INTEGRAÇÃO DE INTELECTO E VONTADE NO ATO HUMANO SEGUNDO SANTO TOMÁS DE AQUINO Introdução Desde a Antiguidade, a filosofia distingue ato do homem e ato humano. Atos do homem seriam aqueles que acontecem no homem, ou seja, nas potências inferiores da alma humana, as responsáveis pelas funções vegetativas e sensitivas; os atos humanos são os típicos do ser humano e se fundam nas suas potências superiores e tem a participação da inteligência e da vontade. O ato humano implica a deliberação racional, e foi definido por São João Damasceno como o “ato voluntário que implica a operação racional”. Supõe o conhecimento (perfeito) do fim, obra do intelecto; e o princípio de movimento em relação ao fim, realizada pela vontade. Uma pergunta corrente na filosofia é: como ocorre a integração dessas duas potências superiores do homem nos atos humanos? Alguma delas seria mais determinante? Seria o intelecto? Essa resposta poderia ser identificada com o intelectualismo, similar às respostas de Descartes e de Kant. Ou seria a vontade? Essa resposta, por sua vez, pode ser identificada com o voluntarismo de D. Scoto e G. de Ockham; ou, porventura, seria algum sentimento moral? Essa última seria a resposta de D. Hume e do emotivismo atual. Ao tratar da potência determinante no ato humano, estaremos nos perguntando implicitamente se a vontade é superior ao intelecto ou se o intelecto é anterior à vontade? Procuramos esclarecer essas questões aqui a partir do pensamento de Santo Tomás de Aquino. Primeiramente iremos 1) distinguir intelecto, vontade e a essência da alma; 2) depois veremos como a resposta de Santo Tomás se funda na sua doutrina sobre os chamados “transcendentais”; 3) a seguir, trataremos a necessidade e a liberdade da vontade humana; 4) apresentaremos então a resposta sobre a questão da primazia do intelecto sobre a vontade; por fim 5) veremos a circularidade e mútua imanência das potências superiores humanas e responderemos à questão do justo papel delas no ato humano. 1. Distinção real entre intelecto e vontade Há uma discussão em Santo Tomás de Aquino muito importante para a História da Filosofia: a distinção entre intelecto e vontade e a consequente pergunta sobre a prioridade (altior) de uma dessas potências sobre a outra. Em geral, tende-se a considerar o tomismo como certa forma de “intelectualismo”, e o pensamento surgido com D. Scotto, certo “voluntarismo”. Segundo C. Fabro, a disputa medieval sobre a questão da prioridade de inteligência ou vontade foi tão sofisticada que certos modernos pretenderam “resolver-dissolver” o problema, unificando em um idêntico ato criativo as duas funções fundamentais da consciência. Surgiu assim a afirmação do “eu” absoluto, aparentemente retirando todo o pretexto para se continuar a antiga contenda sobre a prioridade do intelecto ou da vontade1. De fato, D. Escoto, afirmara que inteligência e vontade são o mesmo que a alma; e G. de Ockham negou a distinção entre as duas potências e a essência da alma2. Sendo assim, esses C. Fabro, La dialettica d’intelligenza e volontà nella costituzione dell’atto libero, «Doctor Communis», 1 (1977), p. 166. 1 2 G. de Ockham, In Sententiarum, I. II, q. XX, in Opera Philosophica et Theologica, Collegii S. Bonaventurae ad Claras Aquas, ed. Gedeon Geil, OFM, 1967, vol II, 435. 1 autores são os precursores do modo mais difuso de se tratar a questão na modernidade. D. Escoto disse: «As potências [da alma] nas quais estão a imagem [da Trindade] não se diferenciam realmente da essência [da alma]»3. E G. de Ockham: «As potências da alma […] são realmente o mesmo entre si e com a essência da alma». Algo muito parecido encontramos em R. Descartes e nos Empiristas. Santo Tomás, por sua vez, distingue as potências da essência da alma: «a potência apetitiva e a apreensiva são, sem dúvidas, partes diversas, mas de uma única alma»4. Isso significa que são potências realmente distintas, irredutíveis, e não identificáveis com a essência mesma da alma. A vontade procede da essência da alma, pressuposto o intelecto. A relação entre a vontade e o intelecto é de complementariedade. «A essência da alma é superior à vontade, enquanto tanto a vontade como todas as potências da alma fluem da essência da alma»5. No De Veritate, Tomás de Aquino esclarece que intelecto e vontade não apenas são potências operativas distintas, mas pertencem a gêneros diversos de potências6, e são fundados na mesma alma humana. A distinção entre as potências se dá pelos atos e pelos objetos enquanto objetos, e não por uma diferença acidental entre os objetos das potências. Os objetos da alma são os que se relacionam com a mesma, de modo que diversas relações implicam diversos objetos e diversas potências da alma. A primeira relação da alma com os seus objetos se dá quando certa realidade externa à alma passa a existir nela segundo o modo de ser da mesma alma, ou seja, de modo imaterial. Isso ocorre no conhecimento intelectual humano. O cognoscível, de fato, permanece na alma segundo o modo de ser da alma. Segundo Aristóteles, “anima es quodammodo omnia” (a alma é de certo modo todas as coisas). A segunda relação da alma e seus objetos se refere ao ente externo à alma como ele é em si mesmo. Nesse caso, o ente é objeto da alma na medida em que ela está inclinada para ele. Assim, ela se ordena ao ente externo segundo o modo de ser do ente mesmo (in se ipsa existentis). E isso é o apetecível. Portanto, a capacidade de conhecer e de desejar são gêneros distintos de potência7. O cognoscível permanece na alma segundo o modo de ser da alma, e isso é a origem da verdade apreendida; e a alma se dirige ao ente concreto segundo o modo de ser do mesmo ente. Nesse caso, a alma se dirige ao ente entendido como certo bem. Segundo Santo Tomás, vontade e intelecto realizam operações imateriais (entender e querer) e isso indica que elas são potências realmente imateriais. De fato, o agir segue o ser. Seguindo o prof. J. F. Sellés, a imaterialidade da vontade pode ser comprovada nos seguintes pontos8: a) A universalidade do seu objeto, que é o bem universal conhecido pelo intelecto; enquanto as potências sensitivas se dirigem sempre ao bem particular9; 3 Cfr. D. Escoto, II Sententiarum 1. II, d. XVI, q. un, in Opera Omnia, ed L. Vivès, Bibliopolam Editorem, vol. XIII; cfr. também: Idem, Reportata Parisiensis, 1, II, d. XVI, q. un, in Opera Omnia, ed. cit., vol. XXIII. 