ISSN 1982 - 0283 SISTEMA DE NUMERAÇÃO DECIMAL NO CICLO DE ALFABETIZAÇÃO Ano XXIV - Boletim 5 - SETEMBRO 2014 S istema de N umeração D ecimal A lfabetização no C iclo de SUMÁRIO Apresentação........................................................................................................................... 3 Rosa Helena Mendonça Introdução............................................................................................................................... 4 Cristiano Alberto Muniz Texto 1A: Mediação Pedagógica: uma via de mão dupla ......................................................... 7 Elissandra de Oliveira de Almeida Texto 1B: A criança ativa na construção do número no SND.............................................. 14 Sueli Brito Lira de Freitas Texto 2A: Pega Varetas: construção da noção de valor para a aprendizagem do SND ...........22 Ana Maria Porto Nascimento Texto 2B: O ensino do Sistema de Numeração Decimal .........................................................30 Nilza Eigenheer Bertoni Texto 3A: A criança se percebendo como construtora do Sistema de Numeração Decimal ........37 Cristiano Alberto Muniz Texto 3B: SND: conceitos matemáticos articulados com atividades pedagógicas .......................49 Eurivalda Santana S istema de N umeração alfabetização Apresentação D ecimal A publicação Salto para o Futuro comple- A edição 5 de 2014 traz o tema Sistema de menta as edições televisivas do programa Numeração Decimal no ciclo de alfabetiza- de mesmo nome da TV Escola (MEC). Este ção, e conta com a consultoria de Cristia- aspecto não significa, no entanto, uma sim- no Alberto Muniz, Doutor em Sciences de ples dependência entre as duas versões. Ao contrário, os leitores e os telespectadores – professores e gestores da Educação Básica, em sua maioria, além de estudantes de no ciclo de l’Education pelo Université Paris Nord e Professor Adjunto da Universidade de Brasília, que contribuiu com a organização da presente coletânea e foi o Consultor desta Edição Temática. cursos de formação de professores, de Faculdades de Pedagogia e de diferentes licenciaturas – poderão perceber que existe uma interlocução entre textos e programas, pre- Os textos que integram essa publicação são: 1A. Mediação Pedagógica: uma via de 3 mão dupla servadas as especificidades dessas formas distintas de apresentar e debater temáticas variadas no campo da educação. Na página 1B. A criança ativa na construção do número no SND eletrônica do programa, encontrarão ainda 2A. Pega Varetas: construção da noção de outras funcionalidades que compõem uma valor para a aprendizagem do SND rede de conhecimentos e significados que se 2B. O ensino do Sistema de Numeração Decimal efetiva nos diversos usos desses recursos nas escolas e nas instituições de formação. Os 3A. A criança se percebendo como constru- textos que integram cada edição temática, tora do Sistema de Numeração Decimal além de constituírem material de pesquisa e 3B. SND: conceitos matemáticos articulados estudo para professores, servem também de com atividades pedagógicas base para a produção dos programas. Boa leitura! Rosa Helena Mendonça1 1 Supervisora Pedagógica do programa Salto para o Futuro (TV Escola/MEC). Introdução A criança como protagonista de sua aprendizagem do sistema de numeração decimal Cristiano Alberto Muniz1 Esperança... nossa palavra-chave maior A construção do número e a compre- nestas reflexões e proposições. Esperança de ensão do SND é base para a compreensão da que a aprendizagem do Sistema de Numera- leitura e da escrita do número nos mais di- ção Decimal (SND), eixo central do currículo versos contextos socioculturais, favorecendo da alfabetização matemática, não se resuma à o desenvolvimento de procedimentos ope- transmissão de conjunto de regras, fórmulas e ratórios. Compreender a estrutura decimal terminologias que, sem sentido para as crian- tanto quanto a posicional do sistema numé- ças, as coloca inertes no processo de assimila- rico permite ao aluno desenvolver habilida- ção dos conhecimentos matemáticos. des nos processos de medições e expressão de medidas, além de lidar com tratamento de Esperança de que tenhamos uma es- informação e de processos estatísticos. Isto cola onde as crianças se enxerguem como se- revela a importância do tema para o desen- res profundamente ativos nos processos de volvimento do currículo e para a formação aprendizagem deste sistema, mesmo sendo do professor alfabetizador em Matemática um sistema numérico construído historica- na escola básica. mente pelas civilizações antigas. Buscaremos, nos textos que se seguem, alertar para Os processos de mediação pedagógi- o fato de que, mesmo constituindo-se num ca ganham importância nas nossas reflexões, sistema fechado de regras, as propostas pe- revelando que qualquer aprendizagem sig- dagógicas devem permitir que as crianças nificativa da Matemática, do número ou de em processos de alfabetização matemática outro conceito, depende da qualidade da me- se percebam como autoras das estruturas do diação realizada pelo professor, sempre desa- sistema de contagem na base dez. fiando, estimulando e intervindo nos processos de construção da aprendizagem de cada criança. É assim que Elissandra de Oliveira de 1 Doutor em Sciences de l’Education pelo Université Paris Nord, Professor Adjunto da Universidade de Brasília e Consultor desta Edição Temática. 4 Almeida nos presenteia com o primeiro texto o “um” pode significar plural, como ocorre destacando o valor dos processos de media- na pontuação dos palitos no jogo de pega- ção nas aulas de Matemática. Este primeiro -varetas. Se, no jogo, as crianças apresentam texto, Mediação Pedagógica: uma via de mão dificuldades para compreensão da noção de dupla, nos revela que muitas das dificulda- valor, Ana Porto demonstra que mediações des de aprendizagens, dentre elas a constru- pedagógicas podem se realizar, articulando ção do número, podem ser ressignificadas se as noções de valor-quantia com as de quan- nós, educadores, assumirmos nosso papel de tidade e utilizando como mediação material mediadores pedagógicos. de contagem, bolinhas ou semente de milho. Esta noção de valor será de fundamental im- Fazer das crianças protagonistas do processo de estruturação do sistema de numeração é a proposta de Sueli Brito Lira de Freitas, no texto A criança ativa na construção do número no SND, que nos apresenta sugestões de construção de um projeto pedagógico com efetiva participação de cada criança no desenvolvimento de atividades que permitam a gradativa aquisição de estruturas do sistema de numeração decimal, fazendo com que os portância para a construção, pela criança, da ideia de ordens e classes, pois um dígito pode assumir diferentes valores dentro da composição do número, segundo sua posição. Este protagonismo acaba por nos conduzir a melhor compreender como as crianças são capazes de apresentar inusitados procedimentos operatórios e registros nas operações aritméticas quando elas se apropriam efetivamente da compreensão da estrutura do número. aprendizes participem efusivamente dos embates, proposições e decisões, sempre trocan- As relações da criança com o siste- do e validando ideias no processo coletivamen- ma de numeração decimal em seus contex- te constituído. Sueli demonstra que materiais tos socioculturais é o foco de Nilza Eigenheer concretos e simbólicos, livres e estruturados, Bertoni, nos trazendo, além de construções pedagógicos e culturais participam da consti- conceituais importantes, atividades do coti- tuição deste ambiente alfabetizador da Mate- diano escolar como “Quantos somos hoje?”, mática no primeiro ciclo de escolarização. revelando como estas permitem, à criança, gradativamente, se apropriar dos sentidos das Se a descoberta do agrupamento de- regras do sistema de numeração, sempre de cimal e posicional é importante, Ana Maria forma reflexiva, socializada e colaborativa. Porto Nascimento, em seu texto Pega Va- Seu texto O ensino do Sistema de Numeração retas: construção da noção de valor para a Decimal propõe uma reflexão sobre aspectos aprendizagem do SND, nos revela o quanto é linguísticos e culturais da escrita e leitura dos importante oferecer, às crianças, atividades números e revela como os processos de apro- que permitam a elas a noção de valor. Quan- priação e aprendizagem dos números é um fe- do uma unidade pode representar um grupo, nômeno complexo. 5 Assim como outros autores desta pu- blicação, Nilza nos traz exemplos de como o serem realizadas paralelamente aos jogos, segundo proposta do autor. conhecimento da estrutura do sistema numérico “empodera” a criança para produzir procedimentos operatórios próprios, deveras ricos e criativos. Não apenas a leitura deste texto e as gravações do Salto para o Futuro alimentam nossas esperanças de um fazer diferente e melhor: a experiência e a construção coletiva com Se o sistema de numeração decimal os alunos e colegas professores da escola são acaba por se constituir em estrutura fundada fatores que podem ser a garantia da realização em agrupamento decimal, valor posicional e destas esperanças de que a aprendizagem do registro, podemos favorecer a construção de SND não se constitua em mais um obstáculo à proposta pedagógica a partir de jogos que têm alfabetização de nossas crianças. como regras o agrupar de dez em dez, o posicionar e registrar com algarismos que mudam O conjunto dos textos é concluído com de valor conforme a posição. Cristiano Muniz as contribuições de Eurivalda Santana, que nos mostra, em seu texto A criança se perce- põe acento à importância da resolução de pro- bendo como construtora do Sistema de Nume- blemas pelos alunos no ciclo de alfabetização, ração Decimal, como o professor pode ensinar com destaque aos papéis dos registros por eles aos seus alfabetizandos jogos matemáticos, realizados e para as trocas sociais. Eurivalda, apoiados nas regras do sistema. Desta for- no texto SND: conceitos matemáticos arti- ma, aprender a jogar o jogo do professor, culados com atividades pedagógicas ancora implica, em última instância, assimilar as suas colocações em importantes teóricos que regras do SND, a partir das quais a atividade apresentam conceitos para a compreensão lúdica foi concebida. dos processos de aprendizagem do número pelas crianças em contextos de quantificação. Com tais jogos, pensa-se na criança como protagonista da aprendizagem do SND. É possível também repensar a organização do para os alfabetizadores, fonte de consulta e trabalho pedagógico, favorecendo novas for- reflexão sobre melhores estratégias de media- mas de mediação pedagógica, de interações ção pedagógica na construção das estruturas em sala de aula, e mesmo formas alternativas do sistema de numeração decimal, consi- e importantes de se avaliarem os processos derando as crianças em alfabetização como de aprendizagem matemática, num ambiente efetivamente autoras de seus processos de pleno de trocas entre os alunos. Para a reali- aprendizagem e de atribuição de significados zação de tais jogos, materiais lúdicos passam ao número, suas estruturas e validação no a fazer parte do cotidiano pedagógico na al- contexto sociocultural. fabetização, assim como outras atividades, a Esperamos que esta publicação seja, 6 texto 1a M ediação P edagógica : uma via de mão dupla Elissandra de Oliveira de Almeida1 Dentre as muitas frases que se torna- professor como em direção ao aluno. Se por ram comuns entre nós, professores, quando um lado o professor parece não conseguir o assunto é dificuldade em Matemática, po- alcançar o aluno; do outro, o aluno, por ve- de-se destacar uma, que talvez ainda percor- zes, não consegue explicitar suas formas de ra muitas salas de aula: “Não consigo enten- pensar ou se sente inseguro, ou mesmo te- der o que foi que esse aluno não entendeu!” meroso, em se expor. A frase acima encerra um dilema que Parece que um impasse foi estabeleci- parece ainda não ter sido resolvido entre as do e que as possibilidades de solucioná-lo são partes do processo educativo, sendo elas a bastante limitadas, restando apenas manter a relação entre ensino e aprendizado, entre rotina padrão que se instaurou nas aulas de professor e aluno, entre saber ensinar e sa- Matemática: O professor dá um exemplo fácil na ber como se aprende. Não se trata de dizer quem é o culpa- do, ou quais são os culpados nessa história. Todavia, não se pode ignorar o fato de que há uma brecha na relação entre o ato de ensinar e o de aprender, o que acaba por aumentar ainda mais a lista de temores em relação ao ensino-aprendizado de Matemática. As dificuldades que se notam nes- se contexto apontam tanto em direção ao hora da aula, mas na hora da prova passa uma questão difícil. Daí, ninguém consegue resolver (Ricardo2, 15 anos). Ante o quadro exposto, é possível enu- merar algumas indagações: por que os professores de Matemática continuam afirmando que as dificuldades apresentadas pelos alunos são decorrentes da falta de atenção destes? Por que muitos alunos, em diferentes níveis de escolarização, chegam à mesma conclusão 1 Mestrado em Educação pela Universidade de Brasília. Professora da Secretaria de Estado de Educação do DF, Brasil. 2 Nome fictício. Transcrição do depoimento de um aluno do 1º ano do Ensino Médio. Relato obtido durante conversa informal sobre a prova de Matemática que fizera no dia 06/03/2014. 