ELOS PORTUGAL E BRASIL:
JOÃO DE BARROS E ANCHIETA
Neusa Barbosa Bastos1
Dieli Vesaro Palma 2
Resumo
Tem-se por objetivo tecer considerações sobre as
aproximações e distanciamentos existentes entre a
Grammatica da Língua Portuguesa de João de Barros e a
Arte da Gramática da Língua mais usada na costa do Brasil de José de Anchieta, com base nos princípios
metodológicos da Historiografia Lingüística com Koerner
e Swiggers. Enfoca-se o século XVI, visando ao
desvendamento da ideologia do dominante, uma vez que a
linguagem do dominante é sempre a relacionada à essa
ideologia. A pesquisa realizada aponta para: 1. a verificação de que a ideologia clerical foi tão forte que se sobrepôs à do governo português; 2. a constatação de que o
poder ideológico de um grupo age de forma mais atuante
sobre o sujeito-autor do texto do que suas próprias convicções; 3. a percepção de que são registrados, nos textos
analisados, traços das forças impositoras e doutrinárias
externas a eles mesmos.
Palavras-chave: língua portuguesa, historiografia.
Abstract
This article aims to weave considerations about
existing moments of approximation and distantness between
João de Barros´ Grammatica da Lingua Portuguesa and
Jose de Anchieta´s Arte da Gramática da Lingua mais usada na Costa do Brasil based on Koerner´s and Swiggers´
Linguistic Historiography methodological procedures. It
deals with the XVI century focusing the unveiling of the
dominant ideology, on the grounds that the dominant´s
language is always the one which is related to this ideology.
The results of the survey point to the following directions:
1. the verification that the clerical ideology was so strong
1
2
that superimposed the Portuguese government; 2. the
confirmation that the ideological power of a group acts more
actively over the subject-author of the text than over its
own convictions; 3. the perception that traces from the
imposing and doctrinal forces, external from the analyzed
texts, were registered.
Key words: Portuguese language; historiography
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Por acreditar que a tendência historiográfica dos dias
atuais preocupa-se com a recuperação da historicidade e da
dinâmica social, voltamo-nos, neste trabalho, para o século
XVI, em que surgem duas obras gramaticais elaboradas por
portugueses e representativas da cultura portuguesa em
momento expansionista.
A primeira obra é de João de Barros, influente nobre
português, proprietário de uma capitania hereditária no Brasil, escritor de obras sobre a História de Portugal e autor da
Gramática da Língua Portuguesa (1540), sendo o primeiro
gramático da língua lusa, uma vez que Fernão d’Oliveira se
auto-denominou o primeiro anotador de nossa Língua. A
segunda obra é do Padre José de Anchieta, religioso da Companhia de Jesus, enviado ao Brasil para catequizar os índios
das novas terras conquistadas pelos portugueses e autor da
Arte da Gramática da Língua mais falada na costa do Brasil, em 1595. Ambos os autores são, portanto, protagonistas
do período de gramatização que se estendeu do século V
d.C. ao século XIX, quando são produzidas gramáticas que,
simultaneamente, tornam-se uma técnica pedagógica para a
aprendizagem das línguas, inclusive a materna, e um meio
Neusa Barbosa Bastos é Professora Titular do Departamento de Português da PUC/SP e do Departamento de Letras da UPM/SP e Coordenadora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Língua Portuguesa da PUC/SP.
Dieli Vesaro Palma é Professora Titular do Departamento de Português da PUC/SP e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Língua
Portuguesa da PUC/SP. É Diretora da Faculdade de Comunicação e Filosofia da PUC/SP.
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de descrevê-las, seguindo a tradição greco-latina.