4 S. Th., I-II, q. 33, a. 3, ad 2. 5 In III Sent., d. 27, q. 2, a. 4, ad 2; De Veritate, q. 22, a. 11, ad 6. 6 Os atos humanos são aqueles nos quais as duas potências são implicadas. Cfr. S. Th., I-II, q. 8, a. 2. 7 De Veritate, q. 22, a. 10. 8 Cfr. J. F. Sellés, De Veritate, cuestión 22, El apetito sobre el bien…, cit., pp. 8-13. 9 Cfr. S. Th., II-II, q. 25, a. 2; De Veritate, q. 25, a. 1 c. e ad 6. 2 b) A extensão do ato da vontade: ela não se dirige a algo restrito, mas seu desejo não pode jamais ser saciado; isso demonstra que a sua operação não se reduz a um princípio material e seu ato é simples e imanente10; c) A refletividade, algo próprio das potências espirituais; a vontade tem a capacidade de refletir sobre si mesma e sobre as demais potências humanas, algo que a matéria não pode fazer11; d) O crescimento irrestrito da vontade: nada satura a potência volitiva, uma vez que o desejo do bem é incessável; como consequência, as virtudes podem aperfeiçoar à vontade e crescer irrestritamente, uma vez que são sempre virtudes das potências12. Intelecto e vontade são, portanto, potências imateriais diversas, mas tem muito em comum: seus atos são imanentes e podem ser considerados a vida mesma da alma. Conhecer e amar são os atos próprios dessas potências e não atos transitivos, ou seja, não terminam em algo fora de si. São atos perfeitos e aperfeiçoam principalmente o sujeito que as realiza. Além disso, as ditas potências se unem nos atos humanos, no fim de cada um dos seus atos próprios, e no fim último do ser humano. Isso implica dizer que o ato humano é algo complexo e unitário. Complexo porque nele participam as duas potências, e, ao mesmo tempo, o dito ato é indivisível. De fato, não ocorre um ato humano que seja de pura razão, nem de pura vontade. As ditas potências estão unidas ainda no fim último do ser humano: Deus mesmo, no qual ser, verdade e bondade se identificam e são absolutos13. A partir disso, Santo Tomás explica a felicidade humana: consiste na contemplação de Deus. Contemplar significa conhecer amando, ou amar conhecendo. Isso que ocorre perfeitamente com os beatos que estão diante da essência divina, ocorre de modo limitado e participado em cada ato humano: os atos humanos ocorrem porque se dá uma integração harmônica de conhecimento e desejo humanos. 2. Fundação na doutrina dos transcendentais Essa explicação das faculdades humanas se funda na teoria sobre os chamados “transcendentais” de Santo Tomás de Aquino, a qual procuramos expor no nosso livro, recentemente publicado14: Ser e dever-ser: Tomás de Aquino e o debate filosófico contemporâneo. Segundo o Aquinate, a verdade é certo bem, pois é o fim natural do intelecto; e o bem é certa verdade, pois se refere a uma bondade substancial que tem a razão de perfeito ou de perfectível conhecido atualmente pelo intelecto. A verdade e o bem se incluem mutuamente. Pois a verdade é um bem (verum est quoddam bonum), sem o que não seria apetecível; e o bem é uma verdade (bonum est quoddam verum), sem o que não seria inteligível. Do mesmo modo, portanto, que o objeto do apetite pode ser uma coisa verdadeira, enquanto tem a razão de bem – por exemplo, quando se deseja conhecer a verdade – do mesmo modo o objeto do intelecto prático é o bem que pode ser 10 Cfr. De Veritate, q. 5, a. 10 c.; S. Th., I, q. 59, a. 4, ad 2. 11 S. Th., I-II, q. 74, a. 8 c.: «A potência apetitiva, à qual é próprio deleitar-se, volta-se sobre a própria operação como para algo bom» (trad. ed. Loyola); In II Sent., d. 38, q. 1, a. 3, ad 5: «a vontade move as demais potências aos seus atos». 12 Cfr. S. Th., II-II, q. 129, a. 2 c. 13 Cfr. C. Cardona, Metafisica del bene & del Male, Ares, Milano 1991, p. 113. 14 Cfr. A. M. R. Alves, Ser e Dever-ser: Tomás de Aquino e o debate filosófico contemporâneo, Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciências Raimundo Lúlio (Ramon Llull), São Paulo 2015. 3 ordenado à ação, sob a razão de verdadeiro. O intelecto prático, com efeito, conhece a verdade, como o intelecto especulativo, mas ordena à ação essa verdade conhecida 15. Esse texto afirma algo que precisa ser bem notado. Em geral, quando se explica a doutrina dos transcendentais se diz que o intelecto tem um fim próprio: a verdade; e a vontade tem um fim distinto: o bem. Isso é correto, mas Tomás afirma que todas as coisas na natureza são providas de um apetite, inclusive o intelecto. O bem do intelecto é a verdade. E a vontade reconhece a verdade. O bem que a vontade deseja é certo bem, ou seja, é certo ente inteligível. O objeto da vontade é algo verdadeiro que possui a razão de bem. A vontade também se dirige, pois, à verdade (não só ao bem). E o intelecto humano não é apenas teórico, ou seja, não só conhece a verdade teórica. Ele também pode ser prático, enquanto conhece a verdade com o intelecto especulativo e a ordena à ação. Intelecto teórico Contempla a Verdade: v. teórica Intelecto prático Contempla a verdade E dirige a ação: v. prática Voluntas ut natura Inclinada ao fim último Voluntas ut ratio Reconhece o verdadeiro bem E dirige as ações concretas ao fim 3. Necessidade e liberdade da vontade (q. 22, arts. 5-6, 8-9) Como há um intelecto teórico e um prático, assim também ocorre uma distinção na vontade: voluntas ut natura e voluntas ut ratio. A dita distinção encontra-se em De Veritate, q. 22, a. 5 e é fundamental para compreendermos o tema da liberdade humana em Santo Tomás, essencial para a realização de todo ato humano. Naquele texto, Tomás diz que a vontade quer necessariamente – com necessidade de inclinação