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Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
313/12.9TTOAZ.P1
JTRP000
EDUARDO PETERSEN SILVA
TAXA DE ÁLCOOL NO SANGUE
DESPEDIMENTO
RP20130710313/12.9TTOAZ.P1
07/10/2013
UNANIMIDADE
S
1
APELAÇÃO
NEGADO PROVIMENTO
4ª SECÇÃO (SOCIAL)
.
I – A utilização de documento que comprova que um trabalhador tinha
determinado grau de álcool no sangue quando seguia como
acompanhante numa viatura da empresa que se acidentou, sem que o
empregador tenha demonstrado que o trabalhador lhe autorizou o acesso
a tal documento, constitui prova ilegal e, como tal, não serve para
demonstrar a realidade do facto.
II – Ao empregador que invoca a violação, pelo trabalhador, de uma norma
interna que proíbe o consumo de álcool compete provar a existência dessa
norma, não podendo limitar-se a afirmar que a norma resulta do bom
senso.
Processo nº 313/12.9TTOAZ.P1
Apelação
Relator: Eduardo Petersen Silva (reg. nº 281)
Adjunto: Desembargador João Diogo Rodrigues
Adjunto: Desembargadora Paula Maria Roberto
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório
B…, operário de recolha de resíduos, residente em …, veio opor-se ao
despedimento promovido por C…, S.A., com sede em …, ….
A Ré motivou o despedimento, imputando que o A., no exercício de
funções se apresentava com uma taxa de álcool no sangue de 2.3g/l, o
que se apurou na sequência dum acidente com a viatura em que seguia,
conduzida por colega. O A. ficou ferido e foi levado a Centro Hospitalar
onde lhe foi análise de álcool.
O A. incorreu de forma culposa em gravíssima violação das normas de
higiene e segurança no trabalho que lhe são inerentes, colocou em risco a
sua integridade física e a dos colegas, incumpriu o dever de realizar o
trabalho com o zelo e a diligência devidos, mais revelando um profundo
desinteresse pelas funções confiadas, contribuindo do mesmo modo para
a lesão de interesses patrimoniais sérios e afectando de modo gravoso a
imagem pública da Ré, que esta muito necessita, e pretende, que seja
boa. O A. inobservou regras de higiene e segurança, sendo certo que
frequentou acções de formação. A actividade da Ré é considerada de
interesse público, pelo que a ré sempre será forçada a preservar com
grande acuidade o bom cumprimento das suas tarefas, sendo certo que já
há muito exerce a sua actividade e é detentora de assinalável prestígio,
que se vê obrigada a manter.
A Ré opôs-se à reintegração do trabalhador, em caso de procedência da
acção, por na sua perspectiva isso poder constituir de modo flagrante um
mau exemplo para os seus colegas de trabalho.
Contestou o trabalhador, negando que estivesse no respectivo local de
trabalho com uma taxa de álcool no sangue de 2.3g/l, impugnando o
documento “Nota de Alta” e o relatório do “Serviço de Patologia Clínica”,
cujo resultado não pode deixar de estar errado, por não ter sido submetido
a contraprova.
Sem prejuízo, tais elementos dizem respeito à reserva da intimidade da
sua vida privada, e a Ré não podia ter acesso a eles, constituindo pois um
meio de prova ilegal.
O A. não autorizou a realização de qualquer análise, nem autorizou que a
sua entidade patronal tivesse acesso às mesmas.
O A. tem dificuldade em ler e escrever português, e limitou-se a seguir as
ordens que lhe foram dadas no Centro Hospitalar, sendo que não teve
conhecimento dos exames, salvo por intermédio do procedimento
disciplinar.
Ainda que fosse verdadeiro o facto imputado, não existe na Ré nenhum
regulamento ou norma que impeça o consumo de álcool. A acção de
formação que a Ré documenta foi sobre “Qualidade, Ambiente e
Segurança no trabalho e Conduta Cívica”, desconhecendo-se se na
mesma foi abordado o tema “consumo de álcool”, pelo que se impugna a
junção de tal documento.
O A. não tem antecedentes. A ter ocorrido o facto, não teve qualquer
influência na execução do trabalho, nem causou prejuízo.
O prejuízo alegado pela Ré, para além de abstracto e geral, não pode ser
de imputar a qualquer conduta do Autor, que seguia como acompanhante
do condutor do veículo que se acidentou.
A Ré limita-se a concluir pela violação dos deveres, sem imputação de
factos concretos.
Concluiu o A. pela improcedência do articulado motivador, devendo julgarse ilícito o despedimento. Não formulou pedido reconvencional.
A Ré não apresentou resposta.
Foi proferido despacho saneador tabelar, realizada a audiência de
discussão e julgamento tendo sido proferido despacho de fixação da
matéria de facto provada e não provada, com a respectiva motivação, e a
seguir foi proferida sentença de cuja parte dispositiva consta:
“Em conclusão, julgo a acção procedente e, em consequência, julgo ilícito
o despedimento do autor e condeno a Ré:
a) a reintegrá-lo com respeito pela sua antiguidade e categoria
profissional;
b) a pagar-lhe todas as retribuições vencidas desde 10 de Maio de 2012 e
até efectiva reintegração a que deverão ser deduzidas quantias
eventualmente recebidas pelo trabalhador e que não auferiria se não
tivesse sido despedido, a liquidar em execução de sentença.
Fixo à acção do valor de 2.000€ - cfr. artigo 7º do Regulamento das Custas
Processuais e Tabela I do mesmo.
Custas pela Ré”.
Inconformada, veio a Ré interpor o presente recurso, formulando a final as
seguintes conclusões:
1. O posto de trabalho do recorrido era na ocasião uma viatura pesada que
fazia serviço de recolha e transporte de resíduos sólidos urbanos,
actividade de índole pública que a recorrente exerce.
2. A viatura teve um acidente de viação e, nessa sequência, foi depois o
trabalhador recorrido levado ao hospital onde foi sujeito ao teste de
alcoolemia, que acusou 2,3 g/l.
3ª No trabalho que a recorrente desenvolve há que lidar com
equipamentos de certa complexidade, além de viaturas pesadas que
recolhem e transportam resíduos sólidos urbanos, complexidade essa que
se afere facilmente e é do conhecimento público.