7 que Ricardo? Em que medida os professores Se essa análise tomar como ponto entendem a natureza dos erros apresentados de partida a dura realidade de muitas salas em Matemática pelos alunos? Em que mo- de aula, caracterizadas pelo alto número mento professor e aluno interagem de modo de alunos, professores com deficiências que o incompreendido, de ambas as partes, em seu processo de formação, escolas com seja esclarecido? estrutura física inadequada e sem suporte material suficiente, com certeza chegamos Tais questões apontam para a ne- ao fim da linha. cessidade permanente de se retomar a dinâmica da sala de aula, em busca de outro Entretanto, sem descartar a necessi- modo de se ensinar-aprender Matemática, dade e relevância de uma estrutura físico-ma- e de outro modo de se avaliarem as apren- terial que melhore as condições de trabalho, dizagens em Matemática. tomemos por matéria-prima a diversidade cognitiva presente nas salas de aula. Considerando-se a relação entre os conteúdos a serem ensinados e a duração Essa diversidade é facilmente iden- das aulas de Matemática, talvez alguns pro- tificada por meio das várias formas de os fessores, e até mesmo os próprios alunos, se alunos expressarem os seus modos de fazer comportem desconfiadamente quanto à pos- Matemática, ainda que se supervalorize tão sibilidade de se pensar uma estratégia que somente o registro escrito formal. modifique o quadro de descontentamento instaurado. Todavia, não dá para ignorar o fato Nesse caso, sendo o registro escri- de que a própria dinâmica estabelecida entre to formal produzido pelos alunos durante o ato de ensinar e o ato de aprender implica, as aulas de Matemática o suporte material obrigatoriamente, ainda que não se queira, no qual o professor assente primeiramente um conjunto permanente de transformações, suas considerações avaliativas, tal conteú- uma vez que o objeto do conhecimento é per- do já é suficiente para se redesenhar a di- cebido, sentido e concebido de maneiras di- nâmica das aulas. versas tanto pelo professor como pelo aluno. Sem a pretensão de apresentar um Mas de que maneira então poder-se-ia “modelo” de como dar aulas de Matemática mudar o quadro de descontentamento presen- ou uma “fórmula” para melhorar a intera- te nas aulas de Matemática? Como melhorar a ção entre professor, aluno e conhecimento relação professor-aluno de modo que um veja durante as aulas, a orientação que se segue no outro um parceiro na construção, sociali- deve ser apreendida tomando por referência zação e consolidação do conhecimento? as reais necessidades do ensinar e do apren- 8 der, de modo que seja viável mudar, concei- como estratégia indispensável às aulas de Ma- tual e substancialmente, o processo avaliati- temática, pois possibilita a troca de informa- vo presente nas aulas de Matemática. ções entre professor-aluno, aluno-professor O primeiro passo, a partir do qual todos os demais serão dados, está diretamente relacionado ao que fazer com a produção matemática dos nossos alunos. Transcender a correção das atividades para além do “certo” “ A mediação pedagógica precisa ser entendida, assumida e realizada como estratégia indispensável às aulas de Matemática, pois possibilita a troca de informações entre professor-aluno, alunoprofessor e entre alunoaluno.” e entre aluno-aluno. Ela favorece também a socialização de estratégias e permite uma melhor compreensão, especialmente por parte do professor, da produção escrita do aluno, oferecendo-lhe uma rica fonte de informações sobre as necessidades e “errado”, ainda tão de aprendizagem que comum, e identificar o aluno apresenta. 9 possíveis lacunas na aprendizagem, expressas pelos registros dos alunos, é fundamental Nesse sentido, a mediação pedagó- para o (re)planejamento das aulas. gica abre portas dantes fechadas. A primeira delas diz respeito à valorização do fazer a Segundo Pais (2006, p. 33), A diversidade da sala mostra diferentes ní- NIZ, 2004). Por conseguinte, revela em que veis de raciocínio, observação, argumenta- medida as metodologias de ensino atentam ção, análise, comunicação de ideias, formu- para os valores e objetivos da aprendizagem lação de hipóteses, memorização e trabalho em equipe. Cada aluno tem melhores condições de atender uma ou outra dessas ações, mas cada uma funciona como porta de entrada para a apreensão do saber. Matemática por parte de nossos alunos (MU- Aproveitar essa diversidade contribui significativamente para a realização da mediação pedagógica. A mediação pedagógica precisa ser entendida, assumida e realizada (PAIS, 2001). Contribui ainda para que o professor reveja seus conceitos avaliativos, pois muda o foco da avaliação centrado apenas na correção da resposta para a compreensão da lógica empregada pelo aluno (KAMII, 1990). Vale destacar também que a realiza- ção da mediação pedagógica permite abrir a porta que diz respeito ao direito que o aluno tem de ser ouvido, como já afirmara Paulo Freire (1996, p. 113): não é falando aos outros, de cima para trito Federal, oferece subsídios para que seja baixo, sobretudo, como se fôssemos os possível elencar algumas respostas às ques- portadores da verdade a ser transmitida tões apresentadas. aos demais, que aprendemos a escutar, mas é escutando que aprendemos a fa- Os resultados obtidos com a pesqui- lar com eles. [...]. O educador que escuta sa em campo permitiram identificar que aprende a difícil lição de transformar o o que estava sendo considerado “dificul- seu discurso, às vezes necessário, ao alu- dade” de aprendizagem, representava, na no, em uma fala com ele. verdade, uma não compreensão por parte do professor quanto aos procedimentos de- É a escuta sensível pautada na empa- tia que reconhece a aceitação incondicional senvolvidos pelas crianças (manifestação de esquemas mentais). do outro, que não julga, não mede, não compara, mas compreende o outro do ponto de Buscando, pois, entender a natureza vista do outro no lugar em que o outro se dessas “dificuldades”, mediante a realização encontra (BARBIER, 2004). da mediação pedagógica, foi possível identificar os conhecimentos prévios e as habili- Com base nisso, a realização da me- dades de que as crianças dispunham para re- diação pedagógica modifica tanto o compor- solver determinados problemas, bem como tamento do professor quanto ao saber ensi- ajudá-las a compreender melhor o sentido de nado, como modifica o comportamento do suas ações nas situações propostas. aluno em relação ao que é aprendido. Ela se torna uma via de mão dupla. Uma vez que, para a pesquisadora e professora, ficava claro como as crian- Mediação pedagógica: sinônimo de ças estavam aprendendo e construindo o acolhimento cognitivo conhecimento matemático, o enfoque de crianças com dificuldade para o entendi- O que fundamenta a concepção de crianças com dificuldades de aprendizagem? mento de crianças em situação de dificuldade foi redirecionado. Como atestar efetivamente que crianças tenham “dificuldades” de aprendizagem? O que é aprender? Como se aprende? tido, significa que podem existir lacunas, as Apresentar dificuldades, nesse sen- quais não devem ser identificadas tão somen Pesquisa realizada por Almeida (2006), te no processo de aprendizagem como se a em escola da rede pública de ensino do Dis- dificuldade fosse do aluno. Antes, porém, o 10 que os protocolos analisados mostraram é Somente por meio da realização da que tais lacunas não foram, na verdade, pre- mediação pedagógica que se faz pelo sentar enchidas durante o processo de ensino. junto, quando se reconhece a complexidade das produções das crianças, ao se oferecer Vejamos o protocolo de Joyce (nome estímulos ao aluno e pela sensibilidade em fictício). Essa aluna era considerada pela pro- ouvir a criança falar sobre a própria produ- fessora com muitas dificuldades na aprendi- ção – o que chamo de acolhimento cogniti- zagem. Com um percurso estudantil marca- vo - é que se constatou que Joyce empregou do por sucessivas reprovações, chegou à 3ª as regras ensinadas na escola para fazer o série, em 2006, com 12 anos de idade. cálculo. O risco feito sobre o algarismo 7 posicionado na unidade de milhar representa o “não deu, pede emprestado”. Figura 1. Joyce aplica a regra do “não deu, pede emprestado”. A análise da produção de Joyce per- mitiu identificar os seguintes aspectos: • A aluna aplicou a usual regra ensinada na escola “não deu, pede emprestado”, sem levar em conta os valores posicionais dos algarismos, isto é, na estrutura numérica; • O registro pictórico que aparece ao lado Mas não apenas isso, a realização da mediação pedagógica lançou luz sobre a produção de Joyce, ensinando à pesquisadora e à professora que primeiro seria necessário acolher o saber-fazer da aluna, aceitando nessa situação as falhas da avaliação empregada. Também revelou para ambas que Joyce não estava compreendendo a representação dos valores posicionais na operação. Por isso, ao fazer a subtração na or- do algoritmo registrado por Joyce é um dem da centena (4 - 8), retira do algarismo 7 indicativo de como ela pensou o procedi- (unidade de milhar) a quantidade necessária mento resolutivo da operação, revelando para completar as 8 centenas (4 + 4), sendo en- seu raciocínio. tão, possível, dar prosseguimento ao cálculo. Todavia, como avaliar o que Joyce Pelo que se pode apreender, funda- fez? Pautar a avaliação tão somente no re- mentalmente, a realização da mediação gistro escrito é suficiente para dizer o que pedagógica mostra que é necessária a re- a aluna sabe ou não sabe em Matemática? construção dos alicerces da avaliação que é Qual a necessidade de Joyce? feita (ou tem sido feita) nas aulas de Matemática. Basicamente ela desconstrói o muro 11 da supremacia professoral, em termos de detenção do conhecimento certo, exato e acabado, sem, contudo, retirar do professor a devida competência pedagógica e profissional, ao mesmo tempo em que desperta no aluno a necessidade de se tornar mais ativo no processo de construção do conhecimento, levando-o a refletir sobre a própria maneira de pensar, sem menosprezar o valor social dos conteúdos trabalhados. A realização da mediação pedagó- gica constitui-se, pois, em desafio para muitos professores porque não se trata inicialmente de ser feita “aluno a aluno”, no horário de aula (o que é realmente inviável), mas em ser qualitativamente praticada, aproveitando as várias e ricas oportunidades que a sala de aula oferece e gerando, ao final, benefícios para todos. 12 REFERÊNCIAS ALMEIDA. Elissandra de Oliveira. Como as crianças constroem procedimentos matemáticos: reconcebendo o fazer matemática na escola entre modelos e esquemas. (Dissertação de Mestrado). Brasília: Universidade de Brasília, 2006. BARBIER, René. A Pesquisa-Ação. Brasília: Liber Livro Editora, 2004. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 28 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996. KAMII, Constance. A criança e o número. 31ed. Campinas, São Paulo: Papirus, 1990. MUNIZ, Cristiano Alberto. A criança das Séries Iniciais faz Matemática? In: PAVANELLO, Maria Regina (org). Matemática nas séries iniciais do ensino fundamental: a pesquisa e a sala de aula. São Paulo: Biblioteca do Educador Matemático. Coleção SBEM. Vol. 2. 2004, p. 37-48. PAIS, Luiz Carlos. Didática da Matemática: uma análise da influência francesa. 2 ed. Belo Horizonte: Autência, 2002. ______. Ensinar e aprender Matemática. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. 13 texto 1b A criança ativa na construção do número no SND Sueli Brito Lira de Freitas3 é número. Seu papel está em promover siO que deve saber sobre números uma tuações desafiantes que levem a criança a criança que está no ciclo de alfabetização? agir a fim de compreender o que é número, O que pode ser feito em sala de aula? através de uma construção interna. Esta é Como integrar a Matemática com outras uma tarefa individual do sujeito em ação, áreas do conhecimento? mas que depende das propostas didáticas da professora. Então é Para iniciar nossa conversa é preciso dizer que a construção da ideia de número e sua utilização no dia a dia acontecem a partir da interação do sujeito com o mundo através das possibilidades de quantificar, enumerar, codificar, comparar, entre outras “ (...) uma professora não ensina o que é número. Seu papel está em promover situações desafiantes que levem a criança a agir a fim de compreender o que é número, através de uma construção interna.” atividades, ou seja, é preciso ofertar variadas atividades, com objetivos bem determinados, ao longo dos anos iniciais, para ajudar a criança a ter certo domínio da ideia de número. Esta compreensão irá se ampliando ao longo da vida escolar, em consonância com as propostas didáticas, de um nível para preciso estabelecer relações, num processo outro de ensino, tendo em vista a comple- de interação com outros sujeitos e objetos, xidade do conceito de número. para construir o conceito de número. Desta forma, uma professora não ensina o que 3 Mestrado em Educação pela Universidade de Brasília, Brasil. Professora da Secretaria de Estado de Educação do DF, Brasil. 