e não de coação – o fim último e as realidades que estão incluídas nele, como o ser, o conhecer a verdade e outras coisas semelhantes. Porém a vontade não é inclinada necessariamente a outras coisas, uma vez que se inclina para elas por disposição própria. A vontade, de fato, não é obrigada a querer outras coisas, pois a constrição é certa forma de violência, entendida como o ato no qual o princípio é externo, sem que o paciente coloque algo de próprio. O apetite racional é certa inclinação (quaedam inclinatio), certo apetite (appetitus quidam) e não pode querer algo que não provenha da própria inclinação. De forma que, ainda que a vontade queira alguma coisa com uma inclinação natural – a bem-aventurança –, nela não há nenhuma constrição. Tomás insiste em dizer que certos bens movem de modo eficaz a vontade, mas isso não a constringe, pois a sua inclinação natural exclui a constrição16. A perfeição do bem, pois, pode mover a vontade, mas isso se deve à inclinação natural da vontade ao bem, o que exclui a 15 S. Th., I, q. 79, a. 11, ad 2: «Verum et bonum se invicem includunt. Nam verum est quoddam bonum alioquin non esset appetibile; et bonum est quoddam verum, alioquin non esset intelligibile. Sicut igitur obiectum appetitus potest esse verum, inquantum habet rationem boni, sicut cum aliquis appetit veritatem cognoscere; ita obiectum intellectus practici est bonum ordinabile ad opus, sub ratione veri. Intellectus enim practicus veritatem cognoscit, sicut et speculativus; sed veritatem cognitam ordinat ad opus» (trad. ed. Loyola). Preferimos traduzir verum e bonum por verdadeiro e bom, por indicar os entes concretos e não tanto as noções abstratas. Aqui, porém, mantivemos a tradução da editora Loyola. 16 Cfr. De Veritate, q. 22, a. 5, ad 2. 4 possibilidade de violência. Com efeito, segundo Santo Agostinho, a liberdade se opõe à necessidade de constrição, mas não à inclinação natural17. A vontade quer necessariamente qualquer coisa que apetece? Essa é a pergunta presente em De Veritate, q. 22, a. 6. Tomás esclarece o sentido mais forte de necessidade: quando uma realidade imutavelmente está determinada a um único objeto. A vontade, entretanto, se relaciona sem determinação com muitos objetos, por isso não é determinada por coação a nada, mas por sua inclinação natural é determinada ao seu bem integral: o fim último. Como toda realidade indeterminada é reduzida (reducitur) ao determinado como ao seu princípio, a vontade (voluntas ut ratio) é determinada ao princípio do seu tender ao fim último (voluntas ut natura). De forma que os atos concretos e indeterminados por natureza da vontade devem se reduzir ao princípio da vontade, que é a sua inclinação ao fim último. Quando o fim último assumido é honesto, a dita redução representa a retidão moral do homem. A vontade está, pois, determinada naturalmente a alguma coisa: o seu fim último. Nesse caso, chama-se de voluntas ut natura. Por ela, o homem se inclina ao seu bem último. Por outro lado, a vontade não está determinada naturalmente aos atos concretos. Nesse caso, é dita voluntas ut ratio, pois deve deliberar cada vez o que vai fazer, e decidir com sua própria capacidade de determinação. Metafisicamente, a voluntas ut ratio se funda na voluntas ut natura e essa é a sua retidão natural. Quando os atos particulares, escolhidos livremente pela voluntas ut ratio, estão de acordo com o autêntico fim último do ser humano, para o qual a voluntas ut natura está inclinada, ocorre a retidão moral do ser humano. Nesse caso, a voluntas ut ratio conhece o seu autêntico bem e se dirige livremente para ele. Nisto consiste a retidão moral do indivíduo, a qual se funda, realmente, na retidão ontológica. Desse modo, quando os atos da voluntas ut ratio são reduzidos (reductio) ao autêntico bem último humano querido naturalmente, ocorre a retidão moral do sujeito. Por sua vez, o pecado (a falha moral), ocorre quando a voluntas ut ratio age em desacordo com o bem último retamente conhecido e escolhido. O pecado é causado por uma ruptura entre o bem último querido e a ação particular que se centra num bem particular desordenado, ou seja, escolhido sem considerar, naquele momento, o bem último. Isso pode ocorrer por uma falha do raciocínio prático ou por uma concentração excessiva e desordenada no prazer imediato. A voluntas ut natura está determinada, com determinação de inclinação, ao bem último. A voluntas ut ratio, por sua vez, está indeterminada no que se refere aos atos, aos objetos, e à ordem ao fim. a) Em relação aos atos: a vontade pode querer ou não querer; nesse caso a liberdade inere (inest) na natureza humana; b) Em referência aos objetos, a vontade pode querer uma coisa ou outra, e isso se refere aos objetos que são para o fim, mas não ao mesmo fim último; c) No que diz respeito à ordem ao fim, a vontade pode querer o bem ou o mal, isto é, o que realmente é ordenado ao fim devido, ou ao que é ordenado a um fim aparente. Isso se refere também aos objetos que estão para o fim e ao atual estado falível da natureza humana, mas não à bem-aventurança eterna. De modo que o poder querer o mal não é a liberdade, nem uma parte dela, mas apenas certo sinal da sua existência18. 17 18 Cfr. De Veritate, q. 22, a. 5, ad s. c. 3. Cfr. De Veritate, q. 22, a. 6 c. 5 4. Prioridade de intelecto e vontade (De Veritate, q. 22, a. 11) Finalmente devemos nos colocar a importante pergunta: qual dessas potências – intelecto e vontade – seria a mais alta (altior)? Altior aqui deve ser entendido não somente em um sentido psicológico, mas sim metafísico, como primeiro (prior), mais nobre (nobilior)19. Essa discussão causou grande polêmica até o início da idade moderna e continua atual. Para resolver a questão, Tomás distinguiu que eminentius pode ser entendido simpliciter ou secundum quid. Simpliciter diz respeito ao confronto de atribuições essenciais dos entes comparados (ex.: o homem é mais nobre do que o leão pela razão, não pela força física). E então elaborou diversos argumentos, a partir de uma análise desde diversos pontos de vista 1) A perfeição e a dignidade do intelecto consistem no fato de a espécie da realidade conhecida estar no mesmo intelecto, a partir do momento em que ele a conhece em ato. Por outro lado, a excelência (nobilitas) da vontade está em que ela é ordenada a algo excelente (nobilem) segundo o ser mesmo que a realidade possui. E falando de modo simples e absoluto (simpliciter e absolute), é melhor ter em si algo nobre do que ordenar-se a algo nobre existente fora de si. De modo absoluto, pois, sem se comparar a essa ou àquela realidade (ad hanc vel illam rem), o intelecto é mais excelente do que a vontade (simpliciter eminentior est voluntate)20. 