(Auroux:1992:35,36)
Parece-nos importante destacar ainda que, do ponto
de vista da gramaticografia em língua portuguesa, João de
Barros insere-se em seu período áureo, que se estende de
1533 a 1572. A intensa atividade de produção lingüística
desenvolvida nesse momento desempenha um importante
papel não só na mentalidade e formação intelectual dos portugueses mas também nas concepções políticas e ideológicas vigentes em Portugal. A publicação da Gramática da
Língua Portuguesa ocorre no chamado período vernáculo,
no qual, sob a égide do pensamento humanista, há um forte
interesse pelas coisas humanas, entre elas o fenômeno
lingüístico, focalizado numa perspectiva comparativa entre
várias línguas, prática típica do humanismo. É uma época
em que o Português é confrontado com o Latim e com outras línguas vernáculas, fato que também contribui para o
surgimento de gramáticas. Desse modo, a língua portuguesa, já fixada pela escrita, passa então a ser objeto de estudo
e de reflexão por meio de obras que visam a normatizar o
seu funcionamento. (Verdelho, 1995:98)
Já o trabalho do Padre José de Anchieta, a Arte da
Gramática da Língua mais usada na costa do Brasil, publicado em 1595, insere-se, segundo Verdelho, no terceiro momento da gramaticografia portuguesa, ou seja, naquele que se segue a 1572, com a publicação da obra de
Manuel Álvares. Esse período caracteriza-se pelo predomínio da escolarização dos jesuítas e pelo início da gramaticografia moderna.
Temos por objetivo tecer considerações sobre as aproximações e distanciamentos existentes entre a Gramatica da
Língua Portuguesa de João de Barros e a Arte da Gramática
da Língua mais usada na costa do Brasil de José de Anchieta.
Centramo-nos nos princípios metodológicos da Historiografia
Lingüística com Koerner e Swiggers, enfocando o século XVI
e visando ao desvendamento da ideologia do dominante, uma
vez que a sua linguagem é sempre relacionada à ideologia
que ele professa.
A pesquisa realizada aponta para: 1) a verificação de
que a ideologia clerical foi de tal maneira forte que se sobrepôs à do governo português; 2) a constatação de que o
poder ideológico de um grupo age de forma mais atuante
sobre o sujeito-autor do texto do que suas próprias convicções; 3) a percepção de que são registrados, nos textos de
Barros e de Anchieta, traços das forças impositoras e doutrinárias externas a eles mesmos.
Podemos lembrar que essas gramáticas foram escritas, após as primeiras obras gramaticais de Elio Antonio de
Nebrija (Espanha - 1492) e de Fernão d’Oliveira (Portugal 1536), sistematizadoras das línguas espanhola e portuguesa. Foram trabalhos voltados para o ensino da língua
vernácula, que se firmaram como aquelas mais influentes
em Portugal e no Brasil até a época de Marquês de Pombal
– século XVIII.
Em nossas análises, após termos selecionado as
obras mencionadas e ordenado-as baixo um critério cronológico, passamos a interpretá-las a partir da observação
dos sujeitos-produtores, João de Barros e José de Anchieta,
assentados nos moldes greco-latinos com o propósito de
cumprir determinada função que, se não foi atingida por
completo, apresentou resultados que se espalharam pelos
séculos subseqüentes.
JOÃO DE BARROS – O PRIMEIRO GRAMÁTICO
DA LÍNGUA PORTUGUESA
Iniciaremos as nossas considerações a partir da Gramática da Língua Portuguesa de João de Barros, escrita em
1540, objetivando estabelecer o que o uso introduziu e consagrou durante os anos que antecederam a constituição da
língua portuguesa advinda do romance português e do Latim.
