EPISTEMOLOGIA, ARTE E ESTÉTICA:
UMA CONTRIBUIÇÃO DE SCHOPENHAUER E NIETZSCHE
Luzia Batista de Oliveira Silva Renato Bellotti Senicatto
Universidade Estadual Paulista, Brasil
Luzia Batista de Oliveira Silva
Universidade São Francisco, Brasil
Resumo
Este artigo tem como objetivo refletir sobre a epistemologia, arte e estética nas obras dos
filósofos Schopenhauer e Nietzsche (2001, 2000). Destacam-se a herança do pensamento do
primeiro autor sobre o segundo, as implicações epistemológicas na relação com a dimensão
da arte na obra de Schopenhauer e a tensão entre a arte e a experiência estética em Nietzsche.
Em ambos os autores, a arte será o elemento balizador da tensão existente nessas relações e
um convite para um vivermos, intensamente, o poético.
Palavras-chave: arte, ascese, epistemologia, niilismo, verdade, vida.
Résumé
Cet article a pour but de réfléchir sur l'épistémologie, l'art et l'esthétique dans les oeuvres des
philosophes Schopenhauer et Nietzsche (2001, 2000). Nous soulignons de l'héritage de la
pensée du premier auteur sur le second, les implications épistémologiques dans la relation
avec la dimension de l'art dans le travail de Schopenhauer et de la tension entre l'art et
l'expérience esthétique chez Nietzsche. Dans les deux auteurs, l'art sera l'élément de la balise
tension ces relations et une invitation à nous vivons à vivre, intensément, le poétique.
Mots-clés: art, ascétisme, épistémologie, nihilisme, vérité, vie.
EPISTEMOLOGIA, ARTE E ESTÉTICA:
UMA CONTRIBUIÇÃO DE SCHOPENHAUER E NIETZSCHE
Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietzsche (2001, 2000 e 1998), respeitandose as particularidades de cada um, são autores que alteraram a história da Filosofia.
Em ambos os filósofos, nasce uma realização factual, um chamado para a dimensão
estética da vida, um marco, a partir deles, de uma maneira especial de apreciar a arte,
chamando a atenção para o modo como a relação sujeito-objeto se constitui no âmbito
da arte.
Todavia, atribui-se, a esses dois filósofos, parte da inversão realizada no
tocante ao problema epistemológico da relação sujeito-objeto. Immanuel Kant (1989),
o autor do criticismo, constrói uma proposta filosófica com sentido idealista para
defender uma possível articulação entre racionalismo e empirismo entre dogmatismo
e ceticismo. Kant não resolve o problema, mas o avança, trabalha para superá-lo, e
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ainda que não avance o suficiente, sua contribuição é relevante para a história da
Filosofia.
Certamente, a questão epistemológica fomentou querelas filosóficas que não
estão isentas da questão com a qual, ora, nos ocupamos: a mudança epistemológica na
relação sujeito-objeto. Depois de Kant, Schopenhauer e Nietzsche (2001, 2000 e
1998), em suas abordagens estéticas, criaram novas roupagens, fundamentais na
modernidade e na contemporaneidade, em que há ampliação dessa discussão no que
se refere às suas propostas: inversão na relação de conhecimento sujeito-objeto
considerando que é o sujeito quem significa o objeto e o mundo pelas afecções de sua
vontade, de seus desejos, rompendo, assim, com uma tradição contemplativa da
história da Filosofia e possibilitando, ao homem, construir e também negar ou alterar
sua realidade.
Na obra O mundo como vontade e representação, Schopenhauer (2001, p.9)
afirma que somente o homem, com sua vontade de representação, pode refletir sobre
o seu fazer humano no mundo. Quando essa reflexão ocorre, nasce neles o espírito
filosófico; o mundo e os objetos ganham significado porque são representados pelo
homem, que os constrói, atribuindo-lhes corpo, linhas, formas. No homem, a vontade
é fundamental; é o princípio que orienta e rege a vida, aquilo que o faz humano,
diferente dos demais animais. O homem é aquele que vê as coisas, mas não as
conhece; aquele que sabe que tudo que vê é apenas representação de sua relação com
outros homens, com as coisas e com o mundo.
Por isso, o mundo como vontade e representação tem uma existência
verdadeira, que não se baseia no que pode ser remunerado para existir e nem está a
serviço do lucro, ou seja, este mundo tem uma existência a priori, que independe de
qualquer experiência. A verdade é o mundo como representação imaginária do sujeito
que lhe dá significado.