2 e 3) Entretanto, o intelecto pode se relacionar com realidades superiores ou inferiores a si. De um modo ou de outro, ele recebe formas, segundo o seu próprio modo de ser. Ao receber formas superiores, essas se tornam inferiores ao modo em que são em si mesmas; e ao receber formas inferiores, elas se tornam superiores, ou seja, espirituais. Sendo assim, de 1) um modo absoluto e universal (simpliciter), o intelecto é superior à vontade, porque ter em si uma realidade nobre é melhor do que se relacionar com ela; 2) em relação às coisas inferiores no modo de ser, o intelecto também é superior à vontade, porque eleva as formas das coisas inferiores ao seu modo de ser; porém, 3) em relação às realidades superiores a si, a vontade está acima do intelecto, pois é melhor amar as realidades superiores do que conhecê-las21. Essa última tese será defendida também nas últimas obras do Aquinate, especialmente ao tratar a bem-aventurança final e a caridade22. De fato, nesta vida é preferível amar a Deus que conhecê-lo, pois não é possível conhecer totalmente o seu ser, o qual só é acessível indiretamente, ou seja, através das criaturas. Pela caridade, entretanto, o homem se dirige diretamente a Deus, como Ele é em si23. É certo que compete por natureza (naturaliter) à criatura racional amar a Deus sobre todas as coisas e a si mesmo por causa de Deus (diligere Deus super omnia, et se propter Deum), uma vez que o término próprio do amor originário do ser racional deve ser um bem total, que seja por si e em si24. Porém, não é possível amar a Deus mais do que todas as coisas nessa vida. Pois a nossa liberdade está ferida e para amar a Deus mais do que todas as demais coisas, o homem atualmente necessita da graça, que lhe faz participar assim na vida divina25, e da virtude sobrenatural da caridade. 19 Cfr. De Veritate, q. 22, a. 11, ad 6 e ad 2 in contr. 20 Cfr. De Veritate, q. 22, a. 11. 21 Ibidem. 22 S. Th., I-II, q. 3, a. 4: «Unde melior est amor Dei quam cognitio. [...] sic velle (divina) est eminentius quam intelligere». 23 Cfr. S. Th., I, q. 82, a. 3 c. 24 Cfr. De Malo, q. 16. 25 S. Th., II-II, q. 184, a. 1: «Unumquodque dicitur esse perfectum inquantum attingit proprium finem, qui est ultima rei perfectio. Caritas autem est quae unit nos Deo, qui est ultimus finis humanae mentis: quia 6 4) Desde o ponto de vista ético, é melhor amar do que conhecer as realidades superiores, as quais são inabordáveis em toda a sua complexidade pela inteligência humana26. Ao conhecer a realidade, reduzimo-la às nossas capacidades, o que supõe uma abertura ao ser real. Isso que é ordinário no conhecimento das realidades naturais, não é desejável do ponto de vista moral, quando se trata do conhecimento de outra pessoa. Pois um ser humano jamais pode ser objetivado: é sempre uma realidade que transcende as capacidades do cognoscente. O amor pessoal, e fato, se dirige à realidade mesma e busca aderir a ela sem objetivação. O amor é virtus unitiva27, o qual busca a união: amor extasim facit28. O amante se dirige à pessoa amada para conhecê-la assim como é: uma realidade plena e inesgotável. E como o homem não pode abarcar a Deus com sua inteligência, mas pode se elevar até Ele pelo amor, o mesmo é válido para o conhecimento pessoal. Intelecto absoluta e universalmente é superior à vontade 1. É mais nobre ter em si uma realidade do que se dirigir a ela. Intelecto é mais nobre quando conhece as realidades inferiores a si. 2. Eleva as realidades inferiores ao seu modo de ser espiritual. Vontade é mais nobre do que o intelecto quando ama as realidades superiores a si. 3. Amar o superior (Deus, anjos e rs. esp.) é melhor do que conhecê-lo. 4. Amar o que tem igual dignidade (pessoas) é melhor do que conhecer. 5) Há outro argumento que indica a superioridade absoluta do intelecto, que para Fabro seria algo “totalmente formal”: «o objeto do intelecto é mais simples e mais absoluto do que o da vontade, uma vez que o objeto do intelecto é a mesma razão de bem apetecível. Por outro lado, o bem apetecível, cuja razão está no intelecto, é o objeto da vontade». Também seria “formal” a explicação do argumento e o critério que indica a superioridade, a saber, a simplicidade do objeto: «quanto mais algo é simples e abstrato, assim é mais nobre e alto (nobilius et alius); e por isso o objeto do intelecto é mais alto do que o da vontade»29. C. Fabro se pergunta se a perfeição como plenitude de ser não seja um critério melhor para indicar a superioridade do intelecto30. Entretanto, Tomás afirma explicitamente que 6) «o intelecto é o mais alto segundo a origem, e a vontade segundo a perfeição. E semelhante ordem se dá nos hábitos e também nos atos, ou seja, na visão e no amor»31. Aqui se vê um articulado modo de entender as relações entre as potências da alma. De acordo com a origem, o intelecto é mais próximo à essência da alma, tanto que a definição de homem é «animal que possui razão», e não «animal que possui vontade»; mas, de acordo com a intencionalidade, a vontade, quando busca a união com o ser real dos entes conhecidos, especialmente os superiores a si mesma, é mais perfeita do que o intelecto. “qui manet in caritate in Deo manet et Deus in eo”, ut dicitur I Io 4, 16. Et ideo secundum caritatem specialiter attenditur perfectio vitae christianae». 