V Encontro de Estudos Literários da UEMS:
Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação
ANAIS DO V EEL
08 A 10 DE SETEMBRO DE 2014
ISSN:
Realização:
Apoio: FUNDECT e CAPES
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MATO GROSSO DO SUL - UEMS
UNIDADE UNIVERSITÁRIA DE CAMPO GRANDE
REITOR
Fábio Edir dos Santos Costa
VICE-REITOR
Eleuza Ferreira Lima
GERENTE DA UUCG
Kátia Figueira
COORDENADOR DO EVENTO
Danglei de Castro Pereira
COORDENADOR DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS DA UEMS
Eliane Maria de Oliveira Giacon
Editor
Danglei de Castro Pereira
COMITÊ CIENTÍFICO DOS ANAIS DO V - EEL
André Rezende Benatti
Angela Cristina Dias do Rego Catonio
Danglei de Castro Pereira
Elanir França Carvalho
Janeci Raquel Rodrigues Castro Pereira
José Alonso Torres Freire
Lucilo Antônio Rodrigues
Lucilene Soares da Costa
Márcia Maria de Medeiros
Márcio Antonio de Souza Maciel
Neli Porto Soares Betoni Escobar Maban
Ramiro Giroldo
Ravel Giordano de Lima Faria Paz
Rosana Cristina Zanelatto Santos
Susylene Dias Araújo
Wellington Furtado Ramos
DIAGRAMAÇÃO E FORMATAÇÃO
Janeci Raquel Rodrigues C. Pereira
Danglei de Castro Pereira
O conteúdo, a formatação, a revisão linguística dos textos são de responsabilidade dos autores.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ................................................................................................................ 04
ENEIDA MARIA DE SOUZA: CAMINHOS DA CRÍTICA ........................................... 05
Camila TORRES (PG – UFMS); Edgar Cézar NOLASCO (PAC – UFRJ/UFMS)
O GÊNERO CRÔNICA E SUAS CARACTERÍSTICAS LINGUÍSTICODISCURSIVAS EM SALA DE AULA ............................................................................... 15
Célia
Maria
Vieira
ÁVALOS
(UEMS/NEHMS/FUNDECT)
(PG–UEMS);
Danglei
de
Castro
PEREIRA
ALFABETIZAÇÃO E TECNOLOGIA: UM OLHAR PARA O COTIDIANO
ESCOLAR MUNIDO PELAS POSSIBILIDADES DO USO DIDÁTICO DO
COMPUTADOR ................................................................................................................. 30
Clodoaldo Almeida dos SANTOS (PG/UEMS); Antonio SALES (UEMS)
UMA LEITURA DO CONTO INDÍGENA “A FORÇA DA SUCURI” EM BUSCA DO
LETRAMENTO LITERÁRIO ......................................................................................... 43
Elisangela Dias SABOIA (PG/UNEMAT); Nilze Maria MALAGUTI (PG/UNEMAT);
Sérgio CERVIERI (PG/UNEMAT)
O DESESPERO E OS HUMORES D’O CORPO ............................................................. 55
Fábio Dobashi FURUZATO (UEMS)
UMA VIDA EM SEGREDO: DA LITERATURA AO CINEMA ..................................... 63
Fernanda de Souza RODRIGUES (PG/UFMS)
AMIZADE E DIÁLOGO LITERÁRIO ENTRE ABREU E LISPECTOR.................... 75
Fernando ABRÃO Sato (G/UFMS); Edgar Cézar NOLASCO (NECC/UFMS;PACC/UFRJ)
O EPITÁFIO SOBRE A AMIZADE .................................................................................. 83
Francine ROJAS (PG/UFMS); Edgar Cézar NOLASCO (UFMS)
BUGRE: A PALAVRA, O ÍNDIO, A ARTE ..................................................................... 88
Isabella Banducci AMIZO
AINDA HÁ MUITOS ÍNDIOS SEM FALA ..................................................................... 105
Karina Kristiane VICELLI (PG/UFMS)
RUPTURA E TRANSFORMAÇÃO NA NARRATIVA DE JOÃO GILBERTO NOLL ........118
Luciene Veiga da COSTA (PG-UEMS); Eliane Maria de Oliveira GIACON (UEMS)
A ESCRITA DO MÚLTIPLO: EM CENA, A HIBRIDEZ DE GÊNEROS
LITERÁRIOS EM GROGUE, DE TONI BRANDÃO .................................................... 130
Luiz Fernando Marques
(UFMS/Unicamp)
dos
SANTOS
(PG-UFMS/CPTL);
Wagner
CORSINO
A CONSTRUÇÃO CRÍTICA LITERÁRIA: O PERCURSO DA RECEPÇÃO DAS
OBRAS DE RODRIGO LACERDA ................................................................................ 143
Marcilene Moreira DONADONI (PG/UFMS); José Batista de SALES (UFMS)
A PRESENÇA DE EDGAR ALLAN POE EM “WILLIAM WILSON” ..................... 153
Maria da Luz Alves PEREIRA
A LEITURA LITERÁRIA: “NOITE AZIAGA” EM SALA DE AULA ......................163
Nathalie Elias da Silva CAVALCANTE (PG/UEMS); Danglei de Castro PEREIRA
(NEHMS-UEMS)
O TEXTO LITERÁRIO EM SALA DE AULA: OBSTÁCULOS E DESAFIOS .......176
Patrícia Henrique Vieira da Silva CARDOSO (PG/UEMS/CAPES); Lucilo Antonio
RODRIGUES (UEMS)
TEORIA DA VARIAÇÃO LINGUÍSTICA ................................................................... 182
Patricia Damasceno FERNANDES (PG/UEMS)
NAU CATRINETA: PROCESSO DE DEVORAÇÃO CRÍTICA NA LITERATURA
DE RUBEM FONSECA .................................................................................................. 188
Silvio do Espírito SANTO (PG/UEMS); Danglei de Castro PEREIRA (UEMS/NEHMS)
A IMPORTÂNCIA DA LITERATURA INFANTIL NA FORMAÇÃO DAS
CRIANÇAS: UMA ANÁLISE DO LIVRO “NA PRAIA E NO LUAR, TARTARUGA
QUER O MAR” DE ANA MARIA MACHADO ........................................................... 204
Vagner Teixeira da SILVA (PG/UEMS)
O TIO HERÓI E SEU PERCURSO MITICO POR ENTRECÉUS EM MEU TIO
ROSENO, A CAVALO, DE WILSON BUENO ............................................................... 212
Vanessa Corrêa da GAMA (PG/UFMS)
MULHERES ANGUSTIADAS NAS COLUNAS FEMININAS DE CLARICE
LISPECTOR ...................................................................................................................... 223
Willian Rolão Borges da SILVA (PG/UFMS); Edgar Cezar NOLASCO (UFMS)
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APRESENTAÇÃO
O V – Encontro de Estudos Literários da UEMS – EEL – realizado nos dias 08 09 e 10 de
setembro de 2014 é resultado de discussões realizadas no Grupo de Pesquisa “Historiografia
Cânone e Ensino” – GPHCE e no Núcleo de Estudos Historiográficos de Mato Grosso do Sul –
NEHMS. A realização do EEL congrega ações desenvolvidas na UEMS, na UFMS e na UCDB
instituições envolvidas nas atividades do NEHMS e no GPHCE. Das reuniões do Grupo de pesquisa
surgiu o tema do evento, que congrega pesquisadores de diferentes IES de Mato Grosso do Sul e do
Brasil. O V – Encontro de Estudos Literários, nesse sentido, foi realizado em conjunto com o I Encontro de Letras da UCDB e é vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da UEMS e
aos cursos de Graduação e Bacharelado em Letras da Universidade Estadual de Mato Grosso do
Sul.
Para a realização do V – EEL contou com o apoio financeiro do FUNDECT/MS e da
CAPES, instituições as quais agradecemos pela colaboração. A ideia central do I-EEL é, em um
contexto mais amplo, promover o diálogo plural e a proximidade das ações de pesquisa em Estudos
Literários, promovendo a valorização de diferentes linguagens. Em uma perspectiva mais específica
é, também, oferecer visibilidade as ações do NEHMS e GPHCE, bem como fortalecer lastros de
pesquisa dentro da área de Letras, conforme CNPq, como uma ação de consolidação da Grande área
de Letras nas instituições envolvidas com o EEL.
Entendemos o EEL como um momento de estimular a produção de novos conhecimentos, de
desenvolver o espírito de pesquisa e, consequentemente, de contribuir para a formação dos
profissionais da área de Letras em MS, via contato como pesquisadores de outras IES. Os artigos
dos ANAIS, ora publicado, resultam dos trabalhos apresentados durante o V EEL e compreendem
um esforço em divulgar as pesquisas apresentadas no evento, dando, com isso, oportunidade aos
congressistas de um maior contato com as pesquisas desenvolvidas e apresentadas no evento em
forma de comunicações individuais.
Agradecemos a valiosa contribuição da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e da
Universidade Católica Dom Bosco que conjuntamente com a Universidade Estadual de Mato
Grosso do Sul e o FUNDECT/MS e a CAPES contribuíram para a realização do evento.
Comissão Organizadora do V - EEL
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ENEIDA MARIA DE SOUZA: CAMINHOS DA CRÍTICA
ENEIDA MARIA DE SOUZA: PATHS OF CRITICISMO
Camila TORRES (PG – UFMS) 1
Edgar Cézar NOLASCO (PAC – UFRJ/UFMS) 2
Resumo: Este ensaio tem como objetivo realizar uma leitura crítica de parte da obra de Eneida
Maria de Souza, tendo como base o trajeto intelectual da professora emérita ao longo dos anos de
pesquisa desenvolvidos dentro e fora do país e através de suas publicações que refletem as leituras
da mesma. Nesse sentido me deti especificamente nas obras: A pedra mágica do discurso (1999);
Crítica cult (2002); Tempo de Pós-Crítica (1994); Traço crítico (1993). Para tanto, nos valeremos
essencialmente dos postulados da crítica biográfica, por entender que a mesma trabalha de forma
mais satisfatória a relação vida/obra de um intelectual e por estar atravessada pelas sensibilidades
locais daquele que erige seu discurso. Entre as obras que contemplam o nosso recorte
epistemológico, merecem destaque: Crítica cult (SOUZA, 2002); Janelas indiscretas: ensaios de
crítica biográfica (SOUZA, 2011); Historias locais/ projetos globais (MIGNOLO, 2004);
Representações do intelectual (SAID, 2005); Cadernos de estudos culturais: crítica biográfica
(CADERNOS DE ESTUDOS CULTURAIS, 2010).
Palavras-chave: Intelectual. Leitura crítica. Eneida.
1 NOTAS PRÁTICAS
Ao escrever este ensaio pensei em dispensar apresentações, porque trabalhando com o
mesmo objeto de pesquisa há três anos, poderia assim passar esta etapa. Entretanto, ao assistir a
conferência proferida pelo professor Silviano Santiago, no III Colóquio do NECC: entrelugares póscoloniais, em que o professor comentou sobre um episódio falho de um anfitrião, é melhor manter
as devidas apresentações para que não haja constrangimentos. Desta forma, mais uma vez e sem
nenhuma preocupação em ser repetitiva, apresento meu objeto de pesquisa: a professora e
intelectual Eneida Maria de Souza.
Nascida em Manhuaçu, cidade do interior de Minas Gerais, filha de professora, Eneida
Maria de Souza seguiu os passos da mãe, dona Lilita, e também ingressou na carreira docente.
Formou-se em Letras no ano de 1966 pela UFMG. Concluiu mestrado na PUC do Rio também em
Letras – Literatura Brasileira em 1975. É doutora em Literatura Comparada - Semiologia 1
Mestranda em Estudos Comparados pelo PPGMEL/UFMS e membro do Núcleo de Estudos Culturais Comparados
(NECC), sob a orientação do Prof. Dr. Edgar Cézar Nolasco. Email: ([email protected]).
2
Prof. Dr. Edgar Cézar Nolasco ([email protected] )
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Université de Paris VII (1982). O curriculum vitae extenso da professora lhe rendeu título de
professora emérita e titular de Teoria da Literatura da Faculdade de Letras da UFMG e professora
visitante em várias universidades nacionais e estrangeiras. Além de ser hoje uma das maiores
intelectuais contemporâneas da América Latina por representar uma geração de críticos literários,
debatendo sobre os estudos de literatura comparada, crítica biográfica, bem como os postulados dos
estudos culturais e pós-coloniais.
A escrita de Eneida é alentada numa obra composta de ensaios, artigos publicados em
diversos periódicos importantes nacionais e estrangeiros e de livros organizados e autorais
importantes para o cenário crítico (literário) brasileiro, sendo o livro Crítica cult uma de suas obras
mais significativas, já que nele a autora reúne 13 de ensaios, alguns proferidos em palestras, outros
encomendados, para discutir a crítica da década 90, tendo como questões-chave a
transdisciplinaridade, a crítica biográfica e outras tendências críticas da América Latina que
convergiram ao nosso lócus enunciativo. Fora isso, vale destacar que a percepção política que
Eneida propõe nos debates articulados por ela, conduz a literatura a outro patamar, isso porque ela
abre o campo da literatura às outras ciências como a filosofia, a psicanálise, a sociologia e
estabelece diálogos com importantes nomes das ciências humanas, como Lévi-Strauss, Candido,
Schwarz, Santiago dentre outros.
A escrita teórica ensaística de Eneida e a inscrição autoral deixada em seus textos registram
o lugar de onde se fala e permite construir o imaginário teórico da pesquisadora marcado pelo
intercâmbio ora sutil, ora nem tanto, entre familiares, amigos e colegas intelectuais. As publicações,
as organizações de livros, as epígrafes e as entrelinhas também contribuem com a construção do
imaginário, já que os mesmos também são marcas autorais, bem como colaboram na construção do
perfil intelectual e social percorrido por Eneida Maria de Souza que contribui com a história da
crítica literária brasileira.
O objetivo deste ensaio é percorrer a trajetória intelectual de Eneida Maria de Souza ao
longo dos últimos vinte anos, que foram de fundamental importância na carreira da autora e na
história da crítica do Brasil, conquistada pela prática de uma escrita produtiva. A autora de espírito
enérgico trava no cenário acadêmico brasileiro discussões sobre a literatura comparada, a teoria da
literatura e chega com sucesso à crítica biográfica, da qual Eneida é pioneira no assunto.
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2 CAMINHOS CRÍTICOS
De acordo com Luiz Costa Lima a escrita da academia deve ser por excelência a escrita
teórica, que possa dialogar sistematicamente com outras correntes teóricas, sem se valer de discurso
sedutor, da palavra teatralizada que o ensaio faz. Se para o autor a escrita ensaística não é capaz de
estabelecer diálogos teóricos consistentes, Eneida Maria de Souza por meio dos próprios ensaios
mostra que a escrita leve sobre o discurso crítico brasileiro dá espaço para que a literatura se abra a
novas ciências. A professora emérita já dava indícios disso quando há vinte anos já se propunha a
escrever ensaisticamente e, de maneira muito tranqüila, dialogar com seus colegas intelectuais.
É fato que a nossa escrita passa por mudanças e não foi diferente com Eneida. Filha do
estruturalismo, até chegar ao que ela chama de crítica compósita, foi preciso muito trabalho. No
livro A pedra mágica do discurso, por exemplo, o que vemos é uma escrita de abordagem
estruturalista. Na segunda edição do livro (1999), revista e ampliada, Eneida comenta sobre as
leituras que realizou para que resultasse em sua tese de doutorado 1. Nela, Eneida Maria de Souza
faz uma leitura analítica da obra Macunaíma, de Mario de Andrade, pelo viés da antropologia de
Lévi-Strauss, na discussão paradigmática dos temas e personagens. Segundo Eneida, tal
“contradição” em buscar nos estudos sociológicos embasamento para sua escrita tem justificativa:
A passagem da abordagem estruturalista Lévi-strausseana para o enfoque
intertextual de caráter discursivo não significou um rompimento com o método
estruturalista de análise. Ao apropriar-me de textos pertencentes ao pensamento
pós-estruturalista, ampliou-se para mim o horizonte de estudo para questões de
ordem semiológica, como a linguagem, o discurso e o sujeito. (SOUZA, 1999, p.
15.).
Ou seja, apesar da formação estruturalista e ter como base os estudos de Bakhtin, Eneida
prefere não ter um posicionamento puramente ortodoxo, na leitura que faz do seu objeto de estudo,
já que o material analítico que tinha propiciava à autora estabelecer relações com outras obras. É
nesse momento que ela consegue realizar associações no processo de construção de linguagem
proposto por Mário de Andrade e propor também uma leitura comparatista quando, por exemplo,
ela aponta a relação intertextual entre Macunaíma e Gargântua e Pantagruel, de François Rabelais,
no que dizia respeito ao trato da linguagem com que as personagens livro tinham com as
expressões, provérbios e frases feitas.
Porém, o enfoque maior foi dado ao exame do discurso brasileiro e os procedimentos de
linguagem, desviando assim o interesse exclusivo pela abordagem estruturalista antropológica.
1
Tese intitulada Des Most, des Langages et des Jeux: une lecture de Macunaíma, de Mário de Andrade.
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Dessa forma, cada elemento da narrativa de Macunaíma se torna importante para a construção do
texto da autora. Por exemplo, ela trata de cada um dos personagens e a representatividade dos
mesmos. Segundo Eneida
Retomo fragmentos de frase e de contos, repetindo a técnica de montagem crítica e
escritural do autor de Macunaíma, pedaços do Brasil que entram pelas frestas dos
livros, pelas páginas adormecidas dos dicionários, ganhando vida textual.
Particularizo o discurso em mosaico de Macunaíma, infiltrado nas miudezas de
linguagem, nas frases feitas que compõem e desconstroem a paisagem desse livro
arlequinal e em perpétua transformação. (SOUZA, 1999, p 22).
Além disso, vale destacar que o que justifica o título A pedra mágica do discurso é
justamente o interesse pela autora em trazer para sua análise o caráter metalingüístico e metafórico
que a pedra, bem como a fala do papagaio, têm como valor discursivo na obra andradiana. Segundo
Eneida, o artefato atua na obra de Mario de Andrade como uma metáfora dos estudos de linguagem
que ela desenvolve em sua tese:” a pedra mágica do discurso, assim como as expressões, as frases
feitas, os versos e advinhas assumem o estatuto de ajudantes mágicos, personagens e objetos que
funcionam nos contos populares como ajudantes dos heróis.”( SOUZA, 1999, p. 23.) Daí o propósito
em escolher a pedra como linha interpretativa assumida por Souza, já que tal artefato imprime à
obra a categoria de elemento produtor de vários discursos com diferentes registros, dependendo da
situação.
Contudo, mesmo realizando tal literatura analítica, Eneida já sabia que as questões populares
que a obra de Andrade poderia assumir outro nível, que não o de análise. Até porque a obra
Macunaíma nos leva a refletir sobre a questão da identidade cultural e nesse primeiro momento
Souza, que depois vai discutir sobre o boom dos Estudos Culturais, consegue articular o discurso
crítico imbricado em sua análise voltando a sua discussão para o antropofágico e a importância que
o termo carrega.
Posteriormente, Eneida vai escrever Traço crítico (1993), outro livro importante na carreira
acadêmica da autora, pois nesse livro a mesma já da indícios critico biográficos, além de estabelecer
discussões importantes acerca da crítica literária e o caminho que ela toma nos anos 90. A obra é
dividida em três partes (Grifos no sujeito; Riscos do corpo; Grafias do desejo) e é composto por 16
ensaios. Um dos que julgo mais importante é o primeiro, intitulado “Querelas da crítica”, neste
Eneida faz uma breve trajetória histórica da literatura brasileira mais especificamente nos anos 70 e
o que se percebe é que nessa fase de escrita da autora a leitura comparatista é o maior destaque. Isso
porque Eneida coloca em diálogo vários intelectuais da literatura que segundo ela “sentiam-se na
obrigação de decidir sobre os destinos da crítica” (SOUZA, 1993, p.01).e na tentativa de acertar o
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discurso brasileiro acabou por se tornar incompreensível, já que o discurso acadêmico passa por
uma roupagem metalinguística estritamente científica. Daí a necessidade de colocar em discussão
autores como Merquior, Marilena Chauí, Schwarz, Flora Süssekind, Santiago entre outros que vão
abordar o tema do discurso crítico do Brasil, bem como a abertura ao mesmo que de acordo com
Eneida é mais eficaz, já que um discurso rebuscado não faz a crítica melhor. De acordo com ela:
Rechear o discurso crítico com uma retórica metalingüística só tende a tornar a
linguagem rebuscada e de mau gosto, como se verifica em vários textos que o
crítico, ao abusar das metáforas, as esvazia de sentido [...]. O discurso analítico
contemporâneo, uma vez desvencilhado do hermético que o caracterizou nas
décadas anteriores e da “literatice” freqüente nos dias atuais, conseguirá se impor
de forma mais eficaz e compreensiva, ao reunir a tradição acadêmica com o traço
ensaístico. O distanciamento e a encenação crítica do sujeito investigador deverão
ser as condições indispensáveis para a continuação de um sério trabalho
acadêmico, bem como da reflexão sobre a linguagem e seus processos criadores. O
sujeito não terá que se esconder num pretenso cientificismo nem se alardear como
mestre do discurso. (SOUZA, 1993, p. 9).
Sobre essa passagem o que chama atenção neste ensaio é a nota de rodapé, na qual Eneida
reproduz a carta que Luiz Costa Lima escreve para ela discordando da posição da autora que sempre
prezou pela escrita ensaística. Na carta, Costa Lima refuta o posicionamento crítico de Eneida por
acreditar que o discurso acadêmico científico traz maturidade e enriquecimento intelectuais à
crítica. Além disso, faz duras críticas ao texto como um todo citando cada um dos teóricos que
Eneida menciona. O fato é que ele discorda com quase todo o texto no que diz respeito à linha que a
autora escreve, segundo ele:
Para dizê-lo simpaticamente: há os que se mantêm contrários ao que o
estruturalismo representou e há os que com ele se desenvolveram. O que não é
mais possível é pensar-se em uma unanimidade de direções, nem muito menos
confundi-las com posições progressistas ou reaças. Melhor, a linha avançada ou
reaça na reflexão sobre um objeto como a literatura não se confunde tout court com
um progressismo ou reacionarismo político (...) (SOUZA, 1993, p.12.)
Simpaticamente, como o próprio Costa Lima se intitula, o autor coloca em destaque aquilo
que o incomodou. Mas o mais interessante é o fato de Eneida ter publicado esta carta que é
importante primeiro para colocarmos em diálogo os dois extremos pensantes da literatura; segundo
porque por tal posicionamento Eneida se coloca como intelectual e não se resigna ao direito de
expressão de sala de aula, pelo contrário, essa exposição permite abrir a discussão não só ao espaço
acadêmico que Costa Lima tanto privilegia e também porque me ajuda a construir o imaginário que
tento criar da autora com a escrita da minha pesquisa.
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Outro texto importante é “Borges, autor das Mil e Uma Noites”, que (in)diretamente vai
dialogar com o texto de Silviano Santiago “Eça, autor de Madame Bovary”. No ensaio, Eneida cria
um imaginário para Borges a partir da leitura que faz do conto “Pierre Menard, autor do Quixote”
(com o qual o diálogo é fundamental) e nele os dados críticos biográficos aparecem com maior
enfoque já que pelo texto Eneida consegue delinear o perfil de Borges pelo texto e também pela
historicização da vida do autor que ela tece no início do ensaio. Ainda no começo de uma escrita
crítico biográfica, o texto já conta com a leveza ensaística de Eneida e num jogo de realidade e
ficção. A autora leva o leitor a viajar pela vida de Borges e pela biblioteca de Menard e também a
refletir sobre a reduplicação de vidas que acontecem ao longo dos textos já citados e do próprio
texto de Eneida.
Outro ponto importante é que Souza, tal escrita, retoma a discussão do plágio, que já havia
sido tratada sem muita ênfase em A pedra mágica do discurso, mas com outra roupagem, porque ela
não está preocupada em discutir a teoria nua e crua. No conto de Borges Eneida articula essa
questão vai ilustrando a discussão já embasada na crítica biográfica. Ou seja, sem se importar com o
que é da ordem do real ou da ficção, porque a escrita permite esse debate metaforizado, tal qual
como encontramos no conto de Borges ou de Santiago. Vale lembrar que Borges vai ser,
posteriormente, objeto de estudo aprofundado de Souza, no qual origina a publicação do livro O
século de Borges. De modo que o ensaio sobre o qual comentamos é o começo da discussão travada
por Souza sobre o autor argentino.
Já inserida na teoria da crítica biográfica, Souza vai escrever o livro Tempo de pós-crítica:
ensaios, que originalmente foi o Memorial de concurso para Professor Titular de Teoria da
Literatura da UFMG, defendido e publicado em 1991 (SOUZA, 1994, p. 11.). O avanço da discussão
proposta por Eneida nesse livro fica evidente, pois nele, ao realizar a trajetória histórica de sua vida
acadêmica Souza se coloca como “personagem” de sua escrita. Voltada aos estudos de Teoria da
Literatura e à crítica comparada, nesse livro, o que se percebe é que a carreira da professora está em
aprimoramento, tal como ela rotula, de modo que a mesma sente a necessidade de abrir novas portas
ao campo do saber. Se até aqui vimos Eneida discutindo sobre o discurso crítico praticado nos
trópicos, primeiro com o Macunaíma, depois com Borges, depois com as demais personalidades da
crítica brasileira, nesse momento também não é diferente. A diferença é que o interesse em outras
disciplinas permite a abertura ao debate proposto pela professora. Segundo ela,
Na tentativa de melhor compreender o discurso crítico praticado nos trópicos,
tenho me dedicado à sua sistematização, tarefa que exige o acompanhamento
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ENCONTRO DE ESTUDOS LITERÁRIOS DA UEMS, 5., 2014, Campo Grande, MS. Anais eletrônicos... Campo
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contínuo das teorias em curso, não só no campo da crítica literária e cultural, como
de outras disciplinas. (SOUZA,1994, p. 129.)
É nesse momento que a crítica biográfica e crítica genética se destacam no discurso de
Eneida Maria de Souza por serem modalidades novas de pesquisa no âmbito da crítica
contemporânea, além de exigirem da autora maior paciência e dedicação. Dois pontos que vão levar
Eneida ao pioneirismo de tal modalidade no Brasil, sendo hoje a pesquisadora mais influente no que
diz respeito à teoria da crítica biográfica. Sobre a crítica biográfica, Eneida diz que
(...) atinge uma compensação de ordem profissional e pessoal, ao poder, na posição
de crítica literária, brincar um pouco de ficção, através da criação de pequenas
biografias de escritores, ao associar fatos da vida com situações ficcionais. Penso
estar aproximando o texto da literatura de seu autor, a vida da ficção, a fantasia do
real, uma das possíveis estratégias com vistas a tornar a crítica literária um prática
vinculada à experiência, à medida que a grafia se vê contaminada pelo bio.
(SOUZA, 1994, p. 129.).
A maleabilidade com que Eneida desenrola essa prática vinculada à experiência vai originar
posteriormente o livro Janelas indiscretas: ensaios de crítica biográfica, que de fato contribui para
uma crítica mais alentada sem, no entanto, ter a escrita acadêmica como ponto de partida. É a crítica
latina se enveredando por caminhos críticos consistentes. É a abertura da crítica nacional à crítica
latino-americana visto que estando no mesmo solo, pertencendo ao mesmo continente, acabam por
comungar de temas e questões como as modernidades tardias, a transculturação, territórios
transdisciplinares, entre outros e todos perpassados pela teoria crítico biográfica.
É por tal motivo que Eneida vai dizer no livro Crítica cult, no ensaio “Notas sobre a crítica
biográfica” que a crítica biográfica é de natureza compósita. No dicionário on-line Priberam a
palavra compósito apresenta cinco definições
Com-pó-si-to: (latim compositus, -a, -um, disposto convenientemente, combinado,
regulado, calmo, .tranquilo)
adjetivo
1. Que tem vários elementos .heterogêneos. = COMPOSTO
2. Que tem diversas finalidades; que serve múltiplos .objetivos.
3. [Arquitetura] Relativo à ordem compósita.
4. [Botânica] Relativo às compósitas.
substantivo masculino
5. [Arquitetura] Ordem .arquitetônica que mistura o estilo .jônico e o coríntio,
criação dos .arquitetos do século XVI. (COMPÓSITA. In Dicionário Priberam da
Língua Portuguesa. 2008-2013.)
Dessas as duas primeiras me interessam, já que corroboram aquilo que Eneida propõe ao
dizer que a crítica biográfica é por sua natureza compósita. Ou seja, porque é capaz de englobar a
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ENCONTRO DE ESTUDOS LITERÁRIOS DA UEMS, 5., 2014, Campo Grande, MS. Anais eletrônicos... Campo
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relação entre autor e obra, realidade e ficção, além de possibilitar que as interpretações se deem fora
dos limites da literatura, pois pontes metafóricas podem ser criadas entre aquilo que é da ordem do
real e da ordem do imaginário. Nesse sentido, a crítica biográfica acaba por tirar o papel exclusivo
da literatura e amplia o horizonte de relações culturais. Assim, o discurso propriamente dito já não
toma lugar exclusivo nos estudos da autora, tampouco daqueles que acompanham a evolução da
crítica latino-americana. Ora, a abertura ao debate cultural nos leva a pensar pós-colonialmente. A
leitura contemporânea da academia já estava sendo feita por Eneida há um tempo atrás quando a
mesma deixa evidente em seus ensaios que é um erro alocar conceitos, ou adaptar as leituras. Tanto
que Souza vai apontar que esse é um dos maiores erros da crítica.
Nesse ponto, os anos dedicados ao estudo do discurso são importantes porque Eneida
entende que não é possível usar um mesmo conceito para pensar culturas diferentes. Coloca que tal
prática é um vício teórico e que vem daí a maior problemática de os intelectuais buscarem as noções
de cópia e originalidade na década de 70. Pensando por tal viés, Souza vai dizer que
é preciso contar com a formulação de um locus de enunciação migrante, na medida
em que a identidade já se reveste como híbrida, ao falar e responder a partir de dois
ou mais lugares, não conduzindo portanto, a sínteses, fusões ou identidades
estáveis. (SOUZA, 2002 p. 13, grifo nosso).
Note que ao articular sua fala pensando de um lugar em questão, considera-se a diferença a
qual o sujeito já está imbricado. E é exatamente sobre essa diferença que Walter Mignolo vai
discorrer no livro Historias locais/ Projetos Globais. Enquanto Eneida fala em lócus de enunciação
migrante, Mignolo (2004) vai falar em local geoistórico e sensibilidades geoistóricas. De forma que
ao considerarmos o lugar do qual o sujeito erige seu discurso passamos a desfazer os legados
coloniais. Grosso modo, o que ambos autores concordam é que o mundo tem como ponto de
referência Europa e Estados Unidos, construtores de projetos globais e que a América Latina e
Brasil são marcados pela colonialidade do poder. 1
A teoria pós-colonial representada por Walter Mignolo, ao articular a diversidade de formas
críticas de pensamento, reflete sobre a marcação do lugar de enunciação do intelectual que, de
acordo com o autor argentino radicado nos Estados Unidos (2013), deve estar entre os saberes
locais e globais do pensamento contemporâneo. A própria Eneida demonstra isso ao encadear, ou
mesmo, trazer para sua própria discussão as considerações que Mignolo trava a respeito do local e
do global, quando diz que os saberes globais “motivam a reflexão contemporânea sobre os lugares
de produção dos saberes locais, bem como sobre a articulação sobre outros saberes globais”
1
Ver Mignolo.
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(SOUZA, 2002. p. 46-47.) Assim, quando consideramos o discurso erigido de lugares como o
Brasil, marcado pelo colonialismo, estamos levando em conta que as histórias locais conseguem
desfazer essas heranças coloniais que nos foram impostas ao longo da história que construímos até
aqui.
Voltando ao foco e pensando na escrita de Eneida, a marca autoral presente em seus textos
serve para que pensemos na contramão do sujeito que lê e do sujeito que é lido, baliza que somos
parte do processo de escrita ao qual estou/estamos inserido(s), pois é a partir da presença do
intelectual que se torna possível pensar na crítica biográfica enquanto prática, na fusão do sujeito da
teoria e do sujeito pensante.
Pelo breve caminho que percorremos até aqui, vemos como foi o processo que levou Eneida
Maria de Souza a se consagrar no cenário acadêmico brasileiro. O espírito polêmico de Eneida e a
vontade de traçar um novo rumo para a literatura brasileira e latino-americana fazem da autora
mineira não só meu objeto de pesquisa, como serve para ilustrar o perfil de como ser um bom
intelectual na contemporaneidade. Além disso, ter uma pesquisadora como Eneida Maria de Souza
no Brasil nos permite ingressar no discurso global sem as amarras do academicismo, porque tomada
pela vontade transdiscilplinar Eneida traz para o cenário crítico uma postura aberta às diferenças,
voltada para o local, pautada na crítica biográfica e fundamental para o crescimento do discurso
crítico brasileiro. Vemos os estudos propostos por Eneida como uma extensão dos estudos da crítica
literária e uma articulação consistente no que diz respeito aos debates crítico-político-literários e
como uma forma de marcar os pontos de vista, pensando nos textos subalternos advindos das
margens periféricas como base aos discursos fronteiriços que marcam essencialmente a realidade
brasileira, latino-americana, na qual Souza está inserida.
REFERÊNCIAS
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<http://www.priberam.pt/dlpo/comp%C3%B3sita> Acesso em 30 de Julho 2014.
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1999.
MATTOS, Patrícia Junqueira. O perfil intelectual do escritor pós-moderno Silviano Santiago.
Dissertação de mestrado. Três Lagoas, MS: [s.n.], 2008. 152 f.
MIGNOLO, Walter. Histórias locais/ Projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e
pensamento liminar. Trad. Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
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SANTIAGO. Silviano. “Eça, autor de Madame Bovary”. Disponível em <
http://www.ime.usp.br/~tycho/prosody/vlmc/data/is2005/IS2005/Textopb/SS1.txt > Acesso em 29
de Julho 2014.
SOUZA, Eneida Maria de. Luiz Costa Lima crítica em palimpsesto. Cadernos de pesquisa. Belo
Horizonte. NAPq/FALE/UFMG. Nº 07. Novembro de 1992. Disponível em: <
http://www.letras.ufmg.br/site/E-livros/Luiz%20Carlos%20Lima%20%20Cr%EDtica%20em%20Palimpsesto.pdf > Acesso em 29 de Julho 2014.
______. A pedra mágica do discurso. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.
______. Crítica cult. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
______. Tempo de Pós-Crítica. Belo Horizonte: UFMG, 1994.
______. Traço crítico. Belo Horizonte; Rio De Janeiro: UFMG/UFRJ, 1993.
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O GÊNERO CRÔNICA E SUAS CARACTERÍSTICAS LINGUÍSTICO-DISCURSIVAS EM
SALA DE AULA
THE GENDER CHRONIC THEIR LINGUISTIC AND DISCURSIVE FEATURES IN THE
CLASSROOM
Célia Maria Vieira ÁVALOS (PG/UEMS)1
Danglei de Castro PEREIRA (UEMS/NEHMS/FUNDECT)2
Resumo: Este artigo pretende contribuir com o estudo do gênero crônica e suas características
linguístico-discursivas, visando melhor aproveitamento pedagógico em sala de aula do ensino
médio. A crônica, por ser um gênero que apresenta dupla filiação, haja vista o tempo e o espaço
curtos permitirem tratamento literário a temas jornalísticos, busca do jornal a brevidade e a urgência
e da literatura, o encantamento e a poeticidade, recriando o cotidiano de maneira simples, divertida
e em um viés dialógico, estabelece uma crítica social. Por essas características, por sua concisão e
leveza, a crônica torna-se um gênero peculiar para o professor promover estratégias adequadas para
a leitura e a produção textual. Para tanto, o corpus do trabalho apresenta textos de Luís Fernando
Veríssimo, relevante escritor brasileiro da contemporaneidade e, com fundamentação teórica
contribuições dos autores: Moisés (1978), Sá (1985), Candido (1992), Arrigucci (1987), Silva
(2002), Coutinho (2003), Bakhtin (2003) e demais colaboradores. Nossas considerações
demonstram a transitoriedade e a despretensão do gênero, no qual o autor evidencia tanto sua
subjetividade, como seu talento de “contador de histórias”, propiciando uma reflexão poética dos
valores existenciais.
Palavras-chave: Crônica. Leitura. Produção Textual.
1 INTRODUÇÃO
Com o objetivo de contribuir com o estudo que leve o aluno a aprimorar o contato com a
leitura, desenvolver o pensamento crítico e a autonomia para a efetiva prática da oralidade, leitura e
escrita, busca-se com este artigo analisar o gênero discursivo crônica e suas características
linguístico-discursivas sob a óptica de melhor aproveitamento nas práticas pedagógicas do ensino
médio.
O corpus do trabalho conta com leituras de enunciados concretos do gênero, evidenciando a
visão subjetiva do cronista Luís Fernando Veríssimo, um dos maiores escritores brasileiro
1
Mestranda em Linguagem: Língua e Literatura da Pós-Graduação stricto sensu Mestrado em Letras pela Universidade
Estadual de Mato Grosso do Sul – UEMS - [email protected]
2
Professor Doutor da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul/UEMS/ - Unidade Universitária de Campo Grande
[email protected]
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contemporâneo e, também, destacar seu dom de contador de histórias. O autor apresenta textos que
visam ao humor e à crítica social, desenvolvendo a competência linguística como uma atividade
prazerosa, atribuindo significação ao texto, com base na identificação das marcas textuais e nas
inferências sugeridas para uma melhor compreensão e interpretação do texto.
A crônica é um gênero textual híbrido, muito difundido no Brasil, em uma intersecção entre
as modalidades do jornalismo e da literatura e, embora nem sempre a crônica apresente uma forma
pura, predominando sempre algum dos tipos textuais, o gênero propicia uma abordagem textual e
escrita que visa ao tratamento do assunto por meio de diferentes tratamentos de estilo e concepção
de texto: humorística, lírica ou poética, reflexiva, jornalística.
Nesse sentido, para a análise do gênero crônica, buscou-se embasamento na noção
bakhtiniana de dialogismo. Segundo as teorias de Bakhtin (2003), a leitura deve fluir como um
processo de produção de sentidos, por meio das interações sociais e dialógicas entre o leitor e o
texto, haja vista que o leitor é convidado a participar da elaboração de sentido do texto quando no
confronto do seu saber e de seu conhecimento de mundo, democratizando o acesso ao saber e à
cultura. Silva (2002) pontua:
A leitura não pode ser confundida com decodificação de sinais, com reprodução
mecânica de informações ou com respostas convergentes a estímulos escritos préelaborados. Esta confusão nada mais faz do que decretar a morte do leitor,
transformando-o num consumidor passivo de mensagens não significativas e
irrelevantes. (SILVA, 2002, p.96)
Desse modo, faz-se necessário ao leitor aprender a relacionar as informações com a situação
de comunicação e com o conhecimento prévio que possui, propiciando, assim, várias possibilidades
de relacionamento com o texto, transformando-se em um coautor, construindo novos sentidos e até
mesmo refutando alguns, aumentando seu senso crítico na proporção que amplia seu repertório de
obras.
Castilho (1986) pensou uma alteração no ensino de língua portuguesa, partindo da ideia da
língua como entidade dialógica, das funções sociais da língua, “sua face mais visível e
circunstante”, para assim por meio de textos graduados, de acordo com o tipo enunciado, chegar às
categorias abstratas, “a face mais escondida, produto de reflexão do especialista visando facilitar o
ensino-aprendizagem”.
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Assim, a explicitação das formas dialogais, faladas e escritas estreitaria os laços entre as
duas modalidades, uma vez que esse distanciamento deve-se muito mais ao gênero textual
selecionado do que em relação às modalidades, também conforme Marcuschi (2001).
Ademais, o trabalho com o gênero crônica torna-se um fértil caminho para o estudo da
oralidade na escrita e, por meio de uma linguagem simples, despojada, dialoga com o leitor e
transforma a realidade presenciada por ambos em ficção, repleta de lirismo, humor, proporcionando
leveza, porém com responsabilidade e criticidade, às questões universais.
Abordaremos, no presente estudo, as características, a historicidade e a importância literária
da crônica na sala de aula, assim como o seu desenvolvimento ao longo das décadas, visando
verificar de que maneira a leitura desses textos podem auxiliar o professor a aproximar os alunos
dos grandes autores da literatura brasileira.
2 CARACTERÍSTICAS DA CRÔNICA
Segundo Moisés (1978), a etimologia do vocábulo crônica vem do grego krónos, o deus
grego que significava tempo, e que os romanos, denominaram Saturno e do latim annu(m), ano,
ânua, anais. Relação essa ainda válida, visto que a crônica sempre esteve relacionada com uma
perspectiva temporal, tanto na escolha do assunto como no tratamento formal desse assunto.
Nesse sentido, a crônica é um gênero que, de forma geral, apresenta estrutura textual e
intervalo de tempo curtos, assemelha-se ao conto e à reportagem. De acordo com Candido (1992),
“pode-se afirmar que a crônica é um gênero a princípio jornalístico, no entanto, ela não se originou
com o jornal”.
De acordo com Moisés (1978) saindo desse âmbito híbrido, a crônica apresenta uma
expressão literária com características peculiares e, de acordo com o autor, a primeira delas é a
brevidade, sendo a subjetividade uma de suas marcas mais relevantes e seu foco narrativo centra-se
na primeira pessoa do singular.
A impessoalidade é não só desconhecida como rejeitada pelos cronistas: é a sua
visão das coisas que lhes importa e ao leitor; a veracidade positiva dos
acontecimentos cede lugar à veracidade emotiva com que os cronistas divisam o
mundo. Não estranha, por isso, que a poesia seja uma; de suas fronteiras, limite do
espaço em que se movimenta livremente e o conto a fronteira de um território que
não lhe pertence. (MOISÉS, 1978, p.255)
Por ser um gênero ligado ao caráter sentimental, à realidade social do cotidiano outra
característica fundamental não pode ser ignorada, a leveza.
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Coutinho (2003) afirma que flexibilidade, mobilidade, irregularidade é próprio da natureza
da crônica. A crônica é um gênero “entre”: entre o jornalismo e a literatura; entre a crônica e o
conto, podendo, assim, preservar a informalidade, outra de suas características.
De acordo com Sá (1985) a crônica tramita entre o lirismo poético e a densidade do conto,
ambos oscilam em uma linha divisória muito tênue. Por isso, é comum a consideração de muitos de
que narrativa curta é sinônimo de conto: “Acontece que o conto tem uma densidade específica,
centrando-se na exemplaridade de um instante de condição humana”. Segundo o autor:
Enquanto o contista mergulha de ponta-cabeça na construção do personagem, do
tempo, do espaço e da atmosfera que darão força ao fato exemplar, o cronista age
de maneira mais solta, dando a impressão de que pretende apenas ficar na
superfície de seus próprios comentários, sem ter sequer a preocupação de colocarse na pele do narrador, que é, principalmente, personagem ficcional [...]. (SÁ,
1985, p.09)
Embora a ambiguidade, no conto o tempo e o espaço são restritos, uma vez que não há essa
liberdade, nem interesse em desvelar o passado ou o futuro das personagens, limitado apenas no
âmbito dramático, assim para que o enredo se desenvolva um só espaço é suficiente.
Embora a crônica possa transmitir alguma superficialidade, toda a transitoriedade e
despretensão do gênero no qual o autor evidencia tanto sua subjetividade, como seu dom de
contador de história, o espaço onde as personagens se movimentam são de âmbito livre, visto que
ao cronista é permitida tal liberdade em uma linguagem solta e desestruturada que se aproxima de
situações e reflexões cotidianas, apontando-se, assim, para uma conversa entre o autor e o
interlocutor sempre numa determinada circunstância.
Com uma linguagem natural, direta e metafórica a crônica dissipa, via de regra, com a prosa
jornalística. E, embora, o espaço predominante da crônica seja o urbano, com recortes inusitados do
cotidiano, aparece também o rural em forma de memória. Infere-se que essa natureza ambígua da
crônica vem ao encontro da afirmação de que a crônica figura entre diversas formas literárias e que
conforme Moisés (1978), “a crônica poderá ser conceituada como a poetização do cotidiano”.
Por essa liberdade e autonomia, a crônica permite-se infiltrar pelas formas dos gêneros
literários. No livro A companheira de viagem, de Sabino (1965), em uma pauta do autor, que mostra
a semelhança entre a crônica e o conto e que, embora designados de crônicas, percebe-se a
ambiguidade e traços de ficção em seus textos, características dos contos e das histórias curtas.
Seu discurso, embora escrito, é viável a partir do modelo teórico e, por meio de marcas de
oralidade, elementos gráfico-linguísticos, uso de uma variante coloquial da linguagem, supressão de
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lacunas sintáticas, recursos que não escapam da perspicácia do cronista para envolver o leitor e
buscar efeitos de sentido, humor, lirismo, ironia, emoção, entre outros, evidenciando nos textos
abordados o dialogismo, a analogia irônica e, também, a voz do indivíduo.
Passaremos agora aos aspectos históricos que embasarão nossa investigação, justificando,
sobremaneira, a escolha desse gênero.
2 HISTORICIDADE DA CRÔNICA
A crônica, nascida na França, originária dos feuilleton dos jornais franceses, a partir de
meados do século XIX, encontrou no Brasil espaço para seu desenvolvimento, ajustando-se,
sobremaneira à imprensa brasileira, ao contexto nacional, repaginando o dia a dia social e
particularidades estruturais próprias.
Em Portugal, a pedido do rei D.Duarte, o mesmo objetivo de registrar essa história ocorreu
em 1418, Fernão Lopes iniciou as Crônicas de D.Pedro I, D. Fernanda e D. João I. O Brasil, a
França e a Espanha tiveram também cronistas históricos, ressaltando que no Renascimento
(séc.XVI) “o termo crônica começou a ser substituído por história” (Moisés, 1997).
Sucede-se a Fernão Lopes outros cronistas, como Pero Vaz de Caminha, século XV, a carta
descoberta na Torre do Tombo em 1773, que segundo Sá (1985) como mais um exemplo ao relatar
a viagem marítima até a Índia, passando pelo Brasil, assinalando o marco dessa modalidade
literária. Conforme o autor, na medida em que Caminha registrou de forma literária como era a terra
descoberta, as circunstancias de seu contato com a cultura e os costumes indígenas naquele
momento histórico de confronto entre a disparidade da cultura europeia e da cultura primitiva,
apresentou uma visão mais de um cronista do que de um historiador. Assim, segundo o autor,
“Caminha estabeleceu também o princípio básico da crônica: registrar o circunstancial”.
Porém, do século XVI em diante, vários cronistas viajantes passaram pelo Brasil,
simultaneamente historicizando ora de maneira descritiva, ora opinativa, porém com significativa
subjetividade, em temas como tipos humanos, religiosidade, costumes, regiões, flora, fauna e tantos
outros.
Assim, ao longo de três séculos de existência, adquiriu muitos adeptos como José de
Alencar, Machado de Assis, Olavo Bilac, Paulo Barreto (pseudônimo João do Rio), entre outros. Na
década de 30, a crônica torna-se largamente difundida e aceita no ambiente jornalístico e literário,
surgindo uma legião de escritores, como por exemplo, Manoel Bandeira, Carlos Drummond de
Andrade, Rubem Braga, entre outros.
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Firmou-se com Drummond e Braga a relação da tradição literária clássica unida a prosa
modernista, relação presente nas crônicas de Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino, na década
de 40 e 50, seguidos por tantos outros.
A crônica adquiriu grande realce durante o século XIX. Os textos, marcados por um viés
divertido e ameno, recorria-se ao conhecimento prévio dos leitores, em um clima de cumplicidade e
proximidade, a respeito dos assuntos selecionados, em uma espécie de código pré-estabelecido entre
autores e leitores, caracterizando o gênero como dialógico por primazia.
Embora não fossem textos pensados para a posteridade, eles obedecem a uma convenção
narrativa que corrobora na construção e complexidade que permeiam o gênero, comprovando assim
que não se deve partir da premissa de que ele é escrito despojado de construção literária. Assim,
todavia a crônica não tenha surgido junto com o jornal, foi por meio dele que ela se consagrou e, no
século XIX, com o objetivo de proporcionar ao jornal maior leveza e expansão, ela acompanhou o
crescimento do número de leitores, contribuindo assim com excelência.
Assim, em 1800 o escritor francês Jean Louis Geoffroy publicou no Journal des Débats,
textos em feuilletons (folhetins). “Seus imitadores entre nós (no Brasil), traduziam o termo para
folhetim, mas já para a derradeira quadra do século a palavra crônica principiou seu curso normal”
(Moisés, 1997). Em estudo clássico sobre o assunto, intitulado A vida ao rés do chão, Candido
(1992), acrescenta:
No Brasil ela tem uma boa história, e até se poderia dizer que sob vários aspectos é
um gênero brasileiro, pela naturalidade com que se aclimatou aqui e a originalidade
com que se desenvolveu. Antes de ser crônica propriamente dita foi folhetim, ou
seja, um artigo de rodapé sobre as questões do dia- políticas, sociais, artísticas,
literárias. Assim eram os da seção “Ao correr da pena”, título significativo a cuja
sombra José de Alencar escrevia semanalmente para o correio Mercantil, de 1854 a
1855. Aos poucos o folhetim foi encurtando e ganhando certa gratuidade, certo ar
de quem está escrevendo à toa, sem dar muita importância. Depois, entrou
francamente pelo tom ligeiro e encolheu de tamanho, até chegar ao que é hoje.
(CANDIDO, 1992, p.15)
De acordo com Candido (1992), a crônica por apresentar uma série de nossas características
históricas poderíamos afirmar ser um gênero predominantemente brasileiro. No entanto, a crônica
teve como marco no Brasil em 1808, com a vinda de D. João VI que trouxe para o país a imprensa e
os folhetins.
Porém, somente em 1836, recebeu o nome de folhetim e, mais tarde o de crônica, e pelos
jornais que se disseminou, aperfeiçoando-se esteticamente e estruturando-se nessa linguagem
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despojada, humorada e lírica. Os folhetins eram publicados no rodapé dos jornais e apresentavam
variados assuntos do dia a dia: contos, artigos, ensaios, romances seriados, poemas, música,
informações sobre teatro e a vida social.
A respeito dos folhetins Sá (1985) afirma-nos que, no pé da página, a crônica:
[...] era apenas uma seção quase informativa, um rodapé onde eram publicados
pequenos contos, pequenos artigos, ensaios breves, poemas em prosa, tudo, enfim,
que pudesse informar os leitores sobre os acontecimentos daquele dia ou daquela
semana [...]. (SÁ, 1985, p.08)
Sendo assim, cresceu ao longo desses anos a produção desse gênero, além de estudos sobre
essa literatura no Brasil. Arrigucci (1987) enfatiza que a crônica por suas qualidades estéticas e por
semelhança com outras formas de escritas literárias:
Teve aqui um florescimento de fato surpreendente como forma peculiar, com
dimensão estética relativa autonomia a ponto de constituir um gênero propriamente
literário, muito próximo de certas modalidades da épica e às vezes também da
lírica, mas com um história específica e bastante expressiva no conjunto da
produção literária brasileira [...].( ARRIGUCCI, 1987, p.53).
A respeito da crônica, Candido (1992), argumenta que “o seu grande prestígio atual é um
bom sintoma do processo da busca de oralidade na escrita, isto é, de quebra do artifício e
aproximação com o que há de mais natural no modo de ser do nosso tempo”. Desse modo, a partir
do século XIX, a crônica aproximou-se mais do jornalismo. Ainda, segundo Arrigucci (1987):
Agora se trata simplesmente de um relato ou comentário de fatos corriqueiros do
dia a dia, dos fait divers, fatos da atualidade que alimentaram o noticiário dos
jornais desde que estes se tornaram instrumentos de informação de grande tiragem,
no século XIX. A crônica virou uma seção do jornal ou da revista. Para que se
possa compreendê-la adequadamente em seu modo de ser e significação, deve ser
pensada, sem dúvida, em relação com a imprensa a que sempre esteve vinculada
sua produção. Mas seria injusto reduzi-la a um apêndice do jornal, pelo menos no
Brasil, onde dependeu na origem da influência europeia, alcançando logo, porém,
um desenvolvimento próprio extremamente significativo. (ARRIGUCCI, 1987,
p.53)
O cronista é um pouco repórter, porque utiliza as informações do cotidiano, porém o que o
diferencia do repórter é por acrescentar um toque pessoal ao texto, mesclando informações com a
exploração da linguagem polissêmica e coloquial.
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Segundo Sá (1985), a crônica, assim como o jornal, nasce, cresce, envelhece e morre em 24
horas. Ademais, esse viés jornalístico imprimiu-lhe fugacidade e um tom popular em oposição ao
caráter eterno e elitista do gênero literário.
De acordo com Moisés (1978), “Crônica é para nós hoje, na maioria dos casos, prosa
poética, humor, lírico, fantasia, etc., amor afastando-se do sentido de história, de documentário que
lhe emprestam os franceses”.
Na sequência, veremos como se deu o desenvolvimento deste gênero, qual a importância
literária da crônica na sala de aula nos dias de hoje e quais são alguns dos grandes autores
brasileiros que escreveram este gênero.
3 A IMPORTÂNCIA LITERÁRIA DA CRÔNICA NA SALA DE AULA
A análise do gênero crônica produz algumas questões relevantes para o melhor
aproveitamento deste gênero nas práticas escolares do ensino médio, bem como para a
compreensão, sob a óptica da literatura, que se realizam com novos subgêneros textuais
contemporâneos.
Com relevância, a literatura que se realiza na fronteira com outros gêneros textuais por
apresentar dupla filiação, permite o tratamento literário a temas jornalísticos, pois busca do jornal a
brevidade e a urgência e da literatura, o encantamento e a poeticidade, recriando o cotidiano de
maneira simples, divertida e em um viés dialógico, estabelece uma crítica social em um processo de
geração de sentidos, constituindo um fluxo de produção textual organizado.
A crônica relegada ao esquecimento ou não, nos faz dialogar com o nosso tempo. Embora
haja quem a considere um gênero menor e, “graças a Deus”, isso acontece, segundo a opinião de
Candido (1992):
Parece mesmo que a crônica é um gênero menor. “Graças a Deus” – seria o caso de
dizer, porque sendo assim ela fica perto de nós. E para muitos pode servir de
caminho não apenas para a vida, que ela serve de perto, mas para a literatura (...).
Por meio dos assuntos, da composição aparentemente solta, do ar de coisa sem
necessidade que costuma assumir, ela se ajusta à sensibilidade de todo o dia.
Principalmente porque ela elabora uma linguagem que fala de perto ao nosso modo
de ser mais natural. Na sua despretensão, humaniza; e esta humanização lhe
permite, como compensação sorrateira, recuperar com a outra mão uma certa
profundidade de significado e um certo acabamento de forma, que de repente
podem fazer dela uma inesperada embora discreta candidata à perfeição.
(CANDIDO, 1992, p.13)
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Cronistas brasileiros e de demais nacionalidades lançaram mão desse gênero e
demonstraram que embora multifacetado e carregado da naturalidade do cotidiano é uma forma
textual bastante importante para a literatura, tamanha a sua sensibilidade e poeticidade.
Sá, em estudo intitulado A Crônica (1987), realça entre outros componentes literários do
gênero a simplicidade, sem prejuízo de qualidade textual, o caráter sintético e urgente, o
coloquialismo, o dialogismo, o “toque de lirismo reflexivo” e a complexidade das dores e alegrias
humanas.
Graças à naturalidade, a crônica consegue ser, ao mesmo tempo, insinuante e reveladora e,
embora a exiguidade de espaço para seu desenvolvimento, ela apresenta os recursos da linguagem
literária: o recorte, a captação e a densidade do instante, a escrita figurativa, o ritmo cadenciado, os
diferentes personagens delineados com precisão.
Dessa forma, argumenta Candido (1992) que “a crônica consegue quase sem querer
transformar a literatura em algo íntimo com relação à vida de cada um (...) e quando passa do jornal
ao livro, verificamos meio espantados que sua durabilidade pode ser maior do que ela própria
pensava”.
E, mesmo não almejando a posteridade, a crônica supera a transitoriedade, tornando-se
duradoura como os livros. Assim, ao cronista cabe a responsabilidade de selecionar com arte seus
textos em uma sequência temporal e temática que mais aproxime escritor de leitor.
Conforme Sá (2005), quando a crônica se quer livro, a atitude diante do texto é que muda,
pois o público leitor será mais seletivo e não mais tão apressado quanto é o dos jornais. Isso leva os
leitores a saborearem as crônicas num tom mais reflexivo e intenso, permitindo novas
possibilidades interpretativas a partir de cada releitura.
Ademais, ao tom de urgência e de síntese da crônica possuir características paradoxais, uma
vez que a urgência deve-se a relação de exiguidade do jornal ou da revista e, o escritor graças à
percepção da importância do tema recortado do dia a dia, confere à crônica maior transitoriedade
temporal, por exemplo, em relação com o conto. Já a síntese, pela aproximação com a poesia,
também classificada como gênero breve, deve o escritor concentrar os recursos estéticos em uma
ambiência textual reduzida devido a tais caracteres. De acordo com Sá, o dialogismo reside no
equilíbrio entre:
Por isso a sua sintaxe lembra alguma coisa desestruturada, solta, mais próxima da
conversa entre dois amigos do que propriamente do texto escrito. [...] o coloquial,
portanto, deixa de ser a transcrição exata de uma frase ouvida na rua, para ser a
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elaboração de um diálogo entre o cronista e o leitor, a partir do qual a aparência
simplória ganha sua dimensão exata. (SÁ, 1985, p.11)
Os traços constitutivos da crônica são, segundo Candido, uma maneira privilegiada e
persuasiva de apresentar ao leitor temas que divertem, inspiram e corroboram com o indivíduo na
sua leitura de mundo, no significado dos atos e sentimentos humanos e estabelecem uma crítica
social.
De acordo com Sá (1985), o cronista com seu lirismo e sua visão aguçada das relações entre
os fatos circunstanciais e as pessoas, entre nós e o mundo, capta recortes fugazes do cotidiano e de
maneira exímia reconta uma história. Conforme afirma o autor esse lirismo está para “um repensar
constante pelas vias da emoção aliada à razão”.
Em todos os cronistas há um certo lirismo, pois é através dos seus estados de alma
que eles observam o que se passa nas ruas. Entretanto já vimos que a aparência de
leveza da crônica revela, quase sempre, o acontecimento captado sob a forma de
uma reflexão, mesmo quando se trata de uma coisa efetivamente ligada ao escritor.
(SÁ, 1985, p.57)
Ainda de acordo com Sá (2005), o cronista “não se limita a descrever o objeto que tem
diante de si, mas o examina, penetra-o e o recria, buscando a sua essência. (...) É preciso ir mais
longe, (...) buscar exatamente aquilo que caracteriza a poesia: a imagem”. E, ainda, de acordo com
o autor, o lirismo reflexivo diz respeito à extensão poética e de pensamento que o cronista capta,
inspirado pela realidade externa, visto que uma imagem, percepção ou até mesmo um
acontecimento pode originar uma reflexão sobre a condição humana.
Dessa forma, com esse lirismo que o cronista transforma a circunstância presente nos breves
recortes diários em uma reflexão emotiva e racional e que, de acordo com o autor, o subjetivismo
configura-se como uma compreensão do texto por quem o presenciou e está contido no “processo
associativo”, ou seja, “o subjetivismo como uma forma de apreensão do ser”.
Drummond (1988), em “Assiste à demolição”, leva o leitor no seu tecer poético-narrativo, e
em uma recriação examina o objeto alvo da crônica.
Começou a demolição. Passando pela rua, ele viu a casa já sem telhado, e
operários, na poeira, removendo caibros. Aquele telhado que lhe dera tanto
trabalho por causa das goteiras, tapadas aqui, reaparecendo ali. Seu quarto de
dormir estava exposto ao céu, no calor da manhã. Ao fundo, no terraço, tinham
desaparecido as colunas da pérgula, e a cobertura de ramos de buganvília – dois
troncos subindo do pátio lá embaixo e enchendo de florinhas vermelhas o chão de
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ladrilho, onde gatos da vizinhança amavam fazer sesta e surpreender tico-ticos.
(DRUMMOND, 1988, p.74)
Assim, a crônica configura-se como um reflexo social de seu tempo e expressa uma
transitoriedade quase obrigatória já que o cronista oscila entre o poeta lírico e o contador de
histórias, devido à visão pessoal, subjetiva do cronista frente a um fato simples do dia a dia e ao
talento de traduzir uma dramatização.
Por tal gênero tratar de temas pertinentes à contemporaneidade, registra o tempo vivido por
seus autores e, uma vez que a escrita está envolta por fatores externos que lhe confere certa
liberdade, embora ligada intrinsecamente ao seu tempo, registra o tempo vivido pelos cronistas,
colaborando com a formação de opinião de seus leitores, visto que constrói na interação uma crítica
ao país e aos seus governantes.
Portanto, faz-se imprescindível analisá-lo considerando os protocolos narrativos, as opções
dos autores e do veículo que tramita, para que além de situar os textos em um momento histórico
torná-los mais coerentes à realidade, visto que não é possível separar o texto das conjunturas social
e política atuais.
Sendo assim, o fato é que do ponto de vista literário e diante da lista de grandes escritores de
crônicas no Brasil, não poderíamos imaginá-los sem a presença de uma peça fundamental: o talento.
Assim, destacam-se: José de Alencar, Machado de Assis, Manoel Bandeira, Francisco Otaviano,
Olavo Bilac, João do Rio, Humberto de Campos, Rachel de Queiroz, Rubem Braga, Paulo Mendes
Campos, Fernando Sabino, Carlos Drummond de Andrade, Henrique Pongetti, Nelson Rodrigues,
Alcione Araújo, Otto Lara Rezende, Carlos Heitor Cony, Affonso Romano de Sant’ana, Luís
Fernando Veríssimo, Arnaldo Jabor, Ferreira Gullar, Marcelo Coelho e tantos outros.
Tomamos como exemplo alguns textos de Luís Fernando Veríssimo. Segundo Menezes
(2002), Luís Fernando Veríssimo é considerado um dos maiores cronistas da atualidade,
contribuindo diariamente com textos para jornais e revistas de todo o país. Veríssimo tem parte
considerável de suas crônicas reunidas em forma de livros, que figuram na lista dos mais vendidos
no país.
Diante dessas colocações, destacamos as principais características da crônica como gênero
literário atual, fizemos um breve percurso sobre sua historicidade, a sua importância literária na sala
de aula e a seguir, apresentaremos comentários sobre algumas crônicas, mostrando passagens que se
aproximam do lirismo e do contar histórias.
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4 COMENTÁRIOS SOBRE ALGUMAS CRÔNICAS DE LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO
O corpus do trabalho apresenta 2 crônicas de Luís Fernando Veríssimo, publicadas em
jornais, revistas e livros. Os comentários consistiram em uma leitura minuciosa das crônicas,
observando passagens que evidenciam a visão pessoal e subjetiva do cronista frente a um fato
qualquer do cotidiano, demonstrando toda a transitoriedade e despretensão do gênero e, por outro
lado, também destacamos seu dom de contador de histórias, propiciando uma reflexão poética dos
valores existenciais.
Crônica 1:
Somos todos filhos do Caminha
Pero Vaz de Caminha descreveu o que viu e sentiu de uma maneira muito pessoal, mentiu um pouco,
fez a sua literaturazinha e até as suas graças (quando usou “vergonha” nos seus dois sentidos, referindo-se
à genitália da nativa e ao sentimento que ela tinha ao expô-la, fazendo assim o primeiro trocadilho do
Brasil) e principalmente precisou escrever às pressas, pois o barco que voltaria a Lisboa com a notícia do
“achamento” tinha prazo certo para sair. Quer dizer, Caminha foi o nosso primeiro protocronista.
(Caros Amigos. abril. 2000:9)
Nessa crônica, Veríssimo, em uma ligação entre cronista e crônica, apresenta o conceito
primeiro da crônica, destinada aos relatos e comentários sobre os feitos históricos em um registro
circunstancial, produto da urgência do tempo, expressa em uma interpretação subjetiva com toque
ficcional. Por meio da metalinguagem, utilizou a crônica para falar das características próprias do
gênero sob um olhar bem humorado e, não necessariamente, fiel à realidade sobre a história relatada
por Caminha e o gênero como estabeleceu entre nós.
Crônica 2:
Provocações
A primeira provocação ele aguentou calado. Na verdade, gritou, esperneou. Mas todos os bebês
fazem assim, mesmo os que nascem em maternidade, ajudados por especialistas. E não como ele, numa toca,
aparado só pelo chão. A segunda provocação foi à alimentação que lhe deram, depois do leite da mãe. Uma
porcaria. Não reclamou porque não era disso. Outra provocação foi perder a metade dos seus dez irmãos,
por doença e falta de atendimento. Não gostou nada daquilo. Mas ficou firme. Era de boa paz. Foram lhe
provocando por toda a vida. Não pode ir à escola porque tinha que ajudar na roça. Tudo bem gostava da
roça. Mas aí lhe tiraram a roça. Na cidade, para aonde teve que ir com a família, era provocação de tudo
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que era lado. Resistiu a todas. Morar em barraco. Depois perder o barraco, que estava onde não podia
estar. Ir para um barraco pior. Ficou firme. Queria um emprego, só conseguiu um subemprego. Queria
casar, conseguiu uma submulher. Tiveram subfilhos. Subnutridos. Para conseguir ajuda, só entrando em
fila. E a ajuda não ajudava. Estavam lhe provocando. Gostava da roça. O negócio dele era a roça. Queria
voltar pra roça. Ouvira falar de uma tal reforma agrária. Não sabia bem o que era. Parece que a ideia era
lhe dar uma terrinha. Se não era outra provocação, era uma boa. Terra era o que não faltava. Passou anos
ouvindo falar em reforma agrária. Em voltar a terra. Em ter a terra que nunca tivera. Amanhã. No próximo
ano. No próximo governo. Concluiu que era provocação. Mais uma. Finalmente ouviu dizer que desta a
reforma agrária vinha mesmo. Para valer. Garantida. Se animou. Se mobilizou. Pegou a enxada e foi brigar
pelo que pudesse conseguir. Estava disposto a aceitar qualquer coisa. Só não estava mais disposto a aceitar
provocação. Aí ouviu que a reforma agrária não era bem assim. Talvez amanhã. Talvez no próximo ano...
Então protestou. Na décima milésima provocação, reagiu. E ouviu espantado, as pessoas dizerem,
horrorizadas com ele: - Violência, não!
(VERÍSSIMO, 1999)
Veríssimo mostra como o discurso crítico subverte as relações de poder tradicionais,
verticais e monolíticas, impondo ordens do opressor para o oprimido. O autor relata sobre a vida de
um cidadão excluído da sociedade, que depois de muito tolerar provocações desde o nascimento até
a vida adulta, acaba por reagir, tomando para si a capacidade de se auto-representar.
Para tanto, para representar a realidade em que o indivíduo marginalizado está inserido o
cronista dramatiza seu texto e revela seu dom de contador de história: “A primeira provocação ele
aguentou calado. Na verdade, gritou, esperneou. [...] E não como ele, numa toca, aparado só pelo
chão. A segunda provocação foi à alimentação que lhe deram, depois do leite da mãe. Uma
porcaria. Não reclamou [...]”.
É perceptível a intenção do autor, na construção do personagem, em dar voz ao indivíduo
sobre a forma de denúncia sobre as condições subumanas em que ele vive. Percebe-se, pois, não há
interesse do autor em desvelar o passado ou o futuro da personagem, dedicando-se na
exemplificação de circunstâncias cotidianas, permanecendo, portanto, restrito ao espaço pautado na
perspectiva dramática.
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Consideramos, assim, encerrada a nossa reflexão sobre o gênero crônica, por meio do qual
pudemos constatar que, embora o texto apresente-se simples e acessível, ele requer do cronista a
obrigação de, em tom despretensioso e em um espaço reduzido, atrair e interessar o leitor.
Ademais, como a crônica está ligada as alegrias e as dores humanas é corriqueiro o escritor
dialogar com o leitor no texto literário e assumir vários posicionamentos sobre problemas políticos,
sociais e humanos, caracterizando o gênero como algo ligado à realidade social cotidiana.
Desse modo, esse estudo corrobora a afirmação de Moisés (1978) de que a crônica é uma
expressão literária de natureza híbrida uma vez que pode perfeitamente assumir uma ou outra forma
literária. Como vimos nas considerações apresentadas, no decorrer deste trabalho, a crônica se
configura como um reflexo social de seu tempo e expressa uma transitoriedade quase obrigatória
que ora invade o terreno do lirismo poético ora a densidade do conto.
As crônicas aqui estudadas foram publicadas em jornais, livros, revistas e apresentam
características muito peculiares e, embora o gênero seja alvo de preocupação de muitos teóricos e
de alguns autores que são constantemente requisitados a manifestarem-se, num consenso, quanto à
conceitualização do gênero, o nosso intuito não é propor nenhum acréscimo a essa busca pelo
estabelecimento de um padrão.
Damos-nos por satisfeitos em incentivar o professor a promover estratégias adequadas para
a leitura e a produção textual e, ainda, de vozes tão relevantes ajudassem-nos mais a promover
discussões do que conceituar o gênero definitivamente e encerrar a discussão.
REFERÊNCIAS
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literatura e experiência. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
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Campinas: Unicamp, 1986.
CANDIDO, Antonio et al. A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil.
Campinas; Rio de Janeiro: UNICAMP; Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992.
_______. A vida ao rés-do-chão. Prefácio Para Gostar de Ler. São Paulo: Ática, 1992.
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COUTINHO, Afrânio. “Ensaio e crônica”. In: A literatura no Brasil. 6. ed. São Paulo:Global, 2003.
MARCUSCHI, Luiz Antonio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. São Paulo:
Cortez, 2001.
