ASPECTOS MORFOLOGICOS DE «ANCHORA MEDICINAL DE 1721»: INTRODUCAO AO ESTUDO DAS DESINENCIAS VERBAlS DE UM TEXTO 00 PORTUGuES SETECENTIST A Manoel Mourivaldo SANTIAGO ALMEIDA (Universidade Federal de Mato GrossolUniversidade de Sao Paulo) ABSTRACT: The communication presents morphological aspects of «Anchora medicinal» - writing portuguese of ltfh century: it's a question of a introductory study that examines the verbal endings that indicate gramatical notions of tense and mood, and of person and number of subject. A comunica~o apresenta aspectos morfo1ogicosdo portugues escrito setecentista, alicer~do-se no reco1himentode amostra de dados encontrados ao longo de um textobase: a primeira edi~o do manual de saUde,Anchora medicinal para conservar a vida com saude, de autoria de Francisco da Fonseca Henriquez, publicado no primeiro quarte1do secuIo dezoito. Trata-se, em particular, de um estudo introdutorio que exarnina as desinencias, ou sufixos flexionais, correspondentes as formas exclusivas dos verbos chamados regulares, indicadoras das n~Oes gramaticais de tempo e modo, de um 1ado, e de pessoa e niunero do sujeito, de outro. E, atraves da descri~o dessas formas verbais «complexas e mwtip1as» - para dizer com Camara JR. (1989: 104), tem como objetivo principal fazer urn 1evantamento do paradigma de tais sufixos flexionais com a pretensao de poder contribuir com as investigarrOessobre a portugues de um modo geral, fornecendo dados para 0 me1hor conhecimento da lingua portuguesa escrita na fase historica em questao. Ressalte-se, porern, que as formas, ditas nominais, de genmdio e participio nao serao aqui consideradas. Desde os primeiros gramaticos da lingua portuguesa - Femao de Oliveira (150715800u 1581) e Joao de Barros (1496-1570 ou 1571) - ate as gramaticas de hoje, nao se tem destacado grandes diferenrras no que se refere ao paradigma dos sufixos flexionais do verbo. 0 que se percebe sao discussOes a respeito do conceito e tipologia da n~ao de modo: enquanto numa gramatica Ita r~o dessa classifica~o, em outra Ita acrescimo, ou apenas mudanrra de nome, como, via de regra, acontece com 0 conceito e tipologia da n~ao de tempo. Exemplo dessa variarrao pode ser visto, comparando a gramatica de Barros (1540) com a Grammatica Philosophica (1783), composta por Bacellar. Aquela apresenta uma classificarrao maior do que esta, que, por sua vez, reconhece mais modos do que as grainaticas modernas. l Barros da nome a cinco modos: i) para demostrar, ii) mandar e iii) para d' ajuntar - correspondendo, respectivamente, aos indicativo, imperativo e subjuntivo das gramaticas atuais - iv) para desejar, que corresponde hoje a alguns tempos, ou do subjuntivo (presente e preterito imperfeito), ou do indicativo (preterito mais que perfeito simples) e v) 0 modo infinitivo, que modernamente e considerado como uma das formas nominais do veIbo. Na gramatica de Bacellar, no entanto, encontramos quatro modos: i) indicativo, ii) imperativo, iii) conjuntivo, hoje subjuntivo, e iv) infinito, ou infinitivo. Em se tratando de formas que representam as no¢es verbais aqui em foco, a disparidade, quando existe, basicamente se concentra no que diz respeito a representa~o gnifica dessas formas, como prova 0 quadro das desinencias abaixo. Tambem