Se, para Kant (1989), as formas da sensibilidade humana são as condições para
capturar as aparências das coisas ou reter certas impressões caras aos sujeitos,
independentemente de serem boas ou ruins, para Schopenhauer, a verdade tem
inúmeras formas de reconhecimento moral e racional; mas existe uma verdade que
expressa que o pensamento está na relação entre o sujeito com o objeto, e tudo o que o
mundo encerra ou pode encerrar está na necessária dependência do sujeito, a qual
existe apenas para o sujeito. O mundo é, portanto, representação alcançada pelo
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sujeito mediante uma consciência abstrata e reflexiva (SCHOPENHAUER, 2001,
p.9).
Essa posição epistemológica assumida por Schopenhauer, isto é, do mundo
como representação de uma consciência, perpassa toda a história da filosofia, desde
Descartes a Berkeley, pontuam Reale e Antiseri (1991, p.225), porque “o mundo é
representação. E a representação tem duas metades essenciais, necessárias e
inseparáveis, que são o objeto e o sujeito”. Doravante, o sujeito da representação é
aquele que nunca é “...conhecido por nada ou ninguém (...)” (p.225), embora ele seja
“o sustentáculo do mundo, a condição universal, sempre subentendida, de todo
fenômeno e de todo objeto... tudo o que existe só existe em função do sujeito”
(p.225). Entretanto, o objeto da representação “está condicionado pelas formas a
priori do espaço e tempo” (p.225).
O espaço, para Kant (1989), é a dimensão que tem a ver com o sentido interno
da consciência, e o tempo tem a ver com o sentido externo dessa consciência; mas
ambos, espaço e tempo, têm a ver com a capacidade perceptiva do ser humano para se
organizar internamente e externamente. Nesse caso, é fundamental a vontade
apontada por Schopenhauer a fim de que o sujeito possa organizar suas
representações. As coisas só existem porque estão no espaço e no tempo, mas o
sujeito somente as percebe porque ele está fora do espaço e do tempo das coisas,
objetos. Para Schopenhauer (2001, p.15), um sujeito “basta para constituir o mundo
como representação, tão completo como milhões de seres existentes; ao contrário, o
desvanecimento desse único sujeito levaria ao desvanecimento do mundo como
representação”.
A representação do mundo, segundo Schopenhauer (2001, p.18), acontece
porque “Este mundo, esta vontade somos nós mesmos; a representação toda em geral
é uma das suas faces; a forma de tal representação é o tempo e o espaço; e sob este
ponto de vista tudo aquilo que é, deve ser em qualquer lugar e em qualquer tempo”.
Entende-se por que o sujeito e o objeto são duas metades que existem em
função um do outro. Schopenhaeur insiste em que, na relação epistemológica sujeitoobjeto, é quase impossível conhecer aquilo que está fora da representação, pois quem
conhece é sempre um sujeito, aquele que entende e interpreta o mundo. Nessa questão
epistemológica, não se pode negar nem o sujeito, como fez o materialismo, nem o
objeto, como fez o idealismo de Fichte. Por isso, Schopenhauer se posiciona contra o
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materialismo por este reduzir o sujeito apenas à matéria e também se põe contra o
idealismo por este excluir o objeto e creditar o mundo apenas ao sujeito.
A relação epistemológica entre sujeito-objeto tem raiz no mundo, e sua
representação do mundo se estabelece porque o sujeito possui um corpo, do qual
derivam as transformações e os movimentos imanentes ao conhecimento que se pode
alcançar do mundo.
Schopenhauer (2001, p.82) não reconhece “...uma existência absoluta e, em si
mesma, objetiva – isso é impensável”, porque aquilo que é objetivo só tem “existência
na consciência de um sujeito...”. São, portanto, “um conjunto de representações
condicionadas pelas formas a priori da consciência”. Isso significa que se trata do
“tempo e espaço e a causalidade” (REALE e ANTISERI, 1991, p.226).
As modificações causadas ao sujeito não são diferentes das que modificam os
objetos sensíveis. Não se trata de uma existência proclamada no sentido metafisico do
termo, porque é o indivíduo que as representa, bem como, o conhecimento que se
pode alcançar sobre os objetos.
