Polifonia,
intertextualidade e
produção de sentido
Hércules Tolêdo Corrêa
Semana de Letras do Uni-BH maio de 2009
Texto 1
Asserção:
Essa parede não é branca.
Temos a impressão de que dois pontos de vista (incompatíveis)
coabitam o enunciado:
1.
2.
Essa parede é branca.
[Essa parede é branca] é um enunciado injustificável
Só se afirma que a parede não é branca porque se pressupõe que
alguém afirma que a parede é branca.
Percebe-se aqui uma pressuposição, um dos fenômenos
caracterizadores da polifonia. (Exemplo clássico apresentado por
Ducrot)
Análise da polifonia no
Texto 2
Tirinha de Chico Bacon,
publicada na Folha de S.Paulo, 10 out. 2005
Para a proução de sentido, é preciso conhecer a canção
Águas de março, de Tom Jobim. Observar, também, as
ilustrações, que mostram as situações expressas nos
versos. Há uma destituição da poeticidade da letra da
canção para a geração do humor no gênero tirinha. Numa
aula, é interessante apresentar pelo menos um trecho da
canção, uma das mais importantes no panorama musical
brasileiro.
Texto 3
Britânicos ligam felicidade à boa saúde
Matéria publicada na Folha de S.Paulo, 25 de abril 2005
Britânicos ligam felicidade à boa saúde
Salvador Nogueira
Já dizia o poeta Vinícius de Moraes: “É melhor ser alegre que ser
triste.” E a comprovação médica dessa obviedade psicológica acaba
de vir de três pesquisadores do University College, em Londres. Eles
demonstraram que a felicidade está diretamente ligada ao bom
funcionamento do sistema endócrino e cardiovascular.
Claro, o dilema de uma famosa marca de biscoitos é a primeira coisa
que chama a atenção nos resultados dessa pesquisa. O sujeito está
feliz porque está saudável ou está saudável porque está feliz? Essa é
uma boa pergunta. Tão boa, na verdade, que os cientistas, com todos
os dados atuais, não têm condição de responder.
No primeiro exemplo, em vermelho, a polifonia é apresentada de
forma explícita, com autoria citada, com argumento de autoridade. No
segundo exemplo, também em vermelho, não se faz referência clara à
marca de biscoitos, a Tostines. É preciso se lembrar do slogan para
uma geração de sentidos mais completa.
Texto 4
Um beijo em outra dimensão
Marcelo Coelho
Prepare-se para uma notícia de alto impacto. Mônica deu um beijo
em Cebolinha.
O fato ocorreu na edição número 4 da revista "Turma da Mônica
Jovem", publicação em formato de mangá à venda nas bancas de
jornal.
Cebolinha não é mais o mesmo. Mônica, tampouco. São, agora,
adolescentes às voltas com monstros e inimigos sobrenaturais, e
dotados de uma beleza física que os antigos quadrinhos de Mauricio
de Sousa não faziam pressupor.
Era de se imaginar, por exemplo, que Magali se transformasse
numa obesa triste e descomunal. Ei-la, com formas perfeitas, ao lado
de um atlético Cascão. Este continua avesso ao banho, mas não deixa
de ser atraente apesar disso. Quanto a Franjinha, abandonou os
óculos e transformou-se num galã.
Está enganado quem pensa que a nova revista se dirige
apenas ao público jovem. Meu filho de seis anos está muito mais
fixado no mangá do que nas habituais e tediosas estripulias
infantis de Mônica e Cebolinha.
Nada mais natural: Mônica e Cebolinha, quando crianças, não
saíam de suas obsessões costumeiras. Um chamava a outra de
dentuça, a outra reagia com seu coelhinho de pelúcia.
Agora, nas revistas da "Turma da Mônica Jovem", os personagens de
Mauricio enfrentam seres transformáticos, monstros de outra galáxia,
bruxas siderais. É bem o mundo dos videogames e dos Power
Rangers, que, como se sabe, têm sucesso garantido com as crianças.
Unidos contra o inimigo comum, um Cebolinha esbelto e uma
Mônica de umbigo de fora encontram-se eletrizados um pelo outro e se
beijam. Ou melhor: é Mônica quem beija Cebolinha. O diálogo merece
ser mencionado.
Depois de uma vitória qualquer contra um monstro superpoderoso,
Mônica pergunta a Cebolinha se ele ainda a considera uma gordinha
dentuça. Cebolinha se embaraça. Sabe que Mônica não é nenhuma
gordinha, longe disso.
Mas... dentuça? Será? Mônica toma a iniciativa. Ainda se for
dentuça, pode projetar os lábios para a frente, assim... E a linda
menina dos mangás, na doçura de seus cílios longos, aproxima-se do
rosto
de
Cebolinha,
impondo-lhe
o
primeiro
beijo.