Para se tratar da parte da ortografia em João de Barros, objetivo desta exposição, faz-se necessário que discorramos sobre a contextualização do gramático a partir de suas
origens. Nascido em Viseu, em 1496, foi educado esmeradamente no paço, em estreita amizade com D. Manuel e
também com D. João III, de quem recebeu o governo do
Castelo de São Jorge da Mina. Por essa influência, exerceu
sempre bons cargos: tesoureiro da Casa da Índia, da Casa
da Mina e da Casa de Ceuta e feitor da casa da Guiné e da
Casa da Índia. Quando da colonização do Brasil, ganhou
uma capitania de cinqüenta léguas ao norte, mas a expedição que foi enviada, naufragou e ele não prosseguiu no seu
empreendimento mercantil. Homem de letras, foi novelista,
poeta, filósofo, historiador e gramático-pedagógico com a
publicação da Gramática da Língua Portuguesa, donde reiteramos a origem nobre de nosso primeiro gramático. É relevante apontarmos ainda que o fato de haver vivido em
lugares diferentes (Beira Alta e Lisboa), de ter partilhado
da vida na Corte e de ter atuado na Casa da Índia foram
oportunidades que permitiram a João de Barros o conhecimento não só das transformações por que passava a língua
portuguesa naquele momento mas também das diferenças
do falar características de cada região, bem como as particularidades da norma culta. Em suma, essa experiência deulhe condições para o trabalho de reflexão e de normatização
que ele produziu.(cf. Mattos e Silva, 2002:48)
Sua gramática, publicada em 1540, em Lisboa, é uma
gramática normativa, porém mostra também, em vários
momentos, preocupação com aqueles que pretendem falar a
sua língua como, por exemplo, no trecho:
“...ficará esta matéria pera quando o uso ô requerer” “...dádo que em rigor de bõa linguágem sam mais
próprios do síngular que do plurár” “...Em aprender
fázes a ti bõa obra e ao méstre dás contentamento.”
A cada um dos passos da gramática, os exemplos revelam uma intenção formativa nos domínios da religião e
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da moral, e de um sentimento cívico baseado no orgulho
das conquistas d’além mar, o que é próprio de alguém que,
inserido num contexto sócio-econômico dominante, necessita mostrar-se engajado e servidor de seus protetores.
João de Barros declara-se o primeiro a pôr a nossa
língua em arte, e ele é realmente o primeiro caso se considere o sentido de época da palavra arte em sua gramática, isto
é, sistematizar a língua com a finalidade de mostrar como
falar e escrever bem.
Segundo Buescu (1971), há, ainda, quatro obras que
se inserem como complementares na esfera intencional de
um Corpus didático da época, a saber:
Escolaridade intencional da Cartinha como primeiro livro didático, da Gramática como segundo
livro, e dos dois Diálogos como conclusão e textos
de leitura...
Para a autora, há também aspectos que particularizam a obra desse gramático como:
1. Opção, da parte do autor, por uma gramática
normativa, tendo em vista os seus objetivos didáticos
imediatos... Para Barros, os artistas, isto é, os executores da Arte que se propõe elaborar com a sua Gramática, opõem-se aos gramáticos especulativos, pela
atividade plenamente pragmática do ensino...
2. Ordenação indutiva das matérias, que nos parece
(ao lado, é certo, da dedução) como uma antecipação metodológica...
3. Sistematização seletiva das matérias, de forma a
tornar a obra assimilável e acessível a espíritos
inexperientes... Barros, mais mestre do que gramático
especulativo, empreende, pois, a difícil tarefa de, dada
a novidáde de óbra, estabelecer as regras gerais, aludindo às exceções indispensáveis numa obra de caráter normativo.
4. Utilização de uma exemplificação gramatical raramente destituída de conteúdo formativo ou informativo, constituída por exemplos ilustrativos, quase
extraídos da história e da realidade portuguesa...
5. Preocupação de, aplicando como já vimos um método de base indutiva, tirar o máximo partido da disposição gráfica, com vista a uma facilidade de aprendizagem e fixação...A Gramática, não contendo
ilustrações, apresenta as matérias dispostas em pilha, por vezes em duplicações desnecessárias, mas que
demonstram a aplicação do princípio da repetição
como método de fixação”.
