéal...”, p. 102.
122
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Em tal missiva, portanto, figura o princípio biológico de origem
aristotélica, bem como a sentença evangélica da vida como obra de
trabalho e de dor. Aqui, ambas encontram-se conjugadas a fim de
demonstrar que a lei universal da existência não consiste num
desenvolvimento triunfal e num futuro feliz e bem-aventurado, mas
antes num trabalho intenso que submete toda a vida à dor, e cuja
justificação última é a redenção, a qual não se constitui da vinda triunfal
de Cristo entre os homens, mas antes da passagem dolorosa do filho
de Deus pela terra e sua morte na cruz tendo em vista a salvação dos
homens: “(...) O filho único de Deus, igual a ele em todas as coisas,
humilhou-se, tomando a forma de escravo e sofrendo a morte da Cruz,
pelos ímpios, para os ímpios. Esta lei, nós a constatamos também nas
etapas de nossa existência”75.
Nada, portanto, realiza-se, a não ser através da dor, do sofrimento
e da morte. Trata-se do princípio enunciado por São João, segundo o
qual “se o grão de trigo que cai na terra não morrer, permanecerá só;
mas se morrer, produzirá muito fruto”76.
A condição humana, em seu estado natural de sofrimento, coincide, portanto, com aquilo que, no plano sobrenatural da redenção, é
necessário ao homem para salvar-se. Olivi procura, por intermédio de
uma série de exemplos, demonstrar que a condição humana, longe de
ser uma reflexão filosófica ou teológica abstrata, conforma-se perfeitamente com a vida real: “É, ainda, devido a essa lei maravilhosa, que a
Igreja do Cristo foi concebida no seio da sinagoga (...), o povo de
Israel saiu da fornalha de ferro e da dura servidão do Egito e, pela mão
de Deus, partiu em dois o Mar Vermelho e atravessou-o com os pés
OLIVI, Pedro de João. “Epitre aux fils de Charles II de Naples, en l’an 1295”, in:
Cahiers de Fanjeaux, 10 – Franciscains d’Oc – Les Spirituels – ca. 1280-1324. Privat
Editeur, 1975, p. 128.
75
76
Jo 12,24.
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010
123
ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES
secos. (...) O exército inteiro de eleitos, escapando ao exílio deste mundo
e ao poder tirânico do diabo pela via da morte corporal, como através
do Mar Vermelho, reúne-se e sobe aos reinos celestes. Isso demonstra
também a razão da palavra apostólica: que é necessário entrar no reino
de Deus por meio de numerosas atribulações”77.
Olivi é notável pela sua concepção dinâmica do processo histórico
como uma vitalidade bipolar que se realiza entre os homens segundo a
lei universal de um desenvolvimento trabalhado e atormentado, e, no
plano espiritual da providência, segundo o processo dramático da salvação dos eleitos, na qual o ideal cristão se realiza ao preço de uma
penosa e dolorosa luta contra a presença imperiosa de forças e poderes
anticristãos.
Observa-se, ainda, uma condivisão de Ubertino com a tradição
presente no Breviloquium de Boaventura: o pecado teria sido permitido por Deus, advindo em função da livre escolha da humanidade. A
questão espiritual se traduzia, dessa forma, como a vontade de Deus
que, desejando reconhecer seus eleitos, colocava-os à prova por meio
de adversidades78.
Assim, as perseguições levadas a cabo contra os viri spirituales, bem
como o sofrimento imputado a eles como conseqüência de tais perseguições, são sintomáticos da presença da vontade de Deus como força
que atua de forma irreprimível na história da humanidade. Eles também evidenciam uma relação ideal de assimilação e continuidade entre
Cristo e Francisco e entre Francisco e os Espirituais. Ao homem de fé,
77
OLIVI, Pedro de João. “Epitre...”, p. 129.
“Item magna misericordia Dei in electos suos hic refulget, qui de malis aliorum eos
glorioses efficiet, et in eorum persecutionibus et cecitatibus mirandas electis fabricavit
coronas et in ruinis huius status utilissimas eis providit cautelas” (Arbor vite..., V, 7,
451b-452a).
78
124
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010
O ALTER CHRISTUS: CRISTOCENTRISMO E CONSTRUÇÃO...
portanto, não deveria haver razão para lamentar-se ou rebelar-se contra
Deus. Assim, as duas chamadas bestas – os papas Bonifácio VIII e
Bento XI, emblemáticos dos últimos tempos, e seus protagonistas
necessários –, teriam sido, na verdade, permitidas por Deus a fim de
punir as culpas da Ordem. Dessa forma, a história, embora algumas
vezes nebulosa e cruel, permanece, sempre, nas mãos de Deus79.
REFERÊNCIAS
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Firenze/Perth, 1992.
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und Kirchengeschichte des Mittelalters, 2 (1886) 353-416, 3 (1887)
1-195; Die Spiritualen, ihr Verhältniss zum Franziskaner Orden und
zu den Fraticellen, ivi 3 (1887) 553-623, 4 (1888) 1-190).
OLIVI, Pedro de João. “Epitre aux fils de Charles II de Naples, en l’an
1295”, in: Cahiers de Fanjeaux, 10 – Franciscains d’Oc – Les Spirituels
– ca. 1280-1324. Privat Editeur, 1975.
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Torino, 1961.
DAMIATA, Marino. Aspettando l’Apocalisse in fervore e furore com Ubertino da Casale.
Roma: Marinetti, 2000, p. 270.
79
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010
125
ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES
2 Obras de referência
ANÔNIMO. L’Imitation de Jésus-Christ. Trad. de Lamennais. Paris: Seuil,
s/d.
DAMIATA, Marino. Aspettando l’Apocalisse in fervore e furore com Ubertino
da Casale. Roma: Marinetti, 2000.
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LEFF, Gordon. Heresy in the Later Middle Ages: The Relation of Heterodoxy
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LUBAC, Henri de. La posterité spirituelle de Joachim de Fiore: de Joachim
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europäische Bildentfaltung: die Gefährtenbewegung des hl. Franziskus,
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VAN DIJK, Willibrord-Christian. “La répresentation de Saint François
d’Assise dans les écrits des Spirituels”, in: Cahiers de Fanjeaux, 10 –
Franciscains d’Oc – Les Spirituels – ca. 1280-1324. Privat Editeur,
1975.
126
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 87-126, jul./dez. 2010
LOS ESPIRITUALES Y LA POLÍTICA IMPERIAL
LOS ESPIRITUALES Y LA POLÍTICA
IMPERIAL
Celina A. Lértora Mendoza
Conicet, Buenos Aires
Introducción
La historia de los «espirituales» franciscanos en las densas primeras
décadas del siglo XIV ha sido motivo de numerosos trabajos que
analizan los diversos aspectos y modos en que la «pobreza evangélica»,
propiciada por la Orden Franciscana y llevada a su expresión más rígida
por los «espirituales», produjo una verdadera crisis tanto teórica como
práctica, que abarcó no sólo a los miembros de la Orden, sino a teólogos,
filósofos, eclesiásticos y agentes políticos.
En concreto, la cuestión del «simple uso» ha sido interpretada -entonces
y después- de diversos modos, y las consecuencias de las posiciones
encontradas también han sido evaluadas con criterios dispares. No es mi
propósito entrar de nuevo en esta historia que ya ha sido contada varias
veces y por voces más autorizadas1. Me propongo, puntualmente, responder
-en lo posible- a una pregunta que, en estos o similares términos, recorre
los ánimos de investigadores y lectores de esta historia: cuál fue exactamente
el punto nodal, en que los teóricos del emperador veían el rédito político
Una reciente síntesis del tema en José Antônio de C.R. de Souza, As relações de poder
na Idade Média Tardia. Marsilio de Pádua, Álvario Pais O.Min., e Guilherme de Ockham
O. Min., Porto Alegre, U. Porto-Est. Edições 2010, Cap. 1, “O contexto histórico”, p.
11 ss. Sintetiza los estudios definitivos de G. Mollet, Les papes d’Avignon, Paris, Letouzey
& Ané, 12964; B. Guillemain, La court pontificale d’Avignon (1309-1376). Étude
dùne société, Paris, 1962, D. Paladilhe, Les papes en Avignon, Paris, 1975.
1
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 127-145, jul./dez. 2010
127
CELINA A. LÉRTORA MENDOZA
de apoyar a los espirituales y el que -correlativamente- era visto como un
serio peligro por la curia pontificia.
La pregunta no es ociosa. En un mundo en rápido cambio, que
estaba inaugurando una nueva tradición en el hacer y el pensar lo
político, las razones pragmáticas y hasta los intentos de reflexión sobre
ese nuevo mundo emergente configuraban un entramado en que los
motivos para aceptar o rechazar la opción franciscana eran muy variados
y hasta podían ser contradictorios, según la mira de los interesados.
Los motivos que podía tener el emperador Luis de Baviera para acoger
a los espirituales, así como a los «averroístas políticos» o simplemente
a los disidentes con las teorías teocráticas y la política papal eran
comprensibles en la medida en que se aplicara el adagio «el enemigo de
mi enemigo es mi amigo». Pero esto era algo coyuntural2 y difícilmente
hubiese generado una situación tan compleja, tensa y duradera, si de
ambas partes no hubiese existido el convencimiento de que en dicha
polémica se jugaba algo más que eventuales discordias o alianzas más o
menos personales.
Por otra parte, el perfil del grupo «enemigo» del papado y también
sus razones eran notablemente heterogéneos; resulta difícil pensar que
La propia postura del emperador Luis de Baviera en contra del Papa puede leerse en
forma coyuntural: cuando tanto él como Federico de Habsburgo acudieron a Juan XII,
recientemente electo (1316) para que resolviera su disputa por la elección imperial, el
Papa promulgó un decreto (Si Fratrum, de 1317) por el cual declaraba vacante el
imperio y revocaba a sí la administración imperial. Naturalmente esto era inaceptable
para ambos contendientes, en cuanto los privaba del poder; pero podría preguntase si
cualquiera de ellos hubiese aceptado el principio de la supremacía papal –y eventualmente, aunque fuese por mínimo tiempo, la administración papal del imperio- si el
Papa le hubiera dado finalmente la razón. La historia nos cuenta que finalmente Luis
IV triunfó de su rival, que reconquistó el norte de Italia y que se negó a obedecer al
Papa, el cual lo excomulgó. La reacción política del emperador, discutiendo legalmente
al papado sus pretensiones y rechazándolas, inaugura sin duda una nueva época de la
teoría política secularista. Pero no podemos dejar de pensar que fue puntualmente
motivada por la escalada poco prudente de Juan XXII.
2
128
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 127-145, jul./dez. 2010
LOS ESPIRITUALES Y LA POLÍTICA IMPERIAL
ese conglomerado podía por sí guiar una política imperial sostenible y
coherente.
En este trabajo intento argumentar a favor de dos hipótesis: 1º.
Que la cuestión esencial que separaba ambos bandos era la cuestión del
poder político. 2º. Que si las tesis de los espirituales sobre la pobreza
evangélica, el sine proprio y el simple uso podían interesar a ambos
grupos es porque veían una conexión -que no es explícita y en la mayoría
de los casos creo que incluso ignorada por los frailes- entre su opción y
la lectura acerca de la legitimidad del poder político que ambos grupos
antagónicos pretendían para sí. Considero que es la hipótesis que mejor
explica hechos que de otro modo parecerían extraños e incluso
incongruentes.
Para avanzar en la línea argumentativa, procederé por el principio
de descarte, respondiendo
1. a la pregunta por cuáles podían ser los puntos de coincidencia
con el emperador y sus asesores políticos
2. a la pregunta por cuáles podían ser los puntos de divergencia y
peligro con el papa y sus asesores político-eclesiásticos.
Se busca hallar al menos un punto que pueda ser ingresado
afirmativamente en ambos campos.
La discusión sobre las afirmaciones espirituales
Para que la respuesta a estas preguntas no sea un ejercicio «de dibujo»
es importante partir de la propuesta espiritual en su forma más clara y
concisa. Al respecto, hay acuerdo entre los estudiosos3 que la propuesta
De la abundante bibliografía al respecto, señalo especialmente D.Lambert, Francsican
Poverty, Saint Bonaventure, The Franciscan Institute, S. Bonaventury University,
1998 y Marino Damiata ofm, Guglielmo di Ockham Povertà e Potere, Firenze, Studi
Francescani, 1978.
3
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 127-145, jul./dez. 2010
129
CELINA A. LÉRTORA MENDOZA
de los espirituales se fue conformando con sucesivas delimitaciones a
partir de la inicial admonición del Fundador.
Tenemos entonces la siguiente secuencia
1. El modelo del hermano menor es Jesús (y los apóstoles) Francisco
2. Los frailes deben imitar en todo a Jesús y especialmente en
aquello que más lo caracterice - la perfección evangélica - Francisco
3. Lo que más lo ha caracterizado es la pobreza absoluta - Francisco
y «la dama pobreza»
Hasta aquí podría decirse que los frailes menores comparten -al
menos en general- las tesis de todas las órdenes mendicantes que se
fundaron en el siglo XIII y cuya defensa, a mediados de ese siglo, había
sido encarada por figuras ceñeras de las dos más importantes:
Buenaventura por los frailes menores Tomas de Aquino por los frailes
predicadores. Podría decirse que la defensa de la legitimidad de la opción
mendicante fue radicalmente exitosa (en ese momento) y que culminó
con la condena y llamado a silencio de los opositores. Las órdenes
mendicantes entraron desde entonces por la puerta principal en la vida
eclesial y rápidamente ocuparon lugares estratégicos como las
universidades, los obispados y hasta el papado. La definición de qué es
ser pobre quedó consignada, justamente, en la propia fórmula de San
Francisco: sine proprio. Esto, desde luego, conduciría irremediablemente
a una repetición de la historia: también los monjes eran «pobres» en el
sentido de que no tenían nada propio. Quien detentaba la propiedad
era la Orden, la institución. Pero esto no pasaba de ser a los ojos de
muchos (entre ellos, por ejemplo Pedro Valdo) sino un subterfugio
que permitía a los monjes vivir ricamente aun cuando no fuesen
«propietarios» de los bienes de que disfrutaban. La cuestión, sobre todo
para Francisco, es que debía vivirse realmente la pobreza y que ella es
un estado real, existencial, no jurídico. Para los primeros franciscanos,
130
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 127-145, jul./dez. 2010
LOS ESPIRITUALES Y LA POLÍTICA IMPERIAL
el hecho de que fuera la Orden y no los individuos, la propietaria de
los bienes, los colocaba en el mismo peligro al que ya habían sucumbido
varias veces los monjes. A partir de allí, y en la medida en que las
órdenes mendicantes querían diferenciarse de las antiguas órdenes, había
que pensar otros recaudos
4. La vida realmente pobre es esencial a la perfección evangélica
Aquí comienza la primera escisión teórica entre las órdenes
mendicantes, en la segunda mitad del siglo XIII. Mientras que los
franciscanos, orientándose hacia lo que luego sería la posición de los
espirituales, consideraban que la pobreza es de la esencia de la vida
evangélica, Tomás de Aquino sostenía que es un medio y no un fin en
sí misma. Sin negar su importancia y su necesidad, en términos
generales, se la debilita claramente en términos concretos, porque un
medio puede ser eventualmente omitido, reemplazado por otro, total
o parcialmente.
5. La pobreza absoluta se exige no sólo a los individuos sino a la
institución misma
6. La institución, por lo tanto, no puede tener propiedades a título
propio porque entonces no sería ella misma pobre.
Este fue, en la segunda mitad del siglo XIII, el punto de inflexión
más importante de la controversia. Luego de una serie de vicisitudes
que no es necesario exponer aquí, los Frailes Menores consiguieron y
aceptaron (aunque no todos ni todos los que aceptaron lo hicieran de
buena gana) una solución de compromiso: los bienes que ellos
necesitaran usar para vivir y para realizar sus objetivos como orden
religiosa no pertenecerían a ella sino a la iglesia.
Esta solución no conformó ni a tirios ni a troyanos y creo que es
el antecedente inmediato de la conexión con el tema del poder político.
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 127-145, jul./dez. 2010
131
CELINA A. LÉRTORA MENDOZA
El argumento contra la solución es evidente: si la Iglesia tiene bienes a
título propio, entonces no es pobre, y si no es pobre, no imita a Cristo y
no puede alcanzar ella misma la perfección evangélica. Una iglesia así es lo
contrario de la iglesia que fundó Cristo. La cuestión es entonces cómo
puede ser «pobre» la iglesia. No puede serlo como los individuos
(transfiriendo la propiedad a la institución) ni como la institución (caso de
la Orden de los Hermanos Menores) transfiriéndola a la Iglesia, porque
no hay otra institución cristiana por encima de ella.
Ahora bien, si no hay una institución por encima de la Iglesia en el
orden religioso, sí la hay en el orden secular: precisamente el imperio.
En definitiva, la idea de una iglesia pobre es la idea de una iglesia cuyos
bienes no sean de propiedad sino de uso y que el propietario sea el
poder secular. Este modelo no parece, en nuestra época, algo tan
extravagante, pero lo era entonces. Y lo era por dos motivos: 1. Porque
la iglesia era de hecho un poder temporal reconocido y todo poder
temporal, todo príncipe (ya lo decía Tomás de Aquino en De regno,
dos siglos antes de Maquiavelo) debe tener bienes, propiedades y
riquezas y cuantas más tenga, mejor. 2. Porque el poder temporal (y el
dominio anejo) es lo que garantiza la libertad.
Entonces, considero que
1. El emperador no se interesaba por la cuestión de la imitatio
Christi ni de la perfección evangélica como un objetivo de interés político
que le llevara a favorecer a los espirituales por sostener esto. El Papa se
interesaba por misma cuestión en sentido distinto (no necesariamente
inverso): no se oponía al dictum pero quería la exclusividad magistral
para definirla.
2. El emperador no tenía interés decisivo (podía ser un interés
concreto y circunstancial) en los bienes de las órdenes mendicantes. El
Papa podía tener algún interés en los bienes de los franciscanos, pero
no mayor que el suscitado por los bienes de otras comunidades, pues
en definitiva no podía disponer a su antojo de ninguno de ellos.
132
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LOS ESPIRITUALES Y LA POLÍTICA IMPERIAL
3. El emperador tal vez tenía interés en los bienes de la Iglesia, pero
no en general sino tal vez muy concretamente:
a) sin duda le interesarían los territorios de los estados pontificios,
pero es difícil que pensara seriamente en la posibilidad de revertir
la Donatio Constantini -que se tenía por absolutamente válidamediante un acto de fuerza; sólo podría lograrse una reversión por
un cambio interno de la política eclesiástica:
b) le interesarían los bienes muebles e inmuebles de la iglesia, sitos
en sus propios territorios y de los cuales pudiera servirse en caso
oportuno; tal vez fuera una motivación para ayudar a quienes
propiciaban el abandono de estas propiedades, pero no parece que
fuera esto de un interés político decisivo
c) le interesaría, sí, seguramente, consolidar un derecho secular de
gravar bienes eclesiásticos, de confiscarlos, y en definitiva, de ejercer
sobre ellos el poder jurisdiccional absoluto y no el restringido en
uso. Esto me parece un asunto de mayor interés político y que
conecta con la cuestión del poder político.
Frente a estos intereses, el Papa no debía sentirse especialmente
alarmado porque a) era muy improbable un intento exitoso de recuperar
los territorios pontificios para el Imperio; b) los bienes eclesiásticos
sitos fuera del territorio pontificio eran administrados prima facie por
las autoridades eclesiásticas territoriales, de modo que su interés por
sus rentas era también indirecto y mediado por las negociaciones que
debía hacer la curia pontificia con las jerarquías locales; c) mayor interés
tenía la prohibición confiscatoria por parte de los poderes seculares,
que en definitiva apunta al tema del poder político y la legitimidad de
tales tipos de atribuciones.
4. El emperador tenía interés directo en aumentar su poder y
consiguientemente en limitar poderes concurrentes, especialmente el
del Papa. Por lo tanto, una ayuda a los espirituales debía tener la
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 127-145, jul./dez. 2010
133
CELINA A. LÉRTORA MENDOZA
intención de servirse de una doctrina de ellos que favoreciera sus
propósitos. De éstas, parecen conexas con este interés: a) la doctrina de
la pobreza evangélica como obligación de toda la Iglesia y b) la
limitación del poder pleno del papa, la plenitudo potestatis (en general,
de la jerarquía eclesiástica). Éste es, a su vez, el punto en que el Papa,
por motivos exactamente inversos, es decir, por su propio interés, se
muestra irreductible. Trataré por consiguiente de mostrar la relación
de estas dos doctrinas de los espirituales con el proyecto hegemónico
de la política –teórica y práctica- imperial.
1 La doctrina de la pobreza evangélica
La afirmación fuerte de los espirituales es que la pobreza evangélica
es una exigencia radical, a nivel de toda la iglesia, emanada de Cristo
mismo. Aplicando esta doctrina en todas sus consecuencias, la iglesia
no puede ni debe tener bienes propios, a título de dominio. Esta
exigencia, como es claro, incluye no solamente los bienes muebles e
inmuebles ubicados en los territorios de los príncipes seculares sino
que, entendida en toda su radicalidad, incluiría también los dominios
del Estado Pontificio. Es cierto que los espirituales no llegaron a esta
proposición extrema, y que además la Donatio Constantini (cuya
autenticidad no se ponía en duda) se entendía como una garantía –
querida por el mismo donante- de la libertad e independencia de la
iglesia. Como se verá luego, hay una relación conceptual entre
dominium y libertas, que puede ser leída de varias maneras, pero que
no puede soslayarse.
Ya he dicho que la cuestión general de la pobreza había sido resuelta
favorablemente durante el siglo XIII, pero ahora tomará otro cariz. En
efecto, los franciscanos habían sostenido que al pregonar la pobreza lo
hacían a imitación de Cristo y los Apóstoles, que también habían sido
pobres. Esta afirmación no suscitó, durante aquella primera época,
134
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LOS ESPIRITUALES Y LA POLÍTICA IMPERIAL
mayores recelos a la jerarquía eclesiástica, como que fue aceptada y/o
ratificada por una serie de Papas: Honorio III, Gregorio IX, Alejandro
IV, Inocencio IV, Inocencio V, Nicolás III y Nicolás IV4. Por otra
parte, la simple lectura de los Evangelios, de los Hechos y de las Cartas
Paulinas no deja lugar a dudas que la primera comunidad y su Fundador
fueron pobres, al menos en el sentido literal y común de la palabra.
Pero con Juan XXII se plantea una pregunta más específica, sobre la
“pobreza absoluta” y su exacto significado. Es posible que esta cuestión
fuese motivada por las disensiones provocadas por el decreto Exivi de
paradiso, promulgado por el Papa Clemente V al término del concilio
de Vienne (1312)5, que procura por una parte corregir los abusos de la
Comunidad y por otra mitigar el rigorismo de los Espirituales, y lo
hace fundándose en la bula Exiit qui seminat (1279)6, de Nicolás III,
reiterando por tanto que los frailes habían renunciado a la propiedad
sobre los bienes materiales, tam in speciali quam in commune,
conservando sólo el usus simplex facti, y que la iglesia continuaba siendo
la propietaria de esos bienes.
Las disensiones que este decreto provocó entre la Comunidad y
los Espirituales, determinaron al General Miguel de Cesena a solicitar
la intervención de Juan XXII. Tal vez fue un paso equivocado, pues dio
ocasión al Papa para llevar adelante una radical modificación de la
tradición. En primer lugar promulgó la bula Quorundam Exigit
(octubre de 1317)7 en la cual se afirma que la virtud de obediencia es
superior a la de pobreza; poco después la bula Sancta Romana (diciembre
El Manifiesto de Sachsenhausen de Luis IV contra el Papa, al acusarlo de “sostener
herejías” y estar en contra de la doctrina tradicional de la iglesia, recordaba precisamente
estos nombres.
4
5
Bullarium Francsicanum, Romae , Ed. Eubel, V: 80-86.
6
Bullarium III: 404-416.
7
Bullarium V: 128-139.
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135
CELINA A. LÉRTORA MENDOZA
de 1317)8 llama a los espirituales “Fraticelli” y los acusa de cismáticos
por vivir en conventos bajo la autoridad de superiores elegidos por
ellos mismos y finalmente la bula Gloriosam Ecclesiam (enero de 1318)9
condena la doctrina de los Espirituales de Toscana, sobre la existencia
de una iglesia “carnal” y otra “espiritual”, percibiéndose aquí un eco de
las doctrinas de Pedro de Juan Olivi y de Ubertino de Casale. Se ha
dicho que Juan XXII era un buen canonista pero un mal teólogo. En
todo caso es claro que estas bulas están orientadas a fortalecer posiciones
legalistas y que, si se leen con cuidado, sirven también a otros fines
políticos. Es posible que Juan XXII haya visto, como hombre de leyes,
los peligros indirectos de la inocente fórmula “pobreza absoluta”, así
como otro peligro –igual o mayor- en permitir cualquier relajación de
la estricta obediencia. De allí que relativice la pobreza10 frente a la
obediencia y que recurra a la calificación de “herejía” para acallar a los
disidentes, lo cual iba mucho más allá de lo solicitado por Cesena.
Planteada la cuestión de la pobreza absoluta en términos de herejía,
se encadenaron las condenaciones. La bula de Nicolás III afirma que la
renuncia al derecho de propiedad particular o común de todo bien es
un acto virtuoso, y que es ejemplo de Jesús y los Apóstoles, mientras
que el simple uso, o uso de hecho es una situación distinta: se puede
renunciar al derecho de propiedad porque éste se basa en el derecho
positivo, en cambio el simple uso es de derecho natural y por tanto
inalienable y consiste en servirse de los bienes necesarios para la vida.
Pero es claro que este concepto, en cuanto prescinde del entramado
8
Bullarium V: 134-135.
9
Bullarium V: 137-142.
Aunque en un sentido distinto y –desde luego- con objetivos también muy distintos, Tomás de Aquino ya la había relativizado al considerarla un medio y no un fin. Esto
muestra que el tema de la pobreza absoluta y su radicalidad fundante nunca fue un
consenso teológico entonces, como tampoco lo es en la actual controversia –no terminada- sobre la teología de la liberación.
10
136
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LOS ESPIRITUALES Y LA POLÍTICA IMPERIAL
jurídico, resulta revolucionario y peligroso. Juan XXII tuvo
oportunidad de contrarrestar esta idea en ocasión de una discusión
entre inquisidores, siendo el franciscano Berengario Tolon partidario
de que la afirmación de ciertos terciarios provenzales de que Jesús y los
Apóstoles no habían poseído bienes ni particulares ni en común, no es
contraria sino acorde con la bula de Nicolás III. Su decisión (1322)
fue la de revocar la disposición de Nicolás III (establecida al final de la
bula mencionada) de que no se discutiese el contenido de la Regla
Franciscana, y para acallar los cuestionamientos, por la bula Quia
Nonunquam (marzo de 1322)11 estableció que un Papa podía alterar
las decisiones de sus antecesores. Y reaccionando al documento Ab
Alto prospectans, redactado por el Capítulo General de la orden en
junio de ese mismo año, dictó la bula Ad Conditorem Canonum
(diciembre de 1322)12. Dos son las disposiciones decisivas: la primera,
declara que la perfección cristiana reside principalmente en la caridad y
que el desapego a las riquezas es sólo un medio; segundo revoca las
disposiciones de Nicolás III y Clemente V que reconocían la propiedad
eclesiástica de los bienes de los menores. La segunda medida, un claro
ejercicio de habilidad jurídica, deja a los frailes espirituales sin cobertura
para sus requerimientos. En cuanto a la primera aseveración, en realidad
–y más allá del uso que le da el Papa- era doctrina común entre los
teólogos y había sido sostenida, entre otras personalidades, por Tomás
de Aquino, como ya se dijo.
Completando su proyecto, Juan XXII dicta la bula Cum inter
nonnulos (noviembre 1323)13 declarando herética la afirmación de que
Jesús y sus Apóstoles no habían tenido el derecho de uso sobre los
bienes que -según la Escritura- poseían. La idea era cuestionar
11
Bullarium V: 224-225.
12
Bullarium V: 233-246.
13
Bullarium V: 256-259.
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137
CELINA A. LÉRTORA MENDOZA
jurídicamente el concepto de “usus simplex facti” considerando que
cuando se trata de bienes de consumo, el uso y la propiedad se
identifican14. Un año más tarde, promulga otra bula, Quia Quorumdam
mentes, en noviembre de 132415, donde rechaza la interpretación que
hacen los franciscanos de los escritos de sus antecesores. La más conocida
de las bulas de Juan XXII sobre este tema es la respuesta a las
Appellationes de Cesena, la Quia vir reprobus de noviembre de 132916
que fija su doctrina definitiva: no hay distinción entre usus facti y usus
iuris, y por tanto no vale la categoría simples usus facti de los menores.
Esto se aplica tanto a Cristo y sus Apóstoles como a los frailes y en
general a todos. Por otra parte, la perfección cristiana radica en la caridad
y no en la pobreza. La estrategia papal consiste en negar el principio en
Cristo y los Apóstoles, para dejar sin fundamento la apelación a la
imitatio. Uno de los argumentos más importantes del Papa fue la tesis
acerca de la realiza y señorío de dominio temporal de Cristo, pues
Jesús, en cuanto Segunda Personal de la Trinidad, era desde toda la
eternidad el dueño de todo. Esta realiza es atemporal pero al encarnarse
fue adquiriendo los bienes congruentes a su cometido, renunciando al
goce de todos los que hubiera podido gozar. Cesena y otros franciscanos,
horrorizados de este argumento, respondieron con otra Appellatio
(marzo de 1330) que discute las afirmaciones de Juan XXII con
argumentos exegéticos y teológicos. A pesar de la claridad y pertinencia
En realidad la bula iba más lejos, pues incluía en la herejía la negación de que Jesús y
los Apóstoles hubiesen tenido derecho de vender o de adquirir otros bienes (no sólo el
derecho de propiedad que implicaría –en su concepto- el mero hecho de usarlos). Es
claro que aquí hay una (voluntaria?) equivocidad: una cosa es admitir que Jesús o los
Apóstoles tuvieran derechos, en cuanto estaban sometidos a la legislación secular de su
tiempo, puesto que gozarían de los mismos que tenían los demás; y otra muy distinta
es saber si habían renunciado a ellos por amor al Reino de los Cielos, pregunta que no
puede contestarse desde la dimensión jurídica secular, sino sólo desde la hermenéutica
o la teología.
14
15
Bullarium V: 271-280
16
Bullarium V: 48-449.
138
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LOS ESPIRITUALES Y LA POLÍTICA IMPERIAL
teórica de estas réplicas, está claro que ellas resbalan sin tocar la razón
por la cual el papa se apuntala en los argumentos mencionados: la
conexión entre la posesión de iure (y no sólo de facto) y el ejercicio de
una jurisdicción derivada. El argumento, en realidad funciona así: Jesús
(en cuanto Hijo, en la Trinidad) es eternamente dueño de todo (es
decir, la máxima plenitudo potestatis posible); en cuanto encarnado,
sigue teniendo tal potestad, pero encubierta en la limitación de la kénosis;
sin embargo tiene auténtica potestad temporal sobre todo aquello que
sea adecuado a su misión salvífica. La iglesia, como sucesora de Cristo,
debe tener iguales potestades, con excepción de lo que le compete como
Segunda Persona trinitaria. En síntesis, tanto la potestad del dominium
como la plenitudo potestatis de autoridad se deducen de la misma base.
Cuestionar una es cuestionar la otra. Y esto también lo veía, sin duda,
Luis de Baviera.
2 La plenitudo potetatis
Las doctrinas teocráticas que habían sido dominantes hasta
principios del siglo XIV, comienzan a ceder bajo el peso de diversas
críticas. Las más directas y conocidas son, sin duda, las debidas a la
pluma de los “averroístas políticos”, Marsilio de Padua y Juan de
Jandún. Pero no menos importantes teóricamente han sido las
elaboradas desde la perspectiva de la polémica papal con los Espirituales.
Digamos primeramente y en general, que la contestación a la teoría de
la plenitudo potetatis en la época en consideración, provenía de dos
fuentes. La primera es la fuente de las nuevas teorías políticas secularistas,
las cuales, a su vez, toman dos direcciones: por una parte, las que
podríamos llamar “imperialistas” que recogen la polémica PapadoImperio en términos altomedievales, suponiendo la unidad de
jurisdicción suprema tanto en lo espiritual como en lo temporal. La
cuestión que se ventila aquí es si el Papa es superior al emperador o a la
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 127-145, jul./dez. 2010
139
CELINA A. LÉRTORA MENDOZA
inversa, o si se trata de dos poderes iguales e independientes. La segunda
línea es la de los teóricos de los nuevos reinos, especialmente los de
Felipe IV de Francia, que sostenían la absoluta supremacía (acercándose
al posterior concepto de “soberanía”) del rey sobre su territorio y por
tanto de su independencia tanto del emperador como del Papa. Para
estas nuevas posiciones, la idea de una “monarquía universal” (sea con
preeminencia del Papa o del emperador) era algo ya superado. En
cualquiera de las dos líneas, se desconoce al papa el derecho de deponer
a reyes o emperadores ni de disponer arreglos territoriales de la
jurisdicción de ellos17.