mo encontramos acentuadas disfonnidades quando 0 assunto tratado evidencia a conceito de veIbo, seja em qual for 0 aspecto (semantico, sintiltico ou morfol6gico). Oliveira (l871: 113) mo diz «que cousa he veIbo, nem quantos generos de veIbo temos», lembrando que a sua gramatica mo se ocupa dessa parte. Ele apenas trata do veIbo comentando sobre voz, conjuga~o, modo, tempo, nUmero e pessoa, mo preceituando nenhurn quadro-modelo de desinencias verbais. Barros (em Buescu, 1971: 324-343) conceitua 0 veIbo comparand<H> ao rei, fazendo alusio Ii metilfora do jogo de «enxedrez» com que distinguiu <<VeIbo»e «nome»2, definindo 0 veIbo «nam segundo convem a sua majestade, mas como 0 querem os gramaticos, a quem nam e dado tratilr nulls que de sua humanidade». Repetindo os gramaticos latinos, Barros divide os veIbos em impessoais e pessoais. Estes sao os que rem nUmeros e pessoas «e todos eles trazem consigo estes oito ~dentes: genero, espeeia, figura, tempo, m6do, pessoa, nUmero,cojuga~>. A grammatica philosophica, e orthographia racional da lingua portugueza, de 1783, its pags. 52-102, lembrando que veIbo mo se declina por casos como 0 definem gregos e latinos, trata dessa a~o gramatical definindo-a como urn som que representa com afirma~o a obra fisica, tendo pessoas, nUmeros, tempos (sons que representam ou a dura~o presente das coisas, ou a prererita, ou a futura) e modos, ou maneiras de significar, como indicando, imperando, subjungindo, e nunca acabando. Esta gramatica e a de Barros, diferentemente da de Oliveira, descrevem, pelo quadro-modelo, as formas verbais que dao conta dos «acidentes» modo/tempo e pessoalnUmero. Outra explicita~o de desinencias verbais pode ser encontrada em outra obra antiga: Epitome da grammatica portugueza, de Antonio de Morais Silva, opUsculo editado em 1806 e anexado ao Dicioruirio Morais na sua segunda edi~o de 1813, as pags. XXXII-XL - taboas das conjuga90es. No capitulo cinco do livro I deste Epitome (pags. XII-XVI) 0 veIbo e definido como «a palavra, com que declaramos 0 que a alma julga, ou quer a cerca dos sujeitos, e dos attributos das senten9a5; com ele afirmamos, e mandamos». Neste capitulo cada genero verbal (atributo, tempo, modo, nUmero e pessoa) e conceituado e acompanhado com devidos verbi grati&a, esclarecendo que a significa~o dos veIbos anda anexa a significa~o de algum atributo, e da pessoa ou coisa, em quem 0 atributo existe, existiu, ou existira no sujeito. Dessa forma, Morais Silva considera «modos verdadeiros» dos verbos apenas 0 indicativo ou mostrador, com que afirmamos, eo imperativo, ou mandativo, com que mandamos, pedimos, exortamos, ou declaramos 0 nosso querer. Ele, no entanto, reconhece que M mais vari~s verbais ditas do modo conjuntivo, ou subjuntivo, que sao formas que ajuntam urn atributo veIbal referido a uma das tres pessoas; e pelo fato de tudo ser subordinado a outra senten-ra principal, n1icleo do periodo, em que entra verbo, ou no indicativo, ou no imperativo, explica-se 0 porque de estes dois modos serem tidos por Morais Silva como «verdadeiros». Ele tambem nao trata 0 infinitivo como modo, por ser uma forma que representa «s6mente 0 attributo veIbal, sem afirmar, nem querer, sem rela~o com pessoas ou tempos». Esta posi¢o, como se