26 R. Caldera, Sobre la naturaleza del amor, «Cuadernos de Anuario Filosófico», 80 (1999), pp. 127-129. 27 Virtus unitiva é uma fórmula de Pseudo-Dionísio, o Areopagita, usada por Tomás para definir a essência do amor. Cfr. S. Th., II-II, q. 25, a. 4. 28 S. Th., I-II, q. 28, a. 3. 29 S. Th., I, q. 82, a. 2. C. Fabro, La dialettica d’intelligenza e volontà nella costituzione dell’atto libero, «Doctor Communis», 1 (1977), p. 168. 30 31 In I Sent., d. 1, q. 1, a. 1, ad 1. 7 Como todas as potências nascem da essência da alma [...], existe sem dúvidas certa ordem na origem deste estilo, de modo que, a saber, a origem de uma potência pressuponha a de outra [...] o qual se pode considerar pelos atos. Pois o ato de uma potência pressupõe de modo necessário o ato de outra, como o ato da apetitiva pressupõe o ato da apreensiva 32. Sendo assim, «a vontade segue ao intelecto»33 quanto à sua origem e também ao seu atuar. Isso não implica que a vontade queira necessariamente o que lhe indique o intelecto, mas sim que o intelecto é prévio à vontade simpliciter, ou seja, «considerando de modo absoluto a razão é prévia à vontade». De fato, isso é comprovado na evidência de que o intelecto conhece não somente a verdade, mas também o bem: conhecer algo como perfeito ou capaz de aperfeiçoar é conhecer o bem como tal. Sem o intelecto, pois, a vontade – o apetite racional – não poderia querer. A razão última disso é que, segundo a ordem dos transcendentais, a verdade simpliciter é anterior ao bem «porque o verdadeiro está mais próximo do ente, que é anterior, do que o bem [...]. Em segundo lugar, o conhecimento precede naturalmente ao apetite»34. A vontade, por sua vez, segue ao intelecto no que diz respeito aos seus dois atos principais: «O ato da vontade é dúplice, um imperfeito, ou seja, o apetecer; e este ato precede um conhecimento perfeito [...]. Outro é o ato perfeito da vontade, pelo qual a vontade descansa e se deleita na realidade já alcançada; e assim a vontade de saber segue a um conhecimento perfeito»35. Pode, pois, existir um ato da vontade imperfeito, o desejo de um fim anterior a um conhecimento perfeito. A esse ato primeiro de querer se seguirão outros atos sobre os meios, mas antes do primeiro ato da vontade também deve preceder um intelectual36. Em outras palavras, um ato da vontade pode preceder ao ato do intelecto, como acontece quando alguém quer entender algo; mas ainda nesse caso, é imprescindível que antes se tenha conhecido que se possa entender algo37. A dependência do intelecto pode ser vista também a partir do objeto da vontade: o bem previamente conhecido. De modo que o intelecto é superior à vontade na medida em que o seu ato é superior ao da vontade: conhecer é mais atual do que querer, por ser mais simples. Por isso, o intelecto é mais ativo e a vontade é mais potencial. De fato, a potência mais ativa pode ser explicada sem a mais potencial, uma vez que o ato é anterior à potência; por sua vez, a vontade é inexplicável sem o intelecto. O intelecto, portanto, pode ser explicado sem referência à vontade, mas a vontade (apetite racional) não pode ser explicada sem o intelecto. Em suma, a vontade depende do intelecto em relação ao conhecimento do fim38, aos meios (sem o qual se tornaria irracional), à contemplação40 e à ação41, enquanto faculdade e 39 32 In II Sent., d. 24, q. 1, a. 2 c. 33 Cfr. C. G., I, cap. 75, n. 7; S. Th., I, q. 19, a. 1 c. Está tese aparece nas obras de Tomás de Aquino mais de 125 vezes. Aparece em In Sent., De Veritate, S. Th., De Potentia, De Malo, In De Anima, De Virt. comm., Quodl., In. Eth., em alguns opúsculos e comentários bíblicos. 34 S. Th., I, q. 16, a. 4 (trad. ed. Loyola). 35 In I Sent., d. 6, q. 1, a. 3. 36 De Veritate, q. 5, a. 10. 37 De Malo, q. 3, a. 8. 38 S. Th., I-II, q. 6, a. 1 c.: «condição indispensável para todo movimento em direção ao fim é o conhecimento do mesmo». 39 S. Th., I-II, q. 19, a. 3 sc. 40 S. Th., II-II, q. 106, a. 4, ad 2: «O fervor da vontade não é virtuoso se não for ordenado pela razão». 41 A vontade tem como medida interna para a ação a razão humana, que é a regra próxima da moralidade, a qual deve se fundamentar na lei divina, regra última da moralidade. Cfr. S. Th., I, q. 19, a. 4 c. 8 também nos seus atos e objetos42. De modo que em relação ao fim, aos meios, à contemplação e à ação, «toda vontade que é discordante da razão, seja reta ou errônea, é sempre malvada»43. Contudo, como pode a vontade não ser reta? Santo Tomás o explica. Ora, de dois modos a vontade humana fica impedida de seguir à retidão da razão (rectitudinem rationis sequatur). Primeiro deixando-se desviar, por algum prazer, da prática de um ato que a razão condena; e este impedimento é eliminado pela virtude da temperança. De outro modo, deixando de obedecer à razão por causa de alguma dificuldade que se lhe opõe. E para arredar este obstáculo é preciso a coragem da alma (fortitudo mentis) [fortaleza], que oponha resistência a tais dificuldades44. De modo que a razão imediatamente regula a retidão da vontade e a razão, por sua vez, é regulada pela lei divina45. Tudo isso nos faz ver que o intelecto, embora seja absolutamente superior à vontade, está a serviço do amor. Pois o amor é o que move a vontade e as outras potências espirituais e sensitivas. O intelecto, de fato, deseja a verdade e o amor busca o bem, o qual é a causa que move as outras causas na ordem da produção. C. Cardona o expressa de modo claro: o intelecto é o meio para que o amor repouse na união, na identidade recuperada, na união do ser com o Ser do qual deriva e no qual se realiza como ser. Assim a felicidade mais do que no possuir, está no ser possuído pelo Bem. O amor, que é o que une ao que profunda e definitivamente identifica o próprio sujeito com o sujeito amado, é a perfeição originária e a perfeição final da pessoa. A inteligência ou o conhecimento é a posse intencional do outro enquanto outro. O amor é êxtase, é ser raptado pelo amado, a fusão nele e a identificação com ele enquanto tal46. 