La otra fuente de críticas a la teoría es la proveniente de los escritos
franciscanos que, más o menos cercanos a los espirituales, consideran
necesario revisar la legitimidad de las declaraciones y las medidas papales
contra ellos. En esta línea debemos mencionar, especialmente, las obras
políticas de Guillermo de Ockham18. La primera (1328), el Opus
nonaginta dierum, está dirigida a refutar las ideas de Juan XXII en sus
La cuestión de la independencia del imperio en relación al papado se resolvió sin
intervención de éste, por la fuerza de las situaciones políticas. En 1338 un grupo de
electores firmaron un acuerdo según el cual quien fuera electo por unanimidad o
mayoría como rey de Alemania, no necesitaba la confirmación del papa para asumir el
imperio ni para gobernarlo. Aunque luego hubo diversas escaramuzas políticas entre
príncipes rivales, en 1356 el emperador Carlos IV promulgó la llamada Bula Aurea,
que define el modo de elección del emperador, los derechos de los electores y sus
privilegios.
17
Como ha mostrado de Souza, los escritos polémicos de Ockham han contribuido a
la elaboración de las nuevas teorías políticas sobre el gobierno secular (A contribuição
filosófico-política de Guilherme de Ockham ao conceito de poder civil, São Paulo, FFLCH/
USP, 1980). Por otra parte, como ha dejado establecido Giuseppe Santonastaso, Ockham
se enfrentó directamente a los curialistas de Avignon y en especial a Alvaro Pelayo,
penitenciario de Juan XXII y jefe de los teóricos curialistas (“Occam e la plenitudo
potestatis”, Rassegna di Scienze Filosofiche, 10, 1957: 213-271). También Antonio
García Martínez (en “Álvaro Pelayo y Guillermo de Ockham y la teoría de los dos
poderes”, Crisis 2, 1955:33-45) sostiene que la teoría ockhamista de la separación de
los dos poderes es su replica a la teoría teocrática de Pelayo. Por eso aúna argumentos
teológico-eclesiológicos con otros de índole filosófico-política.
18
140
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LOS ESPIRITUALES Y LA POLÍTICA IMPERIAL
bulas contra los espirituales, y en especial Quia vir reprobus, defendiendo
la pobreza evangélica19. El Breviloquium de Potestate Papae contiene la
teoría de la distinción entre la potestad papal ordinaria y la
extraordinaria20. Deben mencionarse, en la misma línea, el Tractatus
contra Ioanem y el Tractatus contra Benedictus, que analizan la relación
entre el poder secular y el eclesiástico desde la perspectiva de la limitación
de la potestad absoluta del Pontífice21; Octo Questionum Decisiones
super potetate Summi Pontificis (1340-1341); Dialogus de de Imperio
et Pontificia Potestate, cuya redacción abarcó varios años y cuya tercera
parte corresponde a los últimos años del pontificado de Benedicto
XII. El Breviloquium de principado tyrannico papae data de la misma
época (Munich, 1339-1340)
Para ubicarse en el contexto de la controversia entre los espirituales
y la jerarquía eclesiástica, Ockham elabora una eclesiología que incluye
el lugar y la función del papado, el primado de la sede romana y el
magisterio doctrinal. Según Lagarde, la idea central de la eclesiología
Sus fuentes son variadas, hay elementos vinculados a la Apologia pauperum de
Buenaventura, a los escritos de Peccam, de Pedro de Juan Olivi y de Tomás de Aquino;
para la elaboración de los argumentos se basa en Pedro Lombardo y los conceptos
jurídicos quizás los tome del Decretum de Graciano. R. F. Bennet y H. S. Offler han
señalado (“Introduction” a Guillemi de Ockham Opera Politica, Vol. II, manches University
Press, 1963, p. xviii) que Ockham toma libremente diversos argumentos de distintas
obras, pero raramente las cita a la letras. Podría pensarse, añado, que este proceder –tan
distinto al de sus obras académicas- se debe precisamente a la premura y al carácter
circunstancial de su intervención en la polémica.
19
Esta obra se orienta contra el sucesor de Juan XXII, Benedicto XII, que renovó las
condenaciones de su antecesor a los espirituales. Según L. Baudry, a cargo de la edición
crítica del Ms. de la Biblioteca de Ulm, se compuso entre 1339 y 1340, seguramente
antes del 25 de abril de 1341, fecha de la muerte de Benedicto XII, al que se menciona
en la obra como Papa reinante (“Préface”, Guillemi de Occam, Breviloquium de Potestate
Papae, Ed. critique par L. Baudry, Paris, Vrin, 1937, p. vii).
20
Edición crítica por H. S. Offler, Vol. III de Guillemi de Ockham Opera Politica,
Mancunii, e Typis Universitatis, 1966, p. 19 ss y 157 ss.
21
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141
CELINA A. LÉRTORA MENDOZA
de Ockham es la “cristiandad” entendida como una comunidad
integrada de fieles, en la cual se ejercita el doble poder, espiritual y
secular. Clérigos y laicos deben participar cada uno, a diverso título, en
ese proyecto22.
En este contexto Ockham elabora una teoría del poder secular
cuyas características, según ha observado Lagarde23, se corresponden
bien con el régimen político de transición propio del siglo XIV: 1. el
poder secular es el resultado de la yuxtaposición de principados muy
diversificados; 2. en ellos comienza a delinearse la figura de la
comunidad, o sea “poner en común” ciertos derechos originalmente
individuales; 3. estos principados están a medio camino entre la
autoridad feudal y la moderna; 4. su función principal es mantener el
orden y administrar justicia. En este contexto, el poder imperial
fundamenta su legitimidad en los principios de universalidad,
romanidad y soberanía, independientemente del Papado24. Según
Francisco Fortuny, este pensamiento político no es una “via media”
sino una nueva y ya “moderna”; incluso su tesis de que el Evangelio es
la ley de la perfecta libertad e presentado como límite e ideal utópico
del gobierno terrenal necesariamente coactivo25.
Cf. La naissance de l’esprit laïque au déclin du moyen âge. V. Guillaume d’Ockham:
critique des structure éclésiales, Louvain-Paris, Nauwelaerts, 1963, p. 264.
22
“Comment Ockham comnprend le pouvoir séculier», Scritti di Sociologia e Politica
in onore di Luigi Sturso, Bologna, 1953, vo. 1 : 593-612.
23
Lagarde ha señalado que Ockham se atiene a la tradición del Imperio Romano cuya
translatio es estrictamente secular. De este modo, afirma que originalmente el emperador
era elegido por el senado, el pueblo o el ejército, y el emperador del siglo XIV es elegido
por el voto de los príncipes electores; por tanto su legitimidad no deriva de la coronación
papal (cf. La naissance… IV Guillaume d’Ockham: défénse de l’empire, Paris-Louvain,
Nauwelaers, 1962, pp. 149-150.
24
“Pensamiento político de Ockham e informática”, Actas del II Congreso Nacional de
Filosofía Medieval, Zaragoza, 1996, p. 125 y 136.
25
142
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 127-145, jul./dez. 2010
LOS ESPIRITUALES Y LA POLÍTICA IMPERIAL
Hay otro punto importante en Ockham, que se pone de relieve
especialmente en el Dialogus: pone a luz la dicotomía entre la jerarquía
y la libertad personal del creyente, entre la verdad que se quiere establecer
por autoridad y la que puede tener cualquiera de ellos, destacando el
carácter individual de la fe y la preeminencia de la universitas fidelium26.
Al negar carácter “carismático” a la autoridad eclesiástica, reduce su
magisterio a una delegación de la comunidad. Como ha señalado hace
tiempo Cesare Vasoli27, la concepción ockhamista sobre la relación
Cf. Brian Tierney señala que es dudoso que Ockham fuera conciliarista; en todo caso
afirmó que la universitas fidelium es superior al concilio (“Ockham, the conciliar theory
and the canonist”, Journal of the History of Ideas 15,1954: 40-70. Por las mismas fechas,
Giovanni Tabacco sostenía que en la tercera parte del Dialogus, a la pregunta de si es
preferible la monarquía del Pontífice o un gobierno pluralista, queda sustancialmente
en la línea de la monarquía (cf. Pluralità di papi et unità di Chiesa nel pensiero de
Guglielmo di Occam, Torino, 1949). Pero estos trabajos visualizan más bien la relación
de Ockham con el conciliarismo posterior, y no las figuras jurídicas de su época, y que
para Ockham que no se trataba de elaborar un conciliarismo teórico en general, sino de
justificar la legitimidad de la deposición de un papa herético. En otro sentido, y en
forma muy matizada, George de Lagarde considera que Ockham no sostuvo la
superioridad del concilio sobre el Papa; y que si no aceptó la infalibilidad de éste es
porque no reconoce a ninguna institución particular o individuo tal infalibilidad, que
Dios ha prometido a la iglesia. La promesa de Dios significa solamente que la verdad
siempre quedará en –al menos algunos individuos de- la Iglesia, pero no sabemos
quiénes, ya que la infalibilidad no se liga a la estructura eclesiástica (“Ockham et le
concile géneral”, Album, Helen Maud Cam, vol. 1, Louvain-Paris, Nauwelaerts, 1960:
85-96). Sin embargo, también hay que considerar, conforme al mismo autor, que
Ockham nunca introdujo el principio de la soberanía popular de la Iglesia. Por su parte
Teodoro de Andrés tampoco considera conciliarista la eclesiología de Ockham (“A
propósito del pretendido conciliarismo de G. de Ockham”, Sal Térrea 61,8/9: 1965:
714-730). Parece prudente admitir, por tanto, que Ockham no elabora su crítica a la
plenitudo potestatis e incluso al poder papal en general, asumiendo la dicotomía
canonística: Papalismo vs. Conciliarismo, sino que su objetivo más importante es delimitar las competencias de los poderes en cuestión, entre sí pero sobre todo en relación
a los individuos sujetos a ellos.
26
“Il pensiero politico di Guglielmo d’Occam”, Revista Critica di Storia della Filosofia, 9,
1954:232-253, donde reitera ideas anteriormente expuestas, en el capítulo VII de Guglielmo
Occam, Firenze, La nuova Italia, 1953. Años después reiterará la importancia de la elaboración
ockhamista, en concordancia con nuevos estudios sobre el contexto ideológico del medioevo
tardío (“Guglielmo di Ocán”, De Homine, 1, n. 4, 1962: 77-92).
27
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 127-145, jul./dez. 2010
143
CELINA A. LÉRTORA MENDOZA
Iglesia-Estado (especialmente la que expone en el Libro III del Dialogus)
es solidaria con esta teoría general sobre el magisterio eclesiástico. En el
mismo sentido debemos mencionar el Breviloquium de principatu
tiránico papae, que intenta demostrar, en primer lugar, la licitud de la
discusión sobre el poder del papa, derecho que tiene todo cristiano y
no solamente los teólogos. Una vez aceptada la legitimidad de la
discusión se pasa a la refutación de la tesis de la plenitudo potestatis con
argumentos tomados de la Escritura y del derecho canónico28.
En síntesis, podemos formular así la propuesta ockhamista29
conocida como via media. Sus dos elementos son el binomio regulariter
- in casu y la distinción simpliciter - secundum quid. Así, por el principio
de libertad, el papa no puede imponer regulariter nada supererogatorio,
aunque no sea contrario al derecho divino o natural, pero sí in casu,
aunque Ockham reconoce que es difícil precisar los casos concretos.
La vía media como articulación de potestades tiene cuatro trazos
característicos; 1. La potestad temporal y la espiritual provienen de
Dios a través de canales distintos; 2. Cada potestad goza de una esfera
de acción propia; 3. Eso no implica que la Iglesia se ocupe sólo de
asuntos espirituales ni el príncipe sólo de temporales; 4. Se busca la
armonía y la concordia entre ambas potestades.
Aunque Ockham no pertenecía al grupo de los espirituales, en este
punto su aporte resulta coincidente. Por tanto, puede señalarse una vía
independiente del averroísmo político, y conectada con los espirituales,
que realiza una crítica decisiva al teocratismo.
Según Pedro Rodríguez Santidrián, lo que -según Ockham- convierte a Juan XXII en
hereje haber usado una fórmula teológica y bíblica para acumular poder y riqueza. (cf.
“Introducción” a Guillermo de Ockham, Breviloquium de principatu tyrannico papae,
traducción, introducción y notas de Pedro Rodríguez Sanrtidrián, Madrid, Tecnos, 1992).
28
Cf. Esteban Peña Eguren, «La filosofía política de Guillermo de Ockham en el
Dialogus III: relación entre Iglesia y Estado», Pedro Roche Armas (Coordinador), El
pensamiento político en la Edad Media, Madrid, Ed. Fundación Ramón Areces, 2010:
169-189.
29
144
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 127-145, jul./dez. 2010
LOS ESPIRITUALES Y LA POLÍTICA IMPERIAL
Discusión final
Volviendo a la pregunta formulada al comienzo, la controversia de
los espirituales con la jerarquía eclesiástica tuvo una derivación -al
comienzo impensada- a favor de las teorías políticas secularistas. La
defensa de la libertad de los creyentes para imitar a Cristo en aspectos
muy alejados de los intereses políticos, tuvo proyección en la afirmación
de la potestad secular, indirectamente al cuestionar la plenitud de un
poder que se veía como “tiránico”. Una polémica que tuvo su comienzo
en la distinción entre usus y dominium terminó implicando otros
conceptos como ius, iustitia y libertas. En tiempos cercanos a Ockham,
Juan Gerson tendía a identificar ius con libertas (en el sentido de libertad
del sujeto), así como, a la inversa, los espirituales (y Ockham) tendían
a aproximar la defensa del usus con la libertas cristiana. Por esos extraños
vericuetos de la historia, la identificación siguiente fue la de libertas
con dominium, a través de la aproximación entre ius y dominium. Con
el juego de estas nociones, los escolásticos de la Escuela de Salamanca
defendieron a los indios americanos30. Algo que estaba lejos de las
mentes de los espirituales del siglo XIV, pero seguramente no lejos del
sentir de los primeros frailes que acompañaron a Colón y que, según
una tradición que puede considerarse segura, pertenecían a esta familia
de los “fraticelli”, buscando y siguiendo tan lejos las huellas del espíritu
de su Santo Fundador.
Giuseppe Tosi, (La teoría della schiavitù naturale nel dibattito sul Nuovo Mundo (15101573) «Vere domini» o «servi a natura»?, Divus Thomas 33, 3/2002, Ed. Studio
Dominicano) hace notar que Soto (De iustitia et iure, IV, I) señala que el dominio se
distingue de otras formas de uso o usufructo en que en ellas el bien sólo se usa, mientras
que en el dominio se dispone totalmente de él, y afrontando esta famosa disputa (en De
dominio, par. 6) toma parte a favor de los franciscanos, en cuanto a la distinción entre usum
y dominium (p. 64) . Aunque la cuestión se plantee en estos términos, Soto tiende a
identificar dominium con libertas, y considerar la propiedad como una característica intrínseca del hombre, que le permite ejercer su libertad (p. 65).
30
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 127-145, jul./dez. 2010
145
COMENTÁRIOS
DA VERDADEIRA À PERFEITA ALEGRIA...
DA VERDADEIRA À PERFEITA ALEGRIA, UMA E(IN)VOLUÇÃO?
Aldir Crocoli *
“A perfeita alegria consiste em vencer-se a si próprio e, voluntariamente, por amor, suportar trabalhos, injúrias, opróbrios e humilhações”. Estamos habituados, há seis séculos, a esta compreensão de vida
penitencial de Francisco de Assis, entendida como automaceração que
se torna difícil imaginar alguma diversa. E as consequências desta visão
têm múltiplas repercussões na compreensão da proposta de vida
franciscana. Para isso, sem dúvida alguma, muito tem contribuído o
livro dos Fioretti, no seu capítulo oitavo, donde é extraído este versículo
citado no começo. Como ao longo de séculos não se tinha notícia de
um outro texto anterior, aquele dos Atos do Beato Francisco e seus companheiros1 – ou de sua tradução popular, os Fioretti2, escrito quase um
século depois – que coloca este pensamento como diretamente saído
*
Dr. Aldir Crocoli, capuchinho, Professor na Estef. Contato: [email protected]
Os “Actus Beati Francisci et sociorum ejus” (Atos do Beato Francisco e seus companheiros)
é uma compilação surgida em torno de 1336, provavelmente elaborada por Frei
Hugolino de Monteggiorgio, um frade da região das Marcas, na Itália.
1
Os “Fioretti”, a obra franciscana mais conhecida no mundo inteiro, são uma tradução ou
adaptação dos Atos do Beato Francisco...” nos últimos anos do século XV. Os textos são
praticamente idênticos no seu conteúdo. No caso preciso deste texto da “Perfeita Alegria”
(Cap. 7 dos Atos e 8 dos Fioretti) duas pequenas diferenças podem ser facilmente constatadas: no versículo 10 dos Actus os Fioretti acrescentam “Fora daqui”; e no versículo 16,
depois de “nos bater com o pau de nó em nó”, os Fioretti acrescem “e encher-nos de feridas
por todos os lados”. São acréscimos que nada alteram do conteúdo.
2
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 149-180, jul./dez. 2010
149
ALDIR CROCOLI
da boca do Poverello, acabou se impondo como verdade. Felizmente,
em 1927, Benvenuto Bughetti descobriu, num pequeno pergaminho,
uma versão mais breve desta parábola. As análises levaram à conclusão
que se tratava de um texto mais original, oriundo, não do próprio
Francisco, mas de muito próximo a ele, enquanto o dos “Atos” surgiu
mais de um século depois, e os Fioretti, quase dois séculos depois da
morte de Francisco. Este texto é uma excelente porta de entrada para
o mundo de Francisco. Por isso nosso interesse em estudá-lo, para que
se perceba a diferença entre o pensamento dele e o de seus seguidores.
Nosso objetivo neste ensaio é analisar o texto da “Verdadeira Alegria” de Francisco, depois compará-lo com o texto da “Perfeita Alegria” dos Fioretti3. Na conclusão apresentam-se, lado a lado, as diferentes compreensões de vida, das quais os referidos textos são portavozes. Nossa intenção é analisar o texto original para captar sua profunda mensagem e, em segundo lugar, compará-lo com o texto dos
Fioretti a fim de que fique clara a grande divergência de mentalidade
entre ambos. O texto foi totalmente modificado, perdendo seu conteúdo original, para comunicar outro conteúdo, que não encontra confirmação nos escritos de Francisco. Passemos à análise.
1 A verdadeira alegria
O texto da Verdadeira Alegria poderia ser datado em torno dos
anos 1223 a 1225, mais precisamente, 1224. O contexto pessoal em
que vivia Francisco e do movimento franciscano, agora transformado
em Ordem, são decisivos para uma correta compreensão dessa verdadeira preciosidade. Uma mínima compreensão do contexto garantirá a
fidelidade às palavras e expressões. Por isso, antes de examinar o texto,
Preferimos compará-lo com o texto dos Fioretti que, além de ser o mais conhecido, não
apresenta grandes diferenças de compreensão das suas “estorietas” com os Actus.
3
150
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 149-180, jul./dez. 2010
DA VERDADEIRA À PERFEITA ALEGRIA...
vejamos rapidamente, em algumas pinceladas, as circunstâncias pessoais de Francisco e de seu movimento nessa época.
1.1 O Contexto histórico-pessoal de Francisco e do
movimento
Como o texto não foi escrito pelo próprio Francisco (segundo a
frase introdutória), conhecemos a versão de um frade que ouviu de
um tal de Frei Leonardo4, que deve ter ouvido de Francisco. Portanto
não temos a segurança absoluta de ter as próprias palavras de Francisco. Contudo, a análise interna nos leva a crer na possibilidade de fidelidade do narrador. Seria difícil alguém criar uma parábola com tanta
perspicácia e com tal envolvimento da pessoa de Francisco5.
Partindo da hipótese de datação de 1224, podem ser lembrados
alguns fatos e dados históricos que ajudam a entendê-lo. Francisco já
não era, há 2 ou 3 anos, o Ministro Geral de, pelos menos, três mil
frades6. Já não tinha, portanto, autoridade jurídica sobre os frades.
Queria ser, isso sim, o tempo todo, exemplo de vida para os seus irmãos. E, como se sabe pelo testamento e outras fontes, ele nunca deixou de manifestar sua posição sobre o andamento do movimento. É
possível, pois, que ele tenha querido dizer uma palavra orientativa ou
2Cel 31,1 menciona Frei Leonardo no retorno do ultramar, isto é, em 1219 ou 1220,
ao retornar da Cruzada. Logo deve ser alguém muito próximo a Francisco, ao menos
nos últimos anos da vida e por isso pode ter fatos e reflexões a contar em primeira mão.
4
Só se conhece um pergaminho com o presente texto. É o códice FN, publicado por
Benvenuto Bughetti, em 1927. Lucas Wadding conhecia outra versão intermediária a
este e o dos Actus e o colocou entre os escritos de Francisco em 1623. Porém, como o
texto dos Fioretti é melhor elaborado, este original acabou no esquecimento.
5
Os Fioretti dizem, evidentemente exagerando, que no capítulo das Esteiras, que os
estudiosos atualmente fixam em 1222, estavam presentes 5 mil frades. Dois anos mais
tarde, três mil é o mínimo que se pode supor.
6
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 149-180, jul./dez. 2010
151
ALDIR CROCOLI
exortativa a todos os frades por meio desta parábola neste momento
crítico do movimento e, porque não, também seu.
É nossa opinião de que o texto seja de 1224 por um dado muito
simples: apenas em dois dos seus escritos Francisco emprega a palavra
“Ordem” para se referir à totalidade dos frades: aqui nesta parábola e
na Carta a Toda a Ordem (Ord 2). Nas demais vezes usa o termo
“Fraternidade”. Juridicamente a passagem de Fraternidade a Ordem se
deu com a aprovação com bula da Regra de Vida pelo papa Honório
III, aos 29.11.1223. Esse fato não deixou de marcar significativamente a história do movimento7. O reconhecimento papal da Regra elevou o status social dos frades. Se, antes, com o reconhecimento oral do
seu modo de vida, eles não tinham argumentos objetivos para apresentar quando não eram aceitos em algum lugar, agora eles podiam
quase se impor apresentando-se como integrantes da estrutura eclesial.
A insegurança anterior cedeu lugar, de alguma forma, a certa superioridade por terem sido oficialmente reconhecidos pelo próprio Papa, a
maior autoridade do tempo. Com isso e com o ingresso de muitos
doutores e mestres de universidades, crescera muito o desejo de ver a
“Ordem” projetada no cenário mundial (desenvolvimento triunfalista).
Francisco se dá conta de que o “ideal” da minoridade, tanto espiritual
como social, estava sendo esquecido, mesmo se sob argumentos pastorais. Ele reflete sobre essa nova realidade vivida pelos seus irmãos e
pensa como pode ajudá-los a “retornar ao primeiro amor” (Ap 2,4-5).
De sua parte, o próprio Francisco vivia angustiado. Celano e outras fontes dizem que ele sofria uma longa (mais de dois anos) e grave
Continua difícil de explicar a notícia fornecida por Celano (2Cel 193,4) de que
Francisco queria acrescentar à Regra aprovada pelo Papa a frase: “O Ministro Geral da
Ordem é o Espírito Santo”, o que não pôde fazer porque a Regra já estava bulada.
Como poderia ele não saber que a regra, uma vez bulada, seria inalterável se ele acompanhou de perto todo o processo ao longo dos decisivos 12 anos iniciais?
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“tentação”. Neste período até evitava se encontrar com os frades. Muitas vezes se dirigia aos bosques para poder chorar sem ninguém ver. É
possível que esta tentação seja o nome do conflito interno experimentado duramente por Francisco. De que mesmo se trataria? Uma das
possibilidades, na qual cremos, é de que Francisco, devido ao apoio
dado pela Igreja institucional na pessoa do Cardeal Hugolino, protetor da Ordem, ao grupo dos doutos da Ordem, cujo pensamento
muito se diferenciava daquele de Francisco, tenha começado a sentir
até sérias dúvidas de fé. Estes buscavam uma autoafirmação no interior da Igreja e da sociedade, enquanto Francisco entendia que seu caminho era o da liminaridade, o da margem, não do centro. Francisco
sempre entendeu que Deus lhe revelara isso. Mas, de repente, vê a Igreja
apoiando a posição contrária. Por isso começa a pensar: “Não terei me
enganado o tempo todo, imaginando ser alvo de uma revelação especial
quando na realidade era simples ilusão?8 Seria eu, talvez, um teimoso arbitrário?” Pode-se supor que o interior de Francisco fosse de uma posição
a outra, incapaz de discernir qual seria a verdadeira.
Meditando constantemente na sua situação interna e vendo os rumos que a Ordem estava tomando, Francisco forja aos poucos esta
parábola. Ela pretendia ser uma memória do itinerário percorrido por
ele mesmo e pelos seus primeiros companheiros, como virá a fazer de
modo mais explícito no seu Testamento. Da mesma época poderia ser
datada a Admoestação V, pois que trata da mesma temática. Com este
Sabemos que este não é um argumento científico. Mas é interessante perceber que
Liliana Cavani, no seu filme “Francesco”, retrata Francisco no Monte Alverne, rezando,
chorando e pedindo em voz alta: “Parlami”, isto é, fala-me, numa intensa súplica para
que Deus se manifestasse sobre “quem estaria no caminho certo”. Depois, recebendo os
estigmas, Francisco declara a Frei Leão “Deus mihi dixit”, Deus me falou. Deus me
confirmou estar no caminho certo. Por isso, segundo estudiosos, Francisco teria descido
do Alverne pacificado interiormente por se sentir assemelhado com Cristo, mais espiritualmente do que fisicamente pelos estigmas, enquanto partícipe do seu processo de
esvaziamento de que fala Paulo apóstolo (Fl 2, 6-11).
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“Sietz im Leben”, esta sucinta descrição do contexto do movimento e
da situação existencial de Francisco, podemos passar à análise do texto.
Para facilitar, trazemos diante dos olhos o texto. Será mais fácil conferir os detalhes.
1.2 A parábola da verdadeira alegria
Como se perceberá imediatamente, a parábola da Verdadeira Alegria se compõe de duas partes bem nítidas, com uma introdução, uma
frase de transição e uma conclusão. Na conclusão está a resposta ao
enunciado da introdução. E as duas partes do corpo da parábola se
relacionam, de certa forma, de modo antagônico. A primeira descreve
o que não é a verdadeira alegria e a segunda conduz o ouvinte a compreender em que consiste a Verdadeira Alegria.
De que alegria trata Francisco? Não da alegria das gargalhadas, nem da
alegria superficial das festas. Trata da alegria profunda, própria de quem se
sente verdadeiramente realizado porque conseguiu ter “o coração misericordioso de Deus” que, qual pastor, vai ao encontro da ovelha tresmalhada. Trata-se de ter o coração de Deus, de “ser igual a Deus” no jeito de viver
e de amar na gratuidade. Esta é a mais profunda realização humana. É
sobre esta que Francisco discorre nesta parábola.
Estrategicamente, a criação da parábola é situada na Porciúncula,
exatamente o lugar que Francisco queria como “modelo para a
Fraternidade”. Nos tempos de sua conversão era um lugar abandonado, situado nas proximidades de leprosários, a uns 4 quilômetros da
cidade. Era seu lugar referencial. Lá viveu, com os primeiros companheiros, por muito tempo. Foi o berço da Fraternidade, o lugar da
“descoberta do Evangelho”. E os leprosários próximos eram lugar de
noviciado dos ingressantes (CA 9, 2-3; 2EP 44). Pode-se dizer que a
Porciúncula era o lugar-símbolo de sua conversão e do espírito que
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animava os primeiros tempos do movimento. Mas, com o passar dos
anos, este lugar foi se institucionalizando: a Comuna de Assis construiu uma casa grande para os frades. Os frades já não eram mais os
excluídos, mas sim o alvo de uma especial atenção da população e da
própria Igreja que via nos frades um “exército de possíveis colaboradores”. É o que Francisco vai denunciar na segunda parte de vários modos. Eis o texto:
O mesmo (Frei Leonardo) contou na mesma ocasião que o
bem-aventurado Francisco, em Santa Maria, chamou a Frei Leão
e disse: 2 “Frei Leão, escreve”. Este respondeu: “Já estou pronto”. 3 “Escreve – disse – o que é a verdadeira alegria”.
4
Vem um mensageiro e diz que todos os mestres de Paris entraram na Ordem: escreve que isto não é a verdadeira alegria. 5
Igualmente, que (entraram na Ordem) todos os prelados
ultramontanos, arcebispos e bispos, o rei da França e o da Inglaterra: escreve que isto não é a verdadeira alegria. 6 Do mesmo
modo, que os meus irmãos foram para o meio dos infiéis e os
converteram todos à fé; e, além disso, que eu tenho tanta graça
de Deus que curo os enfermos e faço muitos milagres: digo-te
que em tudo isso não está a verdadeira alegria.
7
“Mas, o que é a verdadeira alegria?”
8
Volto de Perúgia e chego aqui na calada da noite; e é tempo de
inverno, cheio de lama e tão frio que gotas de água se congelam na
extremidade da túnica e (me) batem sempre nas pernas, e o sangue
jorra de tais feridas. E totalmente na lama, no frio e no gelo, chego
à porta e, depois de eu ter batido e chamado por muito tempo, vem
um irmão e pergunta: Quem és? Eu respondo: Frei Francisco. 10E
ele diz: ‘Vai-te embora! Não é hora decente de ficar andando; não
entrarás. 11E, como insisto, de novo ele responde: Vai-te embora! Tu
és simples e idiota. De maneira alguma serás acolhido junto a nós;
somos tantos e tais que não precisamos de ti. 12E eu novamente me
coloco de pé diante da porta e digo: Por amor de Deus, acolhei-me
por esta noite. 13E ele responde: ‘Não o farei. 14Vai ao lugar dos
crucíferos e pede lá.
15
Digo-te que, se eu tiver paciência e não ficar perturbado, nisto
está a verdadeira alegria e a verdadeira virtude e a salvação da
alma”.
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1.3 Análise da parábola da verdadeira alegria
Nessa análise seguiremos versículo por versículo.
a) A introdução (Vv 1-3). No versículo introdutório são apresentados os personagens, o tema e o lugar: Francisco dita; Leão, seu confidente escreve; o ambiente é a Porciúncula, aquele lugar pobre, marginal e próximo dos marginalizados. E, por fim, o tema a ser abordado,
a verdadeira alegria. Também se percebe, como dissemos acima, que
não se está em contato com a fonte direta da parábola. O texto de que
se dispõe passa, pelo menos, por dois mediadores: “O mesmo Leonardo contou que ...” Quer dizer, quem escreve não é Leonardo. E Leonardo não participou, diretamente, da parábola. Leão ou Francisco
terão contado a Leonardo?
b) A primeira parte (vv 4-6). Nesta parte, Francisco se vale de
dois gêneros literários: a hipérbole e a ironia. A hipérbole consiste em
exagerar propositalmente nos dados para chamar a atenção. Aqui Francisco diz: “todos os mestres de Paris”, “todos os prelados”, “converteram todos os infiéis” etc. É um modo de alertar para a realidade dos
sonhos dos frades doutos. Desse modo, descreve a busca do múltiplo
poder e grandeza presente naqueles frades. Esse parece ser o foco da
questão aqui retratada. E, pela ironia, coloca na boca dos outros aquilo
que eles mesmos deveriam buscar ou ser. João evangelista usara a ironia para apresentar, pela boca de Pilatos, a Jesus Cristo realmente como
modelo de pessoa humana, quando Pilatos, escarnecendo, apresentou
Jesus flagelado ao povo dizendo: “Eis o homem” (Jo 19,5). Francisco
aqui se vale da ironia para dizer, através da boca do porteiro, a necessidade de retornar ao lugar dos últimos (Vai aos crucíferos e pede lá) ao
invés de alimentar sonhos de grandeza e poder.
“Vem um mensageiro” (v. 4a). Esse dado não é casual. Os pobres
nunca têm mensageiro, propriamente dito; será sempre um amigo,
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um parente, um vizinho, apenas. Quem possui mensageiro para levar
notícias a milhares de quilômetros (distância de Paris a Assis) são os reis, os
príncipes e os graus equivalentes dentro da hierarquia eclesiástica.
“E diz que todos os mestres de Paris entraram na Ordem” (v. 4b).
Para frades da Ordem (Fraternidade elevada ao status de “Ordem”) é
motivo de grande orgulho e satisfação ter em suas fileiras os grandes
luminares da intelectualidade. Por outro lado, o que moveria a “todos
os mestres” não de uma escola qualquer, mas da universidade mais
famosa do mundo a ingressar na Ordem? Não seria com certeza a
busca da conversão pessoal, nem a transformação da sociedade ao
modelo evangélico de vida. Não será antes o desejo de ingressar numa
organização humana que ofereça condições excelentes para seu trabalho e sua promoção pessoal? E, por outro lado, estes doutores só tomariam semelhante decisão se já encontrassem na Ordem clima e condições de favorabilidade para o desenvolvimento de sua profissão. E,
nesse caso, a Ordem não estaria sendo uma “Ordem de Irmãos Menores”. Por isso, tanto do ponto de vista dos frades quanto dos doutos,
há uma evidente busca de poder. Pode-se dizer que nesta primeira situação está retratada a busca do poder do saber, da ciência.
