CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO stricto sensu - MESTRADO EM DIREITO
ALEXANDRE TORRES VEDANA
PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO NA INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA E A
EFETIVIDADE DOS DIREITOS DO CONSUMIDOR
CURITIBA
2009
CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO stricto sensu - MESTRADO EM DIREITO
ALEXANDRE TORRES VEDANA
PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO NA INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA E A
EFETIVIDADE DOS DIREITOS DO CONSUMIDOR
CURITIBA
2009
ALEXANDRE TORRES VEDANA
PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO NA INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA E A
EFETIVIDADE DOS DIREITOS DO CONSUMIDOR
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado
em Direito Empresarial e Cidadania do Centro
Universitário Curitiba, como requisito parcial
para a obtenção do Título de Mestre em Direito.
Orientador:
Professor
Cardozo Oliveira
CURITIBA
2009
Doutor
Francisco
ALEXANDRE TORRES VEDANA
PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO NA INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA E A
EFETIVIDADE DOS DIREITOS DO CONSUMIDOR
Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do Título de
Mestre em Direito pelo Centro Universitário Curitiba.
Banca Examinadora constituída pelos seguintes professores:
Presidente:
_______________________________________________
PROFESSOR DOUTOR FRANCISCO CARDOZO OLIVEIRA
_______________________________________________
PROFESSOR DOUTOR PAULO ROBERTO RIBEIRO NALIN
(MEMBRO EXTERNO)
________________________________
PROFESSOR DOUTOR CARLYLE POPP
(MEMBRO INTERNO)
Curitiba, 27 de novembro de 2009.
Aos meus pais Vilson Miguel Vedana
e Neusa Torres Vedana (in memoriam)
RESUMO
A incorporação imobiliária se caracteriza pela venda de frações ideais de terreno
vinculadas à futura construção de imóvel. Em geral, a atividade do incorporador
enquadra-se em relação de consumo submetendo-se ao CDC. O construtor do
empreendimento, que pode ou não ser o próprio incorporador, também se sujeita às
normas do CDC naquilo que é próprio da natureza jurídica da relação que o vincula aos
adquirentes das unidades imobiliárias em construção. O proprietário do terreno em que
se erige o empreendimento e o agente financeiro que tenha concedido mútuo para
financiamento da construção também respondem perante os adquirentes de acordo
com a natureza jurídica das relações que os unem à incorporação. Como forma de
tentar conferir maior garantia aos adquirentes, o patrimônio de afetação estabelece uma
cisão no patrimônio geral do incorporador de modo a que o empreendimento não seja
considerado de sua propriedade plena, mas sim uma espécie gravada pela persecução
de uma finalidade que é a conclusão do edifício e a entrega do imóvel concluído aos
adquirentes consumidores. Também com o escopo de atingimento dessa finalidade, a
incorporação imobiliária conta com regras próprias para solução do inadimplemento
tanto do incorporador quanto dos adquirentes.
Palavras-chave: Incorporação imobiliária. Patrimônio de afetação. Consumidor
ABSTRACT
The real estate development is characterized by the sale of fractional ideals of
land linked to the future construction of property. In general, the activity of the
developer falls in the consumption relation by submitting the CDC. The building
constructor, which may or may not be the truly developer, is also subject to the
rules of the CDC in what is proper to the nature of the relationship that binds to
the buyers of real estate units under construction. The owner of the land on which
is the construction and the financial agent who has given assistance to finance
the construction also accountable to the purchasers consumers to the legal
nature of the relationship they have with the merger. As a way of trying to give
greater assurance to the buyers, the patrimony of affectation down a split in the
general assets of the developer so that the development is not considered the full
ownership, but one species remarkable by the pursuit of an objective which is the
conclusion of building and delivery of immovable property to purchasers
consumers. Also with the scope of achieving this purpose, the real estate has its
own rules for solution of both the developer default on the buyers.
Keywords: Real estate. Patrimony of affectation. Consumer.
LISTA DE ABREVIATURAS
art. – artigo
arts. – artigos
CBIC - Câmara Brasileira da Indústria da Construção
CC/16 – Código Civil do ano de 1916
CC/02 – Código Civil do ano de 2002
CDC – Código de Defesa do Consumidor
Cfr. - Conforme
CF/88 – Constituição Federal do ano de 1988
CLT – Consolidação das Leis do Trabalho
CPC – Código de Processo Civil
IPTU – Imposto Predial Territorial Urbano
INSS – Instituto Nacional de Seguridade Social
LCI – Lei de Condomínio e Incorporações
LCI – Lei 4.591/1964
RE – Recurso Extraodrinário
REsp – Recurso Especial
RET – Regime Especial de Tributação
sgts. – seguintes
SPE – Sociedade de Propósito Específico
STF – Supremo Tribunal Federal
STJ – Superior Tribunal de Justiça
TJ-PR – Tribunal de Justiça do Estado do Paraná
v. g. – verbi gratia, por exemplo
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ---------------------------------------------------------------------------------------- 09
I INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA – VISÃO GERAL ------------------------------------- 10
I.1 A INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA E SUA DINÂMICA ------------------------------- 10
I.2 REDE CONTRATUAL E FUNÇÃO SOCIAL NA INCORPORAÇÃO
IMOBILIÁRIA ------------------------------------------------------------------------------------- 19
I.3 PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO -------------------------------------------------------------- 25
I.4 REGIMES DE EXECUÇÃO DA OBRA ---------------------------------------------------- 28
I.4.1 Incorporação como Compra e Venda de Coisa Futura por “Preço Global”
ou a “Prazo e Preço Certos”. Preço Fechado ----------------------------------------- 29
I.4.2 Incorporação com Construção sob Regime de Empreitada ---------------------
33
I.4.3 Incorporação com Construção sob Regime de Administração
ou de Preço de Custo ----------------------------------------------------------------------- 39
I.5 COMISSÃO DE REPRESENTANTES ---------------------------------------------------- 42
II A INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA E O CÓDIGO DE DEFESA
DO CONSUMIDOR ------------------------------------------------------------------------------ 46
II.1 O MERCADO DE CONSUMO -------------------------------------------------------------- 46
II.2 A RELAÇÃO DE CONSUMO --------------------------------------------------------------- 52
II.2.1 Responsabilidade Objetiva ---------------------------------------------------------------- 57
II.2.2 Solidariedade na Cadeia de Produção e de Prestação de Serviços ----------- 61
II.3 A INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA E O CDC ------------------------------------------ 63
II.3.1 A Relação de Consumo na Atividade de Incorporação Imobiliária ------------- 63
II.3.1.1 A Responsabilidade do incorporador ------------------------------------------------ 65
II.3.1.2 A responsabilidade do proprietário do terreno ------------------------------------ 68
II.3.1.3 A responsabilidade do construtor ---------------------------------------------------- 73
II.3.1.3.1 Nas incorporações por preço fechado ------------------------------------------- 75
II.3.1.3.2 No regime de empreitada ----------------------------------------------------------- 77
II.3.1.3.3 No regime de administração ------------------------------------------------------- 80
II.3.1.4 A responsabilidade do agente financiador ---------------------------------------- 81
III PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO E INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA -------------- 84
III.1 A AUTONOMIA PATRIMONIAL E FUNCIONAL DA
INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA ---------------------------------------------------------- 84
III.2 FONTES DO PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO ------------------------------------------ 93
III.3 NATUREZA JURÍDICA DO PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO ---------------------- 106
III.4 PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO E SEUS CREDORES ------------------------------ 118
III.5 LEGITIMIDADE ATIVA PARA DEFESA DO PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO -- 124
III.6 CRÍTICAS À INTRODUÇÃO DO PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO
NA ATIVIDADE DE INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA ------------------------------ 126
IV INADIMPLEMENTO NA INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA ------------------------- 135
IV.1 INADIMPLEMENTO NA INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA. DIVERSIDADE
DE CONSEQUÊNCIAS --------------------------------------------------------------------- 135
IV.2 O ART. 53 DO CDC E O INADIMPLEMENTO DOS ADQUIRENTES
FRENTE AO INCORPORADOR ---------------------------------------------------------- 135
IV.3 INADIMPLEMENTO DOS ADQUIRENTES E A EXECUÇÃO
EXTRAJUDICIAL (ART. 63 DA LCI). CONSTITUCIONALIDADE --------------- 143
IV.4 FALÊNCIA DO INCORPORADOR, PARALISAÇÃO
OU RETARDAMENTO EXCESSIVO E INJUSTIFICADO DA OBRA ----------- 154
IV.4.1 Na Incorporação Imobiliária sem Afetação Patrimonial -------------------------- 155
IV.4.2 Na Incorporação Imobiliária com Regime de Afetação Patrimonial ----------- 163
CONCLUSÕES -------------------------------------------------------------------------------------- 174
BIBLIOGRAFIA -------------------------------------------------------------------------------------- 177
9
INTRODUÇÃO
O propósito maior deste estudo é analisar se a introdução do regime de
afetação patrimonial na atividade de incorporação imobiliária de fato beneficiará os
consumidores adquirentes de imóveis em construção.
Para responder a indagação, inicialmente o estudo abordará a dinâmica
dessa atividade descrevendo suas peculiaridades, seu funcionamento e o papel
desempenhado pelas possíveis partes contratantes, incorporador, construtor,
proprietário de terreno em que se realiza a construção, adquirentes consumidores e
agente financeiro que eventualmente tenha concedido empréstimo para financiar a
incorporação. Na sequência, o tema será situado no âmbito do Código de Defesa do
Consumidor com o propósito de tentar configurar como de consumo as diversas
relações jurídicas possíveis na incorporação, apurando-se daí a responsabilidade
civil própria de cada uma delas.
Já se aproximando do fim, a incorporação imobiliária será analisada segundo
sua autonomia patrimonial e funcional relativamente à pessoa do incorporador e seu
patrimônio. Para tanto, o tema será passado em revista sob o ponto de vista das
incorporações que tenham adotado ou não o regime de afetação patrimonial,
permitindo assim um comparativo entre as duas espécies. Ato contínuo, será
definida a natureza jurídica do patrimônio de afetação seguida de críticas ao instituto
tal qual fora introduzido na Lei 4.591/64, passando em revista suas fontes.
Por fim, na última parte, serão analisadas as consequências advindas do
inadimplemento operado no contexto da incorporação, bem como os procedimentos
próprios e especiais que a lei oferece para sua superação.
Ao final, seguem-se as conclusões mais relevantes colhidas ao longo do
estudo, numeradas em forma sequencial.
10
I INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA – VISÃO GERAL
I.1 A INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA E SUA DINÂMICA
Do ponto de vista do incorporador, pode se dizer que sua atividade siga um
roteiro. Considerado um terreno com potencial para comportar um edifício
residencial ou comercial composto por unidades imobiliárias representadas por
apartamentos, salas comerciais, vagas de garagem, habitações isoladas em área
urbana ou rural ou ainda por um grupo de casas térreas ou assobradas; dada
pessoa, física ou jurídica, pública ou privada, vislumbra a possibilidade de auferir
lucro mediante alienação dessas unidades. Se o terreno for de sua propriedade,
haverá ainda necessidade de um projeto da futura edificação, elaborado por
engenheiro civil, e autorizações concedidas pelas autoridades públicas competentes
consideradas as peculiaridades do terreno e da respectiva obra. Se a tal pessoa for
um construtor, poderá ela própria realizar a construção. Do contrário, haverá de
contratar alguém que o seja e ainda providenciar para que a contraprestação de
seus serviços seja paga por si própria ou por quem se interessar em adquirir as
aquelas unidades imobiliárias. Mas se o terreno não for de sua propriedade, ainda
assim o vislumbre de lucro poderá ser perseguido: essa pessoa terá então que
obter, junto ao proprietário, uma procuração pública, uma promessa de compra e
venda ou de cessão de direitos ou de permuta que sejam irrevogáveis, irretratáveis,
autorizem imediata imissão na posse do terreno, sua alienação fracionada e a
realização de construção sobre ele.
Frequentemente se encontra doutrina contendo o roteiro que segue
uma incorporação imobiliária. Porque ítil na medida em que fornece uma visão geral
da dinâmica da atividade, J. NASCIMENTO FRANCO e NIESKE GONDO1 assim
descrevem esse percurso:
[...]
1
FRANCO, J. Nascimento et GONDO, Nieske. Incorporações imobiliárias. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 1984.
11
a)
com base nos estudos técnicos e nas dimensões e
características do terreno, o incorporador registra a incorporação
perante o Cartório de Registro de Imóveis (art. 32, § 1.º, da LCI);
b)
quando há prazo de carência, o registro não é definitivo,
podendo o incorporador, na hipótese de fracasso do
empreendimento, denunciar a incorporação no prazo de 180 dias (o
art. 12, da lei n. 4.864, de 29.11.65, elevou para 180 dias o prazo de
validade de registro da incorporação a que se refere o art. 33 da Lei
n. 4.591/64), comunicando o fato aos adquirentes que serão
reembolsados das quantias pagas, corrigidas monetariamente, com
juros de 6% (seis por cento) ao ano sobre o total corrigido (arts. 33,
34 e 36 do LCI);
c)
lançado o empreendimento ao público, segue-se a publicação
de anúncios, com a divulgação do plano de comercialização,
recebimento de propostas dos adquirentes ou celebração de ajustes
preliminares; assinatura do contrato de incorporação (contrato
relativo à fração ideal, de construção e da convenção do
condomínio).
Para a assinatura do contrato de incorporação, o incorporador dispõe
do prazo de 60 dias (art. 13 da Lei n. 4.864/65) contados da extinção
do prazo de carência, ou, no caso deste não existir, a contar da data
da assinatura de qualquer documento de ajuste (art. 35, caput, e §
1.º da LCI);
d)
o art. 49 da Lei n. 4.591/64 faculta aos contratantes da
construção, para tratar de seus interesses em relação a ela, a
eleição, em assembléia geral, antes do início das obras, da
Comissão de Representantes dos adquirentes (c/c art. 50);
e)
dá-se início ou prosseguimento à obra e ao pagamento das
parcelas reajustáveis do preço;
f)
o incorporador informará, por escrito, aos adquirentes, no
período mínimo de seis em seis meses, o estágio da construção,
quando se tratar de negócio a prazo e preço certos (art. 43 da LCI).
Na construção por administração, serão realizadas reuniões
semestrais para que ocorra a revisão do custo da obra, ou no prazo
que o contrato fixar (art. 60);
g)
conclusão das obras, com a obtenção do Auto de Conclusão
“habite-se” pelo incorporador (art. 44 da LCI), procedendo-se, em
seguida, à instituição do condomínio, com o registro das unidades
condominiais em nome de seus respectivos titulares, após o integral
pagamento do preço pelos adquirentes.
Essa pessoa, que sendo ou não o proprietário do terreno, idealiza a
construção e adota medidas para que o edifício seja construído ainda que pelas
mãos de um terceiro, é o incorporador de imóveis. Mesmo não carecendo de ser
proprietário do terreno ou construtor da obra, o incorporador será sempre a pessoa
que promove a construção e a transmissão da propriedade aos adquirentes das
unidades. Tratando de explicar a distinção entre incorporador e construtor,
ORLANDO GOMES2 alerta que:
2
GOMES, Orlando. Contratos. 18ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1999, p. 447, itálicos do autor.
12
A obrigação de construir o edifício não deve ser tomada ao pé da letra, no
sentido de que o incorporador há de ser necessariamente construtor civil,
mas sim, no de que lhe incumbe promover a construção, por empreitada ou
por administração, se não constrói diretamente o edifício. Quando constrói
por intermédio de terceiro, empreiteiro ou administrador da obra, o contrato,
de empreitada ou de administração, não é absorvido pelo de incorporação,
conservando, pois, sua autonomia. A obrigação que tem é de promover a
construção, não de construir, sendo, assim, obrigação de fazer que,
descumprida, pode ser executada à custa do incorporador, por decisão
judicial.
Mobilizando e organizando fatores de produção com o propósito de auferir
lucro mediante oferta de bem no mercado de consumo, o incorporador caracterizase como fornecedor de produtos3 e, a depender de sua habitualidade e assento no
registro público de empresas, também poderá ser empresário.
Discorrendo sobre a complexidade dessa atividade, CAIO MÁRIO DA SILVA
PEREIRA4, autor do anteprojeto de que resultou a LCI, procura destrinchar a gama
de atividades que se acham sob o manto da incorporação, revelando desde logo a
natureza mista do contrato de incorporação:
O incorporador existiu antes de o direito ter cogitado dele. E viveu a bem
dizer na rua ou no alto dos edifícios em construção, antes de sentar-se no
gabinete dos juristas ou no salão dos julgadores.
