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A EVOLUÇÃO DO GÊNERO DETETIVESCO: DA NARRATIVA DE ENIGMA DE
POE A O CRIME DA GÁVEA, DE MARCILIO MORAES
Yara dos Santos Augusto Silva
Resumo: O presente estudo busca investigar a evolução do gênero narrativo romance policial, por
meio de análise comparativa entre o romance O crime da Gávea, de Marcilio Moraes, e as narrativas
de enigma, de Poe. Considerado o criador da narrativa de enigma, Poe é autor de contos, como “Os
crimes da rua Morgue” e outros textos presentes em Histórias extraordinárias, que demarcam o surgimento da literatura detetivesca moderna. Para comparar Poe e Moraes, este trabalho é orientado
pelo estudo de algumas categorias, tais como o espaço da narrativa, a personagem detetive, o emprego do erotismo, etc. Como pressupostos teóricos, serão utilizados textos de Paulo Medeiros e Albuquerque, Piglia, Mário Pontes entre outros.
Palavras chave: histórias detetivescas · narrativa criminal · literatura contemporânea
Abstract: This study investigates the evolution of the detective-fiction genre, through a comparative
analysis between the novel O crime da Gávea, by Marcilio Moraes, and the mystery stories written
by Poe. Considered the creator of mystery stories, Poe is the author of tales such as "The Murders in
the Rue Morgue" and other texts that mark the emergence of the modern detective literature. As a
reference in crime fiction, to compare the works by Poe and Moraes, this paper is guided by the
study of some categories, such as the space of narrative, the detective character, the utilization of
eroticism, etc. The theoretical framework will be provided by Paulo Medeiros e Albuquerque, Piglia,
and Mario Pontes among others.
Keywords: detective story · criminal narrative · contemporary literature.
As narrativas criminais compõem o espectro daquilo a que se denomina de literatura
policial, detetivesca, de mistério, ou ainda, de enigma. Elas remetem às obras de inumeráveis autores que, cada qual à sua maneira, se propuseram a delinear a transgressão e o crime. A obra de Edgar Allan Poe é, invariavelmente, invocada como detentora das características essenciais do gênero – a grande contribuição que repercutiu no desenvolvimento de
toda a literatura detetivesca posterior. Os trabalhos de Poe e o romance detetivesco moderno, grande expoente da ficção dedicada ao mistério e ao crime, são, no entanto, bastantes
posteriores ao surgimento de uma narrativa criminal incipiente. Podemos situar a produção
de uma literatura de crime séculos antes da consolidação do gênero romance, em países
como a China e a Pérsia. Em relação ao que se denomina de “tetravó da moderna literatura
policial”, Mário Pontes salienta que as narrativas chinesas não consistiam tão somente de
cruas histórias de crimes, mas relatos a respeito de mistérios, ao menos, em parte racionalmente desvendados. 1
Ao recuar ainda mais no tempo, temos em Édipo-Rei, de Sófocles, uma espécie de matriz
primitiva da literatura de crime, com ingredientes muito passionais. Em Édipo-Rei, a investigação empreendida pelo personagem-título exige um raciocínio que o conduz à revelação de
um assassino e à descoberta da própria identidade. Dessa forma, podemos assinalar que a
1
PONTES. Elementares: notas sobre a história da literatura policial, p. 28.
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tragédia e a literatura policial lidam com a idéia da transgressão de um limite, que deflagra a
trama a ser desenvolvida. De acordo com Ricardo Piglia, 2 a narrativa policial se assemelha à
tragédia, uma vez que a relação entre a lei e a verdade é também constitutiva deste gênero.