“Igualmente que entraram na Ordem todos os prelados
ultramontanos, arcebispos e bispos, o rei da França e o da Inglaterra” (v.
5a). Provavelmente o texto supõe que seja o mensageiro que também
anuncia esta outra notícia. Desta vez são os detentores do poder religioso (prelados, bispos e arcebispos) da França, da Espanha, da Alemanha, isto é, de todos os países ao norte dos Alpes que dividem a Itália
e a Suíça. E, neste gênero literário da hipérbole, Francisco volta a dizer
que são “todos” eles, não um ou outro. Novamente se pode levantar a
pergunta: Por que um bispo ou arcebispo se faria frade? Para pertencer
a um movimento de penitência-conversão? Muito dificilmente. Não
seria antes porque, gozando a Ordem de grande prestígio no cenário
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eclesial, cresceria seu prestígio também? E não seria o mesmo motivo
a levar os reis da França e da Inglaterra a tomarem também a decisão de
se fazerem frades? Francisco não parece estar ironizando a busca de
poder religioso e político – ambos decisivos no ambiente de cristandade vivido então? E por que cita exatamente os dois países emergentes
de então?
“Do mesmo modo, que meus irmãos foram para o meio dos infiéis e os
converteram todos à fé” (v. 6a). Neste versículo Francisco retrata o evangelho do poder e não e poder do Evangelho. Quer dizer, tanta e tão
alta é a santidade dos frades que obtém a conversão de “todos” os
muçulmanos. Os frades estão revestidos de tão grande santidade que
sua presença tudo transforma. Fazem isso porque o poder divino ou o
poder sagrado está presente abundantemente neles. Converter um
maometano já é difícil; imaginemos que poder de que santidade deveriam estar revestidos os frades para converter todos os muçulmanos.
Não era assim que os frades imaginavam sua projeção como
evangelizadores em nome da Igreja? Francisco está claramente exagerando com seu estilo hiperbólico, mas provavelmente era o que estaria
presente em certo número de frades.
“E, além disso, que eu tenho tanta graça de Deus que curo os enfermos e
faço muitos milagres” (v. 6b). Francisco vê que muitos frades se orgulhavam
de sua santidade. Ser companheiro de um santo é, de certa forma, participar de sua áurea. Por isso inclui este dado também. Nada acrescenta ao
dado anterior do poder sagrado. Apenas abre para uma nova circunstância,
agora a respeito da fama de santidade de sua pessoa.
Observando com atenção, pode-se perceber nesta parte a descrição
de três tipos de poder, ou três dimensões do poder: o poder da ciência,
o político, seja religioso ou civil, e o poder sagrado, aquele que emana
diretamente de Deus. Para cada uma destas três situações Francisco
afirma que NÃO está nisso a verdadeira alegria, a verdadeira realização
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humana, a verdadeira grandeza humano-cristã. Ele tira, dessa forma,
os pontos de apoio a quem, mesmo se de modo quase inconsciente,
alimenta assim aspirações e sonhos de grandeza. A busca que qualquer
forma de grandeza ou poder não realiza a pessoa humana, declara Francisco nesta primeira parte. Também a onipotência divina não reside na capacidade de fazer o que Ele quer, sobrepondo-se a qualquer força de resistência. Ao contrário, a capacidade de força de Deus reside em fazer-se pequeno, solidário com as menores das suas criaturas. Jesus Cristo, rosto de
Deus, procedeu assim segundo a Carta aos Filipenses (2,6-11).
c) A segunda parte (vv. 8-14).
Concluída a fase da descrição dos falsos valores vividos por frades
(busca de autoafirmação e supremacia sobre os outros), seu interlocutor,
Frei Leão, lhe faz a pergunta de transição: “Mas o que é a verdadeira
alegria?” E Francisco, então, passa a direcionar a atenção para a verdadeira alegria com uma história hipotética e, ao mesmo tempo, real,
pelo contexto de rejeição que sofria da parte de grande número de
frades, especialmente os doutos que o julgavam incapaz de orientar e
conduzir a Fraternidade, mesmo se o reconhecessem como um grande
santo. Francisco diz:
“Volto de Perúgia e chego aqui na calada da noite” (v. 8a). Francisco
começa relatando sua saída da cidade do poder. Perúgia era reconhecidamente a cidade dos poderosos nobres. Até a família Favarone, de
Clara, ao ser expulsa de Assis, foi refugiar-se em Perúgia. Nesta parábola é provável que Perúgia funcione como símbolo de grandeza e de
poder. Francisco começa, pois, dizendo que ele saiu daquele ambiente
que alimenta sonhos de grandeza e “chega” à Porciúncula, um lugar de
periferia e exclusão pela sua proximidade com os leprosos.
Ele chega na “calada da noite”, porque não consegue entender o
que está se passando com seus confrades. Tem ciência do rompimento
existente entre eles. E não é propriamente um rompimento entre eles,
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enquanto pessoas, mas um rompimento com a proposta de vida. Propõem outra maneira de viver, que nada tem a ver com a opção da
Fraternidade nos seus inícios, e que Francisco percebia ter sido uma
verdadeira revelação. É difícil para Francisco assimilar a situação. É,
por isso, noite.
“E é tempo de inverno, cheio de lama e tão frio que gotas de água se
congelam na extremidade da túnica e (me) batem sempre nas pernas e o
sangue jorra de tais feridas” (v. 8b). Provavelmente essa situação é o
símbolo do estado de relação entre ele e o grupo dos frades mais doutos:
um distanciamento total, um gelo afetivo dolorido e insuportável que
lhe dói profundamente.
“E totalmente na lama, no frio e no gelo, chego à porta e, depois de
ter batido e chamado por muito tempo, vem um irmão e pergunta: Quem
és? E eu respondo: Frei Francisco” (v.9). Os termos eloquentes neste
versículo poderiam ser “chamar por muito tempo” e a resposta de Francisco dizendo ser ele, Francisco o fundador da sua “Ordem”. O fato de
bater e chamar por muito tempo revela que a casa é grande, que o
porteiro, mesmo se de sono leve, demorará muito para caminhar até à
porta. Para quem está na situação de Francisco, alguns minutos são
uma eternidade. Mas o pior acontece depois que o irmão chega: ao
ouvir a resposta do peregrino se identificando como “Francisco” ao
invés de lhe escancarar a porta, acordar todos os irmãos para recepcionálo, começa a apresentar as razões para não admiti-lo. Não duvida que
seja ele como na versão dos Fioretti.
“E ele diz: Vai-te embora! Não é hora decente de ficar andando: não
entrarás” (v. 10). Neste versículo, o rompimento de propostas de vida
entre Francisco e aquele grupo de frades se manifesta de duas formas:
Ele é rejeitado diretamente ao ser reconhecido como o fundador, recebendo um claro “vai-te embora”. O irmão dessa maneira está dizendo
que os frades que estão com ele naquele grande convento já não se
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interessam pela proposta de Francisco. Mandam-no para longe: “Vaite embora”. Porém, o segundo aspecto do rompimento com Francisco é sintomático: “não é hora decente de ficar andando”, isto é, nós
temos uma estruturação de vida como os monges, com horários determinados para viajar, para dormir, para rezar, para comer etc. Tu já
não observas esses horários conventuais, portanto não és um religioso;
não podes integrar nosso grupo de religiosos com estrutura conventual.
O irmão porteiro já não se sente um irmão pobre entre os pobres
como Francisco propunha para seus irmãos. identifica-se antes como
um religioso, vivendo numa estrutura conventual. Quem opta pelos
pobres, quem se faz pobre entre os pobres, não tem como ser fiel a
uma observância regular de horários e ter casa grande. A distância afetiva
e efetiva entre os dois (Francisco e o grupo dos doutos) é grande!
“E, como insisto, de novo ele responde: Vai-te embora! Tu és simples e
idiota. De maneira alguma serás acolhido junto a nós; somos tantos e tais
que não precisamos de ti” (v. 11). Novamente a rejeição clara e explícita. E o irmão não revisa sua postura; ao contrário, a reafirma: vai-te
embora. Por que razão Francisco é rejeitado? Por ser igual aos da ralé
social, por ter aparência de mendigo. E por ser, desse modo, inútil.
Não contribuirá com a Ordem. Não lhe trará mais fama nem mais
honra. Antes, desonra, vexame e vergonha. E o irmão lhe diz abertamente a razão: “Somos tantos e tais que não precisamos de ti”. A Ordem está cheia de doutores, de prelados e bispos, de reis, de pregadores
famosos que convertem a todos, de grandes santos com muitos milagres, que vantagem teria em acolher um pobretão desses como Francisco, maltrapilho e ignorante? É melhor que fique longe. Essa expressão “somos tantos e tais” é a frase nuclear dessa segunda parte no sentido
de fazer a conexão como tema do poder, trabalhado por Francisco na
primeira. Além disso, é a frase reveladora, por excelência, do sonho de
grandeza aninhado na alma daqueles frades, sonho que Francisco queria combater com a parábola.
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“E eu novamente me coloco de pé diante da porta e digo: Por amor
de Deus acolhei-me por esta noite” (v. 12). O modo de Francisco se
expressar supõe que ele tivesse recuado alguns passos ao ouvir por duas
vezes o “Vai-te embora”. Agora ele torna novamente à porta, já não
como Francisco, o fundador da Ordem, mas como um pobre que
pede abrigo “por esta noite”. Está numa situação de extrema necessidade e urgência: está na lama, no frio, na noite, com feridas nas pernas.
Os Fioretti acrescentarão “com fome”. E suplica ao frade menor “por
amor de Deus”, como fazem os pobres (Até este momento Francisco
não pronunciara o nome de Deus e aqui o faz como um pobre e não
na qualidade de Francisco).
“E ele responde: Não o farei” (v. 13). A insensibilidade do frade é total.
Quem só sonha com grandezas fica cego ao pequeno e insignificante. Não
encontra tempo, nem maneira de ajudar os inúteis (Não vale a pena investir neles. É perder tempo e dinheiro). É a lógica materialista estampada no
capitalismo da sociedade hodierna, quer a nível microcósmico, quanto
macrocósmico. Esta é a origem da enorme fissura social que, ao longo da
história, separa os ricos e poderosos dos pobres e excluídos.
“Vai ao lugar dos crucíferos9 e pede lá” (v. 14). O irmão porteiro é
coerente. Manda Francisco para os inúteis da sociedade, os leprosos:
Vade ad locum cruciferorum et ibi pete. Manda ao lugar, não para a
casa, pois os leprosos não tinham mais que um esconderijo para se
abrigar, como se não fosse propriamente uma casa. Não eram mais
contados como população. Aliás, crucífero era um dos nomes dados
aos leprosos. É um termo de origem latina que literalmente significa
“portador da cruz”, da cruz da própria morte, por uma doença incurável e que exigia total isolamento da convivência social. Matava física e
socialmente, já que, ao serem enviados aos leprosários donde não poK. Esser (Gli Scritti di san Francesco d’Assisi, 1982, p. 602) dá notícias também de
uma “Ordem dos Crucíferos”, existente em Assis e dedicada aos leprosos. Seja indicando os leprosos, seja indicando quem a eles se dedica, o significado do envio não altera.
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dia mais sair, também perdiam todos os direitos sociais10. São os crucificados ou os mortos-vivos ambulantes, pregados à cruz da morte.
Há outro aspecto a ser observado aqui. O envio aos leprosos é, de
fato, uma orientação de Deus, como Francisco confessa no testamento: “Como estivesse em pecados, parecia-me sobremaneira amargo ver
leprosos. E o próprio Senhor me conduziu entre eles e fiz misericórdia com
eles. E afastando-me deles, aquilo que me parecia amargo se me converteu em doçura de alma e de corpo” (Test 1b-3a). Aqui a verdade brota,
ironicamente, da boca do irmão porteiro, assim como o “eis o homem” de João 19,5 brotou da boca de Pilatos. Têm razão os Fioretti
quando dizem que “Deus o fez falar assim”11. Sem querer, o porteiro
apontou para a grande verdade que ele mesmo não aceitava: o
vertedouro da vocação humana e franciscana emerge no ambiente da
exclusão social, no lado diametralmente oposto ao aspirado pelos muitos
frades habitantes daquele convento. A descoberta do modo humano
de ser, calcado na solidariedade e na misericórdia, características também do modo de ser de Deus, de quem somos feitos “à imagem e
semelhança”, se dá mediante a trans-descendência, isto é, a capacidade
de descer aos últimos e fazer-lhes misericórdia, dar-lhes o melhor de si,
o coração. O máximo de grandeza e de realização humana reside nesta
maneira de ser e não em conseguir galgar o topo da pirâmide social.
A lógica de Francisco é muito refinada, opondo claramente esta
parte à parte anterior e, desse modo, com mãos de luva, dar um tapa
de admoestação aos frades que caíram na tentação da grandeza e do
Quando alguém era identificado com lepra, era chamado o sacerdote à sua casa. Este
rezava as exéquias fúnebres, colocava cinza na cabeça e, a seguir, era levado por outros até
próximo de um leprosário de não podia mais retornar à convivência social. Por isso
“morto-vivo”. ROMERO GARCÍA, F. M., na sua tese de doutorado com o título
“videre leprosos” (1989) descreve pormenorizadamente este rito religioso realizado por
um sacerdote.
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Todavia o contexto da frase nos Fioretti é totalmente outro e, portanto também seu
sentido. Aqui vale apenas enquanto frase construída com os mesmos caracteres.
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poder, talvez a pior, a mais sutil e mais profunda tentação humana,
quase sempre imperceptível, uma “tentação persistente” como ele anota na paráfrase do Pai Nosso12. Veremos abaixo como os Fioretti alteram completamente a história e a conclusão, reconfigurando o modo
de ser franciscano.
d) A conclusão
Embora breve, esta parte merece ser observada com atenção. Seu
papel é explicitar o ponto de chegada da segunda parte. Acrescenta
poucos aspectos novos, mas traz à tona os inerentes.
A mudança de estilo é evidente: “Digo-te que, se eu tiver paciência
e não ficar perturbado, nisto está a verdadeira alegria, a verdadeira virtude e a salvação da alma” (v. 15). Parece serem três os elementos de
destaque:
“Se eu tiver paciência...”. Não se pode esquecer que o autor é Francisco. Quando jovem, no período da conversão, foi expulso da região
como diz Celano (1Cel 13,6)13. Também já havia realizado a experiência de convivência com os leprosos que lhe abriram os olhos para a
nova maneira de ser pessoa humana e de ser cristão. A sociedade o
considerava, por isso, um louco (1Cel 11,2; LTC 17,4). Até na oração
da conversão, Francisco pede a Deus “juízo, bom senso”14, pois havia
muitos que o retinham como demente.
12
“Não nos deixeis cair em tentação: oculta ou manifesta, repentina ou persistente” (PN 9).
Para uma descrição mais pormenorizada deste processo de expulsão da família e da
cidade de Assis, ler os parágrafos 18, 19 e 20 da Legenda dos três companheiros.
13
A maioria dos tradutores tem dificuldade de traduzir “senno”, da oração de Francisco,
originalmente em italiano, língua onde o primeiro sentido é “bom senso”, juízo, no
sentido de ter a cabeça no lugar, ser uma pessoa com bom raciocínio, justamente não
leva em conta o fato de que a oração foi composta no momento em que Francisco, pela
sua radicalidade de opção a muitos dava a impressão de haver perdido o juízo. Ou será
que é desonroso ter um santo que, em certo período da vida, foi julgado, impropriamente, louco?
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Ora, para suportar essa exclusão social, necessita-se de muita “paciência”. Isto é, de muita capacidade de compreensão da reação “normal”
da maioria do povo diante de alguém que assume uma postura totalmente inusitada, mesmo se profundamente evangélica. O que faz e
como faz está fora dos parâmetros normais. É mais fácil taxá-lo de
louco do que compreendê-lo. Por isso, Francisco usa a palavra “paciência” no sentido de capacidade de suportar, força de levar a carga de desprezo sem se deixar perturbar por esse julgamento de exclusão social. É muito
exigente esta postura. Frei Lázaro Iriarte, ainda na década de 70 do século
passado, disse que os frades sustentaram uma luta inglória durante séculos,
por tentar ser pobres, mas sem ter a coragem de ser “menores”. Ser menor,
socialmente, é também considerado sem valor pela sociedade. Isso é muito mais exigente do que suportar ofensas, fome, frio e outras privações.
Fazer esta opção de vida, que foi a de Jesus Cristo, morto como criminoso
e malfeitor, fora dos muros da cidade, no mais terrível dos modos possíveis, a crucificação, requer uma capacidade, uma força inimaginável. É
que todos nós, seres humanos, necessitamos, psicologicamente, de um
mínimo de reconhecimento social. A proposta de Francisco supõe
abdicar também dela; sem nenhuma propriedade mesmo. É o
despojamento total como está expresso mediante as três citações evangélicas15 no capítulo I da Regra não Bulada, primeira redação escrita
do projeto de vida dos Irmãos Menores: desfazer-se dos bens, abdicar
da defesa da própria vida e, por terceiro, renunciar à família, quer dizer, ao apoio e segurança social. No tempo de Jesus, quando ele colocou essas condições para segui-lo, a família exercia esse papel, já que
não havia o estado de direito como hoje.
“E não ficar perturbado”. O texto original latino se expressa dessa
forma: “Et non fuero motus”, o que poderia ser traduzido por “não
As três citações da RnB 1, 1-4 são: renúncia aos bens (Mt 19,21; renegar-se a si
mesmo e tomar a cruz (Mt 16,24); e “odiar” pai e mãe ... e sua própria vida (Lc 14,26).
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estar alterado”. A versão brasileira preferiu “não ficar perturbado”. Tudo
bem. A perturbação é a que confunde o raciocínio. O discernimento
pode ficar perturbado pelo sentimento de raiva com a reação dos outros ou pelo sentimento de inveja (inconsciente até) em querer estar
no lugar dos outros, pelo sentimento de inconformidade por não mais
gozar de prestígio, pelo autodesprezo por ver-se relegado na história.
Manter-se sereno nessa posição de exclusão e carregar a cruz da exclusão da parte de quem nos julga inúteis, incômodos, perigosos, desajuizados, é muito exigente, requer muita misericórdia para consigo e para
com os fazedores da história. Então o “ir aos leprosos”, à exclusão,
deve sempre ser acompanhado da “paciência”, no sentido de muita
coragem e força, e da “não perturbação”. Jesus Cristo, diz Lucas (9,51),
tomou a firme decisão de ir a Jerusalém, expressão que Shoeckel, coordenador dos comentários da “Bíblia do Peregrino”, diz que não significa “enrijecer a face”, como em Is 50,7. A RnB 9,5 assume literalmente esta visão de Jesus Cristo, como alguém capaz de enfrentar qualquer coisa, inclusive a perda da própria vida na obediência ao Pai e à
necessidade dos irmãos que, aliás, são sinônimas.
“Nisto está a verdadeira alegria”. A autêntica realização humana,
aquela que nos torna semelhantes a Deus, aquela que nos dá a satisfação de estar dentro do modo de ser e julgar de Deus, obedientes ao seu
dinamismo de amor, é esta. Quando alguém consegue passar aos excluídos e lá permanecer na serenidade alcança, segundo o pensar de
Francisco, o máximo que um ser humano pode atingir e fruir por toda
a eternidade. Todas as demais conquistas deste mundo são voláteis,
perecerão; permanecerá apenas a grandeza do coração conferida por
este passo. Sentir-se neste processo contínuo e constante alegra e realiza. É o bem, todo o bem, o sumo bem!
“...e a verdadeira virtude”. Etimologicamente virtude significa “força”, energia. Viver segundo o parâmetro de vida acima mencionado
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DA VERDADEIRA À PERFEITA ALEGRIA...
revela a existência de uma grande energia. De fato, a identificação com
a fonte da energia (Deus) torna forte o fraco. Todos os que fazem
experiência de Deus sentem uma energia incrível. Francisco já a
vivenciara, há tempo. Pode, por isso, evocá-la aqui. É uma força que
aparentemente é passiva, mas é uma passividade transformadora, qual
sal que se deixa derreter, mas que repassa neste mesmo ato todo o seu
sabor a tudo quanto entra em contato com ele. A capacidade de descer
aos últimos, ser um deles, por opção, transforma até o “amargo em
doçura da alma e do corpo”.
“... e a salvação da alma”. Esta é a conclusão da conclusão. A verdadeira alegria e a verdadeira virtude são simultaneamente a “salvação da
alma”. Esta expressão pode ser entendida, tanto linearmente como a
salvação da alma para a vida eterna como se expressa a linguagem popular, quanto o resgate da verdadeira identidade (alma) da pessoa humana, já aqui nesta vida terrena. Em outras palavras, o modo verdadeiramente humano de ser que Deus projetou para toda a humanidade é este “fazer misericórdia”, na pura gratuidade e na minoridade, a
todos indistintamente, a começar pelos últimos.
Para encerrar esta seção, apenas um aperitivo do que vai ser constatado mais abaixo: nenhum apelo ao ascetismo moral de padecer sofrimentos físicos e morais, injúrias e escárnios, como se o máximo da
realização humana consistisse em “vencer-se a si mesmo”. Não há na
parábola nenhum autocentramento, mas apenas altruísmo em relação
a si na dedicação aos últimos e compreensão misericordiosa para com
quem rejeita e exclui.
2 A Perfeita Alegria
Como dissemos acima, esse texto da “Perfeita Alegria” formando
o capítulo oitavo dos Fioretti, era o único texto conhecido, até as priScintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 149-180, jul./dez. 2010
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ALDIR CROCOLI
meiras décadas do século XX. Por isso ele fez história. Está gravado no
subconsciente de muitas pessoas e ninguém duvidava que não fosse
realmente de Francisco. B. Bughetti encontrou outra versão e a divulgou em 1930. É o texto que acabamos de analisar. Difere muito deste
dos Fioretti, alvo de nossa atenção a partir de agora. Também aqui,
para facilitar, reportaremos este texto, ao lado do anterior, mesmo se o
repetimos. Será mais fácil observá-lo e compará-lo. Já o apresentamos
conforme sua estrutura, quase idêntica ao anterior.
A Verdadeira Alegria
Francisco)
A Perfeita Alegria (Fioretti)
(s.
O mesmo (Frei Leonardo)
contou na mesma ocasião que o
bem-aventurado Francisco, em
Santa Maria, chamou a Frei Leão
e disse: 2 “Frei Leão, escreve”.
Este respondeu: “Já estou
pronto”. 3 “Escreve – disse – o
que é a verdadeira alegria”.
1
4
Vem um mensageiro e diz que
todos os mestres de Paris entraram
na Ordem: escreve que isto não é a
verdadeira alegria. 5 Igualmente,
que (entraram na Ordem) todos os
prelados ultramontanos, arcebispos
e bispos, o rei da França e o da
Inglaterra: escreve que isto não é a
verdadeira alegria. 6 Do mesmo
modo, que os meus irmãos foram
para o meio dos infiéis e os
converteram todos à fé; e, além
disso, que eu tenho tanta graça de
Deus que curo os enfermos e faço
muitos milagres: digo-te que em
tudo isso não está a verdadeira
alegria.
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DA VERDADEIRA À PERFEITA ALEGRIA...
Vindo uma vez São Francisco de
Perusa para Santa Maria dos
Anjos com Frei Leão em tempo
de inverno, e como o
grandíssimo frio fortemente o
atormentasse, chamou Frei Leão,
o qual ia mais à frente, e disse
assim: “Irmão Leão, ainda que o
frade menor desse na terra inteira
grande exemplo de santidade e de
boa edificação, escreve, todavia, e
nota diligentemente que nisso
não está a perfeita alegria”.
E andando um pouco mais,
chama pela segunda vez: “Ó
irmão Leão, ainda que o frade
menor desse vista aos cegos,
curasse os paralíticos, expulsasse
os demônios, fizesse surdos
ouvirem e andarem os coxos,
falarem os mudos e, mais ainda,
ressuscitasse mortos de quatro
dias, escreve que nisto não está a
perfeita alegria”.
E andando um pouco, São
Francisco gritou com força: “Ó
irmão Leão, se o frade menor
soubesse todas as línguas e todas
as ciências e todas as escrituras e
soubesse profetizar e revelar não
só as coisas futuras, mas até
mesmo os segredos das
consciências e dos espíritos,
escreve que não está nisso a
perfeita alegria”.
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“Mas, o que é a verdadeira
alegria?”
7
Volto de Perúgia e chego aqui na
calada da noite; e é tempo de
inverno, cheio de lama e tão frio
que gotas de água se congelam na
extremidade da túnica e (me)
batem sempre nas pernas, e o
sangue jorra de tais feridas. 9 E
totalmente na lama, no frio e no
gelo, chego à porta e, depois de eu
ter batido e chamado por muito
tempo, vem um irmão e pergunta:
Quem és? Eu respondo: Frei
Francisco. 10 E ele diz: ‘Vai-te
embora! Não é hora decente de
ficar andando; não entrarás. 11 E,
como insisto, de novo ele responde:
Vai-te embora! Tu és simples e
idiota. De maneira alguma serás
acolhido junto a nós; somos tantos e
tais que não precisamos de ti. 12 E
eu novamente me coloco de pé
diante da porta e digo: Por amor
de Deus, acolhei-me por esta noite.
13
E ele responde: ‘Não o farei. 14
Vai ao lugar dos crucíferos e pede
lá.
8
170
Andando um pouco além, São
Francisco chama ainda com força:
“Ó irmão Leão, ovelhinha de
Deus, ainda que o frade menor
falasse com língua de anjo e
soubesse o curso das estrelas e as
virtudes das ervas; e lhe fossem
revelados todos os tesouros da
terra e conhecesse as virtudes dos
pássaros e dos peixes e de todos
os animais e dos homens e das
árvores e das pedras e das raízes e
das águas, escreve que não está
nisso a perfeita alegria”.
E caminhando um pouco, São
Francisco chamou em alta voz:
“Ó irmão Leão, ainda que o frade
menor soubesse pregar tão bem
que convertesse todos os infiéis à
fé cristã, escreve que não está
nisso a perfeita alegria”.
E durando este modo de falar
pelo espaço de duas milhas, Frei
Leão, com grande admiração,
perguntou-lhe e disse: “Pai, peçote, da parte de Deus, que me
digas onde está a perfeita alegria”.
E São Francisco assim lhe
respondeu: “Quando chegarmos a
Santa Maria dos Anjos,
inteiramente molhados pela
chuva e transidos de frio, cheios
de lama e aflitos de fome, e
batermos à porta do convento, e
o porteiro chegar irritado e disser:
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DA VERDADEIRA À PERFEITA ALEGRIA...
Digo-te que, se eu tiver paciência
e não ficar perturbado, nisto está a
verdadeira alegria e a verdadeira
virtude e a salvação da alma”.
15
‘Quem são vocês’; e nós
dissermos: ‘Somos dois dos vossos
irmãos’, e ele disser: ‘Não dizem
a verdade; são dois vagabundos
que andam enganando o mundo
e roubando as esmolas dos
pobres; fora daqui’; e não nos
abrir e deixar-nos estar ao tempo,
à neve e à chuva com frio e fome
até à noite; então, se suportarmos
tal injúria e tal crueldade, tantos
maus tratos, prazenteiramente,
sem nos perturbarmos e sem
murmurarmos contra ele e
pensarmos humildemente e
caritativamente que o porteiro
verdadeiramente nos tinha
reconhecido e que Deus o fez
falar contra nós: ó irmão Leão,
escreve que nisto está a perfeita
alegria.
E se perseverarmos a bater e ele
sair furioso e como a importunos
malandros nos expulsar com
vilanias e bofetadas dizendo:
‘Fora daqui, ladrõezinhos vis, vão
para o hospital, porque aqui
ninguém lhes dará comida nem
cama’; se suportarmos isso
pacientemente e com alegria e de
bom coração, ó irmão Leão,
escreve que nisso está a perfeita
alegria.
E ainda se constrangidos pela
fome e pelo frio e pela noite,
batermos mais e chamarmos e
pedirmos pelo amor de Deus
com muitas lágrimas que nos
abra a porta e nos deixe entrar, e
se ele mais escandalizado disser:
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‘Vagabundos importunos, pagarlhes-ei como merecem': e sair
com um bastão nodoso e nos
agarrar pelo capuz e nos atirar ao
chão e nos arrastar pela neve e
nos bater com o pau de nó em
nó: se suportarmos todas estas
coisas pacientemente e com
alegria, pensando nos sofrimentos
de Cristo bendito, os quais
devemos suportar por seu amor;
ó irmão Leão, escreve que aí e
nisso está a perfeita alegria, e
ouve, pois, a conclusão, irmão
Leão.
Acima de todas as graças e todos
os dons do Espírito Santo, os
quais Cristo concede aos amigos,
está o de vencer-se a si mesmo, e
voluntariamente pelo amor
suportar trabalhos, injúrias,
opróbrios e desprezos, porque de
todos os outros dons de Deus
não nos podemos gloriar por não
serem nossos, mas de Deus, do
que diz o Apóstolo: ‘Que tens tu
que não o hajas recebido de
Deus? E se dele o recebeste, por
que te gloriares como se o tivesses
de ti?’ Mas na cruz da tribulação
de cada aflição nós nos podemos
gloriar, porque isso é nosso e
assim diz o Apóstolo: ‘Não me
quero gloriar, senão na cruz de
nosso Senhor Jesus Cristo’”. Ao
qual sejam dadas honra e glória
in secula seculorum. Amém.
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DA VERDADEIRA À PERFEITA ALEGRIA...
Como nosso objetivo nesta parte é mostrar a transformação sofrida pelo texto de Francisco no livro dos Fioretti, mais que analisar propriamente este texto, nós o vamos comparando com o anterior e tentando evidenciar as diferenças, mostrando as implicações ou consequências
de tais alterações.
1) A parábola contada por Francisco fala sempre em “Verdadeira”16 Alegria. É um conceito ligado à verdade. E a verdade é correspondência ao ser. Está, pois, relacionada com a dimensão ontológica. Os
filósofos dizem que o “bom, o verdadeiro e o belo” se correspondem.
Já nos Fioretti, a alegria é qualificada somente com o adjetivo
“perfeita”. Trata sempre de “perfeita alegria” O contexto do escrito leva
a entender que essa é uma conquista de ordem moral, no campo do
comportamento, da qualidade das ações e não do ser. É uma mudança
muito significativa.
17
2) No texto da “Verdadeira Alegria”, o personagem central é Francisco. Francisco narra para Frei Leão que faz o papel de simples secretário, mas que não participa propriamente da história. Veja-se, por exemplo, quando chega à porta do convento em Santa Maria dos Anjos, à
pergunta do irmão do lado de dentro da porta: Quem és? A resposta é:
“Frei Francisco”. Francisco é o fundador do movimento. Ele é a pesO leitor atento poderá encontrar na primeira edição das Fontes Franciscanas e
Clarianas, verso 3, o adjetivo “perfeita” alegria. Contudo foi um puro engano, já corrigido na segunda edição (2009?). A edição crítica latina sempre emprega o mesmo
adjetivo “vera” nas seis menções que o texto faz de alegria.
16
Além disso, é interessante perceber como a forte influência do texto dos Fioretti levou
os tradutores a intitular o texto original de “perfeita alegria”. Embora no título da edição
brasileira encontremos “A verdadeira e perfeita Alegria”, nas abreviações oficiais para o
português (cf. página 8 das Fontes) o texto de Francisco, que nunca menciona “perfeita” alegria, recebeu como abreviação “PA”, de Perfeita Alegria. Já Lucas Wadding, no
século XVII o intitulou “Da Verdadeira e Perfeita Alegria”. E é assim que ele é abreviado
na edição crítica de K. Esser (cf. ESSER, K. Gli Scritti di San Francesco d’Assisi. Padova:
Messaggero, 1982, p. 601).
17
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soa-símbolo da proposta de vida que estão vivendo. Pedro Maranesi,
por isso, chega até a dizer que se trata de um texto autobiográfico18.
Já nos Fioretti a resposta é “somos dois dos vossos irmãos”, quer
dizer, a pessoa de Francisco nada tem a ver com a estória. Esta mudança de Francisco para dois irmãos protagonistas tira toda a gravidade do
fato. O porteiro está apenas agindo assim como agiria com quaisquer
outros confrades. Mais adiante, quando dizem que o porteiro os havia
reconhecido, deixam entender que os reconheceu como seus irmãos
sim, mas entre eles não estaria Francisco, a pessoa emblemática por
excelência.
3) Observe-se que no texto original o protagonista está em Santa
Maria dos Anjos e relata um fato atual, presente. Mesmo se na segunda parte o texto conta “Volto de Perúgia e chego aqui...” é apenas o
estilo deste tipo parábola em forma de estória. De fato, todo o texto
está construído no presente do indicativo (Tu és, vai-te embora, vai ao
lugar dos crucíferos...) para dizer que a história descrita é real, está em
ato, acontecendo realmente ali na Porciúncula, também lugar símbolo
da opção pela minoridade, próxima dos leprosários.