MENEZES, Rogério. Relações entre a crônica, o romance e o jornalismo. In: CASTRO, G. de e
GALENO, A. (orgs.). Jornalismo e literatura: a sedução da palavra. São Paulo: Escrituras Ed., 2002.
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______. A literatura portuguesa através dos textos. 25.ª ed. São Paulo: Cultrix, 1997.
SÁ, J. A crônica. 2. ed. São Paulo: Ática, 1985.
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SILVA, Ezequiel Theodoro da. O ato de ler. Fundamentos psicológicos para uma nova pedagogia
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VERÍSSIMO, L. F. Provocações. Plenos Pecados. São Paulo: Objetiva, 1999, p.4-31.
______. Banquete com os deuses. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.
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ALFABETIZAÇÃO E TECNOLOGIA: UM OLHAR PARA O COTIDIANO ESCOLAR
MUNIDO PELAS POSSIBILIDADES DO USO DIDÁTICO DO COMPUTADOR1
LITERACY AND TECHNOLOGY: ONE LOOK AT THE SCHOOL ATMOSPHERE
REINFORCED BY DIDACTICAL COMPUTING POSSIBILITIES
Clodoaldo Almeida dos SANTOS2 (PG/UEMS)
Antonio SALES3 (UEMS)
Resumo: O presente artigo tem como objetivo propor uma reflexão acerca do cotidiano escolar no
que se refere à utilização das Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação (TDIC) para
complementação do trabalho docente frente ao processo de alfabetização. O referido texto faz uma
interação entre os pressupostos de leitura, nas suas diversas manifestações e uma branda descrição
com base em interpretações de dados colhidos a partir da percepção de duas professoras regentes do
primeiro ano da Educação Infantil de uma escola pública de Campo Grande. As observações,
registros e a reflexão dos fenômenos serão conduzidos pelo viés da fenomenologia, pautados nas
concepções de Husserl, Merleau-Ponty e Bicudo, mediados por uma breve categorização de
unidades de significados percebidas por nós durante a realização do proposto.
Palavras-chave: Alfabetização. Tecnologia. Fenomenologia.
1 INTRODUÇÃO
Estes escritos são regidos por procedimentos de análise pautados no viés da percepção
fenomenológica. Ao considerar a suposta neutralidade científica de correntes racionalistas como o
positivismo e estruturalismo, Merleau-Ponty (2004) sugere um outro olhar para os procedimentos
investigativos de pesquisa, diferente do olhar da física clássica, de Descartes (1973) ou Comte
(1973) que não viam a percepção como fonte para produção de verdade. Na proposta, com base nas
concepções de Husserl (1980), a percepção ganha espaço e rompe com a neutralidade científica da
ciência racionalista. Merleau-Ponty (ibid.) alega que tal neutralidade não existe, uma vez que o
1
Artigo escrito inicialmente para atender à disciplina de Formação de Professores Alfabetizadores,
ministrada pelas professoras Dra. Eliane Greice Davanço Nogueira e Dra. Vilma Miranda de Brito, no
programa do Mestrado Profissional em Educação da UEMS, unidade Campo Grande.
2
Mestrando em Educação pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul/UUCG.
[email protected]
3
Professor no Programa de Mestrado Profissional em Educação na UEMS -Unidade Universitária de Campo
Grande. [email protected]
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pesquisador se envolve para dar sentido a suas interpretações, não desvinculando-se de suas
vivências, sua história de vida, suas reflexões.
Fenomenologia é palavra oriunda de um termo composto: de um lado, algo que se
manifesta, se mostra; de outro, união. O termo objetiva elencar um método que se volta para
expressão do fenômeno, por meio de uma filosofia de consciência (BICUDO, 1999).
A
investigação com cunho fenomenológico se apropria da compreensão do viver da pessoa, na busca
pela interpretação do fenômeno que esteja além do entendimento superficial. Desse modo, a
linguagem assume um papel importante durante o processo investigativo, uma vez que é através
dela que o processo de descrição aprofundada se constrói. Assim, o método fenomenológico
permite a expressão de nossos conceitos, valores e preconceitos, dentro de uma visão de liberdade
para apontar as impressões do pesquisador.
Para o fenomenólogo, o conhecimento não é universal, uma vez que as visões são diferentes,
logo, o conhecimento também tem as suas particularidades. Nisso, o objeto que é entendido como
um todo, não pode ser visto totalmente de uma só vez. Na fenomenologia não há ilusão, mas sim
variadas imagens formadas por diversos seres em diversos momentos. A fenomenologia reconhece
a complexidade do fenômeno, bem como a polissemia da palavra, conforme relata Husserl (1980):
Frequentemente ouvimos falar em generalidade das significações das palavras, e
o que na maioria das vezes se quer dizer por essa maneira ambígua de falar é que a
palavra não está ligada a uma instituição isolada, mas pertence a uma
multiplicidade infinita de intuições possíveis (HUSSERL, 1908, p. 25, grifo do
autor).
Diante do exposto, este documento, na perspectiva da fenomenologia frente ao estudo da
relação entre tecnologia e alfabetização, visa promover uma reflexão acerca dos mecanismos
educacionais, tomando como referência a exposição de um breve registro do ambiente de trabalho
de professores no que se refere ao uso das tecnologias como recurso pedagógico, bem como uma
ligeira descrição de dados, fazendo a socialização das percepções impressas.
2. PERCURSOS E DEFINIÇÕES DE LEITURA, ESCRITA E ALFABETIZAÇÃO
Os entraves ideológicos entre os métodos de alfabetização adotados no Brasil no decorrer da
história apontam para um direcionamento no sentido de identificar as falhas de métodos anteriores.
Entre as alternâncias de métodos, parece não existir um que possa ser cunhado como o mais
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habilitado a apresentar devolutiva eficaz e que responda satisfatoriamente a questões postas hoje no
que se refere à alfabetização (FRADE, 2007, p. 33-36).
Os discursos de defesa em busca do método mais eficiente para a alfabetização são
acompanhados pelo movimento polissêmico do próprio termo (alfabetização) no decorrer das idas e
vindas das afirmações e adoções dos métodos utilizados. Para estabelecer um viés junto a definição
do termo alfabetização, faz-se mister situar a perspectiva elencada para tal definição. A apropriação
do mesmo significado para fazer referência a distintas propostas de encaminhamentos adotados
frente ao objetivo de “alfabetizar”, é uma postura que deve ser cuidadosamente evitada. A
concepção de alfabetização para os métodos sintéticos e analíticos leva em consideração o
aprendizado de um mecanismo de caráter técnico de utilização das habilidades linguísticas. Já as
correntes mais progressistas, pautadas, por exemplo, no construtivismo1 e no interacionismo2,
entendem alfabetização como algo que vai além da apropriação de técnicas para ler e escrever
(MORTATTI, 2007, p. 155-157).
Ao se referir a concepções progressistas de alfabetização, contrárias a métodos tradicionais
silábicos, Mortatti (ibid.) aponta a perspectiva interacionista fundamentada nos pressupostos de
Vigotsky (1993) como sendo um caminho mais favorável à aquisição da alfabetização, considerada
aqui com o caráter de significação social da linguagem, onde o texto representa o instrumento
elementar para o desenvolvimento de habilidades e formação de um leitor atuante dentro e fora da
escola. Desse modo, alfabetização, que vai além de práticas de procedimentos técnicos, representa o
uso prático e significativo do instrumento da leitura e da escrita (MORTATTI, 2007, p. 161-166).
A escrita, na perspectiva de uma visão progressista de educação, assume dois pontos a serem
considerados relevantes, quando se refere ao valor social dado ao domínio desse conhecimento.
Trata-se, pois, da realização pessoal do aluno ao se reconhecer como decodificador de signos e da
função social a que se presta a escrita, no que tange à aplicabilidade da vida cotidiana. Nesse
sentido, o ato de escrever não deve ser categorizado como dois processos diferentes, onde o que se
ensina na escola não seja relevante para a realidade do aprendiz, conforme as afirmações de Leite
(2005):
Atualmente, pode-se afirmar que as concepções de escrita, subjacentes às modernas
propostas, implicam dois aspectos fundamentais: de um lado, enfatiza-se o caráter
simbólico da escrita, entendendo-a como um sistema de signos cuja essência reside
no significado subjacente a ela, o qual é determinado histórica e culturalmente;
assim, uma palavra escrita é relevante pelo seu significado compartilhado pelos
membros da comunidade. Por outro lado, enfatizam-se os usos sociais da escrita,
1
2
Referindo-se aos postulados de Piaget, no que se refere à Epistemologia Genética.
Na concepção de Vigotsky.
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ou seja, as diversas formas pelas quais uma determinada sociedade utiliza-se
efetivamente dela; fala-se em escrita verdadeira, em contrapartida à escrita escolar
(aquela que não corresponde aos seus usos sociais, tão comum no modelo
tradicional) (LEITE, 2005, p. 24-25).
O autor afirma ainda que “É função da escola dar continuidade, agora de forma
sistematizada, a esse processo que vem se realizando ‘naturalmente’, por meio do qual a criança
vem tomando contato com a escrita verdadeira, pelas diversas práticas sociais de que participa”
(LEITE, 2005, p. 29). Dessa forma, apropriar-se da escrita para fazer uso social (não somente
decifrar letras) é ação em que o indivíduo se apropria do saber para colocar em prática as ações do
conhecimento adquirido, tornando-se agente das relações sociais, por meio da linguagem.
Ao tratar de diferentes interpretações do termo alfabetização, cabe lembrar que a relação
entre construtivismo e interacionismo também é passível de considerações, uma vez que há
divergências na literatura quanto a bases e objetivos dessas duas correntes. Não sendo nosso
propósito aqui refletir acerca dessas discussões, vamos nos restringir e tomar como referência o
pensamento de Mortatti (2007), que faz a menção quanto a impossibilidade de proceder frente à
uma pedagogia que mescle construtivismo e interacionismo1, mas, a adoção desse segundo
(interacionismo) permite a possibilidade de uma incrementação da alfabetização voltada para a
relação entre as pessoas, pautadas no texto e valorizando aspectos sociais não somente dentro da
escola (MORTATTI, 2007, p. 157-159).
O olhar para a utilização significativa da leitura que faz parte da vida prática do estudante,
realizada além dos momentos escolares, levou a reflexões acerca da modalidade de leitura
necessária nesse contexto, que o ensino tradicional não comportava. Assim, a percepção de que
alfabetização poderia ir além do ato de ler e escrever, contribuiu para o surgimento do termo
letramento, que atribui um caráter mais ampliado à ideia de alfabetização (SOARES, 1995, p. 513).
Um aspecto relevante a ser apontado diz respeito à relação entre alfabetização e letramento
que, para Soares (ibid.) são coisas distintas que agem de forma interdependente em favor de uma
leitura abrangente, amparada por sentidos de caráter da vida social, conforme aponta a estudiosa:
1
Partimos do pressuposto de que construtivismo e interacionismo são perspectivas diferentes, o que é corroborado
por vários autores, uma vez que o construtivismo nasceu não negando a interação com o meio, porém não dando
ênfase especial a esta. O construtivismo reconhece o meio e até atribui certa importância a este, mas aponta a
questão da “maturação”, dos aspectos biológicos, como elementos também essenciais, ao contrário da corrente mais
interacionista em sua essência, como Vygostky, que dá valor maior a questão da interação social.
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[...] dissociar alfabetização e letramento é um equívoco porque, no quadro das
atuais concepções psicológicas, linguísticas e psicolinguísticas de leitura e escrita,
a entrada da criança (e também do adulto analfabeto) no mundo da escrita ocorre
simultaneamente por esses dois processos: pela aquisição do sistema convencional
de escrita – a alfabetização – e pelo desenvolvimento de habilidades de uso desse
sistema em atividades de leitura e escrita, nas práticas sociais que envolvem a
língua escrita (SOARES, 2004, p. 12)
Mortatti (2007) defende que ler e escrever é atuar, através de leitura e produção escrita de
textos, considerando a ação do individuo letrado, onde o sentido esteja presente na vida desse
indivíduo, bem como inserido no seu cotidiano extraescolar. Assim, estar alfabetizado “[...] designa
o estado ou condição daquele indivíduo que sabe ler e produzir textos1, com finalidades que
extrapolam a situação escolar e remetem às práticas sociais de leitura e escrita” (MORTATTI, 2007,
p. 165).
Diante do exposto, a cinética da definição da palavra alfabetização parece caminhar no
sentido de ampliar a visão de outrora, em que decodificar sílabas e palavras satisfaziam a concepção
do termo. Nas tendências atuais, junto a interação e letramento, estar alfabetizado na escola não é,
necessariamente garantia de estar alfabetizado para o cotidiano concreto, conforme aponta Ferreiro
(2005):
É claro que estar ‘alfabetizado para continuar no circuito escolar’ não garante estar
alfabetizado para a vida cidadã. As melhores pesquisas europeias distinguem
cuidadosamente parâmetros como: alfabetizado para a rua, alfabetizado para o
jornal, alfabetizado para livros informativos, alfabetizado para a literatura (clássica
ou contemporânea), etc. A esta lista temos de agregar agora: alfabetizado para o
computador e para a internet (FERREIRO, 2005, p. 17).
Essa alfabetização social e significativa inicia-se antes da escolarização por meio de
exposição da língua a que a criança é submetida, via interação entre familiares. Esse ato de imersão
resulta em devolutivas do estudante, que aparecem em diferentes níveis, diretamente proporcionais
à “qualidade” dessas relações, bem como a intensidade das mesmas. Portanto, as crianças podem
apresentar diferentes graus de adaptabilidade aos ensinamentos da escrita durante o início da vida
escolar e essas diferenças de nível dos estudantes podem ser um reflexo dos atos de interação dessas
crianças no ambiente extraclasse (LEITE, 2005, p. 28-29)
Os níveis de conhecimento que os alunos apresentam no início da vida escolar são traços das
percepções de mundo desses indivíduos. Freire (1987) chama a atenção para o cuidado que se deve
ter no que tange ao respeito para com a leitura de mundo do aluno. Esse estudioso indica a
1
Grifo do autor.
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curiosidade como um aspecto bastante importante para delinear a atividade pedagógica em busca do
conhecimento, conforme aponta:
Respeitar a leitura de mundo do educando significa tomá-la como ponto de partida
para a compreensão do papel da curiosidade, de um modo geral, e da humana, de
modo especial, como um dos impulsos fundantes da produção do conhecimento. É
preciso que, ao respeitar a leitura do mundo do educando para ir mais além dela, o
educador deixe claro que a curiosidade fundamental à inteligibilidade do mundo é
histórica e se dá na história, se aperfeiçoa, muda qualitativamente, se faz
metodicamente rigorosa. E a curiosidade assim metodicamente rigorizada faz
achados cada vez mais exatos (FREIRE, p. 123, grifo do autor).
Um dos procedimentos que vai ao encontro da promoção dessa alfabetização significativa é
a exposição de diversificação textual frente ao aluno alfabetizando, uma vez que diferentes leituras
podem conduzir o leitor à consciência de que há várias possibilidades de manifestação da
linguagem, o que coloca à disposição do aprendiz maiores opções de expressão e interpretação
textuais. Goulart (2007) discorre sobre o direito do aluno no que tange a oferta do aprendizado da
linguagem escrita através de novas modalidades de comunicação, levando em conta
[...] novas formas de organização da linguagem verbal e de visão da sociedade. Os
textos materializam diferentes discursividades. Então consideramos que a unidade
lingüística básica do processo de alfabetização devam ser os textos orais que
produzem o discurso entre alunos e professores na sala de aula e os textos escritos
que vão sendo chamados a responder perguntas, desejos e necessidades que vão
surgindo, criando novos discursos, novos textos, novas formas de agir no mundo.
(GOULART, 2007, p. 64).
As ações resultantes do contexto de interação, em parceria com o letramento, produzem um
tipo de leitor não condizente com os padrões tradicionais de ensino. Ferreiro (2005) destaca o
procedimento de leitura efetuado frente às tecnologias, especialmente o computador, que permite
uma veiculação mais intensa de informações, proporcionando, através da internet, páginas
eletrônicas, correio eletrônico e hipertextos, um comportamento particular do usuário desses
instrumentos, onde “[...] novos estilos de fala e de escrita estão sendo gerados graças a esses meios”
(FERREIRO, 2005, p. 25).
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3 ATMOSFERA DIGITAL E SEUS LEITORES
O século XXI apresenta o elemento digital como um divisor de águas no que tange à
tecnologia de informação e comunicação também por introduzir o terceiro grande transmissor de
conhecimentos aprendidos pela humanidade no decorrer de toda a história, ao lado da fala e da
escrita (PAPERT, 2008, p. 26). De forma a registrar uma previsão, o referido estudioso expressa a
crença da possível apropriação das informações como ponte de conhecimento quando diz que “ [...]
as crianças deveriam ter, e um dia terão, livre acesso aos conhecimentos tanto sobre a África e o
Tibet, quanto sobre os gatos e cachorros, tanto sobre Shaka e Dingaan e seus descendentes quanto
sobre o Rei George e seus descendentes” (PAPERT, 2008, p. 179).
Um outro fato a ser considerado é a percepção de que a informação não é mais restrita a
poucos, como fora outrora. Sabe-se que ainda há pessoas que não estão incluídas nesse modelo de
acesso a conhecimento, porém o acesso a fontes digitais de informação está ampliando o campo de
alcance, a ponto de imaginarmos a possibilidade de poder dizer, que tal acesso à informação
independe da situação econômica, muito embora se sabe que a abrangência ainda não é universal,
conforme apontam Veen e Vrakking (2009):
As escolas, bibliotecas, cafés com internet e outros espaços públicos atualmente
oferecem acesso à internet e, portanto, à participação em comunidades virtuais. A
divisão digital entre o primeiro e o segundo mundos não é mais uma questão de
classes socioeconómicas, mas uma questão de gerações. [...] Em âmbito global,
contudo, ainda existe uma exclusão digital em sentido tradicional, em que a
pobreza impede o acesso ao conhecimento e à comunicação por meio da tecnologia
(VEEN; VRAKKING, 2009, p. 44).
O advento e evolução das Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação são oriundos
de um processo evolutivo em que os materiais de leitura foram incorporando instrumentos
ilustrados, mediados também por jornais e revistas, onde o leitor passou a fazer uso de elementos
gráficos como suporte de leitura. Outro movimento contribuiu para essa transição da leitura
propriamente verbal para uma leitura de caráter também ilustrativo: o surgimento dos grandes
centros, que geravam uma produção considerável de propagandas, embalagens, sinais de trânsito e
outros (SANTAELLA, 2004, p. 25-31).
Esses elementos ampliaram o aspecto da leitura, onde a decodificação de letras não atendia a
demanda linguística dessa sociedade metropolitana que se instituía. Com o advento da internet, os
materiais presentes, passaram a ser intermediados por dados digitais, ou seja, “ [...] quaisquer fontes
de informação podem ser homogeneizadas em cadeia de 0 e 1. Isso quer dizer que a mesma
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tecnologia básica pode ser usada para transmitir todas as formas de comunicação – seja na forma de
textos, áudio ou vídeo – em um sistema de comunicação integrado, tal como aparece na internet”
(id., ibid., p. 38).
É nesse contexto digital de informação e comunicação que SANTAELLA (ibid.) define três
tipos de leitores1 pertencentes ao mundo do ciberespaço. Esses leitores são munidos por um perfil
de interação com o texto. Uma das características desse novo formato de leitura está no fato de ser
uma leitura que não demanda obrigatoriamente o uso de linearidade, uma vez que não há uma
sequência de leitura pré-estabelecida, podendo o leitor iniciar e terminar em pontos não estipulados.
Outro ponto diferencial para com a leitura de letras do código alfabeto, com final pré-determinado,
e sequência já definida é com relação à interação. Na leitura de material digital midiático, o leitor
não age de forma passiva, uma vez que sua leitura está condicionada também a suas escolhas, sendo
dirigida por ele e de acordo com os caminhos percorridos. Para Santaella (2004):
O leitor não pode usá-la de modo reativo ou passivo. Ao final de cada página ou
tela, é preciso escolher para onde seguir. É o usuário que determina qual
informação deve ser vista, em que sequência ela deve ser vista e por quanto tempo.
Quanto maior a interatividade, mais profunda será a experiência de imersão do
leitor, imersão que se expressa na sua concentração, atenção, compreensão da
informação e na sua interação instantânea e contínua com a volatilidade dos
estímulos (SANTAELLA, 2004, p. 52)
A interatividade é um elemento fundamental no decorrer do desenvolvimento das
tecnologias de informação, de modo que a troca de informações promovida pelos pares que fazem
uso dos recursos midiáticos, fomenta uma rede que atua em um processo comunicativo, dialógico,
intenso e produtivo, do ponto de vista interacionista.
Por intermédio de instrumentos materiais (tela, mouse, teclado) e imateriais
(linguagem de comando), o receptor transforma-se em usuário e organiza sua
navegação como quiser em um campo de possibilidades cujas proporções são
suficientemente grandes para dar a impressão de infinitude (SANTAELLA, 2004,
p. 163).
O termo homo zappiens, cunhado por Veen e Vrakking (2009), descreve o que Prensky
(2001) chama de nativos digitais. Veen e Vrakking afirmam que esses indivíduos, que nasceram no
contexto tecnológico, têm esse contexto inserido como o modo de agir e pensar. Dessa forma, são
pessoas que interagem simultaneamente com várias informações, fazem diversas coisas ao mesmo
1
O leitor “contemplativo”, o “movente” e o “imersivo”.
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tempo, e, ao contrário das gerações anteriores, pensam que a escola não tem uma função lógica e
prática em suas vidas. A respeito desses nativos digitais, Ferreiro (2005) afirma que:
As crianças que estão agora no ensino fundamental são crianças que nasceram com
os computadores já instalados na sociedade (talvez não em suas casas, nem nas
suas escolas, mas na sociedade). São crianças que, só por esse motivo, apresentam
uma diferença radical em relação a suas professoras (quase todas atacadas por esse
vírus da computer illiteracy) (FERREIRO, 2005, p. 42, grifo do autor).
No que tange à credibilidade das Tecnologias aplicadas à Educação, Ferreiro (ibid.) não
demonstra empolgação para a possibilidade de mudanças produtivas e benéficas por conta das
Tecnologias. Para a referida pesquisadora, as Tecnologias são de grande valia para pôr fim a
algumas discussões ainda existentes, principalmente com relação à escrita. Entretanto, as
Tecnologias por si só não resolvem os entraves educacionais existentes. Freire (1996) também não
se caracteriza como um adepto fervoroso das Tecnologias, mas reconhece a visão da importância
que essa representa, conforme aponta:
Nunca fui ingênuo apreciador da tecnologia: não a divinizo, de um lado, nem a
diabolizo, do outro. Por isso mesmo sempre estive em paz para lidar com ela. Não
tenho dúvida nenhuma do enorme potencial de estímulos e desafios à curiosidade
que a tecnologia põe a serviço das crianças e dos adolescentes das classes sociais
chamadas favorecidas. Não foi por outra razão que, enquanto secretário de
Educação da cidade de São Paulo, fiz chegar à rede das escolas municipais o
computador (FREIRE, 1997, p. 87).
4 TABELA DE UNIDADES DE SIGNIFICADO
Com base nos registros, elencamos em tabela, numa visão nomotética, algumas categorias
de significado. A primeira coluna representa as professoras colaboradoras, apontadas como “I” e
“II”. A coluna seguinte indica a unidade de significado percebida. A penúltima coluna descreve a
interpretação da unidade e a derradeira coluna apresenta uma síntese da referida unidade de
significado. Os campos marcados pelo preenchimento com a letra “X”) indicam a ocorrência da
ação descrita na unidade de significado correspondente. Observa-se tanto em I como em II o uso da
sala de tecnologia, da web 2.0, mas como recurso multimídia, porém, sem objetivos educacionais
definidos.
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Tabela de Unidades de Significado
Professor(es)
Unidades de significado
Interpretação da Unidade
Articulada com a
Interrogação
Parece haver uso constante
da Sala de Tecnologia
Educacional apesar da
limitação de tempo,
conduzido por longo
intervalo entre as aulas.
Síntese da Unidade de
Significado
I, II,
Utiliza a Sala de Tecnologias
de 15 em 15 dias .
I,II
A maioria das atividades
propostas
são mediadas pela Internet.
Internet servindo como
ferramenta fundamental
das aulas no ambiente
tecnológico.
Uso da web 2.0.
I,II
“Paint” e “Word” são
aplicativos mais utilizados como
ferramenta tecnológica de apoio.
Tendência ao uso de
aplicativo de edição
textual escrita e desenho.
Uso de aplicativos
como recurso
multimídia.
I,II
Se enquadra no nível
intermediário de conhecimento e
apropriação das Tecnologias
Digitais, capaz de utilizar
“Word”, “Excel”, “Power Point”
e baixar músicas e vídeos da
Internet.
O educador tem domínio
dos acessórios e recursos
tecnológicos básicos.
Educador incluído
digitalmente, porém,
limita o uso das TDICs
apenas como recurso
multimídia.
I
Oferece e direciona a atividade
“palavras-cruzadas”, “jogo-daforca” ou “caça-palavras” como
ferramenta de ensino.
Ocorrência da delegação
de atividades processuais
adaptadas do livro /
caderno para a máquina,
conservando a
característica didátic.
Uso de recurso
multimídia para
complementar ações
realizadas em sala de
aula regular.
I,II
Julga como fato mais
problemático com relação ao
uso da Sala de Tecnologia a
existência de equipamentos
ociosos, ultrapassados e com
problemas de ordem técnica
constantes.
Falta de estrutura física
adequada influencia
negativamente no processo
de aprendizagem mediada
pelos recursos
tecnológicos.
Limitação material:
Estrutura física aquém
justifica o não uso das
TDICs, nem como
recurso multimídia.
I,II
Instrumento usado
constantemente: blog
“Alfabetizando com Iara
Medeiros”.
Apropriação de ambiente
digital elaborado no
intuito de promover
atividades didáticas para o
aluno.
Uso da web 2.0.
Tem acesso a computador com
Internet na residência.
O educador está incluído
digitalmente.
Educador incluído,
mas nada diz sobre o
uso que faz das TDICs.
Participou de capacitação
relacionada ao uso das
tecnologias aplicadas à
Educação, promovida pela
Secretaria Municipal de
Educação.
O educador está incluído
digitalmente.
Educador incluído,
mas nada diz sobre o
uso que faz das TDICs.
Uso sem perspectiva
educacional.
I,II
I
Fonte: produção do autor
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5 ALGUMAS PERCEPÇÕES
Para delimitar as categorias de análise para esta tarefa, partimos das percepções de mundo
que nos levaram a escolha do objeto. Essas percepções se pautam nas relações por nós observadas,
existentes entre computador e aluno, bem como computador e professor, no ambiente escolar.
Voltamos então para a observação e registro do ambiente de ação de duas professoras do primeiro
ano da Educação infantil de uma escola municipal de Campo Grande, no turno vespertino. A coleta
de material se fez através de questionário semiestruturado contendo 19 (dezenove) questões, e
observação do local de execução das aulas.
Os educadores demonstram familiaridade para com os recursos das Tecnologias Digitais da
Informação e Comunicação, fazendo uso de ferramentas básicas, como editor de texto e programa
de apresentação de “slides”, navegando na internet e pesquisando vídeos, embora a capacitação dos
professores ainda demonstre sinais de timidez por parte dos mantenedores da Educação. Há
professor que faz uso de instrumentos pedagógicos como “palavras-cruzadas” e forca. Com relação
à avaliação da atuação dos alunos na Sala de Tecnologia, há professor que avalia a dedicação, o
interesse e o desempenho de cada aluno. Há educador que julga a aula na Sala de Tecnologia como
o momento para “avaliação informal”.
Embora as Tecnologias estejam presentes na Escola, a questão da infraestrutura aparenta ser,
ainda, um empecilho não superado, uma vez que o número de computadores é muito aquém da
quantidade de alunos, o que limita o acesso aos instrumentos tecnológicos a algumas horas
quinzenais, além de existirem problemas de ordem técnica quanto ao funcionamento constante e
eficiente dos componentes, bem como do acesso à rede mundial de computadores, que mesmo
durante o funcionamento normalizado, apresenta limitações quanto a utilização pedagógica de
instrumentos como vídeos e incompatibilidade de alguns programas.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A aplicabilidade das Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação nas Salas de
Tecnologia Educacional parece não proporcionar um fazer pedagógico que possibilite um uso
abrangente dos instrumentos midiáticos básicos em dose adequada onde possa ser caracterizada a
inclusão digital efetiva. Entretanto, é clara a importância dada pelos docentes à Tecnologia no que
se refere a instrumento auxiliar da autonomia leitora do alfabetizando. Diante do exposto, um
caminho que percebe-se necessário ao professor é buscar fazer o melhor que puder em meio às
dificuldades, pois, conforme Luckesi (2001), o professor não é responsável por todos os problemas
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educacionais, mas quanto pior este educador desempenhar suas atribuições, menor as chances de
transformação do discente, na direção de atribuir a esse indivíduo “[...] capacidade de compreensão
crítica do mundo, condições de participação e capacidade de reivindicações dos bens materiais,
culturais e espirituais, aos quais têm direito inalienável” (LUCKESI, 2001, p. 125).
O objetivo deste documento é dar continuidade a reflexão em torno da apropriação da
Tecnologia Digital da Informação e Comunicação para promover um auxílio ao processo de
alfabetização. Cabe uma análise detalhada dos procedimentos metodológicos do professor, mais
precisamente, as atividades propostas por estes, como por exemplo: como estão sendo
desenvolvidas as atividades nos editores de texto, quais outros recursos tecnológicos estão sendo
utilizados pelo professor e como esses recursos estão sendo encaminhados para auxiliar o processo
de alfabetização. Posto está que a ligeira reflexão produzida neste artigo representa uma pequena
visão de estudos, já em andamento ou que possam surgir, em torno da relação existente entre as
Tecnologias e Alfabetização.
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ENCONTRO DE ESTUDOS LITERÁRIOS DA UEMS, 5., 2014, Campo Grande, MS. Anais eletrônicos... Campo
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UMA LEITURA DO CONTO INDÍGENA “A FORÇA DA SUCURI” EM BUSCA DO
LETRAMENTO LITERÁRIO
A READING OF AN INDIGENOUS STORY “A FORÇA DA SUCURI” TO A LITERARY
LITERACY
Elisangela Dias SABOIA (PG/UNEMAT)1
Nilze Maria MALAGUTI (PG/UNEMAT)2
Sérgio CERVIERI (PG/UNEMAT)3
Resumo: Este trabalho pretendeu abordar a leitura do conto indígena “A força da sucuri” a fim de
ampliar o repertório de leitura dos estudantes e valorizar a literatura e cultura indígena. O texto foi
retirado do Livro “Xingu: os contos dos Tamoin” de Claúdio e Orlando Villas-Bôas. O trabalho
buscou ainda propiciar um processo de interação entre leitor e o texto literário, através de aspectos
da obra como criatividade e intenção estética; possibilitar estratégias de trabalho com leitura e
escrita através do conto; e despertar a sensibilidade e senso crítico do aluno em relação ao texto
literário. As atividades deste trabalho foram organizadas por meio da sequência básica do
letramento literário proposta por Rildo Cosson (2014), a qual envolve quatro passos: motivação,
introdução, leitura e interpretação. A sequência básica foi desenvolvida em uma turma de 7º ano do
Ensino Fundamental na escola Municipal Professora Ivanira Moreira Junglos do município de
Colider – MT. Após a aplicação da proposta, como atividade de interpretação, conforme
denominado por Cosson (2014), os estudantes fizeram a produção de uma história em quadrinhos
em duplas no site interativo www.pixton.com. A atividade foi ainda compartilhada no próprio site e
com outras séries da escola.
Palavras-chave: Literatura. Letramento literário. Cultura indígena.
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho é resultante do estudo de uma disciplina do Mestrado Profissional em Letras
denominada “Leitura do Texto Literário”, ministrada pela Professora Doutora Luzia A. Oliva dos
Santos da UNEMAT do município de Sinop-MT. O estudo da disciplina suscitou inquietações e,
consequentemente, ações práticas que contribuíssem com a leitura literária de estudantes do ensino
fundamental do município de Colider-MT.
1
[email protected] (Mestranda do Profletras – UNEMAT/Sinop-MT)
[email protected] (Mestrando do Profletras – UNEMAT/Sinop-MT)
3
[email protected] (Mestranda do Profletras – UNEMAT/Sinop-MT)
2
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ENCONTRO DE ESTUDOS LITERÁRIOS DA UEMS, 5., 2014, Campo Grande, MS. Anais eletrônicos... Campo
Grande, MS: UEMS, 2014. ISSN:
A intervenção foi realizada a partir da referência do livro de Rildo Cosson (2014) que propõe
algumas metodologias para o trabalho com o texto literário em sala de aula, entre elas a sequência
expandida e a sequência básica. Para a realização desta proposta foi abordada a sequência básica,
organizada a partir do texto “A força da sucuri”, um conto indígena do Xingu, a fim de ampliar a
leitura literária dos estudantes e valorizar a literatura indígena e sua função social.
O conto foi retirado do livro Xingu: os contos do Tamoin de 1984 sendo de autoria de
Claúdio e Orlando Villas-Bôas. Segundo informações contidas no livro, os textos buscam ilustrar
o diálogo entre índio e civilizado, uma face ainda pouco conhecida na época do silvícola brasileiro
relacionada com a sua maneira de viver, com o seu equilíbrio tribal, eminentemente humano no seu
modo de ser, de agir e de se relacionar entre si. Nenhum dos contos do Tamoin foi criado pelos
autores, segundo suas próprias afirmações. Os textos são verdadeiros, assim como a figura do
sempre bem humorado Tamoin (avô). Os velhos Tamoins são responsáveis por transmitir aos
jovens a história de sua gente e, ainda, as lições aprendidas na experiência da vida.
A opção por trabalhar a leitura literária a partir de um conto indígena em sala de aula deu-se
por vários motivos, mas o principal deles é porque “A expressão artística do ameríndio e do
africano sugere uma leitura das diferenças, pois o ato de conhecer o outro implica o ato de
interiorizar a história, a auto-história, as nossas raízes” (GRAÚNA, 2013, p. 47).
O trabalho foi desenvolvido em uma turma de 7º ano do ensino fundamental do período
vespertino da escola Municipal Ivanira Moreira Junglos da cidade de Colider-MT, no primeiro
bimestre do ano letivo de 2014. Por meio do texto foram debatidos os costumes e a cultura dos
índios do Xingu, bem como relatados seus contos e lendas a fim de reconhecer e valorizar a cultura
indígena brasileira e sua contribuição para a formação do país.
As atividades deste trabalho foram organizadas por meio da sequência básica do letramento
literário (COSSON, 2014), que envolve quatro passos: 1º Motivação; 2º Introdução; 3º Leitura; 4º
Interpretação.
2 MOTIVANDO PARA APRECIAR A LEITURA LITERÁRIA
Antes de iniciar a motivação da turma, foi preciso refletir sobre a importância da leitura
literária e sobre a afirmação de Cosson, a qual ressalta que “É na experiência da leitura, e não nas
informações dos manuais, que reside o saber e o sabor da literatura” (COSSON, 2014, p.107).
A motivação constitui o primeiro passo para a sequência básica do letramento literário
proposta por Rildo Cosson (2014) e consiste em favorecer a leitura como um todo. Segundo o autor,
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ENCONTRO DE ESTUDOS LITERÁRIOS DA UEMS, 5., 2014, Campo Grande, MS. Anais eletrônicos... Campo
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esta etapa prepara o leitor para receber o texto, exerce uma influência sobre suas expectativas,
porém não determina a leitura. A motivação pode ser tanto oral quanto escrita, e esta atividade, para
Cosson, evidencia que não há sentido em separar o ensino da literatura do ensino de língua
portuguesa, uma vez que ambos estão interligados.
Como atividade de motivação foi selecionada a música “Amor de índio”, composição de Beto
Guedes
e interpretada
pela cantora Maria
Gadú disponível no endereço eletrônico
http://www.vagalume.com.br/maria-gadu/amor-de-indio.html. A canção possibilitou o trabalho com
o tema, o estereótipo e as características indígenas por meio da linguagem simbólica, a qual exige
leitura crítica e leitura de mundo.
Nesta atividade, o aluno pôde, mediado pela professora, perceber a relação de amor do índio
com a sua terra e depreender os sentidos que a letra apresenta, pois ela antecipa a leitura do conto
“A força da sucuri”, lido posteriormente. O tempo estipulado para a motivação foi de uma aula de
60 minutos, uma vez que a música foi ouvida, discutida e compreendida pelos estudantes.
3 INTRODUZINDO O AUTOR E A OBRA LITERÁRIA
Esta fase, de acordo com Cosson (2014), corresponde à apresentação do autor e da obra. A
introdução, apesar de ser uma atividade simples, exige do professor alguns cuidados, como, por
exemplo, não transformar esta etapa em uma aula muito longa e expositiva (COSSON, 2014). Neste
momento, torna-se mais relevante fornecer informações básicas sobre o autor, ligadas, se possível,
ao texto a ser trabalhado.
Para introduzir a apresentação da obra foi apresentado aos estudantes o livro Xingu: os
contos do Tamoin, dos irmãos Villas-Bôas, de onde foi retirado o conto “A força da sucuri”. Os
alunos tiveram contato com os textos impressos e puderam manusear o livro. Foi exposto ainda aos
estudantes o porquê da seleção do conto e da obra. Ao apresentar o título do conto os alunos foram
questionados acerca do que tratava o texto.
É importante ressaltar, como expõe Cosson (2014), que a introdução não pode se estender
muito, pois sua função é apenas permitir que o aluno receba a obra de uma maneira positiva.
4 REALIZANDO A LEITURA DO TEXTO LITERÁRIO
Para o professor Rildo Cosson (2014) a leitura escolar precisa de acompanhamento porque
tem uma direção, um objetivo a cumprir, e este objetivo precisa estar claro. O professor precisa
acompanhar o processo de leitura de seus alunos para auxiliá-los em suas dificuldades, até mesmo
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naquelas referentes ao ritmo da leitura, como expõe Cosson (2014). Para o autor, a leitura do texto
literário é uma experiência única uma vez que proporciona uma experiência estética não apenas pela
história que conta.
Por isso, foi feito o acompanhamento do processo da leitura, utilizando-se, inicialmente, a
leitura silenciosa feita pelos alunos para poderem conhecer o texto e, posteriormente, foi feita uma
leitura expressiva pela professora. A opção por esta leitura pode ser justificada pelo fato do
professor conhecer bem o texto, tendo, desta forma, melhores condições de realizá-la com qualidade
(COSSON, 2014). Uma estratégia utilizada para a realização da atividade foram os intervalos, os
quais possibilitaram à professora diagnosticar a decifração no processo da leitura.
4.1 Os intervalos
Os intervalos são atividades específicas que podem ser de natureza variada. Para Cosson
(2014), a atividade pode ser a leitura de textos menores que tenham alguma ligação com o texto
maior, funcionando como uma focalização sobre o tema da leitura e que permita que se teçam
aproximações breves entre o que já foi lido e o novo texto. É relevante mencionar que, de acordo
com o autor, os intervalos não podem ser muito longos, pois pode-se perder o foco da atividade.
É por meio dos intervalos que o professor terá condições de observar as dificuldades de
leitura dos estudantes, sendo, assim, um diagnóstico da etapa de decifração no processo. Cosson
(2014) defende que a utilização dos intervalos é o início de uma intervenção eficiente na formação
do leitor.
4.1.1 Intervalo 1: ler para conhecer
O primeiro passo foi propiciar a leitura do conto “A força da sucuri”, para ressaltar os
costumes e a cultura indígena, bem como a linguagem literária do texto a fim de propiciar uma
experiência estética. Em seguida os estudantes foram conduzidos ao laboratório de informática,
onde pesquisaram na internet acerca da cultura e costumes dos povos indígenas que habitam o
Xingu para poderem conhecer um pouco mais as etnias e o Parque Nacional.
Os estudantes tiveram a oportunidade de saberem o porquê da existência do parque e
entender o contexto histórico da época em que o livro foi escrito. Foi preciso, neste momento, por
meio da mediação docente, mobilizar conhecimentos históricos para entender o contexto atual tanto
da Reserva quanto da nossa sociedade não indígena.
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Os estudantes realizaram as pesquisas em duplas e cada uma delas ficou responsável por
pesquisar sobre uma etnia do parque, após a pesquisa os estudantes socializaram os resultados com
os colegas de sala, destacando o estilo de vida e costumes de cada grupo indígena.
4.1.2 Intervalo 2: diversidade e cultura
Neste segundo intervalo foi apresentado aos estudantes um vídeo sobre pluralidade cultural
organizado
pela
TV
Escola
disponível
no
endereço
eletrônico
http://www.youtube.com/watch?v=HA_0X2gCfLs. O título do vídeo é “Índios no Brasil, quem são
eles?”, tem duração de 17 minutos e 42 segundos. O objetivo foi contrastar a visão do branco sobre
o índio, do índio sobre o branco e sobre si mesmo.
De acordo com informações contidas no endereço eletrônico mencionado anteriormente, o
vídeo “Índios no Brasil, quem são eles?” trata da relação da população indígena brasileira com a
natureza, com o sobrenatural e com os não-índios. O episódio apresenta quem são e como vivem os
indígenas no Brasil atual, tomando como foco a relação deles com os outros brasileiros. Alguns
representantes das etnias Krenak, MG; Kaxinawá, AC; Ashaninka, AC; Yanomami, RR; Pankararu,
PE e Kaingang, SC, conversam sobre o assunto e expressam seus depoimentos.
A intenção de se utilizar o vídeo como um intervalo consiste em fomentar mais uma vez
discussões em sala com os alunos sobre a rica cultura destes povos, a fim de sensibilizar os
estudantes a entenderem e apreciarem os costumes indígenas, os quais têm deixado muito de suas
contribuições para nossa cultura brasileira atual.
4.1.3 Intervalo 3: identidade de um povo
Nesta atividade, a professora entregou para cada aluno o poema “A vida do índio” de Edmar
Batista de Souza (Itohã Pataxó) disponível no site .www.indiosonline.net. O site tem como objetivo
estimular o diálogo intercultural dentre outros e divide a gestão compartilhada com quatro povos
indígenas totalizando cinco gestores, sendo eles: Alex Makuxi de Roraima, Patrícia Pankararu de
Pernambuco, Nhenety Kariri-Xocó de Alagoas e Fábio Titiah e Yonana Pataxo hã hã hãe da Bahia.
O poema possibilita a apreciação da linguagem poética, o conhecimento e a reflexão sobre a
situação atual dos índios brasileiros no tocante aos seus sentimentos e pensamentos. Por meio do
poema a professora trabalhou a intertextualidade presentes nos seguintes textos: conto “A força da
Sucuri”; música “Amor de índio” e ainda o vídeo “Índio no Brasil, quem são eles?”.
O poema, assim como o conto, apresenta a figura do guerreiro, do lutador, de um povo cheio
de cultura assim como a música, pois esta exalta o sentimento de amor pela terra, pela natureza.
Tanto no vídeo “Índios no Brasil, quem são eles?” quanto no poema é apresentada a visão do
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indígena em relação às atitudes do homem branco para com seu povo e a esperança de poderem
viver e vivenciar dias melhores, bem como buscar ou conservar uma identidade perdida, não
conhecida pela sociedade brasileira. Há, por meio dos textos, um sentimento de busca para sair do
anonimato. Como se os textos apresentassem, por meio das palavras escritas, um grito do indígena
para chamar a atenção e ser visto, respeitado como povo diferente, existente com seus costumes
próprios e sua rica cultura.
4.1.4 Intervalo 4: diferentes visões e pensamentos
Para finalizar a parte dos intervalos, os alunos assistiram ao filme “Xingu”, o qual conta a
história de três irmãos que decidem viver uma grande aventura. Orlando (Felipe Camargo), 27 anos,
Cláudio (João Miguel), 25, e Leonardo (Caio Blat), 23, Villas-Bôas. Os dois primeiros são os
autores do livro Xingu: os contos do Tamoin do qual foi retirado o conto “A força da sucuri”.
Segundo a sinopse do filme, os irmãos alistam-se na expedição Roncador-Xingu e partem
numa missão desbravadora pelo Brasil Central. Os irmãos Villas-Bôas conseguem fundar o Parque
Nacional do Xingu, um parque ecológico e reserva indígena que, na época, era o maior do mundo,
do tamanho de um país como a Bélgica. Na aventura, mostrada pelo filme e baseada em uma
história real, os irmãos Villas-Bôas conseguem passar pelo território Xavante, de índios corajosos e
guerreiros sem nenhuma baixa de ambos os lados.
Ao recontar a saga dos irmãos, o longa metragem acompanha essa grande luta pela criação do
parque e pela salvação de tribos inteiras que transformaram os Villas-Bôas em heróis brasileiros.
Cabe ressaltar que a atividade torna-se relevante para a sequência básica uma vez que apresenta a
história contada pela perspectiva do homem branco e não do indígena que vivenciou todo o
processo de intervenção em seu cotidiano. O filme possibilita uma análise crítica do papel da
expedição e uma reflexão sobre as suas consequências para as etnias indígenas da região.
5 INTERPRETAÇÃO: LEITURA E CONSTRUÇÃO DE CONHECIMENTO
A interpretação, conforme registra Cosson (2014), torna-se o momento de se fazer o
entretecimento dos enunciados, que se referem às inferências, até se chegar à construção do sentido
do texto, envolvendo um diálogo entre autor, leitor e comunidade. O autor propõe, pensando no
letramento literário, a interpretação em dois momentos: um interior e um exterior.
O momento interior refere-se ao acompanhamento da decifração, palavra por palavra, página
por página, capítulo por capítulo, e envolve a apreensão global da obra que realizamos logo após
terminar a leitura. Cosson (2014) denomina este momento de encontro do leitor com a obra.
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O momento exterior é tomado pelo autor como a concretização da interpretação como ato de
construção de sentido em uma determinada comunidade. É o momento em que o letramento
literário feito na escola se distingue da leitura literária.
Cosson (2014) ressalta que as atividades de interpretação devem ter como princípio a
externalização da leitura, ou seja, seu registro. O registro, para o autor, varia de acordo com o tipo
de texto, a idade do aluno e a série escolar, dentre outros fatores.
Refletindo sobre essas questões foi feita uma terceira leitura, comparando a primeira e a
última a fim de refletir acerca das relações entre os textos utilizados como intervalos, buscando
fazer inferências e atribuir sentidos ao texto, além de ressaltar o momento de fruição da leitura feita
no início e a interação do leitor com o conto.
A atividade de interpretação foi finalizada com a produção de uma história em quadrinhos em
duplas no site interativo www.pixton.com. Por meio desta ferramenta os estudantes tiveram a
oportunidade de criar uma história sobre um índio que saiu de sua aldeia e veio morar na cidade. Os
estudantes puderam construir os quadrinhos, as falas e escolher as personagens envolvidas na
história, tudo online, por meio do uso da internet.
A atividade proporcionou aos estudantes utilizarem a criatividade, a imaginação e
apresentarem suas impressões referentes ao texto literário. O processo de interpretação se finalizou
com a produção da história em quadrinhos nesta sequência básica. A produção final dos quadrinhos
pôde ser arquivada no próprio site ou compartilhada com outras séries da escola.
Vale lembrar que, assim como defende Cosson (2014), ao compartilharem suas
interpretações, os leitores ganham consciência de que são membros de uma coletividade e de que
essa coletividade fortalece e amplia seus horizontes de leitura.
Ademais, Graúna (2013) ressalta que os aspectos intensificadores da literatura indígena
contemporânea no Brasil remetem à auto-história de resistência, à luta pelo reconhecimento dos
direitos e dos valores indígenas, à esperança de um outro mundo possível, com respeito às
diferenças.
REFERÊNCIAS
ABREU, Márcia. Cultura letrada: literatura e leitura. São Paulo: Editora UNESP, 2006.
COSSON, Rildo. Letramento literário: Teoria e prática. 2 ed. 3ª reimpressão. São Paulo: Contexto,
2014.
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GRAÚNA, Graça. Identidades e utopias. IN: Contrapontos da literatura indígena contemporânea
no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2013.
ROUXEL, Annie; LANGLADE, Gérard; REZENDE, Neide Luzia de (organização). Leitura
Subjetiva e ensino de literatura. São Paulo: Alameda, 2013.
VILLAS-BÔAS, Cláudio e Orlando. A força da sucuri. IN: Xingu: os contos do Tamoin. São Paulo:
Kuarup, 1984.
Referências webgráficas
www.indiosonline.net
http://www.vagalume.com.br/maria-gadu/amor-de-indio.html.
http://www.youtube.com/watch?v=HA_0X2gCfLs
www.pixton.com
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ANEXO 1
VILLAS-BÔAS, Cláudio e Orlando. Xingu: os contos do Tamoin. São Paulo: Kuarup, 1984.
A força da sucuri
- Urutsi, nós já falamos em casamento, filho, morada e muita coisa mais. Agora eu queria
saber se nesse casamento tão complicado pode haver separação.
- Pode sim. O motivo principal e o mais importante é se o casal não vier a ter filhos. Nesse
caso, a separação se faz e cada um tenta novo casamento. Só que esse segundo não tem nenhuma
preparação ou cerimonial.
- Mas no que nós devemos voltar a conversar, Villinha, é sobre o menino na passagem pra
moço, quando ele fica preso também.
- Nós já vimos que a menina-moça fica presa até o cabelo cobrir todo o rosto.
- O moço não. A prisão é muito mais demorada, o primeiro período nunca é menos do que
10 1 12 luas (10 1 12 meses).
- Quer dizer que ele fica mais de um período preso?
- Perfeitamente. Depende do pai, se ele quer fazer do filho um grande lutador, aumenta os
períodos de separação e continua dando ao filho o melhor alimento possível. De tempos em tempos,
dá uma beberagem forte que provoca vômitos, medida que todos acreditam ajudar o
desenvolvimento. Nessa ocasião, ele usa todo o tempo para aprender uma porção de trabalhos: tecer
cestas, fazer pentes, flechas, ralo e muitas coisas mais. Durante a prisão, isto ao longo de todo o
tempo, ele fala baixinho. Primeiro por acanhamento, segundo para não ser notado.
- E esse negócio de sucuri com o prisioneiro?
- É uma maneira que o pai tem para experimentar a resistência e a vontade do filho, para que
ele se torne um grande lutador. O rabo da sucuri, com o qual, no final de tudo, ele vai dançar,
transmite ao moço a sua poderosa força, e o bafo, a sua grande resistência.
- Mas como é que acontece tudo isso?
- Bem, primeiro, o pai procura até encontrar uma sucuri de 3 a 4 metros. Feito isso, um dia
ele leva o filho até lá onde ele encontrou a sucuri desejada. Depois de provocar bem a cobra a ponto
de irritá-la, ele manda o filho se aproximar dela e oferecer-lhe o braço para o bote. Nessa altura, o
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moço, prevenido, se defende com o braço e ali recebe o bote da cobra. Ele tem sempre o cuidado de
manter o rosto virado, para evitar o que uma vez aconteceu com outro, de ser alcançado nesta parte.
Quantos mais botes der a cobra, tanto mais contente fica o pai. Três botes é uma quantidade boa.
- Puxa! Isso já é uma luta.
- Sem dúvida. Depois, com grande esforço, ainda preso pelo braço, o moço arrasta a cobra
para fora d’água, livrando-se dela com a ajuda do pai. Este, antes que a cobra fuja, corta-lhe o rabo,
3 palmos mais ou menos, e deixa que ela vá embora de rabo cortado. Terminada a luta, o filho volta
à prisão e lá é arranhado (escarificado) com dentes de peixe e, sobre a arranhadura, o pai
cuidadosamente passa a banha da sucuri.
- Urutsi, esse ritual não é nada mole!
- A coisa continua, Villinha, não acaba nesse dia não. No dia seguinte, o pai procura saber se
o filho teve algum sonho. Se por acaso teve e o sonho foi sobre casamento, o pai se aborrece porque
acha que isso o enfraquece. Não contente com o acontecido, torna a fazer no filho nova
escarificação e, desta vez, passa óleo de piqui (fruto silvestre) misturado com a banha da cobra.
- Essa brincadeira não acaba?
- Qual nada! Novo período de prisão. Desta vez, com saídas ocultas do moço para treinar
luta com um companheiro, mas sem que ninguém veja. Um dia, o pai, contente, sabendo que o filho
está em ótimas condições, leva-o ao centro da aldeia para lutar com qualquer adversário. Nessa
ocasião anuncia que o filho está fraco, magro, que nada o engorda, que é bom que apareça alguém
para derrubá-lo para ele aprender. Em verdade, ele está em boa forma. Deixando-o sozinho, volta a
sentar-se na porta do rancho para de lá assistir a luta. Tudo saindo bem, a prisão é suspensa, mas
caso contrário, começa um novo período de reclusão.
- E o rabo da sucuri, onde foi parar?
- Foi descarnado e cheio com um pau roliço bem moldado ou então com algodão, e posto
para secar sobre o fogo. Uma vez seco, é sempre pendurado no punho da rede do filho. No dia em
que sair da prisão, o moço dança o uruá, trazendo pendido nas costas o rabo da sucuri.
- Ainda bem que em todo esse tempo de prisão a alimentação foi à vontade.
- Aí você está enganado. Na prisão comum, sim, a alimentação é livre. Pra moça também é a
mesma coisa, mas, com o ritual da sucuri, a coisa muda de figura. Durante o tempo em que está
envolvido com a cerimônia da sucuri, não pode comer sal, peixe gordo, macaco, jacubim, macuco e
mutum. Peixe magro pode comer, porém cozido, mas sem caldo.
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ANEXO 2
Amor de Índio
Cantora: Maria Gadú
Compositor: Beto Guedes - Ronaldo Bastos
Tudo o que move é sagrado
E remove as montanhas
Com todo o cuidado, meu amor.
Enquanto a chama arder,
Todo dia te ver passar,
Tudo viver ao seu lado
Com o arco da promessa
Do azul pintado pra durar.
Abelha fazendo mel
Vale o tempo que não voou
A estrela caiu do céu
O pedido que se pensou
O destino que se cumpriu
De sentir seu calor e ser todo
Todo dia é de viver
Para ser o que for e ser tudo.
É mais que sagrado, meu amor.
A massa que faz o pão
Vale a luz do teu suor
Lembra que o sono é sagrado
E alimenta de horizontes
O tempo acordado de viver.
No inverno te proteger
No verão sair pra pescar,
No outono te conhecer,
Primavera poder gostar.
No estio me derreter
Pra na chuva dançar e andar junto
O destino que se cumpriu
De sentir seu calor e ser tudo.
Sim, todo amor é sagrado
E o fruto do trabalho
É mais que sagrado, meu amor.
A massa que faz o pão
Vale a luz do teu suor
Lembra que o sono é sagrado
E alimenta de horizontes
O tempo acordado de viver.
No inverno te proteger
No verão sair pra pescar,
No outono te conhecer,
Primavera poder gostar.
No estio me derreter
Pra na chuva dançar e andar junto
O destino que se cumpriu
De sentir seu calor e ser tudo.
Sim, todo amor é sagrado
E o fruto do trabalho
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ANEXO 3
A vida do índio
O índio lutador,
Tem sempre uma história pra contar.
Coisas da sua vida,
Que ele não há de negar.
A vida é de sofrimento,
E eu preciso recuperar.
Eu luto por minha terra,
Por que ela me pertence.
Ela é minha mãe,
E faz feliz muita gente.
Ela tudo nós dar,
Se plantarmos a semente.
A minha luta é grande,
Não sei quando vai terminar.
Eu não desisto dos meus sonhos,
E sei quando vou encontrar.
A felicidade de um povo,
Que vive a sonhar.
Ser índio não é fácil,
Mas eles têm que entender.
Que somos índios guerreiros.
E lutamos pra vencer.
Temos que buscar a paz,
E ver nosso povo crescer.
Orgulho-me de ser índio,
E tenho cultura pra exibir.
Luto por meus ideais,
E nunca vou desistir.
Sou Pataxó Hãhãhãe,
E tenho muito que expandir.
Autor: Edmar Batista de Souza (Itohã Pataxó) 06/09/06. Esta matéria foi publicada originalmente na
Rede Índios on Line - www.indiosonline.net
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O DESESPERO E OS HUMORES D’O CORPO
DESPAIR AND HUMOURS OF “O CORPO”
Fábio Dobashi FURUZATO (UEMS)1
Resumo: Este artigo se propõe a analisar o conto “O corpo”, do livro A via crucis do corpo, de
Clarice Lispector, buscando destacar o humorismo, tal como o compreendem Luigi Pirandello e
Celestino Fernández de La Vega. Procuramos considerar também as circunstâncias que levaram a
escritora à produção deste livro, a saber, as exigências de seu editor para que escrevesse histórias
relacionadas com a sexualidade feminina, observando como, apesar das limitações mercadológicas,
Clarice acaba criando uma obra artisticamente complexa e de grande importância para a sua
trajetória, conforme o observou Vilma Arêas. E isso ocorre, em grande parte, pelo fato de a
escritora fazer rir, quando se espera que apele para o erotismo, ao mesmo tempo em que esse riso
não se dá de forma meramente cômica, mas justamente através do “sentimento do contrário” ou do
“esforço para não perder a cabeça” que definem o humorismo, segundo Pirandello e Vega.
Entendemos este trabalho como uma pequena contribuição no sentido de diminuir o esquecimento a
que a crítica condenou A via crucis do corpo, juntamente com outros trabalhos de Clarice,
igualmente produzidos “sob encomenda”, como é o caso de seus livros para crianças.
Palavras-chave: Clarice Lispector; Contos; Humorismo; Literatura brasileira; Crítica literária.
1 INTRODUÇÃO
Nos últimos anos de sua vida, enfrentando sérios problemas financeiros, Clarice Lispector
(1925-1977) escreve A via crucis do corpo (1974), sob a imposição de seu editor, que lhe havia
encomendado histórias sobre a sexualidade feminina. E é a própria escritora quem o revela, na
“Explicação” que abre o livro:
Meu editor me encomendou três histórias que, disse ele, realmente aconteceram.
Os fatos eu tinha, faltava a imaginação. E era assunto perigoso. [...] Se há
indecências nas histórias a culpa não é minha. Inútil dizer que não aconteceram
comigo, com minha família e com meus amigos. [...] Vão me jogar pedras. Pouco
importa. Não sou de brincadeiras, sou mulher séria. Além do mais, tratava-se de
um desafio. (LISPECTOR, 1984, p.07).
1
Email: [email protected]; Professor Adjunto (UEMS – Campo Grande);
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Ao mesmo tempo em que fala brevemente sobre o processo de criação dos treze contos dessa
via crucis, Clarice confessa a culpa por ter escrito “histórias que eu não queria que meus filhos
lessem”, justificando-se:
Sucumbi. Que podia fazer? senão ser vítima de mim mesma. Só peço a Deus
que ninguém me encomende mais nada. Porque, ao que parece, sou capaz de
revoltadamente obedecer, eu a inliberta.
Uma pessoa leu meus contos e disse que aquilo não era literatura, era lixo.
Concordo. Mas há hora para tudo. Há também a hora do lixo. Este livro é um
pouco triste porque eu descobri, como criança boba, que este é um mundo-cão.
(LISPECTOR, 1984, p.08).
De fato, todos os textos do livro tocam, de um modo ou outro, no tema da sexualidade
feminina, mas isso é feito com tanta originalidade que, embora a escritora cumpra a encomenda,
também realiza um trabalho extremamente expressivo, indo muito além dos objetivos
mercadológicos da editora. Como observa Vilma Arêas, o livro traz à tona a crise da arte como
atividade mercantilizada:
Introduzindo abertamente a crise, A via crucis do corpo abrigava um núcleo de
sofrimento profundo, rodeado por aquela representação escandalosa que chocava
pelo contraste, cujo humor negro e clima de pastelão funesto usava a fantasia
supostamente interessante do assunto para agradar o mercado. Por força, não
agradou, pois não tem graça nenhuma falar de sexualidade sem o charme
acumulado pelos séculos e exibindo-se ora pelo direito, ora pelo avesso, segundo as
convenções e a moda. Desejo em mulheres de oitenta anos, idosas que pagam pelo
amor físico e brincadeiras com a Virgem Maria não são coisas fáceis de digerir,
mesmo agora, trinta anos depois. (ARÊAS, 2005, p.18).
Arêas também destaca a importância desse livro, inicialmente tão mal recebido pela crítica, na
trajetória da escritora, que estava prestes a nos presentear com A hora da estrela (1977),
considerada uma de suas obras-primas.
Nosso objetivo, porém, é muito mais modesto: pretendemos, com este trabalho, examinar
apenas “O corpo”, segundo conto da coletânea, buscando destacar seus aspectos humorísticos.
Faz-se necessário, portanto, antes do início de nossa análise, esclarecer o conceito de
humorismo, tal como o compreendemos aqui.
Para Luigi Pirandello, por exemplo:
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o humorismo consiste no sentimento do contrário, provocado pela especial
atividade da reflexão que não se esconde, que não se torna, como comumente na
arte, uma forma do sentimento, mas o seu contrário, mesmo seguindo passo a passo
o sentimento como a sombra segue o corpo. (PIRANDELLO, 1996, p.169-70)
No caso de Clarice, podemos dizer que a originalidade dessa via crucis se deve, em grande
parte, ao fato de ela fazer rir, quando se esperava o erotismo. O humor, assim, seria um segundo
sentido, uma espécie de sombra projetada por cada um desses treze contos, que nunca deixam de
falar sobre o corpo, sem que o façam da maneira mais previsível.
Mas não se trata de simplesmente produzir o riso, pois, se assim o fosse, teríamos comicidade
e não humor. E também não se trata apenas de desdenhar do erotismo, o que, segundo Pirandello,
seria próprio da sátira. O humor é aquele “sentimento do contrário” que nos faz, por exemplo,
reconhecer Dom Quixote como um “louco furioso”, ao mesmo tempo em que admiramos “com
infinita ternura” suas ridicularias, “enobrecidas por um ideal tão elevado e puro” (PIRANDELLO,
1996, p.147).
De modo semelhante, para Celestino Fernández de La Vega, o humor também não se
restringe apenas ao riso. Situado entre a tragédia e a comédia, o conflito humorístico seria um
“esforço para não perder a cabeça”. Explicando melhor, diante de um determinado conflito
narrativo, tanto a tragédia quanto a comédia apresentariam soluções afetivas, respectivamente, o
pranto e o riso.
Já o conflito humorístico seria um “jogo de circunstâncias atenuantes” que permite o
distanciamento do leitor:
Nadie que comprenda se puede reír tranquilamente de D. Quijote, pues en
cualquiera de sus cómicas frustraciones hay un reverso doloroso de buenas
intenciones fallidas o nobles esfuerzos mal pagados; pero tampoco es posible la
plena compasión e identificación con el héroe manchego como si se tratase de un
héroe trágico, pues su catadura y el aspecto cómico de algunos móviles de su
conducta son innegables. (VEGA, 1967, p. 63)
Cabe examinar, agora, se “O corpo”, além de ser um conto divertido, possui outros aspectos
que nos permitam considerá-lo realmente humorístico, conforme os conceitos apresentados acima: o
“sentimento do contrário” de Pirandello ou o “jogo de circunstâncias atenuantes” de Vega.
2 “O CORPO”
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O enredo trata do triângulo amoroso entre Xavier, Carmem e Beatriz. Inicialmente, os três
vivem juntos numa situação de equilíbrio. Xavier satisfaz os desejos das duas mulheres e nenhuma
delas sente ciúme da outra. Pelo contrário, Carmem e Beatriz também vão para a cama juntas,
“apesar de não serem homossexuais”, conforme diz o texto.
O conflito se inicia quando as mulheres descobrem que Xavier, além de bígamo, era adúltero,
pois ainda “enganava a ambas com uma prostituta ótima”. A partir da fatal descoberta, o
relacionamento torna-se problemático, até que as duas acabam matando o homem amado.
Para se livrar do corpo, Carmem e Beatriz enterram-no no jardim e plantam rosas vermelhas
sobre a sepultura – idéia inspirada pelo romantismo de Beatriz, fiel leitora de fotonovelas.
Dias depois, o secretário da indústria farmacêutica de Xavier vai à casa do patrão à sua
procura e, desconfiado das duas mulheres, volta com a polícia, para investigar o caso. Revelado o
corpo já semi-decomposto, o conto termina com a seguinte resolução da lei:
– Olhe, disse um dos policiais diante do secretário atônito, o melhor é fingir que
nada aconteceu senão vai dar muito barulho, muito papel escrito, muita falação.
– Vocês duas, disse o outro policial, arrumem as malas e vão viver em Montevidéu.
Não nos dêem maior amolação.
As duas disseram: muito obrigada.
E Xavier não disse nada. Nada havia mesmo a dizer. (LISPECTOR, 1984, p.32)
Logo de início, fica evidente a comicidade da intriga. Xavier é um “homem truculento e
sangüíneo”, que não compreende O último tango em Paris, mas se excita com o filme, pensando
que se tratava de pornografia. Beatriz é gorda e “sem vergonha”. E Carmem, alta e magra, embora
não seja especialmente bem dotada do ponto de vista intelectual, é mais refinada que os demais.
O que une os três personagens é uma espécie de hedonismo livre de culpa. Eles compartilham
de muito sexo e farta comilança, ao mesmo tempo em que levam uma pacata vida familiar: vão à
igreja, ao cinema e ao restaurante, assistem televisão e viajam juntos.
Excetuando-se o fato de serem três e de se dedicarem excessivamente aos prazeres do corpo,
o relacionamento entre eles é como o de um casal comum, tanto é que não admite infidelidade.
Quanto ao conflito decorrente da traição, isso é tratado de tal forma, que o ridículo da situação nos
afasta do pranto, como diria Vega.
É o que ocorre, por exemplo, no trecho em que as mulheres descobrem que os “três na
verdade eram quatro, como os três mosqueteiros”:
Um dia Xavier veio do trabalho com marcas de batom na camisa. Não pôde negar
que estivera com a sua prostituta preferida. Carmem e Beatriz pegaram um pedaço
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de pau e correram pela casa toda atrás de Xavier. Este correu feito um desesperado,
gritando: perdão! perdão! perdão! (LISPECTOR, 1984, p.26).
Apresentado desse modo, o conflito dificilmente poderia adquirir um tom grave. Sendo assim,
nada mais natural que Xavier morra numa noite em que “dormia placidamente como um bom
cidadão que era”; que seja o seu ronco a fonte de inspiração para o assassinato a facadas; que,
apesar do seu tamanho, as duas mulheres errem os primeiros golpes, apunhalando o cobertor; e,
assim por diante, até o desfecho, em que o crime é simplesmente abafado pela negligente e
preguiçosa polícia do país.
Mas até agora, de acordo com Vega e Pirandello, estaríamos diante de um conflito puramente
cômico.
3 O DESESPERO E OS HUMORES
Por outro lado, como o “tango” apreciado por Xavier e O último tango em Paris – que ele não
compreende –, esse trabalho de Clarice também não deixa de ser uma expressão artística marcada
pelo desespero.
Primeiramente, é preciso lembrar aqui que o protagonista do filme de Bertolucci é um
“homem desesperado”, diante do recente suicídio de sua mulher. A jovem com quem ele se
encontra no apartamento vazio de Paris está prestes a se casar, mas não tem a menor convicção
nessa escolha. Os dois, então, vivem um relacionamento entre quatro paredes, sem que se crie
nenhum vínculo entre eles além do sexo.
De acordo com o Roger Ebert, O último tango em Paris é um filme sobre a necessidade:
about the terrible hunger that its hero, Paul, feels for the touch of another human
heart. He is a man whose whole existence has been reduced to a cry for help – and
who has been so damaged by life that he can only express that cry in acts of crude
sexuality. (EBERT, 1972, s/p.)
Mas, voltando a “O corpo” de Clarice, o desespero atribuído ao protagonista do filme também
vai deixando suas marcas no decorrer da intriga. É assim, por exemplo, que, indo à igreja no
domingo seguinte a uma grande noitada, Xavier, Carmem e Beatriz: “Pareciam um bolero. O bolero
de Ravel”.
Ora, como sabemos, o bolero é uma dança espanhola bastante viva. Mas a célebre obra do
músico francês, tendo sido igualmente composta para a dança, possui um caráter muito diferente.
Com sua melodia hipnoticamente repetitiva e seu ritmo mais lento, o Bolero de Ravel se inicia de
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forma muito suave. Aos poucos, o acréscimo de instrumentos e o aumento de intensidade sonora
conferem tal dramaticidade à peça que chega a causar aflição. Assim, embora talvez não se trate de
humorismo, a composição de Ravel não deixa de apresentar alguma semelhança com as definições
de humor de Pirandello e Vega, pelo fato de jogar com sentimentos opostos.
Do mesmo modo, “O corpo” é marcado por traços de melancolia, entremeados ao ridículo e à
falta de pudor: “Às vezes as duas se deitavam na cama. Longo era o dia. E, apesar de não serem
homossexuais, se excitavam uma à outra e faziam amor. Amor triste”.
E, se o título do conto já se refere duplamente à vida entregue aos prazeres físicos e ao
cadáver de Xavier, a história também vai sendo pontuada pela presença da morte, em meio à
comicidade:
As duas ficaram sentadas junto de uma mesa, pensativas. Cada uma pensava
na infância perdida. E pensaram na morte. Carmem disse:
– Um dia nós três morreremos.
Beatriz retrucou:
– E à toa. (LISPECTOR, 1984, p.27-8)
Apesar do possível non sense, o comentário de Beatriz não deixa de revelar o aspecto trágico
da morte: ela não tem razão de ser, não obedece a um motivo que se justifique aos nossos olhos –
exceção feita, é claro, ao caso dos mártires, cuja morte adquire um sentido de sacrifício por uma
determinada causa.
Mas o humor não é, segundo Pirandello, justamente o “sentimento do contrário”, ou seja,
aquilo que nos permite ver que o sentido de grandeza dado à morte (ou à vida) pode ser apenas a
mera projeção da sombra de um anão?