ve, contrap6e-se il Gramatica filosofica de Bacellar, que por considerar a forma do infinito, ou infinitivo, como modo, dizendo que e assim chamado «porque nunca acaba de significar», ate apresenta 0 paradigma das desinencias dos tempos desse modo, juntamente com as de pessoa e nUmero. A investiga~ das formas verbais empregadas pelo autor de Anchora medicinal, contemporaneo de Bacellar, nos mostra que, no portugues escrito do secuIo xviii, de fato 0 infinito e urn modo veIbal com v~ de formas de tempo, pessoa e nUmero, como quer a Gramaticafilosofica e tambem 0 Epitome de Morais Silva. o que se percebe, porem, e que as desinencias clos tempos (presente, preteritos imperfeito, perfeito e mais que perfeito e futuro) do modo infinito sao as mesmas dos tempos ou do indicativo, que sao as mais usadas, ou do subjuntivo. Em Anchora medicinal temos alguns exemplos: «ainda que 0 pio e 130born» (pIig. 89) no lugar de seja, ou «ainda que 0 peixe se coze e da pouco trabalho ao estamago (sic)>>(pIig. 70) em vez de coza e de. Dai pode-se inferir que, de acorclocom os contextos em que estas formas do indicativo presente est30 empregadas, 0 autor quer dar conta de uma a¢o gramatical «que nunca acaba de significar»: quer que se leia que, por natureza, por essencia, 0 pio em questao e e 0 referido peixe coze e da, independente da maneira de significar que por ventura se queira empregar. o. Paradigma dos sufixos jlexionais dos verbos em Anchora medicinal portugues setecentista elou do - SNP (sufixo de nUmeroe pessoa) - SMT (sufixo de modo e tempo) - P. (pessoa), seguido de nUmero cardinal, indicando: 1.&do singular = (I), 2.&do singular = (2), 3.&do singular = (3), P do plural = (4), 2.&do plural = (5), 3.&do plural = (6). - Var. (variante, ou alomorfe) - Abona~o (Anchora medicinal, pag.:linha ou Grammatica phi/osophica, pag.) - Ind. (indicativo), Conj. (conjuntivo), Imp. (imperativo), Inf. (infinitivo) - Pr. (presente), Ptl (preterito imperfeito), Pt2 (preterito perfeito), Pt3 (preterito mais que perfeito), Ft. (futuro) P. Sufixo geral PI 0 Var. Ambiente Observacao atono -i assilabic Ind.Pr. Ind.Pt2 Movo,82 Crase de -i com a v. Amei,60 tetwitica -i em 28 e 38 Movi,84 conj. Fundi, 90 Amarei,68 -0 0 Ind.Ft. P2 P3 Abonacao Amas,56 -s 0 -ste Imo. Ind.Pt2 -u assiIabic Ind.Pt2 18conj. Fallou, 122:16 Ind.Pt2 28 e 38conj. Morreo, 505:2 Preferio, 318:4 Amaste,60 0 0 -0 assilabic 0 P4 -mos P5 -is assilabico Damos, 386:3 -stes -1 -is ditonga-se com v. Amais,56 tenuitica ou com voga! Moveis,84 fInal do SMf Fundis,9O Amastes,62 Crase de -i com a v. Amai,68 tenuitica -i em 38conj. Movei,84 Fundi, 92 Ind.Pt2 Imp. assilabic 0 P6 -0 assilibico -m Ind.pr.28c. 3" conj Imp.18c. Conj.Pr. coni. Conj.Pt2 Coni.Ft. I" Matao, 100:3 Comao,304:4 Nacem(sic), 506:9 Dormem,116:21 Dem (sic), 384:15 Cheguem, 385:4 Repetissem, 207:2 Nutrirem, 130:8 M.T. Sufixo geral Ind.Pr. 0 Ind.Ptl -va- Ind.Pt2 Ambiente -lll- l' conjug~ao 2' conjugayao 3' conjugayiio 0 Pl,2,3,4,5 Var. -ra- Ind.Ft. -ratonico 0 Coni.Pr. -e-8- Conj.PtI P6 - Morrerao,507:14 Prohibirao,432:18 Amarais,66 P2,3,6 -retonico Imo. Abonacao pezavao, 188:20 Vendiao,206:24 Sentiao,412:23 -raMono Ind.Pt3 P. Pl,4,5 Deyxari,205:11 Servirio, 15:4 RespOderemos,74:6 Passero., 129:26 Cozao,72:22 Resistao, 