14 O que sabe de número uma criança objetos que propiciem a aprendizagem dos de 2 anos quando mostra dois dedos para números: sucatas; coleções diversas feitas responder a pergunta “quantos anos você com a turma; fichas numéricas; cartazes tem?” Ou que recita de 1 a 10? Em um pri- com quantidades e registros corresponden- meiro momento pensamos: tão pequena e já tes, tanto nome quanto número; cartazes sabe mostrar que tem 2 anos ou já sabe con- com sequência numérica até 100; relógio; tar até 10. Como é inteligente! Realmente, as calendário; material dourado; jogos e etc., crianças são muito inteligentes e aprendem podem ajudar neste processo. quando estimuladas. Em 1999 conheci a caixa matemáti- A aprendizagem de número pres- ca com o Professor Doutor Cristiano Alber- supõe o uso da memória, seja para recitar to Muniz, da Universidade de Brasília. Ela uma sequência corretamente ou para iden- é formada por uma caixa com objetos que tificar um registro numérico, mas não so- ajudam na aprendizagem matemática: ré- mente. É muito provável que uma criança gua, sementes, coleções, fita métrica, tre- de 2 anos, ao responder a estas perguntas, na, palitos, ligas, dados, 3 conjuntos de fi- tenha recorrido chas numéricas de 0 a 9, material dourado, apenas à memória, não compreendendo o significado do número calculadora, calendário, relógio... Novos dois ou do que seja o dez. objetos irão compondo a caixa na medida em que vão sendo necessários para resolver O que representa o ‘dois’ da idade desafios propostos. A sugestão é que cada ou o ‘dez’ da recitação numérica? Ativida- criança da turma monte a sua caixa com a des que envolvam contagem, sequência nu- família e traga para a escola. Pode ser uma mérica, inclusão hierárquica, comparação, caixa de sapato, de ferramentas, de plástico, quantificação, correspondência biunívoca, como quiser. A cada proposta de atividade uso de simbologia, formação de grupos, va- matemática, a criança fica livre para usar os lor posicional e princípio aditivo são neces- materiais nela existentes, e então, procurar sárias para compreender nosso sistema de resolver as situações propostas. Ao manipu- numeração decimal e seus diferentes usos: lar o material, a criança tem a oportunidade o número como quantificador, como orde- de pensar para construir conceitos, seja de nador ou como código. número, geometria, medidas, etc. Não se trata de uma aula de demonstração em que A sala de aula deve se constituir a professora mostra o material, explica e faz num ambiente de alfabetização matemáti- perguntas às crianças, mas de a professora ca, um espaço em que a criança encontre provocar uma situação, e cada criança, a 15 partir das elaborações que possui e das ne- no colega; 3) as crianças em pé na roda cessidades que tem, utilizar as ferramentas e a primeira diz UM e senta, a segunda da sua caixa a fim de desenvolver soluções diz DOIS e senta, e assim até terminar ou, para os problemas apresentados. ao contrário, estão sentadas e vão levantando e dizendo a sequência numérica Ao utilizar os materiais da caixa, até terminar a contagem. Aqui fizemos com frequência, vai aos poucos se libertan- três sugestões que podem ser realizadas do deles, ou seja, vai passando da necessi- em momentos diferentes, observando as dade do concreto para a abstração. Quando necessidades da turma e sem nenhuma a criança diz que não precisa mais usar o confecção de material. Se uma criança material para resolver a situação significa está em dificuldade para recitar a sequ- que ela alcançou um nível de abstração. É ência numérica, numérica, faça com ela como se o material estivesse dentro da sua a sugestão número 2. Junto com a tur- cabeça e assim é capaz de visualizar solu- ma, ajude-a a recitar a ordem enquanto ções sem precisar dos objetos concretos. ela passa a mão na cabeça de cada colega Os materiais da caixa podem ser usados ou no ombro. Estas atividades ajudam na também em grupo. Jogos com palitos e da- contagem e na percepção de que existe dos são feitos em duplas ou grupos de até uma sequência numérica. As atividades 4 crianças. Eles ajudam a compreender os de contagem são imprescindíveis na al- agrupamentos que caracterizam o SND. fabetização matemática. Para nominar a quantidade de alunos da sala é preciso or- Vamos pensar algumas sugestões ganizar em grupos perceptivos no intuito de atividades simples e importantes para de quantificar. A contagem mais elemen- gerar ideias e favorecer a construção do tar é a de 1 em 1. As crianças usam os de- conceito de número: dos para contar, o que é muito natural e retrata uma herança cultural. Nosso sis- • Contar quantas crianças há na rodi- tema é de base decimal porque se baseia nha: 1) a professora vai passando a mão nos 10 dedos das mãos. Contar nos dedos na cabeça de cada criança e toda a tur- faz parte da aprendizagem matemática. ma pode contar junto; 2) uma criança vai passando e contando cada membro da rodinha apontando ou encostando a mão • Brincar de formar grupos com quantidades determinadas: a professora 2 No original: “students are also more motivated when the topics are personally interesting. There is considerable evidence that when students read materials they find interesting they comprehend and remember the material better”. 16 escreve, em folhas de papel ofício, núme- mal). Num primeiro momento as crianças ros de 1 a 10. As crianças ficam de pé vi- contarão de 1 em 1. Num outro momento radas para a professora que mostra uma farão contagem de 10 em 10. Cada saqui- ficha com um número, por exemplo, o 5. nho conta 10. Então, em dez saquinhos Elas devem formar grupos de 5 crianças. teremos quantas bolinhas? Elaborar situ- Esta atividade é para trabalhar a relação ações problema utilizando outras quanti- símbolo X quantidade. Ou seja, as crianças dades. Hoje formamos 6 saquinhos com identificam o símbolo 5 e imediatamente 10 bolinhas cada. Se fizermos 8 saquinhos formam um grupo de cinco se abraçan- com 10 bolinhas cada quantas bolinhas do ou dando as mãos. E assim com outros teremos? Quantas bolinhas faltam para números. ficarmos com 80? As crianças podem manipular materiais, desenhar, escrever, usar • Jogar queimada: a professora propõe registros numéricos, operar... o jogo e diz que precisa formar dois times e pergunta quantas crianças irão ficar • Usar jogos: jogos de memória, pega em cada lado, ou ao fazer a escolha dos varetas, dominó, jogos matemáticos pro- times, as crianças percebem se ficaram postos no material do PNAIC Matemáti- iguais, com quantos cada time ficou, se ca, entre outros, são procedimentos para algum time ficou com mais ou com me- provocar a aprendizagem de número. nos. Tudo isso pode ser discutido. Estabelecer relações de equiparação, onde tem mais ou onde tem menos são atividades importantes para compreender número. Como a compreensão da ideia de nú- mero pressupõe o processo de ação-reflexão-ação sobre os objetos, o trabalho com material concreto é imprescindível. O número • Fazer coleções: propor à turma fazer por si só não existe, é uma ideia, e esta ideia coleção de bolinhas de gude, por exemplo. para ser compreendida, experienciada, vivi- Pode-se ir juntando as bolinhas e fazendo da. O trabalho com materiais ajudará nesta contagem com seus respectivos registros construção que, com o passar do tempo, a cada dia. Desafios escritos podem ser será dispensável, assim que ocorrer o pro- elaborados pela professora para que as cesso de abstração. Então, a criança pensa crianças resolvam. Num dado momen- numa quantidade e é capaz de representá-la to, propor fazer grupinhos de bolinhas e mentalmente ou compreender o seu signi- colocar em sacos transparentes. Combi- ficado. Neste momento ela diz não precisar nar que cada grupo deve ter 10 bolinhas mais do material. Quem determina até quan- (princípio do Sistema de Numeração Deci- do a criança precisará do material concreto? 17 Ela mesma. Estando sempre com o material rado por eles. Para elaborar o cartaz fizeram ao seu alcance ela decidirá se precisará dele uso de medidas com a régua. Para utilizar o para resolver o proposto ou se poderá fazê-lo campo de areia da escola ao lado da nossa sem. As crianças seguem em tempos e mo- escrevemos uma carta à direção daquela ins- dos de aprendizagem de maneira diferente, tituição fazendo a solicitação de uso do cam- não sendo possível determinar que aprende- po de areia. Recebemos a resposta por meio rão as mesmas coisas ao mesmo tempo. de carta também. No dia marcado ocupamos o campo de areia. Crianças com trenas E como promover a aprendizagem do nas mãos para marcar o comprimento dos número? São diversas as propostas. Lembro- saltos, outras com pincel para anotar os nú- -me que uma vez desenvolvemos um projeto meros das medidas. Ao final, a comparação na época das olimpíadas na Grécia. Visita- entre os números registrados para determi- mos a embaixada, lemos textos informativos nar quem saltou mais longe e para qual equi- e literários, estudamos sobre a saúde dos pe iria a pontuação. A partir desta atividade atletas, entrevistamos um atleta olímpico vivenciada e discutida, outras foram sendo que morava em nossa cidade e foi estudante criadas para o registro das crianças: a resolu- da escola pública em que trabalhávamos, en- ção de situações problema sempre presente. fim, foram muitas as atividades. E onde fica o Muitas são as situações de vida que podemos número? O número apareceu quase sempre. usar para aprender conceitos matemáticos. Por fim, resolvemos fazer uma mini olimpíada: salto a distância, cabo de guerra, corrida, arremesso, etc.. Toda a proposta de como se- de Numeração Decimal pressupõe a compre- ria foi discutida em sala e as crianças se or- ensão de alguns princípios: Aprender números no nosso Sistema ganizaram: montaram equipes, produziram tabelas, prepararam materiais, realizaram a 1. Ser de base decimal: realiza agru- olimpíada, construíram as medalhas, enfim, pamentos de 10 em 10 e vai mudando confor- realizaram cálculos de pontuação para saber me a ordem. qual equipe estava na frente. Vamos detalhar uma das atividades 2. Basear-se na escrita de 10 símbo- los: os algarismos de 0 a 9. da mini olimpíada: o salto em distância. 3. Possuir valor posicional: o algaris- A turma foi dividida em equipes. Ha- mo recebe o valor da ordem que ocupa no via o representante de cada equipe que par- número. Ex: em 251, o 5 tem valor de 50; em ticiparia desta prova. O cartaz com a tabela 502, o 5 vale 500; em 35, o 5 vale 5. para anotar os resultados do salto foi elabo- 18 No trabalho com crianças, percebe-se ‘20+30=50 claramente a facilidade em operar quando se 50+30=80 tem uma boa compreensão dos números. A 80+30=110 forma como a criança compreende a estru- 1+8+1=10, e aí fica igual a 120’ tura numérica determina os modelos que irá desenvolver para dar solução aos problemas apresentados. Com isso, ao invés de imitar modelos prontos, ela mesma apresentará procedimentos operatórios próprios. Neste sentido cabe à professora pedir explicações sobre os procedimentos utilizados para que A explicação demonstra o domínio de número que ela possui. Sabe que o 2 e o 3 apresentam um valor posicional e ela soma-os com facilidade como 20 e 30. Sabe que ao somar 1+8+1 forma uma nova dezena que se junta ao 110 formando 120. tenha clareza de como a criança pensou para chegar àquela solução. E após isso, a pro- Outra criança da classe resolveu assim: fessora saberá como continuar provocando novas aprendizagens. Por fim, gostaria de refletir um pouco mais sobre o papel da professora em sala de 19 aula. Um exemplo poderá simplificar o que vamos dizer ao final. Ao somar alguns meses contro do que a escola ensina. A criança utili- do ano para saber quantos dias já haviam za o vai 1. Quando perguntada como resolveu passado, uma criança fez da seguinte forma: ela explica: 1+8+1=10. Vai 1. 1+3+2+3+3= 12. Seu modelo de resolução vai ao en- Então pergunto: e por que colocou este 1 aqui em cima do três? A resposta da criança é a seguinte: ‘porque minha mãe disse que tem que pôr’. A criança não utiliza a forma tradicio- Esta resposta me faz lembrar a nal ensinada pela escola, ou seja, não há re- criança de 2 anos que decorou a sequência gistro da reserva, portanto, o 1 acima do três até 10, que mostra os dois dedos para repre- na casa das dezenas não aparece. Uma pri- sentar a idade, mas que não compreende o meira leitura da professora pode ser a de que que está fazendo. a criança copiou de algum colega. Ao perguntar como resolveu, a criança respondeu: E agora, o que fazer? Que atitude a professora deve ter frente à justificativa da criança? O que ela faz é suficiente em ter- explicá-la ou a segunda que reproduz o mo- mos de aprendizagem matemática? Se não, delo escolar ensinado pela mãe? há algo a ser feito. Se não perguntássemos como resolveu, não saberíamos que ela ha- via apenas decorado um algoritmo. desafios às crianças e colocar certo ou er- Então, professora, não basta oferecer rado, é preciso compreender as estratégias Com isso, constatamos o quanto o diálogo professora-aluno deve ser a base da construção dos processos de aprendizagem mútua na aula de matemática, quando a fala, as trocas, os registros e as argumentações devem tornar a aula de Matemática viva, gerando um processo de aprendizagem com produções mais coletivizadas, num ambiente em que fazer Matemática não é por elas utilizadas para saber como estão pensando os conceitos matemáticos, quais suas necessidades, que intervenções serão necessárias para garantir aprendizagens que tenham significado. Assim com os números, assim com qualquer conceito matemático. Se considerarmos estes fatos como atividade solitária, mas de solidariedade en- verdadeiros, já é suficiente para mudarmos tre crianças e professora. Assim, as crianças a configuração de nossas aulas de matemá- aprendem matemática e a professora apren- tica assumindo os alunos como sujeitos ati- de a pensar novas organizações didáticas. vos em suas construções, nas suas formas de se apropriarem dos conceitos, de darem Apesar de o modelo ser o tradicio- significado aos números e suas formas de nalmente ensinado nas escolas, a criança operar com eles. Isso ressignifica o papel da não consegue explicar por que colocou o 1 professora alfabetizadora como organizado- acima das dezenas, não consegue compre- ra deste ambiente na oferta de situações ma- ender que aquele 1 representa um grupo de temáticas, na abertura aos diferentes regis- 10 unidades, e que por isso precisa compor tros, nas reflexões conjuntas, no confronto junto com as dezenas. de diferentes processos que irão enriquecer os saberes de cada uma das crianças que esTodas as duas chegaram à resposta tão em pleno processo de aprendizagem so- 120. Se fosse uma prova arriscaria dizer que bre os números e as situações que mobiliza. a primeira criança perderia ponto porque não colocou o 1 da reserva e a segunda com certeza ganharia um certo. E eu perguntaria: qual criança apresenta melhor estrutura de número, a primeira que possui uma estratégia própria de resolução e é capaz de 20 REFERÊNCIAS BOLETIM ELETRÔNICO SALTO PARA O FUTURO. Conhecimento matemático: desenvolvendo competências para a vida. Rio de Janeiro: TVEscola, março 2004. FREITAS, Sueli Brito Lira de. Da avaliação à aprendizagem: uma experiência na alfabetização matemática. 