4ª Por se tratar de viaturas pesadas e serem complexos os mecanismos e
equipamentos no trabalho, é forçoso que os seus utilizadores se
encontrem sempre aptos a trabalhar com eles, em estado de grande
concentração e dotados de muito cuidado.
5ª É do senso comum generalizado ser vedada a ingestão de álcool
quando se trabalha no interior de viaturas automóveis.
6ª Não era assim exigível a existência na empresa da recorrente de
regulamentos ou de norma interna a proibir o consumo de álcool aos
trabalhadores.
7ª A recorrente foi alheia à iniciativa de submeter o trabalhador ao teste de
alcoolemia, que foi feito por outra entidade no hospital e na sequência do
acidente ocorrido com a viatura, tendo-lhe depois sido dita a taxa com que
aquele se encontrava, 2,3g/l.
8ª Como constou da decisão de despedimento: “Assim sendo, não teve a
entidade patronal quaisquer influência na forma como o arguido foi tratado
no Hospital, não lhe cabendo sequer tal papel, sendo aliás o arguido quem
apresentou nas instalações da arguente o relatório médico de tal Unidade
Hospitalar” e não foi refutado pelo trabalhador, sendo facto seguro, foi o
mesmo quem cuidou de apresentar à recorrente o relatório médico
hospitalar que continha o teste de alcoolemia e respectiva taxa.
9ª Pelo que não andou bem o Tribunal quando refere que se desconhece
como chegaram os exames médicos às mãos da entidade patronal.
10ª Acresce ainda com consta no relatório da alta hospitalar, na pag.1, tem
mencionado “Destino Companhia de Seguros” pelo que naturalmente
também por esta via chegou ao conhecimento da entidade patronal.
11ª A recorrente, depois de saber que o seu trabalhador acusava uma taxa
de 2,3 g/l, não poderia nunca isso escamotear e considerar assim a
submissão hospitalar ao teste de alcoolemia como um comportamento
invasor da privacidade do recorrido, para mais depois da ocorrência de um
acidente rodoviário/acidente de trabalho.
12ª E mal se compreende a referência ao “facto de não se ter provado
qualquer nexo entre o seu estado de alcoolemia do autor e o acidente em
que esteve presente”.
13ª Tendo em conta que o acidente em referência teve como causas, o
excesso de velocidade do motorista e o excesso de álcool, uma vez que
apresentava também ele, o motorista, uma taxa de alcoolemia de 1,79g
por litro de sangue – vide doc. nº 1 - Participação de acidente de viação –
junto com a motivação.
14ª E tendo ficado provado no Processo nº 306/12.6TTOAZ que correu
termos neste Tribunal, conforme cópia de sentença que se junta como
doc. nº 1.
15ª Haveria sempre um nexo de causalidade se o Autor não estivesse
alcoolizado e adoptasse um comportamento que poderia ter evitado o
acidente em questão.
16ª Bastaria para tal, o Autor ter impedido o motorista de conduzir
alertando para o seu estado de embriaguez e dessa forma ter evitado a
ocorrência do acidente.
17ª Como poderia e deveria o Autor ter-se recusado a entrar no camião
com o motorista naquele estado ou em alternativa ter alertado o seu chefe
directo, do estado alcoolizado em que se encontrava o motorista.
18ª E dessa forma ter evitado o acidente que colocou em perigo a sua
própria vida, a do motorista e que por muita sorte também não colocou a
de terceiros.
19ª Ao fazer depender a punição do trabalhador da existência de norma ou
regulamento da entidade patronal a prever a infracção, tudo isso levaria a
que quem trabalhasse alcoolizado apenas fosse sancionado face ao que
estivesse consagrado nos diplomas legais.
20ª Como se deu no processo, o trabalhador recorrido havia tido uma
acção de formação relativa ao bom desempenho da sua actividade
profissional, assinada pelo próprio sendo nessa medida um exaustivo
sabedor de que não devia consumir álcool, no desempenho das suas
funções laborais no interior de um veículo automóvel, vide doc. nº 2 junto
com a motivação que não mereceu qualquer impugnação por parte do
autor e que não foi valorado pelo Tribunal.
21ª Se não tivesse a recorrente promovido processo disciplinar contra o
trabalhador recorrido, teria actuado de modo irresponsável e contrário ao
interesse público.
22ª Bem como seria alvo de crítica por parte de quem a contrata como
prestadora de serviços, designadamente as autarquias municipais e
delegações ambientais, o que lhe acarretaria sério prejuízo.
23ª Se no processo está provado que o recorrido trabalhava alcoolizado
com uma taxa de 2,3g/l e é do sendo comum que isso constitui uma grave
infracção laboral, bem andou a recorrente quando lhe instaurou um
processo disciplinar.
24ª É de extrema gravidade um trabalhador encontrar-se alcoolizado no
exercício de funções laborais, por não dispor assim o mesmo das suas
faculdades físicas num estado capaz, podendo por causa disso ocorrer
acidentes de trabalho ou outro tipo de anormalidades, como efectivamente
veio a acontecer.
25ª Está consagrado no artigo 128º nº 1, i) do Código do Trabalho como
dever do trabalhador o cumprimento das prescrições de segurança,
higiene e saúde no trabalho, pelo que quem se encontra em estado de
alcoolismo e regista uma taxa de alcoolemia de 2,3 gramas por litro,
comete grave infracção laboral e viola o sobredito dever, mais tornando
prática e imediatamente impossível de subsistir a relação de trabalho,
sendo de forma inequívoca justa causa de despedimento, nos termos da
alínea h) do nº 1 do artigo 351º do Código de Trabalho.
26ª Mesmo que no caso concreto não fosse a alcoolemia do trabalhador
uma conduta passível de constituir justa causa de despedimento, ainda
assim não deveria o mesmo ser reintegrado no seu posto de trabalho.
27ª O artigo 392º do Código do Trabalho não se pode entender
taxativamente, há sempre que considerar a natureza da infracção em
causa no caso concreto.
28ª A reintegração de trabalhador alcoolizado sempre será contrária à
defesa da restrição do álcool no trabalho, sendo um péssimo exemplo para
os trabalhadores da empresa e contrariando a mensagem da entidade
empregadora de que a ingestão de álcool por parte de quem vai laborar é
comportamento vedado e incorrecto.