Um indivíduo procura o proprietário de um terreno bem situado, e incute-lhe
a idéia de realizar a edificação de um prédio coletivo. Mas nenhum dos dois
dispõe do numerário e nenhum deles tem possibilidade de levantar por
empréstimo o capital, cada vez mais vultoso, necessário a levar a termo o
empreendimento. Obtém, então, opção do proprietário, na qual se
estipulam as condições em que este aliena o seu imóvel. Feito isso, vai o
incorporador ao arquiteto, que lhe dá o projeto. O construtor lhe fornece o
orçamento. De posse dos dados que lhe permitem calcular o aspecto
econômico do negócio (participação do proprietário, custo da obra, benefício
do construtor e lucro), oferece à venda as unidades. Aos candidatos à
aquisição não dá um documento seu, definitivo ou provisório, mas deles
recebe uma “proposta” de compra, em que vêm especificadas as condições
de pagamento e outras minúcias. Somente quando já conta com o número
3
Neste sentido, o CDC qualifica como fornecedor de produto quem desenvolva atividade de produção,
construção ou transformação de bem móvel ou imóvel (art. 3º). A qualificação do incorporador como fornecedor
resulta clara ante a redação do no art. 53 do CDC, que faz alusão a “contratos de compra e venda de móveis ou
imóveis mediante pagamento em prestações”. Ainda, conforme adiante se verá, todos os demais requisitos
necessários à existência de uma relação de consumo se fazem presentes. No entanto, o incorporador não é
necessariamente um empresário. E para que se forme relação de consumo tendo-o como fornecedor, também não
é necessário incorporador que pratique a atividade com habitualidade. Esse tema, todavia, também será abordado
novamente quando da análise do CDC.
4
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. 10ª ed., Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000,
pp. 231-233, negritos do autor.
13
de subscritores suficientes para suportar os encargos da obra é que o
incorporador a inicia. Se dá sua execução por empreitada, contrata com o
empreiteiro; se por administração, ajusta esta com o responsável técnico e
contrato o calculista, contrata os operários, contrata o fornecimento de
materiais etc.
[...]
Diante desta variedade polimorfa de atividades, era com efeito impossível
definir o incorporador dentro de fórmula tradicional das figuras componentes
de qualquer contrato típico. Ele é um corretor, porque efetua a
aproximação do dono do terreno com os compradores; mas é mais do que
isso. É um mandatário, porque opera em nome do proprietário junto aos
compradores. E porque os representa junto ao construtor, aos fornecedores,
etc. É um gestor de negócios, porque, em todas as circunstâncias
eventuais, defende oficiosamente os interesses de seus clientes, de um e
de outro lado. É um industrial de construção civil. E às vezes um
banqueiro-financiador. É um comerciante. Um pouco de tudo.
Além de atividade em si, a incorporação imobiliária é forma de constituição de
condomínio por unidades autônomas (condomínio pro diviso), integrada no roteiro de
atos a que o incorporador se compromete a praticar quando lança um
empreendimento. Sobre essa questão, PONTES DE MIRANDA5 observara que os
atos de incorporação seriam negócios jurídicos preparatórios do condomínio cuja
criação se segue à conclusão do empreendimento, inseridos em uma fase que
designa por pré-comunial ou pré-divisional.
Até o advento da LCI, a incorporação imobiliária era regulada de maneira
deficiente pelo Decreto 5.481/1928 com alterações introduzidas pelo Decreto-Lei
5.234/1943 e pela Lei 285/1948. Não obstante contasse com disposições permitindo
a existência de condomínio horizontal pro diviso apenas de “apartamentos”
componentes de “edifícios de dois ou mais pavimentos” de “pelo menos três peças”6,
aquela legislação nada dispunha sobre o incorporador ou sobre o contrato de
construção, em que pese àquela época a atividade incorporativa, sem nomen iuris
algum, já se fizesse presente nos grandes centros urbanos. O cenário em que a
5
6
MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. T. XII. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971, pp. 205-217.
Só com a LCI (art. 8º, a) é que se permitiu a constituição de condomínio pro diviso em construções de
pavimento único. Sobre a questão, EVERALDO AUGUSTO CAMBLER considera que a LCI não disciplina os
chamados “loteamentos fechados, também denominados loteamentos em condomínio”. A regulação da
constituição desta espécie de “condomínio” estaria sob a égide da Lei 6.766/79, já que, segundo o autor, nesta
figura jurídica, diversamente do que se dá no condomínio pro diviso efetivamente regulado pela LCI, “os lotes
são unidades autônomas, as ruas são vias de acesso e as praças de uso comum, sob a manutenção e
conservação municipal. O regime condominial, previsto no art. 8º, da Lei 4.591/64, refere-se a casas térreas ou
assobradadas e não a lotes de terreno, não podendo substituir o processo normal de loteamento, pelo qual
procura-se garantir a realização de todas as benfeitorias e obras de infra-estrutura exigidas do loteador”
(CAMBLER, Everaldo Augusto. Incorporação imobiliária: ensaio de uma teoria geral. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1993, p. 257).
14
atividade
se
desenvolvia
ante
o
vazio
legislativo
era
de
quase
total
irresponsabilidade do incorporador. Este, com frequência, assumia a posição jurídica
de um corretor que, tendo em mãos um projeto de obra, vendia as frações ideais do
terreno com base em procuração outorgada por seu proprietário e ao mesmo tempo
aproximava os adquirentes da pessoa do construtor (que em geral não era o
incorporador) de modo a que acertassem o preço da construção por unidade
(apartamento, salas comerciais, vagas de garagem, habitações isoladas em área
urbana ou rural ou ainda por grupo de casas assobradadas). Conforme recorda
HUMBERTO THEODORO JÚNIOR7, depois de alienar as frações ideais de terreno e
aproximar um construtor e os adquirentes com o propósito de firmarem um contrato
de construção da obra, embora fosse o idealizador do empreendimento, com
frequência o incorporador “[...] deixava de figurar como parte dos respectivos
contratos. Não se responsabilizava pelo empreendimento e apenas se remunerava
pela aproximação dos interessados finais, agindo mais como uma espécie de
corretor do que como verdadeiro agente da negociação”.
Ante a transformação do perfil da distribuição populacional do país, que
deixava de ser preponderantemente rural para se tornar urbana, fez-se premente um
incremento legislativo que disciplinasse o mercado imobiliário e de crédito imobiliário
bem assim a ocupação ordenada das cidades; o que se constata de fato ter ocorrido
mediante verificação de alguns do diversos diplomas legais surgidos nas décadas de
1960 e 1970 (Decreto-Lei 911/69, Lei 6.766/79, Lei 4.380/64, Lei 4.864/65, Lei
5.741/71 e Lei 6.015/73).
Nesse contexto é que surge a LCI. Além de regular a atividade, essa lei
especial tipificou o contrato de incorporação imobiliária sem, todavia, nominá-lo
expressamente, atribuindo-lhe feições próprias, fundindo em um contrato complexo
negócios que até então se ligavam ao empreendimento sem referência recíproca,
como se cada um fosse independente do outro. Com efeito, do contexto de um
contrato de incorporação sobressai a compra e venda de fração ideal de terreno ou
sua promessa, a promoção da edificação, o contrato de construção e a instituição de
condomínio pro diviso. Em que pese não haja alusão ao nomem iuris, a LCI permite
7
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Incorporação imobiliária: atualidade do regime jurídico instituído pela Lei
n° 4.591/1964. Revista Forense, n° 100, v. 376. Rio de Janeiro: Editora Forense, nov-dez de 2004.
15
concluir sim pela existência de um “contrato de incorporação”, conforme
unanimemente reconhece a doutrina8.
A LCI inseriu várias inovações no direito pátrio e continua a fazê-lo até os dias
atuais. Dada sua natureza vanguardista, pôs o país na ponta da produção legislativa
de qualidade sobre o assunto9. Neste sentido, SILVIO RODRIGUES10 se refere a
algumas das inovações trazidas pela LCI citando (i) a possibilidade de condomínio
em construções de um único pavimento, o que até então não era previsto (art. 1º);
(ii) a atribuição de natureza propter rem às obrigações devidas pelos condôminos
em favor do condomínio (art. 4º); (iii) a obrigatoriedade de uma convenção de
condomínio e um regimento interno registrados no cartório de imóveis (art. 9º) de
modo a regular o convívio na edificação; (iv) a eleição de um síndico para
representar o condomínio (art. 22); (v) a natureza real dos direitos dos promissários
compradores mediante registro de seus contratos e o direito à adjudicação
compulsória das unidades adquiridas (art. 35, § 4º); (vi) a responsabilidade civil do
incorporador, inexistente até então (arts. 29, 30 e 31); (vii) a estabilidade contratual
mediante proibição de alterações de suas condições, em especial aquela relativa ao
preço.
A designação legal que a lei dá à atividade – incorporação de imóveis - se
explica pela consequência jurídica que os atos do incorporador acarretam. Se de
início o que se têm é um único imóvel representado por um terreno, com a
conclusão da edificação aquele terreno se divide juridicamente de modo a que sobre
ele se incorporem tantos imóveis quantos forem os apartamentos, salas comerciais,
vagas de garagem, habitações isoladas em área urbana ou rural ou ainda as casas
8
Cfr. HUMBERTO THEODORO JÚNIOR: “A incorporação, tal como conceito o direito positivo (Lei n.
4.591/64), consiste num negócio jurídico complexo, subordinado a um regime especial, que o legislador
concebeu justamente para defesa dos interesses dos adquirentes de unidades autônoma de edifícios, ainda em
fase de construção. Às vezes, para simplificar o fato jurídico complexo, fala-se em contrato de incorporaão. O
que há, porém, é um situação jurídica, que pode engendrar vários negócios ou contratos, entre o construtor, o
adquirente e outras pessoas que eventualmente tenham de intervir, como o proprietário do terreno, a empresa
de projeto, a administradora das vendas, etc.”. (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Incorporação imobiliária:
atualidade do regime jurídico instituído pela Lei n° 4.591/1964. Revista Forense, n° 100, v. 376. Rio de Janeiro:
Editora Forense, nov-dez de 2004).
9
Cfr. EVERALDO AUGUSTO CAMBLER (Incorporação imobiliária: ensaio de uma teoria geral. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 1993) e José de Oliveira Ascensão (Direito civil: direitos reais. 5ª Ed. Coimbra:
Coimbra Editora, 1993, p. 319).
10
RODRIGUES, Sílvio. Direito civil: direito das coisas, V. V, n. 122, p. 199 e SS, 8ª Ed. São Paulo: Saraiva,
1978, apud CAMBLER, Everaldo Augusto. Incorporação imobiliária: ensaio de uma teoria geral. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 1993, p. 20.
16
térreas ou assobradas. Assim, vale dizer que, por meio de sua atividade, o
incorporador produz e reúne vários imóveis sobre um único corpo11.
Os arts. 28 a 31 da LCI caracterizam a atividade de incorporação pela
alienação de unidades imobiliárias autônomas integrantes de edificação ou conjunto
de edificações em construção ou cuja construção ainda não esteja sequer iniciada12,
seguida de uma divisão física e jurídica que se espelham entre si criando novos
imóveis.
Qualquer pessoa, física ou jurídica, empresária ou não, pública ou privada,
pode praticar a atividade de incorporação imobiliária. Basta que realize os atos
previstos nos arts. 28 a 31, com ou sem habitualidade e profissionalismo. Consoante
as precisas observações de ORLANDO GOMES13:
A incorporação de edifício em condomínio não requer, do incorporador,
habitualidade nem profissionalidade no exercício desta atividade.
Considerada em si é um empreendimento, mas não necessariamente uma
empresa; o proprietário de um terreno pode, sem ser empresário de
incorporações, incorporar eventualmente um edifício sem que por isso deva
ser considerado empresa imobiliária. Claro é que tem essa qualidade a
sociedade, ou o indivíduo, que se dedica a essa atividade comercialmente.
Ainda, porém, que o incorporador não seja comerciante, e não se equipare
à pessoa jurídica por injunção legal, a sua atividade, conquanto civil, pode
ser definida como empresarial para efeitos fiscais, assimilado, como está,
na lei, a uma empresa individual. Assim não é o incorporador esporádico,
dado que toda empresa presume continuidade.
Em que pese o desenvolvimento da atividade sem observância das várias
obrigações que a LCI impõe ao incorporador – v. g. arquivar memorial descritivo da
obra, art. 32, “g” - configurar crime contra a economia popular (arts. 65 e 66 da LCI)
e ainda dar ensejo à responsabilidade civil e à nulidade de eventuais pré-contratos
por ofensa ao princípio da boa-fé e descumprimento de deveres laterais de
informação e proteção; o enquadramento de alguém como incorporador não
depende de sua aceitação ou do cumprimento das obrigações previstas naquela
legislação. A mera realização de negócios típicos de incorporação já basta para que
11
Cfr. CAMBLER, Everaldo Augusto. Incorporação imobiliária: ensaio de uma teoria geral. Editora Revista
dos Tribunais, 1993, p. 19.
12
De ordinário, o mercado designa a aquisição de bem nessas condições pela expressão “compra de imóvel na
planta”, querendo significar o imóvel que ainda só existe como projeto de engenharia, na planta do imóvel
elaborada pelo engenheiro.
13
GOMES, Orlando. Contratos. 18ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1999, pp. 449-450.
17
se configure a existência de um incorporador; incorporador irregular é verdade, mas
passível de responsabilização como se incorporador regular fosse14. De todo modo,
a própria lei permite a conclusão de que a falta de registro dos documentos referidos
nos arts. 28 a 32 não impede a responsabilização do incorporador. Neste sentido, o
parágrafo único do art. 29 prevê a presunção de vinculação entre a alienação da
fração ideal de terreno e o negócio de construção mesmo que o projeto de
construção (art. 32, “d”) ainda penda de aprovação pela autoridade administrativa,
“respondendo o alienante como incorporador”. De igual modo o art. 35, ao permitir a
averbação de contratos preliminares mesmo que o incorporador não providencie o
registro da referida documentação prevista em lei.
Não caracteriza condição de incorporador imobiliário, todavia, àquele que
constrói edifício para uso próprio ou que só pretenda vender e de fato só venda as
unidades depois de concluída a obra15. De igual modo, não configura incorporação a
venda da construção inacabada, mesmo que a mais de um comprador, sem
“vincular a operação a unidades autônomas, limitando-se a transferir quotas ideais
do prédio como um todo”16. Em tais situações, torna-se desnecessário observar os
rigores da LCI no tocante, por exemplo, à exigência de se registrar na matrícula do
terreno todos os documentos elencados no art. 32, notadamente o memorial
descritivo com as especificações da obra projetada. Uma vez concluída a obra e
diante da intenção de aliená-la de maneira fracionada por número de apartamentos,
salas comerciais, vagas de garagem, habitações isoladas em área urbana ou rural
ou ainda por casas térreas ou assobradas, o proprietário deverá constituir
condomínio com base no art. 7º da LCI, apresentando requerimento devidamente
instruído para que se inscreva no registro de imóveis a individualização de cada
unidade, sua identificação e discriminação, bem como a fração ideal sobre o terreno
e partes comuns atribuídas a cada unidade. Feito isso ter-se-á a abertura de
matrículas imobiliárias individuais de modo a que cada unidade se torne uma
14
Com efeito, não faria sentido algum que alguém pratique atos incorporativos, mas deixe de ser
responsabilizado como tal só porque descumpriu requisitos iniciais para o desenvolvimento lícito da
incorporação.
15
Cfr. CAMBLER, Everaldo Augusto. Incorporação imobiliária: ensaio de uma teoria geral. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1993, pp. 116-117.
16
Cfr. THEODORO JÚNIOR, Humberto Incorporação imobiliária: atualidade do regime jurídico instituído pela
Lei n° 4.591/1964. Revista Forense, n° 100, v. 376. Rio de Janeiro: Editora Forense, nov-dez de 2004.
18
propriedade exclusiva com direitos a partes de uso exclusivo e comum no terreno e
no edifício.