A questão da disposição gráfica da Gramática é um
aspecto revelador da preocupação com a aprendizagem e
fixação, como é o caso das declinações do artigo, do nome,
do pronome e das conjugações verbais. Outro aspecto que
nos interessa mais de perto, neste trabalho é a Ortografia,
que Barros tenta resolver, inserido que estava no espírito
renascentista que influenciava a produção de gramáticas com
foco nos seguintes aspectos: gramaticalização da língua
vulgar; posição dos gramáticos em relação às línguas clássicas (Grego e Latim), às de origem árabe e hebraica e às
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estrangeiras e, finalmente, o problema ortográfico. Em relação a este último, são três problemas fundamentais postos
para o português:
1º a perda da noção de quantidade e necessidade da
notação dos graus de abertura vocálica;
2º a tentativa de abolição de qu, substituído por c e a
utilização do ç para som sibilante (no século XVI ainda africado): ça, çe, çi, ço, çu;
3º distinção de i e u, semivogais de j e v.
(1971[1540]:32)
As soluções de Barros parecem revelar uma influência italiana, embora temperada com maior conservadorismo.
Segundo Buescu (1984:62), os gramáticos renascentistas
expandiram o ideal delineado por Petrarca de abandonar o
latim pelo toscano, reabilitando, assim, as línguas românicas. Eles buscaram dar às línguas vernáculas, “espírito e
alma” das novas nações, a regularidade e a sistematização
que os Alexandrinos deram ao grego e os gramáticos da
época imperial, ao Latim. Nesse sentido, afirma a autora
portuguesa:
A “consciência lingüística” vai, pois, a par com a
“consciência nacional”, até mesmo com a “consciência imperial” e a língua aparece-nos pela primeira
vez como o “espírito e alma” de cada nação. (p. 62)
Como a gramática de João de Barros insere-se no
movimento cultural europeu do quinhentismo, tendo sido
publicada no meio do século, logo antecedendo e seguindose a trabalhos humanísticos de gramáticos franceses, italianos e espanhóis, ela, certamente, registra a participação
portuguesa na produção intelectual européia daquele momento, apontando, sobretudo, a influência italiana.
Um outro aspecto da ortografia desenvolvido pelo
gramático foi a questão da pontuação. Preocupado com a
língua escrita, no final de sua Ortografia, ele apresenta “algumas breves anotações sobre a pontuação”. (Buescu,
1971:LX), as quais podem ser consideradas as primeiras
formas de sistematização desse aspecto da escrita. Diz ele:
H a das cousas principais da orthografia, pela quál
entendemos a escritura: e o apontar das partes de
clausulas em que os latinos mostraram muita
diligençia. Esta nam temos nós, principalmente na
letera tirada, sendo cousa que importa muito, porque
as uezes fica a oraçam amfibologica sem eles, donde
nacem duuidas. (1971[1540]:387)
Tendo por base a gramática latina, propõe os seguintes sinais de pontuação: cõma (:), cólo (.), uergas (,),
parentisis ( ) e interrogaçám (?). Esses pontos, segundo o
gramático, deveriam ser utilizados caso se quisesse
“doutamente escrever”. (1971 [1540]: 153)
Preocupado em evitar a ambigüidade, prevê funções
diferentes para cada um dos sinais. Assim propõe ele:
Cõma: “aque podemos chamar cortadura:por que aly
se córta a clausula duas pártes” (p.153) “Na cõma
parece que descansa a uóz, mas nam fica o intendim to satisfeito:por que deseia a outra párte” (p.154)
Cólo: “e o termo ou márco em que se acába a
clausula” (p.153); “a oráçam fica perfeita e rematada com este ponto cólo” (p.154)
Uergas: ”ou uirgulas: que sam h as distinções das
pártes da clausula” (p.153); sam zeburas ao módo
dos gregos” (p.154)
Parentisis: “os dous arcos que fázem estas palauras
(como ia disse): usam os latinos quando cometem h a
figura que chamam Entreposiçam” (p.154)
Interrogaçám: “quãdo perg ntamos álg ma cousa dizendo. Quem foy o primeiro que achou o uso das
leteras? Estes dous pontos assy escritos onde
apregunta acába, podemos chamar interrogatiuos:
por serem sinal que interrogamos e preguntamos
alg ma cousa” (p.154)
Vê-se, assim, que esse gramático centrou-se tanto em questões puramente ortográficas como em aspectos mais amplos da escritura como os relativos à pontuação e sua relação com a construção do sentido, sempre
preocupado em estabelecer normas para o bom uso da
língua, embora, como aponta Machado Filho (2002:264)
“João de Barros – pelo menos na perspectiva atual do
homem moderno – parece oscilar, consideravelmente,
entre o que determina e o que de fato, usa, se se considerar o que se encontra patente em sua Grammatica”,
explicitando, dessa forma, os processos de mudança em
curso no século XVI.