29ª Ainda que não se conceda e caso tenha o despedimento sido ilícito,
deveria antes a recorrente ser condenada no pagamento da indemnização
legalmente prevista ao trabalhador, por ser isso mais idóneo às boas
condições de trabalho.
Nestes termos, na procedência do presente recurso e sendo revogada a
douta sentença recorrida, farão (…) Justiça.
Contra-alegou o recorrido, formulando a final as seguintes conclusões:
A. Não se pode concordar com as conclusões aqui explanadas pela
recorrente.
B. Não podia a entidade patronal usar dos exames médicos feitos ao autor
em contexto hospitalar salvo com o seu consentimento.
C. O aqui recorrido não era o condutor do veículo acidentado não tendo,
por isso, de ser submetido a teste de alcoolemia.
D. Nos termos do artigo 19º do CT, o empregador não pode, para efeitos
de admissão ou permanência no emprego, exigir a candidato a emprego
ou a trabalhador a realização ou apresentação de testes ou exames
médicos, de qualquer natureza, para comprovação das condições físicas
ou psíquicas… devendo em qualquer caso ser fornecida por escrito ao
candidato a emprego ou trabalhador a respectiva fundamentação.
E. Na vigência do contrato de trabalho, e com vista a aferir da
permanência ou não do trabalhador, nomeadamente em sede de
averiguação disciplinar, não pode a entidade patronal usar de testes
médicos como forma de fundar o despedimento do trabalhador quando
estes não foram por ele autorizados num contexto laboral nem solicitados
ao mesmo pela entidade patronal. F. Nos termos do artigo 26º nº 1 da
Constituição da República Portuguesa, a saúde faz parte da
individualidade privada do ser humano devendo os elementos relativos à
mesma ser resguardados de divulgação pública salvo nos casos
especialmente previstos.
G. Daí advém a proibição do uso para determinados fins, de meios de
prova que a parte não pudesse produzir com vista a alcançá-los.
H. A entidade patronal aqui recorrente, não pode fazer uso de um meio de
prova que viola a intimidade da vida privada para sustentar o fim da
relação laboral.
I. Não se afigura como proporcional a aplicação da pena de despedimento,
a mais grave das penas disciplinares a aplicar.
J. O trabalhador e aqui recorrido não tem antecedentes disciplinares.
K. Não se provou qualquer nexo de causalidade entre o seu estado de
alcoolemia e o acidente em que esteve presente porque o mesmo era um
mero passageiro da viatura acidentada.
L. A decisão de reintegração é mera consequência da declaração de
ilicitude do despedimento, porquanto incumbia à Ré, aqui recorrente, a
alegação e prova circunstanciada das razões da não reintegração.
M. Devendo bem assim manter-se a condenação da Ré no pagamento de
todas as retribuições vencidas e vincendas desde o seu despedimento.
O Exmº Senhor Procurador-Geral Adjunto nesta Relação pronunciou-se no
sentido de ser desconhecida a materialidade assente para o despedimento
e da anulação oficiosa da decisão de facto e termos subsequentes.
Corridos os vistos legais cumpre decidir.
II. Matéria de facto dada como provada pela 1ª instância:
1. O Autor exercia ao serviço da Ré as funções de operário de recolha de
resíduos.
2. A R. procedeu disciplinarmente contra o A. por se encontrar com taxa
de alcoolemia de 2, 3 gr/litro quando se encontrava no exercício da sua
categoria profissional
3. No dia 14 de Fevereiro de 2121, pelas 17,45 horas o Autor encontravase no interior da viatura de matrícula ..-..-ZB que executa o circuito no
concelho de … em cumprimento do serviço de recolha e transporte de
resíduos sólidos urbanos.
4. Tal viatura despistou-se e tombou para o lado direito.
5. No momento do acidente o Autor encontrava-se com uma taxa de
alcoolemia de 2,3 gr/litro de sangue.
6. Não existe qualquer regulamento ou norma interna da Ré que proíba os
seus trabalhadores de consumir álcool.
7. O Autor nunca antes foi punido disciplinarmente pela Ré.
III. Direito
Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões do recorrente, nos
termos do disposto nos artigos 684º, nº 3, e 685º-A, nº 1, do Código de
Processo Civil, aplicáveis ex vi do disposto nos artigos 1º, nº 2, al. a), e 87º
do Código de Processo do Trabalho, não sendo lícito ao tribunal ad
quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento
oficioso, as questões a decidir são:
a) prévias:
1 - a questão prévia da anulação oficiosa da decisão sobre a matéria de
facto, por insuficiência da mesma, suscitada pelo Ministério Público.
2 - a questão da junção de documentos em recurso pela Ré, recorrente;
b) das conclusões do recurso:
1 - saber se o despedimento foi lícito;
2 - saber se, em caso contrário, a Ré se podia opor à reintegração do
Autor.
a) 1 – Suscita o MP a questão da insuficiência da matéria de facto para a
decisão tomada, de ilicitude do despedimento, uma vez que da mesma
não consta que o Autor tenha sido despedido e que não constam os
fundamentos que a Ré invocou para o despedir.
Tem razão. Porém, não cremos que este tribunal não disponha dos
elementos probatórios suficientes para decidir ele mesmo. Na verdade,
com o articulado motivador, a Ré juntou, senão todo o processo disciplinar,
pelo menos a decisão de despedimento e a nota de culpa, e, além da
questão da ilicitude dos meios de prova, o trabalhador não contestou nem
impugnou que fora despedido – o que seria um contra-senso visto que ele
mesmo veio impugnar o despedimento, mediante o competente formulário,
juntando aliás a decisão de despedimento respectiva, do que se deduz
manifestamente que a decisão de despedimento chegou ao seu
conhecimento – nem impugnou o teor da nota de culpa. Assim, havendo
acordo nos articulados, os factos relativos ao despedimento e à sua
fundamentação conforme nota de culpa mostram-se provados, e este
tribunal pode aditá-los oficiosamente à decisão de facto. Improcede pois
esta questão.
Em conformidade, adita-se à matéria de facto provada um nº 8, com o
seguinte teor: “A Ré despediu o A. por decisão proferida em 10.5.2012,
enviada ao A. e por este recebida, conforme consta de fls. 4 e seguintes e
37 e seguintes dos autos”.