A vontade de representação do sujeito funciona como “...a chave da sua
própria existência fenomenal, ...descobre a significação desta, ...mostra a força
interior que produz o seu ser, as suas ações, o seu movimento” (SCHOPENHAUER,
2001, p.110). Destarte, deve-se compreender que, nessa relação, se dá uma
“identidade com o corpo” em que este “torna-se um indivíduo” (p.110). A identidade
desse corpo é construída de duas maneiras: uma, como objeto, em meio a outros
objetos, e sujeito às mesmas leis da “representação no conhecimento fenomenal”
(p.110); outra, como “princípio imediatamente conhecido por cada um, que a palavra
Vontade designa” (p.110). Considerando que “todo ato real da nossa vontade é, ao
mesmo tempo e infalivelmente, um movimento do nosso corpo; não podemos querer
realmente um ato sem constatar, no mesmo instante, que ele aparece como movimento
corporal”. (p.110).
Nesse esquema epistemológico e sob a lei da causalidade, com o auxilio da
sensibilidade, de acordo com o espaço e o tempo, o sujeito pode causar um efeito
sobre outros objetos. Essa ação causal ou ação da vontade é o que permite
compreender algo da realidade do objeto. Já, a ação do corpo acontece como
finalidade da vontade e se encontra na representação sensível; é o que se pode chamar
de ação como finalidade prática da vida, podendo se canalizar como vontade do
sujeito, cuja “causalidade conjuga o espaço com o tempo”, (SCHOPENHAUER,
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2001, p.110) porque, “onde houver vontade, haverá também vida, mundo” (p.14),
haverá afirmação da essência humana.
Epistemologicamente, o conhecimento não acontece por um processo
espontâneo, mas por uma sistematização intelectual, uma articulação entre nexos e
intuições, possibilitando ao intelecto ultrapassar o mundo sensível e o meramente
“querer espontâneo” do sujeito.
Para Schopenhauer (2001, p.251), o conhecimento permite ao ser humano
conter o seu lado incivilizado, controlar o querer espontâneo sobre as coisas, deixar de
ter vontade para alcançar uma saída pelos caminhos da arte e da ascese. Isso significa
que o homem pode, por um momento, afastar-se de sua relação epistemológica com o
mundo, tornar-se aquele que apenas vê sem conhecer para tornar-se o puro olho do
mundo.
O homem na sua relação com a arte pode esquecer a dor e o sofrimento e sua
condição humana, pois “O prazer estético consiste em grande parte no fato de que,
mergulhado no estado de contemplação pura, libertamo-nos por um instante de todo
desejo e preocupação; despojamo-nos, em certo sentido, de nós mesmos”
(SCHOPENHAUER, 2001, p.259). O homem não é mais aquele que apenas coloca
sua inteligência a serviço de um querer, mas aquele que pode controlar sua vontade
para tornar-se um eterno conhecedor.
Essa tensão epistemológica encontra na arte, de acordo com o autor (2001), a
possibilidade de libertação da necessidade de um conhecimento objetivo, permite o
esquecimento da dor mediante o êxtase estético sem limitação de tempo.
Entretanto, a arte, sozinha, não basta para retirar a vontade de representação de
mundo do homem, não é suficiente para apaziguar a tensão criada na relação sujeitoobjeto, em que a consciência pode se atormentar. O sujeito pode, porém, encontrar
repouso na ascese, extirpar aquilo que é a raiz do mal no homem, a vontade de
representação de mundo, que só pode ser eliminada pela ascese em consonância com
elementos como o amor, a bondade e a compaixão, e, uma vez sentindo-os em si
mesmo, o homem saberá a dor do seu semelhante porque o intelecto vê em outrem sua
própria miserabilidade, maldade e angústias, que são sofrimentos humanos. Assim, a
pobreza, o conformismo e os sacrifícios podem anular a vontade humana que,
conhecida e arquitetada pelo homem, pode levá-lo à liberdade, isto é, à ascese; pode,
inclusive, distanciá-lo da própria “vontade de vida” – do querer sempre mais – e
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pode, também, libertá-lo do vínculo com relação ao conhecimento que tem dos
objetos.
Schopenhauer, certamente, influenciou as concepções do pensar e do entender
o mundo a partir do século XIX, século de Nietzsche, um dos filósofos mais
instigantes e intrigantes da história da Filosofia.
Em Schopenhauer, a arte como sublimação da vontade de representação e a
ascese eliminam a vontade de representação, o controle dos sentidos e do desejo.