No caso específico de “O corpo”, a motivação para a morte só poderia ser passional, pois a
resolução vem de Carmem, como a de Mérimée e Bizet. Assim, diante da triste constatação de que
os três morreriam à toa, as mulheres traídas resolvem “dar um jeito”, tendo como fundo musical
uma “lancinante música de Schubert”: “Era uma noite especial: cheia de estrelas que as olhavam
faiscantes e tranqüilas. Que silêncio. Mas que silêncio. Foram as duas para perto de Xavier para ver
se se inspiravam” (LISPECTOR, 1984, p.28).
A inspiração então se dá ao som do ronco de Xavier, que nada tem de lírico, contrastando com
o “piano puro” de Schubert, de poucas linhas atrás. Por outro lado, o assassinato ainda apresenta
algo de grandioso e inevitável, como se percebe nesse breve comentário da narradora: “Matar
requer força. Força humana. Força divina. As duas estavam suadas, mudas, abatidas. Se tivessem
podido, não teriam matado o seu grande amor” (LISPECTOR, 1984, p.28).
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E, logo em seguida, a fatalidade e a possível grandeza do conflito são novamente quebradas,
mas dessa vez por uma dificuldade de ordem prática: era necessário desfazer-se do corpo. Como foi
dito, Xavier é enterrado no jardim, numa sepultura florida de acordo com o romantismo piegas de
Beatriz.
Feito isso, as duas mulheres agem como autênticas viúvas, vestindo-se de preto, comendo e
bebendo pouco, sempre em silêncio. E, com o passar dos dias, as rosas dão mostras de “ter pegado”,
anunciando o final do luto: “Boa mão de plantio, boa terra próspera. Tudo resolvido”.
(LISPECTOR, 1984, p.30)
Agora bastava apenas resolver o problema legal que, em se tratando do Brasil, nem chegou a
ser um verdadeiro problema. Dada a resolução dos policiais, nossas personagens agradecem a
impunidade e não se fala mais nisso.
4 A VIA CRUCIS
Esta breve análise, embora não esgote todos os aspectos d’ “O corpo”, parece-nos suficiente
para comprovar a presença do humor nesta narrativa, segundo os conceitos de Pirandello e Vega,
apontando para uma complexidade maior do que o riso meramente cômico.
E, se levarmos em conta, mais uma vez, o contexto em que o livro foi escrito, com todas as
dificuldades enfrentadas pela escritora no final de sua vida, a complexidade desta história adquire
um interesse ainda maior.
Sendo uma das escritoras mais talentosas do país, Clarice incluiu, em sua trajetória, livros que
a contrariavam, pelo fato de fugirem de seu projeto original. Apesar disso, os contos de A via crucis
do corpo, inicialmente muito mal-recebidos pela crítica, merecem no mínimo uma releitura mais
atenta, como o observou Arêas.
Cabe lembrar ainda que a morte de Clarice também foi marcada por circunstâncias adversas.
Vítima de câncer, a escritora faleceu na véspera de seu aniversário, no dia 9 de dezembro de 1977:
“Queria ser enterrada no cemitério São João Batista (‘é mais perto, vão me visitar’). Não foi. Numa
cerimônia simples, sem discursos, foi enterrada no cemitério Comunal Israelita, no Caju”
(CAMPADELLI & ABDALLA, 1981, p.06).
Diante da morte, no entanto, a atitude mais adequada talvez seja mesmo a do desfecho do
conto que analisamos: “E Xavier não disse nada. Nada havia mesmo a dizer.” (LISPECTOR, 1984,
p.32).
REFERÊNCIAS
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ARÊAS, Vilma. Clarice Lispector com a ponta dos dedos. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
CAMPADELLI, Samira Youssef & ABDALLA JR., Benjamin. Clarice Lispector. São Paulo: Abril
Educação, 1981. (Literatura comentada).
EBERT, Roger. “The last tango in Paris”. Disponível em: http://www.rogerebert.com/reviews/lasttango-in-paris-1972. Acesso em: 18 de junho de 2014.
LISPECTOR, Clarice. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
_____. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990.
PIRANDELLO, Luigi. O humorismo. São Paulo: Experimento, 1996.
VEGA, Celestino Fernández de la. El secreto del humor. Buenos Aires: Editorial Nova, 1967.
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UMA VIDA EM SEGREDO: DA LITERATURA AO CINEMA
A HIDDEN LIFE: FROM LITERATURE TO CINEMA
Fernanda de Souza RODRIGUES (PG/UFMS)1
Resumo: Desde o surgimento do cinema, a literatura serviu de atrativo para os diretores,
consistindo em um dos mais importantes pontos de partida para a construção cinematográfica.
Tratando-se de duas linguagens diferentes, com suas leis e limitações, a relação entre a Literatura e
a sétima arte deixou de ser analisada sob um olhar depreciativo, que privilegiava a primeira em
detrimento da segunda, e passou a ser considerada uma relação recíproca, dialógica, na qual há
uma contribuição mútua entre ambas as artes. Nessa direção, este trabalho tem por objetivo refletir
sobre a relação entre literatura e cinema, mais especificamente sobre os processos de adaptação,
tendo como objeto de análise a novela Uma vida em segredo (1964), de Autran Dourado, e a
adaptação fílmica homônima, dirigida por Suzana Amaral. Para isso, a primeira parte apresenta
alguns pontos teóricos concernentes à adaptação e aos fatores ligados à ela e em seguida,
procuramos analisar a novela de Dourado e a adaptação realizada por Suzana Amaral.
Palavras-chave: Uma vida em segredo. Adaptação. Literatura.
1 INTRODUÇÃO
A ideia de que a arte deriva de outra arte já vem sendo, há muito, consolidada no âmbito
artístico. "Nao há arte sem a arte" é o que afirma Michel Schneider; Jonathan Lethem, por sua vez,
ressalta que o artista se converte à arte pela própria arte; Harold Bloom aponta que os poetas fortes
fazem sua história poética distorcendo a leitura uns dos outros, realizando uma má leitura,
atentando, ainda, para a ideia de que a apropriação poética é necessariamente o estudo do ciclo vital
do poeta como poeta; Flaubert alega: "Não escrevo mais - para que escrever? Tudo o que há de belo
já foi dito e bem dito. Ao invés de fazer uma obra, é talvez mais sábio descobri-la, nova, sob as
antigas" (FLAUBERT apud SCHNEIDER, Michel. Ladrões de palavras, 1990, p. 32.)
Levando em consideração esse caminho percorrido pelo artista, no qual apropriação e
originalidade andam de mãos dadas, e sabendo que esse percurso não diz respeito somente as
apropriações que ocorrem entre objetos literários, mas também entre as diversas relações interartes,
o objetivo aqui é levantar uma reflexão sobre a relação entre literatura e cinema, mais
1
[email protected]. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
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especificamente sobre os processos de adaptação, tendo como objeto de análise a novela Uma vida
em segredo, de Autran Dourado, e a adaptação fílmica homônima, dirigida por Suzana Amaral.
Muitos estudiosos já se ocuparam da análise de adaptações sob as mais variadas
perspectivas. Entre eles, podemos citar João Manuel dos Santos Cunha, professor de Literatura da
Universidade Federal de Pelotas, atuando na área de literatura e cinema. Em texto intitulado
"Nuanças do paradigma genérico de horror no deslocamento do literário ao fílmico", publicado no
livro Cinema de horror (2011), Cunha, traçando o percurso, inicialmente, dessa categoria fílmica,
horror-terror, detém-se no percurso realizado de Edgar Allan Poe à Clarice, que culmina na
adaptação dirigida por José Antonio Garcia. Nessa direção, o autor acompanha a tradução do conto
"The tell-tale heart", de Poe, por Clarice Lispector, que o traduz como "O coração denunciador",
para depois analisar o conto "O corpo" de Lispector, que não por coincidencia apresenta pontos
intertextuais com o de Poe, e finalmente, a adaptação realizada por José Antonio Garcia do conto de
Clarice.
O conto de Poe apresenta a história de um empregado, o qual é o próprio narrador, que fica
obcecado com o olho cego do velho com o qual convive. Tal visão termina por se tornar
insuportável e ele acaba por matar o ancião, que é tomado por um medo quase alucinatório,
escondendo o corpo esquartejado sob o assoalho. A polícia aparece em seguida. Após convencer os
policiais de que nada de anormal acontecera , o assassino sofre forte alucinação que o leva a
confessar. O que ocorre no momento que precede a confissão, é que um som intermitente, como de
um coração pulsando, em cadenciada aceleração, ocasiona o descontrole do jovem que,
autodenunciando-se, indica o lugar onde escondera o corpo.
Em 1974, Lispector traduz alguns contos de Poe, na obra O gato preto e outras histórias de
Edgar Allan Poe, inclusive "The tell-tale heart". Reduzindo o conto à metade de seu tamanho
original, a escritora realiza alguns cortes, mantendo outros em sua integralidade. Segundo Cunha, a
autora mostra a natureza criadora de sua tradução ao interpretar o conto de acordo com seu olhar e o
contexto no qual se insere. Nesse sentido, a autora privilegia a mostra da presença ostensiva do
aparato policial como condicionante da auto denúncia, em detrimento de outros aspectos, de
natureza psicológica, que encaminhariam para uma leitura psicológica da história.
Ainda em 1974, Lispector publica A via crucis do corpo, contendo treze narrativas, entre
elas, "O corpo", que mantém uma relação intertextual com o conto de Poe e sua própria tradução.
Como aponta Cunha, "O corpo", da mesma forma como o relato de Poe, consiste na "narrativa de
um assassinato, de um sentimento de desprezo, de um corpo ocultado, de policiais que investigam,
de uma autodenúncia" (CUNHA, 2011, p. 32-33). A narrativa conta a história de um cômico trio
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amoroso formado por Xavier e suas duas mulheres, Carmen e Beatriz, as quais, após descobrirem a
traição de Xavier resolvem assassiná-lo. Em um contexto completamente diferente, no Brasil dos
anos 70, sob ditadura civil-militar, Clarice reescreve, em chave paródica, o conto de Poe, tratando
com ironia temas como o recrudescimento da repressão e da tortura; censura às manifestações
individuais e coletivas, à imprensa e à criação estética, contrastando-os com a negligência e
inoperância dos representantes da estrutura policial que deveriam garantir a ordem social, mas que
no conto, não o fazem, liberando as culpadas pelo assassinato, Carmem e Beatriz, sem qualquer
punição.
Quinze anos após a publicação do conto de Clarice, José Antonio Garcia decide adaptá-lo às
telas do cinema. O filme mantém o mesmo título O corpo, e como afirma Cunha, constitui-se como
uma tradução criativa para a versão paródica de Clarice, fechando um ciclo na migração do conceito
de horror/terror do literário ao fílmico, um dos focos da análise do professor. A adaptação, como
mostra a análise de Cunha, preserva o contexto sócio-político em que Lispector localizou sua
narrativa para a via-crucis do corpo do "trígamo" Xavier, tratando-se, portanto, de um filme de
época. Há uma diferença de localização geográfica, deslocando a ação do Rio de Janeiro para São
Paulo. Mantendo, portanto,o itinerário da via-crucis do corpo de Xavier, levando em consideração,
entretanto, as mudanças técnicas necessárias ao código fílmico e à operacionalidade da produção
cinematográfica, como salienta Cunha, a adaptação de Garcia é constituída por meio da transcriação
do literário ao fílmico, dando vazão, nesse sentido, à invenção autoral.
Tomando como exemplo a análise realizada por Cunha, o objetivo deste trabalho é refletir
sobre a relação entre literatura e cinema, mais especificamente sobre os processos de adaptação,
tendo como objeto de análise a novela Uma vida em segredo, de Autran Dourado, e a adaptação
fílmica homônima, dirigida por Suzana Amaral. Para isso, a primeira parte apresenta alguns pontos
teóricos concernentes à adaptação e aos fatores ligados à ela; em seguida, tendo como base,
sobretudo, o referencial teórico, procuramos analisar a novela de Dourado e adaptação realizada por
Suzana Amaral, apontando, posteriormente, algumas considerações finais.
2. ADAPTAÇÃO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Desde o seu aparecimento, como aponta Thais Flores Nogueira Diniz (2005), o cinema
adotou a prática de transformar narrativas literárias em narrativas fílmicas, o que resulta no fato de
boa parte dos filmes não possuírem um script original, mas sim, um roteiro que tem como base uma
obra literária. Apesar das propostas experimentais de alguns estudiosos e cineastas, como é o caso
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de Alexandre Astruc, crítico de cinema e literatura, escritor e posteriormente cineasta, que previa a
possibilidade de editores escreverem ideias diretamente para os filmes, ou seja, "escrever com a
câmera", exatamente como um escritor escreve com sua caneta, o que foi realizado no cinema de
Jean-Luc Godard, por exemplo, que escreveu o roteiro de todos os seus filmes1; apesar disso,
presenciamos um número cada vez maior de adaptações.
Por muito tempo, essa relação entre cinema e literatura foi ancorada em um processo
unidirecional, partindo sempre do literário ao fílmico. As análises, como mostra Diniz, priorizavam
o primeiro em detrimento do segundo, tendo como foco a fidelidade do texto fílmico ao texto
literário. Linda Hutcheon (2013), aponta que a crítica acadêmica e a resenha jornalística
frequentemente julgaram as adaptacões populares contemporâneas como secundárias, derivativas,
tardias e culturalmente inferiores. A autora lista algumas palavras ainda mais fortes e moralistas
utilizadas para atacar a adaptação cinematográfica, como "traição", "deformação", "perversão",
"infidelidade" e "profanação".
Hutcheon questiona-se como as adaptações tornaram-se presentes em nossas culturas em
número cada vez maior, mesmo sendo tratadas, muitas vezes, de forma depreciativa, sendo
definidas como criações inferiores e secundárias. Para a autora, a resposta talvez estaria relacionada
com a aparição constante de novas mídias e canais de difusão de massa, mas também com algo
particularmente atraente presente nas adaptações, que gera algum tipo de prazer no telespectador.
Nessa direção, Hutcheon afirma:
Gostaria de argumentar que parte desse prazer advém simplesmente da repetição
com variação, do conforto do ritual combinado à atração da surpresa. O
reconhecimento e a lembrança são parte do prazer (e do risco) de experienciar uma
adaptação; o mesmo vale para a mudança. A persistência temática e narrativa
junta-se à variação, e assim as adaptações nunca são simplesmente reproduções
destituídas da aura benjaminiana, pelo contrário, elas carregam essa aura consigo
(HUTCHEON, 2013, p. 25).
Sob essa perspectiva, observamos que a adaptação preserva um caráter duplo, ao mesmo
tempo em que é um objeto estético diferente, novo, transformado, carrega em si traços do texto
adaptado, ou seja, é uma transposição anunciada de uma ou mais obras. É o que destaca Hutcheon:
"A adaptação é repetição, porém repetição sem replicação" (2013, p. 28). Para a autora, só é
possível trabalhar com adaptações como adaptações, pensando-as como obras "palimpsestuosas",
1
Mário Alves Coutinho, em seu texto "Escrever com a câmera", presente no livro Textos à flor da tela: relações entre
literatura e cinema (2004), discorre sobre o projeto de Alexandre Astruc e alguns cineastas que colocaram em prática
sua teoria.
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assombradas pelos textos adaptados. Nesse sentido, em resumo, Hutcheon descreve a adaptação
como transposição declarada de uma ou mais obras reconhecíveis, como um ato criativo e
interpretativo de apropriação/recuperação e como um engajamento intertextual extensivo com a
obra adaptada, incluindo, ainda, quase toda alteração feita em certas obras culturais do passado,
vinculando-se, pois, a um processo de recriação cultural mais amplo (HUTCHEON, 2013, p. 30).
Essas definições vão ao encontro do que Michel Schneider propôs em sua obra Ladrões de palavras
(1990), defendendo a ideia de que todo texto é um palimpsesto, sendo o olhar moderno que
possibilita a visão de que há um texto sob o texto, palavras sob palavras, o que é algo muito antigo,
recorrente nos pergaminhos, nas pinturas, entre outros.
Tendo como base o estudo de James Naremore, Diniz (2005) destaca a relevância de uma
análise de adaptação que englobe atividades como reciclagem, "remake" e outras maneiras de
recontar. Nessa direção, a proposta seria uma abordagem que vai além da fidelidade, que leve em
consideração as especificidades do meio, e que vá além da tradução, chegando à transformação. A
adaptação, dessa forma, seria um processo multidirecional, dialógico e intertextual. Nas palavras de
Diniz:
As adaptações fílmicas estariam situadas num redemoinho de referências e
transformações intertextuais, de textos que geram outros textos, num processo
infinito de reciclagem, transformação, transmutação, sem qualquer ponto de origem
necessariamente definido (DINIZ, 2005, p. 17).
Deixando de ser analisada como um processo unidirecional, em que o texto literário tem
prioridade sobre o fílmico, a análise da adaptação passa a ser baseada em um dialogismo
intertextual, no qual há uma contribuição recíproca, tanto da literatura para o cinema, quanto do
cinema para a literatura. A fidelidade ao texto fonte, dessa forma, fica fora de questão, levando em
consideração que a adaptação não intenta substituir a obra literária, mas dialogar com ela. José
Domingos de Brito, em texto intitulado "Dos mistérios da criação literária", quarto capítulo do livro
Literatura e cinema (2007), vê o relacionamento entre a literatura e o cinema como umbilical,
mostrando que alguns estudiosos alegam sua existência antes mesmo do surgimento do cinema,
evocando uma teoria de que existe uma essência do cinema, de um pré-cinema presente em alguns
texto literários, os quais, através do modo narrativo, enfatizaram a visualização perceptiva da
imagem de uma cena. José Carlos Avellar discorre sobre a relação entre cinema e literatura no
Brasil, enfatizando, também, essa reciprocidade entre esses dois diferentes sistemas sígnicos:
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"Para compreender melhor o entrelaçamento entre o cinema (em especial o que
começamos a fazer na década de 1960) e a literatura (em especial a que
começamos a fazer na década de 1920) talvez seja possível imaginar um processo
(cujo ponto de partida é difícil de localizar com precisão) em que os filmes
buscavam nos livros temas e modos de narrar que os livros apanharam em filmes;
em que os escritores apanham nos filmes o que os cineastas foram buscar nos
livros; em que os filmes tiram da literatura o que ela tirou do cinema; em que os
livros voltam aos filmes e os filmes aos livros numa conversa jamais interrompida"
(AVELLAR, 2007, p. 08).
Mas o que exatamente, na adaptação, entra em diálogo com o texto adaptado? Em outras
palavras, o que é passível de ser adaptado? Que aspectos são interpretados, transformados e
recriados? Sobre esses questionamentos, há um grande impasse no tocante à forma/expressão e ao
conteúdo/ideias. Sabemos que em se tratando de literatura, as ideias são indissociaveis da
expressão, o que se diz não pode fugir do modo como se diz. Entretanto, a adaptação comete essa
"heresia"1, de separar a forma do conteúdo, levando em consideração que, querendo ou não, a forma
é alterada na tradução intersemiótica, pois cada sistema possui sua linguagem específica. Chklóvski,
como aponta Avellar, concluiu que de um romance "nada pode ser levado ao cinema, a não ser a
história contada nele, mas a história nua, sem nada, somente os fatos, sem o revestimento artístico
que faz desses fatos um todo expressivo (AVELLAR, 2007, p. 11-12).
Vários críticos recorrem a algumas noções, de acordo com Hutcheon, tentando definir o que
uma adaptação precisa recuperar da obra literária para obter sucesso. Alguns falam de "espírito" da
obra, o sucesso dependeria, pois, da captura e veiculação desse espírito; em outros casos é o "tom"
da obra que é considerado central e em outros, o "estilo". Todavia, a maioria das teorias da
adaptação alegam ser a história o denominador comum, o núcleo do que é transposto para outras
mídias. Nessa direção, ficaria a cargo da adaptação buscar "equivalências em diferentes sistemas de
signos para os vários elementos da história: temas, eventos, mundo, personagens, motivações,
pontos de vista, consequências, contextos, símbolos, imagens, e assim por diante" (HUTCHEON,
2013, p.32).
Nessa direção, sabendo que toda narrativa, seja literária ou fílmica, passa por uma
elaboração estrutural específica, podemos listar alguns dos pilares estruturais indispensaveis para
que sua manifestação se concretize: narrador, personagens, tempo, espaço e acontecimentos. Diniz,
com base na teoria de Brian McFarlane, distingue a adaptação criativa daquela que transpõe apenas
as "funções cardeais". A primeira consiste na capacidade do cineasta de transferir para o cinema,
1
Hutcheon cita Kamilla Elliot, a qual observa que a adaptação comete a heresia de mostrar que a forma pode ser
separada do conteúdo.
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sensações, sentimentos e pensamentos, ou seja, procurar entre os recursos cinematográficos aqueles
que realizam a mesma função dos signos presentes no texto literário, o que realmente atesta a
criatividade do cineasta; já a transposição das "funções cardeais", consiste na transferência do
enredo, dos personagens, do espaço, em outras palavras, daquilo que é diretamente transferível da
literatura para o cinema, exigência básica para que determinada obra seja considerada uma
adaptação.
3 UMA VIDA EM SEGREDO: DA OBRA LITERÁRIA ÀS TELAS DO CINEMA
Sob a luz dessas reflexões teóricas no tocante a adaptação, o objetivo aqui, é analisar o
filme Uma vida em segredo, dirigido por Suzana Amaral e adaptado da novela homônima de Autran
Dourado, verificando como ocorre a transposição da história e dos elementos envolvidos na criação
literária. Publicada em 1964, a novela Uma Vida em Segredo foi considerada por alguns críticos,
entre eles Hélio Pólvora e Assis Brasil como uma das melhores realizações literárias de Autran
Dourado, considerando que nela, Dourado tenha atingido o ponto mais alto de sua arte.
Frequentemente relacionada a Um Coração Simples, de Gustave Flaubert, pela semelhança
das narrativas, Uma Vida em Segredo conta a história de prima Biela que, depois da morte do pai, é
convencida pelos primos Conrado e Constança a deixar a Fazenda do Fundão, e ir morar na cidade
juntamente com eles. Chegando a casa dos primos, que tinham quatro filhos, Mazília, Gilda,
Fernanda, Alfeu e Silvino, a imagem de Biela decepciona a todos, com seus vestidos de chita, uma
sombrinha vermelha desbotada, as botinas de cordão, a saia muito comprida, o coque grosso, baixo,
de longas tranças, não correspondia às expectativas dos familiares. Desde o início, Biela sente-se
perdida naquele novo mundo no qual iria adentrar.
Biela se esforça para preservar sua identidade, mas, ao mesmo tempo, precisa se adaptar ao
novo espaço familiar e urbano no qual viverá o resto de sua vida, fazendo com que ela sofra, no
decorrer da narrativa, várias crises de identidade. Como fuga a essa realidade “estranha” para ela,
Biela apega-se às lembranças da mãe cantando uma cantiga no canapé, o bater do monjolo, o chuápá da água da Fazenda do Fundão.
A primeira pessoa com a qual se sentirá mais a vontade é Constança, admira-a no quartinho
de oração e começa achá-la bonita demais, uma santa, assemelhando-se a sua mãe. Devido a várias
circunstâncias, a ternura que sentira por Constança começa a secar. Identifica-se mesmo é com a
“gente miúda” da cozinha, onde se sentia mais a vontade, como se estivesse na Fazenda.
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Como tinha em seu coração muita “ternura escondida”, muito amor poupado, como nos diz
o narrador, Biela apega-se, agora, a Mazília, que lhe dá “mais matéria para fabricar seus sonhos”.
Esta, porém, casa-se e vai embora para terras distantes. Biela fica ausente de carinho e, por fim,
apega-se a um cachorro que aparecera do nada, enquanto voltava para casa dos primos. Com o
cachorro, a quem ela dá o nome de Vismundo, Biela estabalecerá sua última relação afetiva para,
depois, ao final da narrativa, morrer na enfermaria de indigentes.
Trinta e oito anos depois da publicação da obra de Dourado, a cineasta Suzana Amaral
decide levar às telas do cinema a história de prima Biela. A adaptação, com aproximadamente uma
hora e trinta e oito minutos de duração, recupera a narrativa quase que em sua integralidade, não
apresentando mudanças drásticas em relação ao texto literário, levando em consideração, é claro, as
especificidades do meio e a intencionalidade da cineasta.
Podemos observar que as funções cardeais, mencionadas anteriormente, foram transferidas
em sua maioria, de acordo, entretanto,com as limitações cinematográficas. Na obra de Dourado
temos como personagens principais prima Biela, Constança, Conrado, Mazília, filha do casal, e o
cachorro Vismundo, os quais aparecem também na tradução fílmica, interpretados respectivamente
por Sabrina Greve, Eliane Giardini, Cacá Amaral e Nayara Guércio. Como personagens
secundários, no texto literário, aparecem os outros filhos de Constança e Conrado, Gilda, Fernanda,
Silvino e Alfeu, a "gente miúda" da cozinha, Joviana, interpretada por Neusa Borges, e
Gomercindo, os amigos de Constança e Conrado e o noivo de Biela. Para evitar um aglomerado
grande de personagens e para focalizar os personagens principais, Suzana Amaral optou pelo corte,
na narrativa fílmica, de Gilda, Fernanda e Silvino. Levando em consideração que esses personagens
não estabelecem uma relação direta com Biela e não alteram sua história, como é o caso dos outros
personagens, que são essenciais para a construção da narrativa, não haveria necessidade de adaptálos ao filme.
Suzana Amaral preserva o contexto histórico social da obra literária, bem como o
espaço onde se passa a história, uma cidade de Minas Gerais e as referências à Fazenda do Fundão.
Com as inúmeras transformações históricas, econômicas e sociais que caracterizam o Brasil da
segunda metade do século XX, período em que se insere boa parte da produção de Dourado, a
presença do espaço rural nas narrativas vai sendo substituída pelo ambiente urbano. Biela, em toda
sua complexidade, não deixa de representar esse universo perdido, deslocado, e que, por isso,
necessita reafirmar sua identidade, ao mesmo tempo em que precisa se adaptar a um mundo que já
não é o seu.
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Para traduzir as crises de identidade e a adaptação de Biela à cidade, que no livro é descrito
com riqueza de detalhes, Suzana Amaral utiliza os planos e os movimentos de câmera. Nessa
direção, quando Biela chega à casa dos primos, não conseguindo travar um diálogo com todas
aquelas pessoas que se deparavam com ela e lhe faziam perguntas, sobretudo Constança, ela é
encaminhada pela prima aquele que seria o seu quarto. Nesse momento, na obra de Dourado,
através do fluxo de consciência, são descritos por cerca de cinco páginas os sentimentos de Biela, a
sua angústia por estar em um lugar onde sentia-se completamente perdida, miserável, ao mesmo
tempo em que sentia um contentamento por viver emoções tão novas. No filme, todas essas
sensações são transmitidas ao telespectador por meio dos planos que mostram Biela no quarto,
pensativa, tocando a cama e os objetos (Figuras 1 à 4).
Em vários momentos, na obra de Dourado, como já dito anteriormente, para fugir a essa
realidade estranha ao seu "universo perdido", Biela rememora a mãe cantando uma cantiga no
canapé, o bater do monjolo, o chuá-pá da água da Fazenda do Fundão, que são apresentados da
seguinte forma:
Biela jogou-se na cama. O corpo afundou no macio da cama de molas, sentiu os
estalidos que a palha do colchão fazia. Ficou sentindo as sensações todas, novas.
(...) E os olhos cerrados, o corpo solto no espaço, começou a viver uma lembrança,
a antiga lembrança. E ouviu a cantiga mais bonita, mais mansa, mais feita das cores
do céu. Uma sensação assim tão boa, mas tão diferente, só de noite na roça, o
riachinho correndo, quando esticava o ouvido para ouvir o chuá-pá do monjolo: a
água enchendo o cocho, o silêncio, o ranger do cepo na tranqueta, o chuá da água
(...) Nos ares de pureza em que a cantiga a envolvia, foi se perdendo em cismas, e a
mãe vinha de novo abraça-la. Tão bonita, tão mansinha, tão pura como ninguém. E
era a voz da mãe que ouvia enquanto ela própria cantarolava baixinho. Em pouco
não podia mais distinguir se sonhava ou ser era a doce lembrança da mãe a embalar
o pensamento (DOURADO, 2000, p. 43-44).
Adaptando essas lembranças de prima Biela ao cinema, Amaral utiliza a técnica de flash
back, realizando uma mudança de plano temporal. Dessa forma, dos planos em que Biela está no
quarto, no momento presente da novela, passa-se a um plano passado, onde aparece Biela no colo
da mãe, o riachinho, a água enchendo o cocho, e em seguida, a câmera volta-se ao tempo presente e
mostra Biela adormecida (Figuras 5 à 9). Nota-se, portanto, que há um trabalho de corte e edição
das cenas, substituindo o que no texto literário é transmitido através do fluxo de consciência, ou
seja, os pensamentos e sentimentos de Biela.
Ao contrário do texto literário, que tem início com um diálogo de Constança e Conrado, em
discurso indireto livre, no qual Constança insiste em trazer Biela para a casa dos primos, na
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adaptação, a história tem início com a sequência da viagem a cavalo feita por Conrado, um capataz
e prima Biela, quando esta deixa a Fazenda do Fundão para morar na cidade com os primos
(Figuras 10 à 13). Essa sequência também aparece na novela, porém, só no fim do primeiro capítulo
e sob a forma de uma lembrança da personagem protagonista:
E como deu acordo de si, foi juntando os farrapos de lembrança da viagem; os
matos todos por onde passou, os riachos que atravessou, os passarinhos que
voavam assustados, as árvores todas que viu, a entrada da cidade, a chegada na
casa do primo (DOURADO, 2000, p. 41).
Ao chegar à casa dos primos, a câmera detém-se na imagem de prima Biela, descendo do
cavalo, ajeitando-se para encontrar com a família que a esperava, Constança e Mazília em uma
janela, e Joviana em outra (Figuras 14 à 19). Através dos movimentos da câmera, em alguns
segundos, a cineasta consegue captar a reação de Biela, bem como as situações que a cercam,
seguindo "fielmente" as descrições feitas pelo narrador literário:
Enquanto os meninos seguravam as rédeas dos animais que impavam
resfolegantes, cansados da caminhada de muitas léguas, o pai procurou ajudar
Biela a descer do silhão. Não foi preciso, ela fez que não queria, de um salta estava
no chão. Meio cambaleante ainda, primeiro cuidou de ajeitar as pregas da saia de
chitão amarrotada; depois verificou se os botões da blusa estavam nas suas casas;
finalmente alisou os cabelos pretos empoeirados que tinham escapulido do coque.
Compunha um tanto envergonhada, num recato medido de quem queria aparentar
bem, a sua figura. Em nenhum momento ergueu o olhar para as janelas onde as
meninas se apinhavam, para Constança. Como os pés procuravam se acostumar ao
chão, os olhos baixos também buscavam raízes na terra. As meninas repararam em
tudo: a sombrinha vermelha desbotada de cabo comprido, a saia muito comprida
quase se arrastando no chão, a blusa de botõezinhos fechada até o pescoço, os
gestos todos que ela fez (DOURADO (...), p. 35-36).
A trilha sonora que acompanha a personagem protagonista também reforça a sua condição.
Num tom melancólico e triste, a composição de Luiz Henrique Xavier dá início ao filme,
acompanhando o longo percurso trilhado por Biela, momento em que se vê forçada a deixar a
Fazenda do Fundão e todo seu mundo que, a partir de então, só teria espaço em sua memória.
Acompanhando a sofrida trajetória de Biela, a composição também encerra a narrativa fílmica, com
a sua morte. O desfecho que Suzana Amaral dá ao filme se assemelha ao do texto literário: Biela
adoece e morre. Porém, a cineasta opta por eliminar a internação de Biela no hospital "Santa Casa",
depois sua transferencia para a enfermaria de indigentes, a pedido da própria prima Biela, e as
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sensações finais da nossa protagonista no livro. Essas talvez soariam um tanto quanto confusas para
o telespectador e difíceis de serem adaptadas pela cineasta:
Biela sentiu apenas um calafrio, um nojo distante. Não via bem na sua frente, as
pessoas eram umas névoas leitosas, trêmulas, longe demais. Mal percebia que lhe
tocavam. Sentiu vagamente que lhe passavam qualquer coisa nos lábios. O gosto
do óleo e um cheiro forte penetrante de mato pisado que vinha com um vento não
sabia de onde. Viu não mais com os olhos, esses estavam para ela fechados, umas
manchas brancas deslizando rápidas. Um pasto muito verde onde as manchas se
mudavam em figuras quase fluidas. E essas figuras pairavam sobre o verde,
sustentadas em nada, contra um céu azul onde voavam pássaros em círculo.
Começou a ouvir uma música de harmonium, um latido alegre de cachorro. E, num
rápido instante, passaram por ela Mazília toda vestida de branco no seu vestido de
noiva, a mãe sem rosto cantando a sua cantiga. O último a se fundir no azul foi
Vismundo, que ainda perseguia os derradeiros pássaros no céu (DOURADO, 2000,
p. 162).
Substituindo esses momentos finais do texto literário, no filme, Biela adoece e morre na
própria casa dos primos. Ao passo que Biela cai, já quase sem vida, ao chão, são intercaladas cenas
nas quais aparecem Vismundo, o riachinho e o monjolo pilando o arroz (Figuras 20 à 26).
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Analisando a adaptação de Uma vida em segredo, observamos que não só os elementos
cardeais foram transferidos do livro para o filme, mas também elementos que constituíam no livro,
os pensamentos e sentimentos de prima Biela, através dos quais podemos considerar a obra como
uma adaptação criativa, de acordo com o que aponta Diniz. Muitos elementos foram sintetizados e
até eliminados na adaptação, o que vai ao encontro do que Hutcheon (2013) afirma ser o trabalho do
adaptador: o de subtrair e contrair, chamando esse processo de "arte cirúrgica". Através de recursos
especificamente cinematográficos, como os recursos de edição, corte e movimento de câmera,
Suzana Amaral conseguiu transpor vários elementos sugeridos pelo texto literário, como o
comportamento dos personagens, suas vestimentas, reações, pensamentos e sentimentos,
evidenciando, nessa direção, a ideia de que os adaptadores são primeiramente intérpretes, depois
criadores.
Há, portanto, todo um trabalho interpretativo realizado por Suzana Amaral, atestando a
autonomia e originalidade de sua adaptação. Apesar de sua pretensão de seguir à risca a história de
prima Biela, almejando ser fiel à matéria literária original, como observamos na análise, Suzana
Amaral, diretora e roteirista do filme, se vê obrigada a pensar em soluções narrativas e poéticas que
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dizem respeito à imagem em movimento, ao som, e a todas as especificidades da linguagem
cinematográfica.
Nessa direção, a relação entre literatura e cinema, bem como de outras artes, quando é feita
de forma crítica e positiva, só provoca o enriquecimento mútuo entre elas. Sem o intuito de
subordiná-las, num processo de hierarquização, o interessante é observar como elas dialogam, quais
os pontos convergentes e divergentes, como a narrativa pode ser adaptada, levando em consideração
as especificidades de cada sistema sígnico, lembrando sempre, que, como Jonathan Lethem
enfatizou, os processos de apropriação, alusão, contribuição entre as artes, consistem em uma
espécie de condição sine qua non do ato criativo, que permeiam todas as formas e gêneros no
campo da produção cultural. Como Linda Hutcheon afirma, nas operações da imaginação humana,
a adaptação é a norma e não a exceção.
REFERÊNCIAS
AVELLAR, José Carlos. O chão da palavra. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.
BLOOM, Harold. Introdução: Meditação sobre uma Prioridade e uma Sinopse. In: A angústia da
Influência. Rio de Janeiro: Imago, 2002.
BRITO, José Domingos de (org). Literatura e cinema. São Paulo: Novera Editora, 2007.
FLORY, Suely Fadul Villibor (org). Narrativas ficcionais: da literatura às mídias audiovisuais. São
Paulo: Arte e Ciência, 2005.
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Tradução: André Cechinel. Florianópolis: Ed. da
UFSC, 2013.
LETHEM, Jonathan. O êxtase da influência: um plágio. In: Revista Serrote,nº 12, São Paulo: IMS,
2012.
SCHNEIDER, Michel. Ladrões de palavras. São Paulo: Editora da Universidade Estadual de
campinas, 1990.
SANTOS, Carolina Barbosa Lima e; SANTOS, Rosana Cristina Zanelatto (orgs). Cinema (d)e
horror: ensaios críticos.Campo Grande: Life Editora, 2011.
SEDLMAYER, Sabrina; MACIEL, Maria Esther (orgs). Textos à flor da tela: relações entre
literatura e cinema. Belo Horizonte: Núcleo de Estudos de Crítica Textual/ Faculdade de Letras da
UFMG, 2004.
FILMOGRAFIA
AMARAL, Suzana. Uma Vida em Segredo. Brasil: Raiz Produções, 2002. (95 min.)
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AMIZADE E DIÁLOGO LITERÁRIO ENTRE ABREU E LISPECTOR
FRIENDSHIP AND LITERARY DIALOGUE BETWEEN ABREU AND LISPECTOR
Fernando ABRÃO Sato (G/UFMS)1
Edgar Cézar NOLASCO (NECC/UFMS;PACC/UFRJ)2
Resumo: O ensaio tem por objetivo mostrar o diálogo que o livro As frangas, de Caio Fernando
Abreu, estabelece com A vida íntima de Laura, de Clarice Lispector, proporcionando, por
conseguinte, o estabelecimento de uma amizade metafórica e literária entre os dois escritores. Para
pontuar tal relação, valeremo-nos do conceito de foram “pontes metafóricas” (SOUZA), mediadas
pelos conceitos derridaianos de amizade, herança e sobrevida, visando ligar a vida de Abreu e
Lispector por meio da carta que Caio escreveu à Hilda Hilst – a qual relata seu primeiro encontro
com Clarice e quando torna visível a admiração que sente por ela –, da carta que escreveu à Thereza
Falcão e da dedicação e homenagem que Caio fez à obra clariciana. Como desdobramento da leitura
inicial de nossa proposta, e numa visada comparatista, serão ressaltados trechos que fazem alusão
direta ou indiretamente à obra de Lispector, bem como características assimiladas biograficamente
(BARTHES) pelas personagens de ambos os escritores. o que, por sua vez, além de reforçar tal
relação literária, fortifica a relação de amizade entre os dois. Para essa abordagem comparatista, o
Trabalho da citação de Compagnon será fundamental.
Palavras-chave: Amizade. Comparação. Lispector. Abreu.
1 O PRIMEIRO ENCONTRO
É impossível sentir-se à vontade perto dela [de Clarice Lispector], não porque
sua presença seja desagradável, mas porque a gente pressente que ela está
sempre sabendo exatamente o que se passa ao seu redor. Talvez eu esteja
fantasiando, sei lá. Mas a impressão foi fortíssima, nunca ninguém tinha me
perturbado tanto. Acho que mesmo que ela não fosse Clarice Lispector eu
sentiria a mesma coisa. Por incrível que pareça, voltei de lá com febre e
taquicardia. (Caio Fernando Abreu).
No dia 29 de dezembro de 1970, Caio Fernando Abreu escreveu duas cartas para Hilda
Hilst. Na primeira, o escritor relata como foi o ano de 1970 para ele e comenta o livro que a autora
lançou naquele ano, o Fluxo-Floema. Já na segunda, ele justifica o fato de ter escrito mais uma carta
1
Acadêmico do 2° semestre do curso de Letras da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Membro do Núcleo de
Estudos Culturais Comparados (NECC), onde realiza a pesquisa Paisagem e amizade entre Caio Fernando Abreu e
Clarice Lispector, sob orientação do Prof. Doutor Edgar Cézar Nolasco. E-mail: [email protected].
2
Professor do Departamento de Letras e do Mestrado em Estudos de Linguagens da UFMS. Coordenador do Núcleo de
Estudos Culturais Comparados (NECC). E-mail: [email protected].
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na mesma data: relatava o primeiro encontro dele com a escritora Clarice Lispector em uma noite de
autógrafos no Rio de Janeiro. Através da carta, fica perceptível a admiração de Caio pela escritora
ucraniana: “Vi uma mulher linda e estranhíssima num canto toda de preto, com um clima de tristeza
e santidade ao mesmo tempo, absolutamente incrível [...] Muita gente deve achá-la antipaticíssima,
mas eu achei linda, profunda, estranha, perigosa” (MORICONI, 2002, p. 415).
Além disso, o trecho “Ela é exatamente como os seus livros: transmite uma sensação
estranha, de uma sabedoria e uma amargura impressionantes” (MORICONI, 2002, p. 415), da
mesma carta, explicita que Caio, além de admirador, é leitor da obra de Lispector. Ademais, na
carta, ele relata entusiasmado que teve a oportunidade de conversar com a escritora, que falaram
inclusive sobre o Lázaro de Hilda; e no fim da conversa, segundo ele, ela deu o endereço e o
telefone dela, e pediu para que a procurasse depois.
2 A AMIZADE
“Pode-se pensar e viver a amizade, o próprio ou o essencial da amizade, sem
a menor referência ao ser-amado, e mais geralmente ao amável”.
Jacques Derrida.
Em uma análise feita por Francisco Ortega sobre o pensamento derridaiano e foucaultiano
acerca da amizade, o autor mostra que, ao longo da Filosofia Ocidental, o conceito de amizade foi
empregado de forma errônea segundo Foucault e Derrida, pois estes autores “denunciam as imagens
familiares contidas nos discursos da amizade” (ORTEGA, 2000, p. 85) e que esses discursos são
“desmascarados como ficções fraternalistas” (ORTEGA, 2000, p. 85). O autor elege então, a partir
do pensamento dos autores citados, uma amizade sem intimidade, visto que uma amizade voltada
para a interioridade, para o eu, segundo ele, não é aberta a transformação e para o agir. Logo o autor
ressalta que
[...] é preciso aprender a cultivar uma ‘boa distância’ nas relações afetivas, um
excesso de proximidade e intimidade leva à confusão, e somente a distância
permite respeitar o outro e promover a sensibilidade e a delicadeza necessária para
perceber sua alteridade e singularidade. (ORTEGA, 2000, p. 74)
Dessa forma, a amizade estabelecida entre Caio e Clarice está aberta ao acontecimento, por
ser uma relação afetiva pautada na ‘boa distância’, uma vez que os escritores não se encontraram
mais após aquela noite no Rio, ainda que Clarice tenha dado o telefone e o endereço a Caio
sugerindo que a procurasse, como visto na carta. ‘O acontecimento’ como consequência da amizade
estabelecida entre os dois está no fato de que, mesmo após esse encontro com a escritora naquela
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noite de autógrafos, os escritos de Caio Fernando Abreu passaram a ser ilustrados com citações dela
em formas de epígrafes, como em Morangos mofados que inicia com um trecho de A hora da
estrela – “Quanto a escrever, mais vale um cachorro vivo” (ABREU, 2013, p. 19). Mais do que
isso, as obras de Caio passaram a possuir características intrínsecas às da Clarice e passaram a
dialogar com os escritos da escritora ucraniana – como as obras A vida íntima de Laura, de
Lispector, e As frangas, de Abreu – estabelecendo, pois, além da admiração e das leituras das obras
da autora, uma amizade literária.
3 O DIÁLOGO E A AMIZADE: UMA LEITURA DE A VIDA ÍNTIMA DE LAURA E AS
FRANGAS
“A menina era criatura de grande capacidade de amar: uma galinha não
corresponde ao amor que se lhe dá e no entanto a menina continuava a amá-la
sem esperar reciprocidade”.
Clarice Lispector.
“[...] Eu disse: é um bonito ovo, não é um ovo como os outros. Ela
aproximou-se sorrindo, parou ao lado dele e estendeu um braço por cima de
sua casca, tão desenvolta como se nunca em sua vida tivesse feito outra coisa
senão apoiar-se em ovos apunhalados”.
Caio Fernando Abreu.
Em 1974, a escritora Clarice Lispector publicou seu terceiro livro infantil, A vida íntima de
Laura; no qual o narrador conta o cotidiano, ou melhor, a intimidade da galinha Laura, que vivia no
quintal de Dona Luísa com as outras aves, era casada com o galo Luís e era, entre as outras, a que
mais botava ovos.
Já em 1989, foi a vez de Caio Fernando Abreu publicar seu primeiro livro de literatura
infantil, As frangas, que basicamente narra a vida das galinhas, das frangas como o autor prefere,
que ele colecionava em cima da geladeira. O escritor, nesse livro, narra a história das frangas que
comprava e das que ganhava de seus amigos, dando vida às frangas – Ulla, Gabi, Maria Rosa,
Maria Rita, Maria Ruth, Otília, Juçara e Blondie.
Estabelecendo um debate teórico-crítico e até mesmo comparativo das duas obras, não se
pode apenas assimilá-las por meio das características próprias dos escritos de literatura infantojuvenil. Dessa forma, para estabelecer uma ligação concreta entre A vida íntima de Laura e As
frangas, primeiramente há que se estabelecer “a construção de pontes metafóricas” (SOUZA) entre
a vida dos dois escritores mediada pelos dois livros, visto que através da leitura foram encontrados
trechos de diálogo direto entre as obras e “fragmentos de biografia” (SOUZA) da vida dos autores.
Na primeira página de As frangas, Caio dedica a obra a Clarice, “Para Clarice Lispector, que
também gostava delas, ficar quentinha do lado de lá” (ABREU, 2001, p. 6), e, mais uma vez, o
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autor apresenta uma epígrafe clariciana em seu livro, “Vai sempre existir uma galinha como Laura e
sempre vai haver uma criança como você. Não é ótimo? Assim a gente não se sente só” (ABREU,
2001, p. 6). Além do mais, ao iniciar a narrativa, elege A vida íntima de Laura como a melhor
história sobre galinhas que conhece; em seguida, justifica o fato de ter escrito o livro:
Bem no finzinho do livro dela, a Clarice diz assim: “Se você conhece alguma
história de galinha, quero saber. Ou invente uma bem boazinha e me conte”.
Foi por isso que resolvi escrever esta história. Eu gostava muito da Clarice e queria
agradar um pouco a ela. Ela já morreu, mas sempre acho que a gente pode
continuar querendo agradar a quem já morreu. (ABREU, 2001, p. 6)
Além do ‘agrado’ de Caio para com Clarice, pode-se associar esse trecho à afirmação de
Derrida “Nunca falo do que não admiro, quando discutiu a escolha de sua herança, ou seja, sua
relação com seus amigos, seus precursores, sua dívida com uma tradição" (NOLASCO, 2010, p.
37). E reitera a ideia de que o escritor gaúcho era leitor de Clarice, de acordo com o que afirma
Antoigne Compagnon: “escrever, pois, é sempre reescrever, não difere de citar. A citação (...) é
leitura e escrita, une o ato da leitura ao da escrita. Ler ou escrever é realizar um ato de citação”
(COMPAGNON, 1996, p. 47). Assim, Caio, ao aceitar escrever o livro por meio do convite de
Clarice, escolheu, portanto, receber a herança, que “antes é ela que nos escolhe, sobrando-nos,
apenas, escolher preservá-la viva” (NOLASCO, 2010, p. 37).
Outro fator contribuinte para o estabelecimento da amizade literária entre os dois escritores,
mediada aqui pela leitura comparatista dos dois livros, e para reiterar a ideia de herança recebida
por Caio, foi a carta que ele escreveu para Thereza Falcão – produtora e autora de peças infantis, no
dia 12 de novembro de 1989, agradecendo-a por ela ter adaptado As frangas a uma encenação
infantil; na carta, ele faz uma “listinha de sugestões” e, em uma delas, o autor afirma e sugere o
seguinte:
Ah: o livro todo não existiria se não fosse Clarice Lispector. De cabo a rabo, é uma
homenagem a ela. Penso se, em algum momento, talvez a Ulla poderia ler A vida
íntima de Laura. Laura é um verdadeiro mito para elas, uma espécie de Marilyn
Monroe das frangas. Afinal, foi a primeira vez que foi dito em público que as
galinhas também têm uma vida íntima. [...] A propósito de Clarice: os contos dela
Uma galinha – que é cruel e lindíssimo, está creio que em Laços de família – e O
ovo e a galinha quem sabe podiam ser citados. Pela Juçara que é meio intelectual,
ou pela Ulla. Trechinhos curtos. (MORICONI, 2002, p. 165)
O fato de Caio afirmar na carta que o livro é uma homenagem a Clarice Lispector e sugerir
que contos da escritora sejam citados durante a suposta peça remetem a um desejo vindo de Caio de
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que a obra da autora de “O ovo e a galinha” seja continuada. Dessa forma, na esteira do que afirma
Edgar Cézar Nolasco em seu ensaio Políticas da crítica biográfica, para discutir a relação entre o
crítico e o biografado, mas que será usado aqui para tratar da relação entre Abreu e Lispector, o
teórico, baseando-se em Derrida, diz que o escritor “sobrevive não só à sua morte, mas à sua obra,
assim como um livro sobrevive à morte de seu autor” (NOLASCO, 2010, p. 45). Sendo assim, o
livro As frangas não é limitado apenas a uma homenagem à Clarice, pois, uma vez que no livro há
alusões diretas – a epígrafe, a citação, a dedicação – e indiretas – a semelhança entre personagens e
o diálogo com o livro e outros escritos de Lispector – que ainda será discutida, faz com que a obra
da escritora ucraniana seja mais conhecida ainda, ou seja, que a obra dela sobreviva. Dessa forma,
então a ordem da “sobrevida” (DERRIDA), que é a vida após a morte, na relação entre Caio e
Clarice, se concretiza no momento em que Caio afirma em As frangas que “[...] queria agradar um
pouco a ela. Ela já morreu, mas sempre acho que a gente pode continuar querendo agradar quem já
morreu” (ABREU, 2001, p. 6).
Encontra-se nas duas obras também biografemas (BARTHES) da infância dos dois
escritores que remetem ao gosto deles por galinhas/frangas, havendo, portanto, mais um fator
extrínseco, uma ligação entre a vida dos escritores, que converge para as duas obras. Em As
frangas, por exemplo, ao relatar as brincadeiras com os irmãos no pátio da casa dos seus pais, Caio
afirma “a gente sempre parava de brincar ali por perto do galinheiro mesmo. Por isso também a
gente olhava tanto as galinhas” (ABREU, 2001, p. 13). Em A vida íntima de Laura, o trecho que
dialoga com o de Caio é “Quando eu era do tamanho de você, ficava horas e horas olhando para as
galinhas. Não sei por quê. Conheço tanto as galinhas que podia nunca mais parar de contar”
(LISPECTOR, 1999, p. 21). Esta afirmação remete a outra encontrada no final do livro de Abreu,
que é quando ele reitera que, na infância, de tanto brincar próximo àquele galinheiro, acabou
conhecendo a intimidade das frangas.
Com a amizade entre os dois escritores e “a ponte metafórica” (SOUZA) estabelecida, dá
agora para estabelecer uma ponte secundária, a qual subjaz uma relação direta entre As frangas e A
vida íntima de Laura, de acordo com que afirma Eneida Maria de Souza:
O contato literário entre escritores [...], e participantes da mesma confraria, fornece
subsídios para que sejam feitas aproximações entre os seus textos, estabelecendo-se
feixes de relações que independem de causas factuais mas que se explicam por
semelhantes ou diferentes poéticas de vida e de arte. (SOUZA, 2002, p. 118)
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Desse modo então, basicamente, o que as duas obras têm em comum são (1) o tom
conversativo entre narrador e leitor/pequeno-leitor; (2) explicações acerca de termos e situações,
que implicam em (3) reflexões “das mais importantes para a aprendizagem da vida” (COELHO,
1995, p. 174). Confirmam-se essas semelhanças em passagens como estas: “Vou logo explicando o
que quer dizer ‘Vida íntima’. É assim vida íntima quer dizer que a gente não deve contar a todos o
que se passa na casa da gente. São coisas que não se dizem a qualquer pessoa.” (LISPECTOR,
1999, p. 5), trecho o qual inicia a obra de Lispector; “Outra coisa que eu penso quando me lembro
daquelas uvas cor-de-rosa é que, na vida, as coisas mais doces custam muito a amadurecer. Mais
isso é pensamento de gente grande, deixa pra lá.” (ABREU, 2001, p. 10), trecho do livro de Abreu.
Em As frangas, há duas passagens durante a narrativa que fazem alusão ao livro de Clarice,
uma explícita e a outra implícita. A primeira ocorre quando o narrador percebeu que estava
ganhando/colecionando galinhas demais, e em seguida as colocam em cima do livro: “Foi quando
coloquei as três em cima da geladeira é que me dei conta que estava formando um galinheiro. Aí
corri, peguei A vida íntima de Laura e coloquei embaixo delas, que nem um tapetinho. Pronto:
ficaram ótimas” (ABREU, 2001, p. 20). A segunda “a intimidade de uma franga é a coisa mais
bonita que tem” (ABREU, 2001, p. 34), além de remeter ao título do livro da autora de Laura, está
ligada ao gosto do autor pela obra de Clarice, que se confirma novamente por um fator extrínseco às
duas obras que é quando, mais uma vez, por uma carta, expressou seu gosto e preferência pelo título
e a obra de Clarice Lispector: “Laura é um verdadeiro mito para elas [...]. Afinal, foi a primeira vez
que foi dito em público que as galinhas também têm uma vida íntima” (MORICONI, 2002, p. 167).
As personagens de As frangas possuem características semelhantes às de Laura, como o
medo de morrer, pois, quando chega alguém perto de Laura, a protagonista cacareja para que não a
matem. O mesmo ocorre com as frangas, quando o narrador justifica o fato delas gritarem quando
algum desconhecido chega por perto, que é o medo de morrerem: “Sempre acham que vão torcer o
pescoço delas, depenar e enfiar numa panela pra servir no almoço de domingo” (ABREU, 2001, p.
25). Além disso, todas são gulosas, exceto as frangas Juçara – que só come arroz integral – e Ulla –
por ser sofisticada –, Laura, por exemplo, come o tempo inteiro ‘por pura mania’, como as frangas,
principalmente a Gabi, a Blondie, a Maria Rosa, Maria Rita e Maria Ruth, que bicam o tempo
inteiro.
Entretanto a franga que mais se assemelha com Laura é a Gabi, como se vê nos trechos
“Laura é bastante burra” (LISPECTOR, 1999, p. 7) e “Por natureza franga é mesmo meio burra.”
(ABREU, 2001, p. 34), levando em consideração que o narrador de As frangas elege ‘as mais burras
como mais frangas’. E Laura e Gabi são simples e receptivas, o que as diferem das outras, visto que
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Ulla, Juçara e Blondie, por exemplo, possuem mais características “não-animais” que elas, como a
capacidade de narrar histórias, falar idiomas, ter alto grau de inteligibilidade, etc., ao passo que
Laura e Gabi são simplesmente mais galinhas/frangas, pois só comem e conversam com as outras.
Ao terminar “a história de Laura e de suas aventuras” (LISPECTOR, 1999, p. 29), Clarice
convida o leitor a escrever também uma história de galinha: “Se você conhece alguma história de
galinha, quero saber. Ou invente uma bem boazinha e me conte” (LISPECTOR, 1999, p. 29). Caio,
além de ter escrito As frangas em homenagem a Lispector e estabelecendo diálogos com a obra dela
como já discutido aqui, também faz a mesma sugestão ao leitor: “Se você quiser, invente uma
história e mande pra mim. Se for história de franga, melhor ainda. Prometo ler pra elas ouvirem.”
(ABREU, 2001, p. 34), propondo uma continuidade ao ato de escrever sobre galinhas, iniciado por
Clarice Lispector.
Terminada a leitura, torna-se visível o quanto há de semelhante entre a vida e a obra dos
escritores, o que é uma das propostas deste ensaio. Em contrapartida, ao pensar a literatura de cada
um deles, há que se entender que cada um possui suas próprias vivências e seu próprio estilo no ato
da escrita, logo há que se tomar cuidado para não ter a ideia de que todos os escritos de Abreu
dialogam ou possuem características aos de Lispector. Porém, ao contrário do que se pensa, essa
relação de semelhança – o diálogo entre as obras e a amizade metafórica e literária – e diferença de
obras – o estilo de cada autor – não se contrapõem uma à outra, mas se complementam, fazendo
com que a obra de ambos seja mais bem lida.
Portanto, para finalizar, há que se retornar a questão da amizade entre Caio Fernando Abreu
e Clarice Lispector. Desse modo, com a discussão feita aqui, mediada pelas cartas, citações e a
leitura comparatista de As frangas e A vida íntima de Laura, que está interligada à relação
metafórica e literária de Caio e Clarice, pode-se afirmar que é possível manter relações sem que
haja o excesso de intimidade e proximidade, concordando com o que afirma Francisco Ortega: “[...]
acredito na necessidade de cultivar um ‘ethos da distância’. Introduzir uma distância em nossas
relações não significa renunciar a nos relacionarmos, a nos comunicarmos” (ORTEGA, 2000, p.
114); verifica-se, pois, que a distância não impediu que houvesse relação e comunicação entre
Abreu e Lispector, e que a vida dos dois “se complementam na diferença” (NOLASCO, 2010, p.
47), ao passo que “as relações humanas afetivas são determinadas por sujeitos imbricados nessa
relação” (NOLASCO, 2010, p. 37).
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REFERÊNCIAS
ABREU, Caio Fernando. As frangas. São Paulo: Editora Globo, 2001.
ABREU, Caio Fernando. Morangos mofados. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013.
ABREU, Caio Fernando. O ovo apunhalado. Porto Alegre: L&PM, 2013.
COELHO, Nelly Novaes. Dicionário crítico da literatura infantil e juvenil brasileira. São Paulo:
EDUSP, 1995.
COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Trad. Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 1996.
LISPECTOR, Clarice. A vida íntima de Laura. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
MORICONI, Italo (org.). Caio Fernando Abreu: cartas. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.
NOLASCO, Edgar Cézar. Políticas da crítica biográfica. Cadernos de Estudos Culturais: crítica
biográfica, Campo Grande, v. 2, n. 4, p. 35-50, set., 2010.
ORTEGA, Francisco. Para uma política da amizade: Arendt, Derrida, Foucault. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2000.
SOUZA, Eneida Maria de. Notas sobre a crítica biográfica. In: Crítica cult. Belo Horizonte, Editora
UFMG, 2002, p. 111-120.
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O EPITÁFIO SOBRE A AMIZADE
THE EPITAPH ON FRIENDSHIP
Francine ROJAS (PG/UFMS)1
Edgar Cézar NOLASCO (UFMS)2
Resumo: O presente trabalho tem como objeto o livro Cartas perto do coração (2001), com as
cartas trocadas entre Fernando Sabino e Clarice Lispector, e propõe investigar questões como: a
amizade para além do epitáfio, a qual pressupõe uma ação do crítico que proporcione a sobrevida
do amigo, no caso amigos. Nesse sentido podemos falar em camadas de sobrevida, uma vez que ao
lançar o livro de cartas em 2001, Fernando Sabino foi o primeiro a proporcionar a sobrevida à
amiga, e após o falecimento do escritor mineiro, a pesquisa que desenvolvemos passou a propiciar
tal ação. Vale lembrar que a sobrevida é possibilitada também pela amizade entre Fernando, Clarice
e eu, mas a relação se dá por meios metafóricos, tal como propõe Jacques Derrida em Políticas da
amizade (2003). Um outro aspecto a ser debatido no artigo diz respeito ao gesto de homenagem
empreendido, em um primeiro momento, pelo escritor mineiro e posteriormente por mim. Para
tanto, o embasamento teórico que permeará o trabalho é a crítica biográfica e a crítica pós-colonial,
e alguns dos autores a serem mencionados são, além do próprio Derrida, Francisco Ortega, Eneida
Maria de Souza, Silviano Santiago, Walter Mignolo, Edgar Cezar Nolasco dentre outros.
Palavras-chave: Amizade. Epitáfio. Sabino. Lispector. Arquivo.
1 INTRODUÇÃO
Enfim, depois de tanto erro passado
Tantas retaliações, tanto perigo
Eis que ressurge noutro o velho amigo
Nunca perdido, sempre reencontrado [...]
(MORAES, 1960, sp).
Naquele momento, compreendi o único sentido que a amizade pode ter hoje.
A amizade é indispensável ao homem para o bom funcionamento de sua
memória. Lembrar-se do passado, carregá-lo sempre consigo é talvez
condição necessária para conservar, como se diz, a integridade do seu eu.
Para que o eu não se encolha, para que guarde seu volume, é preciso regar as
lembranças como flores num vaso e essa rega exige um contato regular com
testemunhas do passado, quer dizer, com os amigos. Eles são nosso espelho;
nossa memória; não exigimos nada deles, a não ser que de vez em quando
nos lustrem esse espelho para que possamos nos olhar nele.
(KUNDERA, 1998, p.43).
1
[email protected] – UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul).
[email protected] – UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul).
2
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Inicio a explanação esclarecendo dois pontos relevantes para o artigo como um todo. O
primeiro diz respeito as duas epígrafes escolhidas que impulsionam toda a primeira parte do texto e
que são sintomáticas, no sentido de ressaltarem a condição da amizade enquanto relação humana e
sua relevância estendida para diversos campos. O segundo ponto gira em torno da estrutura visual
do artigo, haja visto que o mesmo foi escrito tal como se escreve uma carta, e não deixa de sê-lo, na
medida do possível em que respeita os elementos que compõem o âmbito das missivas. Tal escolha
é um gesto carregado de significados, dentre eles, o de ser uma opção que almeja trazer um certo ar
fresco, doravante conhecido como o ato de renovar e, por consequência, procurar um caminho ainda
não trilhado pelo usual de produção no meio acadêmico.
A discussão que pretendo elaborar neste artigo propõe o debate em torno de conceitos
específicos, mais concernentes ao campo da crítica biográfica, como os laços afetivos, sendo um
deles a amizade, as cartas e a própria inserção do sujeito crítico no seu discurso teórico,
justificando, por isso, o uso da primeira pessoa no desenrolar da ação.
O artigo é dividido em três momentos, o primeiro diz respeito a uma discussão mais teórica
em torno dos conceitos que serão trabalhados. Em um segundo momento ilustrarei a discussão
desenvolvida até então com o objeto de estudo. Vale lembrar que tal posição assumida por mim não
tenciona preterir o objeto, Cartas perto do coração, em detrimento da teoria, mas, ao contrário, o
que pretendo é demonstrar a relação entre os (des)conceitos aqui trabalhados, desvinculados de uma
noção teórica tradicional e hegemônica, a partir das cartas de Fernando Sabino e Clarice Lispector.
Trato primeiramente da relação do crítico com o seu objeto de estudo e com o seu discurso,
posto que se trata do estágio introdutório de quem começa uma pesquisa, e parto do princípio de
que o pesquisador, seja ele de qualquer área, nutre algum afeto e admiração pelo seu objeto, neste
momento lembro-me das palavras de Jacques Derrida em De que amanhã: dialogo (2004): “Não
falo do que não admiro” (DERRIDA; ROUDINESCO, 2004, p. 14). A inserção do crítico
possibilita desconceitualizar o próprio modo de fazer crítica, por meio de ensaios, debates, artigos
etc e, por extensão, propicia a desconceitualização de conceitos para, tal como a expressão que
nomeia esta primeira parte de minha argumentação, (des)aprender. Sob este ponto de vista a crítica
biográfica me proporciona embasamento para a relação com o meu objeto de estudo, pois assim
como propõe Eneida Maria de Souza em Janelas Indiscretas: ensaios de crítica biográfica:
A distinta dicção da crítica biográfica frente ao ensaio de vocação teórica ou de
natureza interpretativa reside na condensação entre ficção e teoria, narratividade e
argumento teórico. Nesse sentido, há maior liberdade criativa por parte do crítico,
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por revigorar o enredo narrativo e permitir associações entre texto e contexto, obra
e vida, arte e cultura. (SOUZA, 2011b, p. 09).
Mas, não é somente a partir do arcabouço teórico oferecido pela crítica biográfica que
articulo teoricamente, haja vista que também procuro a confluência desta com a pós-ocidentalismo.
Esta última contribuirá para minha reflexão no sentido de que, ao propor pensar fora do eixo
hegemônico e da crítica tradicional, permitirá conceber a amizade como um (des)conceito. Posto
que tanto a palavra quanto o ato sofrem uma ligeira modificação ante a inclusão de um terceiro
sujeito a ser citado mais adiante.
2. TRÍPLICE AMIZADE
[...] apesar de a amizade que tenho por mim mesmo não ser
aumentada por qualquer ajuda que eu me dê quando precisar [...] e
assim, como não sinto nenhuma gratidão pelos favores que faço a mim
mesmo, também a união de amigos verdadeiros, ao ser perfeita, acaba
com a exigência de tais deveres, leva-os a odiar e expulsar da relação
as palavras de divisão e diferença, como favores, obrigações, gratidão,
pedido, agradecimentoe seus semelhantes.
(MONTAIGNE, 2012, p. 35).
Ágape, irmandade, estabilidade, família. São palavras que pululam no imaginário coletivo
quando o assunto a ser discutido é a amizade. Esse grupo refere-se a uma percepção acoplada ao
familiar, ao fraternal, mas igualmente encontra conotações na religião, como é o caso da ágape, isto
é, a amizade vista a partir dessa perspectiva implica o entendimento de que a mesma é o amor ao
próximo, com a finalidade de atingir a plena comunhão com deus. No âmbito da literatura é valido
lembrar que a amizade encontra eco na questão dos precursores, ou seja, a amizade permite que um
escritor escolha seus precursores pela afinidade, seja ela intelectual ou por ter interesses em comum.
Em ensaio intitulado “Notas sobre a crítica biográfica”, Eneida Maria de Souza explana que:
[...] é possível estabelecer laços de amizade literária entre os autores, substituindose a tradicional metáfora familiar, que corresponderia à construção de modelos
literários a partir dos conceitos de influência e de tradição cultural, herança
recebida pelo autor de forma passiva e conforme as exigências da crítica,
notadamente de caráter historicista. A relação de amizade implica a escolha de seus
precursores pelo escritor, à maneira da formula consagrada por Borges, o que
acarreta a formação de um círculo imaginário de amigos reunidos por interesses
comuns, parceiros que se unem pela produção de um vínculo nascido da região
fantasmática da literatura. (SOUZA, 2002a, p. 48).
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Ademaisde tais formulações que emergem do âmbito da amizade há ainda uma outra que
procura romper, não no sentido de desconsiderar reflexões concebidas anteriormente, mas no intuito
de prosseguir e ir além.Uma amizade pós-ocidental é um modo de, ao (des)conceitualizar o que se
entende por essa relação, cumprir com o objetivo proposto, visto que em se tratando de crítica não
há, ou pelo menos não deveria existir, o congelamento epistemológico.
Cabe mencionar, neste instante de minha argumentação e com a finalidade de
esclarecimento, como se deu essa relação de amizade.A princípio a relação se deu de forma indireta
quando Clarice manda para Sabino um exemplar autografado do livro Perto do coração selvagem
(1943). Posteriormente os dois são apresentados por um amigo em comum, Rubem Braga, em
seguida Clarice vai para a Europa e passa a se corresponder com Sabino, sendo que as cartas
trocadas entre os escritores datam de 1946 e perduram até 1969, quando a escritora volta para o
Brasil e a partir de então ambos mantem um contato mais regular e direto.A respeito dessa relação o
escritor mineiro relata que:
Tocávamos idéias sobre tudo. Submetíamos nossos trabalhos um ao outro. Juntos
reformulávamos nossos valores e descobríamos o mundo, ébrios de mocidade. Era
mais do que paixão pela Literatura, ou de um pelo outro, não formulada, que unia
dois jovens ‘perto do coração selvagem da vida’: o que transparece em nossas
cartas é uma espécie de pacto secreto entre nós dois, solidários ante o enigma que o
futuro reservava para o nosso destino de escritores. (LISPECTOR; SABINO, 2011,
p. 08).
No final da parte introdutória deste artigo mencionei que a concepção de amizade, ao ser
(des)conceitualizada, é alterada mediante a inclusão de um terceiro sujeito, referindo-me ao crítico,
ou de um modo mais preciso a pessoa que vos escreve. Tal discussão teórica desenvolvida neste
artigo, além do meu interesse, do meu fascínio, isto é a “sedução” mencionada por Souza, que as
cartas dos dois escritores exercem sobre mim enquanto pesquisadora, me permitem pensar em uma
amizade distinta da relação entre Fernando Sabino e Clarice Lispector, uma vez que me insiro como
amiga dos dois escritores. Minha inserção possibilita uma leitura particular e, por extensão, uma
percepção outra das cartas e da própria relação de amizade. Trata-se, em outras palavras, de uma
amizade para além do túmulo, e metafórica, uma vez que os dois escritores já morreram. Sobre o
assunto Suzana Albornoz, na esteira de Jacques Derrida, em Ó meus amigos, não há amigos!:
reflexões sobre a amizade, explana que:
[...] o amigo morto vive através da lembrança do amigo sobrevivente. Sobreviver
ao amigo, fazer-lhe o discurso de despedida e homenagem [...] e manter sua
memória enquanto sobrevivente, é ao mesmo tempo a essência, a origem e a
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possibilidade, a condição de possibilidade de amizade; esse tempo de
sobrevivência é a dimensão da amizade. (ALBORNOZ, 2010, p.138).
Nesse sentido, ao me posicionar como amiga de um e outro, em uma amizade que por
necessidade assume tons metafóricos, são Fernando Sabino e Clarice Lispector que, tal como
explana a citação acima,vivem através de minha memória. Posso afirmar, por conseguinte,que este
trabalho, em especial, desenvolvido por mim, bem como a pesquisa de um modo geral, cujo
nascimento remonta ao ano de 2011 e culmina em pesquisa para o Programa de Mestrado em
Estudos de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso do sul, é o meu gesto de uma
homenagem póstuma para com eles.