2003. 186 folhas. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Educação, Universidade de Brasília, Brasília, 2003. PAVANELLO, R. M. (org). - A criança das séries iniciais faz matemática? In: PAVANELLO, R. M. (Org.) Matemática nas séries iniciais do Ensino Fundamental: a pesquisa e a sala de aula. São Paulo: Sociedade Brasileira de Educação Matemática (SBEM), 2004. 21 texto 2a Pega Varetas: construção da noção de valor para a aprendizagem do SND Ana Maria Porto Nascimento1 Em nossa vivência com as crianças percebemos as dificuldades de compreen- rentes valores, a depender da posição que ocupa na estrutura do número. der os conceitos que constituem o Sistema de Numeração Decimal. Esse é resultante A criança, inicialmente, centra-se na de um sistema de relações e generalizações contagem um a um e será preciso explorar contido nas palavras: “Sistema”, “Nume- atividades de agrupamentos e trocas para ração” e “Decimal”. É preciso entender o que seja estruturada a ideia de um agrupa- significado dessas três palavras para com- mento conter dez, e esse dez pode ser re- preender o conceito de Sistema de Numera- presentado por um objeto de cor diferente, ção Decimal. E, mais, esse conceito foi ou é como ocorre no dinheiro chinês. Concorda- determinado por um processo histórico cul- -se com a afirmação de Muniz (2001), qual tural, em que os diversos grupos culturais seja: “Quando a estrutura requer a compre- e as diferentes civilizações foram selecio- ensão de valor, de grupo, muitas crianças aca- nando o que era relevante. Seu significado bam tendo por obstáculo de aprendizagem a é fornecido ao sujeito pelo seu grupo cul- compreensão de que um dígito pode assumir tural, em um processo constante de signi- valores diferentes.” Assim, propõe-se, para- ficação e ressignificação operado em suas lelamente às atividades mais estritamente relações com os objetos de conhecimento. associadas à estrutura do sistema de nume- A ideia de sistema supõe um conjunto de ração decimal, atividades lúdicas que possi- regras que envolve a escrita das quantida- bilitem a ampliação da noção de quantidade des e tem como base os agrupamentos de para a ideia de quantia, onde o valor assumi- dez. Para compreender isso, deve-se enten- do é fundamental na contagem. der a noção de valor posicional, criada pelo homem para facilitar o registro de grandes quantidades com o uso de poucos símbolos. de alfabetização matemática e tomar cons- Um mesmo símbolo pode representar dife- ciência da necessidade de auxiliar a crian- 1 O professor, ao estudar o processo Mestrado em Educação pela Universidade de Brasília, Professora da Universidade Federal do Oeste da Bahia. 22 ça na construção dessas noções essenciais, ção de acordo com as cores foi registrada no quadro; Uma folha em branco para registro foi entregue a cada aluno; A professora explicou o procedimento, como seria o jogo em duplas e, em seguida, o registro poderá promover atividades lúdicas, como: jogo de cartas, tiro ao alvo, boliche, entre outros. Aqui, trataremos mais exclusiva- mente do jogo de pega varetas, onde cada do total de pontos. vareta tem um valor de acordo com sua cor (como ocorre com o dinheiro chinês). Ao percebermos a dificuldade em copiar o nome das cores, fizemos um car Os relatos seguintes fazem parte de uma pesquisa realizada em uma turma de alfabetização. Entre as atividades propostas à turma de alfabetização, destaca-se o jogo de pega varetas. É um jogo bem conhecido pelas crianças, de fácil aquisição e aparentemente taz em que aparecia o nome da cor e um quadrinho colorido correspondente (Anexo B) e a pontuação. Assim, os alunos não precisariam preocupar-se em copiar, seria uma dificuldade a menos. simples. Mas, para crianças de seis anos de Quando todos terminaram e se cansa- idade, a construção da relação de valores foi ram de jogar, sugerimos que fosse feita uma avaliação da atividade. A maior parte da turma disse que tinha sido boa, mas que é difícil anotar. Outros disseram que é difícil fazer as continhas.” um obstáculo. As crianças encontravam-se envolvidas na aprendizagem dos números e da sequência numérica e foram desafiadas pelo jogo de pega varetas a fazer a contagem de pontos considerando o valor “relativo” de cada vareta, que variava de acordo com a cor. Os relatos mostram a dificuldade em “olhar para uma vareta” – “ver uma vareta” e fazer um registro, uma representação mental de que o total de pontos obtidos será dois, três, quatro, cinco ou dez, de acordo com a cor da vareta. A ideia de que um objeto único pode ter valores diferentes impôs ao grupo a construção de novas estruturas mentais e gerou a necessidade de utilizar um recurso mediador, no caso, os grãos de milho. Isso será detalhado no texto que segue. A professora propôs a realização do jogo, executando-se a seguinte seqüência: A turma foi dividida em oito grupos; A pontua- Extrato do diário de campo: Quando nos reunimos, avaliamos as maiores dificuldades no desenvolvimento da atividade: os alunos não sabem ler o nome das cores; sentem-se muito inseguros em relação à escrita dos números; ainda não conhecem suficientemente o jogo; teriam de contar as varetas e associar, a cada grupo de cores, determinado valor que seria resultante de uma multiplicação (4 varetas amarelas = 4 de 5 = 20 pontos) ou uma adição de parcelas iguais (5 + 5 + 5 + 5 = 20); as crianças, apesar de estarem sempre sentadas em grupo, não sabiam trabalhar em grupo, não demonstravam uma atitude colaborativa. 23 1º. Brincar livremente; cada cor da vareta ao seu valor (Vermelha 2º. Anotar a cor e a quantidade de varetas = 2 pontos). correspondente a cada cor; Na aula do dia 20 de novembro, apresen- 3º. Contar os pontos; relacionar: cor/quanti- tamos no quadro uma tabela semelhante a que seria entregue aos alunos, mas que estava preenchida. Explicamos que aquela situação não era real, pois era quase impossível que todos os alunos obtivessem o mesmo resultado no jogo, mas, para que todos pudessem acompanhar uma situação, registrar a quantidade de varetas, anotar a soma dos valores e calcular os pontos obtidos em cada cor, iriam fazer de conta que todos haviam conseguido a mesma quantidade. dade/pontuação correspondente a cada cor. Algum tempo depois, distribuímos vasilhames com alguns lápis nas cores das varetas, um vasilhame para cada grupo e uma folha para registro espontâneo. Extrato do diário de campo: As atividades com o pega varetas continuaram e foram sendo aprimoradas, sempre considerando o envolvimento, o Assim, por exemplo: interesse e também os questionamentos dos alunos. Ouvir suas hipóteses e observar suas estratégias de contagem nos ensinou muito sobre sua aprendizagem. Seguem alguns registros: CORES QUANTIDADE DE VARETAS VALORES PONTOS VERMELHO I I I I I 2 + 2 + 2+ 2+2 10 VERDE I I 3+ 3 6 Colocamos à disposição dos alunos palitos de picolé e de fósforo para auxiliar na contagem. Professora e alunos resolveram juntos a operação. Quando terminamos de discutir com eles com a “tabela simulada”, entregamos uma tabela em branco, em que deveriam registrar o jogo, anotar a soma dos valores e calcular o total de pontos em cada cor. Ressaltamos que um número reduzi- Extrato do diário de campo: do de alunos fazia os cálculos sem registro. Durante o período de recuperação, Assim, colocamos mais uma coluna na ta- em que estavam na sala apenas 11 alunos, bela (valor da vareta) para tentar diminuir as atitudes de colaboração entre eles foram a dificuldade demonstrada por grande parte mais intensas, percebia-se uma vontade da turma, que ainda não conseguia associar de ajudar o colega e, ao mesmo tempo, de 24 mostrar o que já sabiam. O fato de estarem aprendendo, construindo novos conceitos numa melhor visualização, possibilitando e superando as dificuldades causava muito a construção de imagens que foram dando entusiasmo. Teriam nova oportunidade de suporte aos novos esquemas mentais que aprender a sequência numérica, lidar com estavam sendo construídos, ou seja, opor- quantidades, realizar contagens, estabele- tunizando a construção da ideia de que 1 cer relação de valores, escrever as somas e representa 3, gerando o conceito de quan- calcular o total de pontos. A disponibilização dos grãos ajudou tia, tão importante no processo de alfabetização matemática. Vimos que, em algumas situações de contagem, eles deixavam de fazer a correspondência biunívoca entre o grão apontado e o número falado. A atenção dos colegas estava sendo importante, pois ao perceberem o “erro”, eles diziam e apontavam: ‘Você esqueceu este..... conte de novo. Para não os esquecer, esforçavam-se para contar bem lentamente, colocando o dedo sobre cada grão.” Colocamos à disposição dos alunos palitos de picolé, palitos de fósforo e grãos de milho para auxiliar na contagem. Assim, se eles tiravam quatro varetas verdes ( valor 3) deveriam arrumá-las como na figura 1. A manipulação de material contribuiu para a construção das relações necessárias à compreensão da correspondência 3 para 1 ( 3 para cada uma vareta). Figura 1 Em outra sequência de atividades, eles estavam fazendo a contagem das varetas azuis. Primeiro, olharam o registro na tabela, colocaram as varetas azuis da Sam (07 anos) sobre a mesa (oito varetas). Cada vareta azul tinha valor 4. Vimos: A contagem feita por Daí (08 anos), de 1 a 24, não apresentou problemas. Quando chegou no 24, ela disse: “24, 31, 32, 33...” Pedimos que tentasse novamente. Ela recomeçou: “24, 41, 42...” Wand1 interferiu dizendo que estava errado. Olhou para mim e disse: “Tia, ela saiu do 24 e foi para o 41, 42, 49..?” Sugerimos que eles voltassem: “Ela estava no 24, então ajudem-na. Recomece daí bem devagar.” Ela recomeça colocando o dedo sobre o grão que correspondia ao 24 e disse 23. Wand1 (07 anos) disse impaciente: “É 24, menina!!” Enfim, eles decidem contar juntos e chegam até o 29. Mas ainda faltaram três grãos. Sugeri que arrumássemos novamente, colocando os grãos próximos às varetas, formando grupos de 4. Eles recomeçaram. Novamente Daí (08 anos) diz a sequencia correta até o 25, então “pula” para o 29. Wand1 (07 anos) diz interrompendo: “Você pulou para o 29, agora é o 26!!”. Eles continuaram contando juntos e chegaram até o 32. Essa sequência se repetiu com outros alunos. 25 Extrato da transcrição da fita de vídeo n. 01: Destacou-se também o momento em que a professora colocou a escrita dos números: 10, 20, 30, 40, 50, 60, 70 e 80 em cartaz e observamos que a Mael (06 anos), uma menina muito tímida que quase não falava durante as aulas, nos últimos dias antes do período de recuperação, sempre Então teria nova chance. Eles diziam que ela deveria colocar o dedo sobre o grão, um de cada vez. Extrato da transcrição da fita de vídeo n. 02: As situações do jogo de pega varetas envolveram-nos em problemas de contagem que, como descreve Nunes (1997, p. 36), é uma operação complexa: se levantava para ajudar a mostrar como se escreviam as dezenas exatas. Assim, sempre Quando as crianças começam a contar, elas têm que aprender sobre um sistema que é, em parte, uma expressão de leis universais sobre o mundo e, em parte, um feixe de invenções convenientes porém arbitrárias (...) Elas têm de lembrar os nomes dos números; elas têm de contar cada objeto em um conjunto, uma vez e apenas uma vez; elas têm que entender que o número de objetos no conjunto é representado pelo último número que produzem quando contam o conjunto. Em outras palavras, elas têm que aprender a fazer isso adequadamente. que alguém perguntava como se escreve 45 (40 + 5) ela apontava para o número 40 no cartaz. E durante as aulas de recuperação ela continuou colaborando na descoberta das regularidades da sequência numérica, na contagem e na escrita dos números. No grupo víamos o Rob (10 anos), a Daí (08 anos), a Sam (07 anos), o Wand1 (07 anos). Inicialmente eles jogavam e pegavam as suas varetas, anotavam na tabela “ampliada”. Quando todos registravam, iniciava-se a contagem de pontos. Os grãos estavam disponíveis em um pratinho sobre a mesa e os algarismos com os valores de cada vareta também. Eles olhavam na tabela, começando pela vareta vermelha: dispunham as varetas sobre a mesa, colocavam a quantidade de grãos correspondente a cada vareta, contavam o total....1, 2 (1ª vareta), 3, 4 (2ªvareta), 5, 6 (3ª vareta) e assim sucessivamente (...). Na contagem das varetas verdes vimos que o Rob (10 anos) contou e o resultado foi 15, a Sam (07 anos) contou e deu 15, mas quando a Daí contou o resultado foi 12. Perguntamos o que poderia ter acontecido. Eles disseram: “- Ela saltou algum”. Considerando o relato de Vergnaud (1996) sobre o estudo do desenvolvimento de um conceito, procuramos observar o sujeito em ação. O jogo de pega varetas exigiu, entre outras ações, a de contar, e possibilitou ao aluno o aprendizado e o desenvolvimento das habilidades enunciadas por Nunes (1997). Numa dada situação, segundo Mu- niz (2001c, p.3): muitos conceitos matemáticos e não matemáticos aparecem de forma integrada e perpassando uns aos outros. A 26 situação dá vida e sentido aos conceitos, os crianças, às vezes, mudam a estrutura lúdi- quais não existem e não têm sentido de for- ca do jogo em função das suas expectativas ma isolada nem fora do contexto da ação. sobre suas competências e habilidades na realização de uma atividade, mas as mudan- A ação de con- tar para descobrir o total de pontos em uma jogada possibilitou a mobilização do campo conceitual das estruturas aditivas. Enfatiza-se que tal “A ação de contar para descobrir o total de pontos em uma jogada possibilitou a mobilização do campo conceitual das estruturas aditivas.” contagem está apoia- ças na estrutura lúdica não eliminam as atividades matemáticas. Elas apenas tomam formas diferentes. A atividade matemática está ricamente presente no jogo realizado da na noção de valor, o que se apresenta pela criança (...) Os estudos sobre as rela- como um desafio no processo de alfabeti- ções entre jogos e aprendizagem matemá- zação. Eles faziam a correspondência do tica têm apontado para o grande potencial número de grãos de acordo com a cor da educativo das atividades lúdicas, em que as vareta, contavam o total de grãos em cada crianças podem agir de maneira mais autô- cor, juntavam todos para totalizar os pon- noma e confrontar diferentes representa- tos em uma jogada. Comparavam as dife- ções acerca do conhecimento matemático. rentes quantidades obtidas pelos colegas (Muniz, 2001, p.61). do grupo para saber quem obtivera o maior número de pontos. Observamos que, ao iniciarmos as atividades com o pega varetas, o interesse Na ação de jogar, tiveram de criar es- era brincar, ou seja, alterar a estrutura rí- tratégias que permitissem “pegar” uma va- gida da aula. Ao perceberem que, além do reta sem “mexer” as que estavam próximas. brincar, existiam possibilidades de aprender Isso exigiu a construção de algumas relações conceitos matemáticos, eles começaram a espaciais: observar a disposição das varetas questionar: “Que número vem agora?”, “Estou sobre a mesa, tentar pegar as mais afastadas, no 32, e agora?”, “Como se escreve 58, tia?”