Como já referido, não é necessário que o incorporador seja o proprietário do
terreno sobre o qual pretende realizar a construção. Este pode ser um terceiro. O
que se exige do incorporador é que tenha condições de outorgar escritura que
possibilite aos adquirentes das unidades registrar a propriedade sobre elas em seus
nomes. As condições que autorizam o incorporador a construir sobre terreno alheio
e aliená-lo em frações ideais e de maneira vinculada à construção ainda não
concluída, encontram-se previstas nos arts. 31 e 32, “a”, da LCI. Assim, também
pode ser incorporador (art. 31) “o proprietário do terreno, o promitente comprador, o
cessionário deste ou promitente cessionário com título que satisfaça os requisitos da
alínea a do Artigo 32”, bem como “o construtor [...] ou corretor de imóveis” que
obtenha uma procuração com poderes para alienar o terreno em frações ideais e
sobre ele promover a construção.
Essa dispensa legal à condição de proprietário do terreno, bem assim da não
obrigatoriedade de que a obra seja construída pelo próprio incorporador, são
significativas, em primeiro lugar, de que, na atividade de incorporação imobiliária, o
direito de propriedade sobre o terreno perde, por assim dizer, o caráter de “principal”
para tornar-se um “acessório” da função social da atividade de incorporação. Tanto
assim o é que o direito dos adquirentes de verem concluída a obra e receberem a
propriedade das unidades prevalece sobre o direito de propriedade sobre o terreno,
pertença ele ao incorporador ou a um terceiro17. Em segundo lugar, aquelas
dispensas são significativas de uma realidade do mercado brasileiro de construção e
comercialização de edifícios, qual seja, a de que a grande maioria dos
incorporadores não dispõe do capital necessário para adquirir um terreno e concluir
um edifício de vários pavimentos. Daí porque, além de venderem para depois
construir, os incorporadores também carecem de promover as edificações sobre
terreno alheio, em geral com promessa de pagamento futuro em espécie ou por
meio de dação em pagamento de parte das unidades a serem construídas o que,
aliás, o art. 39 da LCI permite que se faça.
17
Adiante será caracterizada mais detidamente a função social da atividade. Também será tratada a possibilidade
de os adquirentes concluírem a construção sem a colaboração do incorporador e do proprietário do terreno.
19
I.2 REDE CONTRATUAL E FUNÇÃO SOCIAL NA INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA
Observação compartilhada pela doutrina especializada, a incorporação
imobiliária permite enfoque de variadas matizes, política, social, urbanística e
jurídica. Dentre elas, a merecer especial atenção está a captação de recursos junto
à população mediante promessa de entrega de coisa futura, em geral uma unidade
imobiliária para servir de moradia para uma família. Daí o porquê de o art. 65 da LCI
considerar “crime contra a economia popular promover incorporação, fazendo, em
proposta, contratos, prospectos ou comunicação ao público ou aos interessados,
afirmação falsa sobre a constituição do condomínio, alienação das frações ideais do
terreno ou sobre a construção de edificações”.
O aspecto social da incorporação imobiliária, aliás, foi o que sensibilizou o
legislador, levando-o a regular a atividade por meio da LCI, inserida em um contexto
ainda maior, tendente à redução do deficit habitacional brasileiro, fazendo coro com
vários outros diplomas voltados direta ou indiretamente para o ramo da construção
civil e para a atividade de crédito imobiliário, nas décadas de 1960 e 197018.
A preocupação do legislador evidencia-se mediante simples leitura da LCI,
que muito antes do festejado CDC, já trazia uma série de providências tendentes a
dar proteger e informar aos adquirentes que, com muita frequência, viam-se às
voltas com incorporadores irresponsáveis ou incipientes ante o considerável vácuo
legislativo então existente e a novidade do tema no início do século passado19.
Realmente, a LCI estabelece uma série de obrigações para o incorporador, voltadas
à proteção e informação dos interesses dos consumidores em um grau de
detalhamento tão elevado que de forma alguma seria alcançado mediante aplicação
do CDC e demais legislação esparsa.
Nesse sentido, os arts. 37 e 38 da LCI exigem que o incorporador comunique
aos adquirentes, antes da contratação, acerca da existência de ônus reais sobre o
terreno em que se vai construir, bem como o fato de eventualmente encontrar-se ele
18
Estudo aprofundado sobre o desenvolvimento e estímulo à edificação de moradia pode ser encontrado em
ARAGÃO, José Maria. Sistema Financeiro da Habitação: uma análise sócio-jurídica da gênese,
desenvolvimento e crise do Sistema. 2ª ed. Curitiba: Juruá Editora, 2002.
19
Cfr. HÉRCULES AGHIARIAN: “Daí, com freqüência, vermos neste diploma excepcional um dos mais
precursores do que se poderia chamar, hoje de consumidores, ou simplesmente, aderentes” (AGHIARIAN,
Hércules. Curso de direito imobiliário. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2003, p. 261).
20
ocupado. Igualmente acerca da proibição de o incorporador alienar frações ideais do
empreendimento sem antes registrar o Memorial de Incorporação contendo todas as
características do empreendimento (art. 32); do dever de discriminar as obrigações
relativas aos eventuais proprietários do terreno que o tenham permutado com o
incorporador por unidades a serem construídas no próprio terreno (art. 39); e tantas
outras obrigações e precauções previstas na lei com a finalidade de dar segurança e
ciência aos adquirentes numa época em que os deveres acessórios de proteção,
lealdade e informação ainda engatinhavam em nosso sistema jurídico.
Porque em geral os incorporadores brasileiros necessitam vender para depois
construir, a moral e o profissionalismo se tornam fatores importantes para o alcance
da função social dessa atividade. Nesse sentido, é indispensável a manutenção de
uma equação representada pelos recursos captados e a evolução da obra. Logo, a
aplicação, diretamente na obra, dos recursos decorrentes das vendas antecipadas, é
a justificativa negocial e legal para sua ocorrência. Em sentido contrário, não se
reveste de boa-fé a captação de recursos seguida de “desvio” com propósito de
alavancar outros negócios do incorporador.
A conclusão do empreendimento por meio de incorporação não é um direito
individualizado para cada adquirente. Também não pode ser vista apenas como uma
obrigação do incorporador.
Na realidade, a atividade de incorporação imobiliária tem objetivo comum aos
interesses do incorporador, do conjunto de adquirentes, dos eventuais agentes
bancários financiadores da obra, dos trabalhadores nela empregados, enfim, de toda
uma rede contratual que se forma em torno dessa atividade, conforme já observou
MELHIM NAMEM CHALHUB20 ao se referir à gama de relações contratuais
presentes na edificação de uma obra de incorporação:
No negócio jurídico da incorporação, esses contratos são coligados,
reunidos que estão para cumprimento de uma finalidade única que é a
articulação de todos os meios necessários para que se promova a
construção e se concretize seu resultado no Registro de Imóveis, com a
averbação da construção, que resultará na individualização e discriminação
das unidades imobiliárias autônomas, integrantes de um conjunto de
unidades. A partir da união desses contratos e da implementação de outros
atos jurídicos, entre estes, em especial, o registro da incorporação,
identifica-se o negócio jurídico da incorporação, “formando o centro nuclear
da incorporação imobiliária lato sensu, encontramos um negócio jurídico
20
CHALHUB, Melhim Namem. Da incorporação imobiliária. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar,
2003, p. 142, itálicos do autor.
21
unitário,
composto
de
diversas
outras
declarações
reunidas,
complementares uma das outras: é o negócio jurídico incorporativo, ou
incorporação imobiliária stricto sensu.
Como em toda atividade econômica, também há função social na
incorporação imobiliária que, no caso, concretiza-se mediante conclusão do edifício,
quer seja essa conclusão levada a cabo por promoção do incorporador como
originalmente contratado com os consumidores, quer seja pelos próprios
consumidores sem a participação do incorporador caso ele se torne inadimplente. O
que há de mais relevante é a conclusão da obra a ser alcançada, posto ser o meio
mais adequado de preservar o maior número de interesses daqueles que, direta ou
indiretamente, ligaram-se à rede contratual.
A atividade de incorporação imobiliária não se mantém por ato isolado do
incorporador. Trata-se de relação jurídica verdadeiramente complexa, envolvendo
diversos contratos com deveres principais e acessórios que se entrelaçam
ultrapassando os limites da polarização credor-devedor para irradiar efeitos
sistêmicos em uma relação contratual de execução continuada marcada pelo dever
de cooperação entre todos os partícipes. Nesse sentido já observou ORLANDO
GOMES21 que a incorporação imobiliária abrange várias espécies de contrato, de
compra e venda ou de mera promessa de coisa comum e de coisa privada, de
construção e instituição de condomínio, todas elas reunidas e fundidas em uma
unidade complexa, um único contrato, que adquire tipicidade conferida pela LCI e
que tem um único objetivo, qual seja, a produção de novos imóveis.
Lançada a incorporação e postas à venda as frações ideais do terreno em
que serão edificadas as unidades autônomas, todos ganham participação na
conclusão do empreendimento, de uma forma ou de outra. Se um adquirente deixa
de pagar as parcelas da aquisição que fez, certamente haverá desencaixe, ainda
que pequeno, nos recursos gerenciados em prol da incorporação que, como se
disse, são captados por antecipação justamente para permitir que progrida.
O legislador regulou a atividade de incorporação imobiliária com exata noção
desse dever de cooperação. Essa colocação é reforçada quando se considera a
possibilidade de derrocada da incorporação por falta de suficiente comercialização
21
GOMES, Orlando. Contratos. 18ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1999, pp. 450-451.
22
de suas unidades e, consequentemente, de recursos para levar a cabo a
construção. Tal acontecimento não é debitado integralmente à imprevidência do
incorporador na condição de “agente econômico absoluta e exclusivamente
responsável pelos riscos de sua atividade”. Há consciência de que nem todos os
incorporadores dispõem dos recursos necessários à integral conclusão de um
empreendimento. Por isto mesmo é que a LCI prevê, no caput e § 4º do art. 34, que
“o incorporador poderá fixar, para efetivação da incorporação, prazo de carência,
dentro do qual lhe é lícito desistir do empreendimento” por meio de “denúncia”
escrita apresentada ao registro de imóveis.
À primeira vista a faculdade que tem o incorporador de desistir da
incorporação e livrar-se do dever de entregar as unidades que eventualmente já
tenha alienado sem penalização alguma, pode parecer um direito desproporcional
em detrimento do consumidor se considerados os termos do art. 51, IX e XI, do
CDC. No entanto, o propósito da desistência do incorporador é, pelo contrário, o de
resguardar os interesses dos próprios adquirentes ante a premente possibilidade de
fracasso da incorporação, que pode levar à paralisação da obra por falta de recursos
com prejuízos ainda maiores a todos os contratantes. Percebendo o incorporador
que a incorporação não terá sucesso por insuficiência de vendas, o melhor remédio
para todos, segundo a lei, é autorizar a desistência do negócio.
Aqui o princípio da força obrigatória dos contratos abre espaço para a
“funcionalização da atividade”, autorizando a desistência como forma de melhor
atender aos interesses de todas as partes contratantes22.
Na incorporação imobiliária, mais do que em muitas outras atividades em que
se encadeiam diversas relações contratuais formalmente independentes entre si,
faz-se presente o conceito de rede contratual. Essa rede ganha existência não
apenas pela pluralidade de consumidores, compradores desses imóveis, que juntos
fomentam a atividade do incorporador interessado em apropriar-se do lucro. Não são
necessários muitos esforços para perceber-se que essa rede contratual envolve
muitas outras relações contratuais interligadas direta ou indiretamente, que se
22
Importante observar, entretanto, que a possibilidade de desistir da incorporação de forma lícita, consoante
prevê o art. 34, não é irrestrita. Caso contrário, jamais se configuraria inadimplemento do incorporador, que
poderia a qualquer momento desistir do negócio. Fiel à intenção de resguardar os interesses dos adquirentes e
também ao princípio do dever de informação, o art. 34, §§ 1º e 2º, e o art. 33, da LCI, exigem que o incorporador
informe aos adquirentes que naquela incorporação reservou-se ele (o incorporador) o direito de desistir do
empreendimento durante determinado prazo, que não poderá jamais exceder a 360 dias contados da data do
registro da incorporação no cartório de imóveis competente (art. 33 da LCI e art. 12 da Lei 4.864/65).
23
influenciam reciprocamente, mas que têm todas elas, como causa sistêmica, de um
lado o consumidor que pretende comprar um imóvel e, de outro, o justo propósito de
lucro por parte de quem desenvolva atividades de maneira vinculada à rede. Nessa
linha segue a opinião de EVERALDO AUGUSTO CAMBLER23 afirmando:
Parece-nos claro que a incorporação imobiliária lato sensu corresponde a
uma pluralidade de negócios interligados, com efeitos jurídicos próprios e
independentes, mas todos agrupados em torna de uma realidade jurídica
única: a atividade incorporativa normatizada pela LCI. Formando o centro
nuclear da incorporação imobiliária, lato sensu, encontramos um negócio
jurídico unitário, composto de diversas outras declarações reunidas,
complementares uma das outras: é o negócio jurídico incorporativo, ou
incorporação imobiliária stricto sensu.
Essas relações jurídicas típicas reunidas, complementares umas das outras,
formando um negócio jurídico unitário, constituem verdadeiro negócio
jurídico complexo, resultante da manifestação de vontade do incorporador
(quando proprietário ou não do imóvel incorporável), do adquirente da
unidade incorporada e, eventualmente, de outros participantes envolvidos.
Os negócios jurídicos reunidos objetivam a promoção e realização da
construção para posterior alienação das unidades formadoras da edificação,
ou conjunto de edificações, produzindo-se o fenômeno do nascimento do
direito de propriedade sobre esse bem e a conseqüente eficácia jurídica
real.
As relações que se travam nas redes contratuais por vezes guardam entre si
considerável nível de independência em razão da diversidade de contratos e de
partes contratantes, dando a impressão primeira de que a “quebra” de um
determinado contrato não influenciará as relações jurídica e econômica dos demais.
Ocorre, todavia, que a frustração das condições para o cumprimento de uma parcela
das obrigações em rede pode sim afetar as demais parcelas, fazendo-se sentir
perante todos os contratantes.
De uma análise estrutural das redes contratuais observam-se fenômenos que
mantêm seu bom funcionamento e que decorrem, justamente, dos reflexos
decorrentes das relações diretas e indiretas que se estabelecem entre todas as
partes contratantes24. Sobre o assunto é possível fazer uso das manifestações
23
CAMBLER, Everaldo Augusto. Incorporação imobiliária: ensaio de uma teoria geral. Editora Revista dos
Tribunais, 1993, pp.180-181.
24
A propósito da interdependência das relações contratuais em rede e da necessidade de manutenção da equação
financeira em cada uma de suas fases, especialmente no campo do direito bancário, leia-se, WALD, Arnoldo. O
novo direito monetário: os planos econômicos, os contratos, o FGTS e a Justiça. São Paulo: Malheiros
Editores, 1996.
24
catalogados
por
RICARDO
LUIS
LORENZETTI25,
resguardadas
pequenas
alterações: (i) existência de uma causa sistêmica que une todos os contratos na
rede; (ii) existência de coordenação entre os objetos individualizados e relativamente
independentes de cada contrato; (iii) obrigação de colaboração interna entre os
contratantes que diretamente se relacionem; e (iv) obrigação ou desejo geral de que
todos os contratantes se comportem de modo a que se mantenha íntegra a estrutura
da rede, evitando assim que a causa sistêmica e todos os partícipes sejam afetados.
No caso em análise, então, é possível identificar o ato de aquisição de
imóveis em construção como sendo a causa sistêmica em função da qual, direta ou
indiretamente, vários e diversificados contratos se travam e se unem. Evidente que
todos os empresários que se integram à rede têm por escopo a justa obtenção de
lucro, mas a razão que dá a possibilidade de nascença a esse lucro é o consumidor
e seu desejo de adquirir um imóvel.
Em que pese hajam contratos que, integrados a essa cadeia, tenham
finalidade que não propriamente a aquisição de um imóvel, mesmo em tais casos é
possível identificar a existência de coordenação dos objetivos desses contratos com
o objetivo último da cadeia (a causa sistêmica). É o que se dá, por exemplo, com o
financiamento bancário concedido em favor de incorporador de imóveis a fim de que
este construa determinado edifício de apartamentos e depois os revendam para os
consumidores finais (causa sistêmica) obtendo com tal alienação os recursos
necessários para devolver a quantia mutuada pela instituição financeira, acrescida
da remuneração do capital (juros).
Na rede contratual da compra-e-venda de imóveis têm-se também, como em
toda relação contratual, a obrigação de cumprir a obrigação principal constante do
pacto firmado com a contraparte. Mas para além desta óbvia obrigação, há também
o dever de comportar-se de modo a não ferir a estrutura que mantém o bom
funcionamento da rede.