5. Circularidade e mútua imanência de intelecto e vontade Do que vimos até aqui, entende-se que vontade, intelecto e os seus objetos – verdade e bem – se compenetram intimamente e operam em certa circularidade (circulam quemdam). Há portanto, uma mútua imanência de inteligência e vontade no ato humano. Em De Veritate, q. 1, a. 2 foi afirmado que o objeto apetecível fora da alma move o apetite para que seja conhecido sensível ou intelectualmente, conformando-se assim a ele; posteriormente, o apetite tende a se unir o objeto desejado. Portanto, o amor é o início e o fim do movimento da alma em direção ao objeto. Porém, a dita circularidade e mútua compenetração não implicam um processo ao infinito: «não há necessidade de se proceder ao infinito, mas basta ficar no intelecto, como ponto de partida. Pois, todo movimento da vontade é precedido pela apreensão [intelectual – “ao menos 42 Em relação aos atos: o consentir da vontade, depende do conselho da razão; a eleição da vontade depende do juízo prático da razão; a execução ou a fuga, atos da vontade, dependem dos juízos do intelecto de afirmação ou negação. Cfr. In Ethic. VI, lect. 2, n. 5. Em relação aos objetos: «como o bem entendido é o objeto próprio da vontade, é necessário que o bem entendido enquanto tal seja objeto da vontade». C. G., I, cap. 72, n. 2. 43 S. Th., I-II, q. 19, a. 5 c. 44 S. Th., II-II, q. 123, a. 1 c. (trad. A. Corrêa). 45 Cfr. J. F. Sellés, De Veritate, cuestión 22, El apetito sobre el bien…, cit., pp. 28-31. 46 C. Cardona, Metafisica del bene & del male…, cit., p. 114. 9 se entende que se pode entender”], mas nem toda apreensão é precedida pelo movimento da vontade»47. A partir dessas afirmações, a escola tomista concluiu que o intelecto é simpliciter altior, eminentior, prior, nobilior; e a vontade é altior, eminentior, prior, nobilior secundum quid. Para Santo Tomás o intelecto é principium movens da vontade: absolute et secundum se, prout praecedit voluntatem quasi eam movens48. Essa afirmação, porém, não confirmaria o intelectualismo de Tomás? Certamente não, mas essa afirmação precisa ser bem entendida. Com efeito, ele a aplica ao tratar a circularidade dos atos das duas potências (intelecto e vontade) e deve ser corretamente interpretada. Em certo sentido, também a vontade move o intelecto: «de igual modo, assim como por um ato da vontade (o intelecto) entende, enquanto por um ato do intelecto, de certo modo, a vontade é movida»49. A vontade é movida pelo intelecto não quanto ao exercício do próprio ato (quantum ad exercitium actus), mas enquanto determina o ato (quantum ad determinationem actus), ou seja, o intelecto apresenta à vontade o seu objeto (et ideo isto modo motionis intellectus movet voluntatem sicut praesentens ei obiectum suum)50. Isso significa que o intelecto move à vontade não como causa eficiente (seria intelectualismo), mas sim como causa final e formal51. De fato, «o intelecto regula a vontade não no sentido de que a inclina àquilo para a qual tende, mas no sentido que lhe mostra (ostendens) para onde deveria tender»52; «o intelecto move a vontade assim como se diz que o fim move, enquanto deve preconceber a razão de fim e propô-la à vontade»53. O motivo disso é que, como afirma C. Fabro, «o fim é o bem perfeito próprio de cada criatura e como objeto é apreendido pelo intelecto junto com os outros transcendentais, isso é, com o ens, res, aliquid, unum, verum. E o que é próprio da vontade é a inclinatio e inclinar ao bem conhecido, ou seja, o mover e o mover-se em direção às coisas»54. O intelecto, pois, move a vontade enquanto lhe apresenta o seu objeto (apraesentans ei obiectum suum). De modo que não se pode aplicar a Tomás a fórmula intelectualista: «assim como é o conhecer, assim é o querer; assim como é o intelecto, é a vontade». O intelecto não determina a escolha, mas propõe à vontade os objetos a serem escolhidos. O conhecimento, de fato, se dá per assimilationem cognoscentis ad rem cognitam. E assim o cognitum sit in cognoscendi per modum cognoscentis. A faculdade cognoscitiva termina no mesmo lugar onde era partida: na alma. A vontade, porém, quer o bem no seu caráter de espécie e de ser. Por isso, tende ao objeto conhecido intelectualmente e existente fora da alma. 47 S. Th., I, q. 82, a. 4, ad 3 (trad. ed. Loyola). 48 De Virt. comm., a. 7. 49 De Malo, q. 6, a. un., ad 18: «similiter etiam et interiorem actum voluntatis [intellectus] intelligit, in quantum per actum intellectus quodammodo movetur voluntas». 50 S. Th., I-II, q. 9, a. 1. 51 O intelecto que move como causa final é afirmado em: In Sent., De Potentia, De Malo, De Anima, De Virt. comm., Quod., Comp. Theol., De Unitate Intellectus, In Physic, In Ethic., In De Anima, In Metaphys., Super Evangelium Iohannis; o intelecto move como causa formal é afirmado nas duas Sumas. 52 De Veritate, q. 22, a. 11, ad 5. 53 De Veritate, q. 22, a. 12: «Intellectus movet voluntatem per modum quo finis movere dicitur, in quantum scilicet praeconcipit rationem finis et eam voluntati proponit». 54 C. Fabro, La dialettica d’intelligenza e volontà nella costituzione dell’atto libero…, cit., p. 168. 