REFERÊNCIAS
ALBORNOZ, Suzana et al. Ó meus amigos, não há amigos!: reflexão sobre a amizade. Porto
Alegre: Movimento, 2010.
DERRIDA, Jacques; ROUDINESCO, Elizabeth. De que amanhã: diálogo. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2004.
MONTAIGNE, Michel de. Sobre a amizade. Rio de Janeiro: Tinta negra, 2012.
MORAES,
Vinicius.
“Soneto
do
amigo”.
Disponível
http://pensador.uol.com.br/frase/NTQ1OTg/. Disponivel em: 20 de agosto de 2014.
em:
KUNDERA, Milan. A identidade. Trad. Teresa Bulhões de Carvalho. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998, p.43.
SABINO, Fernando; LISPECTOR, Clarice. Cartas perto do coração. Rio de Janeiro: Record, 2011.
SOUZA, Eneida M. de. Critica cult. Belo Horizonte: UFMG, 2002.
________. Janelas Indiscretas: ensaios de crítica biográfica. Belo Horizonte: UFMG, 2011.
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BUGRE: A PALAVRA, O ÍNDIO, A ARTE
(BUGRE: THE WORD, THE NATIVE, THE ART)
Isabella Banducci AMIZO1
Resumo: No Estado de Mato Grosso do Sul, assim como em outras regiões do Brasil, é comum
ouvir a palavra “bugre” como forma de nomear membros de populações indígenas e seus
descendentes. Na maior parte das vezes, seu uso traz consigo uma carga pesada de preconceito,
configurando-se como um modo pejorativo de fazer referência a essas pessoas. A origem do termo,
todavia, não está atrelada aos índios brasileiros. Primeiramente, está ligado ao modo como no
idioma francês eram chamados os búlgaros, e, posteriormente, relaciona-se com o conceito de
heresia, sendo atribuído aos membros de um movimento religioso contrário à Igreja. Um longo
caminho é percorrido entre a Idade Média, quando assim é utilizado, até chegar aos povos indígenas
do Brasil. Há menos tempo, o termo é usado para dar nome às esculturas produzidas por Conceição
Freitas da Silva em Mato Grosso do Sul, que, além de alcançarem o status de obra de arte, são
também consideradas marca de identidade do estado. O objetivo deste trabalho é pensar nessa
trajetória cursada pela palavra, tratando também do signo linguístico e da maneira como carrega
todo um universo de significações e de projeção do ser e pensar de uma sociedade.
Palavras-chave: Bugre. Índio. Arte. Signo linguístico. Mato Grosso do Sul.
1 INTRODUÇÃO
No estado de Mato Grosso do Sul, assim como em outras regiões do Brasil, é comum
ouvir a palavra “bugre” como forma de nomear membros de populações indígenas e seus
descendentes. Na maior parte das vezes, seu uso traz consigo uma carga pesada de preconceito,
configurando-se como um modo pejorativo de fazer referência a essas pessoas. A origem do termo,
todavia, não está atrelada aos índios brasileiros. Primeiramente, está ligado ao modo como no
idioma francês eram chamados os búlgaros, e, posteriormente, relaciona-se com o conceito de
heresia, sendo atribuído aos membros de um movimento religioso contrário à Igreja.
Um longo caminho é percorrido entre a Idade Média, quando assim é utilizado, até
chegar aos povos indígenas do Brasil e, há menos tempo, às esculturas produzidas por Conceição
Freitas da Silva em Mato Grosso do Sul. Sendo assim, o objetivo deste trabalho é pensar nessa
trajetória cursada pela palavra, tratando também do signo linguístico e da relação entre significante,
1
Mestranda no Programa de Pós-Graduação Mestrado em Estudos de Linguagens da Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul (UFMS). Email: [email protected]
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significado e referente. O ponto de partida é o artigo da lexicóloga Maria Tereza Camargo
Biderman, intitulado “Dimensões da palavra” (1998), embasando teoricamente a discussão acerca
das questões linguísticas e permeando as demais reflexões sobre o uso do termo bugre em contextos
diversos, com significações variadas, e atribuído, ainda, a diferentes referentes. Em um segundo
momento, o artigo se detém na origem da palavra e seu uso no Brasil, tendo como base os trabalhos
do antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira, Do índio ao bugre (1976) e “Identidade étnica,
reconhecimento e o mundo moral” (2005), e igualmente o do sociólogo Luis Augusto de Mola
Guisard, “O bugre, um João-ninguém” (1999). Por fim, discute-se a nomeação das peças
escultóricas da artista sul-mato-grossense conhecida como Conceição dos Bugres e seu
reconhecimento como obra de arte e marca identitária do estado.
Dito isso, cabe então apontar as principais ideias apresentadas por Maria Tereza
Camargo Biderman no artigo “Dimensões da palavra” (1998). Pensando na palavra e sua relação
com a linguagem humana, a lexicóloga aborda três dimensões, por ela consideradas as mais
importantes dessa entidade: a mágica e religiosa; a cognitiva; e a linguística. A discussão é sempre
permeada pela questão do papel da cultura, presente nas três dimensões, partindo da importância da
palavra criadora/divina como força transcendental instituidora da realidade, a linguagem como
ordenadora do caos, desde as sociedades primitivas até a tradição judaico-cristã. Entretanto, ainda
que as diferentes culturas carreguem esse traço comum, de valor mágico da palavra e potência
criadora do verbo, a autora salienta a existência de uma diversidade de culturas, e a isso atribui o
fato de haver diferentes possibilidades de a palavra poder falar e ser falada, em diferentes línguas e
linguagens.
Biderman trata então da dimensão cognitiva, discutindo o fato de a palavra nomear e
classificar as entidades da realidade, constituindo uma organização do mundo sensorial através de
campos de conceito. São discutidas questões referentes aos processos de categorização e nomeação,
mas, em meio a isso, para fins do presente trabalho, cabe salientar uma característica apontada pela
autora: o fato de os conceitos não serem estáticos. Segundo ela, “Devido à natureza dinâmica do
processo subjacente, os referentes das palavras podem mudar muito, os significados podem
expandir-se e as categorias estão sempre abertas a mudanças” (BIDERMAN, 1998, p. 90). Esse
aspecto é relevante quando se pensa no termo “bugre”, sua origem e o contexto histórico-socialcultural-religioso no qual surge, o referente para o qual é atribuído inicialmente e as mudanças pelas
quais passa até receber a atual designação.
Diversos autores são apresentados na revisão bibliográfica de Biderman acerca do
relativismo linguístico, noção segundo a qual cada língua traduz o mundo segundo sua cosmovisão
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própria, recorta o universo cognoscível a sua maneira na criação de seu próprio repertório lexical. A
princípio são tomadas as teorias de Edward Sapir e Benjamin L. Whorf, defensores dessa ideia,
mas, por outro lado, a autora traz apontamentos de outros teóricos que questionam como se poderia
verificar em que medida o comportamento humano é afetado pelas categorias linguísticas da língua
que o indivíduo fala e como esta influencia o conhecimento e o modo de ver a realidade. As
considerações da lexicóloga brasileira apontam para o fato de que a língua é produto da experiência
acumulada da sociedade, mas é também mediadora entre o social (dado) e o individual (criador),
transmitindo a experiência de gerações passadas, mas se apropriando do pensamento individual a
ser transmitido para gerações futuras (idem, p. 104).
Num terceiro momento, é então abordada a dimensão linguística da palavra, tomando como
base os apontamentos de Ferdinand Saussure sobre o signo linguístico. Partindo da ideia de que a
língua é uma herança de épocas anteriores, que a comunidade linguística impõe ao falante um
significante e o signo linguístico escapa à nossa vontade, o teórico trabalha com as noções de
mutabilidade e imutabilidade: por causa dessa herança, o signo é imutável, sem poder sofrer
substituições arbitrárias, já que a língua é uma instituição social; por outro lado, a língua é
manipulada por todos os indivíduos da comunidade, que se servem dela todos os dias, sofre sem
cessar a influência de todos e o tempo possibilita a mutabilidade do signo, sendo que as alterações
ocorrem paulatinamente através da história, de acordo com as mudanças culturais na sociedade.
Mais uma vez, a relação com o termo bugre pode ser estabelecida, ao se tratar das transformações
que sofre conforme a passagem do tempo, da manutenção do significante, porém atribuído a um
novo referente, com outro significado.
Apresentados tais apontamentos teóricos, cabe agora pensar especificamente sobre
como a reflexão cabe ao se tratar da palavra bugre. Conforme foi indicado, a relação entre
significante, significado e referente permeia a trajetória do termo, da origem ao contexto atual de
sua utilização. E para que se possa desenvolver uma discussão acerca do tema, há que se considerar,
como bem assinala Biderman, a realidade como geradora do fenômeno de significação, neste caso,
o bugre “real”, ser humano de carne e osso, o referente que constituirá a parte integrante e
fundamental para a compreensão do signo linguístico.
2 BUGRE: DOS BÚLGAROS AO ÍNDIO BRASILEIRO
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A origem da palavra bugre é apresentada por R. F. Mansur Guérios, no Dicionário de
Etimologias da Língua Portuguesa. Segundo ele, o vocábulo tem origem francesa e, primeiramente,
designava o povo eslavo da Bulgária (búlgarus), no período da Idade Média. Conforme aponta:
Os búlgaros, como membros da Igreja grega, foram considerados como heréticos.
Eram inimigos ferrenhos das Cruzadas, principalmente da quarta [...] Fácil foi,
portanto, búlgarus passar a sinônimo de “herético”, e não raro a sinônimo de
“pervertido”. Tal se acha documentado no francês até o fim do século 16
(GUÉRIOS, 1979, p. 39).
Maiores detalhes são apresentados por Luís Augusto de Mola Guisard, no artigo “O
bugre, um joão-ninguém: um personagem brasileiro” (1999). Segundo ele, o movimento herético
ocorrido na Bulgária, no século IX, e ao qual está ligada a origem do termo, foi o bogomilismo, cuja
doutrina questionava os valores morais e religiosos vigentes, bem como os rituais da Igreja
Católica. Com o passar do tempo, a palavra, nomeando os búlgaros, passa a ser utilizada para um
outro referente:
Aos poucos, no Mundo Ocidental, o sentido da palavra bugre vai se transportando
de um mundo religioso para um mundo profano, levando consigo a ideia do bugre
como o devasso, o sodomita, o pederasta, o infiel em que não se pode confiar, que
representa a porção mais baixa da sociedade europeia. Diversas fontes da literatura
europeia ocidental (portuguesas, francesas, italianas) trazem a tradução do termo
bugre sempre associado a conceitos ofensivos, à sodomia, à heresia (GUISARD,
1999, p. 92).
Cabe destacar a relação do uso do termo com a Igreja e seus preceitos, já que os bugres
seriam aqueles que não a obedecem. É importante salientar tal aspecto também devido ao fato de
ser este o meio pelo qual o termo chega ao Brasil, e é associado aos índios encontrados no período
das grandes navegações. Conforme aponta Guisard, os costumes dos índios, estranhos ao europeu, e
sua ausência de fé religiosa, remetem a lembranças de algo já antes visto. O estabelecimento dessa
relação é indicado em diferentes dicionários etimológicos. No já mencionado Dicionário de
Etimologias da Língua Portuguesa, lê-se: “o vocábulo veio para o Brasil com Villegaignon, em
1555, o qual assim chamava os tamoios que o auxiliavam. É claro que a designação era injuriosa,
visto que os selvagens não eram cristãos” (GUÉRIOS, 1979, p. 39). Há ainda a explicação de
Gilberto Freyre, em Casa-Grande & Senzala (2002), apontando que o uso de tal denominação
“talvez exprimisse o horror teológico de cristãos mal saídos da Idade Média ao pecado nefando, por
eles associado sempre ao grande, ao máximo, de incredulidade ou heresia” (p. 254).
As discussões de Maria Tereza Camargo Biderman (1998) acerca da dinamicidade dos
conceitos e da mutabilidade são aqui perceptíveis, notando-se, com essa retomada histórica da
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trajetória da palavra, como ocorrem as mudanças desde a Europa da Idade Média até o Brasil do
século XVI. O significado (herege) não sofre modificações. O referente, todavia, se modifica,
passando a designação a ser aplicada dos búlgaros aos índios, em um novo contexto.
Europa / I. Média
Brasil / Séc. XVI
SIGNIFICADO
herege
herege
REFERENTE
búlgaro
índio
Uma outra transformação no que diz respeito à palavra acontece, porém, depois da
chegada ao Brasil. Se a princípio ocorre uma mudança de referente, sem modificação de
significado, o que acontece ao longo do tempo é a modificação do conceito dado ao termo bugre
(selvagem, inculto), ainda que se mantenha associado ao índio. Certamente, ambas as significações
carregam uma carga negativa, desqualificadora e pejorativa, e tal aspecto se perpetua até a
atualidade.
Brasil / Séc. XVI
Brasil / hoje
SIGNIFICADO
herege
selvagem, inculto, atrasado
REFERENTE
índio
índio
De acordo com Guisard (1999), podem-se estabelecer três matrizes para a compreensão
das significações do termo bugre: uma religiosa (herege-sodomita, infiel-traiçoeiro); uma moderna
(preguiçoso-vagabundo, estrangeiro-o outro); e uma biológica (deficiente-incapaz, violentodesordeiro). Pensando nos significados da palavra, tais matrizes são coerentes com as
transformações pelas quais passa ao designar o índio brasileiro. Ao longo de seu artigo, o sociólogo
apresenta as seguintes características relacionadas ao bugre, atribuídas por pessoas que vivem no
município de Cáceres (MT): preguiçoso, não confiável, inferior, rústico, atrasado, arredio, vive no
mato. Segundo ele, o bugre “figura como bode expiatório para tudo o que é tido como negativo,
indesejável e condenável” (GUISARD, 1999, p. 94).
É interessante estabelecer um comparativo entre essas conceituações advindas do senso
comum e aquelas presentes em dicionários. Na definição do Dicionário etimológico Nova Fronteira
de língua portuguesa, bugre pode significar “rude, grosseiro”, e, depois de designar os búlgaros e
heréticos, foi associado aos índios na acepção de “selvagem, grosseiro” (CUNHA, 1994). O
Dicionário UNESP do português contemporâneo apresenta o termo como associação dos indígenas
à ideia de “selvagem, inculto” (BARBOSA et col., 2004). Conceituações similares aparecem em
dicionários como o Aurélio e Houaiss. Já o Dicionário de etimologias da língua portuguesa define:
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Esta designação não se refere a nenhuma tribo, mas é designação genérica a índios,
bravios ou mansos, de São Paulo, Santa Catarina, Paraná, Rio Grande do Sul, Alto
Uruguai e Corrientes, na Argentina. Diz H. Von Ihering: “No Rio Grande do Sul
todos os selvagens dos matos são designados pelo nome de bugres, pelo contraste
com os indígenas domiciliados ou camponeses (charruas e minuanos). Os
chamados bugres não são por conseguinte uma nação, mas é este nome uma
expressão coletiva para designar coroados, botocudos e outros índios selvagens
isolados, sobretudo os créns.” (Ver. Do Museu Paulista, vol. 1, 1895, p. 57).
Nelson de Sena, a propósito dos índios mineiros, afirma o seguinte: “Bugres –
Nome genérico e designativo dos índios bravos, em Minas, principalmente do
gentio bárbaro de origem ‘tapuia’ ou ‘botocuda’” (Alguns estudos brasileiros, Belo
Horizonte, 1937). (GUÉRIOS, 1979, p. 39).
Consideradas tais acepções, torna-se perceptível a relação entre a palavra bugre e as três
matrizes indicadas por Guisard. É relevante considerar que, apesar de atualmente não mais se
estabelecer uma relação com a heresia, a primeira matriz, da religiosidade, ainda entremeia a
questão do índio e de sua identificação enquanto bugre. É o que aponta Roberto Cardoso de
Oliveira no livro Do índio ao bugre, escrito na década de 1950, refletindo sobre os índios Terena e a
ação dos missionários católicos e das missões religiosas protestantes como instrumento de
mudança. Essas ações quebram a antiga religião indígena e propiciam a criação de uma nova
identidade, a de cristão. O antropólogo destaca, porém, que “Essa identidade foi recebida pelo
Terena como equivalente à de civilizado, mas nem por isso assim aceita pelo ‘purutuya’ [não índio],
para o qual o índio continuou a ser sempre bugre” (OLIVEIRA, 1976, p. 121).
A noção de civilização e civilidade está relacionada à segunda matriz indicada por
Guisard, a moderna, sendo o índio considerado mais próximo da natureza, distante dos padrões
socioculturais europeus e, por isso, inculto, inferior e atrasado. Abalizada nessa ideia está a
significação do bugre como bárbaro e selvagem, que precisa ser domado, domesticado, dominado,
assim como o restante da natureza. As questões de mutabilidade e imutabilidade do signo
trabalhadas por Saussure são notórias quando se pensa que, ainda que esteja relacionado a um
pensamento da Idade Moderna, o conceito perdura até os dias de hoje, o que se pode perceber tanto
através das definições dos dicionários como nas falas de pessoas comuns.
O mesmo se dá no que diz respeito às questões econômicas, na definição do bugre como
preguiçoso e rústico, já que há um choque de costumes com a não adequação do índio aos modelos
de trabalho e produção do capitalismo. Isso é válido desde os primórdios deste sistema econômico,
e mais uma vez o bugre é colocado em posição de inferioridade e passível de dominação, a partir de
uma visão eurocêntrica. No artigo “Identidade étnica, reconhecimento e o mundo moral”, Roberto
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Cardoso de Oliveira estabelece um comparativo entre as categorias bugre e caboclo, demonstrando
sua relação com a sociedade hegemônica e o modo como são colocados em posição de submissão.
O antropólogo afirma que ambas “podiam ser consideradas sintomas dos sistemas de exploração
econômica e de dominação política que segmentos regionais da população brasileira exerciam (e em
muitas regiões ainda exercem) sobre os povos indígenas” (OLIVEIRA, 2005, p. 25). Ideia
semelhante é apresentada por Guisard quando aponta que “O bugre pantaneiro é um representante
da natureza que deve ser aprisionado, controlado e dominado para servir melhor e sem resistência à
mecânica capitalista de produção” (GUISARD, 1999, p. 25).
Também a terceira matriz, biológica, está relacionada às concepções modernas e a um
modelo de homem superior, urbanizado, em oposição ao índio inferior, que “vive no mato”. Isso
pode se perceber desde a atribuição de características como bravio, incapaz, arredio, consideradas
como parte da natureza do indígena e constituintes daquilo que definirá o que ou quem é o bugre,
mas ainda na própria identificação deste a partir de traços físicos e questões genéticas. Roberto
Cardoso de Oliveira, no artigo de 2005, aponta os “sinais estigmatizantes” que serão alvo de
observação e de discriminação pela sociedade dominante, mas já em seu livro dos anos 1950 reflete
sobre a aparência física peculiar que permite distinguir o índio onde quer que esteja 1. Guisard expõe
o modo como esse preconceito se manifesta através da fala da população cacerense, que assinala as
características fenotípicas de modo caricatural e com desprezo, consideradas esquisitas e feias. Os
entrevistados dizem: “Bugre é o nome do cara de beiços grossos, feições grosseiras, às vezes pouca
inteligência”, e também: “A pele é muito feia. O bugre não é só porque tem cabelo liso, ele tem o
nariz grandão e outros defeitos [...] é bem moreno, um moreno esquisito, não é preto, é um moreno
diferente. Agora, eu nunca vi bugre bonito, são feios mesmo” (GUISARD, 1999, p. 96).
É interessante notar que a designação bugre é conferida a um segmento da população a
partir da perspectiva de fora, e não como autodenominação do próprio grupo. Isso aconteceu desde
os primeiros usos do termo, em sua origem relacionada aos búlgaros e a forma como eram
chamados, e não como nomeavam a si próprios, mas permanece mesmo com as transformações de
referente e significado. Cabe lembrar que a própria palavra “índio” foi atribuída de modo
generalizante aos habitantes da América pelos colonizadores, em referência às chamadas “Índias
Ocidentais”, não considerando as especificidades das variadas etnias que habitavam o continente.
Hoje a diversidade étnica subsiste, mas a denominação unificadora permanece, assumida também
1
Assim como a fenotipia, o idioma falado pelos indígenas é também indicado por Roberto Cardoso de
Oliveira (1976) como fator de discriminação e identificação do bugre que, ainda que domine o português,
fala de maneira peculiar, com erros e sotaque.
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pela própria população indígena, que assim se identifica1. A fala do intelectual e ativista aymara
Fausto Reinaga, nos anos 1960, é representativa dessa ideia: “Danem-se, eu não sou um índio, sou
um aymara. Mas você me fez um índio e como índio lutarei pela libertação” (REINAGA apud
MIGNOLO, 2008, p. 290).
A aceitação do termo e autoidentificação como índio não se dá da mesma forma no que
diz respeito à palavra bugre. Contrária à luta pelo seu reconhecimento enquanto índio e pela
valorização de sua identidade, o termo bugre apenas reforça uma visão preconceituosa perante essa
população, que assim não deseja ser identificada. Como a palavra índio, o bugre também
singulariza as especificidades étnico-culturais, mas traz consigo uma carga desqualificadora e
pejorativa muito maior. Guisard (1999) indica que seu uso é feito muitas vezes como forma de
xingamento, expressando a condição do outro já caracterizada como negativa e configurando-se
como alcunha. A filósofa Marilena Chauí discute o conceito de alcunha, indicando que tais termos
acabam por ser usados como rótulos ou etiquetas na tentativa de desqualificar um dos
interlocutores, como é o caso do bugre. Define então o conceito, citando o ensaio “A propósito de
alcunhas”, do inglês William Hazlitt:
As alcunhas são os talismãs e os feitiços coligidos e acionados pela parcela
combustível das paixões e dos preconceitos humanos, os quais até agora jogaram
com tanta sorte a partida e realizaram seu trabalho com mais eficiência do que a
razão e ainda não parecem fatigados da tarefa que tem tido a seu cargo. As
alcunhas são as ferramentas necessárias e portáteis, com as quais se pode
simplificar o processo de causar dano a alguém, realizando o trabalho no menor
prazo e com o menor número de embaraços possíveis. Essas palavras
ignominiosas, vis, desprovidas de significado real, irritantes e envenenadas, são os
sinais convencionais com que se etiquetam, se marcam, se classificam os vários
compartimentos da sociedade para regalo de uns e animadversão de outros. As
alcunhas são concebidas para serem usadas já prontas, como frases feitas; de todas
as espécies e todos os tamanhos, no atacado ou no varejo, para exportação ou para
consumo interno e em todas as ocasiões da vida (HAZLITT apud CHAUÍ, 1989, p.
48).
1
Outros apontamentos podem ser feitos a esse respeito e envolvem a reflexão acerca da denominação da
população indígena como “índio”, tanto externa quanto internamente. Roberto Cardoso de Oliveira (1976;
2005) discute delongadamente a questão da aculturação, da assimilação e da mobilidade social, e o modo
como isso interfere na autoidentificação, pensando, por exemplo, no preconceito étnico com si mesmo, no
alto significado atribuído ao reconhecimento pelo outro, na constatação lamuriosa do modo como é visto e
tratado, na manipulação da identidade escamoteada para ganhar respeito, mas, por outro lado, na conquista
da cidadania sem abdicar da identidade indígena. Também a questão da miscigenação é trabalhada pelo
antropólogo, quando aborda os casamentos entre índios e não índios, as mulheres indígenas que almejam o
casamento com o “branco” e o preconceito das mulheres “brancas” com o homem indígena (OLIVEIRA,
1976). Já Guisard (1999) indica o problema da miscigenação como uma transmissão genética de defeitos
físicos e comportamentais, o mal do outro transmitido através do sangue ruim.
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Percebem-se aqui, outra vez, questões relativas ao signo linguístico, já que se agrupam
diferentes referentes através do uso de um mesmo significante, isto é, seja de qual parte da América
forem e pertencentes a qualquer etnia, sejam Terena, Aymara ou Apache, todos são denominados
índios e, mais que isso, tratados como bugres, com todo o peso que a palavra carrega. Um aspecto a
ser destacado ainda, referente a este termo, diz respeito a uma visão propagada pelo senso comum
de que o índio que deixa sua aldeia, que se urbaniza ou adere a costumes tidos como dos “brancos”
perde sua identidade. O bugre seria, neste caso, aquele que apresenta os traços físicos, que aparenta
sua herança genética, que tem sua ascendência evidente, mas que teria deixado de ser índio de fato.
Roberto Cardoso de Oliveira, tratando dos Terena, salienta porém que:
A identidade étnica, estigmatizada pelo epíteto bugre, tende a persistir nas
diferentes condições de existência do Terena, mesmo na situação de vida urbana,
onde continua a ser classificado como diferente, distinto dos demais citadinos com
os quais convive, para os quais trabalha e diante dos quais jamais logra ser aceito
como um igual. Aldeados ou emigrados, rurais ou urbanos, o trajeto típico do
Terena não parece ter sido outro que o de sua transfiguração em bugre e em tudo o
que isso significa de preconceito e discriminação (OLIVEIRA, 1976, p. 134).
O que é dito pelo antropólogo acerca dos Terena é válido para as demais etnias
indígenas brasileiras e seus membros. Uma situação peculiar a ser agora analisada é o modo como o
uso do termo bugre é feito para dar nome a esculturas produzidas pela artista Conceição Freitas da
Silva, em Mato Grosso do Sul.
3 O BUGRE REPRESENTADO NAS ESCULTURAS DE CONCEIÇÃO
Conceição Freitas da Silva nasceu em 1914 no interior do Rio Grande do Sul. Ainda
criança mudou-se com os pais para Mato Grosso do Sul, então estado de Mato Grosso. Casou-se,
teve dois filhos e viveu uma vida simples e modesta, habitando, até seus últimos dias de vida, uma
chácara na periferia de Campo Grande. Conceição era uma dona de casa semianalfabeta,
acostumada aos trabalhos pesados da roça, como plantar e cortar lenha. Nos anos de 1960, dá início
a seu trabalho, produzindo esculturas, as quais dá o nome de bugres. Conforme conta o jornalista
Rodrigo Teixeira,
A inspiração para fazer o bugrinho veio para Conceição em um sonho. Ao acordar,
foi até o quintal, sentou embaixo de uma árvore e percebeu uma rama de mandioca.
Quando olhou a raiz viu a mesma figura que tinha enxergado no sonho. Teve a
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ideia então de talhar a feição na própria cepa e o resultado foi a nascença do bugre,
o artefato que já virou sinônimo de Mato Grosso do Sul (TEIXEIRA, 2007, snp).
A história da origem dos bugres é também narrada por Maria da Glória Sá Rosa, em
artigo da Revista ARCA, de 1995:
[Conceição] Contou-me que começou a esculpir por brincadeira, de forma
despreocupada como fazem os verdadeiros artistas. De uma raiz de mandioca fez
um boneco, que viria ser o ancestral de tantos outros, aparentemente iguais mas
profundamente diversos, de mil fisionomias estáticas, cabelos escorridos, olhos,
sobrancelhas e nariz pintados de piche, braços em posição de sentido. Uma obra
recomeçando a outra, como a vida recomeça a cada instante e no entanto cada
minuto é diferente do anterior (ROSA, 1995, p. 36).
Gostando, então, do resultado obtido, Conceição decidiu investir nas esculturas e, de
acordo com relatos de seus descendentes, a escultura era bastante mística, e também devido a um
sonho decidiu utilizar cera de abelha para cobri-las, que, conforme contava, servia para vesti-las. Os
bugres foram ganhando variadas formas e tamanhos, sempre remetendo, porém, à imagem
simplificada do índio guaicuru da região. Até então mera dona de casa, Conceição Freitas da Silva
torna-se escultora e passa a ser chamada de Conceição dos Bugres (FIGUEIREDO, 1979).
Cabe salientar um aspecto importante: a família da qual Conceição fazia parte e seu
círculo de amizade. É também Maria da Glória Sá Rosa quem aponta: “Quando a conheci, nos anos
sessenta, ela era apenas Conceição, ou melhor Dona Conceição, mãe dos artistas Ilton e Wilson”
(ROSA, 1995, p. 36). Sabe-se que a escultora convivia com a arte em sua casa, sendo mãe de artista
e cercada pelos colegas e amigos dos filhos que os visitavam e que também faziam parte do meio
artístico. Aline Figueiredo, crítica de arte e amiga de Ilton e Wilson, exerce papel fundamental para
a projeção dos bugres. Na palestra “A descentralização da arte brasileira via MT/MS”, proferida no
seminário Entre vários olhares: da pintura à intervenção (MARCO-MS, 09 de abril de 2014),
Aline Figueiredo relata que por meio de Ilton Silva, na década de 1970, ela e o artista plástico
Humberto Espíndola conhecem as esculturas de Conceição. Em sua fala, explicita o modo como
orientou a artista para que passasse a desenvolver seu trabalho em madeira, ao invés de utilizar a
cepa da mandioca, como fazia até então. Aponta assim a maneira como as esculturas vão ganhando
a forma com que hoje são conhecidas e, por seu intermédio, passam a ser levadas para exposições
de arte, por ela organizadas, juntando o trabalho de Conceição ao de outros artistas que
representavam a arte do estado nos anos 1960 e 1970.
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Os bugres de Conceição são considerados, hoje, uma das principais peças da arte de
Mato Grosso do Sul. Sua imagem é amplamente difundida e utilizada desde a publicidade até em
materiais do poder público. Ainda em vida, a escultora pôde ver suas peças obterem
reconhecimento, sendo levadas para museus e, ainda, visadas por turistas de diferentes estados e
países que visitam a região. A despeito do reconhecimento de sua obra, Conceição morreu pobre, e
após a sua morte, em 1984, a produção dos bugres teve prosseguimento através de seu marido,
Abílio Antunes. Atualmente é o neto, Mariano, quem dá continuidade ao trabalho, seguindo os
mesmos moldes e estilos iniciados pela avó. Segundo Rodrigo Teixeira,
Mariano Neto é o sucessor. Se não fosse ele, a peça de artesanato mais importante
de Mato Grosso do Sul teria acabado. Mariano é neto de Conceição Freitas da
Silva, criadora dos bugrinhos no final dos anos 60. Em 1987, quando faleceu, a avó
de Mariano já era conhecida como Conceição dos Bugres. A escultura nasceu em
uma cepa de mandioca. Assim como a avó, Mariano vende principalmente para
turistas, o que fez com que o bugrinho se espalhasse pela Europa, Estados Unidos e
Japão. Encontrar um original de Conceição para adquirir é coisa rara, apesar dela
ter produzido milhares. No ateliê do artesão, localizado em um bairro popular de
Campo Grande, entre os quase 50 bugres de diversos tamanhos fabricados por
Mariano, havia um de Conceição. Enquanto o maior de Mariano custa R$ 250, o
pequeno de sua avó sai a bagatela de R$ 6 mil. Cada bugre da artista Conceição
tem uma fisionomia, são rústicos e esculpidos a machadadas. Únicos. Já os
bugrinhos de Mariano são mais bem acabados. A madeira guiava Conceição. O
neto segue um padrão e trabalha com eucalipto. Ele é capaz de fazer por dia de 10 a
15 bugrinhos (2007, snp).
Vê-se, assim, que enquanto as esculturas de Conceição apresentam peculiaridades
variáveis (mãos para cima, braços abertos ou cabeça inclinada), aquelas produzidas por seus
sucessores seguem um formato padrão, talhadas somente em eucalipto, variando apenas no
tamanho. As diferenças não se manifestam exclusivamente quanto à forma. Há também uma
mudança de status, assim como ocorre com a própria obra da escultora. Os valores atingidos pelas
peças confeccionadas por Conceição comprovam essa transformação. E se, inicialmente, os bugres
por ela produzidos eram vistos como peça de artesanato, com o tempo passam a ser considerados
obra de arte, e a legitimação pelo espaço que ocupam em museus e galerias por todo o mundo, ainda
por artistas e críticos de arte, contribui para a atribuição também de um valor mercadológico às
peças.
Além de alcançarem o status de obra de arte, os bugres de Conceição são também
considerados marca de identidade do estado de Mato Grosso do Sul. A artista desenvolve sua
produção em um momento de valorização da identidade cultural sul-mato-grossense e de busca por
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elementos que a individualizassem. No ano de 1977 ocorre a divisão do estado do Mato Grosso, e
em Mato Grosso do Sul ocorrem diversas iniciativas, sobretudo no campo das artes, que buscam
encontrar referências de uma identidade local, desencadeando movimentos e expressões culturais
que viriam a ser caracterizados como “arte regional” do novo estado. Isso ocorre, por exemplo, no
campo musical, nomeando-se a produção de artistas locais como “música regional”, com artistas
como Almir Sater, Tetê Espíndola, Grupo Acaba. Do mesmo modo nas artes plásticas, têm-se
aspectos considerados caracteristicamente locais retratados nas obras de artistas do estado, como as
paisagens, a fauna e a flora do Pantanal, o índio ou referências a seus grafismos e cultura, além da
Bovinocultura, de Humberto Espíndola, e dos bugres de Conceição.
Esse conceito de identidade cultural indica as representações feitas pelos indivíduos
acerca das relações que estabelecem com seu meio e com os outros indivíduos, da visão que têm
dessas relações, de si, do espaço, do tempo e da sociedade que os cerca. Para tanto, são eleitas
marcas representativas que auxiliam na definição de quem (ou o quê) pertence ao grupo, em
oposição àqueles que são dele excluídos, ou seja, o reconhecimento do “nós” que se diferencia do
“outro”. Muitos estudos são feitos a esse respeito, tratando ainda de como essa relação se dá ao se
pensar em contextos específicos. David Harvey, em Condição pós-moderna (1993) problematiza a
questão da identidade no mundo contemporâneo, já que suas características nos levam a enxergar
uma aparente homogeneização das culturas, e a noção de pertencimento, de próprio, tem de ser
reelaborada: um mundo marcado pela globalização, pelo intenso intercâmbio de símbolos e
informações, pela supressão do tempo e do espaço, e a consequente aproximação entre costumes e
tradições diferenciados. Harvey explica a busca pela identidade, hoje, através da relação dos
indivíduos com um determinado lugar, seus signos e significados, afirmando que “a identidade de
lugar se torna uma questão importante nessa colagem de imagens espaciais superpostas, que
implodem em nós” (1993, p. 272). Isso acaba levando à valorização de tudo o que é considerado
“típico” e que pode se destacar frente à padronização das culturas.
Em Mato Grosso do Sul, cabe discutir a possibilidade de que a busca por elementos que
marquem sua identidade cultural é também uma procura por afirmação do local diante do restante
do país e do mundo, além de constituir especificamente uma demarcação de diferenciações do
estado vizinho, Mato Grosso, a partir do qual é dividido. É importante salientar, porém, que a
exposição do particular na busca de demarcação de uma identidade cultural pode partir do próprio
grupo, configurando-se como uma assimilação interna e adaptação, mas pode também ser
apresentada como uma apropriação exterior à comunidade, com seus elementos sendo explorados
por setores hegemônicos.
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Todas essas informações são relevantes para se pensar em questões relativas à
nomeação das esculturas de Conceição como bugres. Há que se considerar quais as relações entre a
obra de arte, ou ainda, o marco identitário do estado, e a população indígena do estado, os bugres
reais. É importante pensar, assim, nos contextos político, social e cultural nos quais o trabalho de
Conceição dos Bugres é realizado: um estado de costumes e produção agropecuária, em que arte,
mulher e índio não são valorizados, em que a alcunha bugre é utilizada como forma de inferiorizar
um determinado segmento da população. Em meio a isso, uma artesã se firma como um dos
principais nomes da expressão artística local. Conceição é mulher, pobre, e não pertence ao
segmento letrado da sociedade, o que poderia tornar sua arte e sua pessoa merecedoras de
discriminação e descaso. Além disso, obtém tal reconhecimento através da imagem negada e
negativizada do bugre. O que ocorre, nesse caso, é semelhante ao que se passa também com outros
elementos da cultura identitária de Mato Grosso do Sul, como a cultura paraguaia. Ao mesmo
tempo em que se reproduz uma ideia negativa do Paraguai e de sua população, através de uma
associação ao contrabando, ao tráfico e à violência – que remontam à Guerra do Paraguai –, é a
elementos desta cultura que se recorre quando se deseja afirmar uma identidade sul-mato-grossense
e o que a caracteriza.
Há nesse processo um movimento duplo de aproximação e apropriação do universo do
outro. A imagem dos bugres de Conceição é difundida, tornando-se corriqueira no cotidiano da
população do estado. Entretanto, como indica o antropólogo James Clifford, se por muito tempo
essa aproximação ocorreu, nas artes, como um modo de se entender o exótico como fonte estética,
como oposição ao que é familiar, racional, e como uma transgressão às regras da sociedade
ocidental, o que parece se estabelecer agora é uma apropriação do “outro”, tornando-o parte da
ordem estabelecida, transformando-o em “nós” (CLIFFORD, 1998). Isso é perceptível quando se
discute a representação, por exemplo, do índio na literatura brasileira e nas artes, de modo geral.
Dilma Castelo Branco Diniz e Haydée Ribeiro Coelho, em ensaio sobre o regionalismo nos estudos
literários e culturais, apontam o problema levantado por Antonio Candido, que identifica no
regionalismo brasileiro a oscilação entre “o fato de ser potencialmente ‘instrumento de descoberta e
autoconsciência do país’ ou ‘ideologia que mascara as condições de dominação do homem pobre no
campo’” (DINIZ; COELHO, 2005, p.416).
Tal reflexão cabe aos bugres de Conceição, quando se pensa nos motivos que os tornam
marco de identidade e que levam a população e o estado a legitimá-los como tal, em contraposição à
realidade em que vivem os verdadeiros bugres de Mato Grosso do Sul. Pode-se pensar ainda na
associação do bugre com a natureza e o modo como esta é tema recorrente nas artes plásticas e do
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qual se utiliza para caracterizar as peculiaridades do estado. Conforme indicam Eurídice Figueiredo
e Jovita Maria Gerheim Noronha,
No caso de países cuja identidade se forma num contexto de dependência cultural,
é comum ocorrer o que podemos chamar de auto-exotização. No Brasil, por
exemplo, percebe-se que os românticos, na ânsia de afirmar nossa originalidade,
acabaram criando uma imagem do país que reproduzia a visão dos europeus sobre
nós, procedimento que parece, aliás, perdurar em muitas de nossas autorepresentações (FIGUEIREDO; NORONHA, 2005, p. 199).
A designação bugre, que remete a uma condição de inferioridade, atraso e oposição aos
valores do “homem branco, civilizado”, é atenuada ainda pelo modo familiar como as pessoas se
referem às peças produzidas por Conceição, “bugrinhos”, remetendo a uma visão de acolhimento e
aproximação, associada a uma espécie de visão romântica do exótico. Guisard aponta que o uso do
diminutivo, considerado carinhoso, revela a situação de inferioridade e a ideia de que o bugre, por
sua falta de civilização, demanda amparo e proteção. Sendo assim, dois aspectos podem ser
considerados ao se tratar do termo bugre e seu uso para nomear as esculturas. O primeiro diz
respeito ao possível mascaramento de um determinado tipo de pensamento, carregado de
preconceito, que subjuga e silencia uma parte da população de forma autoritária, impositiva e
unilateral. Nesse sentido, o uso do termo “bugrinhos” para designar as esculturas de Conceição não
é o mesmo que o uso do termo bugre, nomeando indígenas ou seus descendentes de maneira
negativa. Por outro lado, pode-se considerar que por meio das peças artísticas o bugre é posto em
evidência e ganha voz. É o que acredita Edgar Cézar Nolasco, ao propor que os bugres de
Conceição:
não se prestam somente à apreciação estética, mas também como representações
culturais que desarticulam o lugar social que o Estado, assim como os demais
discursos dominantes e institucionais, põem aquele sujeito subalterno representado,
esculpido no trabalho artístico [...] Estão todos em posição de sentido, prestes a
romperem o silêncio cristalizado na cultura elitista e na sociedade excludente,
como única forma de que o outro escute seu balbucio (Achugar) e, assim, ocupem
seu lugar que não pode ser só mais metafórico, mas real, concreto (NOLASCO,
2009, p. 15).
Seja silenciando, mascarando ou dando voz aos índios de Mato Grosso do Sul, o que se
pode perceber é que as esculturas de Conceição atribuem um novo significado à palavra bugre,
inserindo-a no mundo da arte e marcando a identidade do estado por meio daquilo que seria
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considerado dele característico. Ainda que as peças remetam ao índio da região, o referente é
modificado mais uma vez, assim como o significado, aqui destituído de seu peso pejorativo.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Refazer a trajetória do termo bugre, pensando em sua origem francesa designando o
povo eslavo da Bulgária, na Idade Média; sua relação com o movimento herético que se opunha aos
preceitos da Igreja; posteriormente, sua associação aos índios no período colonial no Brasil e a
maneira como ainda hoje é usado para denominar aqueles que fazem parte de populações indígenas
ou são delas descendentes; e, por fim, seu emprego para nomear as esculturas da artista Conceição
dos Bugres torna possível uma reflexão sobre aspectos pertinentes à questão do signo linguístico.
Concluindo essa discussão, cabe retomar o pensamento de Maria Tereza Camargo
Biderman e sua ideia de que as palavras são etiquetas verbais, resultado da percepção e tradução da
realidade feita pelos sujeitos. A lexicóloga destaca que o signo linguístico constitui uma herança do
léxico-cultural, que além de ser transmitido de geração a geração, também reflete as estruturas
sociais e sua hierarquia correlata. Isso cabe aos bugres, ao se considerar que a forma como o termo
é usado reflete, e sempre refletiu, a sociedade e seu pensamento. O referente e sua importância no
triângulo de significação (significante-significado-referente) são assim destacados:
o referente é parte integrante e essencial do signo linguístico [...] Como bem diz
[Izidoro] Blikstein não é porque a realidade é extra-linguística que o referente deva
ficar de fora da Linguística. De fato, a significação se origina e lança as suas raízes
no universo cognoscível, interpretado e simbolizado por palavras. E o conjunto
dessas palavras vem a ser o léxico da língua. Podemos concluir, pois, que o
conceito (significado) é tributário de uma realidade que o antecede e precede,
realidade essa que nossa percepção/cognição percebe e interpreta, criando o objeto
mental ou unidade cultural ao qual atribuímos um nome, isto é, a palavra ou
significante. Assim o referente e o universo de que ele procede geram o fenômeno
da significação (BIDERMAN, 1998, p. 117).
Sendo assim, a relação entre palavras e coisas reais demonstra a existência de uma
ligação bastante estreita que, sobretudo no caso aqui colocado, merece atenção. Os índios de carne e
osso, a população indígena discriminada, subjugada, negada e negativizada, os indivíduos de
verdade, carregam o estigma de serem bugres. A palavra carrega consigo todo esse universo de
significações e de projeção do ser e pensar de uma sociedade.
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<http://www.overmundo.com.br/overblog/mariano-multiplicador-de-bugres-da-conceicao>, em 17
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AINDA HÁ MUITOS ÍNDIOS SEM FALA
THERE ARE MANY INDIANS STILL SPEECHLESS
Karina Kristiane VICELLI(PG/UFMS)
Resumo: Os contos Uns índios (sua fala) de João Guimarães Rosa e Não haverá mais índios de
Luiz Vilela abordam um tema caro a Literatura Brasileira: o índio. Como elemento fundador da
simbologia de nossa cultura o autóctone sempre foi um protótipo marcante ao longo da história de
nossas produções textuais. Idealizado por Peri e Iracema ou ridicularizado por Macunaíma, a
identidade dos indígenas foi sendo arquitetada por meio das narrativas tanto de viagem como
ficcionais. O artigo tem por objetivo esboçar por meio dos textos selecionados algumas reflexões
sobre como essa insígnia de nossa formação identitária é abordada na literatura contemporânea, e
em que medida a construção literária desse elemento reforça ou nega as imagens construídas ao
longo de nossa historiografia literária. Para a análise foram utilizados textos de estudos de viagens,
referencial teórico sobre a contemporaneidade, elaboração de contos e de estrutura narrativa.
Ambos os autores ao projetarem a imagem dos gentios, mostrando a marginalidade na qual estão
inseridos, reforçam o olhar de estrangeiro e apontam para uma visão comum da qual a maioria dos
textos se valem: o processo de aculturação.
Palavras-chave: Índio. Estereótipo. Marginalidade. Identidade. Contemporâneo.
Desde a descoberta do Brasil os relatos sobre os nativos fazem parte do imaginário e
alicerçam determinados estereótipos moldados a respeito do gentio, das nações autóctones e do
espaço brasileiro. Nos textos que retratam os indígenas há dois estereótipos recorrentes na formação
dessa identidade: do bom selvagem e do bárbaro sanguinário. Interessante notar que ao longo da
história da literatura brasileira esses protótipos são reforçados, mas como a literatura
contemporânea aborda esse elemento? Houve mudanças ou continua a sedimentar os modelos já
pré-estabelecidos?
Pensando nisto, os contos Uns índios (sua fala) de João Guimarães Rosa e Não haverá mais
índios de Luiz Vilela, servirão de ponto de partida para estabelecermos alguns apontamentos sobre
essa construção identitária na contemporaneidade. No primeiro texto, o narrador protagonista,
autodiegético, relata seu breve contato com a tribo Terena em Mato Grosso. Já Luiz Vilela
apresenta dois focos sobre o indígena, o de um índio em situação precária sendo humilhado em um
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boteco, e em seguida o de um pai e seu filho conversando sobre o ocorrido e discutindo a respeito
do que é ser índio.
O conto de Guimarães Rosa encontra-se em Ave, palavra, obra póstuma publicada em 1970,
reúne trechos de diários, notas de viagem, contos e poesias. Trata-se de textos publicados ao longo
do período de 1947 a 1967 e alguns inéditos. A princípio Uns índios(sua fala) aparenta ser apenas
constituído de apontamentos de viagem, mas a elaboração literária tão característica do autor se faz
presente, a medida em que percebemos as descobertas do narrador, suas decepções e seu
deslumbramento com o contato com a tribo Terena. Ilka Boaventura Leite afirma que “a viagem
configura uma forma de (re)invenção do outro e por quê não, do mesmo” (LEITE, 1994, p.349),
uma vez que “autor/narrador utiliza-se da sua experiência de viagem para inventar a noção de
outro”. Por isso “viaja-se para escrever e escreve-se para relatar viagens” (LEITE, 1994, p.350).
Além do mais, um dos traços típicos dos enredos do autor em questão é a narrativa de
viagens, a voz que fala no texto denota habilmente aquele comportamento típico dos viajantes,
utiliza o descritivismo ao transpor para o texto literário a fauna, a flora, os habitantes e seus
costumes. Inicialmente, o viajante deseja o encontro com a beleza e o contato com os elementos que
tornam o indígena um ser exótico e rico. Em seguida, percebe-se por meio de alguns objetos e
atitudes que o estereótipo do bom selvagem desmancha-se aos olhos desse viajante.
Refiro-me, em Mato Grosso, aos Terenos, povo meridional dos Aruaques. Logo
desde Campo Grande eles aparecem. Porém, se mal não me informo, suas
principais reservas ou aglomerações situam-se em Bananal, em Miranda, em
Lalima e em Ipegue, e perto de Nioaque. Urbanizados, vestidos como nós,
calçando meias e sapatos, saem de uma tribo secularmente ganha para o civil. Na
Guerra do Paraguai, aliás, serviram, se afirmaram; deles e de seu comandante,
Chico das Chagas, conta A Retirada da Laguna.(ROSA, 1985, p.93)
Nesse primeiro parágrafo, além do autor oferecer a extensão da localidade onde residem os
Terenas, há a relação de estranhamento pós-contato, os índios são apresentados como
descaracterizados de suas vestimentas originais. Percebe-se nesse trecho o que Ricardo Piglia
apontou “que um conto sempre conta duas histórias” (PIGLIA, 2004, p.89). No primeiro plano
temos a viagem e em segundo plano a expectativa do olhar de viajante por índios em situação de
pureza, anseia que nos quinhões desse grandioso país ainda haja a preservação de costumes
antiquíssimos e a conservação do bom selvagem.
A Viagem portanto, pode ser vista como uma experiência instauradora da fronteira
entre o EU e o OUTRO. Esta fronteira introduz um aspecto relevante e que os une,
que é a noção de EXÓTICO. O que é o EXÓTICO? Um tipo de imprevisível do
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previsível? Talvez. Talvez viajar seja criar e experimentar o imprevisível, e nele, inventar o EXÓTICO. (LEITE, p.351)
Infelizmente essa perspectiva não se efetiva para o narrador no primeiro plano, o fato dos
indígenas viverem nas cidades e apresentarem elementos culturais do contato com a cultura dita
civilizada em suas vestimentas, ainda é algo que decepciona até o mais contemporâneo dos
narradores, seja porque a sociedade tem como utopia o ideal de deixar o exótico disjunto e por
consequência desse isolamento talvez houvesse a conservação cultural de seus traços distintivos,
seja porque a sociedade não quer conviver com os indígenas e deixá-los escondidos em uma selva
afastada é uma forma de não lidar com um contato inevitável, e com a própria consciência de que a
culpa da transformação negativa não seja necessariamente das tribos, mas nossa.
Em seguida, nesse mesmo parágrafo, nota-se o olhar romântico do índio como herói, pois
apresenta um fato histórico da liderança e da força guerreira dos Terenos na Guerra do Paraguai,
recuperando uma das primeiras imagens literárias construídas nessa região sobre os indígenas que
por ali residiram, qual seja o olhar de Visconde de Taunay, outro viajante. Guimarães Rosa ao
mesmo tempo em que apresenta o gentio inserido na sociedade de maneira fragmentada, busca o
ícone histórico e literário, Chico das Chagas, líder dos Terenas, índio de nome cristão. Expõe,
assim, os elementos de aculturação, ponto comum desses textos em questão e das primeiras
narrativas sobre os silvícolas.
Nas quatro ocorrências sobre os Terenas na obra Retirada da Laguna, Visconde de Taunay
mostra o indígena ora colocado como herói disciplinado e bravo auxiliar, ora como vingativo,
saqueador, indolente, desgraçado:
Recebeu logo o 17.° batalhão ordem de ir, além do ponto atingido pelo 21.°,
realizar um reconhecimento, sob a direção do guia Lopes e em companhia de um
grupo de índios Terenas e Guaicurus, que desde algum tempo se apresentara ao
Coronel. A 10 de abril, realizou-se a partida, bandeiras desfraldadas e música à
testa, espetáculo sempre imponente em vésperas de combate. Graças ao
comandante apresentava-se o corpo em pé de disciplina, que em qualquer ponto o
tornaria notado. (TAUNAY, p.20)
Os auxiliares índios, Guaicurus e Terenas, não foram os últimos a se apresentar
para o saque. Tão pequena disposição para o combate haviam mostrado que, na
nossa carreira, ao lhe tomarmos a frente, lhes bradáramos: Vamos! Avante!
Valentes camaradas! Agora se lhes transmutara a indolência num ardor sem limites
para o saque. Já se haviam disseminado pelas roças de mandioca e de cana, de lá
trazendo, imediatamente, cargas sob as quais vergavam, sem, contudo, encurtar o
passo. (TAUNAY, p.28)
Iluminados por uma aurora magnífica percebíamos, aos nossos pés, os nossos
soldados correndo pelo campo, para o local do combate; mais longe, os índios
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Terenas e Guaicurus, que depois de se haverem comportado nesta refrega como
bravos auxiliares, carregavam agora aos ombros os despojos dos cavalos tomados
aos paraguaios. Haviam os comandantes deixado sua gente tomar um pouco de
fôlego e como não recebessem, aliás, a ordem de ocupar as posições e vissem,
ainda, que o Coronel, sabedor do triunfo, não deixava a eminência para vir ao
encontro, pensaram que teriam de evacuar o posto recém-conquistado. Começavam
a mover-se em nossa direção, quando os paraguaios, rápidos como cossacos,
trouxeram a todo o galope a sua artilharia, então sustentada por numerosa
cavalaria. Abriram o fogo até que de nosso lado, entrando em linha todo o nosso
parque, com as boas pontarias feitas pelos nossos oficiais, tivessem de calar-se,
após alguns disparos. (TAUNAY, p.37)
Neste dia fez a cólera nove vítimas. Assinalaram-se vinte caves novos: o chefe dos
Terenas, Francisco das Chagas, chegou moribundo numa rede que sua gente
carregava . Estavam estes desgraçados índios no auge do terror, mas não podiam
mais abandonar a coluna, ocupado como se achava todo o campo por um inimigo
que, quando os apanhava, jamais deixava de os fazer perecer nos mais horríveis
suplícios. (TAUNAY, p.65)
A questão da nomeação do indígena por um nome cristão é recorrente nessas narrativas e na
realidade, o elemento diferenciador de Rosa dos outros escritores é a preocupação em descrever a
língua Terena, porque talvez na língua esteja a beleza que tanto procura, por isso como não encontra
a sublimação nos representantes dessa nação, tenta achar o que restou de sua pureza, dos elementos
que compõem a linguagem, e talvez a possibilidade de continuação de uma cultura ancestral por
meio das palavras e seus arcabouços.
Conversei primeiro com dois, moços e binominados: um se chamava U-la-lá, e
também Pedrinho; o outro era Hó-ye-nó, isto é, Cecílio. Conversa pouca.
A surpresa que me deram foi ao escutá-los coloquiar entre si, em seu rápido,
ríspido idioma. Uma língua não propriamente gutural, não guarani, não nasal, não
cantada; mas firme, contida, oclusiva e sem molezas – língua para gente enérgica e
terra fria. Entrava-me e saía-me pelos ouvidos aquela individida extensão do som,
fio crespo, em articulação soprada; e espantava-me sua gama de fricativas palatais
e velares, e as vogais surdas. Respeitei-a, pronto respeitei seus falantes, como se
representassem alguma cultura velhíssima. (ROSA, 1985, p.93).
O trecho “como se representassem alguma cultura velhíssima” indica a decepção com a
condição com a qual Guimarães Rosa depara-se: os índios têm pouco, ou quase mais nada dessa
cultura ancestral, e esse mínimo restante tende a se perder.
Deram-me o sentido de um punhado de palavras, que perguntei. Soltas, essas
abriam sua escandida silabação, que antes desaparecia, no natural da entrefala. Eis
pois:
frio – kas-as-tí
onça – sí-i-ní
peixe – khró-é
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rio – khú-uê-ó
Deus – íkhái-van’n-u-kê
cobra – kóe-ch’oé
passarinho – he-o-pen’n-o (h aspirado)
A notação, árdua, resultou arbitrária. Só para uma idéia. E, óbvio, as palavras
trazidas assim são remortas, sem velocidade, sem queimo. Mas, ainda quando, fere
seu forte arrevesso. (ROSA, 1985, p.94)
Quando registra as palavras precariamente, percebe que por mais que tente transcrevê-las de
nada serve essa descrição se essa língua não for utilizada consequentemente não será escutada.
Afirma que as palavras estão duas vezes mortas e que, ter de uma tribo apenas a descrição de seu
falar, como a dissecação de um bicho em laboratório, não assegura apreender a totalidade dessa
cultura e nem a sua sobrevivência. Não significa percebê-la e nem protegê-la, mas é um sinal de sua
perda para os tempos atuais.
Depois, no arraial do Limão-Verde, 18km de Aquidauana, pé da serra de
Amambai, visitei-os: um arranchamento de “dissidentes” – 60 famílias, 300 e
tantas almas índias, sob o cacicado do naa-ti Tani, ou Daniel, capitão.
O lugar, o Limão-Verde, era mágico e a-parte, quase de mentira,com excessivo
espesso e esmalte na verdura, como a do Oxforshire em julho; capim intacto e
montanhas mangueiras, e o poente de Itália, aberto, infim, pura cor.
Quase conosco, adiante, chegava também uma terena, a cavalo, Com sapatos
Anabela e com seu indiozinho ao colo. Quisemos conversar, mas ela nem deixou.
Convenceu o cavalo a volver garupa, dando-nos as costas, e assim giraram, e
designaram, quanto foi preciso. (ROSA, 1985, P.94)
Ao encontrar com o chefe da tribo, embora este esteja vivendo em uma situação precária,
mantém o ar da hierarquia e da liderança presente, do mesmo modo, ao conversar com uma índia
com seu filho, montada a cavalo, destaca suas sandálias. Assim o fato de o cacique não aparecer
trajado com cocar e colares, e a índia não estar descalça, encaminha a imagem do silvícola para uma
realidade contemporânea, a da descaracterização dos valores que tanto se fala em preservar e pouco
se faz para conservar.
O conto de Guimarães Rosa não apresenta nenhum elemento ulterior claro, nenhum
indicador textual indicando a espera do exotismo, mas ao encontrar o traço mais significante dessa
diferença, há ao mesmo tempo o deslumbramento e a decepção. Deslumbramento porque se encanta
com a fortuna da linguagem dos indígenas; decepção, pois não conseguirá absorver boa parte dessa
riqueza, o que configura também a perda desses traços distintivos de uma cultura remota e
descaracterizada pelo processo natural de intercâmbios entre os povos. De acordo com Ilka
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Boaventura Leite “por um lado, as culturas vão perdendo suas diferenças mais significativas, por
outro, a cultura do cotidiano, não apenas multiplica as similitudes a partir de condições locais, mas
reconstrói novas diferenças” (LEITE, 1994, p.349).
E essas novas diferenças surgem justamente pelo fato dos índios absorverem em seu
cotidiano elementos da cultura dita civilizada. No caso do conto de Luiz Vilela trata-se de um
elemento negativo, a bebida alcoólica; já em Guimarães Rosa a descaracterização centra-se nos
elementos da vestimenta. Em ambos os textos há os elementos comportamentais alterados pelo
contato com a civilização.
Em Não haverá mais índios de Luiz Vilela, publicado no livro de contos Lindas Pernas
em 1979, a narrativa começa com um diálogo demarcado pelo preconceito e a humilhação, quando
um índio implora a outro homem em um boteco por pinga, e, para conseguir a bebida, é obrigado a
dançar. Ao se sujeitar a essa humilhação é deploravelmente insultado. O conto apresenta um dos
principais fatores do processo de aculturação: o alcoolismo. Diferente de Guimarães Rosa a
expectativa do bom selvagem não é percebida nas falas de um narrador, pois este se comporta
apenas como uma câmera que mostra as cenas de maneira imparcial, não há uma idealização por
parte de quem conta. Assim, o gentio já é apresentado em uma situação degradante desde o
princípio. O texto por ser contemporâneo, pelo poder do diálogo, aponta para a realidade pautada
pelo senso comum na maioria das aldeias, longínquas ou urbanas, a degradação da cultura pelo
vício e hábitos negativos. Interessante que o índio ao ser insultado, o tempo todo tenta impor sua
identidade repetindo insistentemente que é índio, mas em nada lembra esse arquétipo da
historiografia literária brasileira.
"Mais pinga", disse o homem moreno estendendo o copo.
"Mais pinga não", disse o gordo se apossando da garrafa que estava sobre o balcão.
"índio agora vai dançar; depois mais pinga."
"Pinga", disse o moreno tentando alcançar a garrafa.
"Depois", disse o gordo escondendo mais a garrafa.
"índio agora dança", e deu uma gingada com o corpo enorme, balançando a
barrigona. "índio agora vai dançar ali na frente; todo mundo vai ver índio dançar."
O moreno ficou parado olhando para o gordo - olhando feito um cachorro faminto
e medroso olha para uma pessoa que está comendo um sanduiche num barzinho de
estrada. O gordo deu outro gingado, os braços para cima, a garrafa numa das mãos
e na outra o copinho de dose em que ele estava bebendo. O moreno riu.
"Ah, gostou, hem? ... ", disse o gordo e riu com as papadas gordas, os olhos
sumindo nas pálpebras gordinhas.
"Então agora é índio; buiana quer ver índio dançar; mim buiana, você índio,
macaco."
"Macaco não", o índio negou com a cabeça.
"Gorila", disse o gordo dando outra gargalhada.
"Gorila não; índio."
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"Chimpanzé. "
"Chimpanzé não: índio; índio."
"Orangotango. "
"índio", o moreno bateu no peito, "índio."
O gordo caíra num acesso de riso, sacudindo-se todo feito gelatina, sufocado,
vermelho, as lágrimas escorrendo dos olhos. "Ai, não agüento mais, eu. morro, esse
índio me mata ... "(VILELA, 1979, 21)
Na segunda parte do conto um pai e o filho que estavam no bar e assistiam a cena
degradante, pagam o que consumiram e saem. A partir disto começam a conversar sobre a cena
entre o índio e o gordo, e, de repente o foco da perspectiva altera-se significativamente pelas falas
do menino que começa a questionar se o homem era realmente um índio. Embora aparente uma
conversa simples, incitada pela curiosidade do menino, torna-se para o leitor fonte de uma reflexão
profunda e filosófica sobre o que é hoje realmente ser índio, e em que medida os índios que
conhecemos ou com quais temos contato ainda são índios mesmo. O duelo civilização, sociedade,
pureza e bom selvagem brota nas falas dos personagens.
Observa-se na literatura contemporânea brasileira o poder de ambivalência e “fixidez” do
estereótipo postulados por Homi Bhabha em O local da cultura , uma vez que essa força da
ambivalência “garante sua repetibilidade em conjunturas históricas e discursivas mutantes; embasa
suas estratégias de individuação e marginalização; produz aquele efeito de verdade probabilística e
predictabilidade que, para o estereótipo, deve sempre estar em excesso do que pode ser provado
empiricamente ou explicado logicamente”(BHABHA, 1998, p.105 e 106).
Então, embora, João Guimarães Rosa e Luiz Vilela estejam narrando na década de 1970
materializa-se nessas conjunturas discursivas mutantes o fantasma da imagem do autóctone dos
textos quinhentistas. Até mesmo porque no conto de Vilela, na voz da criança, há toda a marca
discursiva política do que é e do deve ser índio ensinado e programado pelas escolas brasileiras:
viver de tanga, estar livre na selva, possuir arco e flecha.
Rodaram mais algum tempo. Era domingo, o movimento na estrada era grande e
era preciso cuidado.
"Pai", disse o menino.
"Quê."
"Por que aquele homem gordo estava chamando o outro de índio?"
"Porque ele é índio."
"Ele é índio?"
O homem sacudiu a cabeça, olhando para a estrada à frente.
"índio de verdade, Pai?"
"De verdade."
"Mas então por que ele estava de roupa? "
"Ele é um índio civilizado."
"Quê que é um índio civilizado."
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“É um índio que deixou de ser índio."
"Ele deixou de ser índio? "
O pai não respondeu; prestava atenção no caminhão de gasolina que ia à frente,
esperando o momento para ultrapassá-lo; quando deu, ultrapassou-o, pegando
agora uma reta livre.
"Pai, ele não tem mais tanga não?"
"Tanga?", o pai voltou-separa o menino.
"O índio, Pai."
"Ah."
"Ele não tem mais tanga não?"
"Creio que não."
"E flecha?"
"Creio que não."
"Por que você fala 'creio'?"
"Porque eu não tenho certeza, e quando a gente não tem certeza a gente fala 'creio'.
Entende?"
"Creio que sim."
O pai riu e passou a mão na cabeça do menino. (VILELA, 1979, p.24)
Estar bêbado, vestido, dançando em um bar, sendo humilhado não causa um
estranhamento ao estereótipo cristalizado e fomentado anualmente nas comemorações do dia 19 de
abril, como se cocares de uma pena, distribuídos nas cabeças das criancinhas, fossem preservar as
culturas de todos os povos indígenas brasileiros. No entanto, não fosse esse dia talvez esse assunto
nem fosse abordado em sala de aula em séries iniciais, ter uma data no calendário é uma forma de
marcar a necessidade do estudo e da compreensão de nossas representações, no entanto é preciso
medidas que fortaleçam quem sabe os estudos regionais, não apenas como um local representado,
mas questionar como o símbolo serve as forças políticas de uma determinada localidade e época de
maneira arbitrária, e como esse símbolo é muitas vezes levado a exaustão sem ao menos nos
representar ou nem mesmo representar quem deveria.
Ou seja, no dito espaço democrático, que é a escola, os estudos sobre os índios até então
são negligenciados e por demais superficiais, há as aulas extenuantes de história e literatura por uma
perspectiva eurocêntrica. Pouco ou nada se aprende realmente sobre a cultura das tribos Terena,
Kadiwéu, Paiaguá, Guaikuru, Bororo, e tantas outras das quais nem ouvimos os nomes nos bancos
escolares.
O discurso racista estereotípico, em seu momento colonial, inscreve uma forma de
governamentalidade que se baseia em uma cisão produtiva em sua constituição do
saber e exercício do poder. Algumas de suas práticas reconhecem a diferença de
raça, cultura e história como sendo elaboradas por saberes estereotípicos, teorias
raciais, experiência colonial administrativa e sobre essa base, institucionaliza uma
série de ideologias políticas e culturais que são preconceituosas, discriminatórias,
vestigiais, arcaicas, “místicas”, e, o que é crucial, reconhecidas como tal. Ao
conhecer a população nativa nesses termos, formas discriminatórias e autoritárias
de controle político são consideradas apropriadas. (BHABHA, p.127)
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Citei questionar os estudos regionais como uma possibilidade de amenização dessa
diferença, pois lembro-me de ter tido contato com o assunto tribos indígenas brasileiras e em Mato
Grosso do Sul apenas no 3° ano do ensino médio, por causa do vestibular da UFMS, em 1995, este
exigia na prova de história parte de conhecimento regional, e fui contemplada com aulas de
cursinho preparatório com o artista plástico e professor Henrique Spengler, produtor de mapas do
antigo Mato Grosso no quadro negro dos percursos realizados via fluvial pelos Paiaguás, coloria os
caminhos dos cavaleiros Kadiwéus e pontilhava o nomadismo dos Guarani. Recordo de ter copiado
todos esses mapas mentais que brotavam da cabeça de meu mestre, mas na minha insignificância
estudantil e em minha ignorância acadêmica, perdi todas essas anotações.
É claro, encantei-me com aquelas aulas inovadoras, só há o arrependimento de não ter tido
a maturidade para absorver e guardar o máximo possível. Além de descobrir sobre o local que nasci
antes de eu existir, as pessoas que aqui viveram e como viveram, de que forma essas tribos se
comportavam, por onde passaram, de que maneira pintavam seus corpos e seus rostos, ficar
apaixonada por esse domínio que não estava nos livros típicos de uma adolescente, nos intervalos
escolares, a escola promovia shows porque o nosso professor de matemática, Moacir Saturnino de
Lacerda, fazia parte do grupo musical Acaba, criado em 1969 tem por objetivo desenvolver,
promover e divulgar o folclore antigo do Mato Grosso/ Mato Grosso do Sul e assim ouvíamos
diferentes canções como Kananciuê que nos ajudavam a apurar o gosto. Isso não é estudar história é
ser a própria.
(Aiopopê tse
Aiopopê tse
Aiopopê
Aiopopê
Pê
Pê
Pê
Pê
Pê
Aiopopê
Aiopopê)
Aruanã Etô é lugar das máscaras
Maste Purú é lugar dos homens
Aruanâ Etô é lugar das máscaras
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Maste Purú é lugar dos homens
Nasci na terra onde o sol se levanta
Com jenipapo urucum pintei meu corpo
Com rabo de canastra fiz flauta
Pra ter meu cantar
(Pra ter meu cantar)
Pesquei pirarucú com arupema e cipó de imbó
Mandioca braba, inhame e cará plantei
Pra alimentar meu corpo
(Pra alimentar meu corpo)
Aruanã Etô foi invadido
Meu colar, meu tacape, minhas armas
Não fazem mais sentido
(Não fazem mais sentido)
Nada vive muito tempo
Só a terra e as montanhas
Vem ver o que resta do seu povo, Kananciuê
(Kananciuê)
Vem Jurumá expulsar Anhanguera
Jaci, Tupã, filhos de Kananciuê
Ninguém quer mais a paz do que eu
na caminhada final
(Na caminhada final)
Cante comigo o seu canto
Grite comigo o meu grito
Arauanã Etô Maste purú, Kananciuê
Arauanã Etô Maste purú, Kananciuê
Tacape, cocar, mangaba, cajá
Arauanã Etô Maste purú, Kananciuê
Tacape, cocar, mangaba, cajá
Arauanã Etô Maste purú, Kananciuê
Tacape, cocar, mangaba, cajá
Arauanã Etô Maste purú, Kananciuê
Na letra da música os integrantes se colocam como um indígena em seus hábitos
cotidianos, o seu vocabulário e até mesmo rebuscado aos civilizados, transfere assim a
responsabilidade de notar o índio de si para o outro, ainda que exótico, quando se olha por essa
perspectiva é humanizado em seu canto de união. Bhabha atentou que “a função da ambivalência
como uma das estratégias discursivas e psíquicas mais significativas do poder discriminatório seja
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racista ou sexista, periférico ou metropolitano – está ainda por ser mapeada” (BHABHA, 1998,
p.106).
Nos contos tanto o narrador de Guimarães Rosa, como o pai (o homem) e o filho(o
menino) em Vilela, são o percurso para os apontamentos de o que Bhabha denominou de “uma
compreensão dos processos de subjetivação tornados possíveis ( e plausíveis) através do
estereótipo”(BHABHA, 1998, p.106). O que vai ser da sociedade sem os índios, os índios são
índios? O que e ser índio? Não será o índio apenas uma invenção da literatura para confortar o
homem e dar lhe a sensação de que a beleza e a pureza um dia existiram, mas que por sermos
humanos jamais teremos essa utopia de volta.
"E quem mais que é índio?"
"Quem mais? Há poucos índios. Há cada vez menos índios. E daqui uns tempos
não haverá mais nenhum índio."
"Mais nenhum, Pai?"
O pai não respondeu. O menino ficou olhando tenso para o seu rosto.
"Hem, Pai: mais nenhum índio?"
O pai balançou a cabeça devagar; olhava fixo para a frente - mas não era a estrada,
o menino sabia; e sabia também que quando o pai estava assim não gostava que
continuassem falando com ele.