Na atividade de incorporação imobiliária deve-se, acima de tudo, um
comportamento que contribua para que o empreendimento seja concluído.
Compartilhando dessa observação acerca da função social da incorporação
imobiliária como sendo a conclusão da obra, LEANDRO LEAL GHEZZI26 escreve:
25
LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
1998, pp. 192-219.
25
[...] as incorporações imobiliárias sempre tiveram não apenas a função
imediata de satisfazer os interesses dos incorporadores e dos adquirentes
das unidades e, por conseguinte, de propiciar a circulação econômica, mas
também, e principalmente, a função social mediata de assegurar que a
satisfação desses interesses e que esta circulação econômica ocorreriam
de forma segura para todos os envolvidos e, em última análise, para toda a
sociedade.
Assim, identifica-se a função social da atividade de incorporação imobiliária
na implementação do objetivo comum das partes contratantes integradas à rede
contratual que se forma em seu redor, qual seja, a conclusão do empreendimento,
do edifício, da obra. Essa é a causa sistêmica. É o resultado da soma dos interesses
do incorporador (lucro), do proprietário do terreno (em geral permuta por área
construída), do construtor (prestação de serviços), dos interesses de quem compra
imóvel “na planta” (ter o imóvel concluído) e dos interesses da sociedade como um
todo (circulação de riqueza, geração de emprego e recolhimento de tributos)27. Daí
porque a interpretação da LCI deve levar em consideração a contribuição para o
alcance da função social, vale dizer, até que ponto determinada atitude frente à
incorporação contribuirá para que o empreendimento seja concluído.
I.3 PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO
Mais adiante o tema afetação patrimonial será abordado de forma mais
pormenorizada. Por ora, todavia, com o propósito de conferir uma visão geral sobre
a incorporação, algumas considerações introdutórias devem ser apresentadas.
26
GHEZZI, Leandro Leal. A incorporação imobiliária à luz do Código de Defesa do Consumidor e do
Código Civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2007, p. 54.
27
No mesmo sentido MELHIM NAMEM CHALHUB:
“Com efeito, o regime jurídico das incorporações encerra controle da atividade empresarial do incorporador e
determina o conteúdo do contrato (seja de compra e venda, de promessa, de empreitada, de alienação fiduciária
etc), fixando diretrizes materiais e normas de conduta específicas, de acordo com os princípios da boa-fé
objetiva e do equilíbrio das relações contratuais. Visa a lei assegurar a consecução da função social do
contrato, mediante realização de sua finalidade econômica, o que se alcança mediante completa construção da
edificação e entrega das unidades imobiliárias aos adquirentes, nas condições pactuada.”(CHALHUB, Melhim
NameM. Da incorporação imobiliária. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2003, p. 279).
26
Nas décadas de 1980 e 1990, vários incorporadores foram à falência e outros
tantos, sem falir, deixaram vários empreendimentos inacabados por falta de
condições econômicas de concluir a promoção de sua construção. Como
consequência, consumidores, adquirentes, viram-se obrigados a concluir eles
próprios os empreendimentos, sem ajuda do incorporador. Para tanto, em
numerosos casos, os consumidores se depararam com empecilhos jurídicos que os
impediam de retomar o andamento dessas obras, considerando que a incorporação,
como patrimônio do incorporador, sofria ataque de seus credores, interessados em
arrecadá-la para a massa falida ou penhorá-la com o propósito de vendê-la
judicialmente e quitar ações de execução singular contra devedor solvente.
Considerado o propósito de aumentar a oferta de moradia no país, como
forma de incrementar proteção aos consumidores adquirentes de imóvel “na planta”
e também à atividade de crédito voltado ao financiamento bancário para a
construção civil, a LCI foi alterada de modo a que as incorporações imobiliárias
pudessem se constituir sob a forma de “patrimônio de afetação”.
A alteração foi inicialmente introduzida pela Medida Provisória 2.221, de
04.09.2001, que inseriu os arts. 30-A a 30-G na LCI. Em seguida, sobreveio a Lei
10.931/2004, que revogou a Medida Provisória, aperfeiçoou o instituto da afetação
patrimonial e consolidou-o mediante inserção definitiva dos arts. 31-A a 31-F. Além
de alterar a LCI, a Lei 10.931/2004 inovou diversas outras questões relativas ao
crédito imobiliário e criou também um “Regime Especial de Tributação (RET)”
aplicável às incorporações que se desenvolvam sob forma afetação patrimonial,
permitindo assim que as receitas do empreendimento afetado sejam tributadas de
forma separada do incorporador, como se representassem receitas de uma nova
pessoa28.
28
O RET foi regulamentado sucessivamente pelas Instruções Normativas da Receita Federal do Brasil n.
474/2004, 689/2006 e 934/2009. Segundo o disposto no art. 1º da Lei 10.931/2004, a adoção do RET é opcional,
vale dizer, o incorporador pode optar pela adoção do regime de afetação na incorporação mas não submetê-la ao
RET. Adotado o RET, todavia, o incorporador ficará sujeito (art. 4º da Lei 10.931/2004) ao pagamento
equivalente a 6% (seis por cento) da receita mensal do empreendimento, alíquota essa que corresponde ao
pagamento mensal unificado do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas – IRPJ, Contribuição para os Programas
de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público - PIS/PASEP, Contribuição Social sobre
o Lucro Líquido – CSLL e Contribuição para Financiamento da Seguridade Social - COFINS. Se a incorporação
versar sobre imóveis residenciais de interesse social de valor máximo correspondente a R$ 60 mil reais no
âmbito do “Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV)”, o percentual de recolhimento é reduzido a 1% da
receita mensal (§§ 6º e 7º do art. 4º). A facultatividade de adoção do RET, no entanto, não se mostra coerente
com a lógica da afetação patrimonial porque, se não for adotado, os tributos gerados no âmbito da incorporação
(à exceção do IPTU e contribuição social sobre a construção, devida ao INSS) não farão parte das obrigações do
patrimônio afetado. Assim, o que de fato vincularia esses tributos ao empreendimento não é submissão da
27
A adoção do regime de afetação patrimonial não é obrigatória. O incorporador
pode decidir se o empreendimento segue a forma tradicional da LCI ou se o
submete à afetação mediante registro na matrícula imobiliária do terreno.
Sob uma visão panorâmica, pelo regime da afetação o terreno e as acessões
objeto de incorporação imobiliária, bem como os demais bens e direitos a ela
vinculados, mantêm-se apartados do patrimônio do incorporador e constituem um
“patrimônio separado”, destinado à consecução da incorporação correspondente,
quitação de seu passivo e entrega das unidades imobiliárias aos respectivos
adquirentes. O patrimônio de afetação, assim, não se comunica com os demais
bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do incorporador ou de outros
patrimônios de afetação que ele eventualmente tenha constituído. Disso decorre que
os recursos financeiros integrantes do patrimônio de afetação só podem ser
utilizados para pagamento ou reembolso das despesas inerentes à própria
incorporação.
Por operar um rearranjo no direito de propriedade sobre o terreno, acessões,
direitos e obrigações relacionados com a incorporação afetada, as dificuldades
financeiras por que passe o incorporador, aí incluídas sua falência, sua insolvência,
a paralisação ou o atraso no andamento das obras, não atingem o patrimônio de
afetação constituído, que neste caso não integrará a massa concursal nem poderá
sofrer qualquer outra espécie de constrição judicial decorrente de dívidas do
incorporador que não estejam de alguma forma ligadas à existência do
empreendimento.
Se acaso o incorporador falir, tornar-se insolvente ou, de forma injustificada,
paralisar a obra por mais de 30 dias ou atrasar excessivamente seu andamento, os
adquirentes, por deliberação de assembleia, podem afastá-lo da função de promotor
incorporação ao regime de afetação patrimonial levada a registro na matrícula imobiliária, mas sim a opção pelo
RET, exercida na forma da Lei 10.931/2004 e da IN 934/2004 da Receita Federal. Entendido o RET como
opcional, o incorporador deverá avaliar se ele lhe será favorável, ou seja, se diminuirá ou não a carga tributária,
uma vez que o benefício que desta opção advir será por ele apropriado. Com efeito, deixando de lançar o
recolhimento devido na forma do RET como passivo do patrimônio afetado para fazê-lo no regime tributário
geral da empresa, a economia gerada no âmbito da afetação patrimonial poderá ser apropriado pelo incorporador
depois de quitadas as demais obrigações da incorporação. A propósito do assunto, estudo de DANIEL VIEGAS
RIBAS Filho apontou que a adoção do RET só é vantajosa para o incorporador quando comparado com Regime
de Tributação por Lucro Real que seja superior a 12,206%. Em comparação com o Regime de Lucro Presumido,
segundo o estudo, o RET seria sempre mais desvantajoso (RIBAS FILHO, Daniel Viegas. Patrimônio de
afetação na atividade imobiliária: um estudo com construtoras e incorporadoras da grande São Paulo. 2006.
127f. Dissertação (Mestrado em Ciências Contábeis) - Centro Universitário Álvares Penteado – UniFecap, São
Paulo, 2006).
28
do empreendimento destituindo-o da condição de incorporador (art. 37-F, §§ 1º e 2º,
e art. 43, VII). Feito isso, os adquirentes deverão optar por concluir a obra sem sua
participação ou então liquidar o patrimônio de afetação. Em ambas as hipóteses, por
força de lei, transferem-se aos adquirentes, representados por uma “comissão de
representantes”, os poderes necessários para assinar quaisquer contratos
relacionados ao empreendimento para os quais até então seria imprescindível a
participação pessoal do incorporador.
Se decidem concluir a obra, os adquirentes hão de ratear entre si as dívidas
do patrimônio afetado e os custos necessários para o término da construção. Se
decidem liquidá-lo, quiçá porque essas dívidas e custos são insuportáveis, deverão
vender o terreno e acessões para, em seguida, igualmente, pagar as dívidas
vinculadas à incorporação.
A afetação patrimonial pode ser do tipo perfeita ou imperfeita. Na primeira
espécie, todos os créditos e débitos se encontram e se extinguem pelas forças (ou
por sua insuficiência) do patrimônio afetado, enquanto que na imperfeita as partes
podem procurar a satisfação de seus direitos em bens alheios à afetação29. Como
espécie de afetação imperfeita que é, além de representar uma “proteção
patrimonial” para os credores vinculados à incorporação, a atual redação da LCI não
afasta a responsabilidade civil do incorporador, que continua a responder por perdas
e danos com seu patrimônio geral, vale dizer, os credores vinculados à incorporação
têm seus direitos “garantidos” tanto pelos bens afetados quanto pelos bens não
afetados presentes e futuros do incorporador.
I.4 REGIMES DE EXECUÇÃO DA OBRA
O incorporador, recorde-se, é pessoa que, mesmo sem exercer domínio sobre
o terreno, engendra diversas relações jurídicas com o propósito de promover a
29
Conforme CHRISTOPH FABIAN, “Há de se distinguir entre duas formas de patrimônio separado: na
primeira forma, os credores privilegiados pela afetação podem recorrer apenas ao patrimônio separado. Na
segunda forma, eles também podem recorrer ao patrimônio geral do devedor. O primeiro caso é denominado de
separação patrimonial perfeita, enquanto o segundo caso, de separação patrimonial unilateral”. (FABIAN,
Christoph. Fidúcia: negócios fiduciários e relações externas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2007,
pp. 60-61).
29
incorporação, podendo, para tanto, obter uma procuração ou uma promessa de
venda de seu proprietário de modo a que possa oferecê-lo à venda em frações
ideais vinculadas a uma futura construção.
Também como já referido, incorporador e construtor não se confundem.
Enquanto a atividade de incorporação exige apenas a prática dos atos previstos nos
arts. 28 a 31 da LCI, a de construção demanda conhecimento técnico afeto à área
de engenharia civil regulada pela Lei 5.194/66. De todo modo, o próprio incorporador
pode atuar como construtor da obra. Mas quando não o faça, um terceiro há que
participar da incorporação na condição de prestador de serviços contratado pelo
incorporador ou pelos próprios adquirentes, conforme adiante será demonstrado.
Como promotor, o incorporador, então, põe em sinergia o direito de
propriedade que um terceiro ou que ele mesmo tem sobre o terreno, com o serviço
de construção que pode ser dele próprio, com os recursos dos adquirentes e,
eventualmente, com os recursos do agente financeiro que tenha concedido
empréstimo para o incorporador empregar na promoção do empreendimento.
Considerada a diversidade entre os negócios de incorporação e de
construção, a LCI regula em número de três as formas pelas quais o contrato de
incorporação se conjuga com a construção e com as vendas das unidades aos
adquirentes, a saber: (i) incorporação como negócio de compra e venda de coisa
futura, que pode ser por “preço global” e a “prazo e preço certos”; (ii) incorporação
com construção sob o “regime de empreitada”, que pode ser por “preço fixo” e “por
preço
reajustável”;
e
(iii)
incorporação
com
construção
sob
“regime
de
administração”. Considerados os reflexos da distinção, importa analisar cada uma
dessas forma de contratação.
I.4.1 Incorporação como Compra e Venda de Coisa Futura por “Preço Global” e a
“Prazo e Preço Certos”. Preço Fechado
Com correspondência no imaginário popular, a incorporação como negócio de
compra e venda de coisa futura é aquela em que o consumidor contrata o
pagamento de um preço e o incorporador se compromete a lhe entregar uma
unidade imobiliária construída. Também conhecida como incorporação “a preço
30
fechado”, é a forma mais comum e aceita no mercado de consumo, considerada a
previsibilidade acerca do valor que o consumidor pagará e também a atribuição dos
riscos da atividade exclusivamente ao incorporador; daí porque dela se dizer que
corra “integralmente por conta e risco do incorporador”.
Previstas nos arts. 41, 42 e 43 da LCI, a incorporação por preço global e a
incorporação a prazo e preço certos se distinguem entre si pela indicação, no
instrumento contratual relativo à primeira, do preço que consumidor pagará
separadamente pela fração ideal de terreno e pela construção. Na incorporação a
prazo e preço certo essas indicações não existem porque o preço é uno envolvendo
a fração e a construção. Ainda, no preço global, o instrumento contratual pode
indicar valores e prazos de pagamento diferentes para a fração de terreno e para a
construção, bem como a possibilidade (contratualmente incomum) de que o
inadimplemento do preço da fração não implique em rescisão da parte do contrato
relativa à construção, e vice-versa.
Nestas espécies de incorporação, o incorporador promete a venda de coisa
futura (art. 483 do CC/02), porém certa, composta pela fração ideal de terreno e pela
acessão representada na construção que ele assume concluir e averbar no registro
de imóveis (art. 44). Rigorosamente, neste regime, do ponto de vista do adquirente o
contrato funciona como um “compromisso preliminar de aquisição futura e, para o
incorporador, como promessa de construção e de venda”30.
A adoção do regime deve constar do memorial de incorporação registrado no
cartório de imóveis (art. 32, “h” e “j”), vinculando a que as unidades comercializadas
pelo incorporador atentem às regras próprias da espécie.
Nesta modalidade de incorporação, se não for proprietário do terreno, o
incorporador deverá ele figurar como procurador do real proprietário, seu promitente
vendedor ou promitente cessionário (arts. 31 e 32, “a”) da fração ideal de terreno e
da construção que àquela se vinculará.
É do incorporador a obrigação de vender, construir e entregar a obra no prazo
e na forma contratada e previamente visualizável por meio do memorial de
incorporação. Uma vez lançada a incorporação e ultrapassado o prazo de 360 dias
(art. 33 da LCI e art. 12 da Lei 4.864/65) contado da data do registro da incorporação
30
Cfr. CAMBLER, Everaldo Augusto. Responsabilidade civil na incorporação imobiliária. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1998, p. 87.
31
no cartório de imóvel dentro do qual o incorporador pode desistir da incorporação e,
de consequência dos contratos que tenha firmado para venda das unidades,
responderá civilmente caso não conclua a obra ou o faça para além do prazo
contratualmente previsto (art. 43, II). Para tais efeitos, diferentemente do que se dá
no regime de construção a preço de custo (adiante tratado), o incorporador é
responsável pelos recursos necessários à conclusão da obra de modo que, ainda
que não tenha obtido êxito na comercialização de unidades em número suficiente
para suportar a totalidade de seu custo no tempo pactuado com os consumidores,
haverá ele de encontrar meios para obter os recursos faltantes conforme obriga o
art. 35, § 6º.