10 Por sua vez, a vontade é superior ao intelecto não só quando está inclinada aos objetos superiores à essência da alma – os bens transcendentes –, mas também quando se refere aos seus atos próprios, como afirma o Aquinate. Qualquer potência é superior (praeeminet) a outra naquilo que lhe é próprio: assim o tato é mais perfeito em comparação ao calor, o qual sente por si, do que pela visão, que sente per accidens; e de igual modo o intelecto é mais completo do que a vontade ao se comparar com a verdade, e por sua vez, a vontade é mais perfeita do que o intelecto ao se comparar ao bem que está nas realidades55. A circularidade e mútua compenetração de intelecto e vontade podem ser contempladas também no fato de o verdadeiro ser certo bem do intelecto (quoddam bonum intellectus)56, pois é contido no bem universal como um bem particular (continetur sub universali bono tu quoddam bonum particular)57. Por isso, o mesmo intelecto possui um apetite do bem: ao bem o intellectus tendit58. Nesse último caso, o verdadeiro tem valor de causa final (de bem) do intelecto. Por outro lado, no ato da escolha, que pertence propriamente à vontade, a razão deve confrontar uma opção com outra e preferir alguma. Assim se dá algo da razão (ex impressione rationis), a comparação intelectual, em um ato da vontade (in actu voluntatis): a própria escolha59. Daqui se explica como, em certo sentido, a vontade mova o intelecto. Santo Tomás chega a afirmar que a vontade é motor omnium virium60, pois o livre arbítrio não é só de uma parte da alma, mas sim de toda a alma. E não no sentido de que seja uma determinada potência, mas porque estende o seu império a todos os atos do homem61. Em um texto posterior, o Aquinate é ainda mais explícito: ao considerar o movimento das potências da alma a partir do objeto que especifica o ato, o primeiro princípio do movimento é o intelecto, e assim o bem do intelecto move a mesma vontade. Porém, se consideramos o movimento das potências da alma a partir do exercício do ato (ex parte exercitti actus), então o princípio do movimento é a vontade. De fato, à vontade pertence a finalidade principal e, por isso, move ao ato as demais potências para que se dirijam ao fim. Então a vontade move a si mesma e as demais potências. Portanto, «entendo porque quero» (intelligo enim quia volo), e o mesmo ocorre com as demais capacidades humanas: atuam porque se quer62. 55 De Veritate, q. 22, a. 12, ad 5. 56 De Veritate, q. 22, a. 12, ad 3. 57 S. Th., I-II, q. 9, a. 3. 58 S. Th., I, q. 16, a. 1. 59 De Veritate, q. 22, a. 15: «Apparet id quod est proprius rationis, scilicet conferri unum alteri vel praeferire». 60 In II Sent., d. 24, q. 1, a. 2, ad 3: «[...] actus aliquis attribuitur alicui potentiae dupliciter. Vel quia elicit ipsum sicut proprium, sicut visus videre et intellectus intelligere, et sic libero arbitrio assignatur actus ille qui est eligere. Alio modo quia imperat ipsum; et hoc modo actus omnium virium obedientium rationi possunt voluntati attribui quae est motor omnium virium: et ita etiam actus diversarum virium libero arbitrio attribuuntur». 61 In II Sent., d. 24, q. 1, a. 2, ad 1: «[...] contingit aliquam potentiam esse determinatam in se, quae tamen universale imperium super omnes actus habet, sicut patet in voluntate; unde liberum arbitrium propter hoc dicitur non pars animae, sed tota anima, non quia non sit determinata potentia, sed quia non se extendit per imperium ad determinatos actus, sed ad omnes actus hominis qui libero arbitrio subjacent». 62 De Malo, q. 6, a. un.: «Si ergo consideremus motum potentiarum animae ex parte obiecti specificantis actum, primum principium motionis est ex intellectu: hoc enim modo bonum intellectum movet etiam ipsam voluntatem. Si autem consideremus motus potentiarum animae ex parte exercitii actus, sic principium motionis est ex voluntate. Nam semper potentia ad quam pertinet finis principalis, movet ad actum potentiam ad quam pertinet id quod est ad finem; sicut militaris movet frenorum factricem ad 11 Sendo assim, quando se procura esclarecer os atos humanos, devem ser consideradas duas causas: primeiramente a final, motivo principal pelo qual o agente se move. Nesse sentido, o intelecto move a vontade porque lhe apresenta seu objeto: o bem conhecido; outra causa é a eficiente, e por ela se diz que a vontade move o intelecto e todas as outras potências da alma para a execução dos próprios atos, excetuando as potências vegetativas que não estão sob o nosso controle63. Santo Tomás: Intelectualista ou Voluntarista? Intelecto Vontade Causa final Causa eficiente Especifica o ato Exercício do ato Intelecto move a vontade Vontade move o intelecto Apresenta à vontade seu objeto Vontade move as demais potências humanas “Entendo que posso querer algo” “Entendo porque quero” Desse modo, «a mesma vontade impera às outras potências e ao intelecto; por isso o ato das outras potências, e também seus defeitos estão sob o poder da vontade, a saber, só para aqueles que obedecem à razão»64. Assim a vontade é a causa primeira da bondade ou maldade dos atos externos, coisa não atribuível ao intelecto. E o intelecto apresenta à vontade aquilo que ela pode querer e escolher. Além disso, há diversas afirmações que nos fazem ver que as acusações de intelectualismo contra Santo Tomás são infundadas: «o intelecto não age senão mediante a vontade; porque o movimento da vontade é uma inclinação que segue uma forma entendida; por isso, é necessário que qualquer anjo que age, aja pelo império da vontade»65. Essa última afirmação é válida também para os atos humanos. O que teria permitido a Tomás de Aquino chegar a essa compreensão da circularidade e mútua compenetração de intelecto e vontade no ato humano? Certamente, a doutrina da participação, recebida principalmente do Pseudo-Dionísio e do Liber de Causis66. Pois a tese causa secunda non agit in causatum suum nisi virtute causae primae67 já estava presente nas primeiras obras do Aquinate e era afirmada para todas as causas68. Essa tese assume o caráter operandum, et hoc modo voluntas movet se ipsam et omnes alias potentias. Intelligo enim quia volo; et similiter utor omnibus potentiis et habitibus quia volo; unde et Commentator definit habitum in III de anima, quod habitus est quo quis utitur cum voluerit». 63 Cfr. S. Th., I, q. 82, a. 4. 64 In II Sent., d. 22, q. 2, a. 1, ad 1. 65 Quodl., VI, q. 2, a. 2: «Intellectus autem non agit nisi mediante voluntate; quia motus voluntatis est inclinatio sequens formam intellectam; unde oportet quod quidquid angelus agit, agat per imperium voluntatis». Cfr. G. Samek Lodovici, La felicità del bene. Una rilettura di Tommaso d’Aquino, Vita e Pensiero, Milano 2002, pp. 114-116. 