Dessa forma, enfatizando o ideal artístico que leva à ascese, o autor retorna ao plano
ideal, influenciando Nietzsche no que se refere aos limites de um pensamento –
pessimista – para a elaboração do niilismo.
Destaca-se, por um lado, um ponto de ruptura e, por outro, um ponto de sutura
epistemológico-estética em Nietzsche (2000, 1998), na herança deixada pelo
pensamento de Schopenhauer, para quem a arte é afirmação da vida e também
negação da moral imposta; afirmação porque se constitui como vontade de vivê-la e
também vontade de representá-la. A arte está, assim, para além do bem e do mal; é
rompimento dos ditames da moral, não sendo necessário buscar nenhuma ascese, pois
sua finalidade é alicerçar a vida na realização dos desejos. Se o exercício da
dominação moral ocorre sobre o corpo, é porque ele constitui o espaço, o plano de
imanência dessa pesada e densa força de dominação. Nietzsche convida à liberdade
quando propõe ao homem fazer de sua vida uma obra de arte pela arte de viver.
Por isso, Nietzsche (2000), de certa forma, herda elementos do pensamento de
Schopenhauer ao expor, diretamente, a experiência estética como finalidade da vida
em si mesma. No entanto, o autor critica a supremacia da metafisica e da razão sobre
a vida. Ao expor aspectos dualistas da natureza na História da Filosofia, propõe que a
arte deva nascer das potencialidades criativas, cuja origem se encontra na dualidade
mitológica grega: o apolíneo e o dionisíaco (SANTAELLA, 1994, p.90).
Para Nietzsche (2000, p.27-28), o conteúdo da arte encontra-se num embate
entre o apolíneo e o dionisíaco. De um lado, sob a influência apolínea, encontra-se a
arte do figurador plástico; do outro lado, sob a influência dionisíaca, encontra-se a
arte do não figurado. Ambos os impulsos – apolíneo e dionisíaco – caminham lado a
lado, numa tensão, fundamental para aquilo que se produz e conhece sobre a arte. Da
tensão entre esses dois universos, surge, do primeiro, o sonho; e do segundo, a
embriaguez. Para o autor, a vida humana conhece o trágico, a “profunda e cruel
tragédia” (REALE e ANTISERI, 1991, p.423), mas “a vida, pensa Nietzsche nas
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pegadas de Schopenhauer, é cruel e cega irracionalidade, dor e destruição. Só a arte
pode oferecer ao indivíduo a força e a capacidade de enfrentar a dor da vida, dizendo
sim à vida” (p.426). Todavia, este sim à vida não é feito pela aniquilação do querer,
como em Schopenhauer, mas por sua afirmação.
No primeiro universo, o do sonho, Apolo é o deus da razão, mas razão, sob o
signo da tragédia, é enfrentamento da vida com retidão e coragem. Apolo simboliza as
possibilidades de revelar o sentido da realidade graças à claridade das formas que
chegam ao observador, da aparência que o toca. Nesse sentido, a compreensão das
formas é imediata devido ao equilíbrio emanado delas, claridade, limpidez que
chegam ao patamar da utilidade. Nesse universo onírico, sob o domínio do apolíneo,
quando o homem é tocado pela arte, nos detalhes, ocorrem interpretações que
suscitam o despertar para a vida, ou seja, a vida é o objeto da arte. Este objeto da arte
chamado vida se mostra ao espectador. Para o autor, no entanto (2000, p.29), as
“...imagens agradáveis e amistosas não são as únicas que o sujeito experimenta dentro
de si com aquela onicompreensão, mas outrossim as sérias, sombrias, tristes, escuras,
as súbitas inibições, as zombarias do acaso, as inquietas expectativas”; haja vista
“toda a ‘divina comédia’ da vida, com o seu Inferno, [que] desfila à sua frente, não só
como um jogo de sombras – pois a pessoa vive e sofre com tais cenas – mas
tampouco sem aquela fugaz sensação da aparência” (p.29). Quem sabe, diz ainda o
autor: “alguns como eu, se lembrem de que, em meio aos perigos e sobressaltos dos
sonhos, por vezes tomaram-se de coragem e conseguiram exclamar: ‘É um sonho!
Quero continuar a sonhá-lo”. (p.29).