Adita-se ainda à matéria de facto provada um nº 9, com o seguinte teor:
“No procedimento disciplinar que a Ré moveu ao A. e que terminou com a
aplicação da sanção de despedimento, foi produzida Nota de Culpa nos
seguintes termos:
“1. O arguido tem a categoria profissional de trabalhador não especializado
e desempenha na empresa a função de apoiar o serviço de recolha de
resíduos sólidos urbanos no Concelho de ….. 2. Está o arguido
perfeitamente ciente do que lhe incumbe, nomeadamente da extrema
necessidade de cumprir todas as regras internas existentes na empresa,
nomeadamente ao nível do respeito pelas regras de higiene e segurança.
3. No passado dia 14 de Fevereiro de 2012, pelas 17.45 horas, o arguido
encontrava-se no interior da viatura com a matrícula ..-..-ZB, marca
Scania, que executa o circuito no concelho de … em cumprimento do
serviço de recolha e transporte de resíduos sólidos urbanos, o qual foi
adjudicado à arguente pelo município de ….
4. Quando a viatura circulava na R. … em … e se dirigia para as
instalações da entidade patronal, despistou-se e tombou para o lado
direito, tendo o arguido sofrido ferimentos ligeiros.
5. Foi de seguida prontamente encaminhado por uma ambulância para o
Centro Hospitalar …, EPE, tendo sido alvo de várias análises normais,
com excepção duma especial relativa ao nível de álcool no sangue, a qual
revelou uma taxa de 2.3g/l de sangue.
6. Essa taxa de álcool no sangue do arguido desde logo revela a prática
pelo mesmo, no âmbito das funções que exerce na empresa, de violação
gravíssima das normas de higiene e segurança que lhe são inerentes, o
que coloca em sério risco a sua integridade física bem como a dos seus
colegas de trabalho e que segundo a alínea h) do nº 2 do artº 351º, do
Código do Trabalho, constitui facto passível de determinar a instauração
de processo disciplinar contra o trabalhador para aplicação de sanção
como seja a do seu despedimento imediato com justa causa, sendo essa a
intenção da entidade patronal ao formular a presente nota de culpa, por se
afigurar justa e adequada no caso concreto”.
a) 2 – Com as alegações de recurso veio a recorrente juntar cópia, não
certificada e sem nota de trânsito, de sentença proferida pela mesma
Senhora Juiz, no mesmo dia da que foi proferida nestes autos, e que
versou o despedimento do condutor da viatura em que o aqui recorrido se
acidentou. Tal junção serve a demonstrar que o condutor também estava
alcoolizado, com 1,79 g/l, e deste modo a demonstrar que o recorrido, se
não estivesse ele mesmo alcoolizado, deveria ter alertado o colega para
não conduzir naquele estado, ou devia ter-se recusado a entrar na viatura,
ou devia ter alertado o chefe directo. Esta menção de que o colega
condutor estava alcoolizado resulta também, conforme alegações, do
documento já junto com a motivação, a saber a participação de acidente
elaborada pela GNR, sendo que com o documento que agora se junta se
quer demonstrar que o facto ficou provado.
Ora, não sabemos se foi interposto recurso da sentença proferida no
processo do condutor, portanto se o facto ficou provado não sabemos.
Sabemos também que a recorrente não impugnou expressamente a
matéria de facto, e que o facto não foi alegado, nem na nota de culpa, na
decisão disciplinar nem no articulado motivador. Em nenhum destes locais
se disse concretamente que o condutor do veículo estava alcoolizado e
que o aqui recorrido tinha consciência disso, sabia, e que tinha o dever de
impedir a condução do colega ou que tinha o dever de não entrar no
veículo. E portanto, esta questão aparece como defesa da recorrente, mas
defesa nova, só agora oposta à consideração da sentença de que não se
provou nexo de causalidade entre a taxa de álcool do recorrido e o
acidente.
Os recursos servem para sindicar as decisões dos tribunais recorridos,
sobre as questões que aos tribunais recorridos foram postas – artigo 671º
do CPC. O facto, posto que não constante da nota de culpa nunca podia
ser usado contra o recorrido porque agrava a sua responsabilidade ao
invés de a diminuir – artigo 357º nº 4 parte final do Código do Trabalho.
Assim sendo, a junção do documento é irrelevante e não é admissível –
artigos 693º-B do CPC e 524º nº 2 do CPC (note-se que o facto “motorista
alcoolizado” não é posterior aos articulados) – pelo que se ordena o seu
desentranhamento e se condena a recorrente em 1 (uma) UC de multa –
artigo 543º nº 1 do CPC e 27º do RCP.
De resto, note-se, o facto também não se pode considerar provado a partir
do auto de notícia, pelas mesmas razões: não foi alegado nos autos nem
fundamentou a nota de culpa, e finalmente também porque a decisão da
matéria de facto não foi expressamente impugnada – artigo 685º-B do
CPC (além do não cumprimento dos ónus aí previstos, o recurso em
matéria de facto supõe necessariamente que o recorrente afirme a sua
vontade de suscitar a questão ao tribunal de recurso).
b) 1 – Renovemos que a decisão da matéria de facto não foi impugnada
expressamente.
A recorrente assenta a sua discórdia em relação à sentença nos seguintes
pontos:
- A prova da taxa de alcoolemia foi validamente adquirida e não pode ser
desconsiderada (cls. 7ª a 11ª);
- Não é preciso existir norma interna que proíba o consumo de álcool,
porque o posto de trabalho obriga a lidar com equipamentos complexos, e
o serviço a realizar é de interesse público, e além disso é do senso comum
que é vedada a ingestão de álcool quando se trabalha no interior de
viaturas (cls. 1ª a 6ª e 19ª);
- Houve nexo causal entre o estado de alcoolemia e o acidente (cls. 12ª a
18ª);
- O recorrido sabia que não podia ingerir álcool porque tinha tido acções
de formação (cls. 20ª);
- A recorrente não podia deixar de proceder disciplinarmente porque
actuaria contra o interesse público e seria criticada por quem a contrata, o
que lhe causaria sério prejuízo (cls 21ª e 22ª);
- É do senso comum que tamanha taxa de alcoolemia é uma grave
infracção laboral, a infracção é grave, o trabalhador que assim se encontra
coloca o risco de acidentes, e o comportamento em causa viola o dever de
observar as prescrições de higiene, saúde e segurança no trabalho o que
constitui justa causa de despedimento (cls. 23ª a 25ª);
- Mesmo que assim não seja, a Ré pode opor-se à reintegração, porque a
norma correspondente não pode ser entendida como taxativa, devendo
sempre ponderar-se a infracção concreta, a qual neste caso funcionaria
como um péssimo exemplo para os colegas (cls. 26ª a 29ª).