Nos Fioretti, diversamente, Francisco e Leão caminham por duas
milhas dialogando sobre situações hipotéticas de onde “não estaria” a
Em minha opinião, Maranesi exagera com semelhante posição. O que o texto oferece
de histórico é a confissão de um rompimento entre Francisco e o grupo dos frades
doutos, vibrantes com o “desenvolvimento triunfalista” da Ordem. Mas o texto nada
diz da vida de Francisco. Tudo é parábola. Aliás, esse mesmo autor, no belíssimo livro
sobre o confronto crítico do Testamento com as biografias a respeito no lugar e papel
dos leprosos no processo de conversão e na vida de Francisco, também entende que o
texto ajudou a Francisco reencontrar o “sentido último de suas opções e da sua posição
de marginalizado” (p. 297). Creio que isso advirá com a experiência do Alverne, não
com esta reflexão da parábola. Penso que o autor não valoriza suficientemente a primeira parte do texto e se centra demasiado na pessoa de Francisco, sem dar o devido peso
ao contexto da Ordem, que estava cedendo à tentação do “fermento dos fariseus”, isto
é, neste caso, à segurança do poder.
18
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DA VERDADEIRA À PERFEITA ALEGRIA...
perfeita alegria. Não estão na Porciúncula, mas estão no caminho de
retorno de Perúgia (“Quando chegarmos a Santa Maria dos Anjos”),
também levantando hipóteses de algo que eventualmente “poderia
ocorrer”. Os verbos estão no futuro condicional: Se batermos, se dissermos, se ele nos agarrar pelo capuz, se ele disser ... No texto original,
ao invés, a parábola retrata uma realidade concreta.
4) No texto original se encontram muitos nomes emblemáticos
essenciais para a compreensão da parábola, tais como: mensageiro, Francisco (tanto como o protagonista da parábola, quanto como quem
realiza os milagres por sua santidade), Mestres de Paris, prelados, bispos, arcebispos, reis da França e da Inglaterra. Como já vimos, todos
esses nomes denotam situações de poder na tríplice dimensão: o poder
da ciência, o poder político, o poder religioso, o poder sagrado.
Nos Fioretti desaparecem todos esses nomes característicos. São
substituídos por situações hipotéticas que desviam o foco da questão
que Francisco abordava na sua parábola. Os Fioretti falam genericamente, no condicional: se o frade menor desse exemplo de santidade,
se fizesse muitos milagres, se conhecesse os segredos das criaturas e das
consciências... Por isso, podem ficar falando pelo espaço de duas milhas sem esgotar o assunto, apesar de explicitar apenas uma hipótese a
mais que as quatro situações nomeadas por Francisco.
5) No texto original da Verdadeira Alegria, o irmão porteiro, ironicamente, reenvia Francisco aos crucíferos que lhe converteram “o
amargo em doçura”, isto é, lhe revelaram sua nova visão de mundo, de
pessoa humana e de Jesus Cristo. Foi descendo a estes últimos da sociedade, considerados mortos-vivos, que aconteceu a grande descoberta
de Deus e dos novos valores que ele abraçou. Esta frase, porque incompreensível na nova reformulação do texto, é substituída por “vão
para o hospital”, cujo sentido na Idade Média era de albergue ou hotel.
Tal atitude significa que, hipoteticamente, os dois frades não são aceiScintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 149-180, jul./dez. 2010
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tos no convento simplesmente por serem considerados estranhos ou
por não serem pessoas honestas, como o texto irá apresentar a seguir.
6) “Tu és simples e idiota... Nós somos tantos e tais que não precisamos de ti”. No texto original a razão da não acolhida é de que Francisco nada tem a oferecer à Ordem: é um simples, ignorante e analfabeto.
Seria, antes, motivo de vergonha para a Ordem, constituída de pessoas
de grande importância social. São ali apresentadas razões daqueles que
moram dentro do convento (“não é hora decente de chegar” – os frades estão repousando; não devem ser incomodados –, “somos tantos e
tais...”). É a condição dos que moram dentro do convento, ou melhor, do mosteiro, o verdadeiro empecilho para Francisco entrar.
Já nos Fioretti o motivo da não acolhida é totalmente outro e está
nos que chegam pedindo acolhida. Nas três vezes que o porteiro nega
ingresso aos dois frades apresenta razões éticas: “Não dizem a verdade
(= mentem); são dois vagabundos que andam enganando (falsidade) o
mundo e roubando (cometem crimes) as esmolas dos pobres.”; “Fora
daqui ladrõezinhos vis...”; “Vagabundos importunos”. Os dois irmãos
são avaliados pelas suas supostas ações morais. Há assim um total deslocamento do critério de avaliação: no texto original as razões vêm dos
que estão dentro do mosteiro; no texto alterado dos Fioretti o motivo
é a moralidade dos que desejam entrar.
7) Na Verdadeira Alegria há uma conclusão: ir aos crucíferos, ou
melhor, retornar para lá. O que segue pode ser visto como explicação
ou justificativa da conclusão. A ida aos leprosos, vivida na “paciência e
sem perturbação”, é a verdadeira alegria, a verdadeira virtude e a salvação da alma. Este é o ponto de convergência do texto.
Mas nos Fioretti a conclusão é repetida três vezes para não deixar
dúvidas: viver “prazenteiramente, pacientemente e com alegria e de
bom coração” as contrariedades da vida. E na justificativa ou explicação é recordado o exemplo de Cristo que também sofreu injúrias e
176
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DA VERDADEIRA À PERFEITA ALEGRIA...
ofensas. Mas enquanto no texto original se propõe retomar o itinerário de autoesvaziamento de Cristo, que se encarnou por solidariedade
misericordiosa, aqui são recordados os sofrimentos externos de Cristo, através de longa citação de Paulo, justamente porque o núcleo da
conclusão é o “vencer-se a si mesmo”. O ponto de chegada do crescimento humano aqui não está centrado no amor ao outro, como é da
essência de Deus que é amor e, portanto, também do ser humano,
feito à sua imagem e semelhança. Para os Fioretti o ponto de convergência da caminhada de crescimento humano é uma espécie de
autossatisfação pelo autodomínio nas adversidades. Há, pode-se perceber claramente, uma diferença fundamental entre as duas posições.
8) Por fim, talvez, a diferença mais marcante: o modo de ver Deus,
espelhado nas duas versões. No texto original, o nome de Deus é lembrado, como se saísse da boca de um pobre. Nunca se diz que “Deus o
fez falar assim contra nós”. O que fala alto nesta parábola de Francisco
é o antropológico profundo, a dimensão ontológica da pessoa e da fé
encarnada. E aí o que vale é a identificação com o dinamismo divino e
não o uso abundante de citações bíblicas. Por isso, pode-se dizer que
no texto original há uma visão encarnada da fé, vista como modo de
Deus ser (assim como nas parábolas do Bom Samaritano (Lc 10,25-37) e
do juízo final (Mt 25,31ss), onde Deus propriamente não é evocado, mas
identificado com o modo de ser do samaritano ou de quem acolhe o
necessitado). De fato, este é o modo de ser do Deus de Jesus Cristo, que
ouve o clamor do povo, vê seu sofrimento e desce para o livrar e conduzir
à abundância de vida (cf. Ex 3,7ss). Este é seu nome, a identidade pela qual
quer ser reconhecido pelos tempos afora. São João vai dizer que “Deus é
amor” (1Jo 4,8), isto é, alguém essencialmente voltado para fora, que vai
ao encontro do mais fraco e necessitado.
Nos Fioretti, ao contrário, Deus é citado sete vezes, Cristo, três
vezes, e o Espírito Santo, uma vez. Parece, à primeira vista, um texto
mais espiritual. Contudo, é de uma espiritualidade exterior e, talvez,
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até tendenciosa. Como o autor pode se atrever a dizer que “Deus o fez
falar assim contra nós”, se no fundo está buscando uma justificativa
religiosa para seu modo de pensar? Não é esta uma maneira de manipular Deus, que a Bíblia tanto combate? Deus está sendo usado para
justificar uma antropologia estóica, porquanto não lhe importa uma
identificação interior com o dinamismo de Deus que desce ao encontro das pessoas, as mais marginalizadas, e sim o autodomínio de si.
Interessam aos Fioretti um estoicismo de fachada religiosa. No “vencer-se a si mesmo” não estaria embutida uma espécie de autosatisfação,
um comprazer-se com o feito de ser capaz de autodomínio? Essa
autosatisfação não estaria na mesma perspectiva de poder que Francisco tanto quer combater? Eu “apanho, mas tenho o orgulho e honra de
me autocontrolar”. Não há um esvaziamento pleno de si como o proposto pelo texto original: estar entre os mortos-vivos, ser considerado
um morto ambulante como os leprosos. Os Fioretti, na realidade,
apontam mais, como já dissemos, para um estoicismo de fundo religioso do que para uma visão autêntica da fé cristã e de antropologia
cristã. Essa é a diferença mais profunda entre os textos, que distam
quase dois séculos um do outro no tempo e, certamente, muitos quilômetros no espaço.
Esses elementos levantados tornam clara a evolução (pode-se chamar a isso de evolução?) ou distorção da parábola de Francisco.
Conclusão
Estas oito diferenças são suficientes para dar uma idéia da enorme
distância existente entre o texto que aqui chamamos de original (surgido em torno de 1224) com o texto de Frei Hugolino de Monteggiorgio
escrito por volta de 1336 e, 60 anos mais tarde, em 1390, traduzido
para o italiano com enorme sucesso popular. Foi traduzido em prati-
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DA VERDADEIRA À PERFEITA ALEGRIA...
camente todas as línguas mais conhecidas. E durante mais de 500 anos
se acreditou ser autenticamente de Francisco. Como se explica este
fenômeno? Talvez a justificação possa ser atribuída a duas circunstâncias precisas. É o que se deseja dizer à guisa de conclusão geral.
A primeira é devida à grande sintonia ou consonância entre o texto
dos Actus com a mentalidade do tempo. A Igreja em geral pensava desse
modo como os Fioretti. Tinha a visão de que o seguimento de Cristo
passava pelo caminho da mortificação, da ascese, da penitência físico-corporal. Por isso Tomás de Celano, Boaventura e demais biógrafos medievais de Francisco o apresentam como homem penitente. A equação era
esta: quanto mais penitência alguém faz, de maior santidade é detentor.
Mostrar o fundador como alguém que dormia pouco, que nunca satisfazia completamente a fome, que aguentava o frio mais rígido, que tolerava
as maiores agressões morais ou físicas... era o método para evidenciar sua
santidade. Os autores dos Actus e dos Fioretti, pertencendo a este modo de
pensar, modificam uma parábola para que ela confirme este horizonte de
compreensão. E obtiveram muito êxito.
Em segundo lugar, é possível afirmar que a parábola original não
foi compreendida, porque também não era suficientemente entendida
a proposta de vida de Francisco. Assim como havia um rompimento
(rachadura) entre Francisco e um grande número de frades, sobretudo
os mais instruídos – fator, aliás, do surgimento desta parábola – também esta estória, criada com muita perspicácia por Francisco para alertar
seus confrades a respeito de um vírus que estava se disseminando na
Fraternidade, não foi captada na sua intenção mais profunda. De fato,
o Poverello era portador de um projeto alternativo de vida. Sem passar
pelo túnel da convivência com os maiores excluídos de seu tempo, os
leprosos, não nasce novo sol em Assis. Nasce um sol adaptado às circunstâncias e, por isso mesmo, alterado. Para tal fim, são modificadas
palavras, omitidas frases ou nomes emblemáticos, acrescentadas con-
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clusões e citações bíblicas etc. de modo que se forme outro conjunto
harmônico em si mesmo e com o contexto cultural.
O que importa agora é ressaltar a mensagem da parábola original.
Esta poderia ser sintetizada desse modo: a Verdadeira Alegria, ou a
profunda realização humana, pode ser experimentada quando se consegue descer aos últimos, aos mais relegados da sociedade e ser seu
irmão, ser um deles. Feliz, bem-aventurado é quem consegue percorrer o caminho do esvaziamento e da autodecentração de si como Jesus
Cristo que, “sendo de condição divina, não se apegou zelosamente à
sua igualdade com Deus, mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a condição de escravo e fazendo-se obediente ao Pai até à morte de cruz. Por
isso seu nome foi exaltado acima de todo o nome”, isto é, experimentou a VERDADEIRA ALEGRIA da plenitude em Deus.
Referências
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MICCOLI, Giovanni. “Un’ esperienza cristiana tra vangelo e istituizione”,
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Christi” all’apologia della povertà. Spoleto: Centro Italiano di Studi
sul Medioevo, 1992, p. 5-40.
VAIANI, C. Teologia e Fonti Francescane. Milano: Biblioteca Francescana,
2006 p. 126-171.
VAN ASSELDONK, O. “La nostra única speranza nella croce del Signore
secondo gli scritti di Francesco d’Assisi”, em VV.AA. La Speranza.
Studi biblici-teologici e apporti del pensiero francescano. Roma:
Antonianum, 1984, p. 560-583.
180
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 149-180, jul./dez. 2010
OS ESPIRITUAIS, HOJE?
OS ESPIRITUAIS, HOJE?
Hermógenes Harada *
Introdução
O termo “espirituais”, nos estudos franciscanos, se refere a frades
menores e à luta interna dentro da sua Ordem a cerca do ideal da vida
franciscana, ocorrida no I século da origem e evolução do
Franciscanismo, na Idade Média.
“Hoje” sugere vagamente um modo de ser e pensar a nós referido,
cujo interesse é estudar as “questões franciscanas”1. Trata-se, pois, de
*
Publicação póstuma.
1
Nos estudos franciscanos, a expressão Questão franciscana indica várias questões referentes às primeiras biografias sobre São Francisco e seus primeiros companheiros. Diz
respeito a pesquisas crítico-historiográficas das fontes usadas nas primeiras biografias de
São Francisco e nas narrações que relatam os primórdios e a evolução do franciscanismo.
A “Questão franciscana” é o título que em 1902 S. Minocchi deu a um escrito que
pesquisava a datação de alguns documentos franciscanos do século XIII. A expressão
teve de imediato muita repercussão e sob esse título desencadeou discussões apaixonadas dos estudiosos das “coisas” franciscanas ao redor da historicidade dos “fatos” relatados pelos primeiros hagiógrafos de São Francisco e de seus primeiros companheiros. É
pois uma questão análoga a dos problemas referentes a Cristo histórico e Cristo da Fé
das primeiras comunidades cristãs, cujo testemunho é fonte para os nossos conhecimentos sobre Jesus e sua vida. Um nome famoso e apreciadíssimo no pioneirismo do
despertar dessa questão é Paul Sabatier (1858-1928). Cf. DESBONNETS, Th. “Avantpropos”, in: DESBONNETS; VORREUX, 1968, p. 14; cf. MENESTÒ, E. “La
‘questione francescana’ come problema filológico”, in: Francesco d’Assisi e il primo secolo
di storia francescana. Torino: Biblioteca Einadi, 1997, p. 117-143; cf. MANSELLI,
Raoul, “Paul Sabatier e la ‘questione francescana’” in: La “Questione Francescana” dal
Sabatier ad oggi, Atti del I Convegno Internazionale (Assisi, 18-20 de 10 de 1973),
Assis, 1974, p. 51-70.
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010
181
HERMÓGENES HARADA
acontecimentos e pessoas do ontem longínquo, cuja questão nos diz
respeito, por causa do nosso interesse, hoje. Esse interesse é científico e
espiritual. Mas se é inter-esse, o nosso interessar-se não nos satisfaz, se
permanecermos na indiferença e neutralidade mal engajada de curiosidade e satisfação da erudição cultural; ou na “inexistencialidade” de
um cientificismo, corretamente atrelado ao funcionalismo “acadêmico”, a um status quo do saber “objetivista” como consumo e exercício
de poder; nem no misticismo esteticista de um espiritualismo facilitado e cômodo, desencarnado. Se é ciência, a cientificidade na sua raiz
deve estar no toque da paixão da busca da verdade, em cujo estímulo
se abandona continuamente a terra firme do dogmatismo da certeza,
para se lançar na aventura da precisão da dúvida racional; se é
espiritualidade, deve estar exposta, corpo a corpo, ao confronto radical
com as vicissitudes, as mais prementes da existência humana, em cuja
interioridade abissal se dá o toque do Espírito, desse sopro vital da
liberdade dos filhos de Deus, que sopra onde lhe apraz, nos desinstalando
sempre de modo novo e sempre de novo de todo e qualquer apego e
fixação a o que quer que seja, para a disposição grata e cordial da possibilidade de seguir os acenos do Radical-Outro no encontro.
O encanto e o fascínio que “as questões franciscanas” despertam
em nós, hodiernos, parecem emanar da disposição aos estudos, sejam
quais forem as suas denominações, que estão no toque dessa
radicalização, seja na busca absoluta da paixão da dúvida na inquirição
científico-crítica ou na precisão e limpidez da recepção absoluta ao
sabor da gratuidade do encontro, na espiritualidade.
Os “espirituais” e suas posições e os acontecimentos do confronto
entre eles e as assim chamadas “comunidades” nos poderiam despertar
para uma questão sempre antiga e nova e hoje esquecida, acerca do serfranciscano.
182
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010
OS ESPIRITUAIS, HOJE?
No entanto, assim colocada a questão, o título e a sua explicação
soam como se fossem promessa e programa de um artigo de pesquisa
objetivo-historiográfica de interesse comum na área de estudos
franciscanos. Esses ares de “importância acadêmica” que o nosso título
pode insinuar camuflam e escondem o significado real do ponto de
interrogação que está no fim da formulação do título. É que a
interrogação não é a do questionamento da investigação nem da pesquisa
científico-objetiva, mas é a expressão desajeitada de uma grande
perplexidade, portanto é expressão de “desimportância”, para não dizer
limitação subjetivo-particular, que diz respeito à sensação de não saber
o que dizer e o que pensar, diante de um dos problemas mais intrigantes
das “questões franciscanas”: os espirituais2.
1 Os espirituais, um ponto de interrogação da perplexidade
Mas de que ponto de interrogação se pretende falar nessa perplexidade particular, subjetiva? Da interrogação, cujo ponto é o espiritual. Mas,
para podermos falar desse ponto de interrogação, falemos antes como preparação, dos assim chamados “espirituais”, na história da Ordem
Franciscana, no fim do I século da sua evolução como Franciscanismo3. É
Cf. Chi erano gli Spirituali, Atti del III Convegno Internazionale (Assisi, 16-18
ottobre 1975), Assis, 1976; NANTES, René de, Histoire des Spirituels dans l’Ordre de
Saint François. Paris, 1909; “Franciscains d’ Oc., Les Spirituels”, ca. 1280-1324 (Cahiers
de Fanjeaux 10), Toulouse,-Fanjeaux, 1975; BARONE, G. “Spirituali”, in: Dizionario
degli Institui di Perfezione. vol. VIII Saba-Spirituali, Roma: Edizioni Paoline, 1988, col.
2034-2040.
2
Dados, datas e fatos historiográficos e sua interpretação aqui relatados foram tirados
de: GRATIEN DE PARIS, Histoire de la Fondation et de l’évolution des frères mineurs au
XIII. Siècle. Bibliographie mise à jour par Mariano D’Alatri et Servus Gieben, Roma:
Istituto Storico dei Cappuccini, 1982; IRIARTE, L. História franciscana. tradução de
Adelar Rigo e Marcelino Carlos Dezen, Petrópolis: Vozes/Cefepal, 1985; MOORMAN,
J. A History of the Franciscan Order, from its origins to the year 1517. Chicago: Franciscan
Heraldpress, 1988; Dicionário franciscano. Petrópolis: Vozes/Cefepal, 1993;
HOLZAPFEL, H. Handbuch der Geschichte des Franziskanerordens. Freiburg i. Br.:
Herder, 1909.
3
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010
183
HERMÓGENES HARADA
que o ponto de interrogação da perplexidade particular e subjetiva está
entalado justamente no destinar-se desses “espirituais”, cujas lutas e vicissitudes dentro da Ordem e da sua reação são como um cano, por onde
entramos e nos entalamos, todos nós, hodiernos, porque voltar para trás
não podemos, mas ir para frente nesse encanamento é que não vai.
O termo “espirituais”4 designa frades menores que entre 1274, fim
do generalato de São Boaventura, e 1318, fim do movimento dos
espirituais como facção dentro da Ordem, portanto durante 44 anos,
no fim do primeiro e no início do segundo século do desenvolvimento da Ordem, integravam um movimento de volta ao caráter originário do carisma fundacional da Ordem, iniciada por São Francisco de
Assis, e lutavam pela sua manutenção como dever essencial da comunidade de toda a Ordem. Essa busca de restauração da Ordem tomou
a forma da exigência de renovação, contestação e resistência à maioria
dos frades menores, denominados “comunitários” ou simplesmente
“comunidades”, acusando-os de afastamento e relaxamento do ideal
originário dado por São Francisco. Esse grupo minoritário de renovadores se achava espalhado na Itália e na França meridional. Na Itália,
principalmente nas províncias de Úmbria, da Marca de Ancona e
Toscana. Na França, na Província de Provença. Os líderes espirituais
desse movimento de reação eram Angelo Clareno (†1337)5 na Marca
de Ancona, Ubertino de Casale (†1329)6 em Toscana e Pedro João de
Stanislao da Campagnola fala da possibilidade de constatar como historiador “a existência empírica, dentro de uma área geográfica de um grupo de frades menores, que
depois da metade do século XIII, contrastando com a evolução do movimento
franciscano, se con-formava a uma interpretação rigorosa e literal da Regra e do Testamento de Francisco (considerados indispensáveis uma e outro)...” (“Gli Spirituali Umbri”,
in: Chi erano gli Spirituali. Atti del III Convegno Internazionale (Assisi, 16-18 ottobre
1975), Assis, 1976, p. 75-105).
4
5
VON AUW, L. Angelo Clareno et les Spirituels italiens. Roma, 1979.
6
POTESTÀ, L. Storia ed escatologia in Ubertino da Casale. Roma, 1980.
184
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010
OS ESPIRITUAIS, HOJE?
Olivi (†1298)7 na Provença. Esse confronto entre os espirituais e a
comunidade ou os comunitários no interior da vida religiosa da Ordem Franciscana nesse período entre 1274 a 1318 é caracterizado como
“questão da pobreza” ou “luta pela pobreza”8.
Traçar mais em detalhes, com precisão, a história “verdadeira” desses espirituais e as vicissitudes que sofreram, é uma tarefa que exige
muita competência de exatidão e abrangência historiográfica. Pois os
dados e as suas interpretações acerca dos espirituais e dos comunitários
e de suas interações e reações chegam a nós já filtrados dentro das perspectivas dos interesses partidários de cada uma das facções correspondentes. Como frades menores, no entanto, mesmo divididos em facções, pertenciam ao organismo humano religioso denominado Ordem Franciscana, como seus membros vivos, cuja referência era São
Francisco de Assis. Por isso, os móveis que implicavam e constituíam
as impulsões das ações e reações de ambos os lados se objetavam como
nós intrincados de questões, onde se entrecruzavam diversas perspectivas de compreensão do todo do ser franciscano9. Aqui, não faremos
MANSELLI, R. La “Lectura super Apocalipsim” di Pietro di Giovanni Olivi. Richerche
sull’ escatologismo medievale, Roma, 1955; FLOOD, D. E. “Petrus Johannis Olivi.
Ein neues Bild des angeblichen spiritualen Führers”, in: Wissenschaft und Weisheit 34
(1971) 130-41.
7
Cf. Dalla “Sequela Christi” di Francesco d’Assisi all’Apologia della Povertà. Atti del
XVIII Convegno Internazionale, Assisi, 18-20 ottobre 1990, Centro Italiano di studi
sull’alto Medievo, Spoleto, 1992.
8
Em situando a sua pesquisa sobre os espirituais da Úmbria, Stanislao da Campagnola
nos chama a atenção para a necessidade de, mais do que definir os traços fundamentais
de um modelo geral dos espirituais, levar em conta os tempos, os lugares, as pessoas das
quais se fala. E explica: “seja porque não se podem vincular séries temporais e geográficas diferentes, colocando sob uma única divisa, fatos, elementos, episódios de um
período, por assim dizer, pré-espiritual e outros da maturidade, ou de uma fase, em
todo caso, diversa da história dos espirituais; seja porque problemas como aqueles,
relativos à apropriação dos fatos, elementos, testemunhos do primeiro período, em
novo contexto e em novo esquema interpretativo ou historiográfico, sempre mais
eivado de alusões joaquimistas e de responsabilidade escatológica, mudam de medida e
peso com o suceder-se e com o aguçar-se dos momentos da decadência “comunitária”
desaprovada e com as conseqüentes repressões e maus tratos sofridos pelas minorias
dissidentes e contestatórias” (op. cit. 74-75).
9
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010
185
HERMÓGENES HARADA
tentativa de traçar uma tal história, não somente por um tal empreendimento não pertencer ao tema propriamente de nossa exposição, mas
principalmente devido à nossa total incompetência para um tal tipo
de trabalho. Daremos, apenas de modo muito geral, alguns dados e
informações, aliás já bem conhecidos dos que estudam a história da
Ordem Franciscana, muitas vezes questionados e questionáveis sob o
ponto de vista da exatidão historiográfica, para podermos situar melhor a interrogação de perplexidade que queremos colocar mais tarde.
1.1 O que aconteceu por fim aos espirituais?
No confronto entre os espirituais e os comunitários entraram em
jogo vários pontos antagônicos, mas todas essas contraposições podem ser reduzidas à oposição básica entre a observância estrita “ad
litteram” da pobreza e a observância da pobreza no sentido mais lato,
conforme as interpretações dadas e propostas pela Santa Sé, através de
bulas e outros documentos correspondentes. A observância estrita da
pobreza exigia a aceitação da obrigatoriedade do Testamento de São
Francisco como pertencente à Regra. A observância lata da pobreza
considerava o Testamento somente como exortação e convite para
maior perfeição.
Essa luta meramente interna na Ordem franciscana é uma questão
muito antiga. Iniciou-se já no tempo de São Francisco, estava presente
na elaboração da Regra, continuou e tornou-se mais explícita depois
da sua morte, tomando uma forma de confronto no seio da Ordem
franciscana, que esboçava um movimento de um certo caráter partidário, mas que não chegava a ser sectário no sentido mais estrito. A luta
se tornou exacerbada, constituindo algo como duas facções dentro da
Ordem, que se degladiavam, após o generalato e a morte de São
Boaventura. No conflito entre essas duas facções, ao mesmo tempo
em que surgiam, tanto numa como na outra, manifestações de legíti186
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010
OS ESPIRITUAIS, HOJE?
ma preocupação e cuidado pelo espírito e ideal de São Francisco, vinham à fala inúmeras tendências político-religiosas, negligências, relaxamentos, idiosincrasias regionais, principalmente desavenças e lutas
pelo poder, ocultos no seio da Ordem dos Frades Menores. Essa luta
começou a inquietar as autoridades eclesiásticas, envolvê-las na preocupação e no cuidado pela sua integridade pastoral-política, na medida
em que as partes em litígio recorriam à Santa Sé para assegurar para si
a legitimidade de sua tese. Nessa busca de apoio das autoridades eclesiásticas, revezavam-se sucessos e reveses para ambas as partes, conforme
a posição tomada tanto pelos ministros gerais da Ordem como pelos
papas, diante das reivindicações dos espirituais. Da parte da Santa Sé, a
grande preocupação dos papas era manter a unidade e evitar a todo
custo o cisma no seio da Ordem dos frades menores. Em geral, a atitude das autoridades maiores, tanto dos gerais da Ordem como dos papas, era de aceitar as reivindicações justas dos espirituais, no que se
referia a abusos, negligências, relaxamentos introduzidos na Ordem,
de exigir reformas; mas ao mesmo tempo, de combater a tendência de
radicalismo fanático e separatista presente na insistência dos espirituais
de exigir para toda a comunidade da Ordem a observância estrita ad
litteram da pobreza.
Entrementes, a desavença entre os espirituais e os comunitários se
exacerbava cada vez mais, de tal sorte que os papas e os gerais da
Ordem começaram a sentir a necessidade urgente de pôr fim à divisão
e reconciliar as facções sob uma única observância comum, válida tanto aos espirituais como aos comunitários. Depois de várias tentativas
de apaziguamento, tanto da parte dos papas como dos ministros gerais
da Ordem, através de capítulos gerais e diversos documentos, foi oferecido aos frades menores um documento pontifício como proposta
de uma definitiva determinação para a observância regular comum.
Assim, o Papa Clemente V (1305-1314) promulgou no dia 6 de
maio de 1312, na última sessão do Concílio de Viena, a bula Exivi de
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010
187
HERMÓGENES HARADA
Paradiso10. A bula se destacava pela moderação e esforço de conciliação. Admoesta a corrigir os abusos cometidos contra a pobreza, exige
a seriedade em assumir a observância regular e propõe buscar a vida
religiosa franciscana segundo o espírito de São Francisco. Mostra benevolência no que diz respeito à busca da vida franciscana mais autêntica, como exigiam os espirituais, mas no que toca à observância estrita
ad litteram da pobreza, coloca como a medida comum a todos os
frades a pobreza segundo o espírito de São Francisco acolhida dentro
da compreensão determinada pelas inúmeras e sucessivas interpretações dadas nos documentos e fixada nas Constituições Gerais da Ordem. Para evitar a continuação e o recrudescimento das hostilidades
entre as facções que se manifestavam nas perseguições, até mesmo físicas dos comunitários aos espirituais em minoria, Clemente V providenciou que se estabelecessem condições para eliminar ressentimentos
e represálias. Assim, por exemplo, o provincial de Provença e 15
guardiões, que tinham tido comportamento demasiadamente rude e
duro contra os espirituais, foram demitidos e substituídos por superiores mais benevolentes e imparciais para com os espirituais. Desse
modo, sob o pontificado de Clemente V os espirituais se sentiram
protegidos contra a perseguição dos comunitários e se conformaram
com as determinações da bula Exivi de Paradiso. Tanto o Papa Clemente V como o Ministro Geral Gonçalves de Valboa (1304-1313)11
intensificavam a campanha de pacificação, convocando todos os membros da ordem a se unirem sob a observância regular proposta pela
“Exivi de Paradiso é um documento extenso, cheio de esperança para uma maior
reforma da Ordem. O papa provavelmente pensou que, se ele vigiasse os relaxamentos
e ordenasse certas reformas a serem executadas, a Ordem se tornaria mais unida e isso
atuaria com maior eficiência na obra que ele e seus predecessores esperavam dela. Mas
as divisões tinham se tornado por demais profundas para poderem ser sanadas facilmente com um golpe de caneta” (MOORMAN, J. op. cit. p. 204).
10
Ensinou como regente em Paris, mestre de Duns Scotus, escreveu importantes tratados filosóficos sob o nome Gonsalvus Hispanus.
11
188
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010
OS ESPIRITUAIS, HOJE?
bula Exivi de Paradiso, exigindo de todos os frades menores, comunitários e espirituais a submissão aos seus superiores, tanto provinciais
como Geral, combatendo todo e qualquer movimento de separação
ou cisma. Com a morte de Clemente V em 1314, sucedeu-lhe João
XXII (1316-1334)12. Com a morte do Ministro Geral Gonçalves de
Valboa (1304-1313) sucedeu-lhe Alexandre de Alessandria (1314-1315)
e a este, Miguel de Cesena (1316-1328). Tanto o novo papa como os
ministros gerais da Ordem continuaram a campanha de unificação e
pacificação, e pressionaram cada vez mais energicamente a submissão
dos espirituais com tendências separatistas aos superiores provinciais e
gerais, ao mesmo tempo em que pressionavam os comunitários a se
reformarem para uma vida religiosa franciscana mais autêntica, conforme indicada e recomendada na bula de Clemente V.
O novo Ministro Geral Miguel de Cesena trabalhou para que a
bula de Clemente V fosse seguida por todos os membros da Ordem.
Tentou acalmar a justa indignação dos espirituais contra os abusos dos
comunitários e sua perseguição movida por eles. O Provincial de
Provença, Etiene Alberti, em nome do ministro geral ofereceu aos
espirituais perdão por tudo que se passou. Mas estes se perguntavam:
perdoar o que, se o crime que eles cometeram não era outra coisa do
que querer viver mais autenticamente o ideal de São Francisco e, depois da bula de Clemente V, de praticar a Regra franciscana conforme
as determinações da bula Exivi de Pradiso. Recusaram pois a oferta do
perdão, protestando contra os comunitários que demoravam em executar as reformas indicadas por Clemente V.
João XXII, bem diferente de Clemente V, no caráter e no modo
de lidar com a autoridade, estava como Clemente V determinado a
manter a unidade da Ordem e restabelecer a concórdia entre espirituais
João XXII foi feito cardeal por Clemente V no ano de 1312. Seu nome de nascimento
é Jacques de Duèze.
12
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010
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HERMÓGENES HARADA
e comunitários. De natureza enérgica, autoritário, se mostrou desde o
início, à diferença do seu antecessor, pouco inclinado aos espirituais,
principalmente contra os mais radicais.