Nessa esfera artística, compreende-se o universo onírico que tem sua origem
em Apolo, o qual se constitui, harmoniosamente, numa realidade apresentada ao
sujeito, o que não significa que somente acontece devido a um estado de embriaguez,
mas, certamente, pela via da sensação, por esta possibilitar ao homem sentir e viver a
arte, sem contentar-se em permanecer apenas numa esfera – a apolínea –, visto que
seria viver uma vida sem tensão, deixando reinar apenas o jogo da aparência e da
ilusão.
Já no segundo universo – o da embriaguez –, destacam-se a força instintiva, a
saúde do corpo no expressar a potência vital, o efeito dionisíaco da arte que, ao entrar
em ação, permite ao homem o exercício da criatividade, da sensualidade e da paixão
sem exceções, todavia, equilibrando-se e harmonizando-se com a natureza e
possibilitando o cultivo dos elementos mágicos, do sonho vivido sem ser rompido. O
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universo dionisíaco se assemelha ao niilismo ativo proposto por Nietzsche para viver
intensamente, para tornar-se o que se é, humano.
Na embriaguez dionisíaca, o homem pode libertar-se e “...selar-se não apenas
o laço de pessoa a pessoa, mas também a natureza alheada, inamistosa ou subjugada
volta a celebrar a festa de reconciliação com seu filho perdido, o homem”
(NIETZSCHE, 2000, p.31). Nesse movimento de junção com a natureza,
“espontaneamente oferece a terra suas dádivas e pacificamente se achegam as feras da
montanha e do deserto. O carro de Dionísio está coberto de flores e grinaldas: sob o
seu jugo avançam o tigre e a pantera...” (p.31). Debaixo do véu das oferendas e do
culto à libertação, “Agora o escravo é homem livre, agora se rompem todas as rígidas
e hostis delimitações que a necessidade, a arbitrariedade ou a ‘moda impudente’
estabeleceram entre os homens”. (p. 31).
Na esfera da embriaguez dionisíaca, encontra-se a destruição de formas
harmônicas, ilusórias, elevam-se os instintos criadores, sensuais e a paixão a fim de
elevar a vida para além da dor ou do prazer; elevá-la em sua potência enquanto nela
não existe a necessidade de tomar tudo em sua justificativa moral.
Para Nietzsche (2000, p.48), é fundamental, ao exercício artístico, o viver
como arte, a manutenção da dualidade, ou seja, a complementariedade gerada pela
tensão entre as esferas apolínea e dionisíaca, pois “o desenvolvimento da arte está
ligado à dicotomia do apolíneo e do dionisíaco, do mesmo modo como a geração
provém da dualidade dos sentidos, em contínuo conflito entre si e em reconciliação
meramente periódica (...)”.
Nessa disjunção e reconciliação dos contrários, “os dois instintos, tão
diferentes entre si, vão um ao lado do outro, as mais das vezes em aberta discórdia
(...), até que, em virtude de um milagre metafísico da ‘vontade’ helênica, apresentamse por fim acoplados um ao outro” (NIETZSCHE, 2000, p.48). Esse encontro ou
acoplamento é mais que junção de opostos, é a possibilidade real de que “nesse
acoplamento final gera-se a obra de arte, tão dionisíaca quanto apolínea, que é a
tragédia ática” (p.48)
Nietzsche (2000) não se volta contra a força apolínea na tragédia grega,
tampouco defende o instinto dionisíaco em detrimento do instinto apolíneo. O filósofo
se posiciona contra a racionalidade professada por Sócrates, por ela ser colocada a
serviço de um moralismo, uma razão desencantada da força da natureza. Defende, por
isso, um niilismo ativo como enfrentamento daquilo que oprime e diminui os instintos
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de vida, e não como uma negação da vida, pois a vida torna-se repleta de obstáculos
que somente podem ser enfrentados mediante um viver pleno, absoluto, sem falsos
moralismos. Nesse sentido, o niilismo é reativo porque nega a vida, mas a nega pela
passividade e aceitação cega, moralista. Entretanto, ao negar a vida, Nietzsche atribui,
aos indivíduos, responsabilidade por uma existência sem sentido, dado que uma
existência plena de sentidos somente será possível com o rompimento da moral de
rebanhos para elevação da vida prática e com o rompimento das barreiras que, quando
encontradas, devem tornar-se estímulos.