Com essas considerações, depreende-se que a gramática moderna, normativa, aplicada aos falares atuais e
nacionais, aparece-nos como uma das grandes criações
renascentistas. As gramáticas portuguesas situam-se no centro do vasto florescimento europeu, e manifestam-se intensas e entusiásticas atividades em torno de dupla finalidade: a codificação e a dignificação das línguas vulgares.
A Gramática de João de Barros corresponde à primeira; o
Diálogo em louvor da nóssa linguágem à segunda.
A posição de João de Barros vem mostrada claramente quanto a fazer preceder o estudo da Gramática Latina pelo estudo da Gramática Portuguesa. Para ele, o Latim
aparece como ponto de referência, modelo de codificação
gramatical e fonte de empréstimos; assim a gramática latina
é o modelo e a referência, mas há a preocupação em individualizar a língua portuguesa, como é verificado nas principais inovações românticas que foram discernidas ou, pelo
menos, pressentidas por ele:
- a existência do artigo;
- o desaparecimento da declinação;
- a redução das conjugações;
- as diferenças entre a forma e o valor dos tempos
verbais em relação ao latim;
- a formação perifrástica de alguns tempos verbais;
- a formação perifrástica da voz passiva;
- o desaparecimento da noção de quantidade;
- a existência de aumentativos.
Finalmente, pode-se dizer que, para Barros, o
binômio Português - Latim se põe, antes de mais nada, duma
forma esclarecida e consciente em relação à realidade românica, que vai se definir a partir desse momento.
O problema das fontes clássicas para a Ortografia
Portuguesa foi constituído, principalmente, por Quintiliano,
Varrão e Prisciano, pois os gramáticos do Renascimento se
depararam, evidentemente, com realidades completamente
diferentes das do Latim. Por conseqüência, o apoio aos clássicos que, nos outros capítulos da gramática, havia sido tão
forte quanto útil e eficiente, revelou-se praticamente nulo
neste aspecto, e as principais fontes clássicas gramaticais,
que, dificilmente, poderiam ser abandonadas, foram submetidas a uma crítica e a sua doutrina, a inevitáveis adaptações. João de Barros apresenta uma grande inovação, que
consiste na aplicação de timbre aberto e fechado para a, que
não tinha efeito em nenhuma das outras línguas, visto que o
timbre fechado de a é um dos traços do vocalismo português.
A finalidade de João de Barros foi estabelecer a Língua Portuguesa como autônoma, independente da latina,
utilizando em sua gramática o falar da época através do que
o uso ensina e buscando a norma culta dos “barões doutos”,
mas não negou que o Português tem como língua-mãe o latim, “cujos filhos nós somos”. Possui um sentimento patriótico de superioridade da língua portuguesa em face das outras, principalmente da castelhana, uma vez que, entre as
nações, Espanha e Portugal, sempre houve rivalidades. Dá
como qualidades essenciais da língua falada em Portugal: a
sua riqueza de vocabulário e a sua semelhança com a língua
latina, não abandonando, assim, as raízes. Adaptando-a à
realidade vigente no século XVI, expande ainda as suas
qualidades: a sonoridade agradável, a capacidade de exprimir idéias abstratas e a possibilidade de formação de
novos vocábulos.