Entrementes, os comunitários consideravam que a morte do Papa
Clemente V e do Ministro Geral Gonçalves de Valboa anularam as
determinações e decisões tomadas em favor dos espirituais. Para a consternação dos espirituais, os superiores demitidos, devido a sua hostilidade exacerbada contra os espirituais, foram reintegrados nas suas funções anteriores. Indignados com essas e outras manobras dos comunitários, os espirituais do convento de Narbona e de Béziers recorreram
ao papa e com ajuda dos habitantes da cidade expulsaram os comunitários de seus conventos e recolocaram como superiores os guardiães
anteriores. Imediatamente um grande número de frades amigos da
mesma província e até mesmo da província vizinha de Aquitânia se
uniram aos “rebeldes” e constituíram uma fraternidade de 120 frades
em dois conventos13.
1.2 O fim dos espirituais
Esse acontecimento desencadeou novas hostilidades e um novo
processo contra os espirituais de Provença e da Itália. João XXII mandou vir à sua presença Ubertino de Casale, Ângelo Clareno e dois
outros representantes dos espirituais de Narbona para uma reunião,
exigindo explicações sobre diversos pontos em litígio. Pelo modo
Diz Gratien: “No capítulo provincial reunido em Carcassona (no fim de 1315 ou no
início de 1316), tudo isso que se fez ilegalmente foi ilegalmente confirmado. Na
custódia de Narbona foi colocado como superior Guilherme d’Astre, um dos adversários mais decididos dos espirituais. Dois dos superiores antigos, que contra todo o
direito tinham tomado parte no capítulo, foram designados como delegados da
Provença ao Capítulo Geral convocado em Nápoles para Pentecostes do ano seguinte
(27.05.1316)” (GRATIEN DE PARIS, op. cit. p. 487).
13
190
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010
OS ESPIRITUAIS, HOJE?
como recebeu as explicações destes e pelos atos que se seguiram, se
percebe que o papa já tinha a sua própria opinião formada sobre os
espirituais, e que tinha tomado partido pelos comunitários. Assim,
depois dessa audiência que se dá no fim do ano de 1316 ou no início
de 1317, Ângelo Clareno foi colocado na prisão. No dia 27 de abril de
1317, o pontífice convocou 62 dos mais agitados “rebeldes” espirituais à sua presença e mandou que os outros fossem dispersos em diferentes conventos da província. Ubertino de Casale, porém, não foi
convocado. Mas um certo frei Bernardo Délicieux (Dulcino), um inimigo ferrenho da inquisição e mais um outro frade, se ajuntaram voluntariamente aos acusados. Desses, frei Guilherme de Santo Amando, Geoffroy de Cornone, François Sanches e também Bernardo
Délicieux tomaram a palavra para se defenderem e reivindicarem o
direito de separar-se da Ordem dos frades menores e de fundar uma
nova ordem. João XXII os meteu numa prisão, e os restantes foram
colocados no convento de Avignon para serem vigiados até uma posterior determinação. Esta veio no dia 7 de outubro de 1317 com a
bula Quorumdam exigit com apelo “à obediência” religiosa. Dos 60
espirituais que no convento de Avignon aguardavam novas determinações sobre seu futuro, 25 resistiram. Depois de os interrogar de novo,
ao ver a sua decisão firme de não ceder, o ministro geral os entregou à
mercê da Inquisição14. Cinco desses 25 frades negaram insistentemente “o direito ao papa de poder modificar a observância da Regra que,
segundo eles, era o mesmo que o evangelho”. Foram condenados, 4
deles ao suplício e morte na fogueira e 1 à prisão perpétua. Segundo
Gratien de Paris, João XXII, antes de publicar a bula teria provavelmente conversado com Ubertino de Casale. Este vendo que o papa
não permitia aos espirituais de observar a Regra dos frades menores,
O inquisidor era frade e se chamava Miguel de Moine e era um dos guardiães
demitidos por Clemente V em 1313.
14
Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010
191
HERMÓGENES HARADA
longe da jurisdição dos superiores comunitários, percebeu que não
tinha chance de permanecer na Ordem e pediu ele mesmo a autorização de deixar a Ordem. No dia da publicação da bula Quorumdam
exigit (7 de outubro de 1317) Ubertino de Casale, esse defensor ardoroso dos espirituais, foi incorporado ao mosteiro beneditino de
Gembloux (na diocese de Liége)15.
Segundo Gratien de Paris, mesmo antes da publicação da bula
Exivi de Paradiso (1312), alguns dos espirituais de Toscana, perseguidos duramente pelos superiores dos comunitários, ocuparam vários
conventos; depois, em número de uns quarenta, fugiram para a Sicília
sob a condução de certo frei Henrique de Ceva, para escapar das censuras eclesiásticas. Foram acolhidos benevolamente por Frederico, rei da
Sicília. A bula Quorumdam exigit ainda não era a condenação expressa
dos espirituais, mas era um prenúncio. A condenação veio depois do
interrogatório dos 25 “rebeldes” de Narbona, na bula Sancta Romana
de 30 de dezembro de 1317. Nessa bula João XXII “condena e reprova
todos os espirituais da Itália, da Sicília, do Condado de Tolosa, de
Narbona e Provença, seja qual for a denominação sob a qual se escondem: Fraticelli, ou Irmãos da vida pobre16. E isto, apesar dos privilégios que eles pretendem ter obtido de Celestino V, privilégios aliás abolidos por Bonifácio VIII. Com eles são condenados os bizoques e os
béguines, que tinham se tornado seus adeptos e exigiam hábito da Ordem
Terceira”17. Os espirituais de Toscana, refugiados em Sicília ao redor
de Henrique de Ceva estavam englobados nessa condenação. Mas João
GRATIEN DE PARIS, op. cit., p. 493, nota 31. Segundo Holzapfel, não sabemos se
foi efetuada a incorporação. Provavelmente não se deu a entrada de Ubertino na
Ordem beneditina. Por ocasião do seu aparecimento posterior, Ubertino é chamado de
ex-minorita, mas não ex-beneditino (cf. op. cit. p. 64).
15
Quanto à denominação Fraticelli cf. GRATIEN DE PARIS (op. cit. p. 497,
nota 39).
16
17
GRATIEN DE PARIS, op. cit. p. 495-6.
192
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OS ESPIRITUAIS, HOJE?
XXII fez questão de emitir a bula Gloriosam Ecclesiam de 23 de janeiro
de 1318, que os condenou e os excomungou especialmente.
Concluamos esse parágrafo sobre o fim dos espirituais com a observação de Gratien de Paris: assim, “a comunidade em fim teve a última palavra sobre os espirituais. A causa deles estava perdida definitivamente. Os documentos Quorumdam exigit, Sancta Romana e
Gloriosam Ecclesiam os tinham decepado para sempre da Ordem dos
Frades Menores”18.
2 O espírito dos espirituais19
Segundo Teodosio Lombardi, os manuais da história da Ordem
Franciscana falam dos frades implicados na luta acima relatada, divididos em três grupos: dos “zelanti”, dos “moderati”, dos “rilassati”, portanto em zelantes, moderados e relaxados. Essa classificação, aliás muito geral não serve para especificar e caraterizar os espirituais e os comunitários. Pois essas qualificações genéricas podem ser atribuídas, sob
diferentes pontos de vista, tanto aos espirituais como aos comunitáriOp. cit. p. 496. Em nossa exposição, omitimos falar mais sobre João Pedro de Olivi,
Ângelo Clareno e Ubertino de Casale, sobre seus pensamentos e sobre suas lutas e seus
sofrimentos, e sobre o fim que levaram. Tudo isso pode ser lido em detalhes na bibliografia que indicamos bem no início de nossa exposição. Pois embora a exposição fale
dos espirituais, o seu tema é na realidade o que está implícito no ponto de interrogação
final do título, o qual podemos caracterizar, como já foi insinuado acima, como ponto
de perplexidade da interrogação.
18
O título desse segundo capítulo exige uma boa exposição sobre doutrinas principais,
mística e espiritualidade dos líderes principais do movimento dos espirituais, principalmente de João Pedro de Olivi e também de Ângelo Clareno e Ubertino de Casale. Não
nos é possível uma tal pesquisa, não somente por causa da economia do espaço, mas
principalmente pela limitação do nosso saber. Aqui, porém, entendemos a palavra
espírito na acepção menos exigente, menos objetivo-real, mas já dentro do ponto de
vista da interrogação subjetivo-particular, o qual queremos começar a colocar, embora
de modo bem insuficiente e vago.
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os ou a quaisquer outros grupos humanos20. Por isso, não se pode
admitir que houvesse então facções organizadas como “partidos” dos
zelantes, moderados e relaxados. Daí não se deve pensar que os espirituais fosse um nome usado para indicar os religiosos observantes, fiéis e
zelosos, numa acepção geral. Do mesmo modo, o termo rilassati não
indica tout court os comunitários; e moderati os que estariam no meio,
no sentido de ser equilibrado, politicamente correto, na acepção usual
defasada do dito latino: virtus in medio. Analogamente, a classificação:
os da direita, os da esquerda, e os do centro; os tradicionalistas ou
fundamentalistas, os progressistas, e os em cima do muro; ou os talebãs e
os liberais, não seriam classificações de adequação precisa, embora tanto nos espirituais como nos comunitários se encontrem fenômenos
que poderiam ser enquadrados nos binômios acima mencionados e
outros. Não devemos pois entender a atitude dos espirituais a partir e
dentro da ratio divisionis da classificação zelanti, moderati e rilassi. É
mais claro e metodicamente mais enxuto considerar os espirituais como
facção, algo como um “partido” dentro da Ordem franciscana, com o
seu modo de ser e pensar todo próprio e minoritário, a ser estudado
melhor a seguir. Evitemos, pois de lançar sobre a classificação-binômia
espirituais – comunitários a malha de uma outra classificação tripartita
zelanti, moderati e rilassi21. Resumindo, a divisão tripartita zelanti,
Dentro dos espirituais, por exemplo, na perspectiva do rigorismo de observância externa, poderia haver pessoas zelosas, moderadas e relaxadas, que na perspectiva de bom senso
na compreensão da essência da observância externo-material poderiam ser inversamente
relaxadas, moderadas e zelosas. O mesmo se poderia dizer dos comunitários. Na literatura
franciscana, porém, o termo zelanti é usado para indicar os discípulos mais próximos de
São Francisco da primeira e mesmo da segunda geração dos frades menores que eram
zelosos e zeladores da conservação do espírito originário deixado por São Francisco.
20
Cf. LOMBARDI, T. op. cit. p. 145: “Numa Ordem que, naquela época, contava com
cerca de 40.000 indivíduos, as pessoas envolvidas no movimento ‘espiritual’ não ultrapassavam talvez a cifra de duzentos frades, e praticamente o problema dizia respeito às três
províncias de Provença, Marca de Ancona e Toscana. Se o fenômeno espirituais teve tanta
ressonância não foi por sua entidade numérica, mas pelas questões, trazidas à fala e pelas
implicações que tiveram conseqüência sobre a questão da pobreza”.
21
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OS ESPIRITUAIS, HOJE?
moderati e rilassi é de conotação valorativa, moral, ao passo que, a
divisão da classificação espirituais e comunitários conota concepção,
compreensão e modo de ser da referência ao ideal e ao espírito originário de São Francisco.
2.1 A pobreza, o espírito dos espirituais?
Assim, para perceber o que especificamente caracteriza o móvel da
causa dos espirituais devemos considerar que o binômio que expressa
as posições contrárias da questão em litígio entre as duas facções soa
espirituais – comunitários ou comunidades, e não, por exemplo, espirituais e materiais, ou espirituais e pouco ou mesmo não espirituais, ou
espirituais e mundanos etc. Atrás desse modo de oposição expressa no
binômio espirituais-comunitários se esconde o pivô da questão
franciscana. Segundo o texto citado de Lombardi, esse pivô se chama
a questão da pobreza. É interessante anotar que no tempo da luta entre
os espirituais e os comunitários a questão da pobreza significa
“questionamento crítico acerca da pobreza franciscana”. No início, na
origem da Ordem, em São Francisco e em seus primeiros companheiros, a “questão da pobreza” significa a busca apaixonada e apaixonante,
de vida e morte, com adesão total e incondicional de toda a existência de
quem busca, no nosso caso, de São Francisco de Assis e de cada um dos
seus primeiros companheiros. Portanto nada a ver com questionamento
ou crítica; nada a ver com a busca de explicação de como deve ser a
pobreza, se material ou espiritual; se obriga tal qual está escrita no
Testamento ad litteram ou já interpretada pelos homens. Essa paixão,
essa absoluta positividade, palpável, real, sim “físico-material”, digamos corpo a corpo, esse sim incondicional à pobreza é sentido por todos
nós, quando lemos os Escritos de São Francisco, na sua Regra em três
versões, em suas admoestações, em suas cartas, em suas orações, e principalmente no seu Testamento. A intensidade dessa busca, dessa adeScintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010
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são à busca vem à fala de modo inequívoco nas primeiras biografias de
São Francisco e nas coletâneas das narrações sobre os episódios e
ensinamentos de São Francisco transmitidas no início oralmente22. Esse
amor à pobreza, personificada como Senhora Pobreza e o encontro de
união esponsal com ela, é o que caracteriza na origem da Ordem a questão,
a busca da pobreza. Essa busca aparece nítida e claramente, segundo estudiosos da coisa franciscana, no escrito, o mais antigo sobre São Francisco,
intitulado Sacrum Commercium Sancti Francisci cum Domina Paupertate.
Diz Sacrum Commercium: “Francisco, como verdadeiro imitador e discípulo do Salvador, no princípio da sua conversão, dedicou-se com todo o empenho, com todo o desejo e com toda a deliberação a procurar, encontrar e
conservar a Santa Pobreza, nada duvidou de adverso, nada temeu de sinistro, não se esquivou de nenhum labor, nem declinou de nenhuma angústia
corporal, se lhe fosse dada apenas a possibilidade de chegar àquela a quem
o Senhor entregou as chaves do Reino dos céus”23.
Temos assim, por exemplo, a Legenda dos três companheiros, Legenda Perusina, O
espelho da perfeição, os Atos do bem-aventurado Francisco e seus companheiros (I Fioretti de
São Francisco de Assis) etc.
22
Sacrum Commercium de São Francisco com a Senhora Pobreza. Santo André: Editora
Mensageiro de Santo Antônio, 2002, p. 20-21. Cf. BRUFANI, Stefano, “Il Sacrum
Commercium: L’identità minoritica nel mito delle origini”, in: Dalla “Sequela Christi”
di Francesco d’Assisi all’Apologia della Povertà, Atti del XVIII Convegno Internazionale
(Assisi, 18-20 ottobre 1990), Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo, Spoleto,
1992, p. 203-222; Cf. BRUFANI, Stefano, “Sacrum Commercium Sancti Francisci
cum Domina Paupertatis”, Introduzione, in: Fontes Franciscani, a cura di Enrico Menestò
e Stefano Brufani e di Giuseppe Cremascoli, Emore Paoli, Luigi Pellegrini, Stanislao da
Campagnola, apparati di Giovanni M. Boccali, Assis: Edizioni Porziuncola, 1995, p.
1693-1703; Cf. MANSELLI, R. “Evangelismo e povertà”, in: Povertà e ricchezza nella
spiritualità dei secoli XI e XII. Atti dell’VIII convegno del Centro di Studi sulla spiritualità
medievale (Todi, 15-18 ottobre 1967) Todi, 1969, 11, compl. p. 9-41. Cf. HARDICK,
Lothar, “Pobreza, pobre”, in: Dicionário Franciscano. Petrópolis: Vozes/Cefepal, 1993,
p. 586-599, cf. p. 587.
23
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OS ESPIRITUAIS, HOJE?
2.2 A questão da pobreza, uma luta pelo espírito originário?
O amor à Pobreza como ela aparece na sua límpida transparência nos
Escritos, nas palavras, nas atitudes de São Francisco e seus primeiros companheiros no início, na origem da Ordem é pois o ponto nevrálgico ao
redor do qual se desencadeia o movimento dos espirituais, nas suas reivindicações. Os espirituais se consideram como herdeiros legítimos da tradição autêntica do espírito de São Francisco. Assim, nas suas reivindicações,
nas críticas às comunidades, na insistência em reclamar pela reforma urgente da observância mais estrita da pobreza, na persistência em afirmar
que o Testamento é a consumação da Regra, e que por isso mesmo é tão
obrigatório quanto a Regra etc., os espirituais se interpretam, se vêem
como continuadores e participantes, sim partidários da luta pela observância da estrita Pobreza, da questão, isto é, da busca, corpo a corpo, de vida e
de morte, do espírito originário de São Francisco, portanto, do carisma
fundacional da Ordem franciscana24.
Mas então, se tudo isso que os espirituais dizem e sentem de si
tem um fundamento, por que foram tão rejeitados, combatidos e perseguidos, a ponto de alguns deles pagar a sua fidelidade ao espirito
originário de São Francisco, portanto ao carisma fundacional da Ordem, com prisão, exílio, e sim até com a própria morte, como foi
sucintamente relatado no primeiro capítulo dessa exposição?
Segundo alguns documentos eclesiásticos, segundo certos escritos da espiritualidade
cristã, carisma fundacional é o espírito, i. é, o sopro vital, o vigor essencial que, recebido
através do seu fundador, faz surgir, crescer uma ordem ou congregação religiosa, unificando-a, vivificando-a, constituindo a sua identidade. Carisma fundacional de uma ordem ou
de uma congregação é concreção, é corporificação, o vir à fala da insondável e inesgotável
fonte da vitalidade espiritual da Cristidade que é Jesus Cristo, o Carisma do Pai, i. é, o
esplendor e a manifestação da graça e da beleza do amor do Pai. Cf. JOÃO PAULO II, A
vida consagrada. exortação apostólica pós-sinodal sobre a vida consagrada e a sua missão na
Igreja e no Mundo. São Paulo: Paulus, 1996; Cf. FASSINI, Dorvalino Frâncico. Vida
consagrada e formação. Porto Alegre: Província São Francisco de Assis, 2002.
24
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As pesquisas historiográficas, com sua abordagem bem diferenciada e acurada, nos fazem suspeitar que a “coisa” ou melhor “a causa” não
é tão simples assim. Aqui surgem perguntas, por exemplo, como essa:
tudo isso que dissemos do carisma fundacional, da experiência e inspiração originária de São Francisco, donde é que sabemos de tudo isso?
Ou é algo que a priori supomos como já existente, como algo verificável?
Trata-se apenas de uma hipótese da Espiritualidade, ou é uma “realidade” perceptível, embora se exija para isso uma percepção toda própria,
chamada espiritual? Não é assim que tudo isso que dizemos da experiência de São Francisco, por ser ela a mais íntima e pessoal e existencial,
só pode ser captada nela mesma, ao passo que ela na realidade nos é
transmitida através dos relatórios dos seus discípulos? E mesmo que
fossem obras escritas ou ditadas pelo próprio Francisco, não chega a
nós através de manuscritos, cuja transmissão até nós implica uma tradição complexíssima dos manuscritos, portanto através de uma transmissão mediada pelos pósteros, acerca de Francisco e dos seus escritos?
E mesmo lá onde temos com toda certeza ou com grande probabilidade textos escritos pelo próprio punho de Francisco, donde é que tiramos o significado, o sentido de suas palavras? Já não as entendemos, a
partir e dentro da representação ou imagem do Santo, transmitida
pelos primeiros biógrafos de São Francisco? Assim, embora amemos
Francisco, nos fascinemos por esse nosso irmão menor, tão simples,
humilde e pobre; embora o acolhamos na afeição e confiança da simplicidade filial dos seus seguidores e admiradores, nós hodiernos, estudados ou não, somos colocados diante de todas as dificuldades que as
ciências historiográficas em sua acribia e paixão pela “veracidade” histórica nos apresentam, não para “complicar” inutilmente com sua
racionalidade e racionalização “intelectualista” a vivência da simplicidade e pureza, da inocência vital da espiritualidade, mas a partir e dentro da paixão científica pela verdade crítico-histórico-científica.
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OS ESPIRITUAIS, HOJE?
Ao se considerar o que acima chamamos de carisma originário
fundacional, que se revela através da experiência originária de São Francisco e de sua inspiração, sob a perspectiva historiográfico-científica,
acima mencionada, percebemos que a imagem “originária” de Francisco, a sua “prima et ultima intentio”, a sua “vida de pobreza estrita,
radical” aceita sine glossa, sine glossa, sine glossa, pode já ser produto
da compreensão que os primeiros companheiros de São Francisco, os
seus primeiros zelantes discípulos herdeiros e curadores do “Espírito”
franciscano, portanto os proto ou pré-espirituais, principalmente da
Úmbria, transmitiram aos seus discípulos, tornando por assim dizer
ocasiões ou mesmo causa do espiritualismo e do ideal de autenticidade
que mobilizava e conduzia os espirituais da era posterior à luta, à
autoafirmação25.
No que toca à compreensão do espírito e espiritual, na exigência dos
espirituais de voltar a e de conservar o espírito originário de Francisco, os
traços captados por eles da fisionomia humano-espiritual de S. Francisco,
na colheita biográfica das primeiras “vidas” do santo parecem estar retocados com coloração de sublimação e super-valorizados por uma aura de
“vitae perfectae et merae contemplationis et raptus”26, que tanto Francisco
como vários de seus primeiros companheiros parecem não mais viver na
“De tudo isso, emerge a constatação, em si óbvia e deduzida, de que grande parte dos
pressupostos do drama dos espirituais postula não somente interlocutores umbros, mas
se configura sobre uma “silhueta” de Francisco e do seu ideal originário, delineada pelos
discípulos zelanti umbros, mantenedores da vontade e das intenções ‘literais’ do Mestre
e, ao mesmo tempo, depositários dos ‘secreta ordinis’ que eles transmitem oralmente ou
por escrito” (STANISLAO DA CAMPAGNOLA, op. cit. p. 84); “Frei Tiago de Massa
obteve essa história da boca de frei Leão; e frei Hugolino do Monte de Santa Maria, da
boca de frei Tiago. E eu que escrevo, obtive-a da boca de frei Hugolino, homem digno
de fé e bom”. Actus do bem-aventurado Francisco e dos seus companheiros, tradução
sob a responsabilidade de frei Dorvalino Fassini OFM, São Paulo: Mensageiro de Santo
Antônio, 1997, cap. 9, v. 71.
25
“Vida perfeita e da pura contemplação e êxtase”. É uma expressão freqüente nas
“vitas” dos companheiros de Francisco, colecionadas nas Chronica XXIV Generalium.
26
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terra das vicissitudes da existência humana, mas no céu de um espiritualismo
diáfano, cuja sublimidade sabe ao misticismo que não conhece a
Encarnação27. A nossa veneração e amor filial para com São Francisco e
seus primeiros companheiros nos faz pensar sem mais que esses pré-espirituais ou os proto-espirituais, santos seguidores da altíssima pobreza e contemplação, imitavam a São Francisco, em vivendo a vida de oração e penitência na solidão dos eremitérios ou em pequenas moradias, modestas e
pobres no campo, cheios de vitalidade, santidade, autenticidade do seguimento cristão. Examinando-se esse estilo pobre de vida, sob o ponto de
vista mais crítico e historiográfico, a vida no eremitério pode significar não
somente ou não necessariamente uma manifestação de engajamento ao
ideal originário. Segundo Stanislao da Campagnola, esse retirar-se na vida
solitária, em eremitério “não representava somente um traço de fidelidade
ao ideal da origem, um momento no qual o ideal aparecia minado, seja
pela nova atividade pastoral a qual se dedicavam agora os frades menores,
seja pela realidade social dentro do imprevisível desenvolvimento urbano
que impelia os religiosos a abandonar as moradias primitivas e precárias
para se inserir nos aglomerados citadinos”28. Na medida em que a ordem
crescia rapidamente em número, e com a entrada dos doutores, dos estudantes universitários, dos sacerdotes, de uma ordem predominantemente
de irmãos leigos, se transformava numa ordem clerical, com exigência e
necessidade de uma formação acadêmica cada vez mais “excelente”. A ordem comandada por esses novos elementos mais progressivos assumia
novas tarefas, responsabilidades e desafios de evangelização, abriam-se novas fronteiras de pregação, missão, de pastoral; a vida comum se estruturava
de modo novo, bem diferente do da vida primitiva. Nesses itens os frades
zelosos e zelantes do espírito originário da Ordem apresentavam uma tendência que poderia induzir à suspeita, se no fundo essa vida nos eremitéri27
Cf. STANISLAO DA CAMPAGNOLA, op. cit. p. 87.
28
Id. Op. cit. p. 88, nota 50.
200
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OS ESPIRITUAIS, HOJE?
os não era uma espécie de fuga. Assim, o eremitério, e juntamente com ele
a vida pobre, cheia de vicissitudes nas intempéries, ausência de objetos de
luxo e de comodidades, ao mesmo tempo em que expressava lugar de
intensa busca espiritual ou quem sabe espiritualista, se tornava também
lugar de refúgio, onde se evitava ter que suportar o convívio com os comunitários, suas teses e seus modos diferentes de viver a vida “fraternal”
em comunidade do mesmo ideal franciscano e se confrontar com decadências e afrouxamento da observância, existentes nos comunitários.
Por outro lado, havia o grupo dos “observantes” comunitários, e segundo a sua auto-interpretação, grupo dos que tentavam manter-se autênticos no seguimento do espírito de São Francisco, mas evitando de fixá-lo
na forma quase fundamentalista de ver o espírito originário de Francisco a
modo dos espirituais mais radicais. Esse grupo, que era a maioria, se abria
aos desafios e às necessidades dos tempos novos, auscultando os sinais dos
tempos, implícitos nas situações da evolução da ordem em várias dimensões, e combatia o grupo minoritário dos espirituais como um grupo de
rigoristas, fundamentalistas e separatistas. Essa oposição, em vez de fazer
crescer para um confronto sério de cada posição consigo mesma e para um
exame mais radical e clarividente dos seus próprios princípios e normas,
desandou para uma disputa que crescia cada vez mais na fixidez de medidas, na compreensão da vida franciscana, ao redor de exterioridades e
questiúnculas jurídicas, sem mais estar na inspiração da essência do ser
cristão, pulsante, por exemplo, na imagem de São Francisco e de seus
primeiros companheiros.
3 Espírito franciscano, hoje?
Como já foi mencionado no início, o termo hoje com o seu ponto de interrogação expressa perplexidade. Perplexidade diante de um
“fenômeno” da contradição interna dentro da Ordem franciscana. Dis-
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semos também que essa perplexidade é de caráter subjetivo-particular.
Em que sentido é subjetivo-particular, isso deve ser explicado melhor.
Para isso, de tudo que viemos dizendo acerca dos espirituais, tentemos
destacar um estado da questão e assim explicar de que se trata, quando
designamos o ponto de interrogação como perplexidade que se expressa num ponto de inter-esse da existência chamada franciscana, cujo
pivô está na pré-compreensão toda própria e singular do ser espiritual29.
Para colocar o estado dessa questão subjetivo-particular da nossa perplexidade, recorramos a alguns dados tirados e resumidos a nosso modo,
do verbete-artigo já mencionado, de Giulia Barone em Dizionario degli
Istituti di Perfezione, vol. 8, verbete “Spirituali”, col. 2034-2040.
Há na Ordem Franciscana um ponto nevrálgico, bem escondido e
bem enraizado no cerne, o mais íntimo e profundo, digamos no coração do seu destinar-se, isto é, da sua história, cheia de lutas, sofrimentos e empenhos, que é algo como matriz, donde surgem e para onde
convergem inúmeros e diversos problemas e conflitos, experimentados a duras penas pelos frades menores, em todas as épocas e em todos
os lugares como acenos de um retorno contínuo a uma única e total
interrogação da busca, isto é, da questão franciscana. Esse ponto de
interrogação de onde e para onde se move a espiral da questão
franciscana do espírito (isto é, do sopro vital), originário da sua identidade é: Francisco de Assis. É por isso que a questão dos espirituais inicia-se e já vem à fala na própria vida de Francisco, na origem e evolução da Ordem, e vem a nós através dos tempos, em multifárias vicissitudes da existência franciscana em repetição.
Qualificamos esse “ser do espiritual” de subjetivo-particular, porque nas questões
franciscanas, ao falarmos por exemplo do espírito originário de São Francisco e dos seus
primeiros companheiros, é costume compreender “espírito” e “espiritual” dentro da
classificação de uma compreensão predeterminada de que o espírito, o espiritual é
próprio da “realidade” interior do sujeito, portanto, subjetiva, e que por ser subjetivo
pessoal, individual, privativo e particular não possui propriamente uma validade comum, objetiva, geral.
29
202
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OS ESPIRITUAIS, HOJE?
De que problema se trata nessa questão? Historiograficamente ele
aparece, por exemplo, de modo bem concreto no fato mencionado e
analisado por Barone, a saber: 5 anos antes da sua morte, Francisco,
fundador e alma da Ordem franciscana renuncia ao seu cargo de ministro geral da Ordem. Por que?30
Acerca do por quê dessa decisão há várias sugestões de interpretação. Mencionemos as principais:
• A constatação, da parte de Francisco, dos limites do seu corpo,
cujas forças se debilitavam cada vez mais, devido às enfermidades e
fraquezas. Trata-se, pois, de cansaço e da sábia percepção precisa da
inadequação de suas forças e capacidades diante das tarefas cada vez
mais exigentes, complexas e volumosas, principalmente em referência
às exigências administrativas dessa Ordem que se expandia e tomava
forma e corpo de proporção européia
• Talvez pressentindo a morte iminente, a tentativa de concentrar
todas as suas forças para dedicar-se inteira e indivisamente à tarefa do
líder carismático, no fomento e na consolidação espiritual dos membros da Ordem, deixando outros tipos de tarefas e atividades, principalmente as administrativas, a outros.
• A impossibilidade interna de assumir como coordenador geral a
liderança da Ordem por ele fundada, cujo carisma fundacional Francisco sente ter recebido do Senhor, na sua evolução para direção, forma e modo de ser do crescimento, escolhidos por uma facção dos
influentes na Ordem e da própria Igreja Romana. Esta encorajava, exortava, tecia elogios e favorecia a Ordem com inúmeros e abundantes
privilégios, dava-lhe tarefas novas, importantes, encargos e títulos, para
que a Ordem dos frades menores se tornasse no seu modo de ser,
30
Cf. FRANK, I. W. Franz von Assisi, Frage auf eine Antwort. Düsseldorf, 1982.
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digamos, cada vez menos diversa das outras ordens, para poder colocála a serviço do próprio programa de evangelização, para combater heresias, para assim transformá-la numa grande e poderosa instituição
eclesiástica à disposição dos planos missionários, pastorais e até mesmo políticos da Igreja Romana no fomento, manutenção e expansão
da sua influência e do seu poder.
Sem excluir nenhuma dessas motivações acima mencionadas para
a explicação do por quê do fato da renúncia de São Francisco do
Generalato, 5 anos antes da sua morte, o último item apresentado
acima parece explicar melhor todo o movimento de conflitos e lutas
no fim do primeiro século da origem e da evolução da Ordem
franciscana, entre os assim chamados espirituais e comunitários.
Como já foi rapidamente mencionado no capítulo 2.1, o pivô da
questão que cria o binômio espirituais e comunitários se chama a questão da pobreza. Essa questão da pobreza nas suas discussões entre os
espirituais e os comunitários, na tentativa de definir a essência da vida
franciscana, girava ao redor de questões como: quando se luta pela
pobreza, trata-se da pobreza material ou espiritual? viver sem nada de
próprio ou no uso dos bens, sem ser seu proprietário? se é só uso, e não
posse, é uso pobre – usus pauper – ou uso moderado – usus moderatus?
o Testamento de são Francisco deve ser assumido como obrigatório,
juntamente com a Regra, como consumação da própria Regra, portanto deve ser vivido sine glossa ou apenas como uma admoestação
“espiritual”, não obrigatória, com interpretações apropriadas para situações da mudança da época e circunstâncias? Todo esse leque de questões, se examinarmos bem, embora atrás de todas essas posições divergentes sempre de novo se possa encontrar uma faísca de pulsões de
grande ou pequeno amor à causa franciscana, na sua forma e nas suas
ações são modus deficiens da questão, cuja essência possui um outro
hálito, isto é, espírito que vem da inspiração originária, em cujo toque
204
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OS ESPIRITUAIS, HOJE?
o indivíduo Francisco é São Francisco de Assis. O toque da inspiração
originária sob cujo impulso Francisco é aquele que é, não
empiricamente, mas propriamente no vigor do ser da sua essência se
chama: Seguimento de Jesus Cristo. O ponto de interrogação hoje portanto incide justamente nisso: a essência do ser franciscano vivido e
transmitido por São Francisco, e isto, mesmo ou apesar do retoque
“espiritualista” feito tanto pelos pré-espirituais como também pelos
espirituais não consiste na pobreza nem estrita, nem moderada; não
no Testamento sine glossa, nem na Regra segundo o modo como a
sábia Igreja interpreta para o fomento da Ordem através dos séculos;
nem na penitência, nem no minorismo ou fraternismo, nem na contemplação, nem na união mística, nem na evangelização; mas sim tout
court, imediata e concretamente, corpo a corpo, no Seguimento de
Jesus Cristo, nada mais, nada menos. Dito de outro modo, em vez de
interpretar o Seguimento em o classificando a partir de pobreza, Testamento, Regra, penitência, minorismo, fraternismo, vida comum, vida
eremítica, contemplação, mística, tentar compreender todas essas assim chamadas categorias fundamentais da espiritualidade em geral e
principalmente da espiritualidade franciscana, a partir e dentro da compreensão ela mesma própria do Seguimento de Jesus Cristo31. Acima
dissemos que no coração do destinar-se da Ordem franciscana, a
matriz donde surgem e para onde convergem as vicissitudes da história
da Ordem em todas as suas dimensões, sublimidades e decadências,
donde e para onde pulsa a vida franciscana em todos os tempos e lugares, em todas as suas interrogações, este ponto da matriz-de-fundo
No modo como está formulada uma tal colocação é insuficiente, é simplista. Assim,
podem surgir mil e mil objeções contra a proposta, que são muito úteis para não cairmos
no simplismo. Isto principalmente porque o seguimento não é uma categoria entre
outras categorias espirituais, nem um conceito genérico que subsume outros conceitos
qualificativos do ser franciscano debaixo da sua extensão. Aqui surge uma questão
dificílima da hermenêutica, num sentido todo especial, que ora não podemos tratar
adequadamente.