Então calou-se também. E ficou imaginando um mundo em que não houvesse mais
índio, um mundo em que ninguém visse mais um índio e ninguém falasse mais em
índio porque não havia mais índio. Não conseguia compreender bem como seria
isso, mas sentia que se isso acontecesse mesmo seria uma coisa muito ruim e muito
triste – uma coisa tão ruim e tão triste como perder a mãe da gente. (VILELA,1979,
p.26)
Como a nossa forma de perceber o indígena é ainda quinhentista e/ou romântica, há uma
tendência em atribuir ao gentio uma imagem densa e fantasiosa de responsabilidade representativa.
Há que simbolizar a nação, a pureza o exótico. Iracema é anagrama de América, e mãe do primeiro
cearense, ostentando a miscigenação como a gênese de nossa construção identitária; Peri é o forte e
belo que se submete aos caprichos da européia Ceci, carregando os fardos da docilidade, da
amabilidade e da obediência; Jupira, o fel encarnado na beleza, sorrateira e traiçoeira é capaz de
matar os que a desejam e àquele que amou. Assim, brutalidade e docilidade são dois extremos
constantes na elaboração desse elemento.
Julgar a imagem estereotipada com base em uma normatividade política prévia é
descartá-la, não deslocá-la, o que só é possível ao se lidar com sua eficácia, com o
repertório de posições de poder e resistência, dominação e dependência, que
constrói o sujeito de identificação colonial (tanto colonizador como colonizado).
(BHABHA, 1986, p.106).
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Resquícios do herói clássico, modelado por meio de imagens medievais, tem a obrigação
de honrar o espaço que ocupa, quando na verdade além de não possuir essa consciência de nação
percebe-se que nem a nação acata esse estandarte mítico, há que se ter heróis para alavancar a
autoestima e a confiança de um povo, o problema é a nação não conseguir identificar-se nos
elementos que foram eleitos seus símbolos. Em pleno século XXI uma modelo brasileira com traços
europeus e um jogador de futebol afrodescendente são mais aceitos como ícones do que o indígena
residente em beiras de estradas ou aldeias urbanas.
CONCLUSÃO
Em função das análises, conclui-se que a literatura brasileira desde sua origem nos textos
da literatura de informação até a contemporaneidade, ao colocar o índio como personagem, o
constitui ou em uma imagem de bom selvagem, ou na imagem de bárbaro, e o que ambos os
arquétipos apresentam em comum é o inevitável processo de aculturação. Ainda percebe-se a
reverberação desses modelos mesmo em obras de viajantes modernistas, como é o caso de João
Guimarães Rosa, que embora não encontre a pureza no indígena em si, tenta encontrá-la na
linguagem da tribo Terena.
O que poucas narrativas aceitam ou propõem é o índio como um indivíduo, passível de
erros, de passos bons e passos ruins. Constrói essa imagem sempre na esperança de obter o ser
exótico, o diferente de nós. Como se o símbolo do indígena pudesse ser a afirmação do que
gostaríamos de ter de belo e puro, e a negação de nossos próprios males, como a bebida e o fato de
também passarmos por um processo de aculturação contínuo, em que não nos apegamos a tradições
e nem queremos ser identificados pelas mesmas.
Pautaram-se nesses estereótipos e criam
expectativas sempre desconstruídas por um aspecto e tentam ainda reforçar a imagem do bom
selvagem.
Nessa elaboração mental do que o outro ou o que o outro deveria ser, força-se o gentio a
ter um não-lugar, no qual na maioria das vezes só aquele que é estranho a sua realidade se
manifesta. Em suma, não há mais índios como os sonhados, e mesmo que haja o mínimo contato os
afetará, e por mais triste que seja a perspectiva, essa idealização é apenas um espelho, uma projeção
daquilo que gostaríamos de ser, e nunca o seremos. Ou seja, essa imagem do homem que perde suas
referências trata-se de um reflexo distorcido de nossa própria condição humana.
REFERÊNCIAS
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Grünnewald et al. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 57-74.
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Perspectiva, 1974. p. 147-163.
LEITE, Ilka Boaventura. As Fronteiras do Exótico: O Antropólogo e Viajante. In: Antelo, Raul.
(Org.). Identidade e Representação. Florianópolis: UFSC, 1994, v. , p. 349-359.
MOISÉS, Massaud. A criação literária. 6. ed. rev. São Paulo: Melhoramentos, 1973. 381 p.
PIGLIA, Ricardo. Teses sobre o conto. In: _____. Formas breves. Trad. José Marcos Mariani de
Macedo. São Paulo: Cia das Letras, 2004.
ROSA, João Guimarães. Ave, palavra. Nova Fronteira, 4ª edição, 1985.
TAUNAY, Alfredo D'Escragnolle Taunay, Visconde de. A retirada da Laguna - episódio da
Guerra do Paraguai. São Paulo: Ediouro. (Prestígio),
VILELA, Luiz. Não haverá mais índios in Lindas Pernas. Editora Cultura, 1979.
DALCASTAGNÈ, Regina. Renovação e permanência o conto brasileiro da última década.
Disponível em:< http://www.gelbc.com.br/pdf_revista/1101.PDF>.
Link: <http://www.vagalume.com.br/grupo-acaba/kananciue.html#ixzz3A0CvlSOp>
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RUPTURA E TRANSFORMAÇÃO NA NARRATIVA DE JOÃO GILBERTO
NOLL
RUPTURE AND TRANSFORMATION IN THE NARRATIVE OF JOÃO
GILBERTO NOLL
Luciene Veiga da COSTA (PG-UEMS)1
Eliane Maria de Oliveira GIACON (UEMS)
Resumo: O livro A máquina de ser, 2006, do autor João Gilberto Noll, composto de contos,
tematiza uma narrativa interrupta em que seus personagens são enaltecidos pelo discurso presente
no processo de construção. O autor parte da relação com o contexto abstrato empregado pela
linguagem comunicativa, a partir do espaço ficcional presente na literatura contemporânea. Ao
configurar as formas de narrar atualmente em meio a transformações decorrentes, esboça esse
panorama atual ao estruturar tal narrativa. Assim, a obra com efeito afigurativo atribui ao leitor um
espaço que o leva a refletir sobre o real de seus protagonistas, mas também a questionar o existir
dentro dessa obra literária, constituída pelo caráter significativo e inacabado dos contos esboçados
no livro. Esse efeito contrapõe os padrões narrativos presentes em nossa literatura, e apresenta
personagens que integram um paradoxo a discutir o narrar pelo viés teórico de Walter Benjamin em
suma estrutura.
Palavras-chave: Conto. Narrativa. Literatura. Paradoxo.
1.
INTRODUÇÃO
Walter Benjamin (1994), ao conceituar a estrutura narrativa a partir de seu texto o
Narrador considerando o escritor Nicolai Leskov, leva para reflexão considerações pertinentes sobre
a arte de narrar nos dias de hoje, pois ao considerar tal autor ele atribui ao seu distanciamento.
Sobre esse olhar na narrativa o próprio Benjamim analisa que a falta de experiência contribui para o
apagamento do narrador e ressalva a seguinte questão. “ Uma das causas desse fenômeno é obvia:
as ações de experiência estão em baixa e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor
desapareça”.(BENJAMIN,1994, p.198).
Explicar a versão de Benjamim (1994), também é questionar os caminhos traçados na
narrativa atual, pois até que ponto considera-se as técnicas de comunicação como processo de
transformações sociais? Benjamin a respeito da narrativa esclarece a seguinte natureza de que tem
sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária (BENJAMIN, 1994, p. 200).Isso
1
Luciene Veiga da Costa (PG-UEMS) e-mail [email protected]. Eliane Maria de Oliveira Giacon (UEMS) e-mail
[email protected]
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levaria segundo o autor o desaparecimento do narrador, que teve impacto com o surgimento do
romance e cita Dom Quixote como marco. Para Benjamim ao conceituar o romance (1994,p. 201).
“Ele não procede da tradição oral e nem o alimenta”.
O surgimento da informação, também na versão de Benjamin contribui para o
enfraquecimento da narrativa. O modernismo atrelou uma série de mudanças, e a partir do século
XIX com a burguesia, surge uma nova relação do homem com as transformações recorrentes, isso
explicaria a indeterminação do sujeito que até então se constitui de elementos que mesclam a
veemência e configurava em relação o papel do escritor, enquanto narrador. Partindo para esse
pensamento, a obra enquanto narrativa viva detém um teor de sabedoria, algo a ensinar na
experiência vivenciada pelo narrador que o romance e a informação não transmite, o primeiro está
ligado a questão histórica e o segundo por conter um teor instantâneo ligado a si mesmo, uma
verificação imediata (BENJAMIN, 1994, p.203).
Contudo, o tempo e o espaço são pertinentes na evolução da história,
e no presente
acompanhar a versão de Benjamim são cruciais para mesclar a figura do narrador em meio ao
panorama atual, em que as informações estão em níveis de instantaneidades e inquietudes e ainda
impulsionadas por uma memória de certa forma
coletiva, pois
vincula-se a narrativa a
referecialidade, ou a falta de uma figura central do sujeito moderno. Essa difusão entre narrador
leva a discutir a posição em que a literatura, parte de um meio social para descrever o paradigma de
elementos que formam essa figura do narrador hoje, ou seja, aquele que narra das experiências
vividas como o marinheiro em suas viagens ou como camponês descritos nessa visão do narrador
clássico de Benjamin de fórmula oral. Em tempos de pluralidades e consonância com um discurso
do cotidiano, volta à condição de que seria então as narrativas contemporâneas
uma
verossimilhança.
Perde a força na narrativa que não é vivenciada propondo apenas o olhar distanciado do
narrador em relação ao narrado, e então a observação daria a autenticidade a obra pois decorre da
relação com o presente por meio de suas experiências individuais.
Esse sujeito proveniente de uma ruptura em fluxo constante é bem ilustrado na
literatura do autor João Gilberto Noll, que explora essa constante com seus personagens transitórios,
identidades submersas no deslocamentos que se encontram seus “eus” em especial em seu livro À
maquina de ser, que traz 24 contos com histórias e personagens construídos na narrativa do
presente. João Gilberto Noll mergulha os personagens em histórias em que seus narradores estão à
deriva, em uma linguagem que não comunica diretamente com esse mundo, isso leva a questionar
a experiência do narrador
que cita Benjamin, contrapondo a compreender as narrativas
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contemporâneas. Partindo desse recorte discute-se neste trabalho, o papel do narrador e como novas
abordagens incorporam essa estrutura a partir da concepção temática do autor João Gilberto Noll
em especial em seu livro “ A Máquina de Ser” , tendo como corpus dois contos do livro, “Monges”
e “Rudes Romeiros”.
2 AUTENTICIDADE E SUBJETIVIDADE DA NARRATIVA
Silviano Santiago ao analisar os contos de Edilberto Coutinho, coloca como exemplo as
questões sobre o narrador pós-moderno e diz o seguinte termo. “ Quem Narra uma história é quem a
experimenta, ou quem a Vê?” (SANTIAGO,2002, p.44) Desta forma, o que seria relevante a
experiência ou a observação dos fatos
diante de um termo concreto,
para estabelecer a
autenticidade de uma obra? Assim, enquadrar tal narrador seria aquele que pressupõe da observação
para dar autenticidade à obra. E nas palavras de Santiago “O Narrador pós-moderno é aquele que
extrai de si da ação narrada”.(SANTIAGO, 2002, p.45).
Contudo, para Silviano o que engloba a comunicação devido à falta de ação, e isso
explicam as narrativas atuais, seria a observação dos fatos narrados, o foco não é mais as relações
empíricas, mas a experiência interna, a ficção que vê o sujeito interagindo sua relação consigo para
o mundo, não havendo uma linearidade. A autenticidade seria uma forma de restabelecer esse
narrador pós-moderno como um autentico ficcional.(SANTIAGO, 2002, p.46). Segundo Santiago
ainda sobre o narrador pós-moderno, ele é o puro ficcionista, pois tem de dar “autenticidade” a uma
ação que , por não ter o respaldo da vivencia , estaria desprovida de autenticidade.(SANTIAGO,
2002.p.46).Então é por meio da linguagem presente na observação que o autor configura o narrar
em meio as desestabilizações, e resgata na história sua veemência relacionada ao critério que
consiste na versão que neutralizará sua narrativa. Na versão Benjaminana em que o narrador
clássico é alguém que passa uma sabedoria, mas em tempos em que as experiências estão em baixa,
o narrador pós-moderno do qual refere Santiago encontraria a sabedoria na observação enaltecida
pela linguagem cotidiana . E assim, nas palavras de Benjamim “O Narrador é a figura na qual o
justo se encontra consigo mesmo”.(BENJAMIN, 1994, p.222)
Nessa concepção novas abordagens narrativas vão de encontro com a literatura
contemporânea, e abre espaço para discutir o papel do escritor em meio as transformações que
contextualiza com essa temática, que distancia o narrador de sua obra, em que os moldes
informativos incorrem em processos de representação do sujeito com a produção literária. Para
refletir sobre o narrador pós-moderno é certo que o próprio resgata a observação a sua volta e com
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o olhar no mundo estigmatizado como o contemporâneo, situa-lo como expressão de criatividade, é
de certa forma subjetiva em sua ordem ficcional.
A estrutura narrativa também conceitua esse narrar associando o sujeito como
complemento importante em seu processo de construção de identidade do personagem, que baseado
a sua volta apropria-se de todo um estilo de vida com reciprocidade que o mundo tem entre a
obra. Seria a subjetividade a explicação para o distanciamento do narrador?
Nizia Villaça traz para a reflexão os seguintes questionamentos. “O que é escrever
quando não é mais representar? O que se narra quando, paradoxalmente, não se pode
narrar?”(VILLAÇA, 1996, p.9).Em tempos contemporâneos, discutir o lugar na nossa literatura
para Villaça, é considerar que existe diferentes subjetividades e leva para a reflexão considerando o
tempo e o espaço ficcional e diversos critérios como tendências tão questionadas hoje. David
Harvey , “ vê o pós-modernismo a si mesmo de modo bem mais simples na maioria das vezes como
movimento determinado e deveras caótico voltado a resolver todos os supostos males da
modernidade”.(HARVEY,1992, p.110)
Nese caso estaríamos diante de um processo de evolução em que a literatura não poderia
fazer e não teria lugar marcante se não encontrasse diante de todos os processos e formas de narrar,
um paradoxo com as transformações históricas ao longo de anos. Para Villaça, desta forma, a
figura do sujeito importante para a filosofia, psicanalise e hermenêutica, não é a preocupação
primordial na literatura, pois se institui como ser substancial, ou seja, é mais um componente em
tempos de representação, pois está determinado por uma ação exterior.( VILLAÇA, 1996, p. 34). A
questão do sujeito é marcada por toda uma carga de transformações e tematizações deste a questão
de identidades do sujeito cartesiano, até as ideologias que fizeram repensar a condição do sujeito
principalmente a partir dos anos 60, em que se discute as faces dos sujeito contemporâneo.(
VILLAÇA, 1996, p.37). Na concepção do multiculturalista Stuart Hall (2002.p.10), “o sujeito esta
dividido em iluminista, individuo centrado, sujeito sociológico, este reflete entre o interior e
exterior, e o sujeito pós-moderno que é justamente o sujeito que não tem uma identidade fixa.”
Percebe-se que aquela identidade ao longo da história reflete sobre os processos, como o
cientificismo e a globalização que o vêm descentrando. Uma questão pertinente em torno da
construção da identidade, é uma narrativa de si mesmo e, portanto está ligada a história e a
memória. Para Villaça (1996, p.35) “A ideia de sujeito seria a subordinação, face a perda
progressiva dos grandes referenciais antigos a modernidade, incluindo até o momento
contemporâneo”.
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Desta forma é imprescindível dizer que enquadrar a literatura nos padrões já citados
aqui, na visão do narrador pós-moderno como desafio para contextualizar a visão do sujeito em
meio às transfigurações que apresenta a discussão, é em torno de uma subjetividade. Assim, o
panorama contextual segundo Villaça, vai criando novas versões, interpretações , vai explorando
em subjetividades que se configuram de forma plural. (VILLAÇA, 1996, p.35).
A relação com uma pratica social, que se transforma de acordo com seus conceitos
ideológicos, podendo estar ligados a uma visão política ou religiosa, e discutir o lugar do sujeito
e/ou individuo, diante de tais praticas em tempos de individualidade, seria de certa forma uma
transcendência do senso comum.(VILLAÇA, 1996,p. 47).
Nesse termo Villaça descreve o sujeito na visão de Freud e Nietzsche construída entre
dois polos: o da racionalização e o da subjetivação. (VILLAÇA, 1996, p.48). Questiona-se então o
sujeito como um ser que experimenta sua própria experiência. Ainda no conceito de Nizia Villaça,
diz que:
relaciona ao descrever a representação exercida pelo sujeito pós-moderno
caraterizado pela troca e posse em uma visão no mercado monetário e o sujeito
anônimo que surge com a massas caracterizado por uma diferenciação, pois
suas experiências são voltadas para si.(VILLAÇA, 54).
Conceituar no pensamento da subjetividade para Villaça é também discutir a
arbitrariedade do signo a mercê de uma linguagem plural em meio a uma sucessão de simulacros,
representados pela cultura de produção, seria uma ordem de equivalência diante do mercado
industrial. Seria a falta de referencialidade e leva o signo na literatura a alternar entre o sujeito e o
objeto. Nesse caso seria um questão de equivalência entre a realidade e um retrato do sujeito
representado como objeto do mundo, ou seja a realidade reconstruída na óptica do leitor. A noção
de que se tem no narrar, todo processo de construção de um personagem que varia de acordo com o
contexto histórico e deixa o consenso final de criatividade da obra, na visão do leitor.
3 JOÃO GILBERTO NOLL NA ESTEIRA DA CONTEMPORANEIDADE
Em meio a esteira literária contemporânea dos anos 80 em tempos de democracia surge
João Gilberto Noll, com uma marca de indeterminação em sua escrita que configura sua narrativa
explorando a linguagem e dentro desse panorama de subjetividades e tantos significantes. João
Gilberto Noll é escritor de contos, romances e suas obras já foram adaptadas para o cinema e teatro.
Definir o narrador de Noll em um período que se estabelece em rupturas é observar seu dialogo
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próprio de interlocutor que se comunica com um estilo próprio, com o mundo ao mesmo que sua
linguagem
incorre entre realidade e a irrealidade, subjetividade e real,
configura um certo
desconcerto do “eu” diante desse mundo de descontinuidades. A sua relação com a linguagem é
direta e molda-se em um discurso que ilustra seu personagem entre a ficção e o presente que se
manifesta na compreensão de um mundo em que as relações emergem em um fluidez. A linguagem
de Noll está atrelado a esses momentos instantâneos lançado a experimentos de uma vida,
debruçados em símbolos representando o sujeito a deriva desse mundo fagocitado e resignado pela
velocidade do tempo.
A respeito do escritor de Noll, ainda é Nizia Villaça que diz:
O contexto dos livros de Noll é semelhante ao que deflagra a literatura dita de
simulacro, onde o real e copia não se distinguem, mas a postura de Noll
não é a de explorar o pastiche, a citação, a intertextualidade, o déjà vu,
jogando em cena um sujeito fraco do contemporâneo que se distrai em
consumir o consumo que se acomoda ao clichê. Em Noll, a subjetividade.
caminha para a neutralização e a autodestruição.(VILLAÇA, 1996.p.105)
Definir João Gilberto Noll na condição de escritor e propor na perspectiva do narrador
de Benjamin ao estruturar a narrativa, é um confronto com a tradição, mas em tempos ficcionais
de indefinição, a um segmento entre o personagem e o mundo. Segundo o próprio escritor ao
definir seu posicionamento sobre sua narrativa, na perspectiva do romance ficcional diz que :
Nunca tive a intenção de desestruturar a narrativa do romance tradicional. É
uma questão, eu diria, de fundo neurológico: não sei contar sem esse
simultaneísmo entre o que é a chamada realidade do personagem e suas várias
possibilidades ideais. (NOLL, entrevista à revista livre Opinião, 2013)
Karl Erik Schollhammer sobre a narrativa de Noll diz que:
se move sem um centro, não ancorada num narrador autoconsciente ; seus
personagens se encontram em processo de esvaziamento de projetos e de
personalidade, em crise de identidade nacional, social e sexual, mas sempre a
deriva e a procura de pequenas e perversas realizações do desejo
(SHOLHAMMER, 2009,p.32)
Constata-se que a linguagem em Noll é um traço que oscila entre o sujeito narrado e suas
experiências com o mundo, realização e irrealização, mas sujeitos que tornam-se andarilhos nesse
mundo pelo fato de serem suscetíveis a essas identidades no complexo de interdependência do
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outro. Seus personagens sempre são seres desterrados, sem família e seres errantes em busca de
algo e isso é um marco no qual o período que vivenciamos acarreta em dimensões contemporâneas.
Noll ao se referir a entrevista cedida a revista Candido do estado do paraná (2012),se considera um
escritor metafisico. Na entrevista, revela que a sua formação foi formada pelo existencialismo, não
poderia mudar para a geração high-tech , sua preocupação é a autenticidade e isso é importante
para o romance.(NOLL, 2012).Segundo Manoel da costa Pinto (2004.p.118), “na obra de João
Gilberto Noll há dois personagens fundamentais: um é o protagonista anônimo e o outro é a própria
linguagem”.
Um não dissocia do outro e a linguagem é o que dá efeito de deslocamento, de fuga, os
personagens de Noll são sempre os mesmos caracteriza-se como um ser errante, estão sempre
realizando uma travessia geográfica e existencial (PINTO, 2004,p.119).Seu gênero seria o reflexo
da urgência que habita nossos dias ou a possibilidade de situar as identidades no período em que os
fenômenos sociais imanem uma narrativa com discursos em que seus personagens estão deslocados
a busca incerta que ultrapassa a imaginação. Noll apresenta uma linguagem em especial no seu
livro de contos as inquietudes de um cotidiano, seria justamente aquele sujeito descentrado de Hall.
Seus narradores possuem uma voz que contempla o objeto que dialoga no jogo de linguagens da
musicalidade as vezes em lírica, as vezes grotesca. A narrativa que se dá pelas experiências de
seus personagens que absolvem do mundo suas vivencias intrinsicamente.
Noll em sua influência se considera um cinéfilo , tem um pendor pela imagem e isso o que
faz como narrador pulsivo, relata que seus personagens são políticos porque são subjetivos seus
personagens sempre são solitários pois muda-se as histórias mas os protagonistas são os mesmos e o
próprio Noll ao se referir a seus personas. “ Acho que, realmente, falar-se de solidão hoje é um ato
político.”(NOLL, 2012).Como compreender o escritor de Noll em um mundo com ausência de
subjetividades que se restabelece em camadas e em imagens, que ilustra o sujeito como proveniente
de uma ruptura ?
O narrador as avessas em instantes ficcionais está bem ilustrado no livro de contos, A
máquina de ser de 2006 , o livro é constituído pelos fragmentos da vida infra-humana como diz
Noll , o ser como parte desse mundo (máquina) a ideia de fluidez desterrada, o ser em busca
constante. No livro A máquina de ser, Noll o esboça a urgência, seria o deslocamento desse ser,
apresenta uma linguagem enaltecida pela inquietudes em personagens que parecem estar na
contramão de suas realidades em seus 24 contos. O livro aborda também o retorno de João
Gilberto Noll ao conto, pois iniciou sua carreira literária em 1980 com o livro de contos “ O cego e
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a Dançarina” e de lá, ele participou do cenário literário contemporâneo com romances e teve suas
obras adaptadas para o cinema e o teatro.
Claude Daflon dos Santos ao conceituar A Máquina de Ser, diz que a sequencia de histórias
do livro tem em comum eixos dados pela linguagem e pela problemática discutida e personagens,
seria o processo de criações do ser e escritor.(SANTOS, 2007,p.44).O Livro então, leva a reflexão
sobre as muitas identidades contidas nesses contos e discute pelos viés das imagens um subjetivação
ambígua em que o escritor leva o leitor a traçar os caminhos em flashes de imagens, articuladas em
seu cotidiano muitas vezes fatídico a mercê de uma sociedade que mergulha em descontinuidades.
Seria traços de indeterminação que configura a narrativa de Noll mas também colocaria a obra
diante dos temas que embalam, A Máquina de ser?
Paulo Scott (2006,) ao escrever a orelha do livro diz:
A máquina de ser, revela que o livro contempla uma diversidade de narradores e
atmosferas, cujo encadeamento confirma e, ao mesmo tempo renova a habilidade
que o autor tem de surpreender seu leitor, não de assusta-lo , eletriza-lo, ou
qualquer desses rótulos e promessas que figuram nos introitos editoriais, mas de
verdadeiramente, desestabiliza-lo, na medida em que revela novas, profundas e
inesgotáveis possibilidades de ser.(SCOTT, 2006)
Então estamos diante de uma escrita que sintetiza a figura do narrador em dialogo com o ser
a cada conto que revela o livro, seria uma forma de fixar a cada página aplicada a um intenso
contato com as atmosferas vividas por seus personagens, seria uma ressonância aplicada a esse
presente ficcional mas contemplativo do eu. Desta forma, são nos contos Rudes Romeiros e
Monges que explora os efeitos que representa a escrita em sua ordem ficcional .
No conto “Rudes Romeiros” do livro o narrador é alguém que encontra uma a mulher a
beira do suicídio no terraço de seu prédio, a mesma encontra-se em um momento alucinógeno, ao
tentar relatar um sentimento amoroso, por alguém que chama de mestre, o narrador a leva para seu
apartamento e ao ver a mulher em estado de alucinações com um mestre, decodificado em um
Jesus, o narrador personagem explica a ela que é ateu. Seria uma ambiguidade, o real imposto à
imaterialidade, entre a personagem personificada na matéria com os lapsos de alucinações e
mentalmente deseja ter o filho do homem. O Narrador ao insinuar esse encontro amoroso com a
estranha, seu interesse em relação para com ela seria carnal, que resplandecia em um ato sexual.
Porém a personagem estaria numa dimensão existencial da alma, acredita que deveria ter um filho
e ao ver aquele homem acredita que este seria aquele que conceberia tal ato. O conto que relata
apenas alguns instantes, também leva a questionar como nos dias em que prevalece a razão, pode
compreender o gnóstico da fé, pois seria a personagem a procurar na figura bíblica o filho do
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homem, poderia então se questionar o fato de haver um novo evangelho. A personagem ao ser
questionada sobre esse mestre disse que não era qualquer deus, pois ele se fundamentava como o
verdadeiro porque tinha se encarnado na pele humana e sofrido a sangrenta condição.(NOLL, 2006,
p.102).
Seria então uma falsa profecia que ronda os dias de hoje ou uma falta de fé que leva as
pessoas a participar da máquina? O corpo então separa o mundo exterior sitiado pela máquina e
uma consciência de imortalidade. Uma insinuação de Noll ao utilizar o corpo como linguagem
textual.
A Narrativa presente insinua uma ambiguidade na representatividade dos personagens, de
um lado um corpo desprovido a mercê do estado substancial da alma que se reencarna na vida, vida
que ressurge da morte, pois o relato inicia-se com a possibilidade de um suicídio, o começo de um
fim mal resolvido pela personagem, e por outro lado o corpo como matéria de desejo, porém na
personagem surge o renascimento no narrador consciente a morte do sujeito. “Olhei-me me
perguntei se não tinha mais nada a retirar de mim”.(NOLL, 2006, p.105).Ao final a estranha quase
suicida, foge e o narrador personagem volta então a compor a máquina, volta a realidade presente, a
matéria , volta a sua vida, esvaziada e aniquilante e ressalta ironicamente. “De novo ateu, e que, no
entanto acabara de gerar o filho do homem...”( Noll, 2006,p.105).Nesse conto também podemos
notar como o personagem de Noll seria esse ser representando, mas que resulta na condição da
personagem como alguém a deriva de seu tempo, não importa o espaço temporal mais a perspectiva
territorial . Tem a impressão que o imaginário ao contrapor-se a realidade atribuindo uma
ambiguidade previsível, pois se possibilita na linguagem encontrar traços de autenticidade que
Silviano propõe para a narrativa contemporânea.
Porém notam-se os traços minimalistas de Noll que instiga o máximo a linguagem que
possibilita contornar os efeitos, que servem para refletir sobre o que o caracteriza como escrita
marcante na narrativa de Noll: a imagem da mulher ou o homem ateu, os corpos e o ato em si, que
servem como hiato entre o real e o irreal e que incorpora o mecanismo de representação na
literatura de Noll.
No conto “Monges” o personagem Narrador de Noll é um frequente assíduo de Shopping
Centers, conhece pouca gente em uma cidade não especificada, remete a uma metrópole qualquer,
e que vê um homem refletido na vitrine, o que o perturba ao temer em virar o rosto e encara-lo.
Ao entrar no cinema vai até o banheiro e encontra o homem, logo chega um policial e em
uma batida pede o número do RG. Depois o personagem sai do banheiro assoviando ironicamente e
logo depois escuta um tiro.
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O conto cogita o jogo das identidades na concepção do estado sitiado pela máquina, pois
somos vigiados dentro de bolhas, monitorado em shoppings. As identidades que se misturam em
uma estrutura sitiada. Noll na seguinte passagem do conto insinua uma certa paranoia do narrador
personagem ao relatar uma relação ambígua entre a imagem misteriosa:
Num passeio pelo Shopping, eu fitava um camisa lilás no outro lado de um
vidro, a minha uma imagem um pouco refletida sobre ela, nesse ar um , evasivo
em face da presteza de mais um dia útil. Foi ali que de um lance notei o rosto dele
ao lado do meu, no vidro. Esse rosto era de pronto misterioso, feito encarnado
um chamado e outra esfera que não a daquela no shoppings, em pleno jogo dos
passantes (NOLL, 2006.p.84)
A imagem de um homem estranho seria realmente de outra pessoa ou as identidades que se
misturam com a mesma face, seria o olhar da máquina de consumo em sua própria imagem? Em
outra parte o narrador ao se encontrar na praça de alimentação faz a seguinte observação em
relação ao ambiente tomado pelo branco, que é explicado pelo narrador personagem. “Sentado na
praça de alimentação eu olhava cada coisa como se nada fosse apenas um detalhe, mas uma
totalidade em medidas microscópicas.”(NOLL, 2006, p.85). As cenas do conto em que o narrador
deixa no ar o vazio contido nas cidades a falta de relacionamentos que são estilhaçados, não uma
concordância linear apenas relatos desordenados na história, pois o personagem vai relatando cenas
desconexas, se faz na falta da experiência metódica, um olhar lançado em um branco especificado
pelo narrador personagem, como ir na praça da alimentação , entrar ao cinema e por fim, ser
abordado no banheiro pelo policial. O RG , insinua um incógnita pois o documento não representa
nossa identidade individual, tem um pendor coletivo é um comprovante universal que engloba a
todos no mesmo complexo, vigiado pelo sistema da máquina.
Contrapondo esse marasmo de incógnitas que embala o conto enquanto, característica de
uma ambiguidade, como o cara que encontra na vitrine e depois no banheiro, o tiro que escuta sem
especificar de quem e para quem, são esses traços entre linhas que questiona os fatos reais do
conto. O espaço em que desenvolve o conto também pode se considerar uma metáfora, pois somos
o tempo todo vigiado em shoppings, está no controle o imaginário da ficção, leva a discutir a
linguagem como meio de comunicação em que a literatura é justamente uma forma de
representação é a forma de escapar do mundo.
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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pensar em tempos de contemporaneidades é pensar também em conceituar o cenário
literário em uma linguagem que devido as transformações históricas e culturais, no teor das
informações , também pressupõe que a narrativa esteja num momento que se relaciona com esse
novo estilo de comunicação.
A narrativa é elucidada pelo momento e reflete o narrar diante das relações fluidas e de
tempos de instantaneidades .Os sujeitos, na percepção do livro A Máquina de ser, não estão
fixados na matéria viva, mas estão de passagem em ambas as histórias, torna-se a marca na
escrita do Noll quanto a representação narrativa atual e relatada pelo olhar do observador, em uma
leve ressonância, que deixa para o leitor o contexto final. Assim a história parte do momento, os
personagens relatam o presente e a linguagem é o que torna impulsionante na descrição que dá a
autenticidade.
Portanto, o contemporâneo é o resultado de todas as transformações culturais que resultam
em elementos que marcam o tempo e o espaço, que se transforma, molda as novas interpretações, e
estabelece a maneira de trilhar os caminhos em que a escrita literária representa o homem em
relação a sua própria história e liga a sua temporalidade.
REFERÊNCIAS
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Cultura :Obras Escolhidas. Tradução Sérgio Paulo Rouanet; Prefácio Jeanne Marie Cagnebin. São
Paulo: Brasilense,1994.
HALL, Stuart. A Identidade cultural na pós-modernidade. DP&A Rio de Janeiro,2006.
HARVEY, David. Condição Pós-moderna.Tradução: Adail Ubirajara Sobral; Maria Stela
Gonçalves.Loyola, São Paulo,1992.
NOLL, João Gilberto. A Máquina de ser, contos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
PINTO, Manoel da Costa. Literatura Brasileira Hoje. São Paulo: Publifolha, 2004
SANTIAGO, Silviano. Nas Malhas Da Letra. Rio de Janeiro .Rocco.2002.
SANTOS Claudete Daflon. Ser Escritor:In Alguma Prosa: Ensaio sobre Literatura Brasileira
Contemporanea.Org. Giovanna Dealtry, Masé Lemos, Stefania Chiarelli.Rio de Janeiro: 7 Letras.
2007.
SCHOLLHAMMER, Karl Erik. Ficção Brasileira Contemporânea.Rio de Janeiro.Civilização
Brasileira .2009.
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SCOTT, Paulo. Orelha, A Máquina de Ser, contos, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
VILLAÇA, Nizia.Paradoxos do Pós-moderno: Sujeito & Ficção. Rio de Janeiro.UFRJ,1996.
Revista Cândido Jornal Da Biblioteca Pública do Paraná; Um escritor na Biblioteca. Disponível
em: <http://www.candido.bpp.pr.gov.br/modules/noticias/article.php?storyid=25>
Acesso em: 10 de Ago de 2014.
Revista Livre opinião; Ideias Em Debate. Disponível em: <http://livreopiniao.com/2014/06/09/joaogilberto-noll-nunca-tive-a-intencao-de-desestruturar-a-narrativa-do-romance-tradicional> Acesso
em 25 de Ago de 2014.
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A ESCRITA DO MÚLTIPLO: EM CENA, A HIBRIDEZ DE GÊNEROS LITERÁRIOS EM
GROGUE, DE TONI BRANDÃO
THE MULTIPLE WRITING: IN SCENE, THE HYBRIDITY OF LITERARY GENUS OF
GROGUE, OF TONI BRANDÃO
Luiz Fernando Marques dos SANTOS (PG-UFMS/CPTL)1
Wagner CORSINO (UFMS/Unicamp)2
Resumo: Ancorado nos pressupostos teóricos de Calvino (1990); Pavis (1999); Friedman (2002) e
Stalloni (2003), o objetivo deste trabalho é apresentar um panorama da linguagem híbrida do
escritor contemporâneo Toni Brandão. Autor de romances, peças teatrais e textos no universo
virtual, Brandão traz, para a arena narrativa, questões relacionadas ao convívio social
contemporâneo. A análise tem como foco a narrativa juvenil Grogue (1997) e sua constituição se dá
por meio do viés de hibridização de gêneros literários, que se constitui por uma constante relação de
interdependência. O processo analítico se configura no plano dialógico; assim, concentrar-se-á em
verificar os aspectos recorrentes dessa inter-relação de gêneros (narrativo, cinematográfico e
dramático), os quais transitam entre o narrado (discurso do narrador) e o modo dramático (discurso
das personagens), contribuindo para que a nova safra de autores contemporâneos, marginalizados
pelo cânon literário, ganhem um espaço maior no âmbito acadêmico por meio dos estudos da crítica
biográfica, conforme preconiza Souza (2002).
Palavras-chave: Literatura brasileira contemporânea. Hibridização de gêneros literários. Discurso
cinematográfico. Discurso dramático. Toni Brandão.
1 INTRODUÇÃO
Ao refletirmos acerca da literatura juvenil, deparamo-nos com os estudos do professor José
Nicolau Gregorin Filho (2011, p. 31) o qual observa este gênero como “um discurso que dialoga
com outras manifestações textuais no conflito de vozes dessa sociedade, ou seja, ele não é um
veículo à parte [...] está carregada de valores ideológicos e de conflitos sociais”.
E é nessa verve que a literatura juvenil brasileira tem ganhado uma nova safra de autores
que, mesmo diante de novas tecnologias e diversas mídias eletrônicas, têm conquistado espaço
significativo nas estantes dos leitores. Dessa forma, a tarefa a do escritor contemporâneo torna-se
1
Mestrando em Estudos Literários. Programa de Pós-Graduação Mestrado em Letras. Universidade Federal de Mato
Grosso Sul, Campus de Três Lagoas. [email protected]
2
Professor Associado da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus de Três Lagoas.
[email protected]
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difícil, pois compete diretamente com uma infinidade de informações instantâneas e deve
conquistar um leitor que convive nesse universo.
No entanto, a nova safra é marginalizada pelo universo acadêmico, especialmente ao
priorizar a repetição de temas e obras em sua grade curricular. No entanto, sem desmerecer as bases
teóricas e literárias que constituem o cânone literário, destacamos a relevância em observar as novas
produções artísticas que permeiam à margem do cânon.
Dessa forma, propomos trazer à baila uma reflexão acerca do autor contemporâneo Toni
Brandão, o qual é produtor de ideologia e que constitui o universo do jovem leitor, mas que ainda é
desconsiderado pela academia por não englobar a listagem de autores já consagrados pela crítica
literária. Nessa direção, Stuart Hall (2005) destaca, sistematicamente, que as diferenças culturais
saltam dos lugares mais inesperados da sociedade e se fazem presentes na estética do cotidiano.
A contemporaneidade, locus onde se insere esses autores, é impulsionada pelo
desenvolvimento científico e tecnológico; refletida globalmente por um aglomerado de
informações, sejam elas transmitidas e retransmitidas, em segundos, por diferentes instâncias
comunicativas, o que evidencia um dos conceitos propostos por Calvino (1990), a “multiplicidade”,
refletida em nossa fonte de conhecimento e entretenimento mais antiga, a literatura.
Segundo Calvino (1990), a multiplicidade é capaz de proporcionar o entendimento da
constituição da literatura moderna, à medida que esta é influenciada constantemente de forma direta
ou indireta por variadas fontes de comunicação. Dentro dessa perspectiva, o autor assevera que:
[...] os livros modernos que mais admiramos nascem da confluência e do
entrechoque de uma multiplicidade de método interpretativos, maneira de pensar,
estilos de expressão [...] a força centrífuga que dele se liberta, a pluralidade das
linguagens como garantia de uma verdade que não seja parcial (CALVINO, 1990,
p. 131).
Nessa verve, destacamos Toni Brandão como um dos autores contemporâneos que tem
cumprido a difícil e incessante tarefa de conquistar, além dos leitores, um espaço no cenário da
literatura infanto-juvenil brasileira. Seu trabalho como escritor, dramaturgo, roteirista e diretor o
permitiu que transitasse por uma variedade de linguagens e tecnologias, possibilitando conhecê-las
e misturá-las, criando uma hibridez sólida e consistente, a qual está refletida na constituição de suas
narrativas.
2 POR TRÁS DAS PÁGINAS: QUEM É TONI BRANDÃO?
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Antônio de Pádua Brandão, ou mais conhecido como Toni Brandão, é um representante da
nova safra de autores contemporâneos da literatura infanto-juvenil brasileira. Natural de São Paulo,
formou-se em Propaganda e Marketing pela ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing).
As suas publicações e adaptações de clássicos para o público infanto-juvenil somam mais de 50
livros que abordam questões polêmicas e cotidianas do universo infanto-juvenil.
Ao adaptar seus romances para o teatro, Brandão foi contemplado com o prêmio APCA
(Associação Paulista de Críticos de Arte) com Cuidado Garotos Apaixonados (1998). Também
ganhou o prêmio Coca-Cola, com o qual financiou a adaptação de Grogue (1998), cuja produção
conquista o prêmio Mambembe e troféu Panamco de atuação. Adaptou também outros romances
como Foi ela que começou, foi ele que começou (1997); Guerra na casa do João (2003) e Gata
Borralheira (2005); assim, seus prêmios são referência de sua habilidade como dramaturgo.
Em meados da década de oitenta, Brandão inicia sua carreira como colaborador do caderno
Folhinha, publicação destinada ao público infantil do jornal paulista Folha de S. Paulo.
Impulsionado pela possibilidade de escrever num veículo de comunicação de grande impacto, lança
o seu primeiro livro Nanica, minha irmã pequena (1989), em parceria com a Editora
Melhoramentos. Em abril de 1991, sai no caderno Folhinha o primeiro artigo de Brandão como
jornalista, intitulado “Crianças pesquisam para folhinha”.
Toni Brandão, ao unir sua paixão pela literatura com outras mídias, produz a narrativa Tutu,
o menino índio em parceria com a cantora Rita Lee. Após esta publicação, lança o CD-ROM Tutu, o
qual remonta o mesmo enredo do livro e contou com a narração da atriz Marisa Orth, além de
conter canções inéditas produzidas por Toni Brandão e Rita Lee. Com o feito, Brandão passa a ser
considerado um artista multimídia, e nessa direção, surge o lado roteirista do multifacetado autor.
Com projetos para a internet, como a página terra.com, lança, em 1997, Crimes no parque,
conquistando o leitor/internauta com vinte capítulos interativos que visava desvendar os articulados
crimes, especialmente roubos e assassinatos que tinham como cenário os parques da cidade de São
Paulo.
No âmbito televisivo, produziu no ano 2000 os seriados As aventuras de Zeca e Juca e
Irmãos em ação, apresentados na programação matutina da Rede Globo de Televisão Bambular, ou
mais conhecida como TV Globinho. Em 2001, participou do processo adaptativo do seriado
inspirado nas narrativas de Monteiro Lobato, Sítio do Pica-Pau Amarelo transmitido pela mesma
emissora. A experiência realçou o contato do escritor com a utilização de recursos
cinematográficos, especialmente a linguagem curta e coloquial, somada aos aspectos visuais que
transparecem constantemente em suas obras.
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A experiência televisiva abriu vários caminhos para Brandão. Novamente no espaço virtual,
em 2013, participou do desenvolvimento do projeto Livro e Game patrocinado pelas empresas de
telefonia Telefônica e Vivo. Realizado pela Virtual Educação Cultura e Comunicação, o escritor
contribuiu como roteirista, tendo como objetivo permitir aos jovens o contato com clássicos da
literatura brasileira (Dom Casmurro; O cortiço; e Memórias de um sargento de milícias), por meio
de uma leitura interativa no ambiente virtual, propiciada a partir de jogos interativos que necessitam
da realização da leitura para conseguir ganhar pontos e conquistar a vitória no jogo.
Toni Brandão prioriza, como fatores condicionadores de suas narrativas, os problemas
vivenciados pelo universo infanto-juvenil; suas motivações referem-se intimamente às
problemáticas do cotidiano deste universo. Assim, ao abordar temas como separação dos pais,
ciúme de um irmão menor, primeiro amor na infância, falta de interesse e medo do futuro, Toni
Brandão insere o jovem como protagonista de suas obras, concedendo-lhe um espaço de destaque,
diferentemente das histórias antes estigmatizadas pelo viés de escrita pedagógica.
A literatura de Brandão não se aproxima do caráter pedagogizante e moralizante
preconizado pelo molde fabular tradicional. O escritor possibilita ao leitor refletir acerca das ações
de seus personagens, sem julgamentos ou imposições. Assim, o leitor possui a liberdade de
identificar-se ou não com os temas, com o enredo e com as consequências advindas das ações das
personas contidas no espaço diegético.
A identidade do sujeito jovem contemporâneo ganha destaque central nas narrativas de
Brandão, à medida que o escritor cumpre o seu papel como representante desse grupo social. Assim,
segundo Hall (2006, p. 13) essa identidade trata-se de “uma celebração móvel: formada e
transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados
nos sistemas culturais [...]”.
Seguindo as concepções de Eneida Maria de Souza (2002), pretende-se iniciar a construção
de uma fortuna crítica que represente a hibridez e multiplicidade das narrativas de Toni Brandão
que concede destaque ao sujeito jovem. Contudo, priorizaremos apenas a produção da década de
noventa do autor. Tal escolha justifica-se porque parte das suas narrativas constituem-se a partir de
um viés mercadológico, e o objetivo desse trabalho recai para as produções populares, as quais
priorizam, em sua verve, questões sociais capazes de representar a literatura brasileira infantojuvenil.
3 DAS PÁGINAS, AOS PALCOS, ÀS TELAS: A HIBRIDEZ BRANDIANA
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De acordo com Souza (2002, p 111), ao iniciarmos a construção da fortuna crítica de Toni
Brandão, consideramos a literatura por sua “natureza compósita, englobando a relação complexa
entre obra e autor, possibilita a interpretação da literatura além de seus limites intrínsecos e
exclusivos, por meio da construção de pontes metafóricas entre fato e ficção”.
Dessa forma, traçamos um panorama da recepção crítica das obras de Toni Brandão no que
concerne as suas principais obras infanto-juvenis. Convém ressaltar que, também destacaremos
parte de uma entrevista concedida pelo escritor ao Programa de Pós-Graduação em Letras, Campus
de Três Lagoas, com intuito de reforçar a ideia de hibridez em suas produções.
Segundo Dib Carneiro Neto, crítico do jornal O Estado de S. Paulo em 20 de julho de 2001,
Toni Brandão é “o rei da quinta-série” devido à consolidação de novos leitores a partir de suas
narrativas. Assim, partimos desse postulado para verificar as produções do autor como o
representante desse segmento e averiguar a validade do título condedido pelo jornal.
Em setembro de 1989, o jornal Folha de S. Paulo concede destaque ao primeiro livro de
Toni Brandão, Nanica, minha irmã pequena (1989) com a reportagem “Algumas histórias que
tratam de sua saúde”, abordando um breve resumo da obra do escritor, relacionando-a por sua
temática que priorizava o relacionamento entre irmãos.
Em novembro de 1991, Brandão lança seu segundo livro Aquele tombo que eu levei, cuja
temática recai nos esportes radicais, especialmente o skate. O livro recebe uma chamada de
lançamento na Folha de S. Paulo e uma reportagem intitulada “O skate entra na história” que
comenta “Histórias assim se parecem com a vida real. Ao ler, você compara as aventuras da turma
do livro e as que você vive com sua turma”.
Brandão lança o seu terceiro livro em agosto de 1992, Falando sozinha; o laçamento foi
anunciado pela Folha de S. Paulo, destacando um brevíssimo resumo da narrativa.
Em abril de 1994, novamente com a temática infantil voltada para o convívio familiar, lança
Foi ela (ele) que começou. Em agosto do mesmo ano, o escritor publica o seu livro mais conhecido
e premiado Cuidado Garotos Apaixonados, pela editora Melhoramentos.
Já em agosto de 1995, Brandão lança uma fita de áudio com a narração de seu livro, com a
reportagem na Folha de S. Paulo “Para ouvir no walkman e brincar no computador”, destacando
“Nelas, atores pré-adolescentes representam os personagens. Há também efeitos especiais de som,
como se fosse uma novela de rádio”.
Com o sucesso do primeiro áudio livro, em setembro 1996, Brandão lança o livro e dois CDROM Perdido na Amazônia, em três idiomas: português, inglês e espanhol. Destaca-se, nessa
produção, a interativade e o conteúdo narrativo.
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Em setembro de 1997, o diretor Roberto Lage adapta o texto de Toni Brandão Foi ela(ele)
que começou para o público infantil no teatro Bibi Ferreira, em São Paulo. Com a repercursão do
texto de Brandão no âmbito teatral, o escritor conhece Débora Dubois, a qual tinha pretensão de
seguir carreia como diretora teatral. Firmada a parceria, estreiam em abril de 1998 com o espetáculo
premiado Cuidado Garotos Apaixonados ao lado de atores que hoje são reconhecidos
nacionalmente: Júlio Rocha, Marcos Damigo, Jerusa Franco, dentre outros atores que compunham o
grupo Barata Albina.
Sob o título “Triângulo amoroso é tema de peça teen”, Mônica Rodrigues Costa, jornalista
da Folha de S. Paulo, destaca, em maio de 1998, o sucesso do espetáculo no teatro FAAP “O mérito
do espetáculo é tratar o tema com naturalidade, como um acontecimento entre outros na infância,
por meio de um texto de qualidade superior à média. O enredo concentra-se no tema central, desde
os diálogos até a entrada e saída dos cenários no palco”.
Impulsionado pelo sucesso do espetáculo, Brandão e Dubois concorrem e ganham o Prêmio
Coca-Cola de Apoio ao Teatro em 1999. Assim, financiam a produção do seu segundo espetáculo,
também adaptação de um de seus romances. Nesse interstício, entrava em cena a narrativa Grogue
(1997) que, no entanto, não ganha repercursão como o anterior. No entanto, em apresentação ao
romance Grogue (1997), o escritor e também crítico Ricardo Azevedo, escreveu que “Toni Brandão
consegue levar o leitor a uma reflexão sobre a busca da identidade”, o que possibilita não
desmerecer o valor do romance devido à falta de repercusão no ambito teatral.
Assim, retomamos a fala do crítico Dib Carneiro Neto ao jornal O Estado de S. Paulo em
2001, que destaca o sucesso do escritor reforçando sua hibridez por meio da habilidade em transitar
entre diferentes mídias, segundo o crítico:
Toni Brandão é um raro exemplo de escritor de sucesso no Brasil, que dirige seus
livros para uma faixa etária específica e pouco contemplada: os pré-adolescentes
[...] urbanos de classe média há 11 anos e, aos poucos, foi diversificando seus
meios: hoje está também na TV, no teatro, na Internet, já gravou um CD e prepara
um filme [...] Quase sempre na editora Melhoramentos, ele já vendeu 450 mil
livros [...] Nas escolas de todo o Brasil, Toni Brandão, em certo sentido um rival de
Harry Potter, é o rei da 5.ª série. É o ano escolar que mais presta ao prazer de seus
livros e ele conquistou o fértil filão dos paradidáticos, um desejo de todo escritor
de literatura infantil.
Para Eneida Maria de Souza (2002, p. 114) no que concerne ao papel da crítica biográfica, é
importante mencionarmos sua relação com a “[...] produção de um saber narrativo, engrendrado
pela conjunção da teoria e da ficção e pelo teor documental e simbólico do objeto de estudo [...]
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permanente construção do objeto de análise e nos pequenos relatos que compõe a narrativa literária
cultural [...]”.
Nesse aspecto, destacamos a estética brandiana que compõe o universo narrativo de Grogue
(1997), que por meio de uma linguagem híbrida, mescla diferentes gêneros literários e artísticos no
discurso do narrador. Sem perder a variedade coloquial da língua portuguesa, aproxima-se de seus
leitores por meio de uma relação imagística capaz de causar angústia e aflição, ao tratar de “temas
comuns” relacionados ao cotidiano jovem.
4 GROGUE E O DISCURSO HÍBRIDO DO NARRADOR
O romance Grogue (1997), de Toni Brandão, publicado na década de noventa pela Editora
Studio Nobel, tem como editor o escritor Ricardo Azevedo, o qual convida Brandão para participar
da “Coleção da Anta”. Nas orelhas do livro, Azevedo, além de refletir sobre a literatura infantojuvenil, comenta acerca da escrita de Brandão, “[...] ele pretende aprofundar ainda mais essa
vontade de falar sobre a vida e o mundo vistos pela perspectiva do jovem urbano” (AZEVEDO,
1997).
A obra Grogue, em síntese, narra os conflitos do protagonista Greg, que com a ajuda
familiar e de sua namorada Bia, consegue superar um passado problemático (não mencionado na
narrativa), o qual para seus pais está relacionado com a “má” influência dos amigos e da vontade de
Greg em ser músico.
No entanto, quando seus pais viajam, o personagem decide confrontar as imposições
fraternas, bem como o seu passado. Confuso, se rende aos encantos de Lala, sua amiga de infância.
Quando Bia descobre a traição do namorado, atinge Greg com um capacete de ciclismo, fazendo
que o protagonista ganhe um confidente para o seus problemas, ou seja, a representação de seu
inconsciente, o personagem Grogue.
Grogue, além de partilhar dos ideais familiares e dos bons costumes pregados pela
sociedade, tenta fazer o protagonista esquecer o passado, os amigos e a música, para viver de forma
convencional (estudar, namorar, trabalhar, casar e constituir família) com sua namorada Bia, que é
considerada pelos pais de Greg como um “anjo salvador” por conseguir mudar a vida do
protagonista. Ocorre, todavia, que Bia ganha destaque na narrativa por sua conduta permeada de
sedução e por ter um caráter manipulador.
De acordo com Perrone-Moíses, acerca da literatura contemporânea, o processo de escrita de
seus escritores, ocorre devido ao anseio pela “[...] busca do novo; a experimentação de linguagens e
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de gêneros; [...] a defesa de um projeto artístico coerente e de um projeto social utópico (integrar
arte e vida); a busca de um padrão de alta literatura [...]” (PERRONE-MOISÉS, 1998, p. 187).
Nesse cenário, Toni Brandão compõe, em Grogue, um discurso híbrido, atravessado por
diferentes gêneros literários, os quais ganham destaque por meio do discurso de um narrador que se
mantém distanciado de seus personagens, atua como uma câmera cinematográfica, mas que, além
de descrever em forma de flashes, consegue alcançar o interior das personas de tal modo, causando
a impressão de que se trata de um ser manipulador.
Com intuito de compreender o discurso híbrido, atentemos, primeiramente, a figura do
narrador. Para tanto, nos ancoramos nos estudos de Norman Friedman (2002) e sua tipologia do
modo de narrar em O ponto de vista na ficção.
Notamos que o narrador de Grogue enquadra-se em três das classificações propostas por
Friedman, à medida que desenvolve seu discurso. A princípio, somos iludidos com a sensação de
uma “câmera” por sua transmissão da realidade, reforçada por uma linguagem curta e direta acerca
das ações dos personagens: “Calça o tênis. Vai até o armário. Tira outra camiseta de uma das
gavetas. Branca. Cheirando a amaciante. Veste a camiseta. Sai” (BRANDÃO, 1997, p. 8).
Ao considerarmos a possibilidade de um narrador “modo câmera”, notamos a utilização de
técnicas narrativas advindas da linguagem cinematográfica. Destacam-se os chamados “efeitos de
edição” como: rewind (rebobinar) “Rewind. Greg. Chega à pizzaria com um certo ar de felicidade”
(BRANDÃO, 1997, p. 18); fast forward (avançar) “FF. Fast forward. E lá vai Greg pela rua” (Id., p.
20); e slow motion (emoção lenta) “Greg começa a cair. Slow motion” (Ibid., p. 29).
No entanto, outra classificação de Friedman ganha força para classificar este narrador, o
“modo dramático”. Com viés advindo do âmbito teatral, o modo dramático destaca-se pela
utilização do diálogo, ou seja, “limitam-se em grande parte ao que os personagens fazem e falam;
suas aparências e o cenário devem ser dados pelo autor como que em direções de cena”
(FRIEDMAN, 2002, p. 178).
Assim, destacamos que a presença do modo dramático compõe quase toda a narrativa, pois
ao se confrontarem constantemente, o texto recorre ao diálogo das personagens ao invés do discurso
do narrador, o qual cumpre a função mencionada por Friedman. Segundo Patrice Pavis (1999, p.
206), esse narrador atua como uma indicação cênica, ou seja, “todo texto [...] não pronunciado pelos
atores e destinado a esclarecer ao leitor a compreensão ou o modo de apresentação da peça. Por
exemplo: nome das personagens, indicações das entradas e saídas, descrição dos lugares [...]”.
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Risada em Greg. Não sabe se para câmera ou para a camerawoman. Fecha o
portão. Entram pelo corredor. Passos tranqüilos. Para matar a saudade das damasda-noite. E para tentar se lembrar de onde conhece a camerawoman. Vinte e
poucos anos. Duas tranças castanhas. Pés descalços. E um olhar. Um tanto
misterioso. Ela veste um tipo de bata cor-de-rosa. E cor de abóbora (BRANDÃO,
1997, p. 22).
Notamos que ambas as classificações se aproximam, mesmo que advindas de instâncias
distintas, à medida que, priorizam os personagens e suas ações. Porém, uma terceira classificação de
Friedman ganha fôlego após uma leitura aprofundada da narrativa, o que nos remete a impressão de
um narrador manipulador, trata-se do “onisciente intruso” que, para Friedman, permite ao leitor o
contato com:
[...] pensamentos, sentimentos e percepções do próprio autor; ele é livre não apenas
para informar-nos as idéias e as emoções das mentes de seus personagens como
também as de sua própria mente [...] a presença de intromissões e generalizações
autorais sobre a vida, os modos e as morais, que podem ou não estar explicitamente
relacionadas com a estória à mão (FRIEDMAN, 2002, p. 173).
Acerca desse narrador, apontamos alguns traços da narrativa que permitem classificá-lo
conforme a tipologia preconizada por Norman Friedman. Os personagens de Grogue configuram-se
como meta-personagem, conscientes de seu papel ficcional, questionam o autor e a própria
literatura “Sem a minha presença, não tem conflito. E sem conflito, essa não será uma boa história”
(BRANDÃO, 1997, p. 45).
No que concerne as intromissões do autor, esta materializa-se na crítica social, revelando as
falhas do sistema de administração pública de São Paulo na década de 90, “Cena típica de comercial
de plano de assistência médica [...] A trupe de salvamento adentra pela recepção do hospital, que
está praticamente vazia” (Ibid., p. 32); “Luca põe a trava. Liga o alarme. Benze o carro. E mesmo
assim, não tem a menor expectativa de encontrá-lo quando voltar. Mas tem seguro!” (Ibid., p. 75).
De acordo com Yves Stalloni (2007, p. 179), o processo de construção tanto do discurso,
quanto do narrador de formas híbridas justifica-se a partir de quando “[...] os criadores
contemporâneos parecem ter-se aplicado na produção de obras suficientemente híbridas ou incertas
para desafiar as etiquetas”, o qual podemos também considerar como uma forma de manutenção
dos valores da literatura clássica e suas temáticas universais.
Para tanto, classificar o narrador de Grogue é possível apenas considerando-o como um ser
híbrido, constituído por diversos discursos que se materializam na narrativa. Tal hibridismo destacase como uma marca direta da literatura moderna, que se concentra em amalgamar diferentes
gêneros (narrativo, dramático e lírico) e suas diversas subdivisões (teatro, cinema, música, dentre
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outros). Essas instâncias artísticas homologam-se e relativizam-se em Grogue de tal forma que
apenas um estudo sistemático é capaz de distingui-las.
4.1 A entrevista
Em abril de 2014 no Café das Rosas, na Avenida Paulista, em São Paulo, Toni Brandão
concedeu uma entrevista1 acerca do projeto de pesquisa que investiga a hibridez de gêneros
literários na narrativa Grogue (1997).
O escritor revelou suas influências de linguagem e a união de suas experiências advindas do
curso de Graduação em Marketing e Publicidade que o proporciona uma noção de mercado. Isso o
possibilitou conseguir destaque como um dos autores contemporâneos mais vendidos no país.
A carreira de Brandão inicia-se como colaborador da Folha de S. Paulo, no caderno infantil
Folhinha onde trabalhou por sete anos. Esse espaço jornalístico propiciou ao artista despertar para
um olhar investigativo, uma vez que a impressa permitiu aflorar a sua curiosidade, adquirindo
experiências como se estivesse em um making-off.
Brandão atribui disciplina em seu processo de escrita, a exemplo de sua experiência como
jornalista. Nesse período, escreve uma ficção sobre a trajetória emocional de um garoto que, em
decorrência do nascimento da irmã, para de crescer. Envia o texto para uma amiga na Editora
Melhoramentos, que decide publicar, em 1989, a narrativa sob o título Naninca minha irmã
pequena.
Os temas abordados nas narrativas de Brandão relacionam aos sentimentos humanos por
meio de um olhar diferenciado, aproximando do ponto de vista do jovem. No entanto, destaca, que
nesse olhar, perpassa a sua visão de escritor, o qual seria ironia afirmar que não haveria qualquer
relação com sua ideologia.
Sua linguagem sempre manteve uma relação com os aspectos coloquiais da língua
portuguesa, no entanto, de uma forma pop, pensando a literatura como uma forma de reflexão.
Encarra o processo de escrita de modo desafiador, especialmente ao pensar nas diferentes
modalidades linguísticas que convive ao trabalhar com diferentes meios de comunicação.
Brandão destacou sua rotina de trabalho. O autor possui um método simples, mas com uma
disciplina rigída, dedicando suas manhãs para produzir, pois afirma que esse período lhe permite
pensar criativamente de forma limpa, sem as influências do dia.
1
Entrevista concedida a Luiz Fernando Marques dos Santos, discente do Programa de Pós-Graduação em Letras da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, nível de Mestrado, Campus de Três Lagoas.
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Acerca da narrativa Grogue (1997), delineada por sua materialidade híbrida, o autor aponta
que a habilidade em amalgar diferentes gêneros literários e artísticos advém das suas experiencias
pessoais, destacando que:
Uma linguagem de cinema você leva para literatura. Você aprofunda um texto no
cinema com as propriedades que a literatura permite e você vai cortando para ficar
do tamanho do cinema, essa mistura de linguagens ocorre o tempo todo. Para mim,
Grogue é como se fosse um filme, como se você estivesse assistindo as reações
imagéticas do personagem, mas menos as reflexões porque não é um livro que
aprofunda as reflexões, [...] é um livro audiovisual quase [...] é imagético
fracionado.
De acordo com Brandão, ao questionarmos sobre o papel do escritor contemporâneo, ele nos
conta que acredita que sua tarefa relaciona-se a “Ajudar as pessoas a refletirem e ajudar as pessoas a
sairem melhoradas de onde elas entraram. A obra de arte tem que divertir, fazer pensar e ajudar a
transformar. Acho que esse é o papel, mexer, sacudir”.
Questionado acerca do perfil do público leitor no contexto da década de noventa, período em
que inicia sua produção, Toni Brandão aponta que “o leitor é parecido. O que mudou é o mundo” e
destaca a transição entre a adolescência e a juventude “fica mais autônomo para o bem e para o mal
[...] você mergulha mais nos seus conflitos [...] fica mais entendido sobre suas dores”.
A possibilidade de entrevistar o escritor Toni Brandão nos permitiu traçar uma reflexão
sobre o papel do escritor contemporâneo, o qual segundo Souza (2002, p. 116) está relacionado ao
“[...] conceito de autor como ator no cenário discursivo, considerando-se o seu papel como aquele
que ultrapassa os limites do texto e alcança o território biográfico, histórico e cultural”.
Diante da difícil tarefa em escrever para o leitor infanto-juvenil, de modo a despertar neste
público a habilidade crítica-reflexiva, Brandão conduz os leitores para um mergulho num novo
universo literário, uma vez que não se limita aos aspectos formais da língua portuguesa. O autor, ao
considerar a dificuldade de apreensão do leitor por conta da normativização linguística, opta por
uma escrita lúdica, possibilitando a fruição da leitura.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ler a literatura brasileira contemporânea por meio do viés dos estudos críticos biográficos
contribui para além do biografismo, proporciona a oportunidade de compreender as manifestações
sociais em que se imergem os autores durante o seu processo de escrita, assim como as influências
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que permeiam a formação de suas ideologias, as quais são transportadas por um autor implícito em
algumas narrativas e ganham um amplo sentido por meio do estudo biográfico.
De acordo como Souza (2002, p. 117) trata-se de “deciframento do sentido oculto e da
origem do texto a partir da relação naturalista e casual entre vida e obra”. Assim, ao afirmamos que
Toni Brandão é dono de uma escrita múltipla por meio da hibridização de gêneros e linguagens, a
hipótese torna-se válida ao desvendarmos que tal hibridez advém de influências pessoais, somadas
ao contato com as instâncias televisiva, cinematográfica e teatral.
A hibridez brandiana ganha fôlego em uma linguagem que transita entre a coloquialidade e a
norma culta da língua portuguesa, diante de um não-leitor que tem como base “literária” fragmentos
de textos destacados pelos livros escolares, ou ainda, mensagens instantâneas advindas do universo
virtual.
Toni Brandão, enquanto escritor contemporâneo voltado para o público infanto-juvenil,
consegue cumprir o seu papel: transmitir a vivência por meio de uma temática coerente ao universo
que se destina, e por personagens que são o reflexo da sociedade infanto-juvenil. Consegue, ainda,
provar que a literatura para esse público não necessita ser contituida por um viés moral, mas apenas
proporcionar uma identificação para que a auto-reflexão ocorra naturalmente no processo de leitura
por meio da “multiplicidade” proposta por Calvino (1990).
Brandão enquadra-se em um novo perfil de escritor, aquele que concorre com uma
infinidade de informação virtuais que bombardeiam os leitores. Como tentativa de conquistá-los e
fazê-los “migrar” novamente para as páginas impressas, o escritor mergulha no universo midiático
platando atrativos que possibilitem ao jovem leitor retornar ao universo literário, seja pelos games,
roteiros ou weblivros. O artista demonstra que a literatura continua viva por meio da representação
dos valores sócio-culturais da sociedade histórica ou moderna, com a qual os leitores se identificam
por meio das problemáticas universais e encontrar além de sua imagem refletida, a criticidade que
outrora perderam.
REFERÊNCIAS
BRANDÃO, Toni. Grogue. 3. ed. São Paulo: Studio Nobel, 1997. (Coleção da Anta).
CALVINO, Ítalo. Multiplicidade. In: _______. Seis propostas para o próximo milênio. Tradução
Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 115 – 138.
FRIEDMAN, Norman. O Ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de um conceito crítico. Trad.
Fábio Fonseca Melo. REVISTA USP, São Paulo, n. 53, p. 166 – 182, março/maio de 2002.
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GREGORIN FILHO, José Nicolau. Literatura juvenil: adolescência, cultura e formação de leitores.
São Paulo: Editora Melhoramentos, 2011.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Trad. de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo:
Perspectiva, 1999.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. A modernidade em ruínas. In: _______. Altas literaturas: escolha e
valor na obra crítica de escritores modernos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 174 – 203.
SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cult. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
STALLONI, Yves. Os gêneros literários. Tradução e notas de Flávia Nascimento. 2. ed. Rio de
Janeiro: DIFEL, 2003.
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A CONSTRUÇÃO CRÍTICA LITERÁRIA: O PERCURSO DA RECEPÇÃO DAS OBRAS
DE RODRIGO LACERDA
THE CONSTRUCTION LITERARY CRITICISM: THE ROAD TO RECEIPT OF
PRODUCTION OF RODRIGO LACERDA
Marcilene Moreira DONADONI (PG/UFMS)1
José Batista de SALES (UFMS)2
Resumo: Este trabalho tem como objetivo destacar a construção da recepção crítica das obras do
escritor contemporâneo Rodrigo Lacerda. As obras de Lacerda destacam-se por um caráter de
formação humana, não com o cunho pedagogizante, mas com leveza, prioriza o discernimento e a
subjetividade que deve permear toda obra juvenil. Para tanto, embasamo-nos nos pressupostos
teóricos da crítica biográfica, segundo Perrone-Moisés (1973) e (1998), visando destacar o papel do
escritor contemporâneo e suas contribuições como representante da literatura brasileira juvenil
moderna.
Palavras-chave: Literatura brasileira. Crítica biográfica. Rodrigo Lacerda.
1 INTRODUÇÃO
O contexto da literatura brasileira contemporânea a partir de 1990 passa a ser impulsionado
e valorizado por premiações (Jabuti, APCA, Glória Pondé, dentre outros) que concedem destaque
aos novos escritores brasileiros, os quais competem pela permanência e inserção como
representantes nessa literatura, que não segue uma Escola Literária, pelo contrário, possui uma
vantagem criadora por meio da liberdade artística.
Segundo Leyla Perrone-Moisés (1998) o escritor na contemporaneidade ao apropriar-se de
valores como maestria técnica; concisão; exatidão; visualidade e sonoridade; intensidade;
completude e fragmentação; intransitividade; utilidade; impessoalidade; universalidade; novidade;
torna-se capaz de realizar uma manutenção na tradição literária, renovando-a por meio de novos
valores.
1
Mestranda em Estudos Literários – UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso Sul. Campus de Três Lagoas – MS –
Brasil. 79630-310 – [email protected]
2
UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Departamento de Educação. Campus de Três Lagoas – MS –
Brasil. 79620-270 – [email protected]
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Para Perrone-Moisés (1973, p. 56) “A biografia, como gênero, situa-se entre a história e a
ficção”. Assim, este trabalho priorizará a história, por meio de uma análise que se constitui na
recepção crítica da obra do escritor contemporâneo Rodrigo Lacerda.
Atualmente, o escritor Rodrigo Lacerda possui seis romances publicados, O mistério do
Leão Rampante (1995); A Dinâmica das Larvas (1996); Vista do Rio (2004); O fazedor de velhos
(2008); Outra vida (2009) e República das abelhas (2013). Em sua produção como contista,
Lacerda publicou os livros Fábulas para o ano 2000 (1998), Tripé (1999), e contos em revistas e
jornais: Política (2011), e Estante Nova (2004). Lacerda também se aventurou no gênero poético e
publicou A Fantástica arte de conviver com animais (2005).
Assim, a construção da fortuna crítica concentra-se nessas obras de Rodrigo Lacerda, nas
quais a recepção crítica identifica alguns dos valores preconizados por Perrone-Moíses (1973),
priorizando os dois principais jornais do estado de São Paulo, O Estado de S. Paulo e a Folha de S.
Paulo, e destacando entrevistas de outros veículos de comunicação, para os quais, o autor expõe
suas ideias sobre o processo de produção de escrita na constituição de suas obras.