No início de sua obra, temos a seguinte definição de
Gramática:
é vocábulo grego: quér dizer ciênçia de lêteras. E,
segundo a definiçam que lhe os Gramáticos déram, é
um módo cérto e justo de fálar e escrever, colheito do
uso e autoridade dos barões doutos” (1971[1540]:55)
Observe-se que João de Barros atém-se à definição
dos gramáticos que o antecederam, mantendo-se o conceito
de falar e escrever “certo e justo”, o que será sempre seguido pela norma culta, por aqueles que melhor usam a língua,
e é baseando-se na norma culta que ele constitui sua obra.
Neste estudo, constatamos que João de Barros é de
fato um gramático preocupado com o ensino de Português,
apresentando uma língua próxima do povo - Língua Vulgar
- mas mantendo as normas da Língua Culta, procurada nos
autores de prestígio, os “doutos” da época, coerente com as
fontes que fundamentaram seu trabalho, como Quitiliano,
que via no uso “o consenso dos instruídos, da mesma forma
que o consenso dos bons se chama ‘modo de viver’.” (apud
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Pereira, 2003:34) A obra de João de Barros é de grande
interesse não só por sua atualidade quanto ao critério de
escolha dos exemplos retirados da linguagem cotidiana, o
que hoje não é mais a preocupação para a maioria dos
gramáticos que ainda se volta para exemplos dos séculos
XVI, XVII, XVIII e XIX como também pelas inovações
feitas por ele de maneira clara e simples.
Em 1574, temos a obra de Pero Magalhães de
Gândavo Regras que ensinam a maneira de escrever a ortografia da lingua Portuguesa, com um Diálogo que adiante
se segue em defensan da mesma lingua, com grande preocupação com o ensino dos não latinos. No entanto, há algumas mudanças no pensamento dos estudiosos, pois, ao lado
do problema da origem das línguas vulgares, aparece a problemática da origem e essência da linguagem humana. Nesse instante, surge a obra de Duarte Nunes do Leão, em 1596,
marcada pela angústia de povo dominado, e que reflete o
espírito de transição do Renascimento para o Barroco: Ortografia da Língua Portuguesa.
JOSÉ DE ANCHIETA – O GRAMÁTICO DA
LÍNGUA BRASÍLICA
Dando prosseguimento às nossas considerações,
mencionaremos a Arte da Gramática da Língua mais usada
na costa do Brasil de José de Anchieta, escrita em 1595,
objetivando estabelecer uma sistematização do tupi falado
pelos indígenas do litoral brasileiro, mesmo antes de se transformar na língua geral de uso não só dos colonizados e seus
descendentes, mas também dos colonizadores, que, mesclando-se, foram os formadores da nação brasileira.
Na sua missão evangelizadora, os jesuítas encontraram na língua um primeiro grande obstáculo. Segundo
Moreau (2003:60), a decodificação dos signos podia determinar aproximações pacíficas ou bélicas com os indígenas,
determinando a forma de relacionamento e de construção
de imagens recíprocas, sobretudo pelo fato de estarem em
jogo civilizações muito distintas. Daí a grande necessidade
de os jesuítas aprenderem a língua dos índios para a possível superação dessa dificuldade, o que foi seguido à risca
pelos padres da Companhia de Jesus, tendo sido, portanto,
desenvolvidos muitos trabalhos de natureza lingüística pelos missionários.
Assim, o Padre José de Anchieta, baseado nos princípios da Companhia de Jesus que determinava serem os
jesuítas obrigados a aprenderem a língua dos gentios, para,
amalgamando-se a eles, catequizá-los, impôs a cultura dos
colonizadores. Dessa maneira, com o objetivo de semear a
fé cristã, os padres utilizaram a língua tupi, deixando-a com
o “status” de língua mais falada na costa brasileira, a qual se
tornou o veículo lingüístico da evangelização.