Visando a manutenção do poder aquisitivo da moeda, os pagamentos
assumidos pelos adquirentes podem ser corrigidos monetariamente. No entanto, a
eles é indiferente se o custo total do empreendimento for maior ou menor do que a
projeção inicial do incorporador. Os riscos, como dito, são exclusivos do
incorporador.
O contrato firmado entre o incorporador e o consumidor segue os requisitos
gerais da Lei de Registros Públicos. Em caso de inadimplemento do consumidor
aplica-se o Decreto-Lei 745/69, devendo o incorporador notificar o adquirente para
que purgue sua mora no prazo de 15 dias sob pena de rescisão do contrato31. Ainda,
em que pese ser pouco usual, ao invés de rescindir o contrato o incorporador pode
preferir cobrar seu crédito de maneira judicial ou até mesmo extrajudicialmente pelo
rito previsto no art. 63 da LCI, levando à leilão os direitos do adquirente
inadimplente32. Para que o procedimento possa ser adotado pelo incorporador, basta
que o contrato firmado com o adquirente o preveja. Sobre esta questão
FRANCISCO ARNALDO SCHMIDT33 já observara:
Quanto às sanções pelo inadimplemento contratual do comprador por falta
de pagamento das parcelas do preço, só por exceção e mediante expressa
31
Com o advento do CDC, notadamente a previsão contida em seu artigo 53 dispondo a nulidade das cláusulas
que impliquem em perda total dos valores pagos pelo promitente comprador sem estabelecer o limite dessa
“perda”, a necessidade de acesso à via judicial torna-se imperiosa para compor o valor da devolução a que o
consumidor terá direito salvo, é claro, se as partes chegarem a um acordo.
32
Adiante o tema será novamente abordado, especialmente no que toca aos princípios constitucionais do
contraditório, ampla defesa, e devido processo legal.
33
SCHMIDT, Francisco Arnaldo. Incorporação imobiliária. 2ª Ed. Porto Alegre: Norton Editor, 2006, pp. 101104, negrito do autor.
32
previsão contratual, se aplicarão as regras do art. 63, isto é, aquelas que
estabelecem o leilão da unidade do inadimplente, após previa notificação.
Na construção por conta e risco do incorporador, via de regra a
inadimplência recebe o tratamento comum aos contratos de promessa de
compra e venda dos demais imóveis, iniciando pela constituição do
comprador faltoso em mora mediante notificação com prazo de 15 dias para
o pagamento, nos termos do dec.-lei 745/69. Não pago o débito no prazo da
notificação, está autorizada a rescisão do contrato relativamente à fração
ideal do terreno e à construção, esta no estágio em que se encontrar.
[...]
Pode causar estranheza a referência acima feita, à possibilidade de
rescisão do contrato e exclusão do adquirente faltoso pelo rito previsto no
art. 63 da lei 4.591, quando a incorporação é pelo regime de prazo e preço
certos, já que o aludido art. 63 incumbe à Comissão de Representantes a
tarefa de levar a leilão a unidade do inadimplente. Tal solução, em princípio
não usual nesse regime, tem, todavia, previsão legal, podendo ser levada a
efeito mesmo por uma Comissão de Representantes, cuja existência está
prevista no art. 50 para representar os contratantes junto ao incorporador no
caso do art. 43; ou ser executada pelo próprio incorporador, para tanto
equiparado à Comissão de Representantes pelo art. 1°, VII da lei 4.864/65,
após o atraso de, no mínimo, três meses do vencimento de qualquer
obrigação contrat7al ou de três prestações mensais, assegurado ao
devedor o direito de saldar o débito dentro do prazo de noventa dias, a
contar do vencimento da obrigação não cumprida ou da primeira prestação
não paga (art. 1°, VI).
Enquanto a rescisão da promessa ou cessão obriga o incorporador a restituir
parte dos valores pagos pelo consumidor (art. 53 do CDC), pelo rito da execução
extrajudicial isto nem sempre se dará e quando se der a devolução será fruto, na
verdade, de eventual lance que o arrematante dê em quantia superior à necessária
para quitar as obrigações do adquirente inadimplente, tal qual se passa nas
execuções por quantia certa contra devedor solvente previstas no CPC. Pelo
contrário, se o lance a tanto for insuficiente, o adquirente nada receberá. Assim, em
caso de adoção do procedimento previsto no art. 63, fica prejudicada a aplicação do
art. 53 do CDC, na medida em que a preferência pela execução do crédito à
rescisão do contrato implica diferentes efeitos para o consumidor.
Percebe-se, então, a significativa diferença, não só de instrumentos
disponíveis para tratar o inadimplemento do adquirente, mas também em termos de
celeridade e direitos reminescentes que ecoam da rescisão.
Ainda, nesta forma de incorporação, o incorporador é obrigado a fixar prazo
determinado para o cumprimento de sua obrigação (entrega da unidade imobiliária)
ou, quando pouco, vinculá-la a um evento determinável, claramente informado ao
consumidor, que não incida em abuso contratual que coloque o consumidor em
condição de desvantagem exagerada.
33
Cumprindo o princípio do dever de informação, todavia sem correspondência
na realidade, o inciso I do art. 43 exige que o incorporador, mesmo quando esteja
vendendo sob o regime de preço fechado, informe aos adquirentes, semestralmente,
acerca do estado da obra, mencionando, dentre outros, seu percentual de evolução,
perspectiva de data para conclusão ou qualquer outro acontecimento de interesse
dos adquirentes.
Apesar de ser extremamente incomum que ocorra nas incorporações por
preço fechado, os adquirentes podem se reunir para deliberar sobre assunto de
interesse coletivo, conforme preveem os arts. 43 e 49, manifestando suas decisões
por meio de um órgão de representatividade denominado “Comissão de
Representantes”, composto por pessoas eleitas dentre os adquirentes. No mesmo
sentido os incisos III, VI e VII do art. 43, prevendo decisões assembleares dos
adquirentes com o propósito de deliberar sobre a destituição do incorporador,
alteração do memorial descritivo do empreendimento, continuidade das obras ante a
paralisação ou retardamento injustificado da construção e extinção do patrimônio de
afetação.
I.4.2 Incorporação com Construção sob Regime de Empreitada
Enquanto no regime de preço fechado o incorporador vende a fração ideal e
ao mesmo tempo se compromete a concluir a obra por si ou por terceiro, no regime
de empreitada (arts. 55 a 57) os adquirentes firmam dois contratos: um para
aquisição da fração ideal de terreno junto ao incorporador e outro para execução da
obra, que pode ser firmado com um construtor ou com o próprio incorporador
quando este também fizer o papel de construtor (art. 48). Daí porque o art. 56 exigir
que toda publicidade destinada a promover a venda de incorporação com
construção pelo regime de empreitada indique separadamente o valor da fração de
terreno e o preço da construção: são contratos distintos. Os consumidores assumem
duas posições contratuais, como compradores da fração de terreno e como
tomadores de serviço de construção.
No ato de registro do memorial da incorporação, o incorporador deverá
anexar (art. 32, “i” e “j”) avaliação do custo total da incorporação e discriminação do
34
custo da construção de maneira individualizada para cada unidade, bem como a
minuta do contrato de construção, considerando que, como visto, no regime de
empreitada, construção e fração ideal de terreno são objeto de negócios distintos.
O contrato de construção poderá ter o próprio incorporador como construtor
ou um terceiro, sendo permitido que sua execução só se inicie 45 (quarenta e cinco)
dias depois de escoado o prazo dentro do qual é permitido que o incorporador
desista incorporação desde que tenha ele se reservado essa possibilidade (art. 35).
Apesar de os adquirentes serem tomadores de serviço, quem deve providenciar a
assinatura do contrato de construção é incorporador. Ou ele mesmo realiza a
construção ou então ele contrata em nome próprio um construtor para, no decorrer
da incorporação, transferir seu custo aos adquirentes de maneira vinculada às
frações de terreno que adquiriem. Deixando de providenciar o contrato de
construção, o incorporador responde por perdas e danos (art. 35).
Do contrato de construção deverá constar indicação do prazo de conclusão
da obra e condições para sua eventual prorrogação (art. 48, § 1º), a indicação dos
integrantes da “comissão de representantes” (art. 50, §§ 3º e 4º do art. 55 e art. 57)
eleitos dentre os adquirentes com o propósito de acompanhar a evolução do
empreendimento. Também deverá constar a quem caberá o pagamento dos custos
de ligação de serviço público devidos ao Estado ou a suas concessionárias, bem
como quaisquer outras despesas indispensáveis ao funcionamento do futuro
condomínio (art. 51).
Iniciado de fato a construção, os adquirentes das frações ideais passam então
a pagar ao construtor o preço da construção relativa à sua unidade, segundo o valor
indicado no memorial de incorporação e no próprio contrato firmado com o
incorporador. O custo da construção relativa às frações ideais que o incorporador
não vender deve ser pago por ele próprio (art. 35, § 6º). Só depois de estarem
vendidas é que a responsabilidade por seu custo passa ao respectivo adquirente.
Assim, quando o incorporador vende uma fração ideal antes de iniciar a obra, o
adquirente pagará o preço da construção integralmente ao construtor, à conta do
contato de construção. Pelo contrário, vendida a fração de terreno já próximo do
término da obra ou mesmo depois que ela esteja concluída, o incorporador venderá
a fração de terreno e cobrará um preço pela construção que por ela já pagou,
podendo, neste caso, as partes acertarem o valor livremente.
35
Ainda, oferecendo à venda as frações ideais de terreno para quem se
interesse em adquiri-las e necessariamente participar da contratação da construção,
o incorporador fica como responsável pela outorga da escritura relativa à venda das
frações de terreno. Ao incorporador também cabe o registro do memorial de
incorporação (art. 32) antes do início da obra e a averbação da construção da
edificação para efeito de individualização das unidades junto ao registro de imóveis
(art. 44).
O art. 610 do CC/02 prevê duas espécies de contrato de empreitada, de labor
e de labor e materiais, esta última também conhecida como “empreitada global”.
Pela primeira o contratante da obra fornece os materiais e o empreiteiro apenas
executa o serviço, enquanto que pela segunda o empreiteiro além de prestar o
serviço também se encarrega de fornecer os materiais. No entanto, o contrato de
empreitada nas incorporações imobiliárias é sempre do tipo global, vale dizer, o
preço contratado envolve tanto o serviço quanto o fornecimento dos materiais.
Na realidade, o regime de empreitada é mais vocacionado para atender obras
de pequeno vulto, com poucas unidades, em que parte dos adquirentes já se
conhecem e unem esforços de maneira prévia ao início da incorporação, decidindo
concluir edifício em conjunto mediante contratação de um empreiteiro e alienação de
umas poucas unidades remanescentes. Não é adequado para o incorporador
profissional que promova empreendimentos compostos de dezenas de unidades
oferecidas no mercado de consumo. Se essa forma de incorporação era comum em
meados do século passado, se ela se presta para fomentar a atividade de
incorporação, menos certo não é, todavia, que nos dias de hoje ela encontra rejeição
do mercado e se presta como nascedouro de frustração para os consumidores.
As incorporações com construção sob regime de empreitada não são muito
conhecidas e são pouco aceitas no mercado em razão de expor os consumidores a
maiores riscos e deles exigir participação ativa no dia a dia da construção na
condição de contratantes de sua execução. Com efeito, uma vez alienada a fração
de terreno, em princípio o inadimplemento de um adquirente torna-se problema
também para os demais adquirentes, na medida em que o incorporador pode, em
princípio, deixar de se responsabilizar pela construção relativa à fração alienada. O
inadimplemento do adquirente então terá que ser solucionado nos termos do
contrato de construção, abrindo-se aí um leque de opções, podendo exemplificar-se:
(i) o construtor continua construindo no mesmo ritmo e se encarrega de cobrar o
36
adquirente inadimplente; (ii) a construção é paralisada ou prorrogada; e (iii)
eventualmente tal inadimplemento é suprido pelo incorporador que chama para si o
direito de cobrar o inadimplente.
No regime de empreitada é comum que se fira o princípio da informação e
proteção dos adquirentes, revelando sua hipossuficiência técnica, na medida em
que, além da questão relativa ao inadimplente, deles se exige ativa fiscalização do
andamento da obra por meio da Comissão de Representantes.
O regime de empreitada amaina as responsabilidades do incorporador, em
especial quando este não figurar como construtor, já que ele transfere aos
adquirentes a responsabilidade de dirigir a construção e travar relação com o
empreiteiro34.
A decisão sobre qual regime de construção se adotará é do incorporador, que
para tanto deve manifestá-la no ato de registro do memorial (art. 32, “e”, “h”). Neste
ato é que constará a função que ele pretende se atribuir, se de incorporador puro ou
também de construtor. Do ponto de vista dos adquirentes, entretanto, o interesse
real, a causa do negócio, será sempre a aquisição de coisa certa e futura. Se isto se
dará mediante formalização de um contrato de compra e venda de fração de terreno
seguido de um contrato de prestação de serviços de empreitada, para o consumidor
trata-se de mera questão de forma. Neste sentido já observaram J. NASCIMENTO
FRANCO e NIESKE GONDO35 que:
Na verdade, é o incorporador quem escolhe o terreno, procura o construtor,
minuta o contrato e estabelece os preços e as condições, sobrando aos
condôminos apenas a posição de meros aderentes à incorporação. Assim,
embora a construção se de faça sob o regime de empreitada ou de
administração e não obstante se comprometam a adquirir a fração ideal do
terreno do próprio incorporador [...] os interessados têm, na realidade, é a
intenção de adquirir um apartamento.
A empreitada para execução da obra pode ser contratado a preço fixo ou a
preço reajustável por índices monetários previstos no instrumento do negócio. A
34
Essas dificuldades impedem que as incorporações com construção sob regime de empreitada e especialmente
aquelas por preço de custo, adiante referidas, surjam de maneira natural do mercado sendo, isto sim, fruto de
manobra de incorporadores que colhem pessoas desavisadas como bem relata HÉRCULES AGHIARIAN.
(AGHIARIAN,
Hércules.
Patrimônio
de
afetação.
Disponível
em
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6408>. Acessado em 20.05.2009).
35
FRANCO, J. Nascimento et GONDO, Nieske. Incorporações imobiliárias. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 1984, p. 133, itálicos dos autores.
37
variabilidade dos custos reais do empreiteiro não entra em cogitação, ou seja, ainda
que haja elevação, esta não se refletirá nos valores contratados com os adquirentes,
que só sofrem a correção pelo índice monetário. Por outro lado, quando pactuado
preço fixo, nem a correção monetária do contrato de empreitada será permitida36.
Comentando o § 1º do art. 55, na parte em que alude à impossibilidade de
reajustamento do valor da empreita “independentemente das variações que sofrer o
custo efetivo das obras e qualquer que sejam suas causas”, FRANCISCO
ARNALDO SCHMIDT37 com razão observa serem “infrutíferas as alegações
baseadas na teoria da imprevisão ou da onerosidade excessiva para reajustar o
preço contratado fixo, mesmo em economias que padecem de inflação crônica, ou
até exatamente por isso, eis que aumentos aí são previsíveis”.
Inaplicável também a previsão de alteração no preço da empreitada global
quando houver variação de um décimo no custo da mão-de-obra ou dos insumos,
contida no art. 620 do CC38, considerada a natureza de lei especial de que se
reveste o regime de empreitada atinente à atividade de incorporação imobiliária.
Com efeito, o contrato de empreitada pode ou não ser pactuado no bojo de uma
incorporação mas quando for o caso, a única forma de reajuste cabível é o
monetário porque previsto na LCI. Para a possibilidade de variação do custo dos
insumos a LCI reservou outra espécie de incorporação, qual seja, a que se
desenvolve sob regime de administração.
Igualmente sem aplicação nas incorporações é o art. 623 do CC39. Referindose à interrupção do contrato de empreitada, o dispositivo autoriza que o dono da
36
A previsão para que os contratos de empreitada sejam por preço fixo ou preço reajustável não diz respeito à
variação do custo, mas sim à correção monetária do preço da empreitada previsto no contrato. Conforme anota
Humberto Theodoro Júnior, “a variação se houver não será de composição do custo, mas de correção, segundo
índices contratualmente previstos” (THEODORO JÚNIOR. Humberto. Incorporação imobiliária: atualidade do
regime jurídico instituído pela Lei n° 4.591/1964. Revista Forense, n° 100, v. 376. Rio de Janeiro: Editora
Forense, nov-dez de 2004). Na realidade, apenas se fala em reajuste do preço devido pelos adquirentes em
função de alteração do custo real das obras quando adotado o regime de construção “por administração ou preço
de custo”, adiante referido.