66 67 In Librum de causis, pr. 1, n. 28. 68 Cfr. In II Sent., d. 36, q. 1, a. 1; De Veritate, q. 22, a. 2: «Secundaria causa non potest influere in suum effectum nisi in quantum recipit virtutem primae causae. [...] Sic enim virtus primae causae est in secunda». 12 de princípio ontológico forte: o que é precedente na ordem de origem se conserva no conseguinte (semper prius salvatur in posteriori)69. Aplicando esse princípio ao nosso tema, afirma-se que quando atos de duas potências estão subordinados entre si, em cada um deles deve haver elementos pertencentes às potências dos outros atos, de modo que a virtualidade do ato precedente permanece no seguinte. Por isso, no ato da vontade há algo da razão (impressio rationis reliquitur in voluntate)70; e no ato da razão se dá aliquid voluntatis, na medida em que o ato da razão possui em si a natureza do querer (accipit in seipso ratione volendi)71. De fato, quando existem duas realidades ordenadas, a primeira deve ser incluída na segunda e na segunda deve haver não só o que pertence à sua natureza, mas também o que compete à natureza da primeira. Isso ocorre com o intelecto, anterior pela origem à vontade, e sua virtude permanece no ato voluntário. Especificamente sobre o ato humano, vale o seguinte princípio: quando dois elementos concorrem para formar uma realidade, um desses se relaciona com o outro como elemento formal. Assim os atos da alma, da inteligência ou da vontade, recebem a forma de uma potência e a espécie da outra72. De modo que em cada ato humano há um elemento como que material e outro formal. Na escolha, por exemplo, o elemento material é, de certo modo, a vontade, e o formal, a razão (materialiter quidem est voluntatis, formaliter autem est rationis)73. Portanto, quando uma potência move outra, os atos delas são quodammodo unus74. E cada potência é superior à outra naquilo que lhe é próprio. Sendo assim, o intelecto se relaciona com a verdade mais propriamente do que a vontade e a vontade se relaciona com o bem mais perfeitamente do que o intelecto75. O motivo profundo dessa união entre as potências humanas é, como já vimos, o fato de elas terem origem na essência mesma da alma. Conclusões Intelecto e vontade são faculdades diversas e se fundam na mesma essência da alma. Ambas estão implicadas no ato humano. O intelecto é a causa final do ato; a vontade é a causa eficiente do mesmo. Uma potência está presente na outra, de modo que podem ser distinguidas mentalmente, mas não podem jamais ser separadas na realidade do agir humano. De fato, não há um ato que seja exclusivamente voluntário, nem exclusivamente racional. O Intelecto é altior, eminentior, prior, nobilior: simpliciter. Ter em si algo de nobre é mais fácil do que se dirigir a ele; Eleva o que é inferior ao seu modo de ser (entes materiais se tornam imateriais); Mais próximo da essência da alma; Está presente em todo ato voluntário. A vontade é altior, eminentior, prior, nobilior secundum quid. 69 S. Th., I, q. 60, a. 1. 70 De Veritate, q. 22, a. 13. 71 De Veritate, q. 22, a. 12. 72 Cfr. De Veritate, q. 22, a. 5. 73 S. Th., I-II, q. 13, a. 1. 74 S. Th., I-II, q. 17, a. 4, ad 1. 75 De Veritate, q. 22, a. 12, ad 5: «Intellectus completius comparatur ad verum quam voluntas, voluntas perfectius comparatur ad bonum quam intellectus». 13 Amar o superior é melhor do que conhecê-lo; Pode mover o intelecto a conhecer melhor algo; É mais unitiva do que o intelecto; É superior nos seus atos próprios. Quando não se compreende a união de verdade e bem, de inteligência e vontade pode ocorrer a deriva subjetivista, ou seja, a “opção intelectual” de afirmar como realidade última e fundante o “eu absoluto” (seja o “cogito” cartesiano ou o “Eu transcendental” kantiano, ou o “Eu absoluto” hegeliano), e não o ser em si mesmo. Isso foi o início da filosofia moderna, que resolveu dissolvendo as discussões sobre a complexidade do ato humano. A modernidade começa com a afirmação do homem como res cogitans, à qual se une acidentalmente uma res extensa. Posteriormente, as filosofias do sentimento moral afirmam que o determinante para o agir humano e a sua consequente moralidade é simplesmente um sentimento moral. A razão seria incapaz de conhecer a realidade e o bem intrínseco de cada ação. A razão seria meramente instrumental, serviria para justificar as decisões tomadas pelo sentimento moral. “A razão é e sempre deve ser somente escrava das paixões” (D. Hume). De modo que uma compreensão justa da relação entre vontade e inteligência humana é extremamente frutuosa para a filosofia. De fato, reconhecer a correta função da vontade humana assegura à inteligência um realismo que o intelecto por si mesmo não pode garantir. A unidade de verdade e bem no ato humano e a mútua complementaridade de intelecto e vontade foram bem expressos por C. Cardona. O ato humano é ao mesmo tempo inseparavelmente cognoscitivo e amoroso. Esta ação dúplice, mas unitária, é precisamente um processo de descoberta de identidade. A verdade é fundada no ser real do que é conhecido. A verdade é dizer ser o que é e não ser o que não é, é a identificação intencional ou adequação do intelecto e da coisa real, é tornar intencionalmente a coisa, levando-a a si, abstraindo-a: o conhecimento é identidade sujeitoobjeto verso o interno. Por outro lado, o amor é sair de si para se tornar o amado: é a identidade sujeito-objeto verso fora. E dado que a origem do ser criado é fora – é transcendente: é Deus –, a parte motora inicial e a parte perfectiva final do ato humano são o amor, pelo qual o homem sai de si, tende a Deus no seu Ser e se une a Ele, e assim se realiza no ser: em Deus [o homem] se torna definitivamente idêntico a si mesmo, é o que é. Por isso, o que constitui o ato humano como tal em modo mais radical e definitivo, e, portanto, o homem como homem, é o amor enquanto ato de liberdade. O amor é a mesma vida do espírito, da pessoa76. 76 C. Cardona, Metafisica del bene & del male…, cit., p. 113. 14