Seguindo o modelo greco-latino, Anchieta produziu
uma obra que segue características de todas as gramáticas
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das línguas românicas, surgidas entre os séculos XV e XVI,
pois, segundo Auroux (1992: 101) a gramática repousa sempre sobre uma análise da cadeia falada, assim o sujeitoprodutor realiza decomposições e repartições das partes da
cadeia falada e adequações do já dito para organização do
“compêndio”. Como mostra Moreau (2003:61), seus estudos de morfologia, que foram subsidiados pelos trabalhos
de Navarro e pelas contribuições dos “intérpretes”, constituem a base para a construção da gramática de uma “língua
geral”, síntese de dialetos tupi-guaranis do litoral, a qual
possibilitou as inter-relações sociais e comunicativas entre
luso-brasileiros e indígenas até o século XVIII.
Da mesma maneira, todas as demais línguas: francês, italiano, castelhano, português, romeno etc constituíram suas obras gramaticais a partir da cópia do modelo clássico latino, com as devidas adequações da passagem de uma
língua sintética, constituída de seis casos, cinco declinações,
três gêneros e outras características para línguas analíticas
que passaram a uma ordem direta (SVO), abandonando os
casos, as declinações e passando a realizar só dois gêneros.
Assim é que temos a Arte da gramática, uma produção com características da gramática latina, mas com tantas
inovações advindas de novos dados específicos da língua
tupi que se deixa perceber a criatividade do autor,
contextualizado num momento e num lugar isolados da civilização européia, contaminado pelos nativos e sua cultura
exótica e possuidor de tempo para observar e anotar, aprendendo a falar e escrevendo a sistematização da nova língua.
Nesse sentido, Rodrigues1998:67) destaca o que se segue:
Dentre as avaliações positivas da língua tupinambá
destaca-se a de Anchieta, por ter sido a mais explícita e informativa, mas também por ter fornecido os
termos valorativos que reapareceram em Cardim e em
Figueira. Note-se a informação sucinta mas objetiva
que dá sobre as duas principais classes de palavras
da língua: “os nomes são todos indeclináveis e os
verbos têm suas conjugações e tempos.” Também é
simples e objetiva a informação sobre os fonemas do
português e as sílabas complexas que não existiam
em tupinambá. É a mesma simplicidade, ou naturalidade, com que em sua gramática (Anchieta 1595)
descreveu fenômenos lingüísticos próprios do
tupinambá e que divergiam consideravelmente dos
correspondentes nas línguas clássicas e nas românicas. (Cf. Rodrigues, 1996)
Em suma, embora Anchieta tenha tido como base a
gramática greco-latina para descrever fenômenos lingüísticos
no século XVI, ele extrai dela o necessário para desenvolver seus estudos, não considerando, portanto, as categorias
dos trabalhos clássicos como elementos universais. Com base
nessa percepção afirma que, na língua geral, os verbos têm
dois paradigmas paralelos, a conjugação afirmativa e a conjugação negativa, já que a negação tem expressão
morfológica na palavra verbal nessa língua. (Cf. Rodrigues,
1998:70)
Ao analisarmos a Arte da Gramática, percebemos
que o locutor não prefacia a obra o que a difere das demais
da época, em que tais prefácios traziam os objetivos claramente expressos, quais sejam: preservar a língua novilatina,
ensinando-a aos nobres e utilizando-a como instrumento de
domínio nas terras conquistadas. Anchieta vai diretamente
ao capítulo dedicado às letras e à pronúncia, o que indica o
objetivo principal do sujeito-produtor que se dirigia aos
demais catequizadores que também deveriam seguir os princípios da Companhia de Jesus: aprender a língua dos nativos e incorporar os seus costumes para ensinar/impor a “civilização européia”.
Entretanto há que se registrar a Licença, posta antes
do capítulo I Das letras, que traz a possibilidade da publicação uma vez que nada apresenta contra a religião católica, ou contra os costumes europeus vigentes na Europa quinhentista. Marca-se a importância da obra que continuará a
divulgação da fé cristã em partes distantes e desabitadas do
novo mundo. Eleva-se a virtude e a dedicação religiosa do
Padre José de Anchieta.