. considerar a distância entre elas, etc. Alguns começaram a pedir ajuda em casa para aprender o nome dos números. Em uma discussão sobre possibilida- des e limites dos jogos para a aprendizagem da Matemática, Muniz (2001a) nos diz que as dáticas propostas, ocorreram o que Brous- Acreditamos que nas situações di- 27 seau (1996) chama de devolução, porque os alunos tomaram para si os desafios. Várias situações didáticas ocorreram quando eles se mobilizavam para saber o que poderiam conseguir naquele jogo e, independentemente da ordem do professor, buscavam meios de aprender a sequência numérica, a relação de valor, exercitar a contagem e totalizar os pontos. 28 REFERÊNCIAS BROUSSEAU, G. Os diferentes papéis do professor. In: PARRA, C. SAIZ, I. (Orgs.) Didática da Matemática: reflexões psicopedagógicas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. MUNIZ, C. A. Educação matemática na educação infantil. Faculdade de Educação. Brasília: UnB, 2001. NUNES, T. e BRYANT, P. Crianças fazendo Matemática. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. VERGNAUD, G. A trama dos campos conceituais na construção dos conhecimentos. Revista do GEEMPA, p.6-19.1996. 29 texto 2b O ensino do Sistema de Numeração Decimal Nilza Eigenheer Bertoni2 Apesar da opção, nas propostas e prá- tentar entendê-los por representações. O mes- ticas elaboradas ao longo de anos de atividade mo deve ser feito para o sistema de numera- profissional, pelo uso de materiais didáticos, ção decimal, possibilitando um reconhecimen- somos levados à integração de algo novo. to estruturado e quantificador desse sistema em si, em visualizações e mentalizações que Mesmo com uma razoável dose de re- favoreçam comparações e cálculos. Essas con- flexão sobre os materiais e seus resultados, e siderações conduzem à justificativa de novas buscando que fossem um elo entre as vivên- ênfases que concebemos em nossas propostas, cias no cotidiano e o encaminhamento para e foram narradas, com relação a frações, em ideias mais elaboradas da Matemática, per- Bertoni (2008). Com relação ao SND, preten- cebemos que o uso precoce do material pode demos narrar e expor ideias neste texto. Existe tolher um conhecimento mais vivo da realida- uma lacuna: se a contagem tem raízes eviden- de matemática que impregna o mundo e as tes na realidade, o SND não tem. Mas ele tem relações humanas. Esse fato é minimizado na articulações, principalmente com o sistema aprendizagem dos números naturais, se priori- monetário. Nosso intuito não é apenas de es- zamos materiais soltos, como tampas e canu- tabelecer ligações com o cotidiano, mas, mais dos, que as crianças contam e passam a juntar do que isso, buscar um enraizamento em si- em recorrentes grupos de dez, para facilidade tuações e demandas do cotidiano na direção da quantificação; e é mais acentuado no caso da Matemática, que impregnam a sociedade de frações, geralmente feito com uso de fichas e que os homens devem conhecer para viver inteiras e em partes, que não refletem objetos nela. Podemos falar em um apoio realístico nem atividades do cotidiano. para a proposta. Seria um chão a percorrer propositadamente com poucos materiais, ape- Assim, consideramos relevantes vivên- cias mais reais sobre esses números, antes de 2 nas aqueles que se tornam naturais e necessários nas atividades, de forte cunho cotidiano. Doutor Honoris Causa pela Universidade de Brasília (2010). 30 As ideias fundamentais para o conhe- cimento do SND são bem conhecidas: a per- mudança de colunas, é sonegar à mente infantil a realidade de um mundo fabuloso. cepção da importância de agrupamentos de potências de 10 para contar e avaliar quan- tidades; o reconhecimento, na composição sistema, a criança percebe a importância de um número, de posições dos algarismos de alguns objetos que serão intrínsecos à para indicar cada tipo de agrupamento; além essa construção: as quantidades dez, cem, do papel chave do zero. A nosso ver, elas são mil, atraem-na de modo especial, mesmo imensamente úteis para o entendimento representacional desse sistema, mas ainda não são suficientes para que as crianças possam Antes de começar a entender esse “O sistema de numeração decimal constitui-se em um arcabouço estrutural para o universo dos números naturais.” isoladas, sem cone- xão com a estrutura das quais serão peças-chave. A criança, com apenas cerca de ano e meio, já conta atabalhoada um – dois – cin- configurar co – DEZ! - colocando mentalmente um panorama desse sistema. ênfase e alegria ao pronunciar o final. No O Sistema de Numeração Decimal, a criança e sua relação com ele caso de ir mostrando, desordenados, os dedos das mãos, sabe que o dez corresponde ao completamento daquele pequeno mun- O sistema de numeração decimal do de todos os dedos expostos. constitui-se em um arcabouço estrutural para o universo dos números naturais. Sua apren- Em crianças por volta de 5, 6 e pouco dizagem é construída a partir de experiências mais anos, o fascínio começa a ser pelo cem, do cotidiano, estruturação numérica, visuali- o mil, o milhão. Nessa época, geralmente a zações, mentalizações, percepção de quanti- professora está trabalhando as unidades ou dades que são vigas e amarras sustentatórias, algumas poucas dezenas. Ou seja, profes- tudo isso podendo refletir-se em uma escrita sores e livros querem ensinar o sistema de numérica, capaz de expor um pouco, sem des- numeração decimal passo a passo, de modo velar totalmente, a riqueza do universo numé- controlado e sequencial, fazendo uso, ou rico modulado e estruturado na base decimal. não, de material concreto. Mas isso é tolher o entusiasmo e o interesse infantis, reter as Assim, querer reduzir essa riqueza de crianças em partes tediosas ou não tão inte- conhecimento às regras da escrita numérica, ressantes do sistema. Mais ainda: é querer fa- ao conhecimento do C–D–U, ou à ênfase na zê-las registrar no plano uma estrutura que 31 ainda não percebem bem, ou querer que co- Assim, antes de qualquer introdução nheçam essa estrutura por meio das sombras forçada a um termo pouco usado na vida numéricas que elas projetam na folha escrita. real, impõe-se uma convivência lúdica com os “dezes”, o que pode ser feito, por exem- A escrita numérica decimal dos nú- plo, pela atividade a seguir. meros naturais impõe uma estrutura no universo linear e pulverizado desses números. Quantos somos hoje? Uma estrutura que se revela imensamente útil em prover uma escrita para eles, mas partir dos 4 ou 5 anos, a ser feita uma ou que, para isso, deve ser vislumbrada an- duas vezes por semana, em sala de aula. teriormente a essa escrita. A intenção de A professora diz que os alunos irão verifi- construir na criança esse conhecimento de- car quantos estão na sala, mas combina manda um olho atento para os interesses de contarem de dez em dez. À medida que demonstrados por ela pelas quantidades- ela aponta os alunos sucessivamente, eles -chave dessa escrita. Implica muita paciên- se contam: o primeiro diz “um”, o seguinte cia para não querer impor logo tudo que, “dois”, até o que diz “dez” (em poucos dias, para os adultos, é tão óbvio. Implica saber farão isso comandados por um dos cole- dar insights até onde for possível, fazendo gas). Nesse momento, todos os contados se preenchimentos gradativos de lacunas ou juntam, formando um grupo compacto em interrogações. Algumas possibilidades nes- torno do que falou “dez”. Eles gostam de ser sas direções são apresentadas a seguir. o número dez, constroem essa expectativa Trata-se de atividade adequada a na contagem, criando certo clima no “oito”, A estruturação dos números naturais, como pode ser vista em seres e objetos da vida “nove”, e finalmente “dez”. Permanecem assim unidos e a professora aponta o seguinte, que recomeça a contagem do “um”, até chegar novamente ao “dez”, quando A vivência dos sucessivos dez formarão um segundo grupo. Formados to- As crianças que têm o inglês como lín- dos os grupos, podem restar alguns alunos. gua materna são mais felizes que as nossas Eles se contam do mesmo modo, mas não – elas falam ten para o dez e têm o plural tens formam grupo. O último poderá ser qual- para ele. É como se nossas crianças pudessem quer número entre um e nove. Ou zero, se falar em “dezes”. As crianças de lá não têm não houver ninguém fora dos grupos. uma palavra matemática para o dez, como nós temos o vocábulo dezena. Para elas, o ten da vida é o mesmo ten da Matemática. A professora explica que esse resul- tado será marcado em um placar na pare- 32 de – um dispositivo formado por dois bolsos com as fichas 3 e 4, o aluno pode reco- transparentes lado a lado, onde podem ser nhecer imediatamente que o 3 indica o nú- inseridas fichas numéricas de 0 a 9. No bolso mero de grupos de dez alunos e o 4 indica da esquerda, vai uma ficha marcando quan- alunos fora dos grupos, independente do tos grupos foram formados. No bolso da di- manuseio de material ou dos agrupamen- reita, a ficha colocada deve indicar quantos tos feitos anteriormente. alunos ficaram fora dos grupos, ou “soltos”. Tudo o que se sabe é que indicam, por exem- Esse conhecimento de que os pe- plo, dois grupos de dez e sete soltos. Algum núltimos números representam as quan- aluno poderá reconhecer a representação e tidades dez, vinte, etc (sem passar pelo dizer que são vinte e sete. A professora pro- conceito de dezenas) foi demonstrado pelo põe que contem o total. Ela dará sustentação Evanilson, testemunhado e narrado por à contagem linear, orquestrando o coro, que Nascimento, 2002. O menino, espevitado e alguns sabem, outros não. É o momento de de 6 anos, foi posto em situação de calcu- fazer uso da sequência numérica decorada, lar o resultado de uma adição do tipo sequenciada, que se diz mesmo cantada, tão ao gosto das crianças (e também de muitos 33 pais). Ao contrário da cantilena por si, a contagem sequenciada, nesse momento, começa a dar sentido aos nomes pronunciados. Partiu resolutamente do 2, no nú- Os alunos percebem que, no primeiro grupo, mero 28. Disse 20 e subiu na vertical, pro- contam de 1 a 10; no segundo, começam do 11 curando outras quantidades a adicionar. e atingem o 20; depois, vem o 21, o 22, etc. Encontrou 30, 10 e 30 e já foi adicionando e dizendo os resultados: 50, 60, 90. Lá em Aos poucos, percebem a sequência cima, virou-se para a esquerda e começou a do dez e do vinte, entendendo que são co- descida adicionando cada quantidade, com locados dez a mais. A professora pode falar ligeiras paradas e contagem nos dedos: 92, em salas grandes, onde muitos grupos de 97, 103, 107, 115. Pronto! dez são formados, e introduzir aos poucos a contagem das dezenas que vão aparecendo. Essa é a ideia central desse texto: an- tecipar com atividades mais reais a vivência Uma aprendizagem importante de- de agrupamentos com material manipulati- corrente dessa atividade é a interpretação vo. Com isso, chegar à mentalização do SND correta do valor dos algarismos, em um associado a quantificações no mundo. número com dois deles. Olhando o placar Como atividades complementares já conhecem – formando vinte, trinta, ... para a vivência dos sucessivos dez, pode- noventa e depois? Será um ótimo momento -se providenciar vendinhas, com dinheiro para descobrirem, ou aprenderem, que dez de mentirinha, feito de notas de dez reais notas de dez formam 100. e moedas de 1 real, com a finalidade de entender o significado dos preços. O aluno é convidado a pegar a quantia correspondente a um preço. Mais do que nunca, o professor precisa de paciência. Aprender a conter-se para não dizer o que deve ser feito, seguido do indefectível não é? - como se o aluno já soubesse tudo que o professor lhe diz. Crianças pouco acostumadas ao manuseio do dinheiro hesitam ao pegar a quantia indicada pelo preço – podem ser tentadas a pegar, na caixa de moedas de 1 real, de uma em uma, até formarem o preço indicado. A professora pode indagar se ele não poderia usar notas de dez, e deixá-lo pensando, se for o caso. Aos poucos, a analogia de dois algarismos lado a lado, como no Quantos somos hoje? transfere-se para a leitura de preços. Serão alguns grupos de dez e alguns soltos. A vivência dos sucessivos cem Um comentário de aluno sobre algo comprado pelos pais, por uma quantia como cento e oitenta reais, mesmo antes da aprendizagem formal do cem, pode propiciar um insight, sem maiores aprofundamentos, sobre essa quantidade. Eles têm a caixa com notas de 10 e moedas de 1, e podem ser instigados a tentar tirar da caixa essa quantidade. Se algum aluno disser que é necessária uma nota de cem reais, pode-se questionar se é possível pagar, mesmo sem ela. Aos poucos, eles juntarão os dez como Além de cédulas, pode ser manipu- lada a corrente/colar inspirada em Maria Montessori (1934) formada pela junção de dez pulseiras de dez contas cada, que eles próprios devem construir, aos poucos. A adequação ao menino ou a menina pode ser feita pela cor e tipo da conta, ou pela agregação de um pingente apropriado. Aos 5 anos, eles ou elas já expõem com orgulho: “Sabe quantas contas tem na minha corrente (ou colar)? São 100!”