37
SCHMIDT, Francisco Arnaldo. Incorporação Imobiliária. 2ª Ed. Porto Alegre: Norton Editor, 2006, p. 105.
38
“Art. 620. Se ocorrer diminuição no preço do material ou da mão-de-obra superior a um décimo do preço
global convencionado, poderá este ser revisto, a pedido do dono da obra, para que se lhe assegure a diferença
apurada”.
39
“Art. 623. Mesmo após iniciada a construção, pode o dono da obra suspendê-la, desde que pague ao
empreiteiro as despesas e lucros relativos aos serviços já feitos, mais indenização razoável, calculada em
função do que ele teria ganho, se concluída a obra”.
38
obra, que no caso das incorporações sob regime de empreitada é o adquirente,
“suspenda-a” mediante pagamento da indenização devida. Ocorre, todavia, que na
incorporação com construção sob o regime de empreitada, em que cada adquirente
paga o valor da construção separadamente, na proporção que a cada um cabe
segundo o contrato que firmaram, é absolutamente inviável, porque incindível, a
paralisação dos serviços correspondentes a uma ou outra unidade, na medida em
que a obra envolve partes comuns e partes exclusivas inseparáveis.
Ao empreiteiro inadimplente, dispõe o art. 67 da LCI, aplicam-se os incisos II,
III, IV e VI do art. 43, no que couber. Vale dizer, por óbvio, que o empreiteiro deve
indenizar os adquirentes em caso de atraso ou paralisação injustificado da
construção (inciso II); que ele não pode alterar o projeto da construção sem
autorização unânime dos adquirentes ou de autorização legal específica (inciso IV).
Para além destas óbvias hipóteses, que com outras palavras já se encontram
previstas no art. 55, maior dúvida se têm quanto à forma de se aplicar os incisos III e
VI do art. 43 ao construtor que, falindo, atrasando ou paralisando a obra, não seja ao
mesmo tempo o incorporador do empreendimento40, vale dizer, o meio de que os
adquirentes podem se falar para rescindir o contrato de construção com ele firmado.
A interpretação correta está na atribuição de faculdade permitindo que os
adquirentes, por decisão de assembleia seguida de notificação, substituam o
construtor em caso de sua falência ou insolvência, paralisação por mais de 30 ou
retardamento excessivo e injustificado da obra, da mesma forma que podem
proceder diante do incorporador inadimplente.
Não se cogita, para que tal decisão seja tomada, se os adquirentes também
devam decidir se continuam ou não a conclusão da obra como haveria se exigir em
uma incorporação a preço fechado, já que, no regime de empreitada, as frações
ideais não pertencem ao construtor, mas sim aos adquirentes, de modo que
impossível será sua arrecadação para a massa falida. Assim, caso não decidam
concluir a obra com um novo construtor, restará aos adquirentes liquidar a
40
Sobre a possibilidade de rescindir o contrato de empreitada mantendo-se, todavia, o mesmo incorporador, já
observou MELHIM NAMEM CHALHUB: “A contratação da construção está, obviamente, vinculada à
contratação da aquisição da fração ideal do terreno, mas é possível a resolução do contrato de construção,
destacadamente, nas hipóteses previstas em lei, mantendo-se o contrato de compra e venda ou de promessa de
compra e venda da fração ideal do terreno, possibilitando aos adquirentes prosseguirem a realização da obra”.
(CHALHUB, Melhim Namem. Da incorporação imobiliária. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar, 2003,
p. 191).
39
incorporação mediante extinção do condomínio existente sobre o terreno e
acessões.
Por outro lado, em sendo o empreiteiro o próprio incorporador, os adquirentes
poderão, por um ato só, afastá-lo da condição de construtor e incorporador, caso em
que haverão de notificá-lo pela forma prevista no inciso VI do art. 43.
I.4.3 Incorporação com Construção sob Regime de Administração ou de Preço de
Custo
Sobre o regime de administração (arts. 58 a 62), também conhecido por
“regime de preço de custo”, pode-se dizer ser o mais complexo e que menos
inversão de capital traz para o construtor e para o incorporador, além de desonerálos dos riscos próprios dos regimes de preço fechado e de empreitada.
Análise da função que o incorporador assume nos regimes de preço fechado,
empreitada e preço de custo indicam, nesta ordem, a diminuição de suas
responsabilidades mediante correspectiva transferência aos adquirentes, deixando à
mostra sua natureza de prospector de negócios e aglutinador de interesses,
traduzidas nas observações de CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA41 para quem o
incorporador pode fazer as vezes de um construtor, um corretor, um mandatário, um
financiador, um gestor de negócios, “um pouco de tudo”.
O regime de administração, assim chamado em razão de os adquirentes
administrarem eles próprios a obra, é tão pouco usual quanto o regime de
empreitada porque inadequado para o mercado de consumo em razão da incerteza
quanto aos valores com que se comprometem os adquirentes, acentuado risco e
elevado grau de participação que assumem na condução da obra, aspectos estes
estranhos aos propósitos de quem deseja simplesmente pagar por um imóvel e
recebê-lo pronto e acabado. Sua aplicabilidade, e com mais razão que o regime de
empreitada, adapta-se melhor a obras de pequeno vulto, com poucas unidades, em
41
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. 10ª ed., Rio de Janeiro: Editora Forense,
2000, pp. 231-233.
40
que parte dos adquirentes já se conhecem e unem esforços de maneira prévia
decidindo concluir um edifício em conjunto mediante contratação de um construtor.
Descreve CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA42 que nesse regime o
incorporador “oferece a unidade e a estimativa de seu custo, o qual variará na
medida das oscilações do mercado, obrigando-se o adquirente a cobrir os gastos na
medida em que se fizerem, mediante a atualização periódica das prestações”.
NÉLSON LUIZ GUEDES FERREITA PINTO43 observa que
a vantagem desse regime reside na exata correspondência entre o preço
pago e o custo real de construção e a desvantagem consiste na exposição
dos adquirentes às elevações de preços de mão-de-obra materiais que, às
vezes, ocorrem bruscamente. Vantagens e desvantagens são, como se vê,
inversamente proporcionais nos regimes de “preço fechado” e preço de
custo.
Assim como no regime de empreitada, o incorporador pode ser o próprio
construtor, caso em que a prestação de serviços será firmada entre ele e o
adquirente. Do contrário, o contrato de construção deve ser firmado entre o
construtor e o incorporador no prazo de 45 (quarenta e cinco) dias contados do
término do prazo dentro do qual o incorporador pode desistir da incorporação caso
tenha ele se reservado esse direito. Assinado o contrato de construção, o
incorporador segue pagando as obrigações mensais das frações ideais ainda não
comercializadas conforme exige o § 6º do art. 35, transferindo aos adquirentes os
direitos e obrigações atinentes a cada uma delas na medida em que as vai
vendendo (§ 3º do art. 59), ou seja, quando o adquirente compra a fração de terreno,
paga ao incorporador um determinado valor pelo qual se sub-roga nos direitos e
deveres do contrato de construção na medida da fração ideal adquirida e do saldo
devedor que ela tem frente ao contrato de construção.
O incorporador, quando também não seja ele próprio o construtor, continua a
ter participação ativa na condição de alienante das frações ideais ainda não
comercializadas, de modo a trazer para a construção mais adquirentes que, uma vez
aderindo, hão de contribuir para com os custos da obra diminuindo assim o limite
42
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, v. I. 21ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Forense,
2005, p. 306.
43
PINTO, Nélson Luiz Guedes Ferreira. Contrato de incorporação imobiliária. In THEODORO JÚNIOR,
Humberto (Org.). O contrato imobiliário e a legislação tutelar do consumo. Rio de Janeiro: Editora Forense,
2002, p. 299.
41
das obrigações dos adquirentes que já estiverem participando. Além disso, enquanto
não comercializa todas as frações, deverá continuar a honrar os valores de
construção a elas atinente.
As vendas e anúncios realizados pelo incorporador devem discriminar (art.
62) o regime de construção adotado (por administração), o valor da fração ideal de
terreno e o valor estimado do custo da construção atualizado com indicação do mês
a que se refere dita atualização.
O custo da obra, diferentemente da empreitada, não é estabelecido,
recebendo apenas uma estimativa (art. 59, §§ 1º a 3º; art. 54, § 3º) por cuja
inexatidão os adquirentes respondem, salvo se decorrer de má-fé do incorporador
ou do construtor. Esta estimativa é revista semestralmente (art. 59) de comum
acordo entre a Comissão de Representantes e o construtor (daí a importância da
Comissão), podendo implicar maior ou menor custo da obra dependendo do tempo
de execução que demandar, da remuneração do construtor e da variação do custo
dos materiais. A cada nova alteração do custo alteram-se os valores que cada
adquirente deve pagar de modo a que a obra seja concluída no tempo esperado (art.
60).
No regime de administração, de forma indispensável, os adquirentes devem
formar a Comissão de Representantes composta por no mínimo três eleitos dentre
os compradores, antes de iniciar a obra (art. 59), de modo a que acompanhem o
evoluir da incorporação (arts. 50, 60, 61 e 63) exercendo os atos de fiscalização
previstos no art. 61 e, o mais importante, a alteração dos valores que os adquirentes
deverão pagar; tendo em especial consideração que neste regime construtivo o
custo da obra é meramente estimado e sua variação é tributada à conta integral dos
adquirentes44.
44
FRANCISCO ARNALDO SCHMIDT assim expõe a dinâmica da metamorfose por que passa a incorporação
em regime de preço de custo desde seu lançamento até o momento em que se encontram alienadas todas as
frações ideais de terreno: “Levando em consideração a gama de poderes e atribuições que a lei confere à
Assembléia Geral e à Comissão de Representantes, distinguimos nitidamente, mas incorporações em que a
construção se desenvolve pelo regime de administração, duas fases: na primeira, enquanto ainda não reunido o
grupo de condôminos custeadores das unidades, o incorporador é o centro de onde emanam as decisões e as
providências. Ele é o dono do terreno ou se liga ao dono mediante um compromisso; escolhe o arquiteto, aprova
o projeto, manda elaborar o memorial descritivo e o orçamento, registra a incorporação, escolhe corretores,
promove a publicidade, efetua as vendas. Exitoso o empreendimento pela reunião de interessados nas unidades
futuras, porém, começa a segunda fase, caracterizada por uma transferência do poder decisório sobre as
questões que envolvem a construção, à comunidade dos condôminos, que as deliberam em Assembléia e as
executam através de sua Comissão de Representantes, passando o incorporador e o construtor a uma posição
quase de mandatários dos contratantes, pois sua atuação passa a depender das decisões destes em questões
cruciais como aprovação de orçamentos e cronogramas físico-financeiros, fixação de valores de custeio e de
42
A obra é dos adquirentes, que para todos os efeitos constituem um
“condomínio construtivo” em cujo pólo contrário se encontra o construtor, devendo
todas as faturas, duplicatas, recibos, contas-correntes bancárias, depósitos, etc.,
serem emitidos e efetuados em seu nome (art. 58).
Se o adquirente se torna inadimplente, além de a posse de sua unidade ficar
retida com o condomínio construtivo (art. 52), contra ele pode ser adotado o rito de
execução extrajudicial previsto no art. 63 ou outra medida de natureza judicial com o
propósito de compeli-lo a pagar o valor devido.
Uma vez firmado o contrato, diferentemente do que se dá no regime de preço
fechado, o adquirente não pode mais desistir do negócio e receber devolução do
que pagou pela fração ideal de terreno pela construção na forma preconizada pelo
art. 53 do CDC. Isto se dá porque a obra é do adquirente, não do incorporador e
nem do construtor. Este é mero prestador de serviços e aquele apenas vendedor da
fração de terreno. O contrato de construção pelo regime de administração não
envolve fornecimento de materiais. O construtor tem sua obrigação adstrita ao
fornecimento de mão-de-obra e direção técnica da construção.
I.5 COMISSÃO DE REPRESENTANTES
A demonstrar que o contrato de incorporação imobiliária envolve múltiplos
objetivos e que, do ponto de vista dos consumidores, congrega-os em torno de
interesses coletivos da espécie individuais homogêneos decorrentes de origem
comum, qual seja, a relação que para com o empreendimento, a LCI adiantou-se ao
estágio atual em que se encontra o direito pátrio prevendo, ainda na década de
1960, a possibilidade de os consumidores se fazerem representar frente a seu
fornecedor, incorporador ou construtor, por meio de um órgão de representatividade
coletiva denominado “Comissão de Representantes”, composto por membros
escolhidos dentre os próprios consumidores.
prazos de conclusão. Lembre-se, em abono da tese, que na construção a preço de custo, a vantagem pecuniária
do incorporador e do construtor é representada por honorários, ou taxas de administração e construção que
recebem em pagamento da organização, administração e responsabilidade técnica da obra, ausente a idéia de
lucro”. (SCHMIDT, Francisco Arnaldo. Incorporação imobiliária. 2ª Ed. Porto Alegre: Norton Editor, 2006,
pp. 114-115).
43
Neste sentido, o art. 50 da LCI prevê a possibilidade de se criar a Comissão
por meio de eleição em assembleia geral dos adquirentes ou por designação de
seus membros no contrato de construção (estes existentes apenas nos regimes de
empreitada e de administração). Sua função, segundo o mesmo dispositivo, é
representar os adquirentes em qualquer regime de incorporação (prazo e preço
certos, por administração ou empreitada) “em tudo o que interessar ao bom
andamento da incorporação”.
A Comissão se constitui formalmente levando-se a ata da assembleia ou o
contrato de construção a registro em “cartório de títulos e documentos”, caso em que
fica investida dos “poderes necessários para exercer todas as atribuições e praticar
todos os atos que esta Lei [LCI] e o contrato de construção lhe deferirem, sem
necessidade de instrumento especial outorgado pelos contratantes”45.
A Comissão recebe poder de representação diretamente da lei, sem
necessidade de manifestação de vontade individualizada e sem instrumento de
mandato, inclusive no que tange à legitimidade processual (§ 5º do art. 63). Trata-se
de universalidade de direito que, na condição de representante, vincula os demais
adquirentes pelos atos que praticar nos limites da lei46.
De forma um pouco mais específica, a LCI prevê caber à Comissão, nas
incorporações com regime de construção por empreitada, a tarefa de fiscalizar o
andamento da obra, a obediência a seu projeto e o reajuste monetário quando
previsto (art. 55). Assim, no regime de empreitada, considerada a possibilidade de
variação do preço ser una para todos os adquirentes nos contratos com correção,
aliada aos pagamentos vinculados à evolução da obra, torna-se indispensável a
constituição da Comissão de Representantes.
45
Em um acórdão do STJ, talvez o único que tenha tratado da natureza jurídica da Comissão de Representantes,
relatado pelo Min. RUY ROSADO DE AGUIAR, REsp 255.593-SP, afirmou-se: “Ressalta a circunstância
anotada no r. acórdão dos embargos declaratórios, de lavra do Des. Rodrigues de Carvalho: a comissão atua
ex lege, daí a impropriedade da referência ao art. 18 do C Civil, pois é desnecessária a criação de pessoa
jurídica e a sua formalização por atos cartorários. Trata-se de situação especial decorrente, de um lado, da
frustração do plano da incorporadora e, de outro, da exigência de prosseguir-se na obra para a defesa do
interesse dos condôminos, para a qual a lei muito acertadamente – traça normas específicas e trata de
dispensar formalidades e burocracias. Disse bem a r. Sentença da Dra Berenice Cesar: “a comissão de
condôminos é uma realidade jurídica que tem fundamento na ‘teoria da realidade’ , segundo esta é ‘um
agrupamento de pessoas físicas para alcançar um fim excedente da esfera dos interesses individuais torna-se um
organismo social dotado, como o homem, de um poder próprio para agir e, por isso, se categoriza como sujeito
de direitos”.
46
Cfr. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, v. I. 21ª Ed. Rio de Janeiro: Editora
Forense, 2005, p. 313.
44
No regime de administração então a importância da Comissão é absoluta
porque o construtor nada mais é senão puro prestador de serviços, que não fica
encarregado sequer de fornecer os insumos para a construção. Todos os materiais
são adquiridos pela Comissão que por isto mesmo se têm dito, com ressalvas para
especificidade do caso concreto, ser responsável por sua qualidade frente ao
incorporador e ao construtor. Ainda, os adquirentes é quem suporta toda e qualquer
variação de custo. Porque não convém transcrever, remete-se aos arts. 58 e 61 da
LCI, que discriminam os poderes da Comissão no regime de administração.