2 A VEIA DO ESCRITOR: AS INFLUÊNCIAS DE RODRIGO LACERDA
Rodrigo Lacerda nasceu no Rio de Janeiro em 23 de março de 1969. Neto de Carlos Lacerda
- jornalista, governador do antigo Estado da Guanabara e criador da editora Nova Fronteira - e filho
de Sebastiao Lacerda, fundador da editora Nova Aguilar. Passou toda a infância rodeado por livros,
começando com a mãe, que lia poemas para os filhos (Rodrigo e sua irmã). Assim, poetas como
Gonçalves Dias, Drummond, Fernando Pessoa marcaram sua infância e, por meio do pai, inicia, seu
contato com a prosa e com o mundo editorial.
Em entrevista a Manuel da Costa Pinto, no programa Entrelinhas, em 26 de junho de 2012,
da Rádio Cultura FM, Rodrigo Lacerda relata a influência que a música exerce em sua vida e em
suas obras. Também foi influenciado pelo pai, que lhe apresentou a ópera, assim, como ao
dramaturgo Willian Shakespeare em sua infância. Rodrigo revelou ainda influências que perpassam
suas obras, como Verdi, Bach, Beethoven e Mozart, que também estão presentes durante o seu
processo de escrita.
Aos dezesseis anos, começou a trabalhar na editora do pai como assistente de pesquisa de
um velho professor, Antônio Carlos do Amaral Azevedo, que lecionara para seus pais no ginásio e
tinha como projeto escrever o dicionário Nomes, termos e instituições históricas, lançado em 1990
pela editora Nova Fronteira.
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Ao frequentar “a cozinha da editora,” para revisar o dicionário, Lacerda manteve contato
com os editores e escritores. Para ele esse contato “humaniza a figura do escritor”, fazendo com que
perca o medo e, assim arriscou-se a escrever seus primeiros poemas e o primeiro capítulo de um
romance que não levou adiante.
Segundo Rodrigo Lacerda, por falta de melhor opção e para obter uma certa cultura geral,
entra no curso de História na Pontifícia Universidade Católica (PUC/RJ) em 1987. Em 1991 mudase para São Paulo e transfere-se para a Universidade de São Paulo (USP), na mesma instituição
conclui o mestrado e, em 2005, o doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada, com a tese
João Antônio: uma Biografia Literária.
Assim, trabalhou como assistente editorial na Editora Nova Aguilar em 1989 e, no ano
seguinte, na Nova Fronteira como gerente editorial. Com a mudança para São Paulo começou a
coordenar uma linha de co-edições entre a Nova Fronteira e a Editora Edusp, onde atuou como
editor assistente.
Em 2000, trabalhou na Cosac & Naify, participou da edição de livros e da definição de suas
políticas editoriais na área de literatura brasileira, coordenando a reedição das obras do escritor João
Antônio. Ao trabalhar na editora Mameluco Produções e Duetto, editou a coleção Deuses da
Mitologia.
Escritor, tradutor e editor, assim se define Rodrigo Lacerda em relação a sua carreira
profissional. Atividades que nem sempre foram fáceis de conseguir harmonizar, conforme declara
em uma entrevista publicada no caderno do Diário de Maringá em 14 de agosto de 2013:
Já houve um tempo em que eu tinha uma relação de amor e ódio com outras
atividades além da literária, sobretudo com minha atividade como editor…Vivo do
que ganho como editor, e portanto essa é minha atividade cotidiana, mais regular
que a literatura até. Trabalho na editora Zahar, onde encontrei o ambiente de
trabalho ideal, cheio de amizade, transparência, respeito e admiração mutua.
Custou, mas encontrei uma editora onde estou totalmente feliz…só na Zahar a
química foi perfeita.
Para Rodrigo Lacerda, os fatores determinantes na escolha para se tornar escritor não foram
o fato de ter nascido em um meio familiar e cultural literário ou de ter trabalhado em editoras.
Como declarou o escritor em uma entrevista a Wilame Prado no caderno do Diário de Maringá, em
14 de agosto de 2013, “[...] Os elementos determinantes, que realmente plantaram em mim, lá pelos
13/14 anos, o desejo de ser escritor, foram: 1) a timidez e a dificuldade de arrumar uma namorada;
2) o medo de morrer e não deixar nada para trás [...]”.
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3 O QUE DIZEM OS CRÍTICOS CONTEMPORÂNEOS: A FORTUNA CRÍTICA DE
RODRIGO LACERDA
Para a construção de uma fortuna crítica consistente e coerente, pretende-se apresentar um
panorama das obras de Rodrigo Lacerda, com as quais o autor tem conquistado um espaço
significativo como representante da literatura brasileira contemporânea.
Assim, por meio da recepção crítica, destacaremos em especial o romance O fazedor de
velhos (2008), devido à pretensão de analisá-lo no âmbito acadêmico como objeto de estudo, por
sua constituição que, a partir da tradição literária universal, influi de forma intertextual na
construção do romance.
Rodrigo Lacerda se destaca por destoar em suas criações literárias do cenário da literatura
brasileira de 1990 (constituída por uma temática voltada para questões da violência urbana), ao
utilizar temas como uma trama burlesca, transcorrida na Inglaterra do século XXII, um tom de farsa
para abordar o mercado editorial brasileiro e ao oferecer uma dolorosa reflexão sobre vidas que
descarrilham, surpreendendo o leitor. Segundo Antonio Candido, o escritor
[...] numa determinada sociedade, é não apenas o indivíduo capaz de exprimir a sua
originalidade (que o delimita e especifica entre todos), mas alguém
desempenhando um papel social, ocupando uma posição relativa ao seu grupo
profissional e correspondendo a certas expectativas dos leitores ou auditores. A
matéria e a forma da sua obra dependerão em parte da tensão entre as veleidades
profundas e a consonância ao meio, caracterizando um diálogo mais ou menos vivo
entre criador e público (CANDIDO, 2006, p. 83 – 84).
Em 1995, Rodrigo Lacerda publica o seu primeiro romance, O mistério do Leão Rampante
(Ateliê Editorial, 156 páginas), que ganhou o prêmio Jabuti de 1996 e o prêmio Certas Palavras de
Melhor Romance. Em uma entrevista com o autor, para o caderno do Diário de Maringá, em 14 de
agosto de 2013, o jornalista Wilame Prado, ao fazer uma pergunta, relata que “Na apresentação d
‘O Mistério do Leão Rampante’, João Ubaldo Ribeiro disse que você chegaria onde quisesse na
literatura porque tinha amor pelas palavras, um deleite em escrever”. A obra O mistério do Leão
Rampante foi traduzida para o italiano em 1999 com o título William & Mary.
Dinâmica das Larvas, romance apresentado como uma comédia trágica–farsesca, é
publicado em 1996 (Editora Nova Fronteira, 180 páginas). A sessão de autógrafos mereceu
destaque na Folha de S. Paulo, no caderno Mais! em 08 de setembro de 1996. Em 07 de setembro
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de 1996, no segundo caderno do jornal O Estado de S. Paulo, o jornalista Rubens Figueiredo aponta
que:
Não há dúvida de que a Dinâmica das Larvas é um livro muito bem construído.
Sua estrutura abrangendo toda a ação em uma única noite, lembra uma peça de
teatro [...] O livro se encerra com um posfácio interessante em que o autor comenta
o próprio romance e aponta em que se inspirou para escrever. Mas não estou
seguro de que tenha sido uma boa ideia. Creio que um autor deva se justificar no
próprio texto do seu livro. Orientar o leitor é subestimá-lo e, ao mesmo tempo,
arrogar para o escritor uma onipotência que ele não possui, no tocante a
interpretação da sua obra.
No ano de 1998, publica sua primeira obra infantojuvenil, Fábulas para o ano 2000 ou
Fábulas para o século XXI (Lemos Editorial, 80 páginas), em parceria com Gustavo Martins
(mencionado no Guinness, por publicar um livro aos oito anos). A revista Galileu (edição 91) com
uma reportagem de Claudio Fragata Lopes, com o título Escritores jovens para jovens leitores,
elogia:
[...] Mas o que interessa mesmo é que ambos fazem ótima literatura. Estas fábulas
são a melhor prova disso. Com talento e bom humor, eles adaptaram histórias
tradicionais, como A Princesa e o Sapo ou Os Três Porquinhos, aos tempos
modernos. O resultado foi uma espécie de cyber- conto-de-fadas, [...]. Para manter
o espírito edificante, os autores não abriram mão da famosa “moral da história” no
final de cada conto. [...] Moderníssimo.
Em 1999 Lacerda publica Tripé (Ateliê Editorial, 152 páginas), uma coletânea de textos a
qual mistura três gêneros: crônicas, roteiros e contos. Em uma entrevista com o jornalista e escritor
Luís Henrique Pellandan no teatro Paiol, em Curitiba, promovido pelo jornal Rascunho em outubro
de 2012, Lacerda declara que
[....] É um livro laboratório, até hoje as livrarias não sabem onde colocá-lo, porque
não sabem se colocam na prateleira de não-ficção, na de teatro ou na de ficção-tem
as três coisas, Então, continua a minha vertiginosa decadência, porque esse não
teve resenha nenhuma, caiu no silêncio, no vácuo.
A obra A Paixão pelos Livros (Casa das Palavras,150 páginas), organizado por Júlio Silveira
e Martha Ribas, publicado em 2004, apresenta contos, crônicas e depoimentos de diversos autores
sobre livros e o prazer da leitura. No Estado de S. Paulo, o jornalista, Aluízio Falcão, em 13 de
novembro de 2004, elogia “Estante Nova”, conto de Lacerda, que compõe o livro A Paixão pelos
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Livros: “[...] Cabe também referência especial ao lírico e bem humorado texto de Rodrigo Lacerda
[...]”.
Publicado em 2004, o romance Vista do rio (Editora Cosac & Naify, 200 páginas), foi
finalista dos prêmios Passo Fundo Zaffari & Bourbon, Portugal Telecom e Jabuti. Wander Melo
Mirando, em um especial para a Folha de S. Paulo em 02 de fevereiro de 2004, com uma
reportagem com o título A simetria imperfeita, comenta:
O novo romance de Rodrigo Lacerda é desconcertante desde a capa: a imagem de
um “vírus HIV brotando de um linfócito” confunde-se com o título “Vista do Rio”
[...] Nem alegoria, nem representação hiperrealista, a superposição de ambos a
perspectiva e responsável pela originalidade da narrativa, que gira em torno do
edifício Estrela de Ipanema. [...] Dessa forma, após a estreia auspiciosa de “O
Mistério do Leão Rampante (1995) e da experiência de “A Dinâmica das Larvas”
(1996), Rodrigo Lacerda alcança o nível dos realizadores que efetivamente contam
e se afirma como um dos talentos da jovem literatura feita no Brasil.
Com uma tiragem particular, o autor publicou em 2005, o livro de poemas A Fantástica arte
de conviver com animais. Acerca do livro, não há entrevistas ou críticas que corroborem a
construção de fortuna crítica do autor.
Ganhador do prêmio da Academia Brasileira de Letras de melhor romance, indicado para os
prêmios São Paulo de Literatura, Portugal Telecom e Jabuti, o romance Outra Vida (Editora
Alfaguara, 180 páginas), publicado em 2009, recebeu elogios dos responsáveis pela seleção do
prêmio ABL. Em uma entrevista para o portal G1 da Rede Globo de Telecomunicações em 01 de
junho de 2010, os acadêmicos Ana Maria Machado, João Ubaldo Ribeiro e Luis Paulo Horta
afirmam que “É uma obra que se lê com prazer, na sua economia de meios, na sua própria
brevidade”.
O escritor Chico Lopes, em seu site cultural Verdes Trigos, em 04 de julho de 2009, ao
analisar Outra Vida, afirma: “Quem escreve assim, com precisão e passando da psicologia
individual para a social não é um escritor qualquer”, concedendo destaque ao trabalho de Lacerda.
Em uma entrevista para a Folha de S. Paulo, em 27 de junho de 2009, o Professor de Teoria
Literária na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) Alcir Pécora, com a chamada Tensão
narrativa se dissipa em sucessão de lugares comuns, posiciona-se criticamente em relação ao
romance Outra Vida, de Lacerda. Para Pécora:
A narrativa se desenvolve pela articulação de dois procedimentos [...]
O primeiro procedimento resulta, infelizmente, mal. Quando se aplica a escuta
neutra às personagens típicas, o resultado não é complexidade psicológica, mas
uma coleta de raciocínios tipificados, uma expansão ou escansão do núcleo
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estereotipado em lugares comuns. Poderia haver um gosto perverso em produzir
esse tipo de preenchimento dedutivo: explicitar toda a porcaria sob a porcaria de
origem. Mas não haveria avanço analítico, pois o mapa da banalidade já está
praticamente inteiro no convencionalismo inicial. Psicologizar não individualiza as
personagens, apenas expande a convencionalização. No pior dos casos, ocorre
naturalização de estereótipos e não "hiperrealismo" [...] O efeito geral é
redundante. O estereótipo ganha foros de alegoria do mundo.
A República das Abelhas (Editora Companhia das Letras, 520 páginas), publicado em 2013,
foi desenvolvido a partir do conto “Política”, publicado em 20 de novembro de 2011 na Folha de S.
Paulo. O romance “biográfico” narra a saga da família Lacerda.
Em uma entrevista para o jornal O Estado de S. Paulo, em 30 de novembro de 2013, o autor
conta para o jornalista e crítico Ubiratan Brasil: “Meu interesse não foi fazer uma biografia
tradicional, com datas rígidas, mas um retrato literário que, a partir de flashes, captassem a essência
de Carlos Lacerda”.
Na Folha de S. Paulo, em 29 de novembro de 2013, o colunista Marcelo Coelho comenta a
obra A Republica das Abelhas: “Não é um estudo biográfico, não chega a ser um romance e, está
um bocado longe de ser literatura [...] Tentativas de formalizar a linguagem para lhe dar uma
aparência ‘antiga’ fracassam de modo constrangedor”.
Em 2011 Lacerda escreveu um artigo para a revista Emília, sobre um livro infantojuvenil,
Juca e Chico, um clássico da literatura alemã escrito por Wilhelm Busch (1865), traduzido para o
Brasil por Olavo Bilac em 1915. No artigo, o escritor relata que o livro foi sua primeira paixão
literária, compartilhada pela irmã e tece comentários explicativos a respeito da obra e recomenda
sua leitura para as crianças:
Se você tem um sobrinho com quem você convive pouco, tente. Se sua nova
namorada tem um filhinho que não vai com a sua cara, experimente. Se um dos
seus filhos não vai com a sua cara, leia Juca e Chico correndo para ele. A vivência
literária de todos aqueles impulsos destrutivos, num tom tão leve, certamente irá
desarmar os espíritos à sua volta (LACERDA, 2011).
Perrone-Moisés (1998, p. 168) discorre sobre a importância para os escritores e críticos
modernos de conhecer a literatura mundial em suas respectivas línguas, assim, destaca: “[...]
considerando que só se pode falar de literatura quando se conhece o maior número possível de suas
manifestações, de preferência na língua original; e, para suprir as falhas de conhecimento, todos
valorizam e praticam a tradução”, assim, destacamos as traduções de Rodrigo Lacerda.
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Lacerda traduziu Palmeiras selvagens (2003), de William Faulkner (com Newton Goldman)
a qual foi comentada na Folha de S. Paulo pelo escritor Milton Hatoum em 12 de junho de 2005.
Outra tradução foi Os desencantados (2006), de Bud Schulberg (com Alípio Correia de Franca Neto
e Alexandre Barbosa) que foi comentada em uma matéria para a Folha de S. Paulo, pelo escritor
Joca Reiners Terron em 06 de maio de 2006.
O conde de Monte Cristo (2008), ganhador do prêmio Jabuti de 2009; Os três Mosqueteiros
e A mulher da gargantilha de veludo e outras histórias de terror de Alexandre Dumas (com André
Telles), são traduções de Lacerda que receberam elogios ou foram citadas na Folha de S. Paulo em
julho e novembro de 2012.
Em 26 de junho de 2014, na revista Biblioo a jornalista Bia Reis, assim, como a jornalista
Maria Fernanda Rodrigues, no dia 30 para o Estado de S. Paulo, fazem uma matéria sobre a mais
recente tradução de Lacerda, Livros! (2014) de Murray McCain e John Alcorn (com Mauro
Gaspar).
Convém ressaltar outras traduções de Rodrigo Lacerda, como Poemas (2006), de Raymond
Carver; Salomé, de Oscar Wilde; Sarajevo, de Sandra Cisneros; A nuvem da morte (1993), de
Arthur Conan Doyle; A mágica dos quadrinhos, de John Updike; A menina que batizou um planeta,
de Marc MacCutcheon; O médico e o monstro (1992), de Robert Louis Stevenson; Coleção
Movimentos da Arte, com o título Expressionismo (2002), de Shulamith Behr.
4 O FAZEDOR DE VELHOS
Em 2008, Rodrigo Lacerda publica, pela editora Cosac & Naify, o romance juvenil O
fazedor de velhos (136 páginas), com ilustrações de Adrianne Gallinari. Ganhador dos prêmios
Glória Pondé, concedidos pela Biblioteca Nacional, na categoria infantil e juvenil, e incluído no
catálogo White Ravens, selo alemão altamente recomendável, no mesmo ano da publicação. Em
2009 é premiado, na categoria juvenil, pela FNLIJ (Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil)
e vencedor do Jabuti.
Em síntese, em O fazedor de velhos (2008), o narrador protagonista Pedro relata seu
amadurecimento (intelectual e emocional) em um momento de confusão sobre sua escolha pelo
curso de graduação em História, quando conhece o ex-professor e historiador Nabuco, que o
apresenta à literatura universal, com a obra Rei Lear e especifica que Pedro realize determinadas
tarefas com a intenção de fazer um diagnóstico sobre sua vocação. Assim, conhece e se apaixona
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por Mayumi (enteada de Nabuco), estabelecendo um confronto entre o amor romântico e o
cientificismo, questionando os valores dos relacionamentos modernos.
Dessa forma, a narrativa é considerada segundo Massaud Moisés (2004, p. 56), como um
romance de formação, ou bildungsroman, pois “[...] gira em torno das experiências que sofrem as
personagens durante os anos de formação ou educação, rumo à maturidade [...]”.
E de acordo com Maas (2000), podemos considerar as tarefas determinadas por Nabuco
como ritos de iniciação, no romance de formação. Para a pesquisadora “Os ritos de iniciação são
etapas frequentes nos Bildungsromane, ainda que nem sempre sejam consideradas como tais, seja
pelo próprio protagonista, seja pelo leitor mais desavisado” (MASS, 2000, p. 10).
O Estado de S. Paulo, em 18 de junho de 2008, com uma reportagem do jornalista Francisco
Quinteiro Pires, anuncia o lançamento da obra O fazedor de velhos. Com repercussão na Folha de
S. Paulo, na mesma data, por meio de uma chamada de Mario Gioia, o lançamento da obra ganha
destaque.
A colaboradora da Folha de S. Paulo, Luana Villac, em uma entrevista com Rodrigo
Lacerda em 16 de junho de 2008, interroga o autor sobre como é escrever para jovens, o qual
declara que é importante “Não deixar cair o ritmo é importante para atingir o público jovem”.
O jornalista Eduardo Simões, em uma matéria sobre a Festa Literária Internacional de Paraty
(Flip) para a Folha de S. Paulo, no dia 15 de maio de 2009, destaca a mesa de debates com a
temática “Separações”, com a participação de Rodrigo Lacerda e o diretor Domingos de Oliveira.
Em 2010, no âmbito acadêmico, Gabriela Fernanda Cé Luft elabora uma tese de dissertação
de mestrado, sob a orientação da Professora Doutora Regina Zilberman, para a Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, sobre três autores contemporâneos e, entre eles, destaca-se Rodrigo
Lacerda com O fazedor de velhos.
Em entrevista para a revista Rascunho com o cronista Luís Henrique Pellanda, em outubro
de 2012, o autor Rodrigo Lacerda explica como surgiu a ideia para escrever O fazedor de velhos
“[...] um livro juvenil para a minha filha [...] então estava iniciando a vida social, e junto com a
social, a vida amorosa, os primeiros namorados. Eu queria falar desses assuntos”.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Escritor, tradutor, editor e leitor, assim, pode ser definido Rodrigo Lacerda, qualificações
que são praticamente indissociáveis nas produções do autor, pois em suas obras percebemos a
intertextualidade da literatura mundial, além dos valores preconizados por Perrone- Moisés (1998).
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Destacamos o romance O fazedor de velhos (2008) porque além de ser uma obra literária,
contém um caráter de formação humana, não com o cunho padagogizante, mas com a leveza, o
discernimento e a subjetividade que deve permear toda obra juvenil, que possui o objetivo de atingir
seu público.
Perrone-Moisés (1998, p. 173) enfatiza que, “Ao privilegiar o novo e o futuro, os escritores
modernos se expõem, mais cedo ou mais tarde, à velhice e ao desaparecimento. Ao menos que disso
os salvem os leitores futuros”. E, ao realizar a recepção crítica de algumas das obras de Rodrigo
Lacerda, podemos inferir que, há uma enorme possiblidade de o autor ser “salvo” por seus leitores,
destacando-se, ao lado dos grandes representantes da literatura brasileira.
Assim, parece-nos possível compreender que se trata de um escritor que apesar do
reconhecido talento, ainda se encontra "em construção" ou em formação. Resta-nos portanto
acompanhar criticamente sua trajetória e verificar se o desempenho desta permitirá a sua inserção
no cânone da literatura brasileira.
REFERÊNCIAS
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 9. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006.
LACERDA, Rodrigo. O fazedor de Velhos. São Paulo: Cosac Naify, 2008.
MAAS, Wilma Patricia Marzari Dinardo. O Cânone mínimo: o Bildungsroman na história da
literatura. São Paulo: Editora UNESP, 2000.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2004.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Falência da crítica: um caso limite: Lautréamont. São Paulo:
Perspectiva, 1973.
_______. Altas literaturas: escolha e valor na obra crítica de escritores modernos. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
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A PRESENÇA DE EDGAR ALLAN POE EM “WILLIAM WILSON”
THE PRESENCE OF EDGAR ALLAN POE IN “WILLIAM WILSON”
Maria da Luz Alves PEREIRA1
Resumo: A finalidade deste artigo é demonstrar que Edgar Allan Poe (1809-49) está inscrito em
sua narrativa “William Wilson” publicada em 1839 e traduzida, no Brasil, por Oscar Mendes em
1944. Para tanto, leva-se em conta certas evidências como, por exemplo, os anos de adolescência
vividos na Manor House School, em Stoke-Newinghton, na Inglaterra e, principalmente, o relato de
fatos da vida do autor, em ficção, os quais evidenciam, claramente, traços autobiográficos. O
discurso se articula em torno da reflexão do vocábulo “memória”, termo essencial para o
entendimento da questão autobiográfica. Aborda-se o seu conceito tradicional, como simples
reservatório ou arquivo preenchido com lembranças de eventos passados, passando pelas reflexões
de Fausto Colombo, em Arquivos imperfeitos, e pelas impressões de Freud, como consignada em
diferentes espécies de signos, tomando como base o seu estudo “Lembranças da infância e
lembranças encobertas”. Nessa perspectiva, a memória está presente como tema e como
reconstrução ativa do passado.
Palavras-chave: Autobiografia. Memória. Reminiscências.
1 INTRODUÇÃO
O conto “William Wilson”, de Edgar Allan Poe (1809-49), publicado pela primeira vez no
Gentleman’s Magazine, em 1839, e republicado no ano seguinte na coleção Tales of the Grotesque
and Arabesque, é uma narrativa que deixa entrever os efeitos da consciência sobre o homem. Ao
lado de “A queda da casa de Usher” e “O gato preto”, é um clássico sempre presente nas antologias
nacionais quando se trata das histórias extraordinárias do autor oitocentista. Optamos pela tradução
de Oscar Mendes realizada em 1944 e publicada pela primeira vez em Ficção completa, poesia &
Ensaios, em 1965. Estamos trabalhando com a reimpressão de 2005.
Diante do exposto, este artigo se propõe a ser uma reflexão sobre a memória no contexto
narrativo de “William Wilson”, tendo por base a abordagem de Fausto Colombo, em Arquivos
imperfeito (1991), e as pesquisas de Freud, em “Lembranças da infância e lembranças encobertas”
1
Mestre em Estudos de Linguagens pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS; doutoranda na
Universidade Presbiteriana Mackenzie (DINTER em Letras UPM/UFMS, bolsista pela CAPES): e-mail: daluz_alves
@hotmail.com
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(1981), bem como uma investigação a respeito da auto(biografia), norteados pelos estudos de Diana
Irene Klinger, em Escritas de si, escritas do outro (2007). Partimos da hipótese de que a memória
está notoriamente presente na narrativa como tema e como exercício de reconstrução ativa do
passado.
Nesse conto, Poe empreende seu relato de vida em ficção, no qual “o presente da escrita sem
dúvida condiciona o resgate do passado; conta menos aquilo que se recorda do que o quando e a
partir de onde se recorda” (MOLLOY, 2003, p. 225). Contudo, não resta dúvida de que seu texto,
rico em descrições, evidencia claramente traços auto-biográficos, pois trata-se de “ um relato
singular de sua vida nessa escola de Stoke-Newinghton” (BAUDELAIRE, 2003, p. 34). Desse
modo, se fazem presentes, desde o início, todos os ingredientes da narrativa auto(biográfica) cuja
particularidade merece uma investigação acuidada da qual nos ocupamos a seguir.
2 MEMÓRIA E AUTOBIOGRAFIA
A abordagem da questão da “autobiografia” só emergirá se entrar em reação com outra
palavra-chave de nossa reflexão: “memória”. Herman Ebbingháus, filósofo e psicólogo, foi o
primeiro a investigar sistematicamente sobre a memória humana em 1885. Ele acreditava que a
mente armazena “idéias” sobre as experiências sensoriais passadas. Também, pensava que os
acontecimentos que se seguem um ao outro de perto no tempo ou no espaço ficam ligados entre si.
Assim, “a memória contém milhares de impressões sensoriais interligadas” (EBBINGHÁUS apud
DAVIDOFF, 1983, p. 296).
Devemos, ainda, considerar a memória no seu conceito tradicional como “um simples
‘reservatório’, onde se depositam conteúdos substantivos, os quais de modo mais ou menos regular
retornariam à consciência” (NASCIMENTO, 1999, p. 168). Nesse âmbito, segundo Davidoff
(1983), a percepção e a consciência, muitas vezes, dependem de comparações entre o presente e o
passado.
Como o passado é resgatado, é a preocupação de Freud (1981), em seu estudo intitulado
“Lembranças da infância e lembranças encobertas”, no qual se propõe a investigar como as pessoas,
mais especificamente as crianças, recuperam certos eventos do passado outros não. Ele considera
que na ação da memória há uma “natureza tendenciosa”, ou seja, as impressões preservadas, na
primeira infância, parecem não ter importância. Segundo ele, isso ocorre porque “a memória não
faz uma seleção nas impressões apresentadas”. Nesse período de vida, a seleção é
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baseada em princípios completametne diferentes daqueles em vigor na época de
maturidade intelectual. Uma investigação cuidadosa, contudo, nos mostra que tal
suposição não tem razão de ser. As lembranças indiferentes da infância existem em
virtude de um processo de deslocamento: elas, na reprodução, são substitutas de
outras impressões realmente significativas. (FREUD, 1981, p. 67).
Outro aspecto relevante que merece destaque é o entendimento das relações entre a
temporalidade e a memória. Colombo (1991) concebe que
a ligação entre temporalidade e memória sempre foi indicada pela reflexão
filosófica como central para a compreensão de ambos os termos: o tempo só
pode ser captado dentro de um horizonte mnéstico, e ademais, a memória se
define especificamente em função da ordem da colocação temporal dos objetos
que recordamos. Por ser tão estreita a liaison entre os dois conceitos, é provável
que a alteração de um dos dois aspectos comporte modificações substanciais
também no outro [...]. (COLOMBO, 1991, p. 85).
Colombo (1991), refletindo sobre a lógica arquivista contemporânea, chega à conclusão de
que a conservação da memória é necessária. Segundo ele, “não é, portanto, o objeto que torna
valiosa a sua própria lembrança, é a lembrança que torna valioso o objeto lembrado” (1991, p.103).
Dessa maneira, para falar de lembrança como viagem e, da memória como percurso
preestabelecido, ele lembra a lenda de Simônides, o fundador da arte da memória, cuja história
merece destaque:
Chamado ao banquete do nobre Escopas para compor e recitar uma ode,
Simônides canta hinos em louvor dos Dioscuros. Ressentido, Escopas, no
momento de pagar ao poeta a recompensa prometida, entrega-lhe somente metade
[...] para que peça o restante a Castor e Pólux, filhos de Júpter. Pouco depois, um
servo chama o poeta e convida-o a sair, dizendo que duas pessoas o procuram;
Simônides sai da casa e não entra ninguém, mas salva sua vida porque a casa
desmorona, soterrando Escopas e os convidados. Os cadáveres estão
estraçalhados, e o reconhecimento das vítimas parece impossível; Simônides,
porém lembra-se da colocação dos comensais no banquete, e pode, portanto,
restabelecer-lhes a identidade até pouco incerta. (COLOMBO, 1991, p. 31).
Temos aqui o segredo de Simônides: “colocar as lembranças em lugares exatos, para daí
tirá-las nos momentos de necessidade” (COLOMBO, 1991, p. 31). Nesse processo, “o importante
não é mais recordar, praticar a memória, é saber que a recordação está depositada em algum lugar e
que sua recuperação é – pelo menos na teoria – possível” (COLOMBO, 1991, p. 104). É esse o
procedimento de recuperação da recordação guardada que Poe empreende em seu conto por
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intermédio do narrador o qual assim inicia o seu relato: “que me seja permitido, no momento,
chamar-me de Willian Wilson. A página em branco, que tenho diante de mim não deve ser
manchada com meu verdadeiro nome” (POE, 1981, p. 85). Assim, Poe faz uma experiência de
memória.
“William Wilson” é, portanto, uma ficcionalização da experiência do autor, dele enquanto
jovem adolescente americano no seu contato com a sociedade européia, mais especificamente, a
britânica. Assim, é a própria ficcionalidade do conto que o aproxima de certa verdade. Realmente, a
ficção nos aproxima muito mais da “verdade” do que o mero relato sincero do que aconteceu.
Nessa perspectiva, a ficção seria superior ao discurso autobiográfico, pois o escritor não tem
como prioridade contar sua vida, mas elaborar um texto artístico, no qual sua vida é matéria
contigente. Por meio das versões elaboradas literariamente, a ficção estaria se aproximando mais da
verdade do sujeito que o próprio autor delas. Assim, a noção de verdade ligada à escrita
autobiográfica se associa com um estrato profundo, inconsciente, inatingível, senão através da
mediação do ficcional. Sobre isso, Barthes vai além do senso comum dizendo que não é que “a
verdade sobre si mesmo só pode ser dita na ficção”, mas “quando se diz uma verdade sobre si
mesmo deve ser considerada ficção” (BARTHES apud KLINGER, 2007, p.40). É essa premissa
que norteará este estudo.
3 WILLIAM WILSON: UM CONTO AUTOBIOGRÁFICO
Para pensar esse conto como autobiográfico faz-se necessário um breve resumo da fábula,
seguido de alguns dados biográfico do autor os quais auxiliam na argumentação. William Wilson, o
narrador-protagonista, é um jovem que descreve a sua escola e as suas experiências com um novo
colega que ali chega no mesmo dia e apresenta muitas semelhanças com ele: a mesma idade, altura,
fisionomia e voz, as mesmas feições e maneiras, o mesmo andar e os mesmos costumes e,
finalmente, o que é mais surpreendente, o mesmo nome e a mesma data de nascimento. Enfim, o
colega é o homônimo de William Wilson. Entretanto, com todas essas similitudes, não há nenhuma
relação de parentesco entre eles. Embora fossem companheiros inseparáveis, o narrador desenvolve
um potente ódio pelo seu homônimo.
A respeito desse conto, as palavras de Cortázar falam melhor do que qualquer paráfrase:
William Wilson é um conto relativamente extenso, pois compreende uma vida
desde a infância até a virilidade; contudo, o tom dos primeiros parágrafos é tal que
provoca no leitor um sentimento de aceleração (criando o desejo de saber a
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verdade) e o faz ler o conto num tempo mental inferior ao tempo físico que a
leitura consome. (CORTÁZAR, 2004, p. 124).
Esse sentimento de aceleração aumenta se correlacionarmos à ficção dados biográficos do
autor. Edgar Allan Poe, aos dois anos de idade, abandonado à sorte, após a morte de seus pais, foi
adotado por um rico negociante, o Sr. Allan, o qual foi movido pela piedade e feitio encantador do
pequeno infeliz. Ele foi, então, criado num belo ambiente e recebeu uma educação completa. Em
1816, acompanhou seus pais adotivos numa viagem à Inglaterra, Escócia e Irlanda. Antes de
retornar a seu país, em 1818, deixaram-no sob os cuidados do Sr. Brandsby o qual tinha uma
importante casa de educação em Stoke-Newinghton, nos subúrbios de Londres, onde o pequeno
passou cinco anos. Aí, viveu até os doze anos de idade.
Tendo retratado esses anos de colégio nesse conto, “o vivido passa a ser ficção”
(NOLASCO, 2004, p. 79). Desse modo, seu relato são páginas nas quais Poe reflete sobre a própria
vida e lança um olhar para trás num tempo de infância e adolescência, num tempo em que era já um
aluno muito recomendável, e que traria marcas definitivas na sua vida adulta. Então, confessa o
narrador:
[...] Julgo dever dizer que meu primeiro desenvolvimento intelectual foi em
grande parte, um pouco comum e até mesmo extracomum. Em geral os
acontecimentos da existência infantil não deixam sobre a humanidade, chegada à
idade madura, uma impressão bem definida. Tudo é sombra, cinza débil e
irregular recordação, confusão de fracos prazeres e desgostos fantasmagóricos.
Comigo isso não aconteceu. Devo ter sentido em minha infância, com a energia de
um homem feito, tudo o que encontro hoje gravado na memória em linhas tão
vivas, tão profundas e duráveis como os exergos das medalhas cartiginesas. (POE,
1981, p. 89-90).
Essas palavras nos reportam mais uma vez à questão da memória. Se “os acontecimentos da
existência não deixam sobre a humanidade, chegada a idade madura, uma impressão bem definida”
(POE, 1981, p. 89), para nosso autor, por meio da personagem William Wilson, isso não aconteceu.
Ao contrário, deve ter sentido em sua infância tudo o que encontra “hoje gravado na memória em
linhas tão vivas, tão profundas e duráveis” (POE, 1981, p. 90), numa demonstração clara de que “a
lembrança é uma forma de ficção” (MARQUES apud MOLLOY, 2003, p. 224).
Sobre esse assunto, Eneida de Souza (2002) comenta Beatriz Sarlo que, ao retomar a
posição combativa da teoria de Walter Benjamin sobre a história, “acredita na força do passado
como referência para as transformações do presente, pelo rastreio não da idéia de origem, mas das
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‘cicatrizes deixadas pelo passado no presente’” (SARLO apud SOUZA, 2002, p. 22). E, Souza
(2002) acrescenta que
o conceito de memória, entendido como registro lento e profundo do vivido,
contrapõe-se à estética do zapping, tempo em saltos, pela veloz aparição e
desaparição das imagens. O que, a rigor, se busca, é a preservação e o
amadurecimento da experiência, fruto de um saber marcado pela aguda presença
do passado [...]. (SOUZA, 2002, p. 22).
É nesse sentido que a escrita de Poe se revela biográfica porque, seguindo o raciocínio de
Nolasco (2004), a sua escrita “mesmo quando não dialoga diretamente com o ‘vivido’ já está, de
alguma forma, atravessada por um desejo pessoal e intransferível que a move em direção a um
‘poderia ter acontecido’ [...]” (NOLASCO, 2004, p.79). Temos em muitas passagens, como pano de
fundo, a memória dessa adolescência vivida e as reminiscências como elementos para a construção
de sua ficção. Nessa visita ao passado, muitos fatos ficam perdidos na sua história pessoal,
ficcionalizada, pois, extrapolando em muito os limites do acontecido.
Conforme Borges, “a ninguém é dado abarcar em um único instante a plenitude de um
passado. [...] A memória do homem não é uma soma; é uma desordem de possibilidades
indefinidas. Santo Agostinho [...] fala dos palácios e cavernas da memória. A segunda metáfora é
mais justa” (BORGES, 2000, p. 449). Foi exatamente nessas cavernas que Poe entrou ao descrever
longa e minuciosamente a Manor House School, demonstrando que soube muito bem cultivá-la na
lembrança:
Minhas mais matinais impressões da vida de colégio estão ligados a uma vasta e
extravagante casa de estilo elisabetano, numa vila brumosa da Inglaterra, [...] Na
verdade, essa venerável vila tinha um aspecto fatasmagórico que envolvia e
acariciava o espírito como um sonho. Neste momento mesmo, sinto em
imaginação, o calafrio refrescante de suas avenidas profundamente ensombreadas;
respiro a emanação de seus jardins e estremeço ainda, como uma indefinível
volúpia, à nota profunda e surda do sino, rasgando, a cada hora, como seu gemido
súbito e solene, a quietude da atmosfera que escurece e na qual se alonga o
campanário gótico, imerso e adormecido. (POE, 1981, p. 86-87).
Esta passagem acrescenta elementos não relacionados à Manor House School, verificados
em outra citação: “Mas a casa! ― que estranha e antiga construção! Para mim, que verdadeiro
palácio encantado!” (POE, 1981, p. 88). Também o reverendo Sr. Bransby parece ter sido descrito
de maneira imaginativa. Ao apresentá-lo, William Wilson fala da “profunda admiração e
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perplexidade” com que costumava contemplá-lo, além de falar da “engenhosidade” dele enquanto
professor, acrescentando-lhe o título de “doutor”: “[...] nosso diretor, o Reverendo Doutor Bransby”
(POE, 1981, p. 89). A figura do clérigo é provavelmente imaginária, ou pelo menos, é uma
composição idealista de presbítero que Poe tinha durante sua juventude.
O clima de penumbra e mistério é exagerado. Conforme Quinn (1998), o método poeano de
criação de mistério e da negação do comum e do normal tem suas raízes nesses dias de colégio
como também na atmosfera da cidade rica de tradições, conforme declarações abaixo:
Foi pouco mais ou menos na mesma época, se não me falha a memória, numa
discussão que tivemos, na qual ele perdeu sua reserva habitual e falava e agia com
um desembaraço bem diferente à sua natureza, que descobri, ou imaginei
descobrir, em seu tom, sua atitude, enfim, no seu aspecto geral, algo que em
princípio me fez estremecer e depois me interessa profundamente, trazendo-me ao
espírito visões obscuras de minha primeira infância, lembranças estranhas,
confusas, precipitadas, de um tempo no qual minha memória não nascera ainda.
(POE, 1981, p. 95).
Esse conto está atravessado pela primeira pessoa autobiográfica o qual introduz vários
componentes biográficos recorrentes e mesclados em sua obra. Segundo Cortazar, “os heróis de
seus contos noturnos serão às vezes como ele, e às vezes como ele gostaria de ser; [...] serão
orgulhosos porque se sentem fortes, como Metzengerstein ou William Wilson” (CORTÁZAR,
2004, p. 108). Por exemplo, no conto “Pequena conversa com uma múmia”, com fortes marcas
autobiográficas, Poe usa a múmia, personagem protagonista, como porta-voz para exprimir sua
opinião sobre democracia, progresso e outros assuntos, o que, de certo modo, explica que suas
personagens “são Poe mesmo, suas criaturas, mas profundas, de modo que julga conhecê-las como
julga conhecer-se a si próprio [...]” (CORTÁZAR, 2004, p. 110).
Percebemos em “William Wilson” um quadro que Poe pinta de suas primeiras sensações as
quais nos convencem de que seu eco espiritual e intelectual surge das mais profundas impressões de
sua infância. Como argumentou Nietzsche, “o homem se diferencia da vaca no campo por estar
afligido pela própria memória. Sua memória é como uma folha ‘agitada pelas voltas do tempo,
afasta-se flutuando ― e, de repente, regressa flutuando novamente e cai no colo do homem”
(NIETZSCHE apud ACHUGAR, 2006, p. 01).
Analogamente, as lembranças da infância e
adolescência de Poe o acompanham por vinte e um anos para, então, cair no seu colo em plena
maturidade aos trinta anos de idade, quando da escritura desse texto. Desse modo, o caráter, o
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gênio, o estilo do homem Poe é então formado pelas circunstâncias em aparências vulgares de sua
primeira juventude como se pode ler nesta passagem:
Encontro talvez tanto prazer quanto me é dado experimentar agora quando me
detenho sobre essas minuciosas lembranças do colégio. Mergulhado na miséria
que estou, miséria infelizmente muito real, ser-me-á perdoado buscar alívio bem
ligeiro e curto nesses finos e fugidios pormenores. Por outro lado, por mais triviais
e mesquinhos que sejam em si mesmos, eles ganham, em minha imaginação, uma
importância toda particular, devido a íntima conexão com os lugares e a época
onde reencontro, agora, as primeiras advertências ambíguas do Destino, que,
desde então, me envolveu tão profundamente em sua sombra. Deixe-me, pois,
recordar. (POE, 1981, p. 87).
Conforme Quinn (1998), não é difícil visualizar o garoto, ávido, que permitia sua mente
vagar pelos cômodos e corredores do antigo casarão, trazidos ao relato como lembrança vívida,
delineando seus contornos desbotados e neles entrava, reconstruindo-os com os menores detalhes,
não como eles eram, mas como sua fantasia os dotava com as cores da ficção. Nesse ponto, a
consciência é tênue, como se não se pudesse elaborar qualquer associação entre memória e
imaginação. A memória aparece como um instrumento de recriação do passado e se torna “fonte de
vida” para usar a expressão de Molloy (2003, p. 224). O próprio William Wilson comenta o pouco
que tinha para lembrar, mas quanto os incidentes triviais traziam grandes recordações:
E, contudo, de fato – do ponto de vista comum do mundo – como havia lá tão
pouca coisa para lembrar! O espertar, de manhã a ordem para deitar-se, as lições a
aprender, os recitativos, as mesmas férias periódicas e os passeios, o pátio de
recreio, com suas disputas, seus passatempos, suas intrigas, tudo isso, por uma
magia psíquica desaparecida, continha em si um desvario d sensação, um mundo
rico de incidentes, um universo de emoções variadas e de excitações das mais
apaixonadas e embriagadoras. Oh!, que bom tempo esse século de ferro. (POE,
1981, p. 90).
Considerando o comentário de Klinger (2007, p. 39) de que “toda obra é autobiográfica” e
as palavras da passagem acima, dentre outras que permeiam essa narrativa, não há como não ver
Poe em “William Wilson”. Aí, o caráter do homem singular já se revela um pouco. É a vida do
autor inserida na personagem e na construção de sua obra. Além disso, não se pode ignorar que a
“autobiografia ‘pura’ não existe” (KLINGER, 2007, p. 39).
A posição de De Man sobre esses dois extremos sintetiza essa questão, pois ele indica que
“assim como afirmamos que todos os textos são autobiográficos, devemos dizer que por isso
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mesmo nenhum deles o é ou pode ser” (DE MAN apud KLINGER, p. 39). Nesse âmbito, as
palavras de Baudelaire reforçam nosso pensamento ao afirmar que “todos os contos de Edgar Allan
Poe são, por assim dizer, biográfico. Encontra-se o homem na obra. Os personagens e os incidentes
são o quadro e o cortinado de suas lembranças” (BAUDELAIRE, 2002, p. 34).
Quinn (1998) chama atenção para um detalhe o qual poderia ser apenas mais uma das
excentricidades do autor americano, porém, neste trabalho, é índice que corrobora com nossa
argumentação: o método de revisão de Poe no qual ele modificava o texto original, alterando desde
datas até frases inteiras de muitos de seus contos a cada nova publicação, de acordo com um
particular ponto de vista em um dado momento. Essa atitude ilustra o quão cuidadoso e meticuloso
era o autor na escrita de suas obras.
Em “William Wilson”, por exemplo, Poe mudou o sentido de algumas frases e também, o
que nos interessa mais, a data do nascimento de William Wilson: “[...] Pouco depois de ter deixado
a escola do Dr. Bransby soube, por acaso que o meu homônimo nascera em 19 de janeiro de 1813
― coincidência bastante notável, sendo esse dia, precisamente, o do meu nascimento” (POE, 1981,
p. 92). Nesse ponto, é relevante dizer que na publicação em Burton’s, de 1839, a data de nascimento
é 19 de janeiro de 1911. Em Tales of the Grotesque and Arabesque, de 1840, o ano mudou para
1809; em Phantasy Pieces, 1811 e em Broadway Journal, 1813. Percebe-se que a data em Tales of
the Grotesque and Arabesque, de 1840, coincide com a data de nascimento do autor. Essas
mudanças refletem tanto a incerteza de Poe com relação à data de seu nascimento quanto à tentativa
deliberada de alterá-la por razões particulares (QUINN, 1998, p. 286).
Por que Poe faria essas alterações, ainda que parciais nas diversas publicações de suas
obras? Certamente, não nutria o desejo de ser reconhecido nelas, particularmente em “William
Wilson”, já que os fatos e relatos ali descritos são tão evidentes quando relacionados à sua vida. Ou
talvez, ainda que inconsciente, quisesse deixar um rastro de “bio”, mantendo as seguintes linhas: “a
página em branco, que tenho diante de mim não deve ser manchada com meu verdadeiro nome”
(POE, 1981, p. 85), “Não desejaria, mesmo que pudesse, encerrar hoje, nestas páginas, a lembrança
dos meus últimos anos de indizível miséria” (POE, 1981, p. 85) e “coincidência bastante notável,
sendo esse dia, precisamente, o do meu aniversário” (POE, 1981, p. 92), entre outras, igualmente
reveladoras.
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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na tentativa de se construir um argumento conclusivo, ainda que sem a pretensão de fechar
a questão, pode-se considerar, por um lado, que a data de nascimento, o nome da escola e do
professor, os lugares descritos, as situações vividas, entre outros, são elementos identificadores da
presença de Poe em “William Wilson”. De fato, a ficção se apropria da forma da auto-biografia
para torná-la um discurso verossímel no qual o texto “fala”, de certo modo, a identidade do autor.
Por outro lado, deve-se considerar que, apesar das coincidências, não há documento
fidedigno e muito menos “documentos oficiais”, para dar validade ao “eu” e atestar a veracidade do
relato, abrindo, assim, possibilidade às dúvidas. Não há registro prévio para o “eu”, salvo o texto
em si escrito da própria memória o qual aparece como um instrumento útil, como o documento ou o
registro. É nesse ponto que a memória pessoal salva a situação e se torna fonte para a
(auto)biografia. É necessário recorrer às lembranças pessoais precisamente porque o esquecimento
insiste em se instalar e apagar o arquivo de uma vida. Lembrar é preciso para não perder um
passado.
Por sua vez, com um deliberado esforço de ser coerente, que é tão ingênuo quanto revelador,
Poe oferece seu diário, mais íntimo que seja, ao mesmo tempo seu relato de vida, uma declaração
pessoal, enfim, que pudesse ser tratado como uma biografia. Finalmente, adaptando o pensamento
de Molloy (2003), pode-se dizer que Poe é o sujeito que se lembra de sua autobiografia e será ele
mesmo o documento, a escrita na página em branco.
REFERÊNCIAS
BAUDELAIRE, Charles. Ensaios Sobre Edgar Allan Poe. Trad. Lúcia Santana Martins. São Paulo:
Ícone, 2003.
BORGES, Jorge Luis. A Memória de Shakespeare. In: BORGES. Obras Completas III. São Paulo:
Globo, 2000.
COLOMBO, Fausto. Os arquivos Imperfeitos. Trad. Beatriz Borges. São Paulo: Perspectiva, 1991.
CORTÁZAR, Julio. Poe: o poeta, o narrador e o crítico. In: ______. Valise de Cronópio. Trad. Davi
Arriguci Jr e João Alexandre Barbosa. São Paulo: Perspectiva. 1974.
DAVIDOFF, Linda L. Introdução à psicologia. Trad. Auriphebo B. Simões e Maria da Graça
Lustosa. São Paulo: McGraw Hill do Brasil, 1983.
FREUD, Sigmund. Obras completas de Sigmund Freud. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro:
Imago, 1981, vol. VI.
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KLINGER, Diana Irene. Escritas de si, escritas do outro. Rio de janeiro: 7 letras, 2007.
MOLLOY, Sylvia. Vale o escrito. Trad. Antônio Carlos Santos. Chapecó: Argos, 2003.
NASCIMENTO, Evando. Derrida e a literatura. Niterói: EDUFF, 1997.
NOLASCO, Edgar Cezar. Restos de Ficção: a criação biográfico-literária de Clarice Lispector. São
Paulo: Annablume, 2004.
POE, Edgar Allan. Edgar A. Poe ficção completa, poesia & Ensaios. Org. e trad. por Oscar
Mendes. Rio de Janeiro: Nova Aguiar,1981.
QUINN, Arthur Hobson. Edgar Allan Poe: a critical biography. New York: Johns Hopkins, 1998.
SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cult. Belo Horizonte: Ed. da UFMG. 20002.
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A LEITURA LITERÁRIA: “NOITE AZIAGA” EM SALA DE AULA
LITERARY READING: “NOITE AZIAGA” IN THE CLASSROOM
Nathalie Elias da Silva CAVALCANTE (PG/UEMS) 1
Danglei de Castro PEREIRA (NEHMS-UEMS) 2
Resumo: Este artigo trata brevemente de algumas questões referentes ao ensino de literatura. O
objetivo deste trabalho é apresentar uma proposta de leitura do conto Noite Aziaga 3, Selvas e
Choças (1922), focando as atividades de letramento literário em sala de aula. Para tanto
abordaremos primeiramente os aspectos inerentes ao texto literário, para só então, após
considerações preliminares acerca da arte literária, direcionarmos o enfoque deste artigo para o
ensino de literatura nos parâmetros do letramento literário, utilizando como objeto de leitura e
reflexão o conto supracitado.
Palavras-chave: Literatura. Conto. Leitura. Ensino.
1 INTRODUÇÃO
A leitura pressupõe um momento de silêncio, momento aquele em que o leitor opta por
abdicar de todas as demais atividades que lhe são constantemente impostas no dia-a-dia para
apertar o botão de desliga e mergulhar não só no texto, mas, também, em si mesmo.
A consciência de que nem todos os possíveis leitores estão preparados para esse momento
da leitura, para apreciar e interagir com o texto literário, nos conduz a pensar um pouco mais sobre
a questão da literatura na escola.
Grosso modo, podemos considerar que a escola é aquela instituição a qual atribuímos o
dever de nos “transmitir”, as bases de todo um legado intelectual adquirido pela humanidade ao
longo dos tempos. É na escola que aprendemos a ler, escrever, calcular. Aprendemos também sobre
o lugar onde vivemos, a história a qual pertencemos, acerca da sociedade em que nos inserimos, etc.
É comum, pois, pressupormos que todo aluno ao completar os anos escolares tenha uma
formação suficientemente sólida para que ao deparar-se com o texto literário consiga enfrentá-lo
1
Mestranda em Letras pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul – UEMS/ FUNDECT.
[email protected]
2
Professor Doutor do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul –
UEMS. [email protected].
3
O conto na íntegra está disponível no site: <http://www.seminariolhm.com.br/anais_lhm_2013/19.html >como anexo
do trabalho intitulado: Selvas e Choças: um primeiro estudo do regionalismo literário de Othoniel Motta .
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sem maiores dificuldades. Infelizmente, sabemos que a realidade não é essa, e embora a escola
tenha se esforçado para alcançar um melhor nível de letramento, muitos alunos não conseguem
sequer ler um poema e a partir dele construir sentido.
Não é nosso objetivo, aqui, elencar as falhas da escola, nem fazer quaisquer tipos de
julgamentos. Entretanto, como professores de literatura não podemos fechar os olhos para questões
tão urgentes como a leitura e tudo o que a falta de letramento literário pode significar na prática
social da vida de um indivíduo.
Neste trabalho buscamos recuperar alguns conceitos acerca da literatura, e a partir dessas
considerações preliminares, propormos uma atividade de leitura literária pautada nos parâmetros do
letramento literário. A atividade proposta busca demonstrar como é possível apresentarmos o texto
literário e conduzirmos nossos alunos a uma prática de leitura e reflexão, bem como, apropriação e
construção de sentidos a partir do texto.
Importante ressaltar que esse artigo não se constitui numa receita de como ensinar literatura,
mas busca direcionar as aulas de literatura por meio de uma fundamentação teórica recolhida nas
fontes dos estudos em letramento literário.
2 OS “PROBLEMAS” DA LITERATURA
Proponho que em primeiro lugar dirijamos o nosso olhar para a literatura como um objeto
que por si só é cercado de indagações, antes de pensá-la como matéria de ensino, no contexto da
sala de aula, nas concepções de leitura e letramento. Esse olhar nos ajudará a compreender por que
o ensino a literatura ocupa um lugar controverso no ambiente escolar.
Em literatura, as paisagens, as pessoas, os lugares, os costumes, e tudo aquilo que tem lugar
no mundo não ficcional - neste mundo em que vivemos - ganha contornos simbólicos, podemos até
mesmo dizer que se tornam símbolos, motivos, temas que serão tratados por cada escritor de
maneira a transformar os referenciais externos.
A natureza arbitrária da linguagem nos permite afirmar que a palavra na voz da literatura
passa a configurar um mundo próprio, não podendo retornar ao referencial externo sem que haja
uma ressignificação em relação ao mundo real.
A literatura entendida como arte constitui um problema para si mesma. Não é passível de
uma definição, e carece de uma função prática. Afinal, para que serve a literatura? Ou o que é
literatura e tem ela importância?
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Jonathan Culler (1999) aponta que essas questões, que antes de sugerirem uma definição,
pedem uma análise, “[...] até mesmo uma discussão sobre por que alguém poderia, afinal, se
preocupar com a literatura” (p.28).
O que é literatura? “Cada tempo e, dentro de cada tempo, cada grupo social tem a sua
resposta, sua definição”. (LAJOLO, 2001, p.25). Mas isso também é entender que as noções do que
seja literatura não são fechadas e definitivas, antes se modificam no tempo e no espaço.
Na antiguidade clássica, por exemplo, Aristóteles (1990) com a ideia de mimeses inaugura
uma série de estudos em que a arte literária é entendida como representação, ou mesmo,
apresentação da beleza do mundo. O que vemos numa tragédia, por exemplo, não são as ações em
si, mas a representação dessas ações, que conduzem o expectador ao prazer reflexivo. Em suma,
compreende-se a arte como recriação da realidade do mundo.
Sem pretender discutir os aspectos polêmicos do conceito de mímesis, destacamos uma
citação que confirma a preocupação em esquadrinhar a expressão da arte literária.
Esse conceito, que enfatizava o aspecto gnosiológico da arte literária, atravessou
séculos, mereceu glosas e comentários de vários tipos, foi combatido e rejeitado e,
finalmente, contrabalançado com a ideia segundo a qual o texto literário guarda
intuitos lúdicos [...] (MOISÉS, 1992, p. 312).
Desde a antiguidade, então, percebemos uma inquietação na busca de definição do literário,
como também compreendemos que as possíveis definições podem variar de acordo com os critérios
tomados: tipo de linguagem empregada, intenções do escritor, temas e assuntos tratados na obra.
Cada critério aponta para uma acepção plausível do que seja literatura.
O grupo dos formalistas russos, entre eles Jakobson definiu a literatura como um tipo de
linguagem que incide sobre si mesma. “[...] chamaremos de objeto estético, no sentido próprio da
palavra, os objetos criados através de procedimentos particulares, cujo objetivo é assegurar para
esses objetos uma percepção estética”. (CHKLOVSKI, 1973, p.43). Em outras palavras, caberia à
literatura empregar a linguagem de maneira peculiar, utilizando procedimentos próprios para a
conquista de seu objetivo final: constituir-se arte enquanto. “Sendo um grupo de militantes,
polêmicos, eles rejeitaram as doutrinas simbolistas [...] transferiram a atenção para a realidade
material do texto literário em si". (EAGLETON, 1997, p.3).
De acordo com os critérios estruturalistas adotados em suas análises, a concepção de
literatura cunhada por esse grupo permanece. Longe de serem absolutas, as considerações
formalistas garantem o seu lugar nos estudos literários.
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Para Culler (1999) ao lermos e estudarmos a teoria da literatura criamos expectativas e
acreditamos que ela pode fornecer respostas para as questões que nos incomodam ao tratar do texto
literário. “[...] você espera que a leitura teórica lhe dê os conceitos para organizar e entender os
fenômenos que o preocupam” (p.24). No entanto o movimento da teoria é exatamente contrário,
pois ela deseja mostrar que estamos enganados quanto ao domínio, que pensávamos obter, de
determinadas “conceitos”.
Essa dinâmica da teoria não nos torna senhores. Pelo contrário, ela não nos permite estagnar,
fazendo-nos refletir sobre nossa leitura de maneiras novas. Portanto, mesmo não “dando conta” de
nos responder satisfatoriamente perguntas como, O que é literatura? A teoria da literatura aponta
para novas formas de indagação do objeto literário não nos permitindo cair no conformismo de
respostas prontas e acabadas.
Diante disso, podemos entender a literatura de diversas maneiras: como um uso específico
da linguagem, como ficção, como trabalho artístico, como um olhar ressignificado sobre o mundo,
as pessoas, as coisas. A atividade literária impossibilita que uma única definição abarque tudo o que
podemos chamar de literatura. Estamos, pois, cientes do problema primeiro da literatura: sua
complexidade de formas.
A ficção participa do cotidiano das pessoas, sendo a literatura uma de suas modalidades
mais ricas. A ficção, entretanto, não se apresenta em estado puro, ela se refere a uma realidade
imediata filtrada pela ação ficcional. A propósito do conto Cortázar (2006) diz “[...] um conto, em
última análise, se move nesse plano do homem onde a vida e a expressão escrita dessa vida travam
uma batalha fraternal [...]” (p.150). Podemos ampliar essa consideração ao dizer que a escrita da
literatura trava essa batalha com a vida real. Esse embate fraternal possibilita a construção do que
chamamos de verossimilhança, que se estabelece na coerência interna do texto literário tornando-o
aceitável, oportunizando o pacto entre leitor e texto ficcional.
E por estar vinculada à realidade, a ficção, no caso a literatura, se relaciona com a sociedade
de uma maneira muito mais próxima do que a maioria das pessoas pode julgar. Ítalo Calvino, em
seu livro Seis propostas para o próximo milênio (1995) declara sua confiança na literatura. O autor
destaca cinco valores que, em seu modo de compreensão, só a literatura com seus meios específicos
pode nos dar. São eles: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade. Calvino se utiliza da
imagem poética do mito da medusa, como argumento em favor do potencial formativo da literatura.
A imagem que evoca compara a literatura a um espelho por meio do qual a realidade pode ser
mirada de modo indireto, evitando, assim, a petrificação do sujeito que a fita. Dessa forma a
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literatura como função existencial pode representar “a busca da leveza como reação do peso de
viver” (CALVINO, 1995, p.39).
É pensando dessa maneira que verificamos o importante papel que a escola deve exercer no
sentido de formar o leitor literário. Os problemas que apontamos a cerca da definição e da função da
literatura não podem ser vistos como obstáculos para a escola. Um dos impasses do trabalho com o
texto literário na escola centra-se na questão pedagógica. A escola se nutre de concepções
pedagógicas e doutrinárias que visam formar o aluno-cidadão.
O entendimento da literatura como instrumento de educação está fundado nos princípios da
criação literária, já que na criação das manifestações ficcionais de cada sociedade, refletem-se os
impulsos, as crenças, os sentimentos e as normas dessa mesma sociedade (CANDIDO, 2011).
A respeito da literatura e sua contribuição na formação do homem, Candido afirma:
A literatura pode formar; mas não segundo a pedagogia oficial, que costuma vê-la
ideologicamente como um veículo da tríade famosa, — o Verdadeiro, o Bom, o
Belo, definidos conforme os interesses dos grupos dominantes, para reforço da sua
concepção de vida (...) (CANDIDO, 2002, p.85).
O caráter formativo da literatura não se dá de maneira convencional, em termos
pedagógicos, mas atua de maneira tão natural quanto à própria vida, ensina pela vivência, não por
doutrinas e conselhos, mas por experiência. Esse olhar sobre o aspecto formativo da literatura pode
transformar a maneira pela qual os textos literários são apresentados aos alunos/leitores.
Entretanto, parece-nos que a compreensão da literatura enquanto elemento indispensável no
processo formativo do aluno passa por critérios outros, critérios esses que buscam atribuir uma
função mais concreta à leitura do texto literário, e acabam destruindo a possibilidade de um trabalho
efetivo com a leitura.
Ao transformar o texto em mero pretexto para aulas de sintaxe ou historiografia literária,
encerra-se a possibilidade de outras formas de exploração do texto que visam uma reflexão mais
profunda.
O texto não é pretexto para nada. Ou melhor, não deve ser. Um texto existe apenas
na medida em que constitui ponto de encontro entre dois sujeitos: o que escreve e o
que lê; escritor e leitor, reunidos pelo ato radicalmente solidário da leitura,
contrapartida do igualmente solitário ato da escritura (LAJOLO, 1993, p. 57).
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Assim entendido, o texto fala por si, pois ele mesmo é um ato de interação. Ignorar as
possibilidades de significação que um texto possibilita ao ser lido seria o mesmo que simplesmente
não lê-lo. Não estamos propondo que a escola abandone seus preceitos pedagógicos, mas que
busque meios específicos na abordagem da literatura.
Os “problemas” da literatura, como sugerem as reflexões apresentadas até este momento,
podem ser encarados não como obstáculos, mas como indicativos de uma maneira de ler a literatura
enquanto expressão artística em ambiente escolar. Se ela não suporta uma definição precisa não nos
preocupemos em defini-la; antes compreender sua complexidade e importância na formação de
leitores críticos e autônomos. É partindo desse pressuposto que entendemos ser possível a
construção de uma proposta de leitura que valorize a especificidade do objeto artístico em ambiente
escolar, aqui o literário.
Admitimos que não existem fórmulas prontas para “ensinar” literatura. O que buscamos é
considerar o texto literário enquanto arte e, com isso, confiar que as possibilidades que ele traz em
sua complexa estrutura são eficazes na formação do leitor.
3 CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONTO: “LENDO NA NOITE AZIAGA”
O que é um conto? Essa é uma pergunta difícil. Definir o conto talvez seja tão difícil quanto
definir a literatura. Mas assim com esta; apresentamos alguns aspectos que nos ajudarão a
compreender aquele. Pensemos na noção de limite físico que se sobrepõe, de certa forma, à ideia de
conto.
[...] por sua vez, o conto parte da noção de limite, e, em primeiro lugar, de limite
físico, de tal modo que, na França, quando um conto ultrapassa as vinte páginas,
toma já o nome de nouvelle, gênero a cavaleiro entre o conto e o romance
propriamente dito (CORTÁZAR, 2006, p.151).
Um conto, geralmente é um texto pequeno, embora não seja necessariamente um texto curto.
A estrutura clássica do conto prevê um enredo em que as unidades de ação, espaço e tempo são
claramente definidas. Considerando a estrutura do conto clássico como um parâmetro para a leitura
de determinados contos que podem, relativamente, conformar-se a essa estrutura identificamos
como ponto importante para sua compreensão sua unidade temática, ou seja, seu caráter
monotemático. A unidade de ação de um conto se expressa pela típica organização da estória com
começo, meio e fim bem definidos.
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Em termos práticos, pedagógicos, a estrutura do conto clássico pode viabilizar os processos
de leitura em sala de aula, considerando que o professor deve manter a atenção dos alunos ao ler um
texto que chegue ao final e garanta a atenção dos leitores, por exemplo. Ao nos referirmos ao conto
clássico estamos falando de uma narrativa que estabelece um começo um meio e um fim bem
definidos, em que uma ou mais de uma história são contadas em paralelo, mas sempre obedecendo a
uma estrutura linear. Dessa maneira, ao apresentar o conto aos alunos o professor pode trabalhar,
também, a noção de conto clássico, ampliando posteriormente e problematizando, por meio da
leitura de diversos contos, as noções de conto clássico e contemporâneo.
É, pois, necessário salientar que a economia do conto antes de indicar uma aparente
facilidade e superficialidade, é, nos bons contos, o indicativo de uma profundidade e de uma técnica
estilística e estética muito bem engendradas. Assim, a leitura do conto em sala de aula poderá
suscitar diversas questões para que se motive o percurso de reflexão nos alunos.
O conto que escolhemos para o artigo faz parte de um livro de contos intitulado Selvas e
Choças, 1922, do autor Othoniel Motta. Os dez contos que compõe a obra inscrevem-se numa
tendência regionalista que busca explorar aspectos pitorescos, a cor local, a cultura popular. Os dez
contos de Selvas e choças são intitulados, respectivamente: Noite aziaga; Visita importuna; Um
feriado cheio; À roda do fogo, Bandeirante; Vassoróca; Um sonho caro; O que tem de ser;
Piramombó; Mosaicos sertanejos.
A presente proposta pretende ser adequada aos alunos do segundo e terceiro anos do ensino
médio. A escolha de Noite Aziaga, como conto a ser lido e discutido em aula, foi pensada a partir
de um critério que busca inquietar, por meio da leitura, motivando os alunos a ir além do senso
comum. A narrativa de Noite Aziaga problematiza alguns aspectos da relação entre personagens do
sertão e da cidade.
A história se passa no sertão mineiro. Após percorrer sete léguas em cima de um burro baio,
ao cair da tarde, Eusébio procura por abrigo num rancho sertanejo que avista ao longe. Ao
aproximar-se, porém, confirma os receios de sua alma, ao notar que seu anfitrião, um sertanejo,
“tinha uma cara má que parecia revelar estomago danado [...]” (MOTTA, 1992, p.7). Mesmo assim
Eusébio passa a noite no rancho, sempre vigilante e receoso do que possa acontecer, num constante
suspense que gera um desfecho surpreendente.
Eusébio é a figura do homem da cidade, daquele que impelido por algum motivo vê-se de
repente no sertão desabitado e baldio. Em busca de abrigo, avista numa clareira uma solitária
cabana de pau-a-pique.
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Para que o conto seja lido e discutido pelos alunos da maneira mais eficaz possível, o
professor precisa conhecer algumas estratégias de leitura que o ajudarão em seu trabalho com os
alunos. Ler um texto é estabelecer diálogo. A todo momento criamos hipóteses, fazemos conexões
com outros textos e com o mundo real, nossa mente projeta imagens plásticas do espaço, das
personagens. Enfim, são uma série de processos intelectuais que entram em cena durante a leitura
de um texto, no caso, o texto literário.
Esses processos são inerentes à leitura, no entanto torná-los explícitos aos alunos, irá
contribuir para que tomem consciência das possibilidades de reflexão que o texto provoca. Assim o
professor ao ler o conto em voz alta pode fazer pequenas pausas para mediar esses processos de
raciocínio e reflexão.
A partir do título do conto o professor pode fazer perguntas à turma ativando assim seus
conhecimentos prévios a respeito do que irão ler. Como por exemplo: “Alguém sabe o que é
aziago?”, “O que vocês imaginam quando leem esse título noite aziaga?”. “Qual é a sensação que
uma pessoa da cidade experimenta quando viaja sozinha por um lugar deserto e desconhecido?”.
Essas são sugestões de perguntas que o professor pode utilizar para que os alunos comecem a
interagir com o texto.
Começa-se, então, a leitura do conto feita pelo professor em voz alta. E no decorrer da
leitura o leitor faz as inferências. Essas funcionam como uma leitura nas entrelinhas. São
informações que não se encontram explícitas no texto, mas que podem ser inferidas pelo leitor.
Todo texto possui lacunas que devem ser preenchidas no ato da leitura, suposições que ficam ao
encargo do leitor na construção dos sentidos. Veja o excerto:
Fundos sertões de Minas, há muitos anos atrás.
Coroando o cocoruto de um Itambé desnudo, de manchas avermelhadas, agonizava
o sol, lembrando uma aureola radiosa sobre calvice escalavrada.
Nas baixadas as sombras já se derramavam tênues[...]
O Eusébio, após uma viagem de dez léguas, vinha moído, curvo sobre o animal,
um burro baio de crinas negras, de passo viageiro, lento e balanceado (MOTTA,
1922, p. 5).
Assim começa o conto, percebe-se logo que o vocabulário talvez não seja familiar, esse é
um ponto a ser trabalhado durante a leitura. O professor pode mostrar à turma que nem sempre é
necessário recorrer ao dicionário para compreender o significado de uma palavra, mas que ao se
atentar para o contexto a compreensão pode ser espontânea.
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Ao lermos a expressão agonizava o sol, logo inferimos que a noite está próxima o Eusébio
estando cansado, portanto, tende a procurar um lugar onde passar a noite.
Essas são inferências que fazemos logo no início do texto. Mesmo não sabendo, ainda, que,
de fato, Eusébio irá procurar um lugar onde pernoitar. Todas as indicações de que esse fato é
plausível são encontradas no texto desde o início. A narrativa nos encaminha a essas hipóteses.
Primeiro, temos as indicações de que a noite está próxima, segundo, o surgimento de uma
personagem que está fatigada, cansada e distante do lar.
O passo viageiro, lento e balanceado do burro baio, introduz a imagem de uma marcha
cadenciada que embala a personagem, fazendo com que a urgência em repousar se torne eminente,
pois que, o Eusébio vinha moído, curvo sobre o animal. A personagem está sonolenta e necessita de
repouso imediato, e, não só ela, mas seu animal que como indica o ritmo lento de seu passo,
também necessita de repouso e alimento.