. Incansavelmente, dispõem-se a recomeçar a contá-las. Se não ocorreu antes, em algum momento, ocorre a descoberta: o cem é dez de dez. Mencionar mercadorias que custa- ram algumas centenas de reais é propício à exploração dos sucessivos cem, ainda que o aluno não saiba ler a quantia 645, nem saiba que o pagamento desse preço envolve 6 notas de cem, ou seu equivalente. Pode ser lembrada a atividade Quantos somos hoje? Lá, se chegam a formar dez grupos de 10, esses alunos formarão um grupo maior, e já contaram que a quantidade total nesse grupo é cem, e que ele será representado em um novo bolso, à esquerda dos outros. Se o placar da atividade indicasse 145 alunos, como seriam os grupos formados? E se os alunos formassem 2 grupos de cem? Ou 6 grupos de cem? Por analogia, os alunos percebem que a quantia 645 indica 6 vezes a 34 quantia cem, 4 vezes a quantia 10 e 5 vezes a quantia 1. Isso deve ser verificado, tomando-se notas progressivamente e formando as quantidades cem, duzentos, ..., seiscentos, seiscentos e dez, seiscentos e vinte, até seiscentos e quarenta e cinco. Em uma primeira vez, o que ocorre na sucessão pode ser apenas mencionado: depois do cem, tem que formar outros dez de dez para formar mais cem, e aí, quando formar duas de cem, o número chama-se duzentos (o que é muito diferente de dizer “depois do 100 vem o 200”). O uso de dois colares, dos já mencionados, permite a observação de que no primeiro há cem contas, depois vem o cento e um, cento e dois, ... até o cento e dez (ao fim da primeira pulseirinha); depois o cento e onze, cento e doze, ... cento e vinte (ao fim da segunda pulseirinha, ou do segundo grupo de dez). Uma grande descoberta será a de que a quantidade mil corresponde a dez de cem. O que estamos construindo, na men- te infantil, é uma estruturação no universo infinito da sucessão de naturais, fazendo-os perceber as “marcas” de dez, e, a partir delas, as de cem, mil, etc., com seus acúmulos e números intermediários. Algo que lhe dará uma sensação de conhecido ou significativo ao acumular unidades de material concreto para formar essas marcas, e lhe propiciará presteza em cálculos mentais com números maiores, porque a estrutura relacional entre os números está configurada em sua mente. 35 REFERÊNCIAS BERTONI, Nilza Eigenheer. A Construção do Conhecimento sobre Número Fracionário. In BOLEMA: Boletim de Educação Matemática, Ano 21, n. 31. Rio Claro: UNESP, 2008. MONTESSORI, Maria. Psico Aritmética. Barcelona: Araluce, 1934. NASCIMENTO, Ana Maria Porto. A pesquisa como instrumento de mediação num ambiente de aprendizagem matemática: aprende a criança, aprende a professora e aprende a pesquisadora. (Dissertação de mestrado). Faculdade de Educação, Universidade de Brasília. Brasília: Mimeo, UnB, 2002. 36 texto 3a A criança se percebendo como construtora Sistema de Numeração Decimal do Cristiano Alberto Muniz 1 Como tratado nos textos anteriores sua presença no mundo do comércio, espor- desta proposição de alfabetização matemática tes, jogos, meios de comunicação, dentre ou- nos anos iniciais, o ensino do Sistema de Nu- tros, devem ser matéria prima para o trabalho meração Decimal não pode ser sintetizado na pedagógico voltado à aprendizagem escolar transmissão mecânica e sem significados de no Sistema de Numeração Decimal. Assim, a estruturas, tais como as ordens, classes, valor criança vivencia, em sala de aula, práticas e re- absoluto, valor relativo, imposição de termi- flexões sobre os números, já presentes em seu nologias como milhar, centena, dezena e uni- cotidiano, o que permite, a cada uma, levantar dade, assim como não podemos mais aceitar hipóteses sobre suas escritas e leituras, seus que alfabetizar em matemática implique na significados diferenciados em cada contexto redução ao objetivo de “escrita por extenso” de uso e sua apropriação pelo sujeito social. dos números e saber decompor em ordens e classes de forma estática. Refletir sobre as práticas pedagógi- cas voltadas à aprendizagem das estruturas Sistema de Numeração Decimal como estrutura matemática a ser ensinada e a criança como agente ativo na construção de suas aprendizagens. do número no Sistema de Numeração Decimal deve nos remeter, necessária e desejavelmente, à possibilidade de termos acesso aos conceitos até então construídos pelos alunos, os significados atribuídos às suas estruturas e suas motivações para a quantifica- Devemos partir do pressuposto fun- ção, como base para conceber a construção damental de que toda criança está mergulha- de um projeto didático-pedagógico, em que da num contexto sociocultural no qual os nú- cada aluno se veja como ser ativo na cons- meros, suas leituras e escritas, sua utilização trução do conhecimento do número no con- social (quantificador, ordenador ou código) e texto do Sistema de Numeração Decimal. 1 Doutor em Sciences de l’Education pelo Université Paris Nord, Professor Adjunto da Universidade de Brasília e Consultor desta Edição Temática. 37 Não pretendemos assumir o sistema que, ao compreender um novo jogo, ou seja, como objeto de ensino a partir do qual cabe- assimilando as regras que sustentam a ati- ria, a cada alfabetizador, explicitar as regras vidade lúdica proposta pelo alfabetizador, o formais matemáticas de sua estruturação aluno estará ludicamente assimilando tais e organizar o trabalho pedagógico visando estruturas, tão importantes para a apren- à assimilação das mesmas pelos alunos, de dizagem e construção da ideia do número forma que eles sejam capazes de ler e escre- no sistema decimal. Para tanto, tais jogos ver números de forma competente. Objetiva- devem incorporar, em sua estrutura, seja a mos, ao contrário, pensar numa organização ideia de agrupamento, seja a ideia de posi- pedagógica em que nossas crianças se vejam cionamento. É mister considerar que o po- como sujeitos ativos na construção destas re- sicionamento é decorrente da ideia do agru- gras e das estruturas gradativas do sistema, pamento, podendo o agrupamento existir de modo que, a cada aula, possam atribuir sem a noção de posicionamento. Portanto, novos e mais complexos significados às re- tratemos de jogos voltados primeiramente gras que alicerçam o sistema numérico. para a estrutura de agrupamento, para, em um segundo momento, tratarmos de jogos Ao assumir o agrupamento, posi- com valor posicional. É interessante obser- cionamento e registros formais como ba- var que devemos propor uma evolução dos ses para a estrutura do sistema numérico, jogos, cada vez com uma nova estrutura intentamos que a escola favoreça, aos alfa- matemática incorporada na versão anterior, betizandos, experiências em que, de forma permitindo que os mesmos acabem por se ativa, crítica e criativa, os alunos possam se constituir em uma sequência didática, mui- sentir, de certa forma, autores da proposi- to útil para o desenvolvimento de um pro- ção das estruturas numéricas. jeto pedagógico voltado à aprendizagem do número na estrutura decimal. As regras do Sistema de Numeração Decimal como bases para a construção de jogos de alfabetização matemática. Quanto ao agrupamento, temos duas instâncias de aprendizagem do ato de agrupar (lembremos que podemos mesmo explorar a ideia de que o agrupamento é um Nosso maior objetivo é propor jogos ato espontâneo do ser humano na busca de matemáticos que tenham, como regras, es- quantificar uma quantidade não percepti- truturas do Sistema de Numeração Decimal, va): inicialmente, o agrupamento simples, especialmente o agrupamento, o posicio- e, na sequência, o agrupamento complexo. namento e o registro simbólico. Pensamos 38 No agrupamento simples, dada uma a escola tem que disponibilizar material quantidade, o sujeito realiza agrupamento, que permita ao aluno agrupar fisicamen- permanecendo fixa a quantidade de elemen- te o material de contagem. Assim, vemos tos dos grupos, até que não possamos mais como os treze palitos ficam organizados formar grupos. Assim, o que resta sem agru- em 4 montinhos de 3 palitos cada, e sobra par deve ser sempre inferior ao número de 1 sem estar amarrado. Se fossem 14 palitos, objetos de cada grupo. Para tanto, pensamos ficariam 2 palitos soltos. no jogo “Ganha quem resta mais”, em que cada um pega, aleatoriamente, sem contar, O agrupamento complexo trata não certa quantidade de objetos. Um dado, por apenas de fazer grupos, mas de realizar gru- exemplo, indica quanto deve haver nos gru- pos de grupos. Ou seja, se na atividade está pos (valor fixo para todos os participantes). determinado que cada 5 objetos formam um Assim, cada participante deve fazer grupos grupo, quando o jogador tiver 5 grupos, es- (amarrando-os) até não ser mais possível tes formam um grupo de grupo. O agrupa- fazê-los. Os objetos restantes, sem partici- mento complexo requer, além da formação par da formação de grupo, correspondem do grupo de objetos, a formação de grupos aos pontos ganhos pelo jogador. Para cada de grupos, ao obtermos uma quantidade de objeto restante, ganha-se uma prenda. O ga- grupos equivalente à quantidade de referên- nhador é aquele que, ao final de um certo cia. Por exemplo, se estivermos agrupando número de rodadas, tiver mais prendas. de 5 em 5, ao obtermos 5 grupos, estes terão de ser agrupados formando, portanto, um O agrupamento simples é aquele em grupo de 5 grupos, com 5 objetos cada. As- que a regra é a da formação de grupo, as- sim, teremos uma estrutura que prevê, tan- sim que tivermos a quantidade predetermi- to a formação de grupos de objetos como nada de objetos. Nessa lógica, por exemplo, de grupos de grupos, ou ainda de grupos de se estamos com agrupamento simples de 3, grupos de grupos, e assim sucessivamente. numa situação com treze palitos, teremos: Como fica, então, um agrupamento complexo de treze, com grupos de três? Amarrar os palitos tem um significa- do importante na construção da represen- Como você pode perceber, professor, tação mental da criança. Para ela, apenas teremos um grupo de três grupos, com três estar junto não é formar grupo. Portanto, palitos cada, um grupo de três palitos e um 39 palito solto; tendo formado três grupos, es- Num segundo estágio, é inserida nes- ses três têm de ser agrupados formando um te jogo uma plataforma onde são posiciona- grupão – grupo de grupo. dos os soltos e os grupos, tendo como referência o sentido e a direção da direita para a Por que isso é importante? Ao viven- esquerda (assim como é feito no nosso siste- ciar atividades dessa natureza, os alunos vão ma de numeração). Assim, a nova regra diz assimilando estruturas próprias do sistema de que, a cada formação de um grupo, este será numeração. Contudo, devemos buscar trans- posicionado na casa da esquerda, ficando os formar tais atividades em jogos, em momen- soltos na da direita. Ganha o jogo aquele que tos lúdicos, de forma tal que aprender a jogar ganhar a corrida, ou seja, conseguir colocar implique assimilar as regras do jogo, que são, um grupão na casa da esquerda. em última instância, as regras básicas do processo histórico de quantificação de grandes quantidades. Se a atividade lúdica no agrupamento simples induzia a formar grupos, agora, no agrupamento complexo, o objetivo é formar grupo de grupos. Assim, o jogo “Quem tem um grupão primeiro” aparece como uma proposta interessante que tem como regra aqui fique evidenciado o quanto a suces- tais objetivos. Cada jogador, na sua vez, lança são de jogos se constitui em sequência di- um lado. O valor indicado pelo dado deve ser dática, apoiando a constituição do projeto tomado em palitos. Cada jogador, ao obter 5 pedagógico), são inseridas representações palitos, deve formar um grupo de 5, amarran- simbólicas no jogo. Por exemplo, uma ficha do-os. Para tanto, o jogador pode utilizar os vermelha para cada solto, uma ficha verde palitos soltos da rodada anterior. Quando o para cada grupo e, finalmente, uma ficha jogador conseguir formar 5 grupos de 5 pali- dourada para o grupão formado. Portanto, tos cada, deve juntar os 5 grupos, amarrá-los, as fichas vermelhas ficam sempre na casa formando um grupão de cinco grupos. É hora da direita, as vermelhas na casa central e a de levantar a mão, mostrando o montão, dourada (indicando o vencedor) na casa da declarando-se ganhador(a), mediante a frase: esquerda. O professor que quiser expandir “Ganhei, tenho um montão”. Caso faça isso sem ter amarrado os grupos, perde um grupo. Ganha o primeiro que formar o montão de 5 montinhos. O valor pode variar de jogo a jogo, podendo em outra oportunidade, estar formando grupos de 8 palitos, por exemplo. Num terceiro estágio (espero que poderá ir inserindo novas casas à esquerda, o que implicará maiores quantidades. É importante ressaltar que o uso das fichas numeradas com os dez algarismos deve ser realizado tão somente com o agrupamento decimal, e não antes disto. 