Em que pese possa se constituir a qualquer momento e em qualquer espécie
de incorporação, é fato que, nas incorporações com regime de “prazo e preço
certos”, em que incorporador promete a venda de coisa futura representada pela
fração ideal de terreno e acessões assumindo construir a obra e entregá-la em data
certa por preço previamente contratado, não se veem a constituição de Comissões
de Representantes durante o curso da obra. Isto se dá justamente porque, no
regime de “prazo e preço certo”, os adquirentes contratam individualmente com um
incorporador que assume integralmente os riscos do empreendimento, arcando com
variações de preço de insumos, comercialização insuficiente das unidades e
inadimplemento dos compradores. Nesse regime, então, em princípio aos
consumidores é irrelevante o inadimplemento de um ou outro adquirente. Creem que
o incorporador cumpra o contrato, vale dizer, construa e lhes entregue as unidades
individualizadas no registro de imóveis com a qualidade prometida.
Por outro lado, é fato que, caso o incorporador venha a falir, cair em
insolvência, paralisar ou retardar a obra, os adquirentes terão que formar a
Comissão de Representantes para tentar concluir o empreendimento sem a
participação do incorporador, conforme faculta o art. 43, III e VI, da LCI.
Se
adotada
a
afetação
patrimonial
os
poderes
da
Comissão
de
Representantes são ampliados para que também possa fiscalizar a contabilidade de
da obra (art. 31-C, 31-D, IV e V), em qualquer regime de incorporação (o que no
sistema original da LCI só era permitido no regime de administração – art. 61 e art.
65, § 1º, II, da LCI). Ainda, a Comissão, em caso de falência ou destituição do
incorporador, também ganha poderes legais para outorgar a propriedade das
frações aos adquirentes e também, com o propósito de concluírem o término da obra
(art. 31-F, §§ 1º, 3º, 4º, 5º), alienar as unidades que o incorporador não tenha
comercializado. Ainda, em caso de os adquirentes decidirem pela liquidação do
45
patrimônio de afetação ao invés da conclusão, a Comissão poderá alienar (art. 31-F,
§§ 7º, 8º, 9º, 14º) o terreno e suas acessões como um todo para, em seguida, quitar
os credores do patrimônio afetado (art. 31-F, § 18).
Por fim, dispõe o art. 63 da LCI que a Comissão de Representantes pode
cobrar os adquirentes inadimplentes e até mesmo levar a leilão público suas
respectivas frações ideais de terreno e acessões. Assim, verificado que um
determinado contratante de unidade não está pagando, de modo a evitar que os
demais sejam onerados com sua inadimplência, a LCI permite que Comissão faça a
cobrança e, se for o caso, realize leilão extrajudicial da fração e acessões. A
prerrogativa, no entanto, não pode ser exercida pela Comissão nas incorporações
por prazo e preço certos porque neste regime a responsabilidade pela construção é
do incorporador, sendo indiferente aos adquirentes que um ou outro dentre eles se
torne inadimplente na relação com o incorporador já que neste regime ele assume
todos os riscos.
46
II
A INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA E O CÓDIGO DE DEFESA DO
CONSUMIDOR
II.1 O MERCADO DE CONSUMO
A noção de cidadania como hoje é concebida tem sua origem na Revolução
Inglesa do século XVII e nas Revoluções Francesa e Americana do século XVIII47.
Sinteticamente traduzida pelas expressões “direito a ter direitos” e “direito ao
exercício efetivo dos direitos”, a cidadania evolui desde então, ampliando a gama de
direitos postos à disposição do cidadão. Neste sentido têm-se classificado suas
conquistas em direitos de 1ª geração, como sendo aqueles alcançados nos séculos
XVIII e XIX, relacionados à obtenção de direitos individuas e políticos; direitos de 2ª
geração, estes no século XX, também conhecidos como direitos sociais; e, por fim,
os direitos de 3ª geração, que se inicia no século XX e segue em desenvolvimento
nos dias atuais, concernentes notadamente ao reconhecimento de direitos
exercitáveis de maneira coletiva.
A par desse crescente de direitos e seus correspectivos deveres que de
tempos em tempos são agregados ao cidadão, o Estado se modifica, assumindo
novas funções de modo a se adaptar à dinâmica da sociedade48. É perceptível o
surgimento do Estado Liberal como forma de fortalecimento da liberdade individual e
47
É comum falar em cidadão romano ou greco agregando-se um certo conceito de cidadania. Ocorre, todavia,
que a cidadania como ora é tratada não se identifica com a da antiguidade clássica, em que pese a co-existência
de alguns conceitos como, por exemplo, o de democracia. Sobre essa observação, NORBERTO LUIZ
GUARINELLO escreve: “A cidadania nos Estados-nacionais contemporâneos é um fenômeno único na
História. Não podemos falar de continuidade do mundo antigo, de repetição de uma experiência passada e nem
mesmo de um desenvolvimento progressivo que unisse o mundo contemporâneo ao antigo. São mundos
diferentes, com sociedades diferentes, nas quais pertencimento, participação e direito têm sentidos diversos”.
(GUARINELLO, Luiz Norberto. Cidades-estados na antiguidade clássica. In PINSKY, Jaime et PINSKY, Carla
Bassanezi (orgs.). 3ª ed. História da cidadania. São Paulo: Contexto, 2005, p. 29).
48
Em descrição dessa evolução MARCO MONDAINE põe em sucessão “Em primeiro lugar, o Estado liberal,
aquele mal necessário que deve garantir a liberdade civil dos indivíduos, sua cidadania passiva, não
interferindo na sua vida privada. Em segundo lugar, o Estado democrático, aquele instrumento realizador da
igualdade política entre os indivíduos, sua cidadania ativa, incentivando a participação de todos no jogo
político. Em terceiro lugar, o Estado de bem-estar social, aquele responsável pela efetivação da igualdade,
social entre os indivíduos, sua jus-cidadania, administrando e distribuindo os recursos materiais de maneira a
abreviar as distâncias econômicas entre os mesmos". (MONDAIME, Marco. O respeito aos direitos individuais.
In PINSKY, Jaime et PINSKY, Carla Bassanezi (orgs.). 3ª ed. História da cidadania. São Paulo: Contexto,
2005, p. 132).
47
da participação política do cidadão frente ao Estado até então autoritário (1ª
geração), seguido do Estado Democrático de Direito e do Estado de Bem-Estar
Social (2ª e 3ª gerações), estes como instrumento de implementação da igualdade
material, distribuição de justiça social e efetiva e coletivização dos direitos.
Em meio a essa crescente modificação dos direitos individuais e criação de
novos direitos coletivos e sociais, é que se desenvolve a sociedade de consumo,
estimulando o surgimento dessa modificação, mas, ao mesmo tempo, sofrendo seus
efeitos em uma luta incessante entre criador e criatura pela busca de um equilíbrio.
Consolidada no século XX, a sociedade de consumo caracteriza-se por uma
crescente oferta de produtos e serviços, feita de maneira massificada, por meio do
marketing associado à oferta de crédito para aquisição de bens em escala industrial.
Um dos principais motores do consumo é a informação produzida por meio de
“marketing científico”49. Dentre os argumentos de que ele se utiliza está a ideia de
que a aquisição de produtos e serviços é sinônimo de felicidade e que pode ser
alcançada por todo habitante do globo terrestre. Daí porque parte da informação que
hoje corre o planeta já não é aquela produzida localmente, de uma comunidade para
a outra, mas sim aquela produzida de forma massificada com o propósito de
transmitir uma dada mensagem que interesse a quem domina a técnica de informar
globalmente e pode, por esse meio, criar um padrão de consumidor global para seus
produtos e serviços. Em meio à promessa de realização pessoal, o consumo
49
Para realizar sua tarefa, o marketing se vale das ciências como, por exemplo, a análise físico-química do
cérebro, pesquisas quantitativas e qualitativas, estudos comportamentais, psicologia, antropologia e uma série de
recursos postos a serviço do mercado pela ciência, sua fiel coadjuvante desde o nascimento de liberalismo.
De posse de informações acerca do público e do produto a ser vendido, a teoria da comunicação entra em
campo. Dentre os processos de comunicação, o chamado “modelo positivo”, embasado no sistema de
comunicação telefônica, é dentre todos o mais utilizado. Compõe-se ele dos seguintes elementos: a fonte da
mensagem, o codificador, a mensagem, o canal, o decodificador e o receptor (Cfr. ROCHA, Everardo. A
sociedade do sonho. 3ª ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1995, p.p. 49-51). Assim, o vendedor (a fonte) anuncia seu
produto e as qualidades e benefícios que ele traz (a mensagem) por meio de um determinado meio de
comunicação (canal) que mais facilmente chegue ao público alvo (o receptor), dotando essa mensagem de um
estímulo (código) que será lido e aceito (decodificado) pelos receptores. Tão mais exitoso será o processo
comunicativo quanto maior for a quantidade de estímulo respondido (consumo praticado). Por isso a importância
de bem selecionar o receptor, escolher um canal que faça a mensagem chegar até ele e ainda criar um código que
possa ser traduzido e assimilado pelo destinatário.
Assim se dá, com vênia para a simplicidade do exemplo, no marketing para venda de artigos esportivos.
Seleciona-se o público receptor como sendo os praticantes de atividades físicas, agregando ao produto a ideia de
que sua utilização possibilita que se “vá mais longe”, transmitindo assim a ideia de vigor físico agregado ao
produto a possibilitar que o receptor, praticante de atividade física, imagine-se rompendo limites físicos. É seu
“eu” refletido no objeto de consumo.
É comum verificar a propaganda comercial dando conta de que o consumo de determinado produto trará status
social, garantia de felicidade, sucesso pessoal e profissional, realização sexual ou signo de cultura e inteligência
para quem o consome. Tratam-se todos esses exemplos de códigos dirigidos a um público específico que os
aceita e responde consumindo.
48
também ganha status de indício de desenvolvimento social, cultural e científico das
nações. Mais até que indício, é correto dizer que o consumo passou à condição de
índice mensurável por critérios científicos da ciência tradicional. Quanto maior o
consumo, mais desenvolvida é a nação e maior o nível de cidadania efetiva.
Constata-se que a massificação da cultura ocidental vem se prestando à
maximização do mercado, fazendo da cultura não só um produto, mas também um
modo de ceifar a capacidade de crítica, alienando jovens para completa entrega às
“necessidades” que o mercado oferece às massas consumidoras. Com isso, o
desejo pelo consumo não brota de maneira espontânea ou como fruto de
necessidade vivencial: ele é criado e estimulado com ajuda da ciência. Conforme
também já afirmou JAMES MARINS50 o “[...] fator de demanda, quando não gerado
espontaneamente, pode ser fruto da publicidade destinada a criar desejos artificiais,
levando o consumidor a render-se a apelos que o encaminham a arcar com um
consumo desnecessário, isto é, com patológica inversão de prioridades [...]”. De fácil
percepção os apelos sensoriais do marketing, que germina o desejo de consumo
com promessas de êxito profissional, satisfação sexual, felicidade, sublimação
existencial, etc. Com esse intuito a medicina, por exemplo, tem sido utilizada de
maneira antiética, considerados os estudos sobre o comportamento do cérebro
humano quando submetido à propaganda comercial como meio de estimular o
consumo (marketing científico). Sobre o assunto, relata MARIE BÉNILDE51 a
constatação de que a região do cérebro denominado “córtex pré-frontal médio”,
reage de maneira mais significativa quando exposta a produtos e propagandas com
nos quais o consumidor tenderia a identificar algum ponto de reflexo de sua própria
personalidade, possibilitando assim a utilização do marketing cientificamente mais
adequado para colher o público-alvo.
O estímulo ao consumo acompanha o cidadão desde quando ele nasce. O
bombardeio de mensagens subliminares, promessas de satisfação e tudo quanto
mais se possam fazer crer advir positivamente do ato de consumir, são um fato já
integrado na vida do cidadão, um elemento natural do meio social de cujos efeitos
50
MARINS, James. Responsabilidade da empresa pelo fato do produto. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 1993, p. 23.
51
BÉNILDE, Marie. Neurociências à serviço do mercado. In Le monde diplomatique Brasil. São Paulo:
Instituto Polis, Ano 1, número 4, novembro de 2007.
49
dificilmente se escapa. Trata-se, como bem menciona ZYGMUNT BAUMAN52, de
uma espécie eficaz de “educação continuada”:
A educação de um consumidor não é uma ação solitária ou uma realização
definitiva. Começa cedo, mas dura o resto da vida. O desenvolvimento das
habilidades de consumidor talvez seja o único exemplo bem-sucedido da tal
“educação continuada” que teóricos da educação e aqueles que a utilizam na prática
defendem atualmente. As instituições responsáveis pela “educação vitalícia do
consumidor” são incontáveis e ubíquas – a começar pelo fluxo diário de comerciais
na TV, nos jornais, cartazes e outdoors, passando pelas pilhas de lustrosas revistas
“temáticas” que competem para divulgar os estilos de vida das celebridades que
lançam tendências, os grandes mestres das artes consumistas, até chegar aos
vociferantes especialistas/conselheiros que oferecem as mais modernas receitas,
respaldadas por meticulosas pesquisas e testadas em laboratório, com o propósito de
identificar e resolver os “problemas da vida”.
Nos dias de hoje, ser cidadão é ser consumidor. Indagações indiretas sobre o
tema obtêm respostas que em maior ou menor grau apontam para certa dose de
consumo como condição para o exercício efetivo de cidadania. Além das
necessidades básicas para uma vida digna, diz-se que o homem é cidadão quando
se encontra inserido no modelo de consumo via “inclusão social”. Incluir-se
socialmente é, também, poder consumir em igualdade com os demais cidadãos.
Em que pese haja clara atuação no âmbito do mercado de consumo, o papel
do Estado e também da sociedade civil, com raras exceções, tem se pautado em
reivindicações qualitativas e quantitativas atinentes aos produtos e serviços
consumidos, perseguindo a atribuição de ganhos contratuais, econômicos, aos
consumidores ou cidadãos contratantes, como que uma engrenagem natural do
capitalismo com o distingue de “reivindicação (contratual) da coletividade”53. Assim,
no estágio atual de desenvolvimento de nossa sociedade, não se vê luta contra o
52
BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
p. 73.
53
Neste sentido, examinando as forças de que resultou a edição CDC, afirma RONALDO PORTO MACEDO
JR.: “Os movimentos em defesa do consumidor, ou consumerismo latu sensu, representaram uma forma de
contrabalançar o poder entre produtores e consumidores. O advento e generalização do uso dos contratos
padrão implicou no aumento da vulnerabilidade do consumidor nas relações contratuais de consumo. O
crescimento do consumerismo e dos grupos de defesa do consumidor configurou-se inicialmente como uma
forma de restabelecer o equilíbrio entre fornecedor e consumidor. Num primeiro momento, o movimento
consumerista foi identificado como exemplo de grupo de interesses organizado em defesa de interesses
eminentemente privados, ainda que organizados coletivamente.
[...]
Mesmo que o movimento do consumidor não tenha tido grande importância para formulação da legislação de
proteção do consumidor, é certo que ele foi em grande medida uma resposta às demandas da classe média em
relação a certas práticas contratuais de consumo. O caso brasileiro não parece contrariar essa afirmação.
(MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Contratos relacionais e defesa do consumidor. São Paulo: Max
Limonad, 1998, pp. 272 e 276-277).
50
consumismo desenfreado e inútil, mas sim uma busca por mais e mais consumo,
consumo com melhor qualidade e preço intrínsecos aos produtos e serviços
acessíveis a um número maior de cidadãos, como meio imaginado de inclusão
social.
Não obstante essas colocações, não é errado associar consumo à cidadania.
Isto porque é pelo consumo que o cidadão se sente (e de fato é) incluído
socialmente, fortalecendo o elo social e suprindo algumas necessidades básicas que
o Estado não consegue satisfazer. Mas é fato que a sociedade de consumo, sem
que lhe seja dada atenção necessária, desenvolve-se de maneira desequilibrada
considerada a desigualdade entre partes contratantes, o poder econômico, técnico e
científico e a informação assimétrica à disposição do fornecedor e do consumidor.