O rapaz se apavora, e o mangá termina mostrando uma verdade
eterna. A saber: passam-se os anos, mudam os corpos, e Cebolinha
continua fugindo dos ataques da Mônica. (...)
(Folha de S. Paulo, 17 de dezembro de 2008. Caderno Ilustrada)
Ilustração
para o
texto 4 – A
Turma da
Mônica
Jovem
Ilustração para o texto 4, a Turma da Mônica
adolescente e ao fundo, em segundo plano,
personagens crianças da mesma turma.
Legenda para análise da polifonia no Texto 4
L = Leitor (também poderíamos chamar de alocutário)
Loc = Locutor - aquele que enuncia como autor empírico
E1 = Enunciador 1 – aquele que enuncia como narrador
E2 = Enunciado 2 – a apropriação de uma imagem “vendida”
socialmente – ideologia contemporânea
Espaço Ficional 1 = Esp. Fic. 1 – a revista Turma da Mônica Jovem
Espaço Ficional 0 = Esp. Fic. 0 – a revista Turma da Mônica
Disc. Ind. = Discurso Indireto – voz da personagem citada pelo
narrador - uma das formas de polifonia
Disc. Ind. Livre = Discurso Indireto Livre – voz ambígua, não se
sabe se da personagem ou do narrador - outra forma de polifonia
Conhecimento de observação assistemática – outra forma de
polifonia
Saber Popular – mais uma forma de polifonia
As diversas vozes (polifonia) no Texto 4
Um beijo em outra dimensão
Marcelo Coelho
Prepare-se para uma notícia de alto impacto. [E1 se dirige a L]
Mônica deu um beijo em Cebolinha. [E1 cita um fato ocorrido em Esp.
Fic. 1]
O fato ocorreu na edição número 4 da revista "Turma da Mônica
Jovem", publicação em formato de mangá à venda nas bancas de
jornal. [Esp. Fic. 1]
Cebolinha não é mais o mesmo. [POLIFONIA - E1 nega o que
pressupõe pensar L] Mônica, tampouco. [POLIFONIA - E1 nega o que
pressupõe pensar L] São, agora, adolescentes às voltas com
monstros e inimigos sobrenaturais, e dotados de uma beleza física
que os antigos quadrinhos de Mauricio de Sousa [Esp. Fic. 0] não
faziam pressupor.
Era de se imaginar , por exemplo, que Magali se transformasse
numa obesa triste e descomunal. [POLIFONIA – E2 se apropria da
imagem de “beleza” com felicidade.] Ei-la, com formas perfeitas, ao
lado de um atlético Cascão. Este continua avesso ao banho, mas não
deixa de ser atraente apesar disso. Quanto a Franjinha, abandonou
os óculos e transformou-se num galã.
Está enganado quem pensa que a nova revista se dirige
apenas ao público jovem. Meu filho de seis anos está muito mais
fixado no mangá do que nas habituais e tediosas estripulias
infantis de Mônica e Cebolinha. [POLIFONIA - E1 = Loc]
Nada mais natural: Mônica e Cebolinha, quando crianças, não
saíam de suas obsessões costumeiras. Um chamava a outra de
dentuça, a outra reagia com seu coelhinho de pelúcia.
Agora, nas revistas da "Turma da Mônica Jovem", os personagens de
Mauricio enfrentam seres transformáticos, monstros de outra galáxia,
bruxas siderais. É bem o mundo dos videogames e dos Power
Rangers, que, como se sabe, têm sucesso garantido com as crianças.
Unidos contra o [POLIFONIA - Conhecimento de observação
assistemática]inimigo comum, um Cebolinha esbelto e uma Mônica de
umbigo de fora encontram-se eletrizados um pelo outro e se beijam.
Ou melhor: é Mônica quem beija Cebolinha. O diálogo merece ser
mencionado.
Depois de uma vitória qualquer contra um monstro superpoderoso,
Mônica pergunta a Cebolinha se ele ainda a considera uma gordinha
dentuça. [POLIFONIA - Disc. Ind. – voz pers.] Cebolinha se embaraça.
Sabe que Mônica não é nenhuma gordinha, longe disso.
Mas... dentuça? Será? [POLIFONIA - Disc. Ind. Livre] Mônica toma
a iniciativa. Ainda se for dentuça, pode projetar os lábios para a frente,
assim... E a linda menina dos mangás, na doçura de seus cílios
longos, aproxima-se do rosto de Cebolinha, impondo-lhe o primeiro
beijo.
O rapaz se apavora, e o mangá termina mostrando uma verdade
eterna. A saber: passam-se os anos, mudam os corpos [POLIFONIA Saber popular], e Cebolinha continua fugindo dos ataques da Mônica.
(...)
(Folha de S.Paulo, 17 de dezembro de 2008. Caderno Ilustrada)
A polifonia e a produção de sentidos
Perceber as diferentes vozes no texto é uma forma de construir os
possíveis sentidos do texto.