Diante do proposto pelo crítico, o rótulo de subliteratura muitas vezes delegado ao gênero policial pela crítica literária não faz sentido. Conforme o exemplo dos ditos grandes
gêneros literários, a literatura policial foi capaz de discutir aquilo de que trata a sociedade,
porém em outro registro. Este olhar a partir de outro lugar sobre a relação do homem com a
lei, o interesse pelos domínios da verdade, e a transposição ao, por vezes, tênue ilícito seguem, por conseguinte, encantando aos leitores de toda parte. A leitura da narrativa criminal constitui, talvez, uma maneira segura de se vivenciar aquilo a que Bataille se refere
como a violência inerente a nossa natureza humana. 3
Através dos tempos, os autores têm se esmerado em desenvolver as narrativas criminais
e seus rocambolescos enigmas das mais surpreendentes maneiras, de modo a envolver o
leitor na trama investigativa e de suspense. Empenhar-se em retratar cruamente a violência
e enfatizar as representações do abjeto ou tornar a prática do crime uma arte costumavam
ser escolhas diretamente ligadas a segmentos sociais distintos. Modernamente, na Europa,
o interesse pela literatura criminal se deu nas camadas mais baixas. Os ávidos leitores dos
folhetos baratos se fascinavam com a violência presente nos relatos apelativos das histórias
sórdidas e contundentes de um universo marginal a que os próprios pertenciam. E também,
por meio dos fatos da vida real – crimes passionais e assassinatos brutais – narrados nos
faits divers veiculados diariamente pelo noticiário policial dos jornais.
A partir da crescente popularidade dos folhetins, entretanto, a narrativa de crime é delineada de forma menos aguda e recebe um reforço no viés de trama de mistério, com o objetivo de se tornar menos pesada e violenta e, consequentemente, mais aceitável para um
outro público leitor. As histórias criminais e seus extraordinários enredos em busca de elucidação passam, portanto, a ser objeto de fruição de uma elite, consumidora de livros que
narram o crime no meio social de sua classe. Posteriormente, em um reflexo da sociedade
assolada pelo crime que se expande por todas as esferas e viola, de maneira antes nunca
vista, as fronteiras das classes sociais, a literatura passará a enfocar estes embates. E é a literatura contemporânea que, com propriedade, desvela a atuação ambígua da justiça e das
pretensas forças combativas que, segundo a própria conveniência, por vezes, se alinham ao
poder paralelo e agem sob salvaguarda das forças que deviam reprimir.
AS NARRATIVAS DE ENIGMA DE POE E A ORIGEM DO ROMANCE POLICIAL
Segundo Jorge Luis Borges, há um tipo de leitor atual, o leitor de ficção policial: “Esse
leitor, que se encontra em todos os países do mundo e que se conta aos milhões, foi criado
por Edgar Allan Poe”. 4 Podemos afiançar a afirmação de Borges sobre os leitores de narrativas policiais serem uma invenção de Poe, ao destacarmos duas grandes inovações realizadas pelo escritor, que contribuíram para que ele se tornasse um marco na história das narrativas policiais.
2
PIGLIA. Formas breves, p. 52.
BATAILLE. O erotismo, p. 98.
4
BORGES. Cinco visões pessoais, p. 32.
3
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Em meados do século 19, Poe foi pioneiro em desenvolver o personagem detetive particular na literatura, com a criação de Charles Auguste Dupin. A representação do detetive
nos textos de Poe se alinha à concepção de um quase cientista, sujeito culto, que espontaneamente se percebe chamado a investigar com minúcia todos os fatos em torno do enigma, para dispô-los ao leitor. A figura do detetive, personagem atento e dotado de métodos
próprios de análise, atua fora do campo de abrangência da polícia e da justiça oficial, muitas vezes, em rivalidade declarada a essas instituições. Herói encarregado de desvendar os
insondáveis mistérios colocados pelo crime, o amador, porém astuto detetive Dupin serviu
de inspiração a toda uma linhagem de personagens detetives e investigadores como Sherlock Holmes, de Arthur Conan Doyle, Hercule Poirot, de Agatha Christie, Padre Brown, de
Chesterton, entre outros.