31
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205
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para onde se move a espiral da questão franciscana do espírito originário da sua identidade é: Francisco de Assis. Mas Francisco de Assis não é
outra coisa do que a personificação do Seguimento de Jesus Cristo.
Daí o aceno: Franciscus alter Christus. Este se corporifica como Pobreza estrita, sine glossa do Testamento, o Cristo Crucificado que é denominado como figura feminina: a Senhora Pobreza. Portanto, todos os
termos que se referem a Francisco, pessoa-matriz do ser franciscano
coincidem com o Seguimento, corpo a corpo, nu e cru, numa
concreção-identidade, do Cristo Crucificado: a Senhora Pobreza. Mas
tal colocação é impossível! Pois, factualmente, isto alvora o indivíduo
Francisco na sua vivência pessoal subjetivo-particular, sim, digamos
inefável, para não dizer irracional na medida matriz de todo o ser
franciscano32. E quem me garante que tudo que acima insinuamos sob
os termos como Seguimento, Alter Christus, Pobreza estrita, Senhora
Pobreza, e mesmo Cristo Crucificado, na sua compreensão, não passa
de simples fantasia, especulação, certamente cum fundamento in re,
mas inteiramente subjetivo-particular, se não tanto dos primeiros companheiros de São Francisco, ou de seus primeiros biógrafos, portanto
dos pré-espirituais, dos espirituais da primeira geração, e através destes
dos espirituais da segunda geração, e assim por diante, mas também da
terceira, quarta, e dos espirituais e espiritualistas de todos os tempos?
O nosso ponto de interrogação, cheio de perplexidade, de não
saber o que dizer e o que pensar incide portanto nesse ponto da realidade, há pouco acima nomeado como o seguimento, corpo a corpo, nu
e cru, numa concreção-identidade, do Cristo Crucificado, da Senhora
Pobreza. Aliás, é a isto que chamamos vagamente na espiritualidade de
É o que fazem os espirituais, quando apelam para a vida de Francisco e seu Testamento contra a interpretação amenizada da vida da pobreza dos comunitários. Assim, os
espirituais se fazem um grupo que acentua a experiência pessoal, individual, ao passo
que os comunitários, um grupo que coloca o acento na vida comum.
32
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OS ESPIRITUAIS, HOJE?
dimensão do espírito originário e da experiência de São Francisco, a partir
e dentro da qual termos como espírito, os espirituais, espiritual, recebem pretensamente o seu sentido. Que se não saiba nem o que dizer
nem o que pensar pode vir e vem certamente da limitação individual,
subjetivo-particular. A tal ponto que um tema assim, uma interrogação assim, nem se quer deveria ser mencionada num artigo ou numa
escrita que de alguma forma tem caráter de ser público, pois tais questões são pseudo-problemas. Espírito e espiritual são termos que todo
mundo compreende e sabe o que é de imediato, obviamente como os
termos vida, ser, amor, Deus, pobreza, Cristo Crucificado etc. Assim está
de alguma forma justificado o caráter privativo, particular e subjetivo
do ponto de interrogação do título do nosso tema: Os espirituais, hoje?
Com o risco de a nossa interrogação perplexa subjetivo-particular
permanecer ou tornar-se cada vez mais privativo-pessoal, tentemos caracterizar melhor a interrogação, formulando a questão através de alguns dos seus pontos mais nevrálgicos.
3.1 A dimensão chamada espírito?
Se observarmos as contraposições de discussões entre os espirituais
e os comunitários, percebemos de imediato que os espirituais ao insistir na “volta à origem”, ao São Francisco, se engajam na vida de autenticidade e na renovação do ser franciscano, acentuando a vivência, a
experiência, a santidade e perfeição pessoal, a exemplo de São Francisco e
seus primeiros companheiros. Ao passo que os comunitários acentuam
mais a busca da estruturação comunitária e participação no grupo social, como comunidade institucional constituída com determinadas tarefas e metas; são, pois, frades que querem ser franciscanos, aceitam a
espiritualidade de São Francisco, mas constituem não mais apenas pequenos ajuntamentos fraternais de irmãos que viviam de modo muito
pobre e primitivo nas pequenas moradias, nos eremitérios, nos lugares
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quaisquer da zona rural, mas sim em grandes conventos, casas de estudo, nas cidades, com mentalidade mais urbana, digamos, progressista,
crescendo e se instalando cada vez mais como uma grande instituição
eclesial, com novas tarefas, encargos, se adaptando às exigências e às
necessidades dos novos tempos, a pedido e exortação da Igreja. Assim,
se usarmos uma classificação hodierna, sem entrar no mérito da validez
de sua “ratio divisionis”, podemos dizer que os espirituais viviam,
mutatis mudandis, a vida religiosa franciscana no estilo e na concepção
de uma espiritualidade subjetiva, particular, de perfeição e santidade
pessoal, ao passo que os comunitários no estilo e na concepção de uma
espiritualidade eclesial-social para não dizer eclesiástico-monacal modernizada. Porque a espiritualidade de perfeição e santidade pessoal
lida com a esfera íntima, pessoal, subjetivo-particular, os espirituais
nos aparecem acentuadamente edificantes e intensos na piedade, contemplação e virtudes; são homens “interiores”, de muita fé e edificação,
mas um tanto unilaterais, sem muita abertura para a dimensão eclesialsocial, fechados numa compreensão quase fundamentalista da vida
religiosa, alienados das novas exigências e necessidades das novas épocas. Assim, toda a questão, queiramos ou não, mesmo cientes de outros aspectos e de outras perspectivas, acaba se reduzindo à problemática do relacionamento entre um espiritualismo centrado na esfera íntima pessoal, subjetivo-particular do homem, e uma espiritualidade
centrada na dimensão social comunitária eclesial33.
Numa colocação, assim superficial e simplificada, podemos dizer que do lado da
esfera pessoal está por exemplo a vida interior, o cultivo da oração pessoal e da piedade,
a contemplação, o relacionamento vertical com Deus, na intimidade de Tu a Tu, a
santidade e a perfeição pessoal, o cultivo das virtudes, as vivências, o coração, o carisma,
a intuição, o viver intensamente a vida pessoal, em pequenas fraternidades, de modo
caseiro etc. Do lado da esfera eclesial-social e comunitária temos: a doação aos irmãos, a
ação, as responsabilidades pelo mundo, pela sociedade, pela humanidade, o engajamento
pelos valores ético-social-políticos, o conhecimento, o interesse e a preocupação pelos
estudos e as ações sociais, a familiaridade com o jurídico, com a disciplina, com a
sistematização, o poder, a organização, a qualidade máxima, a excelência dos seus empreendimentos, na gestão e administração etc.
33
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OS ESPIRITUAIS, HOJE?
Sem dúvida, uma tal explicação classificatória, sem analisar cada
vez o fenômeno concreto como tal, não leva em conta os entre-cruzamentos nessas variações de diferentes perspectivas que, por sua vez
podem mudar de polaridades, criando com o avolumar-se das variações, um emaranhado quase inescrutável de significações. E pode muito
bem ser que todas essas significações classificatórias sejam, em grande
parte, projeções das nossas dificuldades e medidas, lançadas sobre as
colocações medievais dos problemas dos espirituais.
Mas, seja como for, o ponto de insistência dos espirituais, seja da
segunda ou da primeira geração, em voltar a e conservar o espírito
originário transmitido por São Francisco e dele herdado, que se expressa como Seguimento de Jesus Cristo, Pobreza, Testamento etc.
etc. não pode ser devida e propriamente captado, se o classificarmos
como pessoal, subjetivo e particular ou moral, místico ou piedoso no
sentido usual.
O título desse terceiro capítulo soa Espírito franciscano, hoje? A
essa altura da exposição, começa a surgir uma inquietação, uma espécie
de frustração, ou melhor digamos perplexidade. É que estamos marcando passo, girando vazio, no vazio a modo de antigas locomotivas,
das assim chamadas “maria fumaça”. A locomotiva “maria fumaça”,
puxa filas de vagões, carregados de imenso peso; mas não consegue ir
para frente numa subida, porque o peso puxa para trás todo o combóio,
de tal sorte que mal consegue segurar o conjunto que por assim dizer
fica parado, mas que está sendo puxado pela locomotiva da frente,
cujas rodas giram freneticamente, marcando passo, no vazio. Esse
medium da perplexidade de não saber o que dizer, o que pensar, como
que ao dizer girando no vazio, numa repetição infrutífera nos pode
induzir a compreendermos melhor o que se quer dizer com interrogação subjetivo-particular da perplexidade. Aqui, a essa altura da reflexão, a interrogação perplexa e titubeante, se expressa mais ou menos
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como que num ímpeto, surgido da própria perplexidade, numa espécie de reação indignada contra tantas hesitações e senões intermináveis:
Para que tanta lenga lenga de perspectivas e pontos de vista, por que
não dizer direta, imediata, simplesmente, sine glossa, isto é, concreta e
imediatamente a coisa ela mesma do espírito franciscano: viver como,
imitar, seguir a Cristo pobre, humilde, crucificado?
Mas, quem vive e pode viver assim tão abstrato-formalmente, tão
“espiritualmente”, assim tão direto, sem mediação, tão radical, sim
“irracional”, “coisal”, sem levar em conta as vicissitudes da Terra dos
Homens? Que um indivíduo ou alguns indivíduos, santos, radicais ou
quem sabe fanáticos talebãs consigam viver uma tal existência religiosa, tudo bem, talvez fosse possível; isto, no entanto, é para poucos,
pouquíssimos. Mas uma comunidade inteira que cresceu rapidamente
e se tornou uma ordem? Não devemos, pois, distinguir entre São Francisco, indivíduo e a sua vida espiritual, interna, subjetivo-particular,
sua história e experiência pessoal e a vida e a história da comunidade da
Ordem em evolução e crescimento como uma grande instituição
eclesial-eclesiástica? Não é assim que, por mais que o fundador de um
movimento tenha sido santo, genial, criativo, ele como indivíduo, a
sua história pessoal não pode prender o movimento ou a ordem a
fixar-se nele, mas sim libertá-la para a sua missão, tarefa e inspiração?
O fundador, ele mesmo, não é apenas primeiro passo, uma etapa inicial que deve ser deixada para trás, que deve ser superada?
Esses e outros arrazoados similares fazem com que a questão dos
espirituais perca inteiramente a sua força, o seu mordente, e se transforme num problema factual da falta de equilíbrio, de bitolamento
ideológico e fixidez mental ou problema de não adaptação à evolução
e crescimento de um movimento que a partir de uma existência interna espiritual pessoal individual se desenvolve para um organismo social comunitário, adaptado às novas exigências da época. Nesse sentido,
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OS ESPIRITUAIS, HOJE?
Stanislau da Campagnola, falando dos líderes dos espirituais Pedro
João de Olivi (†1298), Ângelo Clareno (†1337) e Ubertino de Casale
(†1329), diz: “eles estavam cercados de uma fileira de numerosos discípulos e admiradores. Sendo de inteligência aguda, eram no entanto
de pouca elasticidade e sem capacidade de adaptação; com idéia fixa,
além disso, de que a pobreza era a expressão integral do franciscanismo.
Assim, eles não chegaram a ou não quiseram reconhecer o ideal
franciscano na mais ampla integridade da vida evangélico-apostólica,
confundindo entre eles Evangelho e Regra franciscana e negando ao
papado o direito de comentar e adaptar a Regra às exigências do
apostolado e da santificação contemporânea”34.
3.2 O vazio da perplexidade como espírito, hoje?
No entanto, diante de todas essas interrogações, que parecem esvaziar e neutralizar o sentido da luta dos espirituais pela vida franciscana
originária, no que ela tem de mais real, mais engajado, relativizando-a
em infindas classificações determinativas da questão, isto é, da busca
do espírito originário de São Francisco de Assis, a interrogação subjetivo-particular e pessoal da perplexidade pode ser medium no qual “algo”
como sentido da busca dos espirituais, portanto, o sentido do que é
espiritual e espírito na experiência da existência franciscana em São
Francico e seus primeiros companheiros pode começar a aparecer. Se de
fato aparece e vem à fala, é uma outra questão. Mas que se prepare,
que se disponha a receber a possibilidade do espírito, o gosto pelo
sabor ou saber do espírito, seja talvez a possibilidade impossível denominada hoje. Essa possível impossibilidade hoje é a objetividade das
nossas abordagens “na vida e nas ciências” da dimensão-espírito. E o
STANISLAO DA CAMPAGNOLA, L’ Angelo del sesto sigillo e l’ Alter Christus (genesi
e sviluppo di due temi francescani nei secoli XIII-XIV, Roma: Ed. Laurentianum/Ed.
Antonianum, 1971, p. 233.
34
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que denominamos de subjetividade das vivências e experiências da vida
interior, da espiritualidade do cultivo pessoal da alma na sua santidade
e perfeição é variante da objetividade, colocada no mesmo “galho”,
mas no polo oposto, que continuamente dá “galhos”, cujo emaranhado de pontos de vista dos diferentes enfoques objetivista-científicos
especializados nos coloca em perplexidade que por sua vez, se não
estamos vigilantes, nos empurram para a simplicidade, imediatez das
vivências, do sentir o coração, que não é outra coisa do que a reação
ressentida contra a objetividade, portanto uma modalidade da objetividade, colocada na mesma bitola da plataforma horizontal de um
balanço, no extremo oposto ao da objetividade.
3.2.1 Um texto espiritual dos espirituais
Depois dessa observação um tanto à margem do fio condutor da
nossa exposição, experimentemos ouvir um trecho do texto dos espirituais na fala de um dos seus representantes mais profundos na compreensão do que é espírito no sentido da volta ao espírito originário de
São Francisco. O texto é de Ângelo Clareno, na sua famosa escrita O
livro das Crônicas35. Diz Clareno no início do Prólogo de O livro das
Crônicas: “A vida de São Francisco, homem de Deus, pobre e humilde
(cf. Sl 82,3), foi escrita por quatro importantes pessoas, todos frades
preclaros pela ciência e santidade. São eles: João e Tomás de Celano,
Frei Boaventura, um dos ministros gerais após Francisco, e Frei Leão36,
homem de admirável simplicidade e santidade, companheiro do mesmo beato Francisco”.
O trecho aqui exposto foi tirado da acurada tradução feita do latim por frei Orlando
Bernardi OFM. A tradução está para ser publicada em breve. Frei Orlando generosamente permitiu que tirássemos o trecho do texto.
35
Sobre o relacionamento entre esses quatros biógrafos, cf. GRATIEN DE PARIS, op.
cit. Introdução, VII-XXI.
36
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OS ESPIRITUAIS, HOJE?
“Quem ler e diligentemente examinar (...) o quanto ali se narra,
poderá conhecer (...) a vocação do Seráfico Pai, sua conversão, sua
santidade, sua inocência, sua vida e sua intenção primeira e última.
Além disso conhecerá como Cristo o amou de modo singular e se
mostrou benigno e familiar com ele, purificando-o, iluminando-o e
informando-o. Depois o atraiu a si para que seguisse os passos de sua
perfeição e por último, aparecendo-lhe como Crucificado, o transformou de tal maneira em si mesmo que a partir de então não mais viveu
para si, mas totalmente crucificado com Cristo (...)”.
“Cristo Jesus o considerou fiel, obediente, agradecido, simples, reto
e humilde conforme seu coração (cf. Ap 1,5; 1 Sm 2,35). Revelou-lhe
então a perfeição primeira e última de sua vida evangélica, de sua mãe,
de seus apóstolos e evangelistas. Abriu-lhe seus ouvidos (cf. Is 50,5) e o
formou, com mão forte (cf. Is 8,11) nas coisas celestes, incorruptíveis e
perfeitas e se colocou a si mesmo em seu coração, em sua boca e em seu
braço (cf. Ct 8,6) (...)” Resumindo, seguem as palavras de Cristo a
Francisco, onde Cristo revela a Francisco, passo a passo a realização da
sua missão, recebida do Pai, que culmina na Cruz, e a escolha dos seus
seguidores e continuadores da sua missão.
Continuando a citação do texto de Clareno, Cristo diz a Francisco
“os que escolhi como meus seguidores, foram configurados em minha
morte (Cf. Fl 3,10) e associados a minhas dores e paixões (cf. Fl 3,10) e
entenderam o início da abertura do livro da vida (cf. Ap 20,12) onde
está escrito a comunicação do meu amor” (...).
“Nosso Salvador Jesus Cristo ao lhe aparecer disse: Francisco, segue-me (Cf. Mt 9,9; Mc 2,14; Lc 9,59; Jo 2,19) e mantenha-te preso
aos vestígios de minha vida pobre e humilde. Configurar-te e assemelhar-te a mim de maneira sensível, intelectual e eficiente é a finalidade
de minhas promessas e da perfeição da graça e da glória. Na verdade, se
aderires a mim com todo o teu coração, com toda a tua alma, com toda a
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tua mente e com todas as tuas forças (cf. Dt 6,5; Lc 10,27), de tal
maneira que todo pensamento esteja em mim e de mim parta, que
toda tua palavra saia de mim, para mim e esteja diante de mim e todo
o teu agir seja sempre por causa de mim e para a maior honra e glória
(cf. 1 Tm 1,17; Ap 4,11; 5,12) de meu nome, então serás meu servo e
eu estarei contigo e falarei por tua boca (cf. Is 41, 9.10; Ex 4,12.15).
Quem te ouvir me ouvirá (cf. Lc 10,16), quem te receber me receberá
(cf. Mt 10,41), quem te bendisser será abençoado (cf. Gn 12,3; 27,29)
e quem te amaldiçoar será amaldiçoado (cf. Gn 12,3; 27,29)”.
Observemos brevemente esse texto, só para percebermos a tonância,
em que ele pode estar e ser ouvido, se de antemão não o classificamos
como um texto projetado subjetivamente por um sujeito que está
imbuído de uma espiritualidade de perfeição e santificação pessoal do
estilo espiritualista37. O que detectamos como acréscimo subjetivo sobre
o fato, através de fórmulas e formulações padronizadas de uma
espiritualidade dos espirituais – sem negar a objetividade de todos esses acréscimos – pode estar acenando para uma compreensão mais própria da história, não tanto a partir do binômio objetivo-subjetivo, mas
sim como participação criativa na recepção livre do sopro vital, isto é,
Com outras palavras, como já foi observado anteriormente, seja qual for a nossa
constatação factual das palavras e dos atos dos espirituais, desde os mais altos e sublimes
até os mais bitolados, fundamentalistas e intransigentes, aquilo que neles há de mais
interessante como o fundo, como o toque inicial de suas intenções, não pode ser devida
e propriamente captado, se o classificamos como pessoal, subjetivo e particular, místico
ou piedoso no sentido usual, e se não tentamos renovar a compreensão do que seja o
espírito e o espiritual, de modo inteiramente radical e novo. E o comentário que segue
acima é, do ponto de vista objetivo, mera “chutação” especulativa. Serve somente para
criar um vazio perplexo de interrogação, onde talvez se torne possível um espaço
menos fixo de indagação. É que pode haver a fixidez numa indagação, onde se abrem
continuamente interrogações, sem se dar conta de que as próprias interrogações, mesmo que sejam contrárias, sim contraditórias entre si, são produtos do mesmo horizonte,
donde haurem suas significações, como que do mesmo fundo do sentido do ser já bem
determinado.
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OS ESPIRITUAIS, HOJE?
do espírito originário do toque da existência humana no destinar-se
do seu ser como pessoa-humana. Essa participação ao destinar-se do
ser da existência humana como pessoa-humana poderia ser o sentido
mais de acordo com o que chamamos de historicidade. Assim, façamos brevemente um excurso sobre o que denominamos fato histórico.
3.2.2 Excurso: historicidade da história como factualidade?
Clareno fala da vida de São Francisco. A vida aqui seria na nossa
linguagem, hoje, biografia. A biografia deve ser objetiva. Falar dos fatos reais, averiguados e averiguáveis de um sujeito ou sujeitos, aqui no
nosso caso, de Francisco de Assis, que de fato existiu. Tudo quanto
não é verificável e verificado como fato, pode ser útil e influenciar a
confirmação ou não dos fatos, mas não pertence aos fatos objetivos,
mas sim à esfera subjetiva de interpretação pessoal, particular, quer de
um indivíduo, quer de um grupo de indivíduos, que comungam da
mesma experiência e vivência. Essa maneira já preestabelecida de entender a vida humana como fatos biográficos, objeto da pesquisa, parece caracterizar a abordagem historiográfica que hoje apresenta cuidado, exatidão, diferenciação acurada na abordagem do objeto da sua
pesquisa, levando em conta todos os elementos também subjetivos.
No fundo, porém, na última instância, o que dá certeza, garantia da
verdade da pesquisa é o fato e sua averiguabilidade, a confirmação da
realidade como fato. No entanto, na compreensão do que seja fato
histórico, usualmente quem não está acostumado com a precisão e
acurada diferenciação que encontramos nas abordagens das ciências
historiográficas, confunde o fato e sua factualidade com a coisa e
coisidade de um realismo ingênuo. E representamos o fato histórico
como se ele fosse algo como uma coisa física, ocorrente e existente
diante de nós como esta ou aquela coisa. Essa maneira de representar o
fato como coisa física é resto decadente de um modo de pensar e interScintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010
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pretar a realidade que denominamos concepção substancialista do universo. Fato histórico não é substância nesse sentido deficiente. Por isso,
não pode ser tratado como se fosse substância. A concepção
substancialista no seu vigor originário é todo um mundo de compreensão profunda da realidade, cuja expressão temos, por exemplo, na
concepção grega e medieval do universo. São Francisco e as “coisas”
franciscanas, cuja epocalidade é medieval, só pode ser entendida, a fundo
e na sua riqueza, se levarmos em conta e a sério que o fundo ontológico
da paisagem histórica primitiva do franciscanismo é a concepção
substancialista medieval. A palavra-chave, na qual se expressa de modo
optimal a idéia da substância é pessoa. Por isso, toda a ontologia, portanto o conceito do ser na intuição originária do pensamento medieval é Pessoa. Ser por excelência é Deus, o Ens a se. A aseidade aparece
de modo próprio e único como pessoa. Só que em vez de pessoa se
usava mais a palavra ser ou melhor espírito38. A decadência consiste em
hoje entendermos a substância, não como todo um mundo de paisagem, cujo fundo ontológico é espírito ou pessoa, mas como produto da
entificação concentrada como átomo-algo, abstrato e formal. Esse algo
é o resto abstrato e formal de uma compreensão da substância já
coisificada. A palavra fato vem do latim factum. Factum é particípio
passivo passado do verbo facere (facio, feci, factum, facere = faço, fiz,
feito, fazer) e significa feito. O fato é pois o que está sendo ou foi feito.
Nesse sentido, o perfeito é o que foi feito, atravessando ou através de
(per = de cabo a rabo), isto é, de início até a consumação, passando por
mil e mil peripécias e vicissitudes do destinar-se de uma vida (isto é, da
história). Consumação aqui não é simplesmente o último ponto de
uma série de sucessão de pontos; nem o início, o primeiro ponto dessa
mesma sucessão. Essa maneira linear de representar o ser ou destinar-se
Sobre esse assunto, cf. ROMBACH, Heinrich. Substanz, System, Struktur. Die
Ontologie des Funktionalismus und der philosophische Hintergrund der modernen
Wissenschaft. Band I. Freiburg i. Br. / München: Verlag Karl Alber, 1965, p. 57-78.
38
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OS ESPIRITUAIS, HOJE?
da existência humana, mesmo que se o represente dinâmica e
evolutivamente, não traz à fala o próprio do tornar-se humano, mas o
reduz ao modo de mover-se de uma coisa a modo físico-geométrico,
abstrato-formal. Os medievais usam muito o verbo facere, fazer.
Usualmente, como nós hodiernos compreendemos o verbo fazer, como
fabricar, produzir, operar, obrar? A nossa perplexidade em não conseguirmos captar bem em que consiste o sentido do fazer, presente vagamente em todas essas acepções do fazer e seus sinônimos, parece indicar que o seu sentido foi formalizado, isto é, esvaziado do conteúdo
para funcionar como indicativo de uma atuação a modo geral, neutro,
indiferente ao processo de engajamento constitutivo do ser da existência humana. Fazer sofre entre nós a redução do seu sentido ao achatamento significativo, geral e formal de um modo de ser, cuja entificação
produz ente a modo de coisa-algo abstrato, como instante geométrico
de pontos referenciais de movimento também formalizado, vazio de
conteúdo. Ser aqui é algo; algo no algo; algo ao lado do algo; algo no
algo no algo no algo e conjunto de algos que por sua vez não passam
de pontualização atomizada de um quê... E o movimento desse quê, a
atuação sobre esse quê é fazer. Por isso o feito assim, o fato é representado como algo ocorrido como ponto-coisa. Nesse sentido dizemos:
aconteceu ou não aconteceu? É fato? Existiu? Ocorreu? Para o medieval, no entanto, facere como verbo não é propriamente um ato do sujeito.
É antes um certo nível da intensidade e do modo de ser substância bem
concreto e vivo que constitui por assim dizer o primeiro grau na escalação
da atuação de ser, que conforme a intensidade e grau de excelência nas
diferentes ordenações das esferas do ser, culmina no modo de ser do
em si e do a se, cujo sentido é o sentido optimal de todo o fazer, agir,
atuar, produzir que é: ser. E o ente no qual esse ser vem à fala de modo
o mais excelente se chama Deus Criador. Trata-se aqui de uma concepção totalizante do ser, isto é, ontologia. Do ser, entendido não como
ser do ente na acepção da factualidade da ocorrência de algo (“ontologia”
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em certas manualísticas que opõem ou enfileiram uma ao lado da
outra, “ontologia” e “antropologia”), mas entendido como desvelamento
e ocultamento do sentido do ser, o mais vasto, o mais profundo e o
mais originário, que cada vez de novo e sempre novo se abre (e se
oculta ao mesmo tempo) como possibilidade de ser como clareira através da qual surgem mundos. Nesse sentido, o que denominamos “filosofia medieval”, que ao nosso ver não é outra coisa do que “teologia
e mística” medieval, é ontologia, isto é, sentido do ser, vindo à fala
como uma possibilidade criativa da gênese do mundo da vitalidade,
criatividade do espírito, isto é, do sopro vital, dinâmica do modo de
ser pessoa; tudo, isto é, cada ente no seu ser não é outra “realidade” do
que gênese, isto é, nascimento, crescimento e consumação da vontade
do encontro. Essa vontade do encontro, como o ser da existência medieval na sua concretização empírica como “cristianismo” medieval, recebe o nome de Amor de Deus (na acepção do genitivo subjetivo e
objetivo), cujo vir à fala se chama encarnação. Essa vontade do encontro
na sua ordenação estruturante aparece como gênese, conservação e consumação do universo, como comunicação do ente supremo denominado Deus, do seu ser na bondade difusiva de si como doação de si a
cada ente, sempre novo e de novo, e na pertença de cada ente, sempre
novo e de novo como participação no ser dessa doação como recepção
alegre e cordial da filiação divina; e isto desde a mais ínfima e insignificante esfera dos entes sem vida, materiais, até a suprema excelência
do ser-pessoa, denominada Deus, numa escalação dimensional da intensificação do ser que sucessivamente recebe os nomes alma (anima:
vida vegetal como dinâmica da autoalimentação); ânimo (animus: vida
animal como dinâmica do sentir, isto é, da sensibilidade como
automobilização, automotivação, autoconstituição); razão (ratio, animal rationale: vida como dinâmica de autocriação, isto é, abertura e
estruturação do sentido do ser que possibilita o nascer, o crescer e o
consumar-se como decisão de ser na concreta e encarnada possibilida218
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OS ESPIRITUAIS, HOJE?
de de um mundo novo como época, como histórica, isto é, expansão
e convergência da unidade ordenada como totalidade: uni-verso. E a
partir do Homem (como animal, isto é, ânimo racional) se deslancha
o constituir-se, o auto-estruturar-se contínuo de ordenação de mundos;
de mundos cada vez novos e cada vez retomados na sua totalidade, desvelando as diferentes intensidades e qualificações no crescimento do ser-pessoa como dimensão do intelecto, espírito, mente até se adentrar na possibilidade do ser, descrita como ser in se no modo de a se (pessoa) isto é, ser de
Deus, cujo ser é chamado por Mestre Eckhart de deidade. Esse ser do serpessoa como abismo do mistério do Amor de Encontro e do Encontro do
Amor Trino e Uno, fonte e dinâmica da possibilidade insondável e
inesgotável da nossa filiação divina, é o ontologicum, o feito, o fato primordial originário do pensamento medieval.
Para o medieval e seu texto, quando ali se fala de espírito e espiritual, é necessário ter-se em mente toda essa paisagem da ontologia medieval, em toda a sua diferenciação e dinâmica da sua estruturação, da sua
dinâmica, força mobilizadora da existência humana medieval. E isto
provavelmente vale também, e quem sabe, principalmente de alguém
como Ângelo Clareno, como nossos confrades medievais denominados “espirituais”, quando falam do sentido primeiro e último da existência franciscana.
3.2.3 Em se referindo por cima à paisagem de fundo do texto de
Clareno
A história e a historicidade, cuja gênese do ser vem à fala como
“mística-onto-teológica” acima insinuada, possuem “razões e corações”
que a factualidade historiográfica desconhece, por classificá-las como
pertencentes à dimensão factual da vivência individual subjetiva e particular de uma experiência moral, piedosa e religiosa. Ao passo que a
pressuposição básica dos medievais, portanto, por exemplo, dos espiScintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 181-225, jul./dez. 2010
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rituais, é exatamente que os feitos narrados39 como experiência de Jesus Cristo e de seus seguidores, no nosso caso de São Francisco e de
seus primeiros companheiros, são “realidades” fundamentais
ontológicas, das quais toda e qualquer realidade e seus fatos recebem o
seu significado, seu sentido, o quilate da sua “realidade e realização”.
Ontologia aqui significa, pois, a medida optimal na excelência da intensidade qualitativa do ser. Sendo assim, em primeiro lugar e de antemão, isto é, a priori, o fato originário é a experiência pessoal, isto é, a
modo do ser-pessoa e enquanto modo de ser-pessoa, chamado Francisco, no encontro corpo a corpo, de alma a alma, portanto, “pessoal”,
“íntimo” com Cristo Crucificado e no vir à fala do “Espírito do Senhor
e do seu santo modo de operar”40. A assim chamada experiência pessoal
(tida por nós como particular, individual e subjetiva) de São Francisco
não é um fato entre outros fatos, mas sim o vir à fala do feito originário. É a concreção da facticidade, do lance do horizonte, a partir e
dentro do qual todos os outros fatos devem ser entendidos e recebem
o seu sentido. A história e a historicidade que dali se deslancha, sua
Surge a pergunta: esses fatos narrados são fatos no sentido de interpretação
historiográfica objetiva ou subjetivo-pessoal? Podemos agravar a pergunta: a pergunta
que pergunta se os fatos narrados são objetivos ou subjetivos é um fato no sentido
historiográfico ou subjetivo? Aqui percebemos que o nosso interesse historiográfico já
de antemão emposta a pergunta na averiguação e confirmação da certeza da ocorrência
de uma ou mais experiências como fato ocorrente. E não se volta na pergunta sobre a
sua própria pergunta, indagando o sentido do ser que sub-põe na compreensão do que
seja ocorrência. Com isso, de antemão, supõe que, para serem reais, os “conteúdos” dos
fatos devem ter o mesmo modo de ser da ocorrência. Como, porém, eles escapam dessa
“malha” grossa de “suposição” significativa, são considerados subjetivos, menos reais. A
questão se agrava ainda mais porque os termos como pessoal, particular, individual,
dentro dessa perspectiva, são como que sinônimos de subjetivo, ao passo que o índice
da excelência no ranking da realidade vai para o que denominamos de geral, comum,
sem se perceber que esse tipo de generalidade ou comunidade está ocultando uma
intersubjetividade dominante toda própria, cuja tipicidade vai na direção do inter-esse
da previsibilidade e calculabilidade de um modo de saber quantitativo-físico-matemático, cujo ser não está suficientemente analisado.