Procuremos organizar mentalmente estes vectores:
- a primeira questão a discutir é considerar os factos provados, porque a
recorrente apela para a prova de determinados factos com base em
documentos – conclusões 8ª, 10ª, 13ª, 14ª e 20ª;
- a segunda questão é a de saber se a prova da taxa de álcool foi
validamente adquirida (ou não, como defende a sentença, e se por isso
não pode fundamentar o despedimento. Repare-se que, considerando o
teor da nota de culpa, se não puder usar-se a taxa de álcool, não há
factualidade nenhuma contra o recorrido. Na verdade, tirando que ele
estava no interior de viatura que se acidentou, no tempo de trabalho, e que
estava com álcool, nada mais existe na nota de culpa que não sejam
considerações e conclusões absolutamente genéricas, provindas do apelo
ao bom senso, mas desacompanhadas dos respectivos factos
constituintes concretos, isto é, daqueles que permitem chegar a essas
conclusões. Lembremos, em apelo, a disciplina do artigo 353º nº 1 parte
final do Código do Trabalho. Portanto, se lhe tirarmos o álcool, então
temos que um trabalhador estava no interior da viatura, em tempo de
trabalho, e se acidentou, e daqui nunca vamos chegar a qualquer
infracção disciplinar);
- a terceira questão é a da violação das normas de higiene, saúde e
segurança e da não necessidade de existência de norma expressa
emanada pela Ré;
- a quarta questão é a de qualificar a infracção como grave, em si e nas
suas consequências, tendo em vista a actividade de interesse público e a
afectação da imagem da Ré junto dos seus clientes e o prejuízo que isso
lhe traz;
- a quinta questão é a da reintegração (a abordar como b.2).
Assim sendo, esclareçamos então que, do documento “decisão disciplinar”
não resulta provado que tivesse sido o recorrido a fornecer à recorrente,
voluntariamente, a nota de alta e o resultado das análises de sangue (cls.
8ª) nem isso resulta do facto de constar da nota de alta que o destino
desta é apresentação à Companhia de Seguros (cls. 10ª). Não resulta
porque a referência na decisão disciplinar foi feita em resposta à alegação
do trabalhador de que não tinha dado acesso aos dados, e nem o
trabalhador tinha momento processual no procedimento disciplinar para
contestar isto, como na contestação que apresentou nos autos voltou a
insistir na ilegalidade do meio de prova (não deu acesso à Ré) – sendo
certo que não tinha de se pronunciar expressamente sobre a questão de
ter sido ele a entregar os documentos à Ré, porque a mesma não foi
alegada no articulado motivador. Mas, da repetição da pronúncia sobre a
ilegalidade do meio de prova, volta a resultar que o trabalhador põe em
causa o acesso da Ré aos documentos, donde é manifesto que não
admite que foi que ele quem lhos deu, consentindo assim no seu uso.
Depois, se a nota de alta se destina à Companhia de Seguros, não se
destina à Ré, e no âmbito de um processo de acidente de trabalho –
porque inequivocamente o recorrido sofreu um acidente de trabalho – se
há Companhia de Seguros, é esta que tem acesso aos dados relativos às
lesões, e ainda aos dados de internamento e assistência hospitalar,
porque interessam à sua responsabilidade transferida, e nada interessam
a quem transferiu a responsabilidade, a menos que houvesse alguma
recusa da seguradora, o que também teria de ser alegado e não foi.
E mais concretamente, o facto da nota de alta se destinar à Companhia de
Seguros não é prova coisíssima nenhuma de que foi o trabalhador quem
entregou a documentação na Ré – aliás, tendo havido um acidente de
viação com uma viatura sua que envolveu outro trabalhador é evidente
que a Ré teve conhecimento do acidente, não precisava para nada que
fosse o trabalhador recorrido a participar-lho. O facto não foi alegado na
motivação, não foi provado, a decisão da matéria de facto não foi
expressamente impugnada. O facto não pode considerar-se provado por
acordo, nem pelos documentos em questão.
Quanto aos documentos mencionados nas conclusões 13ª e 14ª, já acima
abordámos a questão da sua ineficácia probatória, sendo certo que
rejeitámos a junção do documento referido na conclusão 14ª.
Quanto ao documento sobre a frequência pelo Autor duma acção de
formação, a recorrente não impugna expressamente a decisão sobre a
matéria de facto, e o documento em si, mesmo não impugnado pelo Autor,
não nos diz qual foi o conteúdo concreto da acção de formação, a saber,
se nela foi mencionado o dever dos trabalhadores não ingerirem álcool ou
não se apresentarem alcoolizados.
Desconsideram-se pois todas as conclusões que a recorrente lança com
apoio nestes documentos e nos factos que eles supostamente provavam.
Quanto à questão da (i)legalidade do meio de prova:
Como bem afirma a recorrente nas suas conclusões, e resulta agora
provado por termos incluído nos factos provados o teor da nota de culpa,
“7ª A recorrente foi alheia à iniciativa de submeter o trabalhador ao teste
de alcoolemia, que foi feito por outra entidade no hospital e na sequência
do acidente ocorrido com a viatura, tendo-lhe depois sido dita a taxa com
que aquele se encontrava, 2,3g/l”. Não está porém provado o que a
recorrente afirma na parte final da conclusão 8ª, isto é, que foi o recorrido
quem cuidou de lhe apresentar o relatório médico hospitalar que continha
o teste de alcoolemia e a sua taxa.
Dispõe o artigo 26º da Constituição:
“1. A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao
desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao
bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da
vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de
discriminação.