Poe é também responsável pela introdução da estrutura narrativa baseada em três estágios: crime, enigma e resolução, que configurou a dita narrativa detetivesca. Elucidar o tortuoso enigma é o fio condutor da narrativa, que requer que as pistas e informações sejam
conectadas, para que a história seja finalizada com a desconstrução do mistério inicialmente exposto. A narrativa concatenada dessa maneira corresponde ao que se compreende como texto policial clássico ou narrativa de enigma. Poe é o autor mais expressivo desse tipo
de narrativa, que pode ser exemplificada pelos textos “Os crimes da rua Morgue” (1841); “O
mistério de Marie Rogêt” (1842); e “A carta roubada” (1845). Certa teorização sobre o método analítico-dedutivo a ser empregado pelo detetive, que se deleita na função de decifrador
de enigmas, se apresenta em “Os crimes da rua Morgue”, conto que demarca a narrativa
criminal moderna e se inicia com a seguinte passagem:
As Faculdades mentais chamadas analíticas são em si mesmas pouco susceptíveis de análise.
Só as podemos apreciar pelos seus resultados. Sabemos, entre outras coisas, que elas são para quem as possui em alto grau uma fonte vivíssima de prazer. (...) o analista se glorifica com
aquela atividade moral que desenreda. Tira prazer das ocupações mais triviais que põe em
jogo o seu talento. Adora enigmas, charadas; hieróglifos; as suas conclusões têm sempre uma
agudeza que, aos espíritos vulgares, aparece como sobrenatural. Os resultados deduzidos pela alma e essência de método têm, na verdade, todo ar de intuição. 5
Com o referido conto, que narra o percurso de um detetive que analisa e deduz de forma racional um crime com o qual não está diretamente envolvido, estavam estabelecidas as
bases para a criação do romance policial de enigma. Segundo Albuquerque, a forma primeira do romance policial, nomeada de romance de enigma, também se encontra conectada em sua origem ao romance de aventuras. 6 Como no romance de aventuras, na qual há
uma luta entre as forças antagônicas – o bem e o mal –, no romance de enigma, os elementos centrais estão também polarizados: o criminoso, que representa o mal e o detetive, o
bem. A clássica narrativa de enigma oferece sempre duas histórias distintas: a primeira é a
do crime, concluída antes do início da segunda, que corresponde ao inquérito. Na história
do inquérito, não ocorrem grandes eventos e os personagens responsáveis pela elucidação
do crime somente observam as pistas deixadas pelo assassino, sem realizarem ações intempestivas ou violentas de qualquer tipo, ou fora dos limites de uma racionalização lógica. O
tema enfocado não é propriamente o crime, mas o esforço empreendido para desvendar o
5
6
POE. Histórias extraordinárias, p. 5.
ALBUQUERQUE. O mundo emocionante do romance policial, p. 2.
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enigma. E o temor diante do desconhecido, bem como a surpresa e o alarme causados pelo
esclarecimento do enigma são característicos destas narrativas policiais.
Na década de 20, o romancista americano S. S. Van Dine, criador do detetive Phil Vance,
concebeu uma espécie de código normativo do romance policial. Conforme propõe Van Dine, o romance policial de qualidade deveria satisfazer estritamente determinados preceitos,
dentre os quais podemos destacar: o leitor e o detetive devem ter iguais oportunidades de
solucionar o mistério, mas o leitor jamais poderá suplantar o autor; a descoberta do enigma
deve estar evidente desde o princípio para que uma possível releitura demonstre ao leitor o
quanto ele foi distraído; os indícios devem estar presentes e o leitor deve se surpreender ao
se revelar a identidade secreta do assassino; o detetive – herói do romance – sempre triunfará, pois, caso isso não ocorra, o fato será atribuído à baixa qualidade da narrativa e, portanto, não haverá suspense; o detetive nunca poderá ser o culpado e o crime deve ser cometido por razões pessoais; não haverá uma trama amorosa para evitar que o trabalho do
detetive seja comprometido; o romance deverá ter um cadáver para gerar horror e desejo de
vingança; o criminoso deve ser um dos personagens prosaicos, mas gozar de certa relevância na trama, e não poderá ser um assassino profissional; e finalmente, o romance dever ser
verossímil, mas sem demasiadas descrições, pois consiste em um jogo. 7
Estes seriam alguns dos elementos fundamentais para construir um romance detetivesco bem elaborado, de acordo com Van Dine, sem, contudo, recorrer a artifícios ordinários.