A geração do sentido vai do mais simples para o mais complexo,
do plano de expressão para o de conteúdo, do manifesto (superficial)
para o imanente (profundo). Por exemplo, identificamos mais
rapidamente as formas explícitas de polifonia (discurso direto, discurso
indireto), passando por formas mais sutis (discurso indireto livre, por
exemplo) até chegarmos em casos bem mais sofisticados, que
dependem de processos inferenciais mais complexos (as inferências
constituem processos mentais que permitem identificar subentendidos
do texto) como identificar referências não explícitas e/ou eruditas.
É preciso lembrar que os sentidos não estão no texto, os leitores
(ou alocutários) é que lhe atribuem sentidos (como também
coerência).
Os leitores mais proficientes são aqueles que conseguem fazer
mais inferências, mais associações e estabelecer mais relações.
Conceitos de polifonia e intertextualidade
O termo polifonia designa o fenômeno pelo qual, num mesmo texto, se
fazem ouvir “vozes” que falam de perspectivas ou pontos de vista
diferentes com as quais o locutor se identifica ou não. Existem
determinadas formas lingüísticas que funcionam como índices, no
texto, da presença de outra voz. Entre estas, podem-se citar:
Marcadores de pressuposição
Discurso indireto
Discruso indireto livre
Ironias, argumentos de autoridade, modalidades, conectores
Na polifonia, incorporam-se ao texto vozes de enunciadores reais ou
virtuais, que representam perspectivas, pontos de vista diversos, ou
põem em jogo “topoi” (interesses sociais) diferentes, com os quais o
locutor se identifica ou não. Dessa forma, o conceito de polifonia
recobre o de intertextualidade, isto é, todo caso de intertextualidade é
um caso de polifonia, não sendo , porém, verdadeira a recíproca.
Conceitos de polifonia e dialogismo
Todo texto é perpassado por vozes de diferentes enunciadores, ora
concordantes, ora dissonantes, o que faz com que se caracterize o
fenômeno da linguagem humana, como bem mostrou Bakhtin (1929),
como essencialmente dialógico e, portanto, polifônico.
Segundo Bakhtin (1929), a língua, em sua totalidade concreta, viva,
tem uma propriedade intríseca, o dialogismo. Isso quer dizer que as
palavras de um falante estão sempre e inevitavelmente perpassadas
pelas palavras do outros; que, para constituir um discurso, um
enunciador necessariamente leva em conta o discurso do outro,
elabora seu discurso a partir de outros discursos, ou seja, há uma
dialogização interna no discurso, Bakhtin não estava falando
simplesmente de troca de palavras entre interlocutores, que é o
diálogo.
Mikhail Bakhtin - 1895- 1975 – Pequena biografia intelectual
Nasceu em Orel, ao sul de Moscovo, de família aristocrática
em decadência, cresceu entre Vínius e Odessa, cidades
fronteiriças com grande variedade e línguas e culturas. Estudou
Filosofia e Letras na Universidade de São Petersburgo.
Sua obra mais célebre é Marxismo e filosofia da Linguagem (1929),
assinada com o nome de seu amigo e discípulo Volochínov. Só a partir
dos anos 70 teve difusão e reconhecimento importantes.
Os seus trabalhos só foram conhecidos no Ocidente
progressivamente a partir da década de 80, atingindo grande prestígio
e referencialidade póstuma nos anos 90.
Seu trabalho é considerado influente na área de lingüística, análise
do discurso, teoria literária e semiótica.
Bakhtin é na verdade um filósofo da linguagem e sua lingüística é
considerada uma "trans-lingüística“ (hoje, chamada pragmática),
porque ultrapassa a visão de língua como sistema. Para Bakhtin, não
se pode entender a língua isoladamente, mas qualquer análise
lingüística deve incluir fatores extra-lingüisticos como contexto de fala,
a relação do falante com o ouvinte, momento histórico, etc. Para
Bakhtin, o discurso é sobretudo uma ponte lançada entre duas ou
Para matar a curiosidade:
Que cara tinha esse cara?
Mikhail Bakhtin em dois momentos de sua vida
Bibliografia:
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BARROS, Diana Luz Pessoa e FIORIN, José Luiz. (Orgs.)
Dialogismo, polifonia, intertextualidade. São Paulo: Edusp, 1999.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Rio de
Janeiro: Forense, 1981.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins
Fontes,2000.
CHARAUDEAU, Patrick e MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário
de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2006. p. 384-388.
DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. Campinas: Pontes, 1987.
KOCH, Ingedore Villaça. A inter-ação pela linguagem. São Paulo:
Contexto, 1992.
KOCH, Ingedore Villaça. O texto e a construção dos sentidos. São
Paulo: Contexto, 1997.
KOCH, Ingedore Villaça e ELIAS, Vanda Maria. Ler e compreender.
Os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2006.
Obrigado pela
atenção.
Hércules Corrêa
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Polifonia, intertextualidade e produção de sentido