Dessa maneira, o leitor é levado a compreender as inúmeras facetas do que está lendo. A
interação com o texto, também é algo aprendido. Não basta ler, é necessário atribuir sentidos, e o
papel do leitor é fundamental, pois as inferências partem não só de suas hipóteses, mas também de
seu repertório de leituras e de seu conhecimento de mundo.
Continuando a leitura, desejamos apontar o que para nós é uma das questões centrais
presentes na narrativa.
Ora, quando ele se aproximou do casebre, com a alma tímida do homem da cidade,
que em geral se amesquinha ao contato com as cruezas das regiões baldias, um
pressentimento de súbito lhe apunhalou. O sertanejo tinha uma cara má, que
parecia revelar “estomago danado”, na frase camoniana (p.7).
— Boa tarde, amigo! Desejava saber se há algum pouso aqui por perto...
— A morada mais perto tem quatro léguas, e de beiço, — respondeu o outro,
entortando a cabeça e deixando escapar do cigarro caboclo, preso ao canto da boca,
uma compacta fumaça azul. E calou-se numa impassibilidade que gelava.
— Quatro léguas! É muita coisa para quem já furou dez, e não sabe o trilho cá pra
diante, de noite, no meio dessa mataria...
— Hum! — resmungou, curto como um sapo, o sertanejo marmóreo. E tirou nova
e mais compacta fumaçada.
Eusébio continuava acariciando a crina do animal, e procurando ler fundo naquela
alma, que principiava a parecer-lhe a de um louco, ou a de um monstro [...] (p.8).
As tensões começam aparecer no texto a partir do momento em que a personagem de
Eusébio vê-se “obrigada” a interagir com o sertanejo. Por meio do fluxo de consciência, o narrador
desvela as sensações de medo da personagem, quando em meio a conjecturas pensa na possibilidade
de descanso num rancho amigável e acolhedor.
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“Mas... nem sempre os ranchos sertanejos são amigos. Coisa rara para honra de nossa terra,
sucede, às vezes, entretanto, topar o mísero viajante, nos sertões longínquos, almas ásperas como
ouriços [...] Era o que haviam dito ao Eusébio.” (MOTTA, 1922, p.6).
O sertanejo é descrito como homem matuto e quieto, porém enigmático “curto como um
sapo”. O silêncio frustra as expectativas inicias de Eusébio distante do homem do campo, visto,
primeiramente como “alegre, hospitaleiro e conversador”. Para Eusébio esse modo de ser do
sertanejo lhe é estranho e causa desconfiança, mola construtora do suspense na narrativa.
Acostumado à vida na cidade onde há conversa cordial, a falta da palavra e os modos desconfiados
do matuto o levam a considerá-lo um possível salteador que está “estrategicamente colocado à beira
do caminho, numa parada inevitável [...] para mais facilmente executar os seus planos infernais”
(MOTTA, 1922, p.8).
Ao passar pela leitura de trechos como esses, o professor, no papel de mediador, poderá
ensinar os alunos a indagar o texto. “Os alunos podem aprender a perguntar ao texto e essas
questões podem ser respondidas no decorrer da leitura com base no texto ou com o conhecimento
do próprio leitor” (COSSON e SOUSA, s. d. p.105). A partir dessa indagação ao texto os alunos
devem ser direcionados a essência da narrativa.
Na descrição das incertezas de Eusébio o sertão não é o lugar de calma e paz, não
simboliza o retiro prazenteiro da cidade grande, mas lugar inescrutável para o viajante incerto
quanto a sua jornada e a segurança do pouso que recebe de bom grado do sertanejo. A visão que
Eusébio tem do sertão é a visão de quem está do lado de lá, a visão do outro, pressupondo todos os
conceitos, preconceitos e estigmas que lhe são peculiares. Se por um lado a imagem de pureza da
natureza é correlacionada à descrição do cenário, por outro, a iminência da violência do matuto
provoca hesitação na personagem.
O conto segue num ritmo de tensão e suspense até o desfecho que surpreende o leitor.
Após a leitura orientada a habilidade que se requer do leitor é, não somente a capacidade de
sumarização, mas de síntese que consiste na articulação do que lemos com as impressões pessoais e
a reflexão crítica.
A conversa em grupo sobre o texto lido consistirá, pois, na etapa final do trabalho com a
leitura. Nesse momento o professor poderá verificar se os objetivos foram alcançados. Ou seja, o
quanto os alunos estiveram envolvidos no processo de leitura e reflexão acerca do texto. Não
podemos descartar a possibilidade de uma atividade escrita, dirigida pelo professor, a fim de
indagar sobre os principais pontos de tensão do texto. Num texto como Noite Aziaga caberia pedir
aos alunos que escrevessem um parágrafo no qual apontassem os elementos de tensão entre as
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personagens que revelam o choque de culturas, por exemplo, o conflito entre sertão e cidade. Ou
então pedir que discorressem de igual modo sobre a seguinte questão: Se o conto prenuncia uma
atmosfera de medo, ansiedade e tragédia, em que consiste o riso do leitor ao final da narrativa?
Quais os mecanismos que articulam o tom humorístico no desfecho?
Nesse ponto se estabelece a dialética que parte do texto literário e se concretiza por meio da
leitura crítica do mesmo.
Todas as etapas explicitadas até aqui devem ser programadas pelo professor de maneira a
adequá-las ao contexto de sua sala de aula, administrando o tempo que deverá ser gasto em cada
etapa. Bem como, atualizando de acordo com seus conhecimentos didático-pedagógicos a maneira
pela qual irá esquematizar os conteúdos ministrados.
Entretanto, o mais importante no trabalho com a literatura é o respeito ao texto literário em
sua integridade. Somente dessa forma poderemos vislumbrar leitores literariamente letrados,
capazes não só de interagir, mas, também, de intervir por meio de seu conhecimento de mundo e de
seu horizonte de leituras num contexto social que se tem mostrado cada vez mais reificado.
Compreendamos, pois, que a literatura não doutrina, não disciplina, mas prepara para a vida
de uma maneira muito mais ampla, impossível de se aferir. “Justamente pelo fato de manter
relações com a realidade social, a literatura incorpora as suas contradições à estrutura e ao
significado das obras” (CANDIDO, 2006, p.202). Essa via de duas mãos entre literatura e sociedade
garante a troca de experiências, como se o texto pudesse ser comparado a uma pessoa com quem
pudéssemos trocar experiências, tornando-nos mais abertos para compreender a vida e os nossos
semelhantes.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho buscamos contribuir para a aproximação das teorias relacionadas ao ensino
de literatura e sua prática efetiva em sala de aula. Acreditamos que a proposta delineada neste artigo
pode colaborar, na medida em que serve como um norte para a abordagem de textos literários, na
prática do professor.
Enfim, o letramento literário demanda um processo educativo específico, em que não basta
por o aluno em contato com diversos textos literário. Por isso é que a escola exerce um importante
papel na prática do ensino de literatura, é na escola que o processo do letramento literário pode se
concretizar.
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Dessa maneira, consideramos que o professor interessado em proporcionar a fruição e a
reflexão acerca da literatura lida em sala deverá munir-se de todos os instrumentos necessário para
tal, além do que deverá ser ele mesmo um leitor crítico e reflexivo.
REFERÊNCIAS
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2006.
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Azul: 2011. p. 169 – 191.
____. A Literatura e a Formação do Homem. In____. Textos de Intervenção. São Paulo: Duas
Cidades, 2002.
CHKLOVSKI, Victor. A arte como procedimento. In: TOLEDO, Dionísio de (org.). Teoria da
literatura: formalistas russos. Porto Alegre: Globo, 1973.
CORTÁZAR, Julio. Alguns Aspectos do Conto. In____. Valise de Cronópio. São Paulo:
Perspectiva, 2006.
COSSON, Rildo. SOUZA, Renata Junqueira de. Letramento Literário: Uma Proposta para a
Sala
de
Aula.
UNESP,
2011.
Disponível
em:
<http://www.acervodigital.unesp.br/handle/123456789/40143> Acesso em 29 de Janeiro de 2014.
CULLER: Jonathan. Teoria Literária: Uma Introdução. São Paulo: Beca, 1999.
EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: Uma Introdução. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
LAJOLO, Marisa. Literatura: Leitores e Leitura. São Paulo: Moderna, 2001.
____. Texto Não é Pretexto. In: ZILBERMAN, Regina (Org.) A Leitura em Crise na Escola: As
alternativas do Professor. Mercado Aberto: Porto Alegre, 1988.
MASSAUD. Moisés. Dicionário de Termos Literários. São Paulo: Cultrix, 1997. 6. ed.
MOTTA, Othoniel. Selvas e Choças. Campinas: Imprensa Methodista, 1922.
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O TEXTO LITERÁRIO EM SALA DE AULA: OBSTÁCULOS E DESAFIOS
THE LITERARY TEXT IN THE CLASS ROOM: OBSTACLES AND
CHALLENGES
Patrícia Henrique Vieira da Silva CARDOSO (PG/UEMS/CAPES) 1
Lucilo Antonio RODRIGUES (UEMS) 2
Resumo: As inquietações vividas pelos professores de Literatura nas escolas estaduais do Estado de
Mato Grosso do Sul (PEREIRA, 2013), quando se deparam com a dificuldade em se trabalhar os
textos literários em sala de aula e a abordagem dada a esses textos no livro didático, é motivo de
reflexão deste estudo. Com base nos conceitos de letramento literário de Cosson (2006), Candido,
(1995) e Zilberman (1988), em uma abordagem de pesquisa/ação, esperamos no desenvolvimento
da pesquisa, contribuir com propostas interventivas para levar o texto literário para a sala de aula,
de forma não fragmentada, para que os alunos possam de fato conhecê-lo, fugindo da maneira como
o texto literário vem sendo abordado dentro dos livros didáticos para o ensino médio nas escolas
brasileiras, focado na cronologia de estilos de época, bem como dados biográficos de autores, em
que os textos literários, quando apresentados, em fragmentos, servem, sobretudo, para comprovar
características dos períodos literários em estudo, figurando no encaminhamento mais tradicional da
literatura.
Palavras-chave: Livro didático. Literatura. Letramento.
1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
O mundo da leitura faz parte da vida de um indivíduo desde a infância até o fim de sua
vida, somos confrontados com a leitura em todos os mecanismos, trabalho, informação,
entretenimento e, sobretudo na educação, o mundo é feito de letras, compreendemos o mundo
através das letras. A falta de leitura é considerada negativa em nossa sociedade. No inconsciente
imaginário coletivo a leitura tem uma imagem positiva, imagem ligada ao prazer, à felicidade à
construção do conhecimento, e saber: conhecer é sempre positivo. Em que lugar da longa
caminhada em direção ao conhecimento se perde esse prazer? A leitura é prazerosa na infância? As
obras do cânone literário são interessantes?
A instituição escolar é onde se deve, mesmo que não exclusivamente, desenvolver os
processos de leitura; e o letramento literário é de suma importância para que o indivíduo possa
1
2
[email protected] PG/UEMS
[email protected] UEMS
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tomar posse, sobretudo dos processamentos sociocognitivos da leitura, discutindo questões
importantes como a decodificação, interpretação, construção de sentido de um texto. A falta de
continuidade no processo de desenvolvimento do letramento literário é o que dificulta, e muitas
vezes impossibilita o trabalho em sala de aula com textos do cânone literário. Essa dificuldade é
acentuada pela maneira como o texto literário é apresentado e desenvolvido no livro didático, livro
esse que é a primeira janela do educando para o encontro com o texto literário, encontro esse
ocorrido no primeiro ano do ensino médio.
Nos livros didáticos utilizados no ensino médio o texto literário e apresentado de forma
problemática e não satisfatória, Marisa Lajolo (2000) em Do mundo da leitura para a leitura do
mundo apresenta discussões a esse respeito, assim como Rildo Cosson (2006) em seu manual
Letramento literário: teoria e prática, desvelando e fundamentando a discussão a respeito das
dificuldades e obstáculos do texto literário em sala de aula subsidiados pelos livros didáticos.
Discutir o lugar que a literatura ocupa em nossa sociedade e por que a consideramos relevante é
uma reflexão básica para quem trabalha com leitura literária. Para Rildo Cosson:
A experiência literária não só nos permite saber da vida por meio da experiência do
outro, como também vivenciar essa experiência. Ou seja, a ficção feita palavra na
narrativa e a palavra feita matéria na poesia são processos formativos tanto da
linguagem quanto do leitor e do escritor. Uma e outra permitem que se diga o que
não sabemos expressar e dizer a nós mesmos. É por possuir essa função maior de
tornar o mundo compreensível transformando sua materialidade em palavras de
cores, odores, sabores e formas intensamente humanas que a literatura tem e precisa
manter um lugar especial nas escolas. (COSSON, 2006, p.17).
A presença da literatura na formação do ser humano enquanto cidadão é de extrema
importância, mas é conveniente afirmar que a formação do leitor parte também da possibilidade e
da vivência que a criança tem com o mundo da leitura mesmo antes de ingressar na escola. Essa
Vivência deve ser estimulada e apresentada pela família e a criança deve ter contato com a leitura
mesmo que não seja alfabetizada. A importância de ouvir histórias na formação da criança, pois
escutá-las é o primeiro passo para a formação de um leitor, ser um leitor não é simplesmente ter o
habito de ler, conforme Fanny Abramovich (1989, p.16) é desta maneira que a família pode
estimular a leitura desde a infância, possibilitando um caminho absolutamente infinito de
descoberta e de compreensão de mundo. A criança deve ser apresentada ao texto primeiramente de
forma oral. Ouvir histórias desperta uma espiral de emoções importantes como: medo, raiva,
tristeza, irritação, bem estar, e ainda que através das histórias podem-se descobrir outros lugares.
Ainda para reafirmar o quanto é importante ouvir, ler, contar historia, (ABRAMOVICH, 1997,
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p.17) diz que é “através duma historia que se podem descobrir outros lugares, outros tempos, outros
jeitos de agir e de ser, outra ética, outra ótica [...]”.
A escola não deve omitir-se nesse processo de formação do leitor literário, se a
oportunização do prazer pela leitura não foi desenvolvido na primeira infância a escola deve
trabalhar para que a literatura cumpra seu papel humanizador (CANDIDO, 1995), buscando uma
maneira de ensinar em que a leitura literária seja exercida sem o abandono do prazer, mas com o
compromisso de conhecimento que todo saber exige.
A prática de leitura do texto literário que deve ser desenvolvida pela escola e
fundamentada pelo letramento literário, o qual Rildo Cosson (2006, p.11) define como, “[tratar-se]
não da aquisição da habilidade de ler e escrever, como concebemos usualmente a alfabetização, mas
sim da apropriação da escrita e das práticas sociais que estão a elas relacionadas”. Letramento que
implica na existência de vários tipos de letramento, já que se trata de uma prática social, um
indivíduo pode ser analfabeto e fazer parte mesmo assim de algum modo de letramento, da mesma
maneira que um indivíduo pode ter um grau sofisticado de letramento em uma área e
superficialidade em outra área.
A literatura é ferramenta e alicerce para o desenvolvimento e formação do ser humano,
mas na escola a literatura parece tomar outros caminhos, distantes do seu papel humanizador, da
arte, da beleza. Para Candido (1995, p. 256) “A literatura corresponde a uma necessidade universal
que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos
sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e portanto nos humaniza”.
No ensino fundamental a literatura é concebida de forma tão genérica que engloba
qualquer texto escrito relacionado à ficção ou à poesia, faz parte da disciplina Língua Portuguesa,
na qual, geralmente, é trabalhada nas aulas de leitura. No Ensino Médio das escolas brasileiras, com
duas aulas semanais, focaliza-se uma cronologia de estilos de época, bem como dados biográficos
de autores, em que os textos literários, quando apresentados, em fragmentos, servem, sobretudo,
para comprovar características dos períodos literários em estudo, figurando no encaminhamento
mais tradicional da literatura, como exemplifica Lajolo (2000, p. 16),
[...] a inscrição do texto (literário) na época de sua produção, uma vez que textos
assim contextualizados nos dão acesso a uma historicidade muito concreta e
encarnada, à qual se cola a obra de arte à revelia ou não das intenções do autor;
outro caminho, a inscrição, no texto, do conjunto dos principais juízos críticos que
sobre ele foram acumulando, fundamentalmente para fazer o aluno vivenciar a
complexidade a instituição literária que não se compõe exclusivamente de textos
literários [...]
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É necessário mudar os rumos desse tipo de escolarização, rompendo o círculo da
reprodução ou da permissividade, para que a literatura cumpra seu papel humanizador, buscando
uma maneira de ensinar mediante a qual a leitura literária, jogando por terra a crença de que
literatura não se ensina que a simples leitura das obras é o suficiente.
[...] se quisermos formar leitores capazes de experienciar toda a força humanizadora
da literatura, não basta apenas ler. Até porque, ao contrário do que acreditam os
defensores da leitura simples, não existe tal coisa. Lemos da maneira como nos foi
ensinado e a nossa capacidade de leitura depende, em grande parte, desse modo de
ensinar, daquilo que nossa sociedade acredita ser objeto de leitura e assim por diante.
A leitura simples é apenas a forma mais determinada de leitura, porque esconde sob
a aparência de simplicidade todas as implicações contidas no ato de ler e de ser
letrado. É justamente para ir além da simples leitura que o letramento literário é
fundamental no processo educativo.
Na escola, a leitura literária tem a função de nos ajudar a ler melhor, não apenas
porque possibilita a criação do hábito da leitura ou porque seja prazerosa, mas sim, e
sobretudo, porque nos fornece, como nenhum outro tipo de leitura faz, os
instrumentos necessários para conhecer e articular com proficiência o mundo feito
linguagem. (COSSON, 2006, p. 29)
O direcionamento dessa relevante questão ajusta-se na eleição de textos literários e da
reflexão da formação do gosto pessoal do leitor. É evidente que essa seleção de textos literários é
problematizada pelos currículos, parâmetros e pelo livro didático que o professor utiliza como base
para suas aulas, já que as aulas de literatura estão a cada dia mais suprimidas e oprimidas das grades
curriculares, e o tempo é inimigo da liberdade de escolha do professor. Conforme Marisa Lajolo
(2000) o papel de planejar as aulas de literatura foi deliberado às editoras de livros didáticos,
inviabilizando o contado direto com textos literários em sua integra no âmbito escolar, e
consecutivamente essa distancia estende-se a vida do alunado, já que em sua maioria o único
contato com o mundo da leitura para os discentes é presença do material didático.
Material esse que pode e deve ser matéria de reflexão. A leitura dentro da sala de aula,
subsidiada por textos dos livros didáticos não despertam nos alunos interesse e tão pouco condições
para a formação de um leitor crítico que possa fazer valer sua participação plena numa sociedade
letrada. Esse desinteresse pode ser motivado pela distância entre a realidade do aluno e a realidade
contextualizada do texto literário apresentado, o livro didático, salvo exceções, utiliza-se de
fragmentos de obras literárias ou textos descontextualizados para a abordagem de tópicos
gramaticais. Além disso, em livros de literatura para o ensino médio os textos literários são
rasamente estudados, com análises superficiais, respostas prontas ou pretexto para a historicidade de
período do qual pertence.
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O papel do professor de literatura em sala de aula é tema infindável para relevantes
discussões. A partir das hipóteses levantadas neste estudo pode-se dizer que o professor muitas
vezes é vítima da falta de tempo hábil para trabalhar os textos literários e de outros fatores
relacionados, o que pode acarretar um “engessamento” por parte do profissional com relação à
sequência distribuída no material didático, ou mesmo uma ilusória sensação de segurança quanto à
possibilidade de ser o gerador, administrador de seu material. Essa enganosa segurança pode-se
explicar por ilimitadas variantes, inclusive de cunho pessoal.
Cosson (2006), vislumbrando a possibilidade do engessamento do professor ser fruto de
um repertório deficitário, reitera que o profissional deve ter um repertório amplo de conhecimento,
literário e de mundo. Já Marisa Lajolo (2000) diz que o professor de literatura tem por obrigação
conhecer as obras do cânone, mesmo que não goste. O papel do professor de literatura é mediar o
processo da leitura, proporcionando a formação de um leitor autônomo, Lajolo (2000). O processo
de mediação da leitura é prejudicado se o professor não for um leitor, desta forma a segurança da
repostas prontas as análises rasas, a amarração com a historicidade das escolas literárias: suas datas,
características, autores, etc.; os exercícios de interpretação de textos acabam convertendo-se em
uma maneira segura de não perder o controle em sala de aula. Mesmo quando o aluno é estimulado
a perceber as marcas discursivas do texto, o excesso de perguntas e exercícios que forçam uma
interpretação predeterminada retiram do leitor a oportunidade de “sentir” e “compreender” o texto.
Pior do que isso: não desenvolvem no aluno a necessária habilidade para perceber as marcas do
texto os significados latentes e não permitem a compreensão da pluralidade de significados, que é
uma das características essenciais do texto poético.
O livro didático concebe o ensino de literatura apoiado no tripé conceito de leituratexto-exercício [...] o conceito de leitura e de literatura que a escola adota é de
natureza pragmática, aquele só se justifica quando explicita uma finalidade - a de ser
aplicado, investido, num efeito qualquer (ZILBERMAN, 1988, p. 111).
2 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Provocar a inquietação no leitor, mediar o processo de leitura, motivar e desenvolver o
pensamento crítico não é tarefa das mais simples e principalmente não é um processo rápido. Mas
falar sobre uma tentativa, uma reflexão sobre o trato dos textos literários nas aulas de literatura é
fundamental, a liberdade de se ler o texto pelo texto é algo que não é recorrente nas salas de aula, a
beleza, a poesia, o prazer que a leitura pode proporcionar é algo impraticável em sala de aula.
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O contato com textos literários nas escolas deve proporcionar ao aluno a possibilidade
do prazer, da humanização, do desenvolvimento do ser humano crítico, a ampliação do horizonte do
ser humano em formação. Vale ressaltar que fórmulas mágicas e receitas infalíveis não estão
presentes no campo da literatura e que reflexões a esse respeito são inesgotáveis.
REFERÊNCIAS
ABRAMOVICH, Fanny. Literatura Infantil: gostosuras e bobices. SP: Scipione, 1989
COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006.
CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. Vários escritos. 3. ed. São Paulo: Duas
Cidades, 1995.
PEREIRA, Danglei de Castro. O ensino de literaturas em Língua Portuguesa em Campo
Grande/MS. MCTI/CNPq/MEC/CAPES Nº07/2011-2013.
LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ed. Ática, 2000.
ZILBERMAN, R. A leitura e o ensino da literatura. São Paulo: Ed. Contexto, 1988.
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TEORIA DA VARIAÇÃO LINGUÍSTICA
THEORY OF CHANGE LANGUAGE
Patricia Damasceno FERNANDES (PG/UEMS)
Resumo: A variação linguística é um fenômeno natural inerente à língua. As línguas mudam
diariamente, variam no espaço, no tempo e nos grupos sociais. Se compararmos a fala de pessoas de
faixas etárias diversas perceberemos as diferenças linguísticas entre elas; quando fazemos a leitura
de um livro antigo sentimos dificuldades em relação a linguagem, pois vivemos em uma época que
não é a mesma em que o livro foi escrito. Se fizermos uma viagem e visitarmos as regiões de nosso
país, teremos noção das várias formas de realização de nossa língua materna, aliás, não é necessário
ir muito longe, se prestarmos atenção em nossa própria linguagem no cotidiano, veremos que ela
varia de acordo com a situação em que estamos inseridos e o grupo linguístico que interagimos.
Esta noção de língua nem sempre foi vigente nos estudos sociolinguísticos, antes a língua era vista
como uma estrutura fechada em si própria e dissociada da sociedade. Com o desenvolvimento dos
estudos linguísticos a língua passa a ser estudada como um sistema heterogênio estruturado que
considera seus aspectos internos e externos no estudo da variação. Este trabalho tem por objetivo
abordar o percurso histórico da concepção de língua culminando na teoria da variação linguística.
Palavras-chave: Língua. Concepção. Variação.
1 INTRODUÇÃO
A sociolinguística é subárea da linguística e estuda a língua em uso correlacionando-a a
aspectos linguísticos e sociais. O objeto de estudo da sociolinguística é exatamente a variação, que é
suscetível a análise científica, sendo influenciada por fatores estruturais e sociais.
Assim, os processos de mudanças que ocorreram e ocorrem ao longo do tempo em uma
comunidade que compartilha traços linguísticos que a distingue de outra comunidade são de
fundamental importância para a sociolinguística.
Sempre existirão em uma comunidade formas linguísticas diferentes que se refiram a mesma
maneira de denominar as coisas, essas duas ou mais formas serão concorrentes, chegará um
momento em que uma delas se tornará mais prestigiada e a outra perderá seu lugar, quando isso
acontecer haverá uma mudança linguística.
A análise sociolinguística estará voltada então para a sistematização da variação linguística,
relacionada ao objeto de estudo, a comunidade de fala, configurada como uma heterogeneidade
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estruturada. Isso possibilitará o processamento do aparente caos linguístico na língua, criando uma
organização para o estudo da língua falada.
A teoria da variação explica a heterogeneidade da língua partindo do contexto sociocultural,
levando em consideração os fatores externos e internos à língua. Para descrever de que modo a
variação se dá em determinada comunidade, é necessário calcular qual a influência de cada fator
interno e externo ao sistema linguístico.
A seguir trataremos sobre concepção de língua que nós norteará a entender os princípios da
teoria da variação linguística.
2 CONCEPÇÃO DE LÍNGUA
Podemos traçar um paralelo entre as concepções de língua, a explicação disso começa com
as visões de língua de Antoine Meillet e Ferdinand de Saussure. Meillet era um linguísta francês
que sempre insistiu no caráter social da língua e era filiado ao sociólogo Émile Durkheim.
Quando Meillet faz uma resenha sobre o livro Curso de Linguística Geral de Saussure,
demonstra sua distância em relação ao pensamento saussuriano. “Ao separar a variação linguística
das condições externas de que ela depende, Ferdinand de Saussure a priva da realidade; ele a reduz
a uma abstração que é necessariamente inexplicável” (MEILLET, 1906, p.166).
Saussure considerava que a linguística tinha como objeto de estudo a língua considerada em
si mesma. Assim Calvet traça paralelos entre Meillet e Saussure:
Quando Saussure opõe linguística interna e linguística externa, Meillet as associa;
quando Saussure distingue abordagem sincrônica de abordagem diacrônica, Meillet
busca explicar a estrutura pela história. [...] Enquanto Saussure busca elaborar um
modelo abstrato da língua, Meillet se vê em conflito entre o fato social e o sistema
que tudo contém: para ele não se chega a compreender os fatos da língua sem fazer
referência à diacronia, á história. (CALVET, 2002, p. 15).
As afirmações de Meillet o fizeram um precursor estando próximo da concepção de Willian
Labov. “Por ser a língua um fato social resulta que a linguística é uma ciência, e o único elemento
variável ao qual se pode recorrer para dar conta da variação linguística é a mudança social”.
(MEILLET, 1965, p.17).
Os dois vieses sobre a língua se desenvolvem de maneira paralela por cerca de meio século.
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2.1 Visão Marxista da Língua
A visão marxista da língua foi uma das primeiras tentativas de análise sociológica dos fatos
da língua. Os textos mais significativos são da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas)
. Nicolai Marr antes da ascensão do comunismo elabora uma teoria que postulava que existia uma
origem comum para todas as línguas do mundo.
Segundo a teoria a comunicação teria se dado inicialmente por gestos e depois por quatro
elementos fônicos (sal, ber, uon et roh) formando a linguagem de uma casta dos feiticeiros. As
quatro sílabas originaram diferentes línguas. “A língua foi, portanto, desde a origem, o instrumento
do poder e é sempre marcada pela divisão da sociedade em classes sociais”. (CALVET, 2002, p.
19).
Marr acreditava que com o socialismo mundial se formaria apenas uma única língua
favorecendo as lutas de classe. A teoria de Marr fica conhecida como a nova teoria linguística e
será imposta na URSS em meados de 1950, nas universidades quem criticava o regime soviético era
obrigada a trabalhar nos campos de trabalho forçado na Sibéria.
Em maio de 1950 começam a ser publicadas intervenções em relação a atualidade da teoria
de Marr, não se sabia ao certo se convinha trabalhar a partir das teorias dele. Em 20 de junho do
mesmo ano Stálin põe fim aos debates afirmando que a língua não é uma superestrutura e que não
tem caráter de classe, e o marrismo chega ao fim. Essa atitude de Stálin irá afastar a sociologia da
linguística.
2.2 Conferência Sobre a Socioliguística
Em 1964 em Los Angeles foi organizada uma conferência sobre a sociolinguística, estavam
presentes: Henry Hoenigswald, John Gumperz, Einar Haugen, Raven McDavidJr., William Labov,
Dell Hymes, John Fisher, William Samarin, Paul Friedrich, Andrée Sjoberg, José Pedro Rona,
Gerald Kelley e Charles Ferguson.
William Bright escrevia as atas da conferência e em meio aos documentos expressa a
dificuldade da sociolinguística: “uma das maiores tarefas da sociolinguística é mostrar que a
variação ou diversidade não é livre, mas que é correlata às diferenças sociais sistemáticas”.
(BRIGHT, 1966, p. 11).
Apesar de contribuir muito para a sociolinguística ele a considerava um anexo que
completava a linguística, a sociologia e antropologia.
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2.3 A Sociolinguística com Labov
Para Labov não há como distinguir entre linguística geral que estudaria as línguas e uma
sociolinguística que leva em conta o aspecto social da língua. Portanto a sociolinguística é a
linguística. A partir dos estudos de Labov irá surgir a linguística variacionista.
3 VARIAÇÃO LINGUÍSTICA
De acordo com Tarallo (2007, p. 08) as variantes linguísticas são as várias maneiras de dizer
uma coisa, sendo o contexto e o valor de verdade os mesmos. Dentro das concepções
sociolinguísticas a variação é vista como uma característica da língua. “[...] a variação é essencial á
própria natureza da linguagem humana e, sendo assim, dado o tipo de atividade que é a
comunicação linguística, seria a ausência de variação no sistema o que necessitaria ser explicado”.
(MONTEIRO, 2000, p.57).
As variantes de uma língua ficam sempre em movimento de concorrência uma com a outra,
a disputa ocorre assim: padrão versus não padrão, conservadora versus inovadora, de prestígio
versus estigmatizada.
A variação linguística é classificada em:
Tipo de Variação
Características
Variação diastrática
Variação de patamar social
Variação diacrônica
Variações por período de tempo
Variação diatópica
Variações por lugares ou regiões
Variação diamésica
Variação entre língua oral e língua escrita
Variação diafásica
Variação individual de cada falante da língua de acordo com o
grau de monitoramento em determinada situação.
Quando nos damos conta que a língua é bem mais rica do que imaginávamos, que existem
diversas variantes espalhadas nas comunidades de fala, começamos a pensar também que a variação
linguística é um verdadeiro caos na língua, que não existe um sistema que possa explicar as regras
dessa variação.
No entanto há solução para organizar explicar o aparente caos. Labov criou um modelo de
análise capaz de sistematizar o que parece desorganizado, a sociolinguística quantitativa.
Se fizermos uma pequena pesquisa, levando em conta regiões diferentes do Brasil e
encontrarmos a mesma variante, teremos a prova de que a variação possui suas regras próprias,
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afinal esses falantes de diversas regiões não se reuniram e por convenção decidiram usar a variante
“X” ou “Y”.
Não podemos negar que se faz presente na língua, regras categóricas, as quais os falantes
nativos não desrespeitam, porque se isso acontecesse poderia haver problemas de comunicação. “É
óbvio, porém, que nem todos os fatos da língua estão sujeitos à variação. Existem regras
gramaticais que se definem com categóricas, desde que um falante não violá-las”. (MONTEIRO,
2000, p. 58).
Outro aspecto importante em relação a variação linguística é que ela deve ser estudada não
apenas por estudantes de letras, futuros professores, mas pelos alunos no Ensino Fundamental e
Médio, que estão construindo suas concepções de língua e não podem ter uma visão preconceituosa
sobre a variação.
Estamos colocando a expressão “erro de português” entre aspas porque a
consideramos inadequada e preconceituosa. Erros de português são simplesmente
diferenças entre variedades da língua. Com frequência, essas diferenças se
apresentam entre variedade usada no domínio do lar, onde predomina uma cultura
de oralidade, em relações permeadas pelo afeto e informalidade. (BORTONIRICARDO, 2004, p.37).
Quando estamos diante dos alunos na escola, temos grande acesso a variação linguística, os
alunos já possuem uma bagagem linguística, originária de suas famílias, vizinhos, amigos, ou seja,
da comunidade em que está inserido, e não podemos ignorar este fato.
Sob o olhar dos sociolinguistas, a variação é a motivação da investigação das pesquisas
sociolinguísticas, é o que faz nossos trabalhos terem sentido, explicar o que parece inexplicável.
Como nos diz Tarallo (2007, p.83) no final de seu livro A Pesquisa Sociolinguística, cabe a nós
investigar aquilo que varia e como a variação pode ser sistematizada.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através de estudos sobre a história da sociolinguística, vimos que as concepções de língua
divergem de acordo com as teorias dos estudiosos, antes a língua era vista como um sistema
abstrato, sem a relevância dos aspectos sociais. A teoria laboviana vem mudar radicalmente o que
aos poucos se colocava pelas restrições ao estruturalismo.
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Com a junção e relação entre língua e sociedade chegamos à variação linguística, que é uma
característica inerente a língua, que faz dela um sistema heterogêneo, porém, sistematizável.
A variação é de grande importância para os falantes da língua e para os pesquisadores, os
falantes da língua precisam conhecer a ampla diversidade de variantes de sua língua tanto para
estudos da gramática normativa quanto para conhecimento de mundo, social e cultura de sua nação,
isso implicará na minimização do preconceito linguístico.
A importância da variação para os pesquisadores está no avanço das pesquisas e descobertas
sociolinguísticas, os desafios são grandes, mas as recompensas são gratificantes, agregam valor e
importância aos estudos linguísticos.
REFERÊNCIAS
BORTONI-RICARDO, S. M. Educação em língua materna - a sociolinguística na sala de aula. São
Paulo: Parábola, 2004.
BRIGHT,W. (ORG). Sociolinguistics, proceedings of the UCLA sociolinguistics conference, La
Have, Paris, Mouton, 1966.
CALVET, L. Sociolinguística-uma introdução crítica. São Paulo: Parábola, 2002.
MEILLET, A. Compte rundu du cours de linguistique génerale de Ferdinand de Saussure, Bulletin
de la Societé Linguistique de Paris.
_______. L’ État actuel des études de linguistique génerale, aula inaugural no college de France, 13
de fevereiro de 1906, retomado em linguistique historique et linguistique génerale, Paris Champion,
1965.
MONTEIRO, J. L. Para Compreender Labov. Vozes. 2000.
TARALLO, F. A pesquisa sociolinguística. São Paulo: Ática, 2007.
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NAU CATRINETA: PROCESSO DE DEVORAÇÃO CRÍTICA NA LITERATURA
DE RUBEM FONSECA
NAU CATRINETA: DEVOURING CRITICAL PROCESS IN THE LITERATURE
OF RUBEM FONSECA
Silvio do Espírito SANTO (PG/UEMS)
Danglei de Castro PEREIRA (UEMS/NEHMS)
Resumo: Este artigo propõe uma reflexão sobre a história "Nau Catrineta", do livro Feliz Ano
Novo, (1975) de Rubem Fonseca. Quando cinicamente confronta a modernidade e os elementos
mais tradicionais da narrativa, de certa forma tensa, ele dialoga com os elementos de uma sociedade
em constante mudança. A abordagem de temas como incesto, assassinatos brutais, estupros e
pedofilia fornece explicações alternativas para o Brasil depois de 1970. O nosso objetivo é
investigar, nesta história, aspectos importantes das suas narrativas e, com isso, aumentar a
compreensão do autor nos limites das narrativas brasileiras, nos últimos anos do século XX.
Acreditamos que o trabalho em questão permite a ampliação da discussão temática sobre os limites
do Modernismo no Brasil, que contribui para a reflexão em face da relação tensa entre a tradição e a
inovação na narrativa do século XX. Nossa preocupação, portanto, era a valorizar o texto de
Fonseca e refletir sobre os limites da influência modernista na literatura brasileira depois de 1950.
Palavras-chave: Rubem Fonseca. Modernismo. Antropofagia. Narrativa.
1 O MODERNISMO NO BRASIL
O Brasil, no início do século XX, era um país pouco participativo no jogo das grandes
potências mundiais dado tanto a sua irrelevância política nos grandes eventos externos quanto o seu
fraco desempenho econômico interno. Recém-apresentado à República, engatinhava em quase todos
os quesitos fundamentais para poder se reconhecer como uma nação.
Nesse sentido, coube aos intelectuais brasileiros buscar uma resposta ou alternativa aos
grandes problemas da época, como bem observa Mário de Andrade:
Manifestando-se especialmente pela arte, mas manchando também com violência
os costumes sociais e políticos, o movimento modernista foi o prenunciador, o
preparador e por muitas partes o criador de um estado de espírito nacional. A
transformação do mundo com o enfraquecimento gradativo dos grandes impérios,
com a prática europeia de novos ideais políticos, a rapidez dos transportes e mil e
umas outras causas internacionais, bem como o desenvolvimento da consciência
americana e brasileira, os progressos internos da técnica e da educação, impunham
a criação de um espírito novo e exigiam a reverificação e mesmo a remodelação da
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Inteligência nacional. Isto foi o movimento modernista, de que a Semana de Arte
Moderna ficou sendo o brado coletivo principal. (ANDRADE, M., 1974, p. 231).
Essa grande investigação, afirmada por Mário de Andrade na sua verificação posterior do
epicentro modernista, era de valiosa importância e encontrou um Brasil ainda não reconhecido, o
que Oswald de Andrade, no Manifesto da Poesia Pau Brasil, chamou de a “face oculta nos cipós
maliciosos da sabedoria.” (ANDRADE, O., 1990, p. 41). Assim, conseguir compreender a
diversidade nas faces erudita, culta ou popular, tanto nas cidadezinhas mais distantes, como nas
cosmopolitas capitais foi um aspecto relevante da modernidade perseguida pelos artistas brasileiros
de então.
Nessa perspectiva, ampliar o horizonte de expectativas do leitor, apresentando o heterogêneo
de uma cultura ainda jovem e híbrida; ter liberdade para realizar experimentações temáticas; acesso
à grande fonte da cultura popular e apresentar aspectos de crítica social são características
importantes no desenvolvimento do Modernismo no Brasil.
Antonio Candido (2000) comenta que na cultura brasileira havia “uma ambiguidade
fundamental: a de sermos um povo latino, de herança cultural europeia, mas etnicamente mestiço
situado no trópico, influenciado por culturas primitivas, ameríndias e africanas.” A aceitação, por
parte dos próprios brasileiros de uma identidade em formação e afirmação é uma importante
contribuição do Modernismo à tradição literária brasileira, pois “o Modernismo rompe com este
estado de coisas. As nossas deficiências, supostas ou reais, são reinterpretadas como
superioridades.” (CANDIDO, 2000, p. 110, grifo do autor).
O Modernismo, porém, não pode ser considerado um divisor de águas, mas sim o
prolongamento de uma tradição já perceptível desde a fundação de nossa literatura, “um novo passo
cíclico em relação ao devir da literatura brasileira.” (ÁVILA, 1975, p. 30). Essa tradição vai aos
poucos sendo delineada e encontramos marcas dessa transformação ao longo do tempo.
Assim sendo, levando-se em conta todos os “andamentos cíclicos da consciência criadora
nacional”, conforme proposto por Ávila (1975, p. 30), o Barroco representaria a época de
apropriação da realidade. O Romantismo, de posse dessa mesma realidade e o Modernismo, o
estágio de reflexão sobre a realidade. E em termos de linguagem, valeria esta correspondência:
Barroco, apropriação; Romantismo, posse e Modernismo reflexão. Nesse sentido, o Modernismo se
configurou como uma continuidade evolutiva nos processos de apropriação crítica dentro da
tradição brasileira.
Com o Modernismo apresenta-se, então, uma busca pela valorização da fusão reflexiva
tantas vezes ensaiada na tradição brasileira, como no Romantismo. Cruzar o meio, a paisagem,
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avistar o interior rico em representações permeadas por um senso de elevado valor social são
exemplos da forma inovadora e crítica com que o Modernismo lidou com a temática nacional.
Mário de Andrade (1972, p. 244) questiona se “a realidade brasileira, mesmo psicológica,
seja agora mais forte e insolúvel que nos tempos de José de Alencar ou de Machado de Assis. E
como negar que estes também pensavam brasileiramente?”. Nesse sentido, Gregório de Matos, os
árcades mineiros, a utopia e a ironia romântica, a negação e resistência parnasiana e simbolista são
elementos necessários para chegarmos aos aspectos contestadores da literatura do século XX. Lima
Barreto, Graça Aranha, Lobato e, por fim, os modernistas produziram uma reorganização crítica do
passado, o que para Oswald de Andrade pode ser compreendido como antropofagia.
Vale dizer que a década de 1930 precisa ser observada sob a mesma perspectiva da fase
inicial do Modernismo ─ etapa do movimento modernista que, conforme Mário de Andrade (1974,
p. 237), passou do “período heroico [para o] realmente destruidor”, e teve como motor uma “prosa
revolucionária do grupo de 22 (cf. Macunaíma, Memórias Sentimentais de João Miramar, Brás,
Bexiga e Barra Funda)” (BOSI, 1986, p. 435). Essa identidade entre as duas fases modernistas
baseia-se no fato de que na década de 1930 o Modernismo apresentava novas configurações que
exigiam novas composições artísticas. Esse ajuste temático é mais nítido na prosa, tanto que o
segundo momento modernista é “a etapa áurea da ficção modernista e das mais altas da literatura
brasileira.” (COUTINHO, 1999, p. 277).
Em seu diálogo com a contemporaneidade, o Modernismo alcançado pelas artes brasileiras é
também, conforme Ávila (1975, p. 34), “um processo de reflexão”. É quando a arte, nascendo de
uma conflagração explosiva, sentida em várias frentes, terá de ser explicada também teoricamente
─ e às vezes com mais propriedade ─ pelos próprios artistas, configurando o que Compagnon
(1996, p. 59) chamou de “terrorismo teórico”. Essa necessidade de justificar a arte criada leva a um
território inexplorado, no qual os autores por meio de introduções, posfácios ou livros de teoria
literária abordam não só suas obras, mas também a própria modernidade. Nesse sentido, “os
modernos não tinham teorias. Foi com a ajuda de teorias que as vanguardas tentaram assegurar o
porvir.” (COMPAGNON, 1996, p. 65).
Mas o processo de reflexão aludido não é só esse. Para Octavio Paz (1976, p. 134, grifo do
autor), “o que distingue a modernidade é a crítica: o novo se opõe ao antigo e essa oposição é a
continuidade da tradição.” Ocorre, então, essa necessidade de evitar a petrificação, de se manter o
diálogo (mesmo que tensivo) entre o novo e o antigo e isso era possível em grande medida graças
ao julgamento que os modernistas faziam paralelamente ao ato da criação.
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Esse processo de reflexão crítica sobre a realidade se dá não só pela utilização das lições
culturais de países mais antigos, mas também pela assimilação de técnicas e adoção de novos
procedimentos narrativos, misturando isso ao que é local, ao que é realmente primitivo e, por isso
mesmo, pleno de possibilidades.
Mas como é possível assim esquecer que os grandes nomes novos, que fazem hoje
o nosso orgulho, quer reagindo contra o Modernismo, quer não, dele [se]
beneficiaram e [se] beneficiam! Antiacadêmico por excelência, o Modernismo foi
um violento ampliador de técnicas e mesmo criador de novas técnicas
(ANDRADE, M., 1946, apud SÁ, 2013, p. 301).
Habermas (2000), revisitando os ensinamentos de Hegel, pondera que “uma modernidade
sem modelos, aberta ao futuro e ávida por inovações só pode extrair seus critérios de si mesma.”
(HABERMAS, 2000, p. 56). E, para isso, o escritor valendo-se, de início, da palavra, da frase, do
sintagma, evolui daí para operações mais complicadas que têm a ver com toda a problemática
estrutural do texto. Privilegia-se assim a linguagem à frente dos aspectos operativos do texto, numa
reflexão limitada não só ao texto, mas também ao contexto, ao modo da expressão, aos
personagens, na apresentação do texto, quer seja em formato curto ou extenso.
Rubem Fonseca não escapa às influências mais elementares do modo de narrar da segunda
metade do século XX, procurando, a seu modo, recriar um Realismo, só que mais contundente que
o anterior. O autor se apropria dos modos formais e alonga-os num processo de recriação literária.
Dessa maneira, Fonseca se volta para o seu tempo, em que já se evidencia uma total dissolução dos
aspectos mais básicos de humanidade, apresentando-os numa tela nua e crua.
Partidário tanto de uma tradição em que narrar é objetivamente contar uma história, quanto o
moderno modo de, subjetivamente, contar essa mesma história, Fonseca transita sem medo pelos
caminhos narrativos modernos e faz de seu olhar uma crítica à realidade que cerca a si próprio e,
óbvio, aos seus personagens, que surgem perdidos e vagam de desencontro em desencontro atrás de
objetivos, por vezes evidentes, por vezes obscuros. Rubem Fonseca deixa evidente sua reflexão
crítica não de maneira panfletária, mas permeando seu texto e a estrutura narrativa, ora com
violência explícita, ora com sentimentalismos, agregado a estranhamentos, uma das marcas
modernistas.
2 FONSECA E O MODERNISMO: ANTROPÓFAGO TARDIO
A palavra antropofagia remete a uma cerimônia, ou ritual indígena, de apropriação, de
submissão, de deglutição do outro. Sabe-se que o ritual antropofágico consistia em devorar o
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inimigo, com o intuito de assimilar suas virtudes, obter sua força, coragem, poder; como no célebre
poema romântico de Gonçalves Dias. Desse modo, “tratava-se de um rito que, encontrado também
em outras partes do globo, dá a ideia de exprimir um modo de pensar, uma visão do mundo, que
caracterizou certa fase primitiva de toda a humanidade” (ANDRADE, O., 1978, p. 77),
diferentemente do canibalismo puro e simples, que seria da ordem da necessidade, da
obrigatoriedade de se alimentar do outro com vistas à sobrevivência ou, como afirma Oswald (1978,
p. 77), “uma antropofagia por gula e também a antropofagia por fome”.
Nesse sentido, os modernistas se apropriaram do termo antropofagia, utilizando-o com o
sentido de assimilação da arte praticada pelo outro. Sob uma profunda influência das vanguardas
europeias, o movimento propunha-se a deglutir, absorver e recriar, regurgitando com novas
configurações as influências várias, principalmente voltando o olhar para as cores locais. Era essa a
chave do ideal antropofágico modernista: criar em nosso país uma nova maneira de fazer arte,
revisitando, reconhecendo e recriando a partir da realidade brasileira.
Oswald de Andrade resume isso no Manifesto Antropófago, quando pondera sobre a
necessidade de “absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem” (ANDRADE, O., 1978,
p. 18). E Rubem Fonseca utiliza-se muito mais daquilo que Oswald chamou de “baixa
antropofagia”, a que estaria “aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o
assassinato” (1978, p. 19). Sua produção literária elege como temas: incesto, traição, injustiça,
crueldade, vingança, ciúme, rivalidade, desejo, perda, desonra, dor, que são apresentados a partir de
um olhar que se volta tanto para saquear a história da literatura em si, quanto para fotografar os
contextos sociais emergentes ao redor.
A antropofagia ritual presente na obra de Rubem Fonseca surge como crítica, como
desmascaramento, como cópia, haja vista a reutilização de passagens célebres da literatura,
adequando-as aos contos, aos romances ou, ainda, absorvendo-as e mesclando à sua literatura de
maneira sui generis.
No livro, Vastas emoções e pensamentos imperfeitos (1988), a fonte é o autor moderno Isaac
Bábel, e a possível existência de um manuscrito perdido dele. O narrador passa noites, relendo A
Cavalaria Vermelha, de Bábel na tentativa de escrever um roteiro de cinema com os contos do
autor. “Cada conto era uma obra-prima. Não sei o que me impressionava mais: a tensão, o
equilíbrio entre ironia e lirismo, a elegância da frase, a precisão, a concisão.” (FONSECA, 1988, p.
37).
No romance Caso Morel (1973), o uso das citações faz parte do plano da obra em si,
ocorrem em profusão e vão dos clássicos greco-latinos a artistas contemporâneos além de vários
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idiomas, textos que se misturam ao ritmo da obra, dilatando significados e interpretações: “Os
romanos inventaram a camisa-de-vênus, conforme Antonius Liberalis conta nas Metamorfoses. Em
1564 o dr. Fallopius redescobriu-a, ao recomendar o uso de um saco de linho como preventivo das
infecções venéreas.” (FONSECA, 2010, p. 12). Ao colocar em cena figuras tão díspares quanto
Hesíodo, Ovídio, Giotto, Balzac e Blake, não apenas usando citações sem explicitar suas fontes
como também empregando línguas estrangeiras como o francês, o escritor busca estabelecer uma
espécie de jogo com o leitor ao mesmo tempo em que revitaliza a antropofagia.
Em Bufo & Spallanzani (1985), Tolstói aparece nos sonhos do narrador para tentar tirá-lo da
imobilidade criativa. Além de utilizar ao longo do livro frases ou pensamentos de autores
referenciando-os dentro de parênteses: “Isso faz parte da nossa incoerência esquizoide intrínseca
(V. W. Whitman)” (FONSECA, 1985, p. 147). No conto “74 degraus”, do livro Feliz Ano Novo, um
cavalo cuja foto está dependurada na parede em uma das passagens do conto, chama-se Lord Jim,
personagem icônico de Joseph Conrad.
Seria um trabalho complexo e delicado a catalogação das inúmeras citações fonsequianas. E
nem só metaficção e metalinguagem são características antropofágicas que se visualizam em sua
obra. Por meio delas, a possibilidade de uma revisão irônica do cânone, atribuindo valores a novas
especificidades do todo da produção artística do mundo.
Ao refletir o momento em que vive, Rubem Fonseca movimenta-se numa linha tênue entre
anotar o presente, pensar o futuro, mas sempre revivificando o passado. Esse elo que o põe em
contato com o Modernismo é justamente o que Mário de Andrade (1974, p. 242), na sua revisão do
movimento, chamou de “fusão de três princípios fundamentais: o direito permanente à pesquisa
estética; a atualização da inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma consciência
criadora nacional.”
Essa fusão de princípios proposta por Mário, acrescida da antropofagia oswaldiana, ilustra o
que Campos (2006) caracteriza de
[...] o pensamento da devoração crítica do legado cultural universal, elaborado não
a partir da perspectiva submissa e reconciliada do “bom selvagem” [...], mas
segundo o ponto de vista desabusado do “mau selvagem”, devorador de brancos,
antropófago. Ele não envolve uma submissão (uma catequese), mas uma
transculturação; melhor ainda, uma “transvaloração”: uma visão crítica da história
como função negativa (no sentido de Nietzsche), capaz tanto de apropriação, como
de expropriação, desierarquização, desconstrução. (CAMPOS, 2006, p. 234-235).
Esse pensamento está na gênese da herança recebida por Rubem Fonseca dos modernistas,
que se coloca desse modo dentro da fronteira dos autores que narram uma específica biografia das
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metrópoles, iniciada em nossa literatura com Mário e Oswald de Andrade, que compartilharam o
tumulto de São Paulo da década de 20. Ao seu olhar interessa a convergência das vicissitudes das
classes altas, médias ou baixas, efetivada hiper-realísticamente, o que é uma ampliação do foco
modernista.
Óbvio que a cidade que surge agora está longe de ser igual a cantada no começo do século
XX. O desejo de que as máquinas libertassem os seres humanos, ocupando todos os espaços, não se
realizou. O progresso acabou transformando os espaços. As cidades cresceram a um ponto
inimaginável, tornaram-se megalópoles, avanços antevistos por Oswald de Andrade em seu
manifesto (1978, p. 17): “A fixação do progresso por meio de catálogos e aparelhos de televisão. Só
a maquinaria. E os transfusores de sangue.” Os conflitos sociais ampliaram-se e que, narrados pelos
romances da década de 30, já mostravam vidas partidas naquilo que era apenas o preâmbulo de um
capitalismo selvagem praticado posteriormente. Na literatura levada a termo por Rubem Fonseca, a
degeneração social está em outros níveis.
Tem-se, então, não mais a procura sistemática por um idioma brasileiro e sim a apresentação
da realidade bárbara por trás da linguagem chula, utilizada ao extremo, por todas as classes sociais.
Longe das convenções, a fala popular aparece na sua materialidade visual. E, como o que rege a
sociedade agora é a gigantesca indústria cultural, “as relações humanas acabam se realizando
segundo a mesma lei que rege a comunicação de massa, ou seja, a absolutização de uma palavra sob
a máscara formal da troca.” (FIGUEIREDO, 2003, p. 38).
Rubem Fonseca devora as influências que recebe e as mistura com sua habilidade, criando
uma consonância que reflete tanto uma modernidade tardia quanto a tradição, de quem é também
herdeiro. A antropofagia é uma marca célere da modernidade e sua presença pode ser sentida em
toda América, com maior ou menor intensidade. Haroldo de Campos atribui aos autores americanos
o epíteto de novos bárbaros:
A mandíbula devoradora desses novos bárbaros1 vem manducando e
‘arruinando’ desde muito uma herança cultural cada vez mais planetária, em
relação à qual sua investida excentrificadora e desconstrutora funciona com
o ímpeto marginal da antitradição carnavalesca, dessacralizante, profanadora
[...]. São mecanismos que esmagam a matéria da tradição como dentes de um
engenho tropical, convertendo talos e tegumentos em bagaço e caldo
sumoso. (CAMPOS, 2006, p. 251).
1
Os bárbaros aludidos por Haroldo de Campos são: Lezama Lima, Julio Cortazar, Cabrera Infante, Jorge Luis Borges,
Octavio Paz, Severo Sarduy, Dyonélio Machado, Guimarães Rosa, Carlos Fuentes, Vargas Llosa entre outros, que
fariam diversos e singulares diálogos antropofágicos com as grandes obras publicados no mundo todo.
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Em Fonseca, a tradição mescla-se ao romance noir americano, que já de antemão realizava
colagens de Edgar Allan Poe. Assim, Shakespeare, Homero, Dante e uma vasta rede de influências
transparece no conto “A matéria do sonho”, do livro Lúcia McCartney, em que o narrador dispara
listas e mais listas de livros lidos, numa recriação alegórica de uma gigantesca biblioteca, aos
moldes do que se poderia chamar de sebo, entremeando clássicos a outros de qualidade duvidosa:
Li: Carpinteiros, levantem bem alto o pau da fileira, Mas não se mata cavalo?, O
manuscrito de Saragosa, A peste, O gato de botas, Sem olhos em Gaza, Servidão
humana, A vida curta e feliz de Francis J. Macomber, Santuário, Os moedeiros
falsos, Beau sabreur, O escaravelho de ouro, Humilhados e ofendidos, Luz de
agosto, O Estado-Maior alemão, O naturalista do rio Amazonas, Aventuras de
Sherlock Holmes, Vivanti, As joias de Ostrekoff, Vítimas e algozes, O mistério de
Malbackt, A família Molereyne, [...]. (FONSECA, 1994, p. 330).
O mesmo se dá em “Intestino Grosso”, conto em que há uma complexa rede de alusões ao
universo das letras, em um processo de revisão literária irônica por parte do protagonista, tanto da
sua obra, quanto a literatura em si. Como quando responde a razão por ter demorado tanto para
começar a escrever e a resposta é que queriam que escrevesse igual ao Machado de Assis: “Os caras
que editavam os livros, os suplementos literários, os jornais de letras. Eles queriam os negrinhos do
pastoreio, os guaranis, os sertões da vida.” (FONSECA, 1994, p. 461).
Para Haroldo de Campos (2006, p. 255), “escrever, hoje, na América Latina como na
Europa, significará, cada vez mais, reescrever, remastigar”. Rubem Fonseca capta assim, a
posteriori, as evocações contidas no Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, e concilia alta
e baixa antropofagia, aproveitando-se do vasto manancial artístico do qual é herdeiro e partidário,
criando, assim, um ambiente de dissolução. O ideal antropofágico revive na literatura de Fonseca,
que passa ao largo de discussões quanto à criação/existência de um caráter nacional na arte, mas por
meio de seus processos criativos apresenta uma nação imersa em particularidades, em uma luta
complexa pela sobrevivência, uma busca entre os cacos de uma sociedade ainda desigual, como já o
era na década de 20/30 do século passado.
3 “NAU CATRINETA”: PROCESSO DE DEVORAÇÃO CRÍTICA
Alguns caminhos interpretativos para a obra de Rubem Fonseca são aparentemente simples,
contudo, mesmo em contos que não sejam notoriamente policiais, o engano é uma arma proposital.
Acostumado a lidar com o mascaramento diário dos sentimentos humanos e a confrontar
cinicamente a modernidade e os elementos mais tradicionais de uma sociedade em permanente
mudança, Fonseca estrutura de maneira distinta seus textos. O autor surpreende ao trazer para seus
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escritos temas polêmicos como incesto, assassinatos brutais, estupro, pedofilia etc., escritos esses
que se revivificam no pós-leitura, como é o caso do conto “Nau Catrineta”, que mostra a passagem
de comando em uma tradicional família de origem portuguesa, com o advento da maioridade do
último membro masculino, em uma espécie de antropofagia.
Visto como uma “obrigação inarredável de todo primogênito [...], acima das leis de
circunstância da sociedade, da religião e da ética...” (FONSECA, 1994, p. 437), o ritual
antropofágico a que José precisa se submeter e também a maneira como tudo se desenrola causam,
em um primeiro instante, estranhamento. Os papéis atribuídos a cada personagem e o modo com
que a história é contada leva na verdade a um distanciamento. O sentimento geral, ao fim do conto,
não é de pena, ou comiseração pela morte de uma pessoa de maneira banal, e sim por se estar diante
de um embuste mal disfarçado.
A história se desenrola dentro de uma sequência pré-determinada de fatos e atos que seu
desfecho não chega a causar espanto, mas sim um riso amarelado. Então é isso? Só isso? As
releituras surgem então para salvar o conto. Desse modo, o foco necessita passar longe do caminho
simplista e mirar as entrelinhas do texto. É necessário abrir o texto, como o legista do conto
“Duzentos e vinte e cinco gramas”, de Os Prisioneiros, e se pesar as palavras, medir as frases, pois
o disfarce está por todos os lados.
O enredo de “Nau Catrineta” se resume ao seguinte: no aniversário de maioridade do último
homem de uma tradicional família portuguesa, José, as suas quatro tias preparam-se para um ritual
que acontece na família há gerações. Nessa cerimônia, era necessário que José matasse e, após ser
preparada pelas tias, comesse a carne de uma mulher, para que assim recebesse o anel do seu pai e
se tornasse o chefe da família.
Os ritos são seguidos à risca e para amparar a necessidade de manutenção dessa tradição, as
tias aludem ao navio português chamado Nau Santo Antônio, que, em 1565, sob o comando de
Jorge de Albuquerque Coelho, teria ficado sem alimentos no caminho de volta para Portugal e para
que todos não morressem de fome, sorteavam aleatoriamente algumas pessoas para serem a comida
do restante dos tripulantes. Fato esse, segundo a tia Julieta, omitido posteriormente por ser um tabu.
Qual a razão de tamanha simplicidade narrativa? Nem ao menos um suspense sobre a
maneira como a história se desenrolaria foi feito. No conto, tudo acontece cronologicamente em um
dia e uma noite apenas, não há conflito: “era uma missão dura, que o meu pai havia cumprido e o
meu avô e o meu bisavô e todos os outros” (FONSECA, 1994, p. 437). Nenhum clímax: “Com um
gesto elegante levou a taça aos lábios e sorveu um pequeno gole [de champanhe com veneno]. A
taça caiu de sua mão sobre a mesa, partindo-se, e logo o rosto de Ermê abateu-se sobre os
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fragmentos de cristal.” (FONSECA, 1994, p. 443). O desfecho é morno: “quando engoli o primeiro
bocado [de cozido de nádega da namorada], tia Julieta, que me observava atentamente, sentada,
como as outras, em volta da mesa, retirou o Anel de seu dedo indicador, colocando-o no meu [...] És
agora o chefe da família.” (FONSECA, 1994, p. 443).
Uma das alternativas para a compreensão do conto seria, conforme proposto por Luiz Costa
Lima (1981, p. 147), a “poética da ampliação”, que trabalharia com a ampliação dos clichês, dos
estereótipos dentro de uma linguagem banalizada, nesse caso, de uma história repleta de lugarcomum, e através do exagero proposital, desviar a atenção daquilo que realmente interessa na obra:
o confronto entre a tradição e a modernidade, pano de fundo, presente na materialidade do texto,
mas que tem sua compreensão interditada por interesse mais direto e chocante, a antropofagia.
No intuito de ocultamento, Rubem Fonseca utiliza artifícios facilmente detectáveis, um deles
remete ao Cancioneiro de Almeida Garret e aos versos de “Nau Catrineta”, cujo nome de nau já é
um disfarce para algum barco que Garret (1963) não deseja ser reconhecido:
A Nau Catrineta foi provavelmente o nome popular de algum navio favorito;
diminutivo de afeição posto na Ribeira das Naus a algum galeão “Santa Catarina”,
ou coisa que o valha. Dar-lhe-iam esse apelido “coquet” por sua airosa mastreação,
pelo talhe elegante de seu casco, por alguma dessas qualidades graciosas que tanto
aprecia o olho exercitado e fino da gente do mar. Ou talvez é o nome suposto de
um navio bem conhecido por outro, que o discreto menestrel quis ocultar por
considerações pessoais e respeitos humanos. (GARRET, 1963, 52).
A história da nau comandada por Jorge de Albuquerque Coelho é muito conhecida, mas a
versão mostrada por Garret é a versão romântica que tem final extremamente religioso e na qual o
capitão do navio, um herói que teria evitado que os marinheiros se alimentassem de carne humana,
salvo do mar por um anjo e tendo o demônio desaparecido num estouro. Mesmo assim, o simples
mencionar do nome Nau Catrineta, automaticamente, remete o leitor para o canibalismo, pois, como
afirma Garret (1963), havia diversas narrativas em prosa contando história parecida com a do
poema, inclusive versões mais cruas, bem próximas da suposta realidade.
Na estrutura narrativa do conto, inexiste complexidade, beirando-se à subliteratura. A ação
ocorre no decorrer de um dia e uma noite. O narrador em primeira pessoa indica o caminho
simplista. A linguagem utilizada é parte desse processo de mascaramento das intenções: pouca
objetividade, quase nenhuma subjetividade. Algumas construções são tão clichês que custa crer que
ali estão: “O sol entrava pela janela e eu ouvia os pássaros cantando no jardim da casa. Era uma
bela manhã” (FONSECA, 1994, p. 437) ou “A brisa fresca da noite de maio punha em desalinho os
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seus finos cabelos louros.” (FONSECA, 1994, p. 438). Nem a morte de Ermê, a namoradaalimento, causa alguma comoção, ampliando assim a sensação de tautologia vazia.
Se há o pecado pelo exagero proposital em direcionar o olhar do leitor para o estereótipo de
uma narrativa simplista, chegando próximo daquilo que Luiz Costa Lima (1981, p. 152) chamou de
“pop pictórico” em Rubem Fonseca, em que a apropriação literária levaria o leitor a uma escolha
radical: horrorizar-se e apelar para os bons costumes, abandonando a leitura, ou horrorizar-se com
uso da linguagem, que revelaria uma brutalidade e com isso alcançar uma iluminação. Nos dois
casos, o limite entre obter êxito e criar algo kitsch é bem tênue. Haverá também a possibilidade de
penetrar nos interstícios da leitura e através de analogias atualizar os papéis da tradição e da
modernidade como princípios ordenadores do mundo.
Se tomarmos o processo antropofágico existente na narrativa e nos apropriarmos dele como
sendo uma característica importante para o período moderno da nossa arte, tem-se assim uma
primeira alteração nos valores ocultos do texto. Uma antropofagia ritual, o nutrimento do guerreiro
que vence seus inimigos e dele se alimenta para obtenção de suas qualidades, seu vigor, sua energia
vital, era o que José procurava em Ermelinda Balsemão: “seu corpo tinha a solidez e o odor de uma
árvore de muitas flores e frutos, e a força de um animal selvagem livre.” (FONSECA, 1994, p. 442).
O processo de devoração é um rito que a sociedade transformou pelo enfrentamento do tabu,
absorvendo-o educativamente. Alimenta-se da sabedoria do outro, aprende-se com os mais velhos,
suga-se a força alheia pela análise laboriosa das atitudes especiais dos que se põe em evidência. A
sociedade, eufemisticamente, mudou os códigos, mas continua aceitando e orientando a
antropofagia em uma espécie de antropofagia pedagógica.
Ora, antropofagia é característica inerente a diversas sociedades primitivas e uma
característica comum ao período moderno foi o retorno a determinados tipos de primitivismos.
Benedito Nunes, prefaciando obra de Oswald de Andrade (1978, p. 18), pondera que “o
primitivismo dos pintores e poetas expressionistas, dadaístas e surrealistas consistiu na expressão
interior dominante, fosse através da emoção intensa, do sentimento espontâneo, fosse através da
provocação do inconsciente, que deriva para [...] a catarse”. Assim, em “Nau Catrineta”, a narrativa
de Rubem Fonseca, seja pelo uso de uma linguagem sintética, seja pela reutilização de modelos ou
pela trivialidade, aproxima-se do primitivismo catártico. No conto em questão, o modelo
reaproveitado foi o da metalinguagem. A partir dos modelos de uma fotonovela e da pulp-fiction, a
trivialidade subjaz na linguagem simplória e fingida, cheia de lugares-comuns, amparando-se na
suposta história da nau.
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Uma segunda vertente para compreensão textual reside no poder latente da tradição. O
mundo caminha por dicotomias, e, nesse sentido, o confronto entre tradição e modernidade é o
enfrentamento mais antigo da sociedade. O novo sempre enfrenta o antigo, na luta por espaço ou
mudança de orientação, pela reformulação de ideias, pela salvação. No conto, a tradição enfrenta
bravamente o elemento moderno e o domina pela opacidade da linguagem, pela manutenção do
ritual. A tradição está impregnada no ambiente, nas tias, na governanta. Nos menores atos que
movimentam a casa, respira-se o tradicional: “Dona Maria Nunes, a nossa governanta, construiu
enormes e elaborados penteados na cabeça de cada uma; como era praxe entre as mulheres da
família, as tias nunca haviam cortado os cabelos.” (FONSECA, 1994, p. 437).
Respira-se também, no opressivo ambiente familiar, uma arte ritualística voltada para
manutenção do status quo: “Tia Olímpia vestia-se com o traje que usara ao representar a École des
femmes, de Molière” (FONSECA, 1994, p. 436), ou como variação, “o traje que usara ao
representar Fedra pela última vez.” (p. 437). O cerceamento ao elemento moderno da casa, José, dáse em todas as frentes, inclusive com a atribuição do epíteto de poeta, que como um bardo à moda
antiga, retira-se do mundo – nesse caso para sua biblioteca e fica ali a criar e recriar o mundo à
volta, “não sabia fazer nada a não ser escrever poemas.” (FONSECA, 1994, p. 442). A arte é algo
desprovido de valor, de interesse prático, quando valorizada é somente um simulacro, uma farsa,
dentro da farsa maior; um postar-se de maneira representativa perante a sociedade.
A tensão entre tradição e modernidade permeia todo o conto, quer seja no ato de entrega de
“um velho e ensebado livro de capa de couro com presilhas de metal dourado [O Decálogo
Secreto]” (FONSECA, 1994, p. 436), que representaria a tradição; quer na figura de uma avó
anarquista que “fabricava bombas no porão daquela casa sem que ninguém suspeitasse. Tia Regina
costumava dizer que todas as bombas que explodiram na cidade entre 1925 e 1960 tinha sido vovó
que fabricara e atirara” (FONSECA, 1994, P. 437), representando a modernidade. Cabe ressaltar
que a tradição se mantém pelos objetos, símbolos de poder, como o livro de capa de ouro, o anel, os
cabelos virgens, entre outros. A modernidade, por sua vez, transparece como elemento de
confronto.
A tradição exposta está por todos os lados, como na criação dos animais para consumo
próprio: “por falar nisto, este cabritinho que estamos comendo foi criado por nós mesmos, te agrada
o paladar?” (FONSECA, 1994, p. 440). Ou ainda, no Decálogo Secreto que é entregue a José e que
remete às tábuas com os dez mandamentos que Moisés recebeu de Deus. Está também no
relacionamento respeitoso com a arte, que permeia toda a narrativa, tendo em vista que José seria
um poeta e teria uma missão e todos os “primogênitos da família eram e são obrigatoriamente
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artistas e carnívoros.” (FONSECA, 1994, p. 438). Encontramos a tradição ainda na antropofagia,
ritual familiar presente há gerações e necessário para galgar ao posto de chefe do clã. Entretanto, a
tradição necessita do novo para subsistir e se perpetuar, e esse elemento está tanto em José quanto
em Ermelinda. Cabe à antropofagia ritual então ser o elo entre a tradição e a modernidade.
Coube a Oswald de Andrade, ao ver o quadro Abaporu, de Tarsila do Amaral, o insight em
que compreendeu que muitos dos procedimentos modernistas seriam processos de devoração
crítica. Seu Manifesto Antropófago seria uma ampliação dessa ideia. Sobre o manifesto assim se
pronuncia Nunes (1978):
Usando-a pelo seu poder de choque, esse Manifesto lança a palavra “antropofagia”
como pedra de escândalo, para ferir a imaginação do leitor com a lembrança
desagradável do canibalismo, transformada em possibilidade permanente da
espécie. Imagem obsedante, cheia de ressonâncias mágicas e sacrificiais, com um
background de anedotas de almanaque, mas também com uma aura soturna e
saturniana, tal palavra funciona como engenho verbal ofensivo, instrumento de
agressão pessoal e arma bélica de teor explosivo, que distende, quando manejada,
as molas tensas das oposições e contrastes éticos, sociais, religiosos e políticos, que
se acham nela comprimidos. É um vocábulo catalizador, reativo e elástico, que
mobiliza negações numa só negação, de que a prática do canibalismo, a devoração
antropofágica é o símbolo cruento, misto de insulto e sacrilégio, de vilipêndio e de
flagelação pública, como sucedâneo verbal da agressão física a um inimigo de
muitas faces, imaterial e protéico. (NUNES, 1978, p. 25).