Entretanto, podemos afirmar que a sua validade é bastante questionável, pois há vários romances policiais clássicos, como os de Agatha Christie, e, sobretudo, romances detetivescos contemporâneos que transgridem alguns destes princípios.
Na ficção romanesca clássica, não se veicula a impunidade do crime, da transgressão e
da violência, já que a ordem social vigente considera o delito uma anomalia, uma violação
da lei instituída. Dessa maneira, no romance policial clássico, não cabe uma narrativa que
verse sobre o crime perfeito, sem qualquer punição. O personagem do criminoso é, geralmente, retratado como quem não se integra na sociedade. É necessário identificá-lo e punilo, ou mesmo, eliminá-lo desse meio. Entretanto, é interessante ressaltar que os personagens, inclusive os criminosos e detetives, sempre eram figuras aristocráticas, burguesas, ou
pertencentes à elite, não havendo, dessa maneira, embate entre as distintas classes sociais.
O ROMANCE DETETIVESCO CONTEMPORÂNEO:
O CRIME DA GÁVEA, DE MARCILIO MORAES
Foram criadas outras representações do romance policial, além do romance de enigma,
como o romance negro ou noir, surgido na década de 20 nos Estados Unidos. No romance
negro, as histórias do crime e do inquérito se fundem e a narrativa coincide com a ação do
crime. Não há mistério a ser desvendado, nem tampouco sabemos se o detetive sobreviverá
até o fim da trama. Surgiu, ainda, uma terceira modalidade de narrativa criminal, o romance de suspense; transição entre o romance de enigma e o romance negro, que mescla características de ambos. Há que se destacar uma subdivisão do romance de suspense, denominada estória do suspeito detetive, que tenta resgatar o crime pessoal do romance de enigma.
7
Van Dine citado em TODOROV. As estruturas narrativas, p. 101.
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Nessa modalidade, um crime, geralmente violento, é cometido no início do livro e as suspeitas da polícia recaem sobre o personagem principal. Diante disso, o suspeito decide investigar o ocorrido por seu próprio método, encontrar o verdadeiro criminoso, e provar a
sua inocência, ainda que se sujeite a perder a vida.
O romance detetivesco contemporâneo reúne elementos representativos das narrativas
policiais tradicionais, entretanto, não se pauta rigidamente pelos padrões anteriormente
estabelecidos por essas modalidades do romance policial. A obra O crime da Gávea, primeiro livro do escritor e roteirista Marcilio Moraes, constitui um expoente da narrativa
criminal brasileira contemporânea. No texto, o desvendar do crime, antes tido como o coroamento da investigação, perde consideravelmente a importância, pois toda ênfase recai
no trabalho de investigação.
O crime da Gávea tem como enredo as investigações de Paulo sobre o assassinato da
mulher. O protagonista trabalha como editor de imagem em uma produtora na Gávea, bairro classe média alta do Rio de Janeiro. Ao retornar do trabalho, já pela madrugada, deparase com a esposa, Fabiana, assassinada. Pai de Carina, criança de poucos meses, ele vê sua
vida se transformar repentinamente. Incrédulo na competência da polícia, e receoso de que
alguns detalhes possam vir a comprometê-lo, o personagem decide desvendar o bárbaro
crime. Paulo parte a procura de pistas e, ao investigar os personagens ao seu redor, descobre que qualquer um poderia estar implicado, uma vez que todos possuíam motivos para
praticar o crime: Sua amante Elisa, o traficante Maciel, Jordão, o professor de Fabiana. Cada vez mais desorientado, Paulo perambula sem saber propriamente o que fazer, e sua percepção se altera continuamente a cada pretensa pista.