2. A lei estabelecerá garantias efectivas contra a obtenção e utilização
abusivas, ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas às
pessoas e famílias.
3. A lei garantirá a dignidade pessoal e a identidade genética do ser
humano, nomeadamente na criação, desenvolvimento e utilização das
tecnologias e na experimentação científica.
4. A privação da cidadania e as restrições à capacidade civil só podem
efectuar-se nos casos e termos previstos na lei, não podendo ter como
fundamento motivos políticos”.
Dispõe o artigo 16º do Código do Trabalho, sob a epígrafe “Reserva da
intimidade da vida privada”:
“1 - O empregador e o trabalhador devem respeitar os direitos de
personalidade da contraparte, cabendo-lhes, designadamente, guardar
reserva quanto à intimidade da vida privada.
2 - O direito à reserva da intimidade da vida privada abrange quer o
acesso, quer a divulgação de aspectos atinentes à esfera íntima e pessoal
das partes, nomeadamente relacionados com a vida familiar, afectiva e
sexual, com o estado de saúde e com as convicções políticas e religiosas”.
(sublinhado nosso).
Portanto, já temos como certo que o estado de saúde do trabalhador faz
parte da intimidade da sua vida privada, e portanto é matéria reservada,
que o empregador deve respeitar. Como?
Responde desde logo o artigo 17º do Código do Trabalho, sob a epígrafe
“Protecção de dados pessoais”:
“1 - O empregador não pode exigir a candidato a emprego ou a
trabalhador que preste informações relativas:
a) À sua vida privada, salvo quando estas sejam estritamente necessárias
e relevantes para avaliar da respectiva aptidão no que respeita à execução
do contrato de trabalho e seja fornecida por escrito a respectiva
fundamentação;
b) À sua saúde ou estado de gravidez, salvo quando particulares
exigências inerentes à natureza da actividade profissional o justifiquem e
seja fornecida por escrito a respectiva fundamentação.
2 - As informações previstas na alínea b) do número anterior são
prestadas a médico, que só pode comunicar ao empregador se o
trabalhador está ou não apto a desempenhar a actividade.
3 - O candidato a emprego ou o trabalhador que haja fornecido
informações de índole pessoal goza do direito ao controlo dos respectivos
dados pessoais, podendo tomar conhecimento do seu teor e dos fins a que
se destinam, bem como exigir a sua rectificação e actualização.
4 - Os ficheiros e acessos informáticos utilizados pelo empregador para
tratamento de dados pessoais do candidato a emprego ou trabalhador
ficam sujeitos à legislação em vigor relativa à protecção de dados
pessoais.
5 - Constitui contra-ordenação muito grave a violação do disposto nos n.ºs
1 ou 2”. (de novo, sublinhados nossos).
Agora já temos também que a informação sobre um aspecto do estado de
saúde não pode ser exigida, salvo se a natureza das funções a
desempenhar o justificar e se isso, esta fundamentação, o propósito de
recolha da informação, constar de documento escrito fornecido ao
trabalhador. E mais: prestada ou recolhida a informação, quem a recebe
não é o empregador mas o médico, e este não pode prestar nenhuma
informação sobre o estado de saúde do trabalhador, na verdade só pode
prestar a sua conclusão sobre a conciliação do estado de saúde que
observou com a natureza do trabalho a realizar, no binómio apto/não apto.
Ainda sobre estado de saúde, mais em concreto sobre a possibilidade de
exigir testes e exames médicos, dispõe o artigo 19º do Código do
Trabalho:
“1 - Para além das situações previstas em legislação relativa a segurança
e saúde no trabalho, o empregador não pode, para efeitos de admissão ou
permanência no emprego, exigir a candidato a emprego ou a trabalhador a
realização ou apresentação de testes ou exames médicos, de qualquer
natureza, para comprovação das condições físicas ou psíquicas, salvo
quando estes tenham por finalidade a protecção e segurança do
trabalhador ou de terceiros, ou quando particulares exigências inerentes à
actividade o justifiquem, devendo em qualquer caso ser fornecida por
escrito ao candidato a emprego ou trabalhador a respectiva
fundamentação.
2 - O empregador não pode, em circunstância alguma, exigir a candidata a
emprego ou a trabalhadora a realização ou apresentação de testes ou
exames de gravidez.
3 - O médico responsável pelos testes e exames médicos só pode
comunicar ao empregador se o trabalhador está ou não apto para
desempenhar a actividade”.
De novo, mesmo que a razão seja a protecção da segurança do
trabalhador ou de terceiros, tem de haver comunicação escrita desse
fundamento e propósito ao trabalhador e o resultado dos exames ou testes
não pode ser comunicado pelo médico responsável, só sendo permitido a
este que informe o empregador da aptidão ou inaptidão para a função ou
actividade.
Dúvidas portanto sobre a recorrente não poder ter acesso à análise de
sangue do trabalhador e à taxa de álcool nela encontrada? Nenhumas. É
um dado relativo ao estado de saúde do trabalhador que a recorrente
nunca podia conhecer.
Evidentemente, a reserva da intimidade da vida privada de alguém só se
mantém enquanto o respectivo beneficiário quiser fazer uso do benefício e
portanto, se o próprio recorrido tivesse dado a informação à recorrente
(sendo ainda discutível se este dado não estava condicionado, quanto à
sua utilização, ao objectivo para que era dado), o acesso ao dado era
válido e a prova podia ser livremente usada.
À Ré cabia provar o modo pelo qual acedera ao dado, ou mais
especificamente mesmo, que tinha sido o trabalhador quem lho tinha dado
simplesmente (sem qualquer outro propósito de utilização do dado que
não fosse dar conhecimento ao empregador). Não o tendo feito, a prova é
nula. Embora sejam as maiores garantias de defesa contra a aplicação de
sanções penais que determinam o princípio constitucional constante do nº
8 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual
“São nulas todas as provas obtidas mediante (…) abusiva intromissão na
vida privada (…)”, podemos, até pelo paralelismo (parente pobre e
bastante menos gravoso) com a aplicação de sanção disciplinar e com o
procedimento disciplinar – e já agora, com a acção de impugnação da
regularidade e licitude do despedimento – convocar também a mesma
consequência. A prova é nula e não podia ser usada.