É justamente na catalisação desse processo de embate tradição versus modernidade que o conto
“Nau Catrineta” foge ao modo simplista e esquemático no qual foi escrito. O realismo romântico
transforma-se não pelo choque, mas pela compreensão das entrelinhas do discurso fonsequiano.
Nessa perspectiva, o conto é o momento em que tradição e modernidade fundem-se em um
prolongamento em que a tradição sobrevive mais uma vez e a modernidade vivifica por mais um
tempo.
Conforme o poeta e crítico T. S. Elliot (1989, p. 38), “a tradição implica um significado
muito mais amplo. Ela não pode ser herdada, e se alguém a deseja, deve conquista-la através de um
grande esforço”. A modernidade é, nesse sentido, embate, luta, confrontação, conquista de espaços.
E como afirma Compagnon (1996, p. 15), “a modernidade adota facilmente uma postura
provocante, mas seu interior é desesperado.” Em nosso entendimento, tradição e modernismo em
certo sentido estão entrelaçados, como no conto “Nau Catrineta”, de Rubem Fonseca.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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A literatura brasileira, desde o Barroco, dialoga com o fazer estético mundial. Com o
Romantismo, passa a seguir integralmente os grandes movimentos culturais mundiais, mas as
características mais nítidas dos movimentos que se seguem a partir de então são revisitadas no
Brasil, levando-se em conta cores locais. Assim, enquanto na Europa o indígena era o diferente,
aquele que a sociedade ainda não havia corrompido; aqui, o indígena era o ancestral heroico que
lutava pela sobrevivência com suas armas, e o canibalismo, um grandioso ritual guerreiro.
Toda grande acumulação de intenções estéticas transforma-se num grande embate entre
forças antagônicas. De um lado, a renovação sem limites, de outro, o empenho pela manutenção.
Modificar passa pelo desejo de abandonar o máximo de caracteres antigos e recriá-los em outras
bases. Rubem Fonseca, com seus procedimentos narrativos característicos, apresenta um exemplo
de como é possível seguir as inovações da literatura contemporânea, sem, entretanto, negar a
filiação com a tradição.
O Brasil, na época em que Fonseca começa a escrever – a década de 60 – é um país que
passa por diversas reacomodações nas suas classes sociais. Período de intenso predomínio norteamericano, cujas influências levam a nação da eufórica era JK a uma violenta ditadura militar.
Impossível que essa tensão autor/sociedade não brotasse das narrativas de Rubem Fonseca, fazendo
com que elas surgissem marcadas por uma constante revisitação da tradição literária mundial e de
uma reapropriação toda particular das exacerbações dos mecanismos modernistas, principalmente
no que se refere ao trabalho precioso de demonstrar como a sociedade, como as pessoas respondiam
à trama dos acontecimentos.
Se o Modernismo é o processo de reflexão sobre a linguagem, esse procedimento é revivido
em Rubem Fonseca, em uma tentativa de escancarar como, efetivamente, a sociedade se
comportava, sem melindres. Feliz Ano Novo é o ápice da tensão. O momento em que Rubem
Fonseca, com sua prosa crua, seca, direta ratificou a verdadeira dimensão do Brasil dos guetos, do
Brasil das classes altas.
“Nau Catrineta” é o conto em que aparentemente uma história simples e ao mesmo tempo
ferina é contada, mas que pode ser subentendida como o local em que tradição e modernidade
colidem e sobrevivem como prolongamento um do outro. Portanto, a literatura produzida por
Rubem Fonseca é partidária das revoluções modernas, pois não perdeu de vista as profundas
alterações ocorridas na arte criada por uma sociedade em permanente confronto com uma realidade
nem sempre acolhedora e cujos problemas reais e imediatos acabam não sendo tratados com a
urgência que merecem.
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A IMPORTÂNCIA DA LITERATURA INFANTIL NA FORMAÇÃO DAS CRIANÇAS:
Uma análise do livro “Na praia e no luar, tartaruga quer o mar” de Ana Maria Machado
THE IMPORTANCE OF LITERATURE ON CHILD EDUCATION OF CHILDREN: A
review of the book "On the beach and in the moonlight, the sea turtle wants" by Ana Maria
Machado
Vagner Teixeira da SILVA (PG/UEMS)
Resumo: Esse trabalho tem o objetivo de analisar o livro infantil “Na praia e no luar, tartaruga quer
o mar” de Ana Maria Machado, em seus aspectos históricos, estéticos e pedagógicos. Elegemos
essas três dimensões por considerá-las fundamentais para determinar a qualidade literária necessária
para que um texto possa ser empregado na formação das crianças. A base teórica desse artigo serão
os trabalhos de Zilberman (2003), Candido (2014) e Souza (2010). Salienta-se que a literatura é de
suma importância, pois nos torna mais humanos à medida que faz pensar sobre aspectos das
complexas relações humanas. Nesse sentido, personagens bem construídos ensinam e educam
naturalmente. Não podem, portanto, trazer um discurso fechado e predeterminado para os que a
leem, mas permitir que cada um a partir de suas experiências e com as mediações realizadas por um
professor competente, possa transmitir as peculiaridades presentes em cada obra e possibilite o
entendimento das contradições da sociedade e do período em que foi concebida.
Palavras-chave: Literatura. Livro infantil. Leitura.
1 INTRODUÇÃO
A tentativa de definir o que seja a literatura infantil sempre esteve presente nas discussões
dos pesquisadores dessa área. Há aqueles que defendem que somente pertencem a esse gênero
textos que nasceram com esse objetivo, outros apoiam o argumento que somente livros que tenham
sido lidos frequentemente por crianças podem ser chamados de literatura infantil. Nas palavras de
Zilberman (2003, p.71): “a originalidade dos textos para crianças advém do fato de que é a espécie
de leitor que eles esperam atingir o que determina sua inclusão no gênero designado com literatura
infantil”. Contudo, nosso objetivo nessas páginas não é tratar desse problema, mas sim discorrer
sobre a importância da boa literatura na formação das crianças.
Até meados dos anos de 1945 predomina nas obras literárias critérios de moralidade, isso
quer dizer que a sua finalidade educativa era considerada mais importante do que os critérios de

Graduado em Filosofia (UCDB) e mestrando do Programa de Pós-Graduação strictu sensu – Mestrado Profissional em
Educação – Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Email: [email protected]
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qualidade literária. Essa visão tem sido cada vez mais, abandonada. A literatura de qualidade não
deve trazer um discurso fechado, uma moral da história unívoca para os personagens, mas deixar
que o leitor, com suas próprias reflexões, possa retirar suas conclusões daquilo que leu. De acordo
com Candido (2014, p. 84), “a literatura, como a vida, ensina na medida em que atua com toda a sua
gama, é artificial querer que ela funcione como manuais de virtude e boa conduta”.
A grande literatura tendeu durante algum tempo a descartar o texto infantil, utilizando o
argumento de que pela pouca idade dos leitores, esses textos tinham um menor poder linguístico e
pouco valor estético. Essa generalização não é verdadeira, e demonstra a valorização dada ao
audiovisual em detrimento da palavra escrita em nossa sociedade.
Analisaremos uma obra infantil, cujo título é “A praia e o luar, tartaruga quer o mar” de Ana
Maria Machado, recomendável para crianças a partir de seis anos de idade e que recebeu o selo de
“altamente recomendável” da Fundação Nacional da Literatura Infantil e Juvenil – FNLIJ, que
incentiva e premia obras infanto-juvenis.
No livro em questão, temos três personagens principais, Luísa, seu irmão Pedro e seu Chico.
Outros personagens são citados, mas tem função secundária para o desenvolvimento do enredo.
Tudo começa quando a personagem principal encontra uma tartaruga presa a redes na praia. Desse
modo, Luísa começa uma verdadeira campanha pela vida desses animais. A menina aprendeu com
Rodrigo, seu irmão mais velho, que as tartarugas podem viver centenas de anos e acha um absurdo
que uma possível “colega de Cabral” pudesse acabar na panela de alguém.
Há um obstáculo para a preservação que Luísa tenta realizar, pois os pescadores da vila
trabalham justamente na caça e venda desses animais. Durante a análise dessa obra, consideraremos
três dimensões fundamentais para o seu entendimento: a dimensão histórica, estética e pedagógica.
2 AS DIMENSÕES HISTÓRICA, ESTÉTICA E PEDAGÓGICA DA LITERATURA
INFANTIL
Toda boa literatura possui três dimensões, a saber, as dimensões: histórica, estética e
pedagógica. Resumidamente, podemos dizer que através da dimensão histórica, é possível perceber
na obra, o tempo em que ela foi escrita, pois o autor não consegue fugir da realidade onde está
inserido, revelam-se, assim as marcas do tempo histórico em que o texto foi produzido. Nas
palavras de Souza (2010, p. 59) se a literatura for “explorada ‘por dentro’, em suas múltiplas
dimensões, que incluem a histórica, a criança sem perceber, vai formando seu conjunto de valores e
compreendendo o caráter temporal e transitório desses valores”.
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Além da historicidade que a obra manifesta, temos a dimensão estética que compreende toda
a formatação utilizada no texto, ou seja, a linguagem, as imagens a forma escolhida pelo autor para
desenvolver a sua obra. O estético, decisivamente, é a porta de entrada para as outras dimensões,
nesse sentido, todas as características do texto são importantes:
Não só o uso estético da palavra, mas a disposição do texto no papel, as escolhas
gráficas, a ilustração, tudo disputa espaço na busca das opções valorativas, éticas e
pedagógicas eleitas pelo autor, para que a narrativa atinja a sensibilidade do leitor,
altere seus horizontes de expectativas e sedimente valores formativos. (SOUZA,
2010, p. 59).
Finalmente, temos a dimensão pedagógica. Aqui, a obra mostra o ser humano em suas
relações sociais, é fundamental que os personagens sejam bem construídos, trazendo consigo um
conjunto de valores. Em outras palavras, a grande obra ensina naturalmente e sem moralismos ou
imposições. A partir do que foi dito acima, é possível visualizar a importância do professor para
selecionar obras que contenham os elementos aqui elencados, para “proporcionar o encontro do
leitor com grandes personagens, dotadas das virtudes próprias de outras épocas, naturalmente o
leitor vai absorvendo essas virtudes para, mais tarde, filtrá-las pelo olhar de sua época”. (SOUZA,
2010, p. 68). Essas três dimensões serão avaliadas, em seu conjunto, na obra infantil escrita por Ana
Maria Machado.
3 ANÁLISE DO LIVRO “NA PRAIA E NO LUAR, TARTARUGA QUER O MAR”
Ana Maria Machado é uma das maiores autoras da literatura infanto-juvenil brasileira.
Possui uma coleção extensa de prêmios, dentre eles, o mais importante do mundo para literatura
infantil: o Hans Christian Andersen.
O livro “Na praia e no luar, tartaruga quer o mar” possui quarenta páginas. Apresenta um
enredo elaborado e busca demonstrar as personalidades das personagens, isso é importante para que
a criança tenha uma conexão emocional e sinta-se parte da história contada.
A narrativa tem um objetivo claro, exposto em sua capa: convida a refletir sobre a
preservação de uma espécie marinha ameaçada de extinção – sem deixar de lado a sobrevivência de
comunidades envolvidas em atividades pesqueiras. Isso evidencia que além do entretenimento e
informação, possui uma função pedagógica, no sentido de alerta para importância da preservação da
natureza.
O texto inicia-se narrando o barulho do mar. Ouve-se o cantar de pássaros, folhas sendo
movidas pelo vento e as ondas do mar. Esses acontecimentos têm como função primordial colocar o
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leitor no local em que os fatos são vividos: as areias de uma praia. Toda a história é narrada por
Luísa, personagem principal de dez anos. Temos ainda seu irmão Pedro de quatorze anos de idade.
Do núcleo central participam ainda seu Chico, Dona Maria e um grupo de alunos com sua
professora que não é nomeada.
A história se passa em pequena cidade litorânea não especificada, seus habitantes vivem da
pesca e da venda de tartarugas e seus ovos para o comércio do lugar. Luísa e seu irmão andam pela
praia quando encontram um grupo de estudantes que estavam em aula juntamente com sua
professora, reunidos em volta de algo no chão. Ao se aproximarem começam a participar da
conversa, alguns dos estudantes dizem que tartaruga “é uma delícia” e querem levá-la para o
almoço enquanto outros falam que não comem, mas seus pais as matam para venderem aos
restaurantes.
Merece uma análise a professora ali presente. Ela é a única adulta e a autora reproduz seu
pensamento naquele momento:
A professora estava indecisa. Não queria inventar uma coisa complicada e
trabalhosa. Mas dava pena perder um animal daqueles, com tanta carne... E depois,
tinha o casco. Tinha gente e que comprava e pagava bem. Levavam para a cidade,
para fazer pentes, caixinhas, enfeites... [...]. (MACHADO, 2010, p. 9).
Como moradora daquele local a professora percebe que está diante de uma difícil decisão:
soltar o animal, permitindo que ele ainda tenha uma chance de sobrevivência ou vendê-lo. A autora
através do pensamento da professora coloca em evidência um conflito que perpassa toda a obra. Por
um lado, aqueles que ganham a vida ao vender tartarugas e ovos, e por outro, os que defendem a
importância da preservação. Nesse sentido, o texto expressa seu caráter histórico ao descrever para
as crianças leitoras um mundo em constante contradição, em que ideias contrárias lutam por
hegemonia, cabendo ao indivíduo perceber suas sutilezas que só será possível com um olhar crítico
sobre o mundo onde vive.
Mas esse problema ainda não será solucionado nesse momento. Pois Pedro resolve ajudar o
animal cavando um buraco na areia, onde coloca água e tenta salvá-lo. Através da participação das
crianças no salvamento da tartaruga, a autora revela que mesmo pequenas, elas carregam os
ensinamentos dados pela família. Uma das crianças diz: “Meu pai não gosta que mate. Ele disse que
a gente deve deixar as tartarugas vivas, que é para elas botarem ovo. Que a gente ganha muito mais
dinheiro vendendo os ovos para os restaurantes do que a carne. (Ibidem, p. 10)”. Vemos nesse
trecho que o motivo para manter as tartarugas vivas é apenas econômico: a venda de seus ovos.
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Como está ficando tarde a professora e seus alunos vão embora. Luísa e Pedro ficam a sós
com a tartaruga tentando reanimá-la. Conversam sobre quando tempo as tartarugas podem viver e
também sobre qual será a idade daquele animal. Nessa passagem observa-se que uma literatura de
qualidade pode ensinar ou mesmo possibilitar a curiosidade das crianças sobre a sua própria
história. Para melhor entendimento, reproduzimos o diálogo entre os irmãos:
- Quer dizer que essa tartaruga aí já estava viva antigamente?
Ela pode ter visto os navios dos piratas que andaram por aqui?
- Acho que pode, sim.
- E os descobridores? Será que ela viu as caravelas dos portugueses? A esquadra de
Cabral? Os navios de Colombo?
[...]
- De qualquer modo, eu sei que elas vivem muito, muito mais do que a gente. São
mais velhas que os nossos avós e bisavós.
- E estavam querendo fazer sopa com ela, Pedro? Que falta de respeito... Uma
colega de Cabral acabar na panela? (Ibidem, p. 13).
Mais adiante, nos é apresentado um personagem com características distintas as de Luísa,
um contraponto muito utilizado nas histórias para crianças, um indivíduo que possui atitudes
negativas: seu Chico. Ele é um homem gordo, pescador de tartarugas e apanhador de ovos. A autora
cria assim uma polarização, uma atmosfera de conflito.
Seu Chico fica bastante bravo ao perceber que os irmãos soltaram um animal que valeria
muito dinheiro. Luísa queria responder aquele homem, contudo, o irmão não deixa. E responde
apenas: “desculpe, a gente não sabia” (que a rede que o animal estava aprisionado era daquele
senhor). Aqui a autora com uma frase curta, dá um ensinamento através das palavras de Pedro, diz
que: “[...] explicou que não adiantava criar caso, brigar à toa, é difícil mudar as pessoas... todas
essas coisas” (Ibidem, p. 16).
A partir desse momento o livro explica detalhadamente o nascimento das tartarugas, desde a
desova que é feita na areia até o problema originado pela iluminação que engana esses animais
fazendo que ao invés de irem para o mar, caminhem em direção à cidade causando sua morte.
Nesse aspecto, o texto tem um caráter pedagógico, pois tenta criar nos leitores um senso de
responsabilidade com a natureza desde cedo. E explica as razões que poderão levar à extinção das
tartarugas marinhas. Expõe esse fato assim: “Porque os restaurantes pagam caro pela carne de
tartaruga, as indústrias usam a gordura para fazer sopa em lata e o óleo para fabricar cremes de
beleza, a pele serve para fazer carteiras e sapatos, o casco é muito valorizado para fazer armação de
óculos, pentes e enfeites...” (Ibidem, p. 22).
Fica clara a intenção de mostrar que o valor econômico sobrepuja a importância da
preservação da vida marinha. Isso é marcado um pouco mais a frente com uma frase dita por
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Rodrigo irmão mais velho de Luísa e Pedro: “Não sabem que no mundo todos nós dependemos uns
dos outros. Que uma coisa que afeta as tartarugas vai mexer com a vida de todos os outros seres”.
(Ibidem, p. 23).
No avançar da história percebe-se que ela toca em um problema de ordem social. As
crianças fundam o “Clube da tartaruga” com o objetivo de proteger esses animais e ao começar
comentar isso em casa outro problema é criado.
Dois grupos de interesses opostos se formam: de um lado os pescadores que tem como líder
seu Chico, e de outro, Luísa, a professora e os seus alunos. A ilustração da página permite que os
leitores percebam claramente essa polarização. A autora não quer dar uma solução rápida e
definitiva a esse problema, parece querer fazer que seus leitores reflitam sobre os motivos que cada
um desses grupos possui para pensar daquela forma. Evidenciando, com esse fato, que nossa
sociedade é marcada por interesses divergentes que deverão ser solucionados a partir do diálogo
entre os envolvidos.
O início desse diálogo é marcado por muita confusão, pois todos falam ao mesmo tempo:
“seu Chico ameaçava, os homens brigavam, as mulheres gritavam, a crianças se assustaram”.
(Ibidem, p. 26). Um fato interessante acontece nesse momento, apontando como as opiniões infantis
são, quase sempre, deixadas de lado. Luísa tentou falar, mas ninguém a ouviu. Para conseguir
expressar o que queria teve que falar ao ouvido da avó, essa sim adulta e por consequência com voz.
Apesar de ter apenas dez anos Luísa não tem uma posição passiva diante da realidade, quer ajudar e
participar da procura por soluções.
A avó de Luísa, Dona Maria, ficou responsável por controlar aqueles que queriam falar,
organizadamente, todos tiveram direito à palavra. Verifica-se que os conflitos não podem ser
resolvidos com a força física, algo muito comum entre as crianças quando tem algum problema, e
sim através da conversa: “todo mundo que quis falar falou. Criança e adulto, homem e mulher [...]”
(Ibidem, p. 28).
O problema criado pelo texto é resolvido de modo a garantir a preservação dos animais e a
sobrevivência dos pescadores. Com o diálogo todos perceberam que a pesca predatória levaria a
extinção dos peixes. “Se a gente deixar os filhotes crescerem tem mais pesca pra todo mundo
sempre. Peixe, tartaruga, camarão, lagosta, isso tudo”, disse Luísa.
Um fator que contribui sobremedida, para a história são as ilustrações que parecem dar
maior veracidade ao enredo e foram desenvolvidas com bastante habilidade. O elemento estético se
apresenta nesse momento, pois:
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É pelos elementos estéticos que a obra literária se revela e, ao se revelar, revela o
mundo, que não é um reflexo imediato da realidade, mas um reflexo mediado
esteticamente, o que faz com que adquira uma natureza transformada, própria e
singular, diferente do mundo que a engendrou, sendo ainda assim possível perceber
nela as “pegadas” do humano. (SOUZA, 2012, p. 8).
As expressões das oito crianças ao encontrar uma tartaruga presa a uma rede demonstram
claramente espanto, surpresa e tristeza. E mesmo a tartaruga, personagem sobre a qual orbita a
história, exibe em sua face um misto de desolação e cansaço pela morte iminente. Todas as imagens
foram criadas com técnicas de pintura a aquarela com intervenções no computador, pelo ilustrador
Biry Sarkis, que desde 1995 cria desenhos para livros infanto-juvenis.
Deve ser ressaltado que o problema descrito no texto de Machado, ganha forma a partir da
escola. Quando os estudantes ao voltar de uma aula na praia iniciam uma pesquisa sobre a vida
daqueles animais. De tal modo, que a partir de sua classe, todos começam a perceber que precisam
fazer algo para mudar aquela realidade.
Portanto, é perceptível que o texto em análise, coloca a escola e aqueles que dela participam
como promotores de mudança. Essa transformação não é proposta como algo mágico, como em
outras histórias infantis, mas, problematizada e iniciada a partir da conscientização de todos os
moradores da qual aquela instituição faz parte, buscando-se a solução em conjunto.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O livro “Na praia e no luar, tartaruga quer o mar”, traz como enredo um problema
contemporâneo. Sabe-se que a obra revela o tempo histórico em que foi produzida, e isso fica claro
quando vemos o pano de fundo no qual essa história se desenvolve. Para o seu entendimento não é
necessário que o estudante tenha um completo domínio dessa realidade. Contudo, ele só entenderá a
complexidade dos problemas ali expostos se for um leitor bastante atento e tenha ferramentas
suficientes para abarcar a importância da preservação e manutenção do modo de vida das
comunidades pesqueiras.
Salienta-se que o professor não pode querer transmitir um conhecimento a partir de sua
própria leitura, comunicar suas impressões como sendo a única correta de determinado texto. É
preciso que em conjunto com seus alunos possa discutir sobre as peculiaridades de cada obra, onde
seus alunos tenham espaço para expor as conclusões, impressões e emoções que foram suscitadas
ao longo da leitura. O professor, nesse sentido, deve acolher essas múltiplas interpretações
mediando-as, quando necessário, para que se alcance a verdade do texto.
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É impossível desconsiderar as imagens e personagens para discutir, por exemplo, valores
éticos ou condutas morais, contudo, essas questões devem surgir naturalmente e sem imposições
como mencionado anteriormente. Após essa análise realizada em conjunto, o professor poderá
propor atividades que permitam aos estudantes apreenderem aquilo que foi discutido através de
outros registros. Há inúmeras possibilidades. Um desenho, uma produção de texto ou mesmo criar
um final diferente para a história, acionando-se assim a criatividade.
No final do livro são explicados os motivos que possibilitaram que a autora escrevesse essa
obra. Diz que:
Desde pequena, Ana costumava passar os verões na casa dos avós, em
Manguinhos, uma vila de pescadores o estado do Espírito Santo que é área de
desova de tartarugas marinhas. A cada temporada, aprendia mais sobre esses
bichos fascinantes e a ameaça à sobrevivência deles. Até que decidiu escrever essa
história para compartilhar com as crianças o encanto pela natureza e a necessidade
da sua preservação. (MACHADO, 2010, p. 40).
Visualiza-se que a autora percebeu a importância da preservação ainda quando criança e
permitiu, a partir dos seus textos, que esses ensinamentos pudessem ser transmitidos aos leitores,
em sua maioria crianças, que porventura não tiveram contato direto com essa realidade. Nas
palavras de Candido (2014, p. 84), a “literatura pode formar, mas não segundo a pedagogia oficial,
que costuma vê-la ideologicamente como um veículo da tríade famosa, - o Verdadeiro, o Bom, o
Belo, definidos conforme os interesses dos grupos dominantes [...]”. Isso demonstra a relevância
que a leitura tem para informar e formar a criança sobre aspectos da sua realidade, portanto a leitura
não pode estar confinada aos “cantinhos da leitura”, aos últimos quinze minutos de aula, mas ser ter
o destaque que merece podendo assim ensinar a ler, a falar, a escrever e, sobretudo, a pensar.
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O TIO HERÓI E SEU PERCURSO MITICO POR ENTRECÉUS EM MEU TIO ROSENO, A
CAVALO, DE WILSON BUENO
MY UNCLE HERO AND HIS MYTHICAL JOURNEY THROUGH “ENTRECÉUS” IN
MEU TIO ROSENO A CAVALO, BY WILSON BUENO
Vanessa Corrêa da GAMA (PG/UFMS)1
Resumo: Na narrativa contemporânea, o importante papel da narratividade na elaboração do
discurso literário é percebido como fundamental. Esse fenômeno, marcado pela sucessão de estados
e por variadas transformações, produz o sentido da ficção literária e sua compreensão nos oferece
pistas de como a obra literária interage com o leitor. Na obra de Wilson Bueno, Meu tio Roseno, a
cavalo, a construção do discurso narrativo imprime movimento e leveza à aventura do herói Roseno
e sua viagem em busca do seu “céu”, o possível nascimento de sua filha Andradazil e do encontro
com a amada Doroí, utilizando-se do ritmo da cavalgada e das mutações no nome do protagonista,
em um texto repleto de simbolismo mítico. A trajetória de Roseno, por céus e entrecéus, está
marcada por rasgos narrativos que dão ela o caráter de redenção do herói, do dualismo entre o bem
e o mal, o céu e o inferno. Neste trabalho nosso objetivo é compreender as estratégias narrativas
utilizadas pelo narrador, com foco nas características míticas que a aventura apresenta, tendo como
categoria central o estudo do percurso mítico do herói em busca do seu destino, pelos céus e
entrecéus de suas viagens .
Palavras-chave: Herói. Mito. Viagem. Literatura Brasileira. Wilson Bueno.
1 INTRODUÇÃO
Meu tio Roseno, a cavalo (2000), obra de Wilson Bueno, narra a aventura de Roseno e seu
cavalo, o zaino Brioso, que após ouvir de uma misteriosa cigana a profecia do nascimento de sua
filha com a amada Doroí, inicia uma viagem de retorno. A história é contada por seu sobrinhonarrador através das lembranças da cavalgada de cinquenta léguas e meia de Guaíra a Ribeirão do
Pinhal realizada por seu tio, antes mesmo do seu nascimento. O herói viaja sete céus e seis
entrecéus no lombo de seu cavalo Brioso, e na construção narrativa se fundem em um só, uma
espécie de amálgama, onde o ritmo da cavalgada impõe o ritmo da história. Já no título da obra,
percebemos a marcante presença da figura do sobrinho-narrador, personagem construído pelo autor
especialmente para dar o tom de lenda à essa fábula de montaria.
1
[email protected] – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Programa de Pós-Gradução Mestrado
em Estudos de Linguagens, na área de Teoria Literária e Estudos Comparados
212
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O dia em que meu tio Roseno montou o zaino Brioso e tocou de volta para
Ribeirão do Pinhal, ainda não era o dia em que eu nasci, aquele treze de março de
mil novecentos e quarenta e nove, e nem havia chegado a hora da quinta tentativa
da mulher, Doroí, de dar a luz um filho que legitimasse o entranhado amor que
nutria, bugra esquiza e de olhos azuis, por este meu tio tocador de sanfona e
capadeiro de galo, aquele tempo antes da Guerra do Paranavaí. (BUENO, 2000,
p.13)
Quando a estória inicia é como se estivéssemos sentados, ali, esperando ansiosamente pelo
que iremos ouvir, chegamos a esquecer que somos nós os leitores. Ouvimos a estória. Plena
confusão dos sentidos. Meu tio Roseno, a cavalo (2000) sintetiza essa habilidade de construção de
uma narrativa singular e linguisticamente criativa. A obra é cuidadosamente lapidada, escrita para
que o contar da história imprima o ritmo da narrativa, por meio da utilização de recursos de
invenção e repetição de palavras, de variação e aglutinação linguísticas regionais (brasiguaio).
[...], nosso tio, marcha brioso do Zaino, ao quarto entrecéu dessa fábula tropeira,
cercania de Aramirtes, três léguas além do Ivaí. Daqui a pouco, outro ritmo, outro
trote, outro meneio, além que Andradazil, Andradazil, Andradazil, abismos e
escarpas, o desfiladeiro rumo ao Pinhal, o Itaivaté, aquele tempo, antes que tudo se
perdesse na solidão.” (BUENO, 2000, p.50-51)
De repente, ali, à frente do tio Rosilvo e seu cavalo, o guarani, quase gordo, Avevó,
de ralos cultivados bigodes, o guarani Ambotá – cabelo corrido dos lados, a cintura
em pança trançada de faca e facões. Os dentes, limados ao extremo da agulha,
luziam. “Apeese, hombre.” Nosso tio, sereno Rosalvo, desceu do Zaino. “Se
assunte, bugre” – despachou, destemeroso. “ Aqui es el Avatiyu. Flacos no passan”
– brincou, cínico, o ameçante guarani Há’angá, a língua mexendo-se dentro da
boca crivada de dentes. (BUENO, 2000, p.15)
As estratégias narrativas utilizadas por Wilson Bueno na elaboração desse discurso confere
ao narrador uma posição destaque, e que de certa forma retoma a tradição oral, quando as pessoas
sentavam em torno de um sujeito que dominava a arte de narrar as mais variadas e incríveis
aventuras. Benjamin (1994, p.s.n) afirma que, “A experiências que passa de pessoa a pessoa é a
fonte a que recorrem todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que
menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos.”
[...] a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas
que sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo que alguém narre
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alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma
faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar
experiência. (BENJAMIN, 1994, p.s.n)
Na obra de Wilson Bueno a construção do discurso narrativo de forma singular imprimi
movimento e leveza à aventura do herói Roseno em busca do seu “céu”, utilizando-se do ritmo da
cavalgada e de mutações no nome do protagonista para imprimir o tom dessa história repleta de
simbolismo mítico. É importante destacar que a marca do narrador aparece já no título da obra, e é
reforçada durante toda narrativa, na repetição constante da expressão “meu tio Roseno”, bem como
suas variações, “ meu tio Rosano, Rosalvo”, entre outras tantas variantes. O pronome possessivo
meu, repetido constantemente, assinala de forma bem clara a relação do narrador com o
protagonista da estória, aparece no plural para marcar a relação com o narratário “nosso tio
Roseno”, como observamos no decorrer da narração aparece em diversas passagens da aventura
durante toda a narrativa. “Nosso tio Rosevalvo, macio, mudou de intento, posto que, chucro, o Pîacá
não acreditava em arma de fogo, e mirando este primeiro entrecéu, floral, maíz, sentiu de perto que
a amizade do bugre lhe seria mais leve que o confronto.” (BUENO, 2000, p.16)
A forte presença do narrador e do narratário, marcada pelos pronomes possessivos, reforçam
características da tradição oral na narrativa, pois simula a sensação de ouvir a aventura diretamente
da boca do sobrinho-narrador. Benjamin (1994,s.n.p) afirma que, “O narrador retira a experiência
o que ele conta: sua própria existência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à
experiência dos seus ouvintes.”
Meu tio Rosalvo, sobre o brioso Zaino, sabe, decidido, o que de légua e caminho.
Passam por ele o seu cavalo, trazidos pelo vento, estonteantes, o cheiro do capimmimoso e o rascante perfume de amorinha silvestre quando em brotação de flor, e
tudo é o céu deste janeiro, lembra meu tio Roseno, ainda que não tenha muita
certeza se já foi Natal. (BUENO, 2000, p.14) (grifo meu)
A trajetória vivida por Roseno, por céus e entrecéus, está repleta de simbolismos que
marcam o processo de redenção do herói, da passagem do “bem” e do “mal”, “céu” e “inferno”, do
caráter mítico da aventura. Na construção da narrativa o autor formula a personagem-protagonista a
partir de referências que, de certa forma, compõem o nosso universo simbólico, a nossa percepção
do herói. A figura do herói e seu cavalo está presente desde os tempos mais remotos nos relatos
humanos, ela aparece em mitos, em lendas, em fábulas, nas mais variadas histórias orais e ou
escritas.
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Em nossa sociedade a imagem do herói permeia de maneira significativa o imaginário
coletivo, independente do período em questão sempre é possível reconhecer esse arquétipo nas mais
diversas narrativas. Seus feitos corajosos e lendários povoam as mentes humanas, são temas de
poemas, e aparecem nas mais diversas formas de representação simbólica. É salutar a crença nesse
homem que, de alguma forma, vai além da sua própria humanidade, que supera a própria condição,
enfrenta desafios, move montanhas em busca de uma verdade, seja ela universal ou individual, mas
que de alguma maneira reflete a ansiedade humana perante a grande aventura da vida.
A forma como a narrativa foi construída por Wilson Bueno em Meu tio Roseno, a cavalo,
ressalta a característica de lenda cavalariça da aventura vivida por nosso herói, o narrador utiliza
constantemente no decorrer de todo relato expressões que marcam esta condição: “fabula de
montaria”, “história trotada”, “lenda sidéria”, “lenda sem uso”, “fabula ao relento”. Ao mesmo
tempo que amplia a condição de Roseno, um herói que representa muitos heróis. “Muita gente até
hoje pergunta onde é que nasceu o tio se sabedor destrincha a arenga paraguaya e cioso cavalga
dentro o guarani feito fosse a sua pátria, e temos que Rosemundo como que nasceu em todos os
lugares – [...]” (2000, p.48)
É necessário a compreensão desses mecanismos míticos utilizados pelo o autor para a
construção dessa na narrativa de maneira fluida, repleta de simbologias que reforçam e atestam a
condição de lenda cavalariça da aventura. Em especial, compreender a relação presente no mito do
herói e seu cavalo, o nosso herói, tio Roseno e seu fiel parceiro, o cavalo Brioso.
Em todo o mundo habitado, em todas as épocas e sob todas as circunstâncias, os
mitos humanos têm florescido; da mesma forma, esses mitos têm sido a viva
inspiração de todos os demais produtos possíveis das atividades do corpo e da
mente humanos. (CAMPBELL,1997, p.6)
2 O HERÓI E SEU CAVALO
Na obra de Wilson Bueno a caminhada do protagonista simboliza o homem em busca do seu
destino, tema recorrente em toda a mitologia. Segundo Joseph Campbell (1997), o mito funciona
em nossa sociedade como uma espécie de representação simbólica das angustias que envolvem o
processo de autodesenvolvimento do homem. Os mitos e os rituais servem ao propósito de
superação de uma etapa para dar inicio a próxima. Auxiliam a compreensão e a assimilação do
processos humanos, refletem valores a serem alcançados, projetam sempre novas possibilidades de
conquista e superação.
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A agonia da ultrapassagem das limitações pessoais é a agonia do crescimento
espiritual. A arte, a literatura, o mito, o culto, a filosofia e as disciplinas ascéticas
são instrumentos destinados a auxiliar o indivíduo a ultrapassar os horizontes que o
limitam e a alcançar esferas de percepção em permanente crescimento.
(CAMPBELL, 1997, p.101)
Podemos refletir sobre o mito em diferentes perspectivas, Tomás Carlyle aborda a questão
do herói em nossa sociedade através da reflexão sobre seis classes de heróis, de diversos países e
épocas bem diferentes, o herói como divindade, profeta, poeta, sacerdote, homem de letras e rei.
Sua abordagem é sobre homens reais, sobre “homens superiores”, que de acordo com a teoria
apresentada pelo filósofo, representam a história do que o homem realizou neste mundo, e afirma
que irá, “[...] tratar dos heróis, de como nós os acolhemos e de como eles nos aperfeiçoaram; enfim,
do que eu chamo culto dos heróis e cultura heroica da humanidade.” (CARLYLE, 1956, p.19)
Todas as coisas que vemos terem sido realizadas no mundo são propriamente o
resultado material, a efectivação prática, a encorporação, dos pensamentos que
surgiram nos homens superiores, enviados ao mundo; pode dizer-se com justiça
que a alma de toda história mundial é a história dessas alma.” (CARLYLE, 1956,
p.20)
A teoria de Carlyle é fundamental para a compreensão da composição do herói em nossa
sociedade contemporânea, tendo em vista, que a motivação principal que impulsiona esses homens
em sua aventura histórica, mesmo com todas as particularidades, as crenças diversas, os objetivos
diferentes e contextos sociais específicos, é uma só: a busca da verdade. Em todos os “homens
superiores” citados o ponto em comum é a busca incessante pela verdade, custe o que custar, eles
foram destinados a ver, buscar e lutar por uma verdade, e se colocaram de corpo e de alma nessa
empreitada. Joseph Campbell aponta também essa essência, essa capacidade de ver na figura do
herói.
Aonde quer que vá e o que quer que possa fazer, o herói sempre se acha na
presença de sua própria essência — pois ele tem o olho aprimorado para ver. Não
há separação. Portanto, assim como o caminho da participação social pode levar,
no final, a uma percepção do Todo no indivíduo, assim também o exílio leva o
herói a encontrar o Eu em tudo. (CAMPBELL,1997, p.193)
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Não é nossa intenção, nem seria apropriado uma comparação dos perfis traçados na
discussão sobre heróis de Carlyle e nosso herói em questão, mas serve para a reflexão no sentido de
perceber que a busca por aquilo que se acredita do fundo do coração é a motivação básica dos mais
variados heróis, sendo eles “homens superiores” ou personagens criados pela literatura.
Joseph Campbell (1997), diz que o mito em nossa sociedade funciona como tradutor da
nossa psique, a mitologia, as crenças religiosas, toda espécie de simbologia mítica, funcionam como
os rituais de passagens das comunidades primitivas que auxiliavam o individuo e/ou a comunidade
nos desafios de transformação/superação de uma etapa da vida. Com o advento da sociedade
moderna houve a supressão de tais rituais de passagem, que foram gradativamente substituídos por
narrativas de histórias, de lendas e de aventuras de heróis, e individualmente são simbolizados pelo
sonho, como indica a psicanálise.
Pois os símbolos da mitologia não são fabricados; não podem ser ordenados,
inventados ou permanentemente suprimidos. Esses símbolos são produções
espontâneas da psique e cada um deles traz em si, intacto, o poder criador de sua
fonte. (CAMPBELL,1997, p.6)
Em Meu tio Roseno, a cavalo, o herói passa por diversos percalços “[...] para compreender
tudo, e o que este céu tem para dizer,[...]” (Bueno, 2000,p.14) que marcam toda a narrativa
representando simbolicamente alguns dos diversos ritos de passagem tradicionais, tais como,
nascimento, sexualidade/puberdade e morte, como ilustro nos trechos a seguir.
Roseno, meu tio, a primeira coisa que pensou, a trote lento na quase maciez do
zaino, foi num segredo: o da cigana que lhe dissera, com rude presteza, e cru
mistério, que, desta vez, Doroí ia lhe dar um filho, uma filha, por ser mais certo, e
que chegasse a tempo para batizar a menina com o nome de Andradazil. (BUENO,
2000, p.14)
E La reina era a filha mais nova do guarani esta Parai’evu, virgem esperando
Rosevilvo, abertas as pernas, na rede, ali onde, reunindo forças para a viagem,
nosso tio, bem perto da aldeia, amarrou a uma árvore o paciente Brioso, e seguiu,
pelas mãos do bugre, ao coração da floresta.” (BUENO, 2000, p.17)
Não se sabe quem viu primeiro – se o Zaino, nosso brioso, ou se meu tio Roseno, a
cavalo, o que de rumor no segundo entrecéu desta história urdida por sete céus e
seis imprecisos entrecéus a galope. E foi como se a noite caísse de pronto
revelando imprevista lua cuja a luz desvendou, bem atrás da serrinha da
Gruxuvíria, alvas, puro osso a descoberto, a carcaça crucificada dos heróis.
(BUENO, 2000, p.24)
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Muitas são as referências míticas que podemos identificar nessa “fabula tropeira”, mas um
aspecto que cabe destacar é a forte relação simbiótica entre Roseno e seu cavalo no processo
constitutivo do mito herói. Toda a narrativa é marcada pela forte ligação entre o cavalo e o
cavaleiro, o mito do herói cavaleiro é reforçado e ampliado dessa forma.
Roland Barthes (1956), afirma que o mito é uma fala escolhida pela história, é um sistema
de comunicação, uma mensagem e sendo assim, depende da semiologia. “[...] o mito é um sistema
de comunicação, é uma mensagem. Eis porque não poderia ser objeto, um conceito, ou uma ideia:
ele é um modo de significação, uma forma.” ( BARTHES, p.131)
Como fala, o mito se constitui pelo uso social dado a determinado elemento, o mito surge de
um complexo sistema de valores e equivalências que transformam um sentido em forma, a função
essencial é a naturalização de um conceito. Dessa maneira, “[...] já que o mito é uma fala, tudo pode
constituir um mito, desde que seja suscetível de ser julgado por um discurso.” ( BARTHES, 1989,
p.131)
O cavaleiro é a figura mais importante da literatura e do imaginário da Europa medieval,
através dos Cavaleiros da Távola Redonda, das Cruzadas ou dos Templários, bem como na
mitológica busca do Santo Graal, esses são apenas alguns exemplos clássicos onde o mito aparece.
Como ressaltou Barthes (1989) “[...] a nossa sociedade é o campo privilegiado das significações
míticas.”(p.158) O cavalo em diferentes culturas simbolizam o poder do homem sobre a natureza, a
capacidade de superação e coragem, é um mito muito recorrente.
“[...] pode conceber-se que haja mitos muitos antigos, mas não eternos; pois é a
história que transforma o real em discurso, é ela e só ela que comanda a vida e a
morte da linguagem mítica. Longíqua ou não, a mitologia só pode ter um
fundamento histórico, visto que o mito é uma fala escolhida pela história: não
poderia de modo algum surgir da “natureza” das coisas.” ( BARTHES, p.132)
O arquétipo do herói cavaleiro foi imortalizado ironicamente por Cervantes e seu Dom
Quixote, que cansado das narrativas fantásticas dos livros de cavalaria, tais como “Amadis de
Gaula”, repleta de duelos malucos travados entre cavaleiros, produz uma das maiores obras da
Literatura Universal. Dom Quixote de La Mancha permeia o imaginário da maioria das pessoas, até
mesmo quem nunca leu a obra de Cervantes carrega em si a imagem desse herói e seu cavalo, que
constantemente influencia-nos sobre a nossa visão da imagem do herói cavaleiro.
Entretanto, é importante destacar que antes de Dom Quixote esse mito já existia, muitos
outros personagens fazem parte dessa cadeia genealógica que constitui, forma e transforma o mito
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em nossa sociedade. O cavaleiro sempre foi símbolo de coragem, triunfo, poder e glória.
Dominando a sua montaria, o cavaleiro pode triunfar sobre o mundo exterior ao passo que consegue
controlar seu interior e os seus instintos. Já na mitologia grega, encontramos o Mito do Centauro
que simboliza bem essa relação de simbiose entre o cavaleiro e seu cavalo, bem como Pégaso, o
cavalo alado.
Podemos observar nos trechos da obra de Wilson Bueno que seguem a presença marcante
desse simbolismo mítico: “Ainda que o tempo não conte nessa fábula de montaria, só as léguas, de
um céu a outro entrecéu varadas pelas asas do nosso cavalo.” (BUENO, 2000,p.23) (grifo meu)
Roseante, o cavaleiro, parece sente do cavalo o sangue fluir. Pelo lado de dentro
das coxas, que encostam à barrigueiro, chega a lhe adivinhar o suor ainda não
vertido, e também seus humores, ao todo do corpo enganchado nele feito a ostra
e a entranha. (BUENO, 2000, p.23) (grifo meu)
Nessas ricas construções expressivas é possível perceber uma gama de significados que não
estão na superfície do texto, mas agregados em suas entranhas. O mito constituiu-se a partir de um
sentido que foi transmutado em significação, o conceito deforma o sentido, o cavalo (signo), esse
grande mamífero doméstico que é utilizado como meio transporte, é inicialmente esvaziado desse
sentido básico e posteriormente preenchido com o conceito que já carregamos dos respectivos
mitos: o Centauro, ser mitológico, metade homem e metade cavalo e o cavalo alado, Pégaso. O
recurso que foi adotado por Wilson Bueno neste trecho agrega valor de lenda a narrativa da
aventura. “É que o mito é uma fala roubada e restituída. Simplesmente, a fala que se restitui não é
exatamente a mesma que foi roubada: trazida de volta, não foi colocada no seu lugar exato.” (
BARTHES, p.147)
O mito possui um caráter imperativo, interpelatório: tendo surgido de um conceito
histórico, vindo diretamente da contingência [...], é a mim que ele se dirige: está
voltado para mim, impõe-me a sua força intencional; [...]. (BARTHES, 1989,
p.145)
O cavalo passa a constituir o herói em si, ele não é apenas um modo de locomoção espacial,
mas um prolongamento do perfil heroico do protagonista, o cavalo também é o protagonista. O mito
carrega em si uma série de atributos que já foram consolidados historicamente em nossa cultura e na
narrativa reforçam o caráter fantástico dessa “fábula de montaria”, dessa “lenda sidéria”.
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Esbanja azul o céu das quatro horas da tarde sobre todo o Vale do Piraretã, por
onde, a galope, vai Brioso e suas asas, cavalgada por Roseno, nosso tio, o céu de
marinhagem marinha, a exata luz do dia, enfeitiçada. (BUENO,2000, p.29)
A aventura é, sempre e em todos os lugares, uma passagem pelo véu que separa o
conhecido do desconhecido; as forças que vigiam no limiar são perigosas e lidar
com elas envolve riscos; e, no entanto, todos os que tenham competência e
coragem verão o perigo desaparecer. (CAMPBELL, 1997, p.46)
3 CONCLUSÃO
A obra de Wilson Bueno, Meu tio Roseno, a cavalo, reflete toda a singularidade e
particularidade das produções contemporâneas. Sintetiza essa habilidade de construção de uma
narrativa singular e linguisticamente criativa. A obra é cuidadosamente lapidada, escrita para que o
contar da história imprima o ritmo da narrativa, por meio da utilização de recursos de invenção e
repetição de palavras, de variação e aglutinação linguísticas regionais (brasiguaio).
É interessante observar numa obra como a de Wilson Bueno o poder da linguagem exposta
no discurso narrativo que foi construído e, que transforma o contar dessa fábula cavalariça numa
espécie de narrativa-poética. É no narrar que sentimos o trotar do zaino e seu senhor, “nosso tio
Roseno”, bem como percebemos o estado de espírito do protagonista, com a constante metamorfose
de seu nome, Roseano, Rosemundo, Rosevil, Roseano e muitos outros Rosenos.
A narrativa é conduzida para que o leitor compartilhe como ouvinte atento as aventuras do
herói, essa “ fábula de montaria”, “ história trotada”, “lenda sidéria” como é nomeada pelo próprio
narrador no decorrer do relato. Todas essas estratégia narrativas reforçam a sensação de uma
lenda/aventura que contada pelo próprio tio ao sobrinho, e que hoje repassa para ouvintes atentos,
que pelo pronome possessivo “nosso” podemos deduzir que são outros sobrinhos o narratário,
reforçando ainda mais aspectos da tradição oral.
A narrativa [...] é uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada
em transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada como uma informação ou um
relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele.
Assim se imprimi na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila
do vaso. Os narradores gostam de começar sua estória com uma descrição das
circunstancias em que foram informados dos fatos que vão contar a seguir [...]” (
BENJAMIN, 1994, s.n.p)
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Nesta “fábula memoriosa” quem conta a estória não é quem viaja, e quem viaja é o tio do
narrador, e assim se desenrola na cumplicidade entre narrativa e narrador que descreve
cuidadosamente cada detalhe dessa “memória inventada” como sinaliza o próprio narrador.
A forma como a narrativa foi estruturada reforça, ainda mais, o aspecto de lenda cavalariça
dessa história. Roseno nosso herói, enquanto cavalga, avança corajosamente para encontrar o seu
destino. Nessa estrutura, a imagem do cavalo é o elo essencial na composição desse herói. Como
mito que participa do imaginário coletivo, o cavalo compõe a estratégia da linguagem adotada pelo
autor, supera sua condição simplesmente linguística e
passa a integrar um sistema mítico, dessa
forma, “[...] o leitor vive o mito como uma história simultaneamente verdadeira e irreal.”
(BARTHES, p.149)
Esse tipo de herói é moldado considerando os mitos que envolvem a figura do sempre
lendário herói de cavalaria, a sua relação de simbiose como o cavalo, como já vimos, é reforçada
por traços que caracterizam metaforicamente os mitos gregos do Centauro e do Pégaso. O mito é
reflexo de uma necessidade simbólica do homem, foi lapidado por nossa cultura, emerge de nosso
subconsciente é a representação simbólica de uma demanda prática da humanidade.
O percurso padrão da aventura mitológica do herói é uma magnificação da fórmula
representada nos rituais de passagem: separação-iniciação-retorno — que podem
ser considerados a unidade nuclear do monomito. (CAMPBELL, 1997, p.17)
Uma analise minuciosa da encantadora fábula cavalariça contada em Meu tio Roseno, a
cavalo revelará com certeza inúmeras particularidades dessa rica narrativa. Aqui só coube
evidenciar, superficialmente a riqueza da construção do mito nessa narrativa que apesar de moderna
e dinâmica consegue reavivar com excelência as lendas cavalariças, bem como, realçar a graça
desse herói andante que juntamente com seu valoroso cavalo invadem nossa imaginação com suas
aventuras. “De qualquer maneira, os símbolos são metáforas reveladoras do destino do homem, bem
como de sua esperança, fé e obscuro mistério. ( CAMPBELL, 1997, p. 143)
REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. O mito, hoje. In: Mitologias . Tradução Rita Buongermino e Pedro de Souza. 8
ed. Rio de Janeiro,Bertrand Brasil S. A., 1989.p.131-178.
BENJAMIM, Walter. O narrador: Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e
técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994,
p.197-221.
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BUENO, Wilson. Meu tio Roseno, a cavalo. São Paulo: 34, 2000.
CARLYLE, Tomás. Os Heróis. Trad. Álvaro Ribeiro. Lisboa: Guimarães Editores, 1956.
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. Trad. Adail Ubirajara Sobral . São Paulo:
Cultrix/Pensamento, 1997.
CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de. O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha. Trad.
Eugênio Amado. Belo Horizonte: Itatiaia, 1984. 2ª Ed.
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MULHERES ANGUSTIADAS NAS COLUNAS FEMININAS DE CLARICE LISPECTOR
ANGUISH WOMEN IN FEMININE COLUMN OF CLARICE LISPECTOR
Willian Rolão Borges da SILVA (PG/UFMS)1
Edgar Cezar NOLASCO (UFMS)2
Resumo: Nosso trabalho pretende fazer uma leitura da página feminina de Clarice Lispector, tendo
como base a ideia de angústia, apresentada por Benedito Nunes em O dorso do tigre. Os textos base
para a nossa leitura são os presentes nas colunas femininas que a autora publicou em jornais das
décadas de 50 e 60. Além disso, as páginas femininas serão relacionadas com o conto “Amor”
presente em Laços de família, tentaremos observar de que maneiro ocorreu a angústia a Ana, e de
que maneira poderia ocorrer nas leitoras das colunas, bem como na personagem Judith, da página
feminina “A irmã de Shakespeare”. Trabalharemos sobre a hipótese de que a coluna de Lispector
poderia produzir o sentimento de angústia em suas leitoras.
Palavras-chave: Angústia. Colunas femininas. Clarice Lispector.
1 INTRODUÇÃO
A angústia nos desnuda, reduzindo-nos àquilo que somos:
consciências indigentes, com a maldição e o privilégio que a
liberdade nos dá. No extremo de nossas possibilidades, ao qual
esse sentimento nos transporta, ela intensifica a grandeza e a
miséria do homem. (NUNES, O dorso do tigre, p. 95).
Clarice Lispector iniciou seu trabalho de colunista de páginas femininas no semanário
Comício, neste foi Tereza Quadros e era responsável pela coluna “Entre mulheres”. Neste período
publicou 17 colunas, dentre os textos publicados destaca-se “A irmã de Shakespeare” publicado em
22 de maio de 1952, pois apesar de ser uma de suas primeiras publicações, já tem um caráter
reflexivo, no sentido de levar suas leitoras e refletirem sobre a diferença entre os homens e as
mulheres no que tange suas oportunidades e papéis sociais. Além disso, o texto “A irmã de
Shakespeare” é um comentário de Lispector sobre um trecho do livro Um teto todo seu, de Virgínia
Woolf. Assim sendo, da mesma forma que Woolf comenta sobre o lugar da mulher no século de
1
Graduado em Letras (português-inglês) pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Mestrando em Estudos de
Linguagens pela mesma instituição, bolsista CAPES e membro do grupo de pesquisa Núcleo de Estudos Culturais
Comparados (NECC). [email protected].
2
Professor da graduação em Letras e do Mestrado em Estudos de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso
do Sul. Coordenador do grupo de pesquisa Núcleo de Estudos Culturais Comparados (NECC). [email protected].
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Shakespeare, o texto de Tereza Quadros faz as mulheres de sua época pensar e refletir sobre o seu
próprio contexto. A partir deste texto podemos observar outra característica das colunas de Clarice
ela apresenta às suas leitoras, escritores e filósofos, algumas vezes faz isso mais indiretamente
colocando trechos de suas obras entre aspas, no caso deste texto o faz diretamente citando a autora
nominalmente. Assim Lispector apresenta Woolf e o seu objetivo ao criar Judith: Uma escritora
inglesa — Virgínia Woolf — querendo provar que mulher nenhuma, na época de Shakespeare,
poderia ter escrito as peças de Shakespeare, inventou, para este último, uma irmã que se chamaria
Judith. Judith teria o mesmo gênio de seu irmãozinho William, a mesma vocação. Na verdade, seria
um outro Shakespeare, só que, por gentil fatalidade da natureza, usaria saias.1 Deteremos-nos nessa
coluna e tentaremos demonstrar como ela poderia ser um elemento desencadeador da angústia,
tentando trazer à discussão basicamente três textos coluna acima citada, o conto “Amor” da própria
ficcionista e o texto “A náusea” de Benedito Nunes, presente em O dorso do tigre. Buscaremos
observar como ocorre a angústia em “Amor” e tentar traçar similaridades, com relação a este tema,
entre o conto e “A irmã de Shakespeare”. A página feminina é basicamente dividida em duas partes,
a primeira em que apresenta como seria a vida de Shakespeare e sua trajetória até se tornar o grande
teatrólogo, já a segunda é sobre Judith que tentaria seguir os mesmos passos do irmão, contudo
falharia pelo simples fato de ser mulher. Assim Lispector vai demonstrando as restrições sociais que
passam as mulheres. A página termina com o suicídio de Judith por fracassar em seguir o seu
destino.
Primeiramente observemos quando ocorre a angústia para Benedito Nunes,
Quando nos sentimos existindo, em confronto solitário com nossa própria
existência, sem a familiaridade do cotidiano e a proteção das formas habituais da
linguagem, quando percebemos ainda a irremediável contingência, ameaçada pelo
Nada, dessa existência, é que estamos sobre o domínio da angústia, sentimento
específico e raro, que nos dá uma compreensão preliminar do Ser.2
Assim acontece quando o ser se encontra frente a frente de sua pura existência, o que não
acontece frequentemente, pois normalmente nos mantemos afastados de situações como essas,
escondidos em nossas ações cotidianas. É exatamente isso que ocorre com as leitoras da coluna de
Comício, na década de 50, e com Ana, já que ela á se encontrava segura no ambiente doméstico e
utilizava
esse espaço para concretizar o que poderia ser considerada a sua vocação precípua
— servir. Detendo-se nos cuidados com a casa e a família, Ana reitera a situação
1
2
LISPECTOR, 2006, p. 125.
NUNES, B., 1976, p. 94.
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social da mulher na década de 1960, época em que no Brasil a sociedade era
predominantemente patriarcal e androcêntrica, fundada nas ideias de que à mulher
caberia o reduto privado como possibilidade única de realização pessoal e de
reconhecimento social.1
É principalmente por estarem na mesma condição de segurança nos afazeres da casa que as
aproximamos, não só, mas também por existir em ambas a possibilidade de vivenciar a angústia.
Com relação à Ana sabemos que ocorreu, já as leitoras só podemos supor que elas a tiveram por
intermédio da coluna de Tereza Quadros. Mas como isso ocorreria a partir de páginas femininas,
consideradas tão fúteis? Acreditamos que dois fatores podem contribuir com essa possibilidade.
O primeiro refere-se ao fato de que, de acordo com Zinani e Santos, “o mundo construído
pela personagem repousa em bases tão frágeis que um incidente banal tem o poder de provocar a
ruína desse universo.”2 O incidente que ocorre com Ana é encontrar um cego mascando chicles e o
das leitoras poderia ser a leitura de uma das páginas femininas de Lispector, na qual se discute o
papel social legado à mulher. O importante mesmo não é o fato em si, mas sim o que ele provoca na
personagem, ou, no caso das colunas, nas leitoras das páginas. É nesse momento que ocorreria a
destruição da realidade, momento em que a angústia tomaria conta das mulheres, nesse caso.
Para Maria de Fátima do Nascimento “As personagens de Lispector (...) se angustiam com a
vertigem da consciência, como seres frágeis, imperfeitos, não idênticos a si mesmos (...), contrários
à maneira de ser das coisas (...), e chegam à náusea.”3 Tal angustia acomete Ana, pois começa a
enxergar com mais clareza sua vida e a que ela se resume. A mesma angústia poderia acometer as
leitoras das páginas femininas de Lispector, já que para Gotlib o objetivo da ficcionista com páginas
femininas como “A irmã de Shakespeare” seria mostrar às leitoras “o terrível e fascinante universo
do ‘fingimento’, que é o questionamento de valores, aberturas de horizontes mais conscientes,
sensíveis e participantes”. (GOTLIB, 2009, p. 344.)
O segundo fator é a ameaça que a coluna de Lispector pode representar ao status quo, é
exatamente sobre os perigos de se ler a coluna de Lispector que Gotlib comenta,
Nem nessas aparentemente banais páginas de jornal Clarice Lispector se desprende
de seu pendor viciado de nos seduzir (ou matar?), a nós, mulheres, ora mais ora
menos desavisadas. Nessas linhas, frequentadas pelo gesto banal e automático do
virar a página de cada dia, fervilha no entanto o turbilhão de fogo que aquece o
caldeirão de poções mágicas da ficção fatal, disfarçadas sob o invólucro da
banalidade fútil de... páginas femininas. (GOTLIB, 2006, p. 12.)
1
ZINANI; SANTOS, 2007, p. 53.
ZINANI; SANTOS, 2007, p. 57.
3
NASCIMENTO, 2012, s. p.
2
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Isso claramente ocorre na coluna “Entre mulheres” e principalmente na página feminina “A
irmã de Shakespeare”. Tomamos tal página feminina como instauradora de mal-estar, ou angústia
mesmo, que pode ampliar os horizontes e abrir os olhos das leitoras para o que realmente acontece,
para que possa enxergar o mundo verdadeiramente. Para Nunes, foi isso que Ana vivenciou (1976)
uma vez que a angústia se apodera do ser,
Logo principia por todos os lados o assédio das coisas, já estranhas, mobilizando
forças secretas, que se derramam em ação indormida. Presenças sensíveis, outrora
familiares, repentinamente estendem garras ocultas, destilam sumos, elaboram
volumes e carnações.1
Na medida em que se começa a enxergar o mundo que era familiar, o que era fonte de
proteção agora é ameaça a sua existência. O mesmo ocorre na página feminina com Judith, o que
era uma organização social corriqueira, torna-se problema na medida em que ela está fora do
cotidiano, caminha por fora da ordem. Assim Lispector descreve a realidade de Judith:
Às vezes, como tinha tanto desejo de aprender, pegava nos livros do irmão. Os pais
intervinham: mandavam-na cerzir meias ou vigia o assado. Não por maldade:
adoravam-na e queriam que ela se tornasse uma verdadeira mulher. Chegou a
época de casar. Ela não queria, sonhava com outros mundos. Apanhou do pai, viu
as lágrimas da mãe.2
Tanto Ana quanto Judith enfrentam a realidade de sua existência, a diferença é que isso
ocorre a Ana por meio da angústia, enquanto que Judith por sua natureza diferente a enfrenta
diariamente. É interessante observar que apesar de Ana não enfrentar essa realidade todos os dias,
ela-a conhece, ou pelo menos desconfia de sua existência, já que “Ela apaziguara tão bem a vida,
cuidara tanto para que não explodisse.”3 Para não encarar a estranheza das coisas quando fica
defronte do mundo real é que Ana toma seus cuidados, assim se previne dessa realidade com seu
trabalho no lar, com suas ocupações de esposa, mãe e dona-de-casa. Não gostava dos momentos de
solidão, porque não havia nada, filhos ou marido, que precisassem dela. Ela podia ser então, mas
não tinha nenhum objetivo em ser, assim se justifica sua proteção sob os poucos papéis sociais
femininos que ocupava. Diante disso, podemos aproximar imensamente Ana das leitoras da coluna
feminina, que se mantêm ocupadas com esses afazeres também. Elas aproveitam a coluna feminina
de Comício para aprender a preparar um quitute diferente, receber um conselho de o educar os
filhos ou ate,de como ser uma boa esposa, contudo, de repente, elas se deparam com “A irmã de
Shakespeare” que comparativamente mostra como as possibilidades das mulheres são menores que
1
NUNES, B., 1976, p. 98.
LISPECTOR, 2006, p. 125.
3
LISPECTOR, 2009, p. 23.
2
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as dos homens, pelo fato do que lhes é cobrado. Deparam-se com uma página feminina com
potencial de lhes causar esse mal-estar por também estarem na mesma posição de Judith.
No artigo “Heidegger e o outro: a questão da alteridade em Ser e tempo”, André Duarte
comenta sobre o apagamento de si próprio no mundo comum, para ele
Compreende-se, então, que o esquecimento de si na decadência impessoal das
ocupações e preocupações resulta de uma possibilidade mais fundamental que se
mantém o mais das vezes encoberta, mas que é constitutiva da nossa cisão
existencial. A familiaridade com o mundo comum proporcionada peia publicidade
impessoal do cotidiano decadente não é a instância primeira e mais originária do
ser-no-mundo, mas é derivada, resultando de uma fuga da "estranheza"
(Unheimlichkeit), do "não estar em casa" (Nicht-zuhause-sein) no mundo comum
das ocupações cotidianas compartilhadas, marca singular de uma existência que,
sendo no mundo, não pertence inteiramente a ele de direito.1
Para o estudioso então, nem Ana nem as leitoras do jornal são de fato, ou vivenciam o serno-mundo, o Dasein. Apesar de estarem no mundo, na maior parte das vezes não dão conta de suas
existências por completo. É necessário um cego, ou talvez uma página feminina para tirá-las do
lugar confortável que escolheram, ou assim acreditam ter escolhido. Lispector deixa claro que era
dessa forma que Ana pensava, já que Ana “alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim.
Assim ela o quisera e escolhera.”2 Ana resignava-se com as escolhas que tinha e escolhera viver na
segurança de sua casa, mas temendo que seu mundo explodisse com a intromissão de algo exterior.
A natureza de Judith era diferente não aguentou viver na segurança de casa, pois isso a limitava,
viver dessa forma seria, como comentou Duarte, viver no mundo, contudo não pertencendo ou
existindo nele realmente. Judith não suportaria tal fardo, tanto que por fim decidiu tirar a própria
vida uma vez que via que seus obstáculos eram intransponíveis.
Duarte em seu artigo defende a noção de existirem dois Dasein, isso pode ser facilmente
ilustrado por Ana. Para o pesquisador “O Dasein cotidiano foge do outro que ele já é, esquiva-se do
outro do si-mesmo impessoal, ou seja, do seu poder-ser em sentido próprio.”3 A Ana que buscava
por segurança se escondia do seu outro nas atividades diárias, contudo tal atitude de nada adiantava,
pois o outro Dasein fazia parte dela, não havia como se esconder de si mesma por isso tinha medo
de certas horas do dia em que sabia que os dois Dasein se aproximavam. Ana se mantinha afastada
de um poder-ser completo, mas quando passa pela angústia e o mundo real lhe é revelado vislumbra
de fato sua realidade no Jardim Botânico.
1
DUARTE, 2002, p. 176.
LISPECTOR, 2009, p. 21.
3
DUARTE, 2002, p. 176.
2
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Num comentário sobre o conto, Lispector revela que não foi apenas Ana que se deparou
com um mundo novo no Jardim Botânico, mas a própria autora também. Segue o trecho em que
narra isso:
Do conto “Amor” lembro duas coisas: uma, ao escrever, da intensidade com que
inesperadamente caí com a personagem dentro de um Jardim Botânico não
calculado e de onde quase não conseguimos sair, de tão emocionadas e meio
hipnotizadas — a ponto de eu ter que fazer minha personagem chamar o guarda
para abrir os portões já fechados, senão passaríamos a morar ali mesmo até hoje.1
Nota-se que Lispector foi absorvida pelo momento de angústia que Ana passou, vivenciou
com ela tão forte desvelamento. Nem Ana nem Lispector conseguiam sair de lá sozinhas,
precisaram de ajuda. A sorte das duas é que recebiam ajuda para resistir a essa realidade, tinham
toda a sociedade lhes indicando o que podiam ou não ser, além disso, quando Ana chegou em casa o
marido delicadamente a colocou em seu lugar de direito, vejamos:
Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranquila se
rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse
ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da
mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.2
É interessante observar na construção do conto que Ana toma todos os cuidados para se
sentir segura e não ser pega desprevenida, mas mesmo assim vivencia seu momento de angústia, se
depara com a realidade perigosa e volta para casa. Seu marido a põe em segurança desta vez,
protege-a do perigo que é a vida. Destaca-se no texto citado o verbo utilizado por Lispector, dos
diversos sentidos que o verbo "segurar" pode assumir destacamos quatro, dois em um sentido mais
literal: agarrar e apoiar, que se encaixam com a situação narrada. E dois que ampliam nossa
interpretação, no que se refere à questão de proteção e segurança que estamos discutindo. São eles:
tornar seguro e tranquilizar. Observa-se assim que Ana viveu o perigo ao estar fora de casa. Quando
volta ao lar, o marido a tranquiliza para não viver aquele estado de perturbação de novo, não
vivenciar a angústia de novo, deixar um poder-ser completo esquecido.
A página feminina de Tereza Quadros segue o mesmo percurso de “Amor”. Primeiro há a
tranquilidade do cotidiano, em seguida é mostrado um momento de mal-estar de Judith e no final a
calmaria volta a imperar. No caso da página o fim trágico é revertido pela sentença, “Assim acaba a
história que não existiu”.3 O suicídio de Judith não é problema algum, já que ela nunca existiu, é
mera ficção, Lispector volta ao fingimento, já que a história não é real, os problemas enfrentados
1
LISPECTOR apud NUNES, A., 2006, p. 68.
LISPECTOR, 2009, p. 29.
3
LISPECTOR, 2006, p. 125.
2
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por Judith parecem também não existir. No caso de Ana seu marido a tranquiliza, parece que ao
final da página feminina Lispector tenta tranquilizar suas leitoras. A aparente tranquilidade e
segurança dessas mulheres até quando resistirão? Quem sabe até a próxima coluna feminina, em
que serão lançadas de novo ao mal-estar, à angústia. Será que Ana também não voltaria a vivenciar
o perigo de viver se lesse “A irmã de Shakespeare”? Acreditamos que sim.
Retomando nossa epígrafe, acreditamos que as páginas femininas de Lispector podem
instaurar a angústia em suas leitoras e tomamos Ana como leitora da coluna de Lispector. Assim
incorreriam no risco de nova angústia a cada nova coluna publicada. Poderiam ser desnudadas das
máscaras que vestem para se disfarçarem de si mesmas, para se esconderem desse outro que vive
dentro delas mesmas, por intermédio das páginas femininas seriam forçadas a enfrentar de cara
limpa o privilégio e a maldição da condição humana.
REFERÊNCIAS
DUARTE, André. “Heidegger e o outro: a questão da alteridade em Ser e tempo”. In: NATUREZA
HUMANA. São Paulo, v.4 n.1, p. 157-185, junho, 2002. Disponível em:
<http://pepsic.bvsalud.org/pdf/nh/v4n1/v4n1a05.pdf> Acesso em 21 de janeiro de 2014.
GOTLIB, Nádia Battella. “Mais um doce veneno”. In: NUNES. Aparecida Maria. Clarice Lispector
jornalista: páginas femininas & outras páginas. São Paulo: Editora Senac. São Paulo, 2006, p. 0913.
LISPECTOR, Clarice. Correio feminino. Organização de Aparecida Maria Nunes. Rio de Janeiro:
Editora Rocco, 2006.
LISPECTOR, Clarice. Laços de família. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.
NASCIMENTO, Maria de Fátima do. “Benedito Nunes: o mundo de Clarice Lispector”. In: XI
Congresso Internacional da Abralic, 2008, São Paulo. Anais... Disponível em:
<http://www.abralic.org.br/anais/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/050/MARIA_NASCIMEN
TO.pdf> Acesso em 16 de setembro de 2012.
NUNES, Benedito. O dorso do tigre. 2ª Ed. São Paulo: Perspectiva, 1976.
NUNES. Aparecida Maria. Clarice Lispector jornalista: páginas femininas & outras páginas. São
Paulo: Editora Senac. São Paulo, 2006.
ZINANI, Cecil Jeanine Albert; SANTOS, Salete Rosa Pezzi dos. A dimensão trágica do conto
‘Amor’, de Clarice Lispector. In: CERRADOS. Revista do Programa de Pós-graduação em
Literatura. Literatura e Presença: Clarice Lispector. Universidade de Brasília/ n° 24 / ano 16 /
2007, p. 49-60.
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