A literatura detetivesca concebe a cidade como o seu espaço narrativo por excelência,
em uma espécie de representação que espelha o ambiente em que o gênero literário surgiu
e se desenvolveu. De maneira análoga a Poe, que utilizou Paris e Londres como ambientação e atmosfera de seus contos, Marcilio Moraes se vale do encanto e perigo do Rio de Janeiro para construir um romance sobre a realidade de insegurança e violência da grande
cidade. Ele também ambienta sua história na metrópole, local propício aos prazeres, às desigualdades, aos vícios, aos criminosos e suas mazelas.
O autor utiliza o espaço do bairro classe média da Gávea como palco para denunciar a
criminalidade, o preconceito, a impunidade e o anonimato das grandes cidades. Contudo,
se trata de um espaço diferente. O cenário do crime não é sombrio ou macabro, é qualquer
lugar, até mesmo próximo de nós. O núcleo familiar de Fabiana, no entanto, somente dirige
suas suspeitas para aqueles que vivem à margem, nos aglomerados das favelas. Em busca
de respostas, Paulo inicia a sua itinerância pelas ruas da cidade, e interage ao extremo com
os tipos que encontra, todos muito suspeitos a seu ver.
A abordagem do envolvimento erótico dos personagens parece ser um tema inconcebível de ser tratado nos textos policiais clássicos. O detetive, inclusive, costumava ser um
solteirão, assim como um profissional autônomo, de maneira a expressar certa falta de vínculos. Em O crime da Gávea, em seu comportamento espontaneamente investigativo, Paulo
é o detetive, e demonstra que o romance policial contemporâneo se permite lidar com a
temática dos afetos e do desejo de forma muito distinta. Em trechos como no oitavo capítulo do livro, que relata o encontro dos amantes no horto florestal, percebemos como Paulo e
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sua companheira possuem uma densidade erótica forte e truculenta, que vivenciam uma
relação passional de repulsa e desejo.
Distintamente dos narradores de Poe, que são anônimos, porém admiradores e companheiros do detetive, o narrador em primeira pessoa de O crime da Gávea vive os acontecimentos da trama também como protagonista. E, apesar de não saber com exatidão o que se
passa no íntimo dos demais personagens, constantemente faz conjecturas por meio do monólogo interior, e se atém às suas próprias percepções, sentimentos e conclusões:
Apenas demorava a fazer sentido. Fabiana estava morta. Desta verdade já me convencera.
Mas só agora, quatro ou cinco horas depois, por insistência do interrogatório, eu era levado à
pergunta: quem a matou? E mais. Pelos modos desagradáveis, quase desrespeitosos daquele
homem, percebi que eu era suspeito. 8
Os procedimentos de Paulo para elucidar o crime, em princípio, lembram as formas de
atuação dos detetives das narrativas de enigma, pois ele se vale de métodos racionais para
tentar desmascarar o brutal assassino de sua esposa, alheio à polícia. Embora não lhe recaia
qualquer acusação, Paulo teme que isso possa vir a ocorrer e se converte em investigador,
agindo como um suspeito detetive. Entretanto, a despeito das averiguações de Paulo, o assassino não é identificado na obra. A necessidade de se decifrar o enigma parece diluída na
literatura policial contemporânea. Não solucionar o mistério é o primeiro passo para a desconstrução das condições mínimas de um romance policial clássico: o mistério, o inquérito
e a tão esperada revelação dos fatos ocultos.
O narrador-protagonista Paulo, de O crime da Gávea, leva o leitor por caminhos incertos, cheios de pistas que incriminam um suposto assassino. A cada vez, ele acredita possuir
as provas concretas e definitivas para incriminar alguém. O leitor o acompanha aflito o
provável desvendamento do mistério, e eis que, de repente, os indícios se desfazem. Outro
suspeito aparece e outro emaranhado de pistas... Esta impossibilidade de apreensão de sentidos que acomete o protagonista parece, de certa maneira, atingir também ao leitor, que se
reconhece impotente. Mais do que isso, ao fim da leitura, paira uma sensação de abalo de
nossa credulidade na justiça, na realização amorosa e na instituição familiar.