40 A esta altura da sequência didática, Objetivo do jogo: as estruturas fundantes do sistema de nu- Ganha quem primeiro formar o grupão: o meração já estão assimiladas pelos partici- amarrado de dez grupos de dez palitos cada pantes enquanto regras de jogo. Não saber um. Quem primeiro formar o grupão, levan- jogar é não saber respeitar tais regras mate- ta a mão com ele e declara em voz alta: “ga- máticas. Ao longo do desenvolvimento das nhei CEM primeiro”. atividades, é importante a mediação pedagógica realizada pelo professor, questionan- Materiais: do, animando, instigando: “Quanto falta - ao menos 100 palitos por jogador para formar um novo grupo?” “Quantos sol- - ao menos 12 liguinhas elásticas (tipo aque- tos e quantos montões você tem a mais?” la de amarrar dinheiro) por jogador - dois dados, de preferência com algarismos. O professor deve se preocupar com a evolução para uma linguagem científica somente quando a criança já demonstra essa conservação – quando pega um grupo que ela própria amarrou e, sem contar novamente, afirma categoricamente que são DEZ. Mas, mesmo diante dessa evolução da conservação, a terminologia nunca deve ser dada de graça para a criança. A terminologia deve ser gradativamente construída pela Se for com bolinhas, de preferência que não seja o tradicional, isto é, sem constelação (sem a distribuição clássica das quantidades), fazendo com que a criança tenha que contar a quantidade indicada em cada dado. Os dados podem ter quantidades maiores que seis - 1 pote (que pode ser copo plástico ou embalagem de sorvete) Número de jogadores: entre dois e quatro alunos. criança e sempre com significado: Indicação: para alunos do 1º e 2º anos Grupinhos de DEZ: é o de DEZ: é DEZena Regras: Soltos são de UM: é um a um: é Unidade Os grupões são dez de dez: é cem: é CENtena dores. Na primeira rodada: Vamos então, concretamente, à sugestão de um jogo que muito contribui com a construção do SND, proposto também pelo material do PNAIC de Matemática (MEC, 2014), o “Quem ganha cem primeiro”: O grupo define a sequência dos joga- cada jogador, na sua vez, lança os dois dados e pega a quantidade em palitos de acordo com o valor indicado pelo total de pontos dos dados. Todos os palitos devem estar inicialmente depositados no pote; - se o resultado for igual ou maior que 10, a criança deverá usar a liga elástica para amarrar 10 palitos e formar um grupo. 41 Se houver sobra, ela ficará na mesa sem e para não haver mistura, afinal, a escola amarrar para se juntar aos palitos ganhos deve fornecer meios para ajudar a criança nas próximas rodadas, a fim de fazer novos pequena, em processo de alfabetização, a grupos. Caso o resultado seja menor que se organizar. 10, o jogador deixa-os na mesa sem amarrar, esperando a próxima rodada na espe- - ao obter DEZ grupos de dez paliti- rança de formar um grupo de 10. nhos, usar uma liguinha elástica para agrupar os dez grupos, formando um grupão. Assim - ao concluir a organização de seus feito, a criança levanta o grupão e declara em palitos soltos e de seus grupos, passa os dois voz alta: “Ganhei CEM primeiro”. Caso levan- dados para o colega seguinte dizendo: “EU te os dez grupos sem agrupá-los em um gru- TE AUTORIZO A JOGAR”. Isto faz com que pão, perde um grupo, que volta ao pote. cada jogador tenha sua rodada garantida, e que os demais observem as contagens, cor- - Quando um aluno se declarar ga- respondências e agrupamentos, aprendendo nhador, os colegas devem conferir se está e refletindo, não apenas com suas próprias tudo certo, ou seja, se o grupão é formado ações, mas com as dos colegas também. de dez grupos amarrados, e se cada grupo tem dez palitinhos. Nas rodadas seguintes: - O jogo não termina com a declara- - proceder do mesmo modo: lançar ção do primeiro ganhador. O professor deve os dados e cada vez que obtiver DEZ pali- estimular os demais jogadores a continua- tos, usar a liguinha elástica para formar um rem o jogo para ver quem ficará em segundo grupo, podendo ficar, no final da rodada, e terceiro lugares, e assim por diante. Quem com palitos soltos e grupos. já ganhou fica ajudando a conferir as quantidades que cada jogador está obtendo e or- - se estiverem soltos, estes palitos ganizando em grupos. ficam acumulados para serem acrescentados aos que serão ganhos nas rodadas posteriores, sendo que os mesmos ficam na carteira do aluno, organizados, de forma Evolução dos materiais para a construção gradativa de sentidos e representações mais complexas a não se misturarem com os dos colegas (isto também é matemática) ou com os do Os jogos, que inicialmente são reali- pote. Os palitos inicialmente devem ficar zados agrupando palitos, devem mobilizar, no pote, visando à organização do material gradativamente, materiais mais estrutura- 42 dos e simbólicos, favorecendo a quantifica- Seria muito interessante propor, neste ção de quantidades maiores, sem perder de contexto, jogos socioculturalmente mais sig- vista a construção de significados pelas crian- nificativos a partir deste momento. O mesmo ças. Os materiais a serem realizados sobre os jogo da última etapa poderia ser realizado, tapetinhos podem assim evoluir: mas com notinhas de $1, $10 e $100, quando ganharia que formasse primeiro $100, como - palitos, com elástico amarrando. A propôs Nilza E. Bertoni em seu texto. cada dez, amarra-se com a liga elástica e passa o novo grupo para o campo da esquerda. - material dourado montessoriano, sem necessidade de elástico, pois ao invés de amarrar, ao ter dez unidades, troca-se pela unidade seguinte e posiciona este no campo da esquerda seguinte; - dinheiro chinês, que é qualquer tipo de material, diferenciado, por exemplo, pela cor. A turma estabelece, para cada cor, um valor. Por exemplo, vermelho = 1, ama- A organização do trabalho pedagógico da aula da Matemática quando o jogo para a construção do SND é o centro da proposta pedagógica O processo didático-pedagógico pau- tado na utilização de jogos para favorecimento de aprendizagens matemáticas constitui-se fundamentalmente em três etapas: 1º) Ensino de um novo jogo para a aprendizagem das regras; 2º) Desenvolvimento do relo = 10, azul = 100 e verde = 1000. Assim jogo pelas crianças; e 3º) Discussão coletiva a cada dez peças de uma cor, troca-se pela do jogo, socializando situações. cor correspondente seguinte, sempre posicionando, no tapetinho, as peças, de acordo No primeiro momento, que é o en- com a sua cor-valor. sino de um novo jogo a toda a turma, é importante que o processo pedagógico seja Assim, observa-se que a ação de centrado no grande grupo. Há de se conce- amarrar dez é substituída pela ação da troca ber estratégias de organização da classe, de por uma peça que vale dez da peça anterior. forma que todos possam assimilar as regras A ação da troca é cognitivamente mais com- do novo jogo, observando uma, duas ou três plexa que a contagem e consequente amarra- crianças jogando com orientação do pro- ção dos “dez”. Assim, atividades lúdicas com fessor. Assim, a explicação de um novo jogo a troca devem vir quando as crianças estão pode acontecer com os alunos organizados bem familiarizadas com o amarrar, e a alfa- em “rodinha”, sendo que o alfabetizador vai betizadora deve estar especialmente atenta “ensinar” o novo jogo (antes de a atividade para a evolução de um material para o outro. ser realizada em pequenos grupos), chaman- 43 do por vez, duas crianças para jogar, com a que o professor faça questionamentos que participação dos demais dando palpites. O ob- busquem elucidar os conceitos matemáticos jetivo neste momento não é concluir o jogo, que são buscados para se trabalhar no jogo. mas oferecer, aos alunos, a oportunidade de compreender suas regras, ou seja, de apren- O terceiro momento é aquele em que, depois de concluídos der a jogar. O número de rodadas a serem realizadas dependerá da turma. Sugerimos que ocorra um número de rodadas suficiente para que todos tenham compreendido “ (...) a escola deve estar especialmente atenta em oferecer às crianças um ambiente rico em estímulos.” os jogos nos grupos, o professor pode discutir ideias matemáticas coletivamente, retomando algumas situações para a socialização. como se joga, ganhando autonomia para a realização da atividade lúdica em pequenos grupos. A sala de aula como ambiente numerizador para além dos jogos. Muitas vezes é quando as crianças dizem “tá bom professora, chega, já entendemos, agora Além da oferta de jogos estruturados deixa a gente jogar sozinho”. a partir das regras do SND, a escola deve estar especialmente atenta para oferecer às crian- No segundo momento, após apren- ças um ambiente rico em estímulos, para derem como se joga, a atividade lúdica se que, no cotidiano, coletivamente, as crianças desenvolve em pequenos grupos, de acordo em alfabetização possam vivenciar situações, com a realidade de cada sala de aula. Duran- contextos e materiais que as levem a explo- te a atividade, o professor visita cada grupo, rar, cada vez mais, de forma rica, complexa e orientando as regras, instigando e colocando significativa, os números, suas escritas, leitu- questões. Para os jogos aqui indicados suge- ras e usos. Por exemplo, temos a propor: rimos questões do tipo: por que amarrou (ou não amarrou)? Quantos faltam para fazer um • Medir distâncias com passos – cami- novo grupo? Quantos faltam para formar o nhando junto, contando degraus, sempre grupão? Quem está ganhando? Com quantos em voz alta e compassada... a mais? Quem está perdendo? Quanto falta para alcançar os demais? O 1 do grupo tem o mesmo valor que o 1 dos soltos? E outras provocações que pareçam pertinentes em cada situação e contexto. É importante também • Registrar a passagem do tempo com o movimento de uma sombra, por meio do deslocamento da sombra da janela no chão do quarto ou da sala, colando uma 44 fita, colocando uma graduação de hora proporcionalidades, possibilidades, façam em hora, de 30 em 30 minutos, exploran- parte da estrutura lúdica do jogo. Impor- do a ampulheta em jogos, ensinando a tante também, além da oferta, é a parti- usar calendários... cipação do adulto-educador no jogo. Ele poderá colocar questões para que a crian- • Participação em pequenas atividades rotineiras – colocando a mesa (pondo pratos e talheres de acordo com o número de pessoas), fazendo juntos pequenas receitas, medindo os ingredientes e medindo o tempo e temperatura de cozimento... • Participação nas compras, mesmo que em situações de simulação, como a vendinha – acompanhando a composição da lista de compras, lendo junto as indicações das embalagens, vendo o preço de ça realize uma reflexão sobre sua própria ação, justifique e explique suas ações, e, a partir daí, situações mais complexas podem ser criadas. Brincar com jogos que necessitem da relação dos algarismos com as quantidades numéricas, comparar quantidades... • Explorar as matemáticas nos espor- tes – na análise das tabelas de campeonatos, comparando os pontos de cada equipe, na medição de tempos e espaços... cada produto e comparando, tentando prever o custo total da lista, ajudando a • Construir e participar de jogos cultu- pagar, fazendo composições aditivas das rais e construção de brinquedos – propon- cédulas e conferindo o troco, participan- do e participando de jogos e brincadeiras, do do preenchimento do cheque... tais como a amarelinha (que trabalha conceitos topológicos, ordem crescente e • Manipulando pequenas quantias de dinheiro – possibilitar a manipulação de pequenos valores, estimulando a realização de pequenas economias coleti- decrescente, os algarismos, etc.); bolinha de gude, construção de pipa, carrinho de rolimã, pequenas receitas, confecção de roupas, construção de acampamentos... vas, realizar pequenos projetos, juntando “dinheirinho” para compras simbólicas, • Ensinar e cantar músicas que possu- sempre contabilizando o que já conseguiu am a sucessão numérica – canções cujas e o quanto ainda falta... letras e compassos baseiem-se na contagem dos números, seja em ordem cres- • Explorar jogos matemáticos, ofere- cendo jogos de plataforma, cartas e outros, em que ferramentas matemáticas, tais como números, operações, medidas, cente ou decrescente, tais como: Mariana conta.... Um elefante incomoda muita gente, Um elefante se pendurou numa teia de aranha... 45 • Quantificar e comparar conjuntos de - Relógio digital; rinhas, carros amarelos que passam, dias - Calendário dos aniversariantes or- que faltam para o aniversário, pessoas da ganizados por mês; objetos – como pequenas coleções, figu- família, peças do vestuário... • Realizar classificações – por meio das - Lista de produtos da cantina com preços indicativos; cores, funções, tamanho, tipo de material... • Manipular instrumentos de medidas – uso de régua e trena, balança, relógio, - Fita métrica colada na parede para que, sempre que necessitem, meçam suas alturas; termômetro, velocímetro... • Explorar os números no endereço, no telefone, nas placas dos veículos, nos - Cartazes com as diferentes compo- sições de um real com moedas: canais de TV ou rádio, nas programações, na numeração da roupa, nas placas de trânsito e no odômetro do carro... 