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40
SÃO FRANCISCO DE ASSIS, RB, X, 9.
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OS ESPIRITUAIS, HOJE?
transmissão, seu proceder seguem então a lógica desse fenômeno da
facticidade originária primordial. Por isso na seqüência histórica da
transmissão da herança franciscana relatada por Clareno, por primeiro
vem o mais antigo historiador, João Celano; depois o seguinte, Tomás de
Celano, e depois o mais recente, São Boaventura; e de repente o anterior
aos historiadores como que os envolvendo, como que indicando a repercussão primordial do toque originário, aquele que pertence à origem, frei
Leão. Temos assim a sucessão: João de Celano, Tomás de Celano, frei
Boaventura} • Frei Leão ← São Francisco} ⇐}O Espírito do Senhor e
seu santo modo de operar: = Jesus Cristo Crucificado do Mistério da
Encarnação. Dito com outras palavras: o modo de ser, ver, sentir, agir
e atuar, no qual a realidade não é constituída e interpretada enquanto
realidade a partir e dentro do “realismo” ontológico a modo da realidade físico-material, mas sim a partir do ser, isto é, do sentido do ser que
vem à fala no modo de ser-pessoa, no seu ser, ver, sentir, querer, agir e
atuar, considerando todas as outras dimensões do ser como concreção-repercussões em diversos níveis e áreas desse mesmo sentido do ser, é a concepção dos entes na sua totalidade, característica do pensamento medieval, fundo da paisagem da fala, por exemplo, dos espirituais. Essa
concepção se chama espiritual, pois um tal sentido do ser chama o ser
de espírito41. Esse espiritual, esse espirito, porém, não tem nada a ver
com a divisão dos entes pelo binômio material-espiritual, matériaespírito da metafísica. É antes a palavra-chave, o conceito-chave do pensamento medieval, para indicar o sopro vital, a vida, a essência do que
a Boa Nova do Evangelho chamou de Amor de Deus (genitivo subjetivo: amor que Deus tem para conosco), a se, difusivo de si, do Amor
Não se trata, pois, de espiritualismo. A interpretação da vivência e experiência pessoal
dos medievais como espiritualista, pietista, misticista etc., distorce a perspectiva da
concepção medieval, pois interpreta o sentido do ser todo próprio denominado espiritual do pensamento medieval, a partir do sentido do ser, cuja característica é a dominância
e dominação do binômio subjetividade-objetividade, sujeito-objeto.
41
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HERMÓGENES HARADA
que nos amou primeiro, e se nos doou pessoal, livremente em Jesus
Cristo, seu Filho encarnado e crucificado, nos fazendo seus filhos, para
participarmos da Plenitude da Realização, que consiste na RealidadeMistério do Amor da Santíssima Trindade na Realidade-Mistério da
Encarnação. É o que São Francisco chama de Espírito do Senhor e do
seu santo modo de operar.
Se tudo isso é válido, o texto de Ângelo Clareno acima citado, onde
fala do relacionamento de intimidade profunda e pessoal de Cristo com
Francisco, e de sua radical e total entrega a Ele, não é outra coisa do que, à
semelhança da ponta visível de um iceberg submerso, manifestação
pontualizada de toda uma riquíssima possibilidade inesgotável e insondável do ser. Essa realidade originária, o toque primordial, o “big bang” do
universo medieval cristão é a condição da possibilidade da compreensão,
da realização da história do mundo franciscano, da sua origem, sua evolução, da sua estruturação e lógica, do sentido da sua crise e de lutas internas.
Não é ela, essa realidade, o ser-espírito, que sempre de novo acompanha
cada passo das vicissitudes do ser franciscano, no destinar-se de cada
epocalidade, até hoje, com insistente, penetrante indagação, críticoquestionante do sentido do ser franciscano, o ser da história franciscana e
sua historicidade? Para além, ou melhor, para aquém de toda a polêmica,
de todas as vicissitudes de controvérsias, rixas, intrigas, estreitamento do
ânimo e da inteligência, da ambição do poder, ressentimentos, sofrimentos e heroísmos de entrega e abnegação dos espirituais, das atitudes ambíguas, imposições autoritárias, mas também das preocupações e cuidados
pastorais e pastoralistas da parte da Ordem e da Igreja, sim para além ou
para aquém de tudo isso, o verdadeiro sentido da “rebelião” dos espirituais contra os comunitários não significaria em última instância o aceno da necessidade livre de retomada, sempre nova e cada vez mais
precisa e radical “das questões franciscanas”, a partir e dentro do horizonte da Cientificidade própria que vem do Espírito do Senhor e do seu
modo de operar?
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OS ESPIRITUAIS, HOJE?
Conclusão
Se observarmos bem as colocações das reivindicações dos espirituais, principalmente de um Ângelo Clareno, de um João Pedro de Olivi,
percebemos no fundo de todas as suas articulações e formulações na
luta pela pobreza, seja explicita, seja implicitamente, um questionamento
muito agudo sobre o ser do espírito da Ordem, da Igreja e da Sociedade, que parece ameaçar certas teses fundamentais sobre as quais a Ordem, a Igreja e a Sociedade medieval de então firmavam sua estabilidade, ordem e paz.
O título desse artigo é Os espirituais, hoje? O problema, como foi
dito, é esse ponto de interrogação. Interrogação que ao estar perplexo,
sem saber o que dizer e o que pensar dos espirituais e do seu espírito,
desandou numa lenga lenga que parece não saber bem o que
pergunta...Talvez esse tema teria sido excelente ocasião para mostrar
como, tanto na Ordem como na Igreja, domina sempre de novo a
empáfia, a política do poder que por fim acaba abortando, asfixiando
movimentos de renovação e de volta à fonte originária de inspiração e
aspiração carismática. Ou, numa outra versão, de mostrar como todo
e qualquer movimento de renovação carismática, se não cuidar, se não
se abrir aos sinais dos tempos, ou não ficar atento às sábias admoestações
e orientações da Igreja acaba virando fanatismo e fundamentalismo
talebã... Em vez de aproveitar de todas essas chances de desdobramento,
a exposição acabou de modo muito diletante, questionando no fundo
as abordagens historiográficas da questão dos espirituais, perguntando,
o que são fatos, história e historicidade para essa abordagem
historiográfica. E indagando, de modo muito pretencioso-ignorante,
se nas questões franciscanas não está faltando uma abordagem mais
precisa sobre o que está realmente em questão quando se fala de espírito
e espiritual, como se fosse possível escapar aos grandes e profundos
conhecedores da causa franciscana uma tal questão. E pior, terminando
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HERMÓGENES HARADA
a reflexão com uma apelação piedosa, melhor piega de uma posição
classificável como eflúvio espiritualista de uma espiritualidade de
perfeição pessoal, particular e subjetiva, falando do Espírito do Senhor
e do seu santo modo de operar...!?? Assim, por fim, a nossa exposição,
demonstrou ao vivo a perplexidade pessoal, subjetiva, expressa no ponto
de interrogação do título Os espirituais, hoje? *
À guisa de uma nota final: Espírito de São Francisco, Ordem franciscana, dos frades
Menores, nós de alguma forma espirituais..., nós franciscanos, o que somos, quem
somos, afinal realmente, quando abordamos o espírito de seguimento de São Francisco,
o Espírito do Senhor e do seu santo modo de operar, assim historiograficamente, sem
entrarmos na crise da perplexidade acerca do nosso ser-franciscano? E nós, ao mesmo
tempo, modernos, intelectuais, de alguma forma historiográficos, ou ao menos acadêmicos, pertencentes à grande comunidade da humanidade do saber científico, o que
somos, quem somos afinal, realmente, quando vivemos, nos movemos e somos no
horizonte do saber crítico-científico, quando julgamos, sim até somos capazes de desprezar a ignorância dos simples e iletrados, falamos de tudo, da religião, da espiritualidade,
da religiosidade popular, do espírito, do passado, dos outros povos não europeus, sem
entrarmos na crise da perplexidade diante do nosso saber, pensando saber o saber do
nosso saber, certo, objetivo, objetivante e objetivista, num dogmatismo ontológico
acerca do ser, do sentido do ser, da realidade, sem assumir a acribia e paixão pela busca
dos fundamentos do nosso saber, na precisão e no zelo da dúvida radical, característica
da nossa cientificidade moderna? Como o nosso artigo, no fundo, não disse nada ou
pouco conseguiu dizer, tentemos salvá-lo, citando a Introdução, escrita por Kierkegaard
para o seu livro Com temor e tremor, falando do saber de Descartes e da Fé de Abraão:
*
“Não somente no mundo do agir, mas também no mundo das idéias, o nosso tempo
agencia uma verdadeira liquidação. Tudo se compra num preço tão irrisório que surge
uma pergunta, se por fim se ache alguém que tem ainda oferta. Cada escrivão
especulativo, que conscienciosamente coloca ponto no í sobre o passo significativo da
nova Filosofia, cada docente, repetidor, estudante, cada marcador e instalado na Filosofia, não permanece insistente em duvidar de tudo, mas vai adiante. Talvez fosse
intempestivo e inadequado lhes perguntar, aonde, pois chega propriamente; mas certamente é cortês e modesto, considerar como suposto que tenha duvidado de tudo, já
que senão seria estranho dizer que tenha ido adiante. Esse movimento prévio certamente todos o têm feito e se supõe que o tenham feito com tal facilidade, que não
acham ser necessário gastar uma palavra, nem sequer, sobre a pergunta: como aquele
que com angústia e preocupado busca, encontraria algo como uma pequena informação, como um aceno condutor, uma pequena norma dietética, de como se deve comportar diante dessa imensa tarefa? “Mas Cartesius o tem feito!?” Cartesius, um honrado,
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OS ESPIRITUAIS, HOJE?
humilde, honesto pensador, cujos escritos certamente ninguém pode ler sem a mais
profunda comoção; ele fez o que disse, e disse o que fez. (...) Isto é no nosso tempo uma
grande raridade! Cartesius, como ele mesmo repete muitas vezes, em referência à Fé,
jamais duvidou. (...) O que, aqueles antigos gregos, que entendiam, pois, um pouco da
Filosofia, consideravam como uma tarefa para toda uma vida – porque a disposição
para duvidar não se conquista em dias e semanas; o que esse velho combatente tinha
alcançado, ele que através de todas as armadilhas conservou o equilíbrio da dúvida,
intrépido negou a certeza dos sentidos e a certeza do pensamento, ele que incorruptível
desafiou a angústia do amor próprio e as insinuações do sentimento; - com isso, cada
qual, no nosso tempo, faz o seu começo.
No nosso tempo ninguém permanece insistente na Fé, mas vai adiante. Uma pergunta
que indaga aonde se chega, representaria talvez uma louca ousadia, enquanto é pois
um sinal de educação e formação, se eu suponho, que cada um tem a Fé, já que seria
estranho dizer: a gente vai adiante. Naqueles antigos tempos, era diferente; então a Fé
era uma tarefa para toda uma vida, porque se supunha que a disposição para crer não
se deixa adquirir em dias nem em semanas. Quando então o experiente ancião se
aproximava da morte, tinha combatido o bom combate e conservado a Fé, jovem
bastante era o seu coração para não esquecer aquele temor e aquele tremor que tinha
disciplinado o adolescente, temor e tremor, do qual o varão tornou-se quiçá senhor, por
sobre o qual, porém, nenhum homem pode crescer – a não ser que se tenha conseguido
ir adiante o mais cedo possível” (KIERKEGAARD, Sören, Die Krankheit zum Tode;
Furcht und Zitter. Frankfurt am Main und Hamburg: Fischer Bücherei, 1959, pp.
110-111).
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TRADUÇÕES
COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO)
COMENTÁRIO AO APOCALIPSE
(Expositio in Apocalypsin)
Joaquim de Fiori *
1. O Apocalipse é o último de todos os livros escritos em espírito
de profecia e contidos no cânon das Escrituras Sagradas. Por onde se vê
que é por isso que esse livro é chamado de revelação, pois através dele
nos são transmitidas as obras de Cristo, geradas ou em processo de
geração nessa plenitude dos tempos.
Meu Pai opera até hoje e eu também opero (Jo 5,15). O Pai operou
antigamente nos patriarcas (cf. Hb 1,1), opera agora no Filho Cristo,
a fim de que todos glorifiquem o Filho como glorificam o Pai (cf. Jo
5,23). Pois não é em vão que uma roda se encaixe na roda (cf. Ez 1,16;
10,10), como o Novo Testamento procede do Velho ou o intelecto da
letra espiritual, uma vez que a chave de toda nossa fé consiste na confissão de Pai e Filho. Em terceiro lugar, esperamos realmente um mundo
futuro onde não se desposarão nem serão desposados, não vencem
nem serão vencidos, mas serão como anjos de Deus no céu (Mt 22,30;
Mc 12,25; Lc 20,36) e, disse, serão filhos de Deus, uma vez que são
filhos da ressurreição (Lc 20,36). Por isso, teremos corpos espirituais e
até mesmo repletos do espírito divino, para que a confissão de nossa
piedade, que possuímos no Pai e no Filho, seja consumada no Espírito
Santo e não necessite mais de nenhuma perfeição, pois, na realidade, já
*
Tradução de Fr. Orlando Bernardi.
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JOAQUIM DE FIORI
possuímos em nós o que ao mesmo tempo esperamos no fundamento da esperança. Dessa forma o gênero humano, após a culpa do primeiro homem, necessitava voltar, aos poucos, para o conhecimento
de seu criador, a fim de que em primeiro lugar e, por certo tempo, se
fundasse no Pai e depois brotasse no Filho e, por fim, experimentasse
a doçura do fruto no Espírito Santo, mas também para que, depois de
um longo tempo, levado ao gáudio celeste, goze amplamente e tanto
mais aumente para ele a alegria da glória que conquistou quanto mais
suportou a tristeza sofrida em seu exílio.
Por isso, o primeiro Testamento se refere ao Pai, porque por meio
dele Deus Pai se revelou aos pais. O segundo se refere ao Filho, porque
por ele Cristo tornou-se conhecido aos filhos dos patriarcas, isto é, a
nós. Sabiamente o Espírito Santo, que é a terceira pessoa da santa Trindade, foi dado de modo admirável aos apóstolos no dia da páscoa, a
fim de que permanecessem na expectativa que lhes seria ainda dado;
certamente é pela mesma razão do mistério que o dia de pentecostes
designa ultimamente o dia da solenidade (cf. Esd 8,18). Mas continuemos brevemente o que não pode ser abreviado por causa da dignidade do discurso, isto é, aquelas coisas que foram dadas no dia da páscoa
(cf. Jo 20,22s): os olhos não perceberam algo e muito menos sua grande
força foi percebida, como posteriormente aconteceu, porém no dia de
pentecostes as línguas de fogo foram percebidas pelos olhos e o estrépito pelos ouvidos (cf. At 2,2-6) e foi sentida também a grande força
do amor e da sabedoria. De fato, tudo isso nada mais designa senão o
que possuímos pela fé e pela esperança. Pois o que mais afirma nossa fé
senão que acreditamos que os batizados em Cristo foram mortificados pelo pecado, foram ressuscitados pela justiça na forma da paixão e
ressurreição do Senhor e que foi dado o Espírito Santo a todos que
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COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO)
foram catolicamente batizados? Portanto, recebemos agora pela imposição de suas mãos o Espírito Santo que os apóstolos receberam no
dia da Páscoa, para a remissão dos pecados (cf. Jo 20,23); no futuro,
porém, esperamos o mesmo Espírito para a glória e a felicidade, de
acordo com a plenitude e virtude de seus dons.
No entanto, as ações do Testamento passado certamente nos confiam, de viva voz, as histórias literais para que a raiz de nossa fé se firme
num fundamento sólido. Os acontecimentos, porém, do Novo Testamento eram ainda futuros quando Cristo entrou no mundo e porque historicamente ainda não podiam ter sido escritos, foram
condensados no livro do Apocalipse como palavras proféticas a fim de
que a idade juvenil aprendesse voando com a andorinha (cf. Jr 8,7) a
receber o alimento espiritual e pudesse por meio da sabedoria rejeitar
as palavras históricas como carne deteriorada ou cadáver.
Certamente, no futuro, faltam não apenas as palavras históricas e
aquelas coisas que parecem ter sabor de terra, mas também cessarão as
palavras místicas que através de figuras e enigmas são apresentadas aos
prudentes, e isso porque já não vemos por meio de algumas figuras,
mas veremos em espírito a face de nosso Deus criador, tornados semelhantes a ele, de acordo com João que afirma: Sabemos que, quando
aparecer, seremos semelhantes a ele, pois o veremos como ele é (1Jo 3,2).
Por isso, verdadeiramente afirmamos que podemos expor o assunto do livro do Apocalipse e desvencilhar qual seja a intenção da
obra. Pois é fácil para Deus conceder aos que pedem desde que haja fé.
Com efeito, a mente se recusa a escavar e fatigar-se com trabalhos
inúteis, a não ser que julgue existir um tesouro em algum lugar.
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JOAQUIM DE FIORI
2. Por isso, deve-se agora considerar o curso dos tempos passados
aos quais se dedicavam as obras do Antigo Testamento, no volume
sagrado, a fim de que possamos compreender distintamente também
essa sexta idade, que contém em si toda plenitude do Novo Testamento, e de que maneira se atribuem os tempos próprios a cada uma das
partes do Apocalipse. Em primeiro lugar, expor simplesmente e depois, com a autoridade de Cristo, comprovar para as autoridades idôneas.
É costume na Igreja afirmar que somente existem seis idades do
mundo, de acordo com os seis dias em que Deus fez toda sua obra. A
sétima, porém, não está nas obras, mas foi dada às almas que descansam. Por isso, nas obras há seis idades do mundo, das quais cinco
pertencem ao Antigo Testamento e a sexta ao Novo. Como afirma o
Apóstolo, nós estamos naquela que se tornou a plenitude dos tempos
(1Cor 10,11). A primeira idade começou com Adão e terminou no
tempo do justo Noé. A segunda começou com Abraão, a terceira com
Davi, a quarta com a deportação para a Babilônia, a quinta com o
advento do sacratíssimo salvador do mundo e a sexta foi iniciada por
ele. Desde o início não se sabia quando Deus todo-poderoso dispunha
isso, mas ficou conhecido quando se iniciou a sexta idade, depois que
Cristo ressuscitou dos mortos, quando também desvendou aos discípulos o sentido para que entendessem as escrituras (cf. Lc 24,27). Isso
é verdadeiro a respeito do passado. Isso porque, o que ainda era futuro
no Novo Testamento, ainda estava em gérmen e não se podia saber
nem averiguar, a não ser apenas no espírito da profecia.
Mas também o futuro não existia. Já percebemos que devia-se
enviar algum profeta depois dos apóstolos e evangelistas que reunisse
as histórias eclesiásticas como indicadoras de algo, assim como outrora
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COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO)
se fazia no Antigo e para que o livro não fosse obrigado a permanecer
sob o pedagogo (cf. Gl 3,24s), para a contemplação, como outrora,
do povo judeu. Pois onde se fala da profecia do Espírito o pesquisador
das Escrituras se cala e se presume que empalidece como assombrado
pelo poder. Daí que se diz das almas santas: Quando soava a voz sobre o
firmamento que estava por cima de suas cabeças e quando paravam deixavam pender as asas (Ez 1,25; cf. 10,1). Com efeito, quando penetramos para contemplar os mistérios secretos, somos levados, com asas
para o mais alto dos céus, mas quando soa a voz sobre o firmamento,
rapidamente depomos as asas, pois é necessário que o homem, por
mais que esteja pleno da graça, silencie e cale sua voz, porque o próprio
Espírito fala. Embora os santos animais tenham asas para contemplar,
pelas quais podem compreender aquelas coisas que estão colocadas
debaixo do firmamento, quer dizer, no volume das Sagradas Escrituras, quando se faz ouvir a voz por cima do firmamento, deixam pender as asas, porque quando o Espírito da profecia fala alguma coisa
pelos profetas, que não está nos códices sagrados, rapidamente abandonam sua contemplação e para que se dê a honra ao Espírito Santo se
submetem a sua liberdade. Na verdade, isso raramente acontece e mais
raramente ainda é recebido no Novo Testamento, para que também
possamos progredir contemplando o livro e afastar os absurdos dos
falsos profetas.
Por causa disso, teve que escrever uma profecia geral para conhecer
as práticas desse tempo aquele a quem quase o mundo todo reconheceu ser o dileto de Cristo e o camareiro do palácio celeste, para que a
Igreja dos cristãos soubesse excluir as profanas novidades e evitar as
peregrinas profecias que lhe fossem contrárias. Afasta quem quer restringir o fim do mundo para um circulo menor de anos, a fim de
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JOAQUIM DE FIORI
perturbar os corações indecisos com um temor infecundo, ou a quem
prometer milhares de anos para permitir continuar apegado aos prazeres. Tu, porém, guarda a forma e a medida das escrituras que te foi
dada, compreendendo piedosamente que aquele que possui a chave
(cf. Ap 3,7; 5,2-5) explica humildemente aos que é negado o acesso.
Não extingas o espírito, mas permita provar se provém de Deus (cf.
1Ts 5,19-21). Isso porque está escrito no livro do profeta Daniel: Vai,
Daniel, essas palavras permanecem secretas e lacradas até o tempo predeterminado (Dn 12,9). Pois muitos passarão e o saber será múltiplo (Dn
12,4). Quem, afinal, afirma isso proibiu que o espírito seja extinto. E
quem disse: não acrediteis em qualquer espírito, mas examinai os espíritos para ver se provêm de Deus (1Jo 4,1), indubitavelmente acrescentou cautela no discernimento.
No entanto, para que possamos rejeitar conjecturas apócrifas e esquadrinhar, com a ajuda do Senhor, as coisas profundas desse livro,
deve-se antes de tudo considerar que como o universo dos tempos
continua em seis grandes etapas, da mesma forma a sexta idade, que é
a presente, deve ser limitada em seis pequenas idades. Como o conjunto todo das antigas escrituras era cercado por sete selos, da mesma
forma esse livro se manifesta através de sete revelações, a respeito das
quais cada um dos Testamentos dá notícia. Essas, para dar fé aos que
perguntam, desde muito tempo são convertidas em figuras. Com efeito, os sete tempos desde Jacó patriarca até Cristo se mostram diferentes com novos combates, nos quais a escritura do Antigo Testamento
se encontra reunida, e de igual maneira desde a chegada de Cristo até o
fim do mundo reunimos sete, agora a respeito do fim do mundo e da
revelação desse livro. Assim como o que foi realizado em cinco idades
só ficou claro que eram coisas espirituais no final da quinta, quando
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COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO)
apareceu o Cristo Senhor, da mesma forma as coisas que o livro do
Apocalipse continha a respeito dos tempos eclesiásticos só puderam se
revelar racionalmente no final da quinta revelação.
Além disso, o que dissemos dos sete tempos que se iniciaram em
Jacó patriarca, se tem outra compreensão, de modo que os testemunhos são apresentados de dois admiráveis modos e com diferentes fins,
mas que se unem numa só compreensão. Por isso me é por demais
trabalhoso explicar, contanto que não seja mais obscuro ao ouvinte.
Por causa disso não seja oneroso se nos demorarmos no fundamento
para que – se não nos demoramos aqui – a casa sobreposta não caia.
3. Quando se quer chegar à doçura da noz, em primeiro lugar, se
faz necessário retirar a casca e depois a pele, chegando por fim ao miolo. Da mesma forma acontece com o mistério que nos ocupa agora, de
dois modos admiráveis se chega ao invólucro. Em terceiro lugar permanece como carne vivente, a qual se busca. Deve-se então remover a
túnica para que apareça a veste, tirar a veste a fim de que se mostre a
carne. Abre-se o sepulcro para que apareça o lençol de Cristo (cf. Lc
24,12; Jo 20,5ss). Retire-se o lençol para que saia então o Cristo vivo.
Por isso, abre-se o sepulcro quando se abre esse mistério geral que se
encontrava inteiramente ali dentro. Retiram-se os lençóis quando se
chega ao segundo gênero do mistério que se esconde nas figuras. Cristo, porém, que é a verdade, designa a compreensão espiritual.
a. Por isso a respeito da primeira série geral dos tempos, devem-se
em primeiro lugar ver aquelas coisas que admitem distinção em cinco
e sete partes, isto é, em cinco épocas desde Adão até Cristo, e em sete
pequenas épocas que se deduzem de seis partes da idade. Grande é esse
mistério e é um leal e verdadeiro sacramento. Penetremos mais para
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JOAQUIM DE FIORI
dentro a fim de que se tome um sólido fundamento. Embora não haja
dúvidas de que desde Abraão até Cristo transcorreram cinco épocas,
embora se deva dividir a sexta época em pequenas etapas, o que se
comprova da série desse livro, para que, nessa parte, não decepcionemos a alguém menos crédulo, julgamos ser bom nalgum ponto apresentar testemunhas sobre o valor da obra, que mostram por meio dos
testemunhos evidentíssimos das obras, bem como provavelmente fortifiquem também a outros com testemunhos verdadeiros.
É patente a todos os católicos que foram doze as tribos que dividiram entre si a terra dos cananeus a mando do Senhor. Cinco dessas
tribos, que pareciam ser as maiores, receberam por primeiro a herança.
Por fim, sete tribos dividiram, por sorte, entre si a terra (cf. Js 12,16;
13,7s; 18,5.7.10ss). As cinco tribos foram portanto as de Rubem,
Gad, Manasses, Efraim, junto com a de Judas. Portanto, essas cinco
tribos designam cinco idades do tempo; mas as sete que receberam as
heranças por últimas indicam as sete porções dessa sexta etapa, que
agora herdam suas moradas no final dos séculos. Um homem previdente se indaga diligente e escrupulosamente por que apenas duas tribos e meia foram dividas, por arte da providência, igual e proporcionalmente, recebendo as regiões orientais da margem do Rio Jordão e
por que apenas duas tribos e meia dessa parte? Admire-se esse grande e
manifesto mistério, em nada diferente do mesmo! Com efeito, direta
e evidentemente duas tribos e meia foram designadas para a parte oriental do rio, porque existiram duas idades e meia sem lei, desde Adão
até Moisés, duas e meia, porém, sob a lei, desde Moisés até Cristo.
Desse modo, também sete tribos, que significam a multidão dos fiéis,
de acordo com o número septiforme da graça, receberam a herança
por últimas.
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COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO)
O novo mistério das igrejas concorda com esse antigo, já que conhecemos as cinco igrejas principais que são a de Roma, a de
Constantinopla, a de Alexandria, a de Antioquia e a de Jerusalém, o
profeta diz. Haverá cinco cidades na terra do Egito, que falarão a língua
de Canaã; e uma delas será chamada cidade do sol (Is 19,18). Assim, a
tribo de Rubens concorda com a igreja de Jerusalém, pois ambas perderam a primogenitura – Rubem, porque subiu o leito de seu pai (Gn
49,4; 35,22), esta porque, com a semente da palavra, procurava judaizar
os fiéis gentios (At 15,1.5) que professavam a fé. Gad recebeu a segunda herança após Rubens; a segunda igreja a ser fundada depois da de
Jerusalém foi a igreja da Antioquia. Manasses foi o primogênito de
José, mas o escolhido foi seu irmão menor Efraim (Gn 48,14.19);
antes escrevia-se, primeiramente, a igreja de Alexandria, mas agora vem
registrada antes a de Constantinopla, que é mais jovem que aquela. A
tribo de Judá é tribo régia, onde foi fundado o templo, sabe-se
comprovadamente estar referida à igreja romana, cujo sacerdócio real é
presidido por Deus (1Pe 2,9). Esta é a cidade do sol, aquela a própria
igreja de Cristo. As sete tribos referem-se às sete igrejas de João, a fim
de que os dois testamentos dêem fé da verdade una.
Assim, as cinco igrejas principais significam que há cinco tribos
principais. As sete tribos restantes significam que foram instituídas
sete igrejas na Ásia pelos apóstolos. O fato é que, seja em cinco tribos
ou em cinco igrejas, designam cinco idades do mundo, desde Adão até
Cristo e até o final do tempo dos apóstolos, quando começou a dar-se
o final do povo circunciso, por causa do que está escrito: Comereis as
colheitas antigas, bem conservadas, e lançareis fora as velhas, para dar
lugar às novas (Lv 26,10). Portanto, não são eliminadas as coisas antigas tão logo tenha começado o novo, mas deve-se esperar até o ponto
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JOAQUIM DE FIORI
em que a nova plantação vinge. Realmente, nas sete tribos e nas sete
igrejas, são designadas setes gerações dos tempos novos, que se sucedem seriadamente, e sucessivamente perpassam do primeiro advento
de Cristo até o final, dos quais explana o livro do Apocalipse, como
dissemos acima. As cinco idades do mundo, portanto, têm suas histórias, pelas quais proclamam as obras geradas antigamente. Mas, como
dissemos, este livro, tão distinto ou dividido como parece ser distinta
essa idade por suas obras, se dedica a esta sexta idade.
Cremos que basta mencionarmos dois testemunhos, admiravelmente concordantes entre si, para esse assunto. Mas como está escrito:
Toda palavra se confirma na boca de duas ou de três testemunhas (Mt
18,16), daremos a Cristo também uma terceira. E uma vez que para
Deus filho, poder e querer são sempre o mesmo, lê-se que às vezes
sentia fome, às vezes passava sede junto com os discípulos, lemos também que surpreendia a turba, o que se deu duas vezes apenas, pela
razão de que a sabedoria nada faz em oposição à sabedoria, como o ser
do Pai ensina por suas obras a sabedoria. Primeiro abençoou cinco
pães, certamente não de trigo, mas de cevada (cf. Jo 6,9ss; Mc 6,41;
Mt 14,17; Lc 9,16); depois sete, que de modo algum eram de cevada,
mas crê-se terem sido de trigo (cf. Mc 8,2; Mt 15,36). E o que pelos
cinco pães quis significar senão os cinco livros de Moisés ou mesmo os
livros das histórias que o espírito divino uniu em cinco idades do
mundo para indicar algo ao povo infantil dos judeus? O que pelos sete
pães quis indicar senão esse livro que só ele, entre todos os outros,
consta ter sido composto pelo espírito septiforme?
No último momento da quinta idade, portanto, quando esse livro ainda não fora composto, o Senhor abençoou com cinco pães.
Abençoam-se agora também os sete pães na última abertura do quinto
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COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO)
selo, para que a multidão que já há três dias (Mc 8,2; Mt 15,32) o segue
não desfaleça no caminho, por não ter o que comer, tendo já comido os
fragmentos que sobraram do pão de cevada – não que essa explicação seja
falha no ler, mas porque o espírito delicado requer de algum modo um
novo alimento e embora satisfeito de muitas iguarias, contudo ainda está
faminto de não sabe o que, de acordo com o homem sábio: A vista não se
cansa de ver, nem o ouvido de ouvir (Ecle 1,8). Pois, assim como a carne
satisfeita com muitas iguarias não deixa de sentir fome, da mesma forma
também a alma instruída com muitas escrituras. Por mais forte e gordo
que seja o homem, contudo se não possui o que comer, enfraquece e sem
forcas definha. Da mesma forma também a mente do homem, embora
saiba muitas coisas, deseja sempre mais e se renova com aquelas coisas
sempre de novo acrescidas mais do que com aquelas que gera no estômago da mente. O que significam os três, melhor e mais fluentemente será mostrado na obra da concordância. Aqueles três dias são aqueles
que, depois de três dias, Jesus Cristo é encontrado pela mãe no templo
(cf. Lc 2,46), são também os três anos depois dos quais Davi chamou
de volta a Absalão rejeitado.
Mas, se for do agrado, coloquemos essas coisas na casca da noz a
fim de que mostremos algo da pele, enquanto em terceiro lugar trazemos a gordura do alimento.
b. Desde Moisés até João Batista, lê-se terem se consumado sete
tribulações, de acordo com aquilo que está escrito: ferir-vos-ei sete vezes pelos pecados (Lv 26,24). Contudo, note-se que se deve tomar as
duas últimas tribulações em lugar de uma, porque no sexto dia deve-se
colher o fruto em dobro. O que corretamente está designado no
Pentateuco de Moisés, onde por aquilo que foi realizado corporalmente por aquele povo, mostra-se algo que devia ser realizado no espí-
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JOAQUIM DE FIORI
rito. Com efeito, Moisés ordenou aos filhos de Israel (Ex 16) que
saíam da terra do Egito, que ajuntassem para si, por cinco dias, uma
medida individual de maná celeste e apenas na sexta-feira ajuntassem
em dobro, uma medida para o mesmo dia e outra para o sábado, dia
em que não era permitido fazer ação alguma. Desse modo, em seis
dias se juntavam sete medidas de maná. Aquele maná vindo do céu
significava a divina escritura que, em seis tempos determinados, foi
reunida dos feitos daquele povo, para que no devido tempo alimentasse as mentes dos espirituais. Há tempo para colher e tempo para
comer (cf. Ecle 3,2ss). Outros colheram e nós, indigna e imerecidamente, tomamos posse de suas obras (cf. Jo 4,38).