Se o assassino não é descoberto, para dar uma satisfação à família classe média alta de
Fabiana, a polícia detém um homem dito “marginal”, que após ser torturado, confessa o
homicídio. O grande crime da Gávea passa a ser cometido contra a favela, numa inversão
daquilo que é incessantemente repetido ao longo da narrativa; a certeza de que o assassino
de Fabiana seria um favelado. É a elite quem sacrifica o expropriado, representado pelo bode expiatório que é preso, e para que não escape, tem a morte paga à polícia pelo pai de Fabiana. Ao lidar com tal tema, o texto também dialoga com uma série de obras ficcionais recentes da literatura brasileira, a exemplo dos best-sellers Estação Carandiru, de Drauzio
Varella, e Cidade de Deus, de Paulo Lins, que exploram a denúncia da atuação de uma polícia corrupta, desumana e promotora da violência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A narrativa criminal sempre manteve um ávido público leitor. No entanto, da narrativa
de enigma de Poe ao romance detetivesco contemporâneo se operaram consideráveis mu8
MORAES. O crime da Gávea, p. 9.
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danças temáticas e estruturais nos textos. Como texto contemporâneo, se observa que O
crime da Gávea, de Marcilio Moraes, apesar de transgredir certas regras de sua composição
da narrativa policial clássica, sobretudo no que se refere à estruturação narrativa, guarda
com a narrativa de enigma pontos de contato.
Outro aspecto a ser assinalado é que, apesar de o romance possuir um enigma, ele não é
decifrado, pois não se consegue descobrir o assassino e as razões do violento crime. Distintamente da narrativa tradicional, o enigma envolve diretamente o detetive, que se mobiliza
menos pelo mistério do que por temer se implicar. O papel do detetive já não corresponde
ao do personagem do policial clássico: o detetive contemporâneo que enfocamos é sexualizado, envolto no crime, corrompido e incompetente. Sujeito que se encarrega de forjar provas e promover a tortura de um marginal para incriminá-lo em um assassinato, o que o torna também responsável pela morte do infeliz na cadeia. Um detetive que conhece o submundo e sabe bem tirar proveito dele.
O crime da Gávea subverte a necessidade de que o crime seja esclarecido e o assassino
desmascarado como solução que restitui um universo organizado, em favor de questionar
nossa insegurança e os valores morais vigentes. É uma mescla de ingredientes dos romances policiais clássicos, acrescida de técnicas de narração mais modernas, e que corresponde
à realidade de nossa sociedade, em que o homem vive sozinho à mercê da violência, em
um universo corrompido e sem sentido. Respeito, honestidade, amor, e fidelidade são meras ilusões. Esta impossibilidade de apreensão de sentidos parece previamente enunciada
no fragmento 56 de Heráclito, que compõe a epígrafe do livro:
Em seu esforço para conhecer o visível, os homens são ludibriados como Homero, mais sagaz
de todos os gregos. Pois é a ele que ludibriaram os garotos que matavam piolhos, dizendo:
“tudo, que vimos e pegamos, deixamos, tudo que não vimos nem pegamos, trouxemos conosco”. 9
REFERÊNCIAS
BATAILLE, Georges. O erotismo. São Paulo: Arx, 2004.
BORGES, Jorge Luis. Cinco visões pessoais. Brasília: Ed. UnB, 1985, p. 31-40.
MEDEIROS E ALBUQUERQUE, Paulo de. O mundo emocionante do romance policial. Rio
de Janeiro: Francisco Alves, 1979.
MORAES, Marcilio. O crime da Gávea. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003.
PIGLIA, Ricardo. Formas breves. Trad. José Carlos de Macedo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004.
POE, Edgar Allan. Ficção completa, poesia e ensaios. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.
POE, Edgar Allan. Histórias extraordinárias. Trad. J. Teixeira de Aguilar. s.l.: EuropaAmérica, 1989.
9
Heráclito citado em MORAES. O crime da Gávea, p. 5.
Anais... Belo Horizonte: UFMG, 2009. p. 342-349.
349
PONTES, Mário. Elementares: notas sobre a história da literatura policial. Rio de Janeiro:
Odisséia, 2007.
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