Agora, vamos lá esclarecer uma coisa: as provas são os meios de
demonstração da realidade dum facto. O facto é “O A. apresentava uma
taxa de álcool no sangue de 2,3g/l”. Não havendo, pela própria natureza
das coisas, outra maneira de demonstrar isto senão com a apresentação
do teste – documentos a fls. 26 a 29 (nota de alta hospitalar e relatório de
patologia clínica) juntos com o articulado motivador – o que, com respeito
pela Mmª Juiz, não pode acontecer, é dar-se o facto como provado. Se a
prova, por causa do acesso ilegal da Ré à mesma, é nula, isto significa
que não tem a virtualidade de demonstrar o facto.
Assim, e nos termos do artigo 712º do CPC, este tribunal corrige
oficiosamente a matéria de facto, eliminando o facto nº 5.
E assim sendo, como já dissemos, ficamos com nada: O recorrido sofreu
um acidente no seu trabalho”, o que não viola nenhum dos seus deveres
laborais e não pode por isso constituir infracção que determine a aplicação
de qualquer sanção disciplinar.
Nestes termos, e por razões não coincidentes com as que foram
plasmadas na sentença recorrida, sempre improcederia o recurso.
- Ainda que, ao contrário do que acabámos de fazer, assim não fosse, e no
que toca à terceira questão, sobre a norma violada, a Ré e ora recorrente
não invocou nenhuma norma legal que impusesse o não consumo de
álcool aos trabalhadores – e de facto tal norma não existe – e antes, na
nota de culpa, invocou expressamente a violação pelo trabalhador das
regras internas da empresa (ponto nº 2 da nota de culpa), sendo porém
claro nos autos que não emitiu nenhuma norma no sentido de proibir o
consumo de álcool aos seus trabalhadores. Ora, logo aqui, como se vê, a
acusação disciplinar tinha de soçobrar. Se se invoca a violação duma
regra interna e depois essa regra – até se admite – não foi emitida, não há
como afirmar a violação do que não existe. Diz a Ré que não tinha de
emitir a norma porque ela resulta do bom senso, aqui conjugado com o
facto dos seus veículos terem equipamentos de alguma complexidade que
obrigam o seu manuseador a estar completamente concentrado, e que
portanto se o trabalhador está alcoolizado está a incumprir essa norma,
pois que até pode provocar acidentes.
Vamos desconsiderar, como já se viu, a tal questão do nexo causal. Não
temos adquirido que o condutor fosse com álcool, mas mais grave do que
isso, não temos alegação de facto de que resulte que o aqui recorrido
tivesse conhecimento de que o condutor ia com álcool. Na verdade, não foi
alegado quando e em que circunstâncias é que o álcool foi consumido por
ambos. E não é evidente que quem tem 1,79 de álcool esteja visivelmente
alcoolizado. Por isso, toda a tese do comportamento causal do A. cai por
terra.
Vamos ainda desconsiderar toda a alegação sobre a complexidade dos
equipamentos. Com o devido respeito, não percebemos: - que tipo de
carro de lixo era, se era um que triturava, se era só uma carrinha de caixa
aberta para transporte de electrodomésticos usados, qual era a actividade
concreta do trabalhador, o que é que ele tinha de fazer, se a complexidade
resultava do facto de ter de abrir a porta e sair do carro para ir pegar nos
resíduos e lançá-los para cima do camião, ou se era mesmo mais
complexo, como puxar uma alavanca na parte de trás do camião, que faz
subir os caixotes de lixo e entornar o seu conteúdo para dentro do tambor
triturador. E, que operações são essas que o trabalhador, acompanhante,
tem de realizar dentro do camião? Com que equipamentos complexos, em
que botões tem ele de carregar? Isto pois para dizer que se alguma
complexidade existe, devia ter sido alegada a factualidade donde ela
resultasse.
É que ela, decididamente, não resulta do bom senso. É do bom senso que
resulta a norma que proíbe o consumo de álcool, ou o estar alcoolizado? O
bom senso não é fonte de direito, antes fosse. E no caso do consumo de
álcool e da execução da prestação laboral, digamos que o bom senso tem
mil e mais facetas: - depende do tipo de prestação laboral e do tipo
(quantidade e consequências da quantidade) de consumo. Vamos dizer
que, e sem qualquer carácter pejorativo, não resulta do bom senso que um
“almeida”, um “homem do lixo”, não possa beber uma cerveja ao almoço, e
ir trabalhar a seguir. Ou não possa, consoante as suas funções concretas,
beber bastante mais ao almoço. É evidente que o motorista do camião não
pode beber. Mas o acompanhante?
O que a recorrente podia ter dito, na nota de culpa, é que é do bom senso,
ou melhor, é da experiência normal das coisas que quem tem 2,3g/l de
álcool no sangue talvez não esteja nas melhores condições para executar
o trabalho, e que a norma infringida pelo trabalhador não é a violação de
regras de segurança e higiene e saúde (porque falta a alegação dos factos
concretos pelos quais o trabalhador concreto estaria tão perdido, passe a
expressão, que provocaria acidentes, para si e para os outros) mas o
dever de executar o trabalho com zelo e diligência (posto que também
precisássemos de factos concretos, mas ainda assim aqui era mais fácil
defender que o recorrido estaria mais lento a fazer o trabalho (qual?
Sabemos que ele ia no carro, sabemos qual era o itinerário, mas não se
ainda havia alguma coisa a recolher, se era pelo contrário o carro que
estava a recolher porque, às 17.45, estes trabalhadores já estavam
prontos para ir para casa).
Embora na motivação já se fale no dever de executar o trabalho com zelo
e diligencia, a verdade é que isso não consta da nota de culpa, e por isso,
não podendo o trabalhador defender-se oportunamente, o facto não pode
ser considerado nessa vertente violadora.
A norma resulta ainda do bom senso na medida em que a actividade da
Ré é de interesse público? Estamos a falar dum piloto de avião? É de
interesse público, mas as funções concretas, a nós aportando pela mera
via da categoria profissional, portanto genericamente, são as que são, e o
trabalho não exige senão a sua realização. Não há nenhuma exigência
especial que faça com que o trabalho não possa ser realizado com o
trabalhador a pensar no que quiser, com ar mais satisfeito ou carrancudo,
mais lúcido ou pelo contrário um pouco tonto. É que a recorrente esquecese também de alegar os factos dos quais o prejuízo público para a sua
imagem resulta: - o trabalhador andava aos tombos e aos pontapés aos
resíduos, murmurando palavras desrespeitosas em língua geralmente
incompreensível?