Nietzsche (2000) defende, nessa via artística em que as duas esferas se
completam, uma filosofia prática, aquela que permite ao homem viver em equilíbrio
com os instintos apolíneos e dionisíacos; o apolíneo exerce o controle para o homem
não cair no desregrado sem limites, um caminho sem volta do mundo da imaginação;
o dionisíaco aciona a potência que afirma a ligação do homem com a natureza,
fomenta o querer mais do viver, fomenta a atividade prática, o imaginário criativo, o
enfrentamento da vida, sobretudo, como é dado por Schopenhauer naquilo que é
corpóreo, como fundamento do que é representado em forma de conhecimento.
Todavia, o fascínio dionisíaco tende a ser refutado e destronado pela cultura, depois
pela academia, pelo poder que o desequilíbrio exerce sobre as pessoas. Contudo, diz
Nietzsche (2000, p.81): “O fascínio dionisíaco não retoma somente os vínculos entre
homem e homem: a natureza, afastada, hostil ou subjugada, celebra a festa de
reconciliação com seu filho pródigo, o homem”.
A aproximação e o laço do homem com a natureza refutam a ideia de uma
natureza que se volta contra o homem, pois “A terra lança de bom grado os seus dons
e as feras rapaces das matas e dos desertos se aproximam em paz. O carro de Dioniso
é coberto de flores e guirlandas; a pantera e o tigre avançam sem o seu jugo”
(NIETZSCHE, 2000, p.81), e “que se transforme o ‘hino à alegria’ de Beethoven em
quadro pintado e não se ponha freio à imaginação quando milhões de seres prostramse tremendo sobre o pó, abalados pelo prodígio: ...podemos nos aproximar daquilo
que é o fascínio dionisíaco” (p.81). Quando a liberdade se faz vida e a vida se faz arte
é que se pode dizer que “o escravo está livre, eis que todos transpõem as rígidas e
adversas barreiras que a necessidade, o arbítrio ou a ‘moda insolente’ puseram entre
os homens”. Essa junção dos contrários simboliza o “Evangelho da harmonia
universal, cada qual se sente não apenas reunido, reconciliado e fundido com o seu
próximo, mas também se sente de fato uma só coisa com ele, quase como se o véu de
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II SIFPE – Faced-UFJF – Outubro de 2015
Maia fosse despedaçado e esvoaçado em pedacinhos diante do mistério do uno
primogênito”. (p.81)
Em síntese, quando se consegue apostar na arte como força dionisíaca,
significa que é fundamental viver para além do que é dito ou esperado nas
deliberações morais; é quando o homem coloca em prática a criatividade e a paixão
pela vida expressada pela arte. É na elevação da vida, em seu caráter prático, poético,
corpóreo, que deve consistir o esforço do homem. Isso não ocorre pelo fato de que
disso advenham as afirmações do que é construído enquanto representação, mas, sim,
porque toda representação construída pelo sujeito deve ocorrer naquilo que o liga ao
mundo, ao seu corpo. A finalidade da vida não se encontra alheia, fora dela; ao
contrário, justifica-se como possibilidade de efetivação. A arte é propriamente viver
no limite do que está para além do julgamento racional. Viver não por justificativa do
que se vive, mas pelo próprio ato de viver. A finalidade da vida está nela própria,
naquilo que está contido nela, naquilo que está para além do pensado, do arquitetado,
naquilo que pode nos surpreender e acontecer.
Compreende-se por que, nas palavras de Santaella (1994, p. 90-91), “para
Nietzsche, a existência só pode ser entendida e justificada em termos estéticos, do que
decorre a investigação levada a cabo pela ciência ou é um equívoco, ou uma rival da
arte”. Compete à ciência não ignorar, em suas investigações, o papel que a arte pode
exercer na vida prática e na formação das pessoas para não incorrer no erro de tornarse uma inimiga da arte. No sentido nietzschiano, uma inimiga da vida.
Referências
KANT, Immanuel. A crítica da razão pura. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1989.
______. A crítica da razão prática. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
1992.
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. 2. ed.
Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
______. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Cia. das Letras, 1998.
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: Do romantismo até
nossos dias (Vol. III). Trad. Álvaro Cunha. São Paulo: Paulinas, 1991.
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EPISTEMOLOGIA, ARTE E ESTÉTICA: UMA CONTRIBUIÇÃO DE SCHOPENHAUER E NIETZSCHE
SANTAELLA, Lúcia. Estética: de Platão a Peirce. São Paulo: Experimento, 1994.
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. Trad. Heraldo
Barbuy. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.
SOUZA, Mauro Araújo de. Nietzsche: viver intensamente, tornar-se o que se é. 2. ed.
São Paulo: Paulus, 2010.
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