46 Além disso, como já indicado por Bertoni, a presença do cartaz “Quantos somos hoje”, deve estar presente no ambiente matematizador da sala de aula das crianças que incluirá, ainda: - lista de composição da turma, or- ganizada em ordem alfabética e numérica; - calendário do mês e calendário anual: - Cartazes que apoiem a leitura e sequ- ência numérica de dezenas e centenas exatas: - Cartaz com a contabilidade do va- lor arrecadado para a poupança coletiva: Assim, além da presença de jogos que favoreçam a aquisição das estruturas do número no sistema decimal, a sala de aula e a escola, como um todo, devem ser espaços que promovam o interesse da criança pelos processos de matematização de sua realidade, onde o professor alfabetizador aparece como provocador e mediador dos processos instaurados num cotidiano pedagógico rico em estímulos e trocas. 47 REFERÊNCIAS Módulo de Sistema de Numeração Decimal do PNAIC-MEC, 2014. 48 texto 3b SND: conceitos matemáticos articulados com atividades pedagógicas Eurivalda Santana 2 O Sistema de Numeração Decimal é da escolarização não atentam a essa neces- uma criação realizada num percurso de mi- sidade de articulação e de compreensão dos lhares de anos. Em seu processo de criação, conceitos inerentes ao Sistema de Numera- buscou atender às necessidades sociais das ção Decimal com a compreensão das regras civilizações. Neste contexto, o seu ensino foi dos algoritmos das operações fundamentais. enraizado na cultura escolar e, em diferentes Esta falta de compreensão dos conceitos ine- momentos, foi sendo apresentado de maneira rentes ao sistema dificulta a aprendizagem praticamente automática, ou seja, sem se pro- dos agrupamentos e das trocas necessárias por à verdadeira compreensão dos conceitos para efetuar as operações. inerentes a este Sistema e sem a preocupação de diferenciá-lo dos demais sistemas que fo- Não podemos esquecer as dificulda- ram criados por diferentes povos e não univer- des que o professor dos anos iniciais possuem salmente adotados. Para Toledo e Toledo para o trabalho com áreas específicas do co- (1997, p. 58, grifo dos autores): nhecimento. Como bem colocou Polya (2006): Professores habituados a trabalhar com [...] A Matemática tem a duvidosa honra crianças que apresentam dificuldades em de ser a matéria menos apreciada do cur- “fazer contas” com os números naturais rículo [...]. Os futuros professores passam sabem que, na verdade, uma das principais pelas escolas do Ensino Básico e apren- causas do problema está no aprendizado do dem a detestar a Matemática [...]. Depois Sistema de Numeração Decimal. voltam a estas escolas para ensinar a nova geração a detestá-la. Não concordo integralmente com os autores, pois acredito que, muitas vezes, os Muitas vezes, essa aversão à disci- professores que trabalham no nível inicial plina interfere de modo direto no trabalho 2 Doutorado em Educação Matemática pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Professora Adjunta da Universidade Estadual de Santa Cruz , Brasil. 49 com os conceitos matemáticos. Mas, a quais - Todo e qualquer número pode ser conceitos matemáticos estamos nos referin- representado usando o princípio aditivo – o do quando falamos do Sistema de Numera- valor do numeral pode ser dado pela adição ção Decimal? dos valores posicionais dos símbolos. Exemplo: 14 = 10 + 4 A base dez é o alicerce do Sistema de Numeração Decimal (SND). O pressuposto - Cada algarismo pode ser repre- primordial dessa base é ter em mente que sentado usando o princípio multiplicativo todas as operações são realizadas a partir de – cada algarismo representa o produto dele agrupamentos de 10 em 10. Podemos afir- mesmo pelo valor de sua posição. Exemplo: mar que o SND tem características próprias, escrever o número 532: que envolvem diferentes conceitos, os quais precisam ser apropriados pelos estudantes para que se dê a compreensão desse sistema, a saber: - O SND tem 10 símbolos – 0, 1, 2, 3, Usando os princípios aditivo e mul- 4, 5, 6, 7, 8 e 9 – a partir dos quais pode cons- tiplicativo, podemos escrever 532 da se- truir todo e qualquer numeral ; guinte forma: 532 = 5 X 10² + 3X 10¹ + 2 X 10º. Nestas características, é possível 3 - O SND utiliza a base 10 - por isso ele é chamado de sistema decimal; - O Zero é um símbolo importantíssi- mo para representar a ausência de quantidade; - Os símbolos possuem valores distin- tos, segundo sua posição no número – a posição onde se encontra um símbolo é que define o seu valor, ou seja, um mesmo símbolo pode ter valores diferentes, de acordo como a destacar os conceitos4 que se fazem necessários ao se trabalhar, em sala de aula, com o Ciclo de Alfabetização, a saber: os símbolos envolvidos, a contagem, a base dez, os agrupamentos de dez em dez, o valor posicional (ordens e classes), o princípio aditivo, o significado do zero. posição em que ele se encontra no número; 3 Alguns autores fazem diferença entre “número” e “numeral”, considerando número como a ideia de quantidade e numeral como a representação dessa ideia. Por entendermos que um está implicitamente imbricado com o outro, optamos por não diferenciá-los. 4 Assumimos conceito como feito por Santana (2012, p. 23): “[...] conceito como a formulação de uma ideia através das palavras e do pensamento”. 50 Para Santana (2012), quando esta- com uma única situação”. Utilizando esta mos na prática de sala de aula, é possível ob- afirmativa no ensino do Sistema de Nume- servar que um conceito não tem sentido em ração Decimal e dos principais conceitos a si mesmo, mas adquire sentido quando en- serem focados nas ações pedagógicas, po- volvido em situações-problema. (1996, Vergnaud p.156) coloca que “este processo de elaboração pragmá- tica é essencial para a psicologia e para a didática”. Assim, em sua essência, as situações pedagogicamente demos elencar alguns “ (...) as situações pedagogicamente apresentadas em sala de aula necessitam ter foco para a aprendizagem dos conceitos inerentes às mesmas.” apresentadas em sala de aula necessitam ter foco para a aprendizagem dos conceitos inerentes às mesmas. Segundo a abordagem de Vergnaud (1996), uma única situação envolve diferentes conceitos e um conceito se associa a diferentes situações. Assim, as atividades postas pedagogicamente precisam focar o conceito a ser abordado num dado momento. Mas como articular conceitos mate- máticos, inerentes à estrutura do Sistema de Numeração Decimal, com atividades pedagógicas a serem apresentadas aos estudantes no exemplos de articulação entre conceitos e atividades pedagógicas. Vale ressaltar que as crianças constroem seus conhecimentos a partir da coordenação das relações que vão criando entre os obje- tos e suas ações sobre esses objetos. Essas atividades podem partir do lúdico, envolvendo: desafios, contação de história, música, arte, história da matemática e brincadeiras infantis, passando pela socialização e alcançando o registro. Para compreender as características do Sistema de Numeração Decimal, dentre outros fatores, a criança precisa: usar os números em situações pedagógicas que apontem sentido para elas; refletir sobre as Ciclo de Alfabetização? Este questionamento situações e os números envolvidos; obser- pode conduzir a uma reflexão do nosso fazer var as regularidades e os padrões numéricos pedagógico: proporcionamos essa articula- existentes na situação; e utilizar o número ção em nossa prática? em suas diferentes funções. Estas são articulações que podem facilitar, para a criança, o Para Santana (2012, p. 24), “a com- preensão de um conceito pelo estudante não se dá quando este é confrontado apenas domínio dos conceitos inerentes às características do Sistema de Numeração Decimal. 51 Para Moreno (2006, p. 71), “restringir todas a possam visualizar e tocar sempre que [...] o campo numérico impede as crianças de sentirem necessidade (MORENO, 2006). A dis- pôr em prática aquilo que sabem [...]”. Outros ponibilização de linhas e colunas na cartela autores, como Mabel Panizza, também afir- numérica favorece a observação das regula- mam que não se faz necessário restringir o ridades, padrões numéricos e a organização campo numérico a ser trabalhado, visto que própria do Sistema de Numeração Decimal, as crianças são confrontadas diariamente a base dez, bem como os agrupamentos de com as mais diversas ordens e classes numé- dez em dez, o significado do zero, a leitura ricas, o que implica que não podermos ensi- e a escrita dos números, a comparação e a nar um número isoladamente. Por exemplo, sucessão, dentre outros conceitos. para se ensinar o símbolo 8 não podemos fazer de maneira isolada, negando a sua ligação Atividades pedagógicas que confron- com o 7 e com o 9. Além disso, a criança pode tem as crianças com situações que partem conhecer o número em suas experiências fora do reconhecimento do próprio corpo e nu- da escola. Por exemplo, seu irmão mais ve- meração das próprias vestimentas, também lho tem 18 anos, sua avó tem 80, sua data de são sugeridas para o trabalho inicial com nascimento é 28 do mês 08 de 2008. Em que conceitos iniciais do Sistema de Numeração se diferenciam esses usos do 8 em questão? É Decimal. Esse tipo de atividade facilita o tra- importante valorizar suas experiências e não balho com os conceitos como: contagem, negar os conhecimentos já existentes. valor posicional, base dez e comparação de quantidades, dentre outros. Neste caso, indicamos o uso de carte- la numérica, desde o início do Ciclo de Alfabe- tização. A amplitude da cartela vai variar com sugerido que os conceitos sejam abordados o nível de conhecimento que a turma possui. partindo-se do lúdico (SANTANA et.al, 2013). Por exemplo, se o professor diagnostica que Para o ensino de conceitos de agrupamentos as crianças conseguem, pelo menos, recitar e trocas sugerimos atividades lúdicas, como os números até dez, é indicado que ele utilize jogos que usam dados e/ou que envolvam a cartela numérica de zero a trinta. Esta seria contagem de objetos, trilhas, etc. Todos estes construída com dez colunas e quatro linhas. possibilitam a articulação entre os conceitos À medida em que as crianças ampliam seu e a atividade pedagógica, motivando as crian- domínio, devem ser apresentadas novas fa- ças. A resolução de situações-problema que mílias de números, de modo que a cartela envolvam a composição e a decomposição de contenha de zero até 100. É importante que a números pode facilitar o foco nos conceitos crianças tenha fácil acesso à cartela, ficando que definem o princípio aditivo. esta disposta na sala de aula de forma que Durante o Ciclo de Alfabetização é 52 Outra atividade pedagógica que facili- ta a compreensão dos conceitos é o momento buscar a interface entre as notações pessoais e a formalização matemática. de socialização das atividades desenvolvidas. Ao se colocar para o grupo, a criança utiliza Sugiro que um bom caminho para a expressão oral, realiza reflexões, organiza um trabalho em sala de aula, que articule os seus pensamentos para efetivar a comunica- conceitos matemáticos próprios da estrutu- ção e esta é uma atividade que contribui para ra do Sistema de Numeração Decimal com que o grupo de alunos de uma sala possa tro- atividades pedagógicas a serem ofertadas car informações e colaborar para expressar pelo alfabetizador, perpasse a utilização de suas concepções espontâneas acerca de um atividades lúdicas, evidenciando-se momen- determinado quadro de conceitos. A media- tos de socialização do grupo de crianças e ção do professor e do próprio grupo que in- dando a devida atenção aos registros e às terage e propõe novas argumentações diante representações utilizadas. O professor deve do que foi realizado no tempo anterior (jogos agir sempre na condição de mediador desse e desafios), possibilita a compreensão de con- processo de compreensão do Sistema de Nu- ceitos. Enquanto mediador, o professor pre- meração Decimal. cisa explicitar, nesse momento, os conceitos matemáticos que estão no foco, não precisando chamar a atenção das crianças que erram. Precisa apenas trabalhar as diversas maneiras de se representar de forma correta, incentivando e mediando as discussões de modo a conduzir os alunos para o acerto. Um terceiro passo que sugerimos para ser colocado como rotina em sala de aula de alfabetização é o momento do registro. Neste momento, a atividade pedagógica prioriza o fazer matemático por meio do registro individual da criança. A produção da criança pode ser valorizada respeitando-se diferentes tipos de representação numérica, como o uso de desenhos, tracinhos e bolinhas para representar quantidades e números. Contudo, o professor, enquanto mediador deste processo, vai 53 REFERÊNCIAS MORENO, B. R. de. O ensino do Número e do sistema de numeração na educação infantil e na 1ª série. In: PANIZZA, M. Ensinar Matemática na Educação Infantil e nas séries iniciais: análise e propostas. Tradução: FELTRIN, A. Porto Alegre: Artmed, 2006. POLYA, G. A arte de resolver problemas. Tradução: ARAÚJO, H. L. de. Rio de Janeiro: Interciência, 2006. SANTANA, E. R. dos S. Adição e Subtração: o suporte didático influencia a aprendizagem do estudante? 1. ed. Ilhéus: Editus, 2012. v. 1. 235p. SANTANA, E. R. dos S. et al. Alfabetização Matemática: manual do professor. Salvador: Secretaria da Educação do Estado da Bahia – Instituto Anísio Teixeira, 2013. Disponível em: < http:// vleditora.com.br/alfabetizacaomatematica>. TOLEDO, M.; TOLEDO, M. Didática de Matemática: como dois e dois. A construção da matemática. São Paulo: FTD, 1997. 54 VERGNAUD, G. A. Teoria dos Campos conceituais. In. BRUN, J. Didáctica das matemáticas. Tradução: FIGUEIREDO, Maria José. Lisboa: Intituto Piaget, 1996. p. 155-191. Presidência da República Ministério da Educação Secretaria de Educação Básica TV ESCOLA/ SALTO PARA O FUTURO Coordenação Pedagógica Ana Maria Miguel Acompanhamento pedagógico Grazielle Bragança Copidesque e Revisão Milena Campos Eich Diagramação e Editoração Bruno Nin Virgílio Veiga Consultor especialmente convidado Cristiano Alberto Muniz 55 E-mail: [email protected] Home page: www.tvescola.org.br/salto Rua da Relação, 18, 4o andar – Centro. CEP: 20231-110 – Rio de Janeiro (RJ) Setembro 2014