A recorrente aliás confunde-se: não é por ter conhecimento da taxa e não
agir que o seu prestígio fica afectado e assim lhe é causado um prejuízo
sério. Se é, isso deve-se ao seu comportamento (proceder ou não
proceder), não ao do trabalhador.
O prejuízo para a sua imagem (e de resto convenhamos que a afirmação
de que seria censurada pelo cliente e que isso acarretaria grave prejuízo é
completamente conclusiva e manifestamente exorbitante) resultaria do
comprovado cumprimento defeituoso do trabalho, pelo trabalhador,
associado ao comprovado comportamento embriagado em público (notese, com álcool, o trabalhador pode esquecer as agruras da vida e
empenhar-se muito mais a lançar frigoríficos sobre camiões, e por isso, na
alegria da imensa diversidade da vida, o público servido até pode achar
que aquele trabalhador alegre é muito produtivo e um excelente e rápido
removedor de electrodomésticos).
A norma violada não decorre, porque também o desconsiderámos porque
não provado, dalguma menção em acção de formação. Aliás, é a
recorrente quem o diz, não tinha de emitir norma nenhuma.
Em suma, não há nenhuma norma sobre segurança, saúde e higiene no
trabalho emitida pela Ré à qual o trabalhador tivesse desobedecido.
- E vindo à quarta questão, se não há uma norma violada, como é que se
afirma uma infracção e como é que se parte para qualificar a infracção
como grave? Repare-se que a recorrente entende que a norma violada é
(vamos esquecer as inúmeras violações de deveres que apontou ao facto
na motivação, porque não foi disso que acusou o trabalhador) a de
segurança, saúde e higiene, e que a particular gravidade da infracção
resulta do perigo para a saúde do recorrido e dos colegas e até de
terceiros. E ainda que resulta do facto de ser uma actividade de interesse
público (o que já vimos não está suficientemente concretizado). Factos,
para estas fontes de violação e de gravidade, são nenhuns.
Ora aqui, há um exercício de sagacidade futura, que se resolve da
seguinte maneira: basta emitir uma norma interna a estabelecer que o
limite de álcool é de 0,50 g/l (para evitar que os trabalhadores se
despeçam todos em caso de tolerância zero, vamos convir que o trabalho
não é agradável) dar conhecimento dela aos trabalhadores, e futuras
violações da norma acarretam imediatamente a violação de um dever
laboral (obediência) sem que seja questionável a norma (porque ela
convocará a si, como fundamento, todas as considerações que a
recorrente produziu nos autos a partir do dito bom senso) e sem que seja
de futuro necessário estar a alegar e a concretizar plúrimos factos sobre o
efeito do álcool em cada trabalhador concreto. Escusado será dizer que o
bom senso nos diz também que o efeito do álcool varia de pessoa para
pessoa, em função do género e da massa corporal, e da quantidade de
alimento ingerida em simultâneo com o álcool.
Em conclusão: não há nenhuma infracção, nem por isso nenhuma
gravidade. Deste modo, é até, com o devido respeito, um pouco descabido
considerar-se na sentença que a sanção não é proporcionada. Para isso é
preciso encontrar uma violação dum dever. De resto, se a taxa de álcool
não servia para fundamentar a justa causa, não se percebe porque é que
se considera que a sanção era desproporcionada, visto que, analisada a
nota de culpa, dela não resultava mais nada além da taxa de álcool.
Em suma, o despedimento é ilícito por improcedência dos motivos – artigo
381º b) do Código do Trabalho.
b. 2 – No que toca à oposição à reintegração: - a recorrente não tem
razão, desde logo porque, no caso concreto, não há infracção a
considerar. Depois, o elenco legal das situações em que é permitida a
oposição à reintegração é taxativo – nem do texto legal resulta outra coisa
e não podem valer interpretações sem qualquer correspondência com o
texto – porque representa restrição ao direito constitucional à segurança
de emprego – artigo 53º da Constituição da República Portuguesa. A regra
é da reintegração, como reparação natural do despedimento ilícito, a
faculdade de obstar a esta reparação natural, por banda do empregador,
sujeito da obrigação de reintegrar, é excepcional. Só o beneficiário pode
prescindir do direito à reintegração, optando pela indemnização. Mas se
não o quiser fazer, a reparação é natural e é restabelecido, como se nunca
houvesse tido lugar qualquer corte ou interrupção, o lugar onde o
trabalhador busca as condições da sua sobrevivência e de seu
desenvolvimento pessoal e familiar (que são as fontes donde procede a
segurança no trabalho). No caso, o trabalhador não tinha um cargo de
administração ou direcção e a Ré não é uma microempresa.
Em conclusão, improcedem todas as questões do recurso.
IV. Decisão
Nos termos supra expostos acordam negar provimento ao recurso e
confirmam, ainda que não inteiramente pelas mesmas razões, a sentença
recorrida.
Custas pela recorrente.
Porto, 10.7.2013
Eduardo Petersen Silva
João Diogo de Frias Rodrigues
Paula Maria Mendes Ferreira Roberto
____________
Sumário:
I. Estando um trabalhador, que segue como acompanhante numa viatura
da empresa que se acidentou, com um determinado grau de álcool no
sangue, a utilização pelo empregador do documento que comprova tal
grau, sem que o empregador tenha demonstrado que o trabalhador lhe
autorizou o acesso, constitui prova ilegal, face ao disposto nos artigos 26º
da Constituição da República Portuguesa, e 16º, 17º e 19º do Código do
Trabalho.
Deste modo, tal prova não serve a demonstrar a realidade do facto.
II. Ao empregador que invoca a violação pelo trabalhador duma norma
interna que proíbe o consumo de álcool, compete provar a existência
dessa norma, não podendo limitar-se a afirmar que a norma resulta do
bom senso.
Eduardo Petersen Silva
(Processado e revisto com recurso a meios informáticos (artigo 138º nº 5
do Código de Processo Civil).
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Acórdão do Tribunal da Relação do Porto