82:17 I' coniugacao 2' conjug~ao 3' conjugayao Succederia, 92:23 -ria- Con,i.Pt2 -sse- Cauzasse, 82:20 Coni.Pt3 -ra- Idem: Ind.Pt3 Conj.Ft. -r- PI,3,4 -reatono P2,5,6 (se) amarmos, 76 (se) reparem,429:10 Restam duas observac3es finais: i) como ficou evidente nas tabelas, tal qual a gramatica de Barcellar, Anchora medicinal apresenta apenas urn tempo futuro para cada modo. 0 que hoje nossas gramaticas registrant como futuro do preterito do indicativo, com sufixo -ria-, corresponde ao preterito imperfeito do conjuntivo na gramatica e texto setecentistas analisados, do mesmo modo que Barros, dois secuIos antes~ ii) a outra observa~o diz respeito do alomorfe -des, em P5, apontado hoje em futuro do subjuntivo. A Grammatica philosophica nao 0 registra, notificando, a pagina 76, que as formas em -des 53:0 usadas contra a suavidade e regularidade da lingua. Essa preocupa~o de ser suave e regular, no entanto, nao tem lugar na gramatica de Barros, nem no Epitome de Morais Silva. Ainda merece men~o a ausencia de outros alomorfes, que, igualmente a Barros e Morais Silva, 580 registrados hoje em nossas gramaticas: as formas, em P5, do IndPtl -ve- (1aconj.) e -ie- (2a e 3a conj.), do Ind.Pt3 -re- e do Conj.PtI -rie-, correspondem, na gramatica de Bacellar, as formas gerais de cada uma dessas n~Oes verbais, respectivamente: -va-, -ia-, -ra- e -ria-. 1. Ha que se ressaltar, ainda, que 0 paradigma das desinencias do verbo, levantado nesse estudo, tem como contraponto 0 paradigma das flexOes dos verbos regulares, no padrao geral, da lingua portuguesa. 2. Conforme notifica Buescu (1971: 314), os primeiros gramaticos das linguas modernas encontraram em Barros a solu~o, por exclusao, do problema da declina~o, do qual muito se ocuparam: «declina-se [0 nome] per casos sem tempo. Significa dizer que 0 a, como se ve ao tratar dos verbos, distingue perfeitamente declinar;iio de conjugar;iio, 0 que nao era, alias, comum nos gramaticos da epoca. Nebrija afirmava que 'Verbo [...] se declina por modos e tiempos'; Barros dim: 'Verbo [...] niio se declina [...] mas conjuga-se'». RESUMO: A comunicar;iioapresenta aspectos morfologicos de «Anchora medicinal» - portugues escrito do seculo xviii: trata-se de um estudo introdutorio que examina as desinencias verbais que indicam as nor;oesgramaticais de tempo e modo, e de pessoa e numero do sujeito. BARROS, Joao de (1540). Grammatica da lingua portuguesa. Em: Buescu, M. Leonor Carvalhlio (1971). Gramatica da lingua portuguesa. Lisboa: Publica93es da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. BACELLAR, B. de L. e Melo (1783). Grammatica philosophica e orthographia racional da lingua portuguesa. Lisboa: Of. de Simao T. Ferreira. BUESCU, M. Leonor Carvalhlio (1984). Historiograjia da lingua portuguesa. Lisboa: Livraria Sa da Costa Editora. cAMARA JR., Joaquim Mattoso (1989). Estrutura da lingua portuguesa. Petr6polis: Vozes. MORAIS SILVA, Antonio de (1813). Epitome da grammatica portugueza. Lisboa: Typografia de Antonio Jose cia Rocha. HENRIQUEZ, Francisco cia Fonseca (1721). Anchora Medicinal para conservar a vida com saude. Lisboa Occidental: Officina cia Musica. OLIVEIRA, Femao de (1871). Grammatica de /inguagem portugueza 2.aedi~o, confonne a de 1536 - Porto: Imprensa Portuguesa.