O poder dos agentes econômicos aliado ao marketing e ao mercado de
massas, distanciou as partes contratantes de modo a tornar a relação entre elas fria
e impessoal, criando um vazio na relação que contribuiu para formação da
vulnerabilidade do consumidor, sempre submetido às práticas comerciais e à
aquisição de produtos e serviços de escala industrial de cuja criação e
funcionamento sabe muito pouco. De modo a equilibrar essa relação, considerada a
incapacidade e a tendência do mercado em aumentar as discrepâncias, fez-se
necessária
uma
modificação
nas
relações
contratuais
de
consumo
que,
particularmente no Brasil, deu-se inicialmente por via da intervenção estatal, com a
edição do CDC previsto na CF/88 (art. 5º, XXXII), inspirada em princípios atinentes
aos “direitos e garantias individuais” e à “ordem econômica”.
A questão do consumo foi elevada à condição de tema constitucional
considerada a realidade moderna que imbrica dignidade humana, consumo,
cidadania, melhoria da qualidade de vida e desenvolvimento, a exigir atuação estatal
no sentido de promover equilíbrio jurídico e econômico nas relações como forma de
alcançar os objetivos da república (art. 3º da CF/88), de construir uma sociedade
livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a
marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais, promover o bem de
todos sem preconceitos e discriminação. Daí porque se possa afirmar que a defesa
do consumidor, assumida no plano constitucional, traduz-se, no dizer de EROS
ROBERTO GRAU54, num
54
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988. 12ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2007, p. 252.
51
princípio constitucional impositivo (CANOTILHO), a cumprir sua função,
como instrumento para realização do fim de assegurar a todos existência
digna e objetivo particular a ser alcançado. No último sentido, assume a
função de diretriz (DWORKIN) – norma-objetivo – dotada de caráter
constitucional conformador, justificando a reivindicação pela realização de
política pública.
Por compromisso constitucional, para além de consolidar regras jurídicas, o
CDC fixa diretrizes gerais de uma “política nacional de relações de consumo” (art. 4º
do CDC) voltada ao respeito das necessidades dos consumidores, sua dignidade,
saúde e segurança, proteção de seus interesses econômicos, melhoria de sua
qualidade de vida, bem como práticas de boa-fé e efetiva transparência nas relações
de consumo. Para tanto, partindo da presunção absoluta de vulnerabilidade do
consumidor (art. 4º, I), o CDC estabelece uma série de princípios atinentes à
complexidade intra-obrigacional da relação jurídica, compostas por deveres
principais e acessórios.
O primeiro deles, um dever de proteção estatal plasmado no CDC pelo
“princípio da ação governamental” (art. 4º, II, IV, V, VI, VII; e art. 5º), a considerar a
defesa do consumidor como direito e garantia individual exercitável contra o
fornecedor e também contra o próprio Estado, implicando para este último duas
ordens de comportamento: a primeira delas, como agente regulador da atividade
econômica, a exigir do Estado atuação repressiva por meio exercício do poder de
polícia estatal sobre os fornecedores e também uma atuação preventiva, educando
e informando consumidores e fornecedores acerca de seus direitos e obrigações; a
segunda, dizendo respeito ao próprio comportamento do Estado como parte
fornecedora nas relações de consumo, quando dele se exige uma atuação no
sentido de promover a “racionalização e melhoria dos serviços públicos” tal qual
prevê o art. 4º, VIII, do CDC em complemento ao parágrafo único do art. 175 da
CF/88.
Segue o CDC estabelecendo o “princípio da garantia de adequação” dos
produtos e serviços (art. 4º, II, “d”) de modo a que atendam a padrões mínimos de
qualidade, segurança, durabilidade e desempenho, daí se desdobrando o “princípio
da proteção” a garantir a integridade dos bens e da pessoa do consumidor e
também de terceiros estranhos à relação básica de consumo.
52
Do mesmo modo e imbricados entre si, os “princípios da boa-fé” e “da
informação” (art. 4º, III, IV e VI), a exigir das partes lealdade e transparência nas
tratativas, na execução e mesmo depois de encerrado o contrato, franqueando
mutuamente o conhecimento pleno das condições do negócio, do produto e do
serviço adquirido; princípios esses que atualmente também se encontram
consagrados em todas as demais relações contratuais por força do art. 422 do
CC/2002 e dos ventos do “direito contratual pós-moderno”.
E por fim, o “princípio do acesso à justiça” que, apesar de não estar previsto
expressamente no CDC, brota como ressonância de vários dispositivos dispersos
tendentes a conferir efetividade aos direitos dos consumidores quando carecerem de
socorrer-se do judiciário para vê-los cumpridos. São exemplos desse princípio: a
possibilidade de inversão do ônus da prova (art. 6º, VII e VIII); a assistência jurídica
integral e gratuita ao consumidor carente (art. 5º,I); a extensão da proteção do
habeas data acerca de informações sobre a pessoa do consumidor (art. 43, § 4º); a
aplicação das normas processuais do Título III à tutela de outros direitos e
interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos (art. 117); e a ampliação do
campo de atuação da Ação Civil Pública (Lei 7.347/85) por meio de aplicação do
CDC (arts. 109 a 117).
Nesse ambiente de proteção à parte contratual vulnerável constitucionalmente
inspirado para a realização dos objetivos da república é que a incorporação
imobiliária deve ser vista respeitando, todavia, aquilo que nela há de particular e
necessário para a preservação da atividade, da função social, dos interesses do
incorporador e, em última análise, do próprio consumidor.
II.2 A RELAÇÃO DE CONSUMO
A aplicabilidade do CDC carece da presença de uma “relação jurídica de
consumo” cuja existência é verificada pelo preenchimento de requisitos legalmente
previstos55. Descrevendo o juízo de subsunção do fato à hipótese de incidência,
55
BONATTO, Cláudio et MORAES, Paulo Valério Dal Pai. Questões controvertidas no Código de Defesa do
Consumidor. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1998, p. 63.
53
CLAUDIO BONATTO e PAULO VALÉRIO DAL PAI MORAES assim se referem à
caracterização da relação de consumo:
Sintetizando estes ensinamentos, o suporte fático consumerista constitui-se
de relação do mundo fático, na qual, de um lado está a figura do
consumidor – destinatário final – e de outro um fornecedor de produto ou
serviço, os quais, diante da existência de contrato de compra e venda, de
prestação de serviço ou, simplesmente, diante da ocorrência de algum dano
psíquico ou físico causado pelo bem-de-vida (lato sensu), geram a imediata
incidência da norma protetiva, completando-se, assim, o processo de
jurisdicização daquele suporte fático.
Dentre as espécies de relação de consumo existentes, a chamada “relação
básica de consumo” é apurada segundo a presença dos requisitos previstos no
caput do art. 2º e no caput e §§ do art. 3º do CDC56, notadamente pela participação
direta de um consumidor destinatário final do produto ou do serviço. Além desta, o
CDC também prevê outras três espécies de relação de consumo, menos frequentes,
às quais se pode referir como sendo “relações extensivas” ou “por equiparação”. A
segunda delas, prevista no parágrafo único do art. 2º, equipara à posição de
consumidor “a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja
intervindo nas relações de consumo”. Nesta espécie de relação, o consumidor é
encarado segundo a presença de interesses ou direitos difusos, tutelados
coletivamente na forma do art. 81, II, do CDC, assim entendidos os interesses ou
direitos “transindividuais, de natureza indivisível, de que seja titular grupo, categoria
ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação
jurídica base”. Assim, consideram-se protegidos pelo CDC na forma de conjunto,
grupo, classe ou categoria, os consumidores que sofram os efeitos do fato ou vício
do bem consumido, estando a merecer defesa coletiva ao invés de individualizada
para cada componente do grupo, classe ou categoria.
56
“Art. 2º. Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produtos ou serviço como
destinatário final.
Parágrafo único. [...].
Art. 3º. Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada nacional ou estrangeira, bem como os
entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção,
transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
§ 1º. Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.
§ 2º. Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de
natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter
trabalhista”.
54
A terceira espécie de relação de consumo vem prevista no art. 17 do CDC,
que estende o conceito de consumidor a “todas as vítimas do evento”. No caso, a
relação de consumo se constitui em decorrência de um acidente de consumo
legalmente designado pelo Código como “fato do produto e do serviço” (Seção II do
Capítulo IV do CDC). Os danos causados por produto ou serviço postos no mercado
de consumo com frequência atingem terceiros, designados na doutrina americana,
fonte inspiradora do CDC neste ponto, como bystanders, vale dizer, pessoas que
não fizeram parte da relação básica de consumo prevista nos arts. 2º e 3º, mas
ainda assim sofreram os efeitos do acidente de consumo.
A quarta e última espécie de relação se forma segundo prevê o art. 29, com
viés repressivo, em decorrência de mera “exposição às práticas” comerciais ilegais
assim previstas nos “Capítulo V e VI” do CDC. Por essa fórmula, as práticas
comerciais tendentes à formação e execução de relações básicas de consumo
(oferta, apresentação, publicidade e cobrança de dívida), sofrem a incidência do
CDC e podem ser coibidas em favor de potenciais consumidores, como forma de
prevenção voltada à formação de relações de consumo que atentem para os
princípios do Código, ou seja, é “indiferente estejam essas pessoas identificadas
individualmente ou, ao revés, façam parte de uma coletividade indeterminada
composta só de pessoas físicas ou só de pessoas jurídicas, ou, até, de pessoas
jurídicas e de pessoas físicas [...]”57 .
Ainda, para que se cogite de aplicar o CDC à determinada relação, segundo o
disposto nos art. 2º e 3º (relação de consumo básica), deve-se indagar também
acerca de aquisição de um produto ou de um serviço por alguém que dele pretenda
fazer uso como destinatário final da cadeia de produção ou de prestação de serviço
em que ele (o produto ou serviço) esteja inserido. Ato contínuo, indaga-se da
presença de um fornecedor que desenvolva atividade econômica de venda do
produto ou de prestação dos serviços adquiridos.
Em torno do conceito de “consumidor padrão ou consumidor destinatário final”
(relação de consumo básica) gira grande controvérsia, consistente em fixar o
conteúdo da expressão contida no art. 2º, segundo a qual se considera consumidor
57
BENJAMIN, Antônio Hermann de Vasconcellos e. In GRINOVER, Ada Pellegrini (et al.). Código brasileiro
de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998,
p. 211.
55
quem adquire produto ou serviço na condição de “destinatário final”58. Sobre a
questão a doutrina se divide em duas tendências: a dos “finalistas” e a dos
“maximalistas”. Adepto da teoria finalista, atualmente majoritária e em consonância
com o caráter de lei especial que deve ser atribuído ao CDC, JOSÉ GERALDO
BRITO FILOMENO59 afirma que o conceito de consumidor previsto no Código é
exclusivamente de caráter econômico, ou seja, leva-se em consideração tãosomente o personagem que no mercado de consumo adquire bens ou então
contrata a prestação de serviços como destinatário final, pressupondo-se que assim
age com vistas ao atendimento de uma necessidade própria e não para o
desenvolvimento de uma outra atividade.
Assim, para os finalistas, reveste-se da qualidade de consumidor apenas
quem adquire o bem ou serviço com o propósito de utilizá-lo em proveito próprio,
retirando-o do mercado de consumo para satisfação de uma necessidade pessoal,
sem propósito de revenda ou inclusão em nova cadeia de consumo. Já para os
adeptos da corrente maximalista, segundo explica JAMES MARINS60, não se pode
equiparar “uso final com uso privado, pois que tal equiparação não está autorizada
na lei e não cabe ao intérprete restringir aonde a norma não o faz, e, ademais, é
inegável que nem todo uso final é privado e que freqüentemente faz-se uso final não
privado de determinado bem ou serviço”. Também explicando o ponto de vista da
corrente maximalista, CLÁUDIA LIMA MARQUES61 escreve que:
O CDC seria um Código geral sobre o consumo, um Código para a
sociedade de consumo, o qual institui normas e princípios para todos os
agentes do mercado, os quais podem assumir os papéis ora de
58
Identificando os pólos das quatro espécies de relação de consumo acima referida, ANTÔNIO CARLOS
EFING classifica as possíveis espécies de “consumidor” previstas no CDC em consumidor destinatário final,
consumidor intermediário exposto às práticas abusivas, consumidor que não seja destinatário final, consumidor
pessoa física, consumidor pessoa jurídica, consumidor padrão, coletividade consumidora, consumidor ente
despersonalizado, consumidor vítima de acidente de consumo e consumidor exposto às práticas comerciais.
(EFING, Antônio Carlos. Fundamentos do direito das relações de consumo. 2ª Ed.. Curitiba: Juruá, 2004, pp.
48-66).
59
FILOMENO, José Geraldo Brito. In GRINOVER, Ada Pellegrini (et al.). Código brasileiro de defesa do
consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998, p. 25, itálicos
do autor.
60
MARINS, James. Responsabilidade da empresa pelo fato do produto. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 1993, p. 66.
61
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor: o novo regime das relações
contratuais. 5ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, pp. 304-305.
56
fornecedores, ora de consumidores. A definição do art. 2º deve ser
interpretada o mais extensivamente possível, segundo esta corrente, para
que as normas do CDC possam ser aplicadas a um número cada vez maior
de relações de mercado. Consideram que a definição do art. 2º é puramente
objetiva, não importando se a pessoa física ou jurídica tem ou não fim de
lucro quando adquire um produto ou utiliza um serviço. Destinatário final
seria o destinatário fático do produto, aquele que o retira do mercado e o
utiliza, o consome; por exemplo, a fábrica de celulose que compra carros
para o transporte dos visitantes, o advogado que compra uma máquina de
escrever para o seu escritório, ou mesmo o Estado quando adquire canetas
para uso nas repartições e, é claro, dona-de-casa que adquire produtos
alimentícios para a família.
Além do consumidor num pólo da relação, n’outro será necessária a presença
de um fornecedor, assim considerado quem pratique atividade econômica com
profissionalismo e habitualidade62 tendentes a oferecer, no mercado de consumo,
produto, serviço ou ambos de modo conjugado. Profissionalismo e habitualidade, no
entanto, são as duas faces da mesma moeda, já que não se concebe alguém que
seja “profissional” sem exercer sua atividade de forma “habitual”.
Em geral a doutrina classifica63 os fornecedores de produtos em (arts. 12 e 13
do CDC): (a) fornecedor real - aquele que fabrica, produz ou constrói; (b) fornecedor
aparente64 - aquele que tem direito de nome, marca ou signo aposto no produto; (c)
fornecedor presumido - aquele que importa produto ou comercializa produto sem
designação do fornecedor real. Particularmente ANTÔNIO CARLOS EFING65 agrega
uma quarta espécie, os “fornecedores entes despersonalizados”, os quais diferem
“das outras formas de grupos organizados com objetivo comum fundamentalmente
em virtude da ausência formal de elemento essencial que se possa considerar
pessoa jurídica: a affectio societatis, ou seja, a intenção expressa de manter vínculo
associativo”.
Segundo dispõe o § 1º do art. 3º do CDC, entende-se por produto qualquer
bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial. Indo além, entende-se por produto, nas
62
Logo, não se revestiria da condição de fornecedor quem venda produto ou preste serviço de maneira
esporádica, sem fazer disso sua profissão, seu sustento, ainda que se trate de uma sociedade empresária.
63
Neste sentido, DENARI, Zelmo. In GRINOVER, Ada Pellegrini (et al.). Código brasileiro de defesa do
consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998, p. 145; e
MARINS, James. Responsabilidade da empresa pelo fato do produto. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 1993, p. 98.
64
JAMES MARTINS justifica a responsabilidade do fornecedor aparente por substituição ao fornecedor real
segundo a “teoria da aparência”. (MARINS, James. Responsabilidade da empresa pelo fato do produto. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993, pp. 100-101).
65
EFING, Antônio Carlos. Fundamentos do direito das relações de consumo. 2ª Ed.. Curitiba: Juruá, 2004,
pp. 73-76.
57
relações de consumo, aquele bem de vida fruto de intervenção humana praticada
com intuito mercantil, quer seja seu resultado fisicamente perceptível, meramente
abstrato (v. g., a criação de um software), ou de mera apresentação (v. g., produtos
naturais colhidos e vendidos in natura sem modificação de substância). Produto,
então, nas relações de consumo, é um bem que se qualifica pela presença de um
fornecedor. O conceito de produto é mais restrito que o conceito de bem de forma a
se adequar ao objeto das relações de consumo, haja vista que nem todo bem pode
ser objeto de apropriação econômica.
Já o conceito legal de serviços alude a “qualquer atividade fornecida no
mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária,
financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter
trabalhista” e, em certos casos, até mesmo as atividades prestadas verdadeiramente
de forma gratuita (§ 2º do art. 