Percebemos, em enunciados analisados, a necessidade básica para a introdução catequético-ideológica assentada nas crenças da Igreja Católica e nas verdades do Velho
Mundo. Marcas histórico-ideológicas estão presentes na
seleção das palavras utilizadas como exemplos, o que nos
leva a reiterar que tal seleção foi indispensável ao processo
de aculturação dos nativos e à imposição do colonizador:
universal, principalmente é tirar a consoante do primeiro
verbo em conjugações compostas,... (ANCHIETA, 1595: 2)
A posição de José de Anchieta apresenta-se tão clara
quanto a de João de Barros no que concerne à aproximação
da descrição realizada à da Gramática Latina, pois, para ele,
o Latim aparece, também, como ponto de referência e modelo de codificação gramatical, servindo, portanto de modelo para a elaboração da Arte da Gramática. Preocupa-se,
naturalmente, em individualizar a língua mais usada na costa brasileira, como é verificado em algumas descrições que
foram feitas pelo jesuíta:
Os nomes não tem casos n números distinctos salvo
vocativo, com esta diferença, a saber, que os que tem
accento na ultima, nada mudão, vt abà, em todos os
casos (...) O plural se netende pello que se trata, ou
também acrecentandolhe alg ns nomes, que significão
multidão, como todos, tantos, quantos, muitos, &c. E
este ultimo he usado pêra isto que he cetâ, & detracto,
c. etâ, vt abà, hom , ou hom s, abàeta, hom s, oca,
casa. 1. casas, ócetà, casas.
Pelas observações feitas, pode-se dizer que, para
Barros, o binômio Português - Latim se põe, antes de mais
nada, duma forma esclarecida e consciente em relação à realidade românica, que vai se definir a partir desse momento.
E para José de Anchieta, o binômio Português - Latim se
põe como sustentação para a constituição de sua obra que,
descrevendo a Língua Tupi, permitiu a sua expansão em toda
a costa brasileira e sua permanência até o século
XVIII, momento em que os jesuítas foram banidos
do Brasil pelo Marquês de Pombal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Muitos são os exemplos em que a família, questão dogmática da igreja, bem como o ambiente familiar,
aparece como forma de reforçar as imagens necessárias
aos aprendizes.
Deve-se mencionar, ainda, no capítulo Das Letras em
que o tratamento dado às letras e a sua pronúncia mostra a
preocupação com o desenvolvimento da fonética objetivandose priorizar o ensino da oralidade entre os portugueses (jesuítas e demais colonizadores) e os nativos. A questão da escrita não era a prioridade, uma vez que os primeiros contatos
eram feitos por meio da fala, para posteriormente, no ato da
catequese chegar-se à alfabetização dos índios. Dessa forma,
o trabalho de Anchieta se sobressai pela observação e descrição de detalhes não só em fonologia mas também em gramática e pelo grau de economia descritiva que apresenta.
O sujeito-produtor reconhece em suas descrições a
diferença de pronúncia dos nativos, estabelecendo como
regra geral a que era falada pela maioria, grupo ideológico,
a partir do qual se constrói a representação fonética. Impõe,
dessa maneira, a aceitação da ideologia dominador/dominado por meio da qual a maioria dominante estabelece elos
de força dos dominadores aos dominados: Mas o uso mais
Cumpre salientar que a imposição das línguas registradas
nas obras aqui enfocadas (de Barros e de Anchieta) foi
conseguida e perpetuada através de cinco séculos por Portugal
e mantida por dois séculos no Brasil, estabelecendo, neste país
continente, uma hierarquia funcional herdada de uma sociedade européia quinhentista em que o conhecimento e a sua disseminação constituem traços distintivos de privilégios e de respeitabilidade junto ao grupo social. Além disso, no que diz
respeito à reflexão sobre a linguagem, as duas gramáticas focalizadas representam dois momentos do longo processo de
gramatização vivido pelo mundo ocidental, tendo seus autores
contribuído significativamente para o desenvolvimento da
metalinguagem sobre as línguas: João de Barros descrevendo
uma língua vernácula e o Padre Anchieta, uma língua indígena, mas ambos mergulhados na “segunda revolução técnicolingüística” (Cf. Auroux, 1992:35).
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