Com efeito, com os cinco dias em que se colhiam cinco medidas
de maná, se designam os cinco tempos, nos quais são abertos os cinco
selos. O maná, porém, significa as palavras espirituais que descem do
céu. Ademais, na sexta-feira se juntam duas medidas, porque na sexta
abertura do selo se realizam ao mesmo tempo dois mistérios, quer
dizer, na abertura do sexto selo se revelam o sexto e o sétimo selo, o
sexto, porém, antes do sétimo. Contudo, foi muito bem prescrito
que se comesse cada quantidade em cada dia a fim de que nada sobrasse para o dia seguinte (cf. Ex 16,19s), porque aquela escritura que
indica a obra do Senhor que deve ser feita nos tempos, sem dúvida são
realizadas em cada tempo, umas depois das outras. Mas aquele maná
guardado até a manhã seguinte apodrece. Que outra coisa deve significar isso, senão que toda escritura se realiza ao ser consumada e porque
significa o devir do que foi feito, para o julgamento e não para a justiça
daquele que espera mais que o sinal que lhe foi dado (cf. Mt 12,39;
16,4; Lc11,29)? Como se aquele maná que anunciava o Cristo futuro
apodrecesse nos corações dos judeus e dele se desenvolvessem os ver-
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COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO)
mes para seu julgamento e para as condenações, conforme com o que
o Senhor afirma: A palavra que vos anuncio, ela mesma vos julgará no
último dia (Jo 12,48). Com efeito, a palavra de Deus e do maná é
alimento para os que crêem, os fiéis, ou verme e condenação para os
que não crêem. Eis então quais são os escritos sobre aquelas coisas que
no tempo presente esperamos deverem se consumar. Tudo isso, se for
acreditado, é maná e bebida de salvação. Contudo, se forem reservadas
para o futuro apodrecem, e daí se apresentam aos não crentes como
vermes para o julgamento e para a ruína.
Sete são os combates gerais que se deram sob a lei, conforme aquilo que está escrito: De seis perigos te salva e no sétimo não sofrerás mal
algum (Jó 5,19). Descreve seis tribulações porque duas são tomadas
por uma. Da mesma forma, se descrevem sete batalhas, mas de vez em
quando se descrevem só seis, porque a Igreja dos eleitos é instituída,
provada, purificada e libertada em seis tribulações e na sétima o mal já
não a atinge, porque descansa de todos os trabalhos (cf. Ap 14,13).
Contudo, enumeram-se sete batalhas, que pertencem à série das histórias: primeiro dos egípcios, segundo dos cananeus, terceiro dos sírios,
quarto dos assírios, quinto dos caldeus, sexto contra os medos da
Babilônia e contra os filhos de Israel, um resto que parece ter sucumbido no quarto tempo dos assírios (cf. 2Rs 17). A sétima batalha foi a
dos gregos, quando o rei Antíoco profanou a cidade santa e o templo
(cf. 1Mc 1,56s) e quem pode fugir se escondeu nas montanhas.
c. São esses portanto os sete selos com que o livro estava selado,
porque o que significavam era desconhecido até que Cristo os abrisse.
Cristo os abriu quando realizou o que neles estava escrito. Pois se buscas o que tipicamente os egípcios significavam, encontramos novos
egípcios piores que aqueles que perseguiam também a Cristo e os após-
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tolos e mantinham presos os fiéis nas obras da carne, proibindo-os de
alimentar-se com a liberdade da graça e de ir pregar ao povo dos gentios. Por isso, o primeiro combate da Igreja com os judeus aconteceu
por exemplo como foi com os novos egípcios, quando na luta se abriu
o primeiro selo.
Eis que aparece o núcleo que a casca escondia; aparece a verdade
viva, que os lençóis escondiam no sepulcro. A quem acreditou que era
assim, me seja suficiente apenas tocar brevemente no tema. A quem,
porém, exige para si uma fé mais plena, espere a íntegra da obra a fim
de saber o que julga e o que condena. Ninguém duvida que todas essas
coisas são possíveis para Deus e, apesar disso, muitos julgam não poder vir a ser o que sabem ser possível.
Mas passemos para os restantes selos, mostrando, não expondo,
de que modo, nos tempos próprios, esse selos são abertos por Cristo
Senhor. O segundo selo contém as guerras dos cananeus; na Igreja isso
significou o conflito com os pagãos. Abriu-se então o segundo selo
nos tempos dos pagãos. O terceiro selo contém as lutas dos sírios e de
outros povos, pelas quais na Igreja surgiram as guerras dos persas e dos
godos, dos vândalos e dos longobardos. O quarto selo contém as guerras
dos assírios, pelas quais o povo pestífero dos sarracenos se insurgiu
contra a Igreja, os quais praticaram ações no povo cristão iguais às que
fizeram aqueles outros no povo de Israel. Seguem-se os caldeus sob o
quinto selo e por eles se significam os novos caldeus e babilônios que
perseguem a nova Jerusalém espiritual. Por isso, o quinto selo é aberto
na quinta batalha. O sexto selo, porém, mostra a perseguição da
Babilônia e a repetida perseguição dos assírios, descrita no livro que se
chama Judite; ali, na sexta parte do livro mostra-se claramente que
coisas semelhantes aconteceriam no sexto tempo da Igreja. Sob o mes242
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COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO)
mo selo, na época de Antíoco, segue-se um período de muita violência
e na Igreja se dá a tribulação do anticristo, a qual dará fim a todas as
lutas. O sétimo selo impõe o fim da lei, a sétima abertura revela que
tudo se consumou. Sob esse selo, foi enviado João Batista, de quem se
diz: a lei e os profetas até João (Lc 16,16) Batista. Sobre isso pregou
Elias, de quem se diz: Quando Elias vier, ele mesmo restabelecerá tudo
(Mc 9,12). E o profeta: Eis que vou enviar-vos Elias, antes que chegue o
dia do Senhor, grande e terrível (Ml 3,23).
Em oitavo lugar, porém, o abrir o primeiro selo deve significar o
tempo da ressurreição do Senhor, no qual o Espírito Santo foi enviado
sobre cento e vinte fiéis (cf. At 1,15), ornando aquela santa Igreja com
dons celestes e dando origem a um tipo de Jerusalém celestial, a respeito da qual se trata plenamente em oitavo lugar no final desse livro na
parte sétima.
II. 1. Antes de dizermos qualquer coisa, precisamos adiantar alguns pontos a respeito do livro do Apocalipse. Primeiro, que esse livro
vem munido de um título, de uma saudação e de um prefácio e depois
que está dividido em sete partes e termina com os tempos. O título é
o que se apresenta antes da saudação; o prefácio é o que a segue, até
aquele lugar em que se afirma: E escreve ao anjo da Igreja de Éfeso (Ap
2,1). Embora não apenas nessa primeira parte, mas também em cada
uma das sete partes parece proceder como no prefácio: primeiro colhese como num lago e depois como se desembocasse num rio.
A primeira parte de sete trata das igrejas, a segunda dos sete sinais,
a terceira dos sete anjos com tubas sonantes, a quarta da mulher revestida
de sol e de seu parto, a quinta dos sete anjos que saem do templo da
tenda e têm sete taças cheias da ira de Deus para serem derramadas
sobre a terra, a sexta da ruína da Babilônia, da luta de Cristo com a
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besta e daqueles que eram com ela pseudoprofetas e, por último, da
destruição do diabo que devia seduzir os povos. A sexta parte, como
foi dito, se divide em duas e deve ser tomada como duas. A sétima
parte, contudo, trata do juízo e da glória da cidade celestial.
b. Tudo isso está indicado naqueles oito dias que o filho unigênito
de Deus consagrou com a primeira e a segunda aparição, depois que
ressuscitou dos mortos. Essa é a sua configuração: de princípio, a primeira parte concorda com o dia da ressurreição, a segunda com o segundo, a terceira com o terceiro, a quarta com o quarto, a quinta com
o quinto e a sexta com o sexto. Falta, porém, o sétimo dia, ao qual não
se lhe atribui nenhuma parte do livro, porque de fato a sétima parte
deve ser atribuída ao oitavo dia.
c. Por isso, na primeira parte se trata da cura pastoral na forma de
sete estrelas ou anjos; a segunda trata das lutas dos mártires no mistério dos sete selos; a terceira, da luta dos doutores na forma dos anjos
com tubas que soam; a quarta, da luta dos eremitas e das virgens na
forma da mulher revestida de sol e daqueles que são de sua raça; a
quinta, do zelo dos homens espirituais, cuja luta se opõe às perversões
do mundo que percebe com seus olhos. A sexta parte, contra a
Babilônia, quer dizer, contra as perversões do mundo, às quais se aplica uma condenação definitiva. A seguir contra muitos povos que se
insurgem contra o nome de Cristo e por último, porém, contra o filho
da perdição (cf. 2Ts 2,3) e contra os povos, seduzidos para essas lutas.
Dessa forma, depois de terminado o tempo, se descreve a glória do
reino celeste na figura da cidade preciosa.
2. Nesse livro chamam a atenção, do ponto de vista espiritual,
cinco grupos: os apóstolos, os mártires, os confessores e as virgens e
em seguida os clérigos ou os monges da Igreja universal e todos os que
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COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO)
vivem na unidade da fé. Contra eles, o diabo enviou suas tropas: os
judeus, os pagãos, os arianos e os árabes e, por último, uma turba
universal da multidão desesperada.
Os quatro animais, isto é, o leão, o boi, o homem e a águia, significam quatro grupos especiais (2Ts 2,3); o leão indica a ordem dos
pastores, o boi, a dos mártires, o homem, a dos doutores e a águia, a
dos contemplativos. Essas são as quatro comitivas espirituais do rei do
sul (cf. Dn 11,5ss), contra as quais o rei do norte dirigiu animais muito ferozes, isto é, a leão, o urso, o leopardo e outro cuja figura Daniel
não indicou (Dn 7,4ss). Significavam aquela espécie de perseguidores,
acima mencionada, os judeus, os pagãos, os arianos e os árabes. Em
quinto lugar se mostra a cadeira (Ap 4,6), isto é, a Igreja universal, da
qual saem os homens espirituais, cheios de zelo, a fim de derramar
suas pragas de acordo com as perversões da Babilônia. Na quinta luta
termina o conflito da Igreja. Mas o que se segue no sexto selo é como
ver a novidade de outro tempo.
Assim, o primeiro tempo foi dos apóstolos, o segundo dos mártires, o terceiro dos doutores, o quarto dos eremitas e das virgens e o
quinto da Igreja universal. Com efeito, o sexto tempo foi reservado
para o juízo dos maus, no qual o povo israelita se converterá para a fé,
por meio de alguma paz entre as duas últimas tribulações nas quais se
duplica a abertura do sexto selo. Como antigamente, quando a Babilônia
foi vencida, a velha Jerusalém foi edificada em tempos de angústia (cf.
Dn 9,25), e não muito depois se seguiu a terrível calamidade de Antíoco,
da mesma forma agora se faz algo semelhante no sexto tempo.
Por conseguinte, os tempos dos apóstolos e dos mártires se estenderam até Constantino Augusto; o tempo dos doutores e dos que levavam
vida solitária foi até o famosíssimo príncipe Carlos; o tempo dos monges
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e dos clérigos se estendeu desde o mesmo príncipe até hoje. Em todo o
caso, eis que se aproxima um tempo de grande tribulação. Quando se diz
paz e segurança (1Ts 5,3), é como se surgisse um turbilhão. A temporalidade
compreende, portanto, seis etapas do mundo; a sexta idade do mundo
compreende no mesmo sentido seis tempos.
3. Mas daqui nascem duas questões não supersticiosas nem estéreis. Se alguém afirma que os próprios tempos são diferentes em cada
parte, como então cada uma das cinco partes se divide em sete divisões? E se existem tempos próprios dos pastores, dos mártires, dos
doutores e das virgens e igualmente da Igreja universal: como no primeiro tempo que se afirma ser próprio dos pastores existiram mártires, doutores, contemplativos e quem levava vida comum?
A isso se responde: Se as ordens singulares são distribuídas assim
tão distintamente em idades singulares, de modo a não receberem
qualquer comunhão umas das outras, nem esse livro seria de difícil
compreensão nem a mutação dos tempos seria confusa ao juízo. Assim, o que nesse livro se trata conforme as espécies é diferente daquilo
que passa para o gênero do que é necessário de modo especial em cada
tempo, e é diferente do que se faz de modo comum; isso porque é pela
mesma necessidade que somos obrigados a discutir aquilo que é, para
que não se deixe de lado o gênero na espécie, e nem se confunda a
espécie no gênero.
Por exemplo, a escritura nos fala de quatro animais, pelos quais se
designam os quatro evangelistas e quatro classes de santos: o leão, o
boi, o homem e a águia (Ap 4,6ss). Têm-se aqui quatro especiais, pois
nem o leão é boi, nem o boi é homem e nem o homem é águia.
Embora sendo assim, descobre-se que cada um dos animais, de acordo
com Ezequiel, possui quatro rostos, isto é, do leão, do boi, do ho246
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COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO)
mem e da águia (Ez 1,6-10). Por causa disso, também se sabe que o
leão participa de três propriedades do boi, do homem e da águia; o
boi, do leão, do homem e da águia; o homem, do leão, do boi e da
águia, e a águia, do leão, do boi e do homem. Da mesma forma também o tempo dos pastores ou dos apóstolos possuiu mártires, doutores e virgens, bem como o tempo dos mártires teve pastores, doutores
e virgens e o tempo dos doutores teve pastores, mártires e virgens,
também no tempo das virgens havia pastores, mártires e doutores. De
modo semelhante, deve-se entender o quinto tempo que acima anunciamos pertencer mais especificamente à “cadeira”, onde mesmo que se
incluam coisas do sexto, por causa disso não se acrescenta nenhuma
dificuldade.
Por isso voltemos, agora, para as ordens. A primeira ordem na
Igreja é a dos pastores, primeira no tempo e na dignidade. No tempo
é a primeira não porque começou imediatamente e logo desapareceu
para que se iniciasse uma segunda, mas primeira porque por primeiro
começou. Iniciou-se de Cristo e em Cristo de Pedro. Ele mesmo depois de Cristo é o primeiro de todos os pastores, pois não precisa ser
comprovado por palavras que é o primeiro em ordem de dignidade,
uma vez que não pode ser tido como católico quem disser que um
cristão não está sujeito ao Pontífice romano, independente do gênero
ou da virtude.
Se a primeira classe é dos pastores quer pela dignidade, quer pelo
tempo, de modo algum deve-se crer que seja por simples vontade que
a primeira parte do livro (Ap 3-4) trate dos pastores, mas pelo exigente juízo da razão. E porque os pastores não são pastores para si mesmos, mas para as igrejas que lhes foram confiadas; acrescentam-se nessa parte, aos pastores, as plebes dos submissos, isto é, a Igreja, pelas
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JOAQUIM DE FIORI
quais se designa a totalidade dos fiéis, de acordo com o que acima se
dispôs quando se fez menção das sete tribos.
Por que a ordem dos pastores é compreendida pelo número sete?
Porque sete são os tempos próprios para as sete ordens e nelas por sete
tempos não faltaram pastores. Por isso que o tempo próprio dos pastores é chamado de primeiro tempo e o dos mártires segundo, o dos
doutores terceiro, o das virgens quarto e o dos monges quinto. Por
isso, os convertidos e os casados devem ser incluídos no sexto lugar.
Embora sua instituição descenda da ordem dos monges. No primeiro
tempo, todas essas ordens existiram, por assim dizer, na família dos
pastores, depois na dos mártires, em terceiro lugar na dos doutores,
em quarto na das virgens, em quinto na dos monges, em sexto na dos
convertidos e dos casados, em sexto lugar, nos últimos tempos esses
dois manifestaram-se quase que simultaneamente.
Sendo assim, pode-se considerar o que foi próprio de cada um e
como todos através de cada um se comunicam com cada um. Foi
próprio dos apóstolos esvaziar a letra para que se instituísse o espírito;
o próprio dos mártires foi esvaziar a idolatria a fim de instituir a cultura do único Deus; o próprio dos doutores foi vencer as heresias para
instituir a verdade de Cristo; o próprio dos contemplativos foi tirar do
mundo a luxúria para que se percebessem as alegrias dos céus; foi próprio dos monges forçar os vagantes e os inconstantes a fim de que
guardassem a virtude da unidade. Essas são as cinco principais ordens,
atribuídas às cinco partes do livro e com eles se aperfeiçoam as cinco
partes da cidade celeste, às quais se ajunta também a ordem dos convertidos, como pertencentes ao subúrbio, e a dos casados, como se
pertencesse a aldeias, das quais se diz: Em todas as suas aldeias se cantava aleluia (Tb 13,22). Assim, porque cada uma das ordens foi
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COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO)
esclarecida por cada um dos tempos, de modo semelhante, cada um
dos tempos é atribuído a cada uma das ordens. Na verdade, porque
em cada um dos tempos e em cada combate todas as ordens estão
presentes, corretamente prova-se que cada uma delas possuía algo comum com todas. No entanto, de maneira melhor se mostrará se tudo
isso de que falamos for repetido abaixo.
4. A primeira ordem é a dos pastores, e por isso na primeira parte
se trata dos pastores. Contudo, visto que a mesma ordem passando
dos tempos para os tempos participa das opressões de todos, uma ordem implica sete anjos, que são a Igreja de Éfeso, de Esmirna, de
Pérgamo, de Tiatira, de Sardes, de Filadélfia e de Laodicéia. Nelas, se
conseguirmos intuir com sutileza, vamos encontrar que o primeiro
anjo se refere a um tempo próprio, isto é, dos apóstolos, o segundo ao
tempo dos mártires, o terceiro dos doutores, o quarto das virgens, o
quinto dos monges, o sexto dos convertidos e casados. No entanto,
nessas ordens deve-se notar principalmente que os apóstolos instituíram evangelistas e os evangelistas doutores, os doutores instituíram
contemplativos, e os contemplativos instituíram monges e os monges, convertidos. Finalmente dos convertidos para os casados difundiu-se a imitação das boas obras. Disso aconteceu que, quase sempre,
uma fé une duas ordens em uma só, conforme o que se lê que os
primeiros diáconos habitavam com os apóstolos (Cf. At 6,2ss), mas
agora com os bispos, como agora também vemos os convertidos habitarem com os monges de sua ordem.
Como a segunda ordem é a dos mártires, corretamente na segunda
parte se trata dos mártires. Essa ordem começou com Cristo quando
suportou por nós o suplício da cruz e em Cristo desde o beato Estévão
(cf. At 7,57s) que, por primeiro, devolveu a Cristo o que recebera. Daí
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que, na segunda parte, se descobre o cordeiro quase morto (cf. Ap
5,6s), isto é, Cristo sofredor na cruz, que veio e recebeu o livro da
direita daquele que estava sentado quando veio da morte e ressuscitou
dos mortos. Como abriu o túmulo, também abriu o entendimento a
seus discípulos para que compreendessem as escrituras, a partir de então começaram a se abrir os selos, acima mencionados. Os sete selos
são os sete mistérios das paixões, de tal forma que no sexto se lembram simultaneamente duas paixões, e designam as paixões dos fiéis
que se aperfeiçoam em seis tempos, quer dizer, naquela ordem de que
falamos acima. Dessas paixões, porém, quatro são passadas, a primeira
por meio dos judeus, a segunda pelos pagãos, a terceira pelos arianos, a
quarta pelos sarracenos, a quinta geral que os filhos da Babilônia fizeram. A sexta e a sétima serão realizadas na sexta abertura do selo (cf. Ap
6,12-17), onde porém, embora a sétima não apareça explicitamente,
é deduzida das palavras escritas abaixo. Na sexta parte do livro (Ap
17ss; cf. 17,7-14) aparece claramente. Portanto, tendo-se completado
os seis combates, infere-se a soma dos mártires (Ap 7,4ss), cento e
quarenta e quatro mil de todas as tribos dos filhos de Israel, e depois
essa grande multidão, que ninguém podia enumerar (Ap 7,9). Então
são soltos os quatro anjos, a quem foi dado fazer mal à terra e ao mar
(Ap 7,2; 9,15) sob a mesma abertura do sexto selo, e assim depois da
abertura do sétimo selo (Ap 8,1; 10,7) acontece o fim.
A terceira ordem eclesiástica é a dos doutores, que começou com
Cristo e em Cristo desde o apóstolo Paulo, e por isso a terceira parte
do livro trata dos doutores, pela ordem como acima. Contra os primeiros pregadores dos judeus se levantaram os hereges, que (At 15,5)
acreditava-se serem da seita dos fariseus e pervertidos se fizeram
pseudoapóstolos (cf. Hb 6,5s; 2Cor 11,13); contra os segundos, se
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COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO)
opuseram os nicolaítas (cf. Ap 2,6.15); contra os terceiros, os arianos,
contra os quartos os moamequitas, contra os quintos os paterinos,
contra os sextos os pseudoprofetas (cf. Ap 19,20) dos quais o vocábulo ainda é pouco conhecido e por último o anticristo com seus ministros. O sétimo anjo, porém, quando soar a tuba, se consumará o mistério de Deus.
A quarta ordem da Igreja é a dos eremitas e dos virgens de ambos
os sexos e por isso na quarta parte do livro se trata das virgens. Foi
iniciado pela virgem e por seu filho. João, porém, foi dado a Maria
como filho em lugar de Cristo (Jo 19,26), porque era previsto para o
futuro que crescesse a ordem dos virgens em ambos os sexos. Tens,
portanto, a mulher vestida de sol (cf. Ap 12,1), que significa a Igreja
das virgens, cuja ordem foi iniciada por Maria quanto às mulheres e
por Cristo e em Cristo por João quanto aos filhos virgens. O dragão
diabo, tendo sete cabeças com sete diademas (Ap 12,3), são sete reis a
respeito dos quais se afirma: E os reis são sete (Ap 17,9), mas os dez
chifres são dez reis (Ap 12,3; 17,12) futuros que reinarão sob o mesmo
tempo.
Repara: a palavra e o tempo. Os anjos do dragão (Ap 12,7s) são os
perseguidores dos mártires. Miguel Pedro e Miguel em Pedro, como o
diabo em Herodes (cf. At 12,1ss; Ap 12,7). Com efeito, foi este a
primeira cabeça do dragão. Os anjos de Miguel são os santos mártires
de quem se diz: Eles o venceram pelo sangue do Cordeiro e não amaram
suas almas até a morte (Ap 12,11). Esse combate aconteceu após a
ressurreição do Senhor, mas foi consumado nos dias de Constantino.
A mulher, porém, fugiu da presença da serpente para a solidão (cf. Ap
12,6), onde permanece por um tempo e por tempos e por meio tempo
(Ap 12,14), que nada mais significa que todo o tempo da Igreja dife-
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JOAQUIM DE FIORI
renciado por meio do setenário. No entanto, o dragão fez guerra ao
resto da descendência da mulher (cf. Ap 12, 17), quer dizer, aos eremitas e aos monges, que vivem castamente, ou a todos os fiéis. Tirou
também do abismo um animal que tinha sete cabeças e dez chifres (cf.
Ap 13,1). Certamente esse animal possui sete tempos, por isso é que
na quarta parte se escreve a revelação desse animal, porque no quarto
tempo se manifestou com a máxima força.
Essa fera é a reunião dos infiéis que a modo de animais perseguem
os cristãos. Daniel divide essa fera em quatro (cf. Dn 7,4-7). A primeira semelhante ao leão, a segunda semelhante a um urso, a terceira semelhante a um leopardo e possuía quatro cabeças, a quarta era diferente das outras. Daniel apresenta sete cabeças em quatro animais, o que
João apresentou em um animal. João menciona assim o leão, o urso e
o leopardo: E a fera que vi era semelhante ao leopardo e seus pés como de
um urso e sua boca como a boca de um leão (Ap 13,2). Em lugar da
quarta fera de Daniel, João apresentou dez chifres (cf. Ap 13,1; 12,3;
17,3-12). Colocou o tempo próprio dessa fera no povo ferocíssimo
dos sarracenos e por isso na quarta parte do livro, porque essa é a mesma quarta fera de Daniel, também essa perseguição se originou no
quarto tempo, quer dizer, no tempo dos eremitas e das virgens. Também afirma que a própria cabeça estaria morta e rapidamente teria
voltado (cf. Ap 13,3); é claro que os povos bárbaros foram por assim
dizer totalmente esmagados pelos combates superiores dos francos e
muitos deles foram trazidos para o serviço dos cristãos e deve acontecer que a fera que parecia estar profundamente presente se levante numa
cabeça, isto é num reino; que essas coisas devem acontecer só se podem explicar por palavras. Outra besta que se levanta da terra e que
tem dois chifres semelhantes aos do cordeiro (cf. Ap 13,11) virá em sua
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COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO)
ajuda e significa a seita dos pseudoprofetas, como João abaixo mostrou (cf. Ap 15,13; 19,10). Como Janes e Jambres realizavam sinais
diante do faraó (cf. 2Tm 3,8; Ex 7,11) e Simão, o mago, diante de
Nero, da mesma forma estes fazem-no diante da besta que sobe do
abismo, isto é da nação dos gentios, que também o apóstolo lembra
duas ou três vezes (cf. Ap 16,13s; 19,20).
Depois que S. João fez menção da primeira besta (cf. Ap 13,11),
que no quarto tempo fez desaparecer uma parte do povo cristão, levado pela necessidade mostrou aquelas coisas que essa fera realizaria no
sexto tempo por meio deles, começou a falar das coisas das virgens
fazendo uma digressão para se livrar dos que pertencem à besta. Agora,
porém, volta para aquilo que deixara de lado e recorda o número das
virgens que era de cento e quarenta e quatro mil, de quem também
disse: Esses são aqueles que não se mancharam com mulheres, pois são
virgens (Ap 14,4). Esse número é igual ao número dos mártires, que é
tomado dos doze patriarcas (cf. Ap 7,4-8), para que naquela cidade
existam tantos virgens assinalados como mártires, além da grande
multidão que ninguém podia enumerar (cf. Ap 7,9). A respeito dessas
coisas é difícil uma palavra importante nesse lugar.
Por isso, em primeiro lugar, deve-se conceber que o combate é de
Cristo, que foi levado para Deus e para seu trono (Ap 12,5); em segundo lugar, de Miguel e seus anjos (Ap 12,7), esse combate anuncia o
dos mártires; em terceiro, da perseguição do diabo que perseguiu a
Igreja no tempo dos arianos e introduziu uma doutrina errônea após a
mulher, como se fosse água de um rio (Ap 12,15). Por ocasião dessa
perseguição aconteceu que muitos, tendo assumido asas (cf. Ap 12,14),
fugiram para a solidão. Isso, apesar de ter acontecido também em ou-
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tros tempos, ficou claro principalmente no quarto tempo. Em quinto
lugar se apresenta outro anjo, que anuncia a proximidade do julgamento do Senhor. Afirma: E vi outro anjo que voava pelo zênite do céu
e segurava o Evangelho eterno para anunciá-lo aos habitantes da terra e
a toda nação, tribo, língua e povo, dizendo em altas vozes: temei o Senhor e lhe dai glória porque chegada é a hora de seu juízo (Ap 14,6). Em
seguida, em sexto lugar, são apresentados dois outros anjos, de quem
se afirma: Um segundo anjo o seguiu dizendo: “caiu, caiu a grande
Babilônia que com o vinho de sua furiosa prostituição embriagou todas as
nações”. E mais um terceiro anjo o seguiu dizendo com voz forte: Se alguém adorar a besta e sua imagem etc. (Ap 14,8). A seguir, em sétimo
lugar, se indica o sábado, quando afirma: E ouvi uma voz do céu que
me dizia: Escreve: bem-aventurados os mortos que morrem no Senhor
(Ap 14,13). Em seguida se trata do fim dos tempos, quando se realiza
a colheita dos bons e a vindima dos maus (cf. Ap 14,14-20).
A quinta ordem da Igreja universal é daqueles que levam vida comum. Essa ordem, porque atua em parte na Igreja e em parte nos
mosteiros, é designada ao mesmo tempo o templo e a tenda (cf. Ap
15,5). O templo certamente significa a Igreja, por causa da solidez da
fé, a tenda indica a vida cenobítica, pelo fato de não terem aqui uma
herança permanente, mas futura (cf. Hb 13,14). Acima, contudo, foi
dito que diante do trono existe como que um mar vítreo semelhante a
cristal (Ap 4,6). A sede de Deus é a mesma que o templo e a mesma
que a tenda. Daí que se faz menção também aqui do mar vítreo, porque se afirma que o mar está misturado com fogo (Ap 15,2), porque o
mar de bronze (cf. 2Rs 25,13; Jr 52,17) está cheio de água. Por isso no
mar de bronze se designa a vida ativa, que é própria dos pregadores, no
mar vítreo, porém, se indica a vida especulativa, que é própria daque254
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COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO)
les que moram nos claustros. Aqueles, portanto, que venceram a besta
e sua imagem e o número de seu nome (Ap 15,2) reúnem-se sobre esse
mar, porque para os que quiserem ser perfeitos é necessário que, desprezando a carne, vençam a besta e, fugindo dos pecados criminosos,
superem a imagem e, precavendo-se da multidão dos vícios, vençam o
número. O número é do homem e seu número é seiscentos e sessenta e
seis (Ap 13,18). Julgo ser algo supersticioso buscar a certeza desse número, porque nele pode existir alguma obscuridade que não se pode
saber a não ser no tempo em que reinar a besta. Por agora é suficiente
saber que designa a multidão dos vício, e aqueles que podem vencê-los
se tornam apologistas do Senhor. Saem do templo da tenda sete anjos
vestidos de jaspe ou de pedra pura (Ap 15,6), que é o homem novo,
que foi criado segundo Deus (cf. Ef 4,24) e vestidos ao redor do peito
com cinturões de ouro (Ap 15,6), não tendo apenas a castidade do corpo, sinalizada pelo fato de cingir os rins, que se sinaliza o contorno das
costas, mas também da mente, que é sinalizada no contorno do peito.
Esses são os homens espirituais que assumem o zelo pelo nome de
Deus, que combatem os delitos do povo com grande indignação da
mente e derramam o fogo do zelo por cima da plebe pecadora, conforme o que diz Isaías: Obceca o coração desse povo (Is 6,10) etc. Por
isso a quinta parte do livro designa a ira de Deus realizada no povo,
porque está escrito: Por três anos vim buscar fruto nessa árvore e não
encontro. Arranca-a, portanto (Lc 13,7ss). Roga o camponês e lhe é
dada a indulgência de um quarto ano. No quinto, porém, não havendo mudança será arrancada. Portanto, quanto a Deus, então o gênero
humano será arrancado, uma vez que por causa dos delitos anteriores e
do coração impenitente o Senhor os abandonou em seus caprichos (cf.
Sl 80,13; 105,29; Mq 3,4).
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Quatro são as obras de Cristo: o nascimento, a paixão, a ressurreição e a ascensão. Em dignidade, porém, a ressurreição se antepõe. A
ressurreição pertence à fé apostólica, a paixão à paciência dos mártires,
o nascimento à humildade dos doutores e a ascensão à esperança dos
contemplativos. Em quinto lugar vem o fogo divino sobre os reunidos num coração (cf. At 2,3s) e lhes ensinou toda equidade (cf. Jo
16,13). Na verdade a caridade é a plenitude dos mandamentos. Portanto, em quinto lugar se realiza a perfeição dos bons no fogo da caridade de Deus, mas também em quinto lugar se realiza a ira do fogo
sobre a malícia dos pecadores. Esse juízo, porém, acontece em cada
tempo porque cada tempo possui suas proporções, mas de modo especial nesse quinto tempo em que existe a propriedade dessa coisa.
5. A sexta parte é dedicada à ceifa do século, e dos ceifados na
quinta parte ninguém (cf. Ez 15) será entregue ao fogo. Nela, pois, se
mostra o julgamento da besta, principalmente daqueles homens que
perseguiram a Igreja, e em geral, porém, onde quer que se tenham
propagado os frutos da Babilônia. Quem fará isso? A besta com seus
chifres. Babilônia (Ap 17,5) é o povo, que se chama cristão, mas não é,
pois contamina a terra do Senhor (cf. Jr 2,7; 16,18) e polui as coisas
santas. O Senhor suscitará contra a imundície do povo uma gente
terrível, significada pela besta, e como os operários cortam muitos
bosques para tornar a terra preparada e limpam os caminhos do campo do mundo. Os eleitos começam a ser confortados no senhor, mas
a besta lutará contra eles e com ela os pseudoprofetas. Mas o Senhor se
levanta em juízo e triunfará sobre aquela gente e haverá paz. A Jerusalém nova será edificada na angústia dos tempos (cf. Dn 9,25). Nos
últimos dias, contudo, o diabo que outrora fora amarrado será solto
(cf. Ap 20,2s) e seduzirá povos que estão nos quatro cantos da terra, Gog
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COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO)
e Magog (Ap 20,7), e os incita contra a Igreja. Mas virá fogo do céu (Ap
20,9) e os consumirá. Tudo isso acontecerá no final da sexta abertura e
então será sábado. A seguir a ressurreição para o julgamento (Cf. Ap
20,13), e então será revelada a glória da cidade celeste (cf. Ap 21,2.1022,5). Para ela nos conduza o Senhor, que vive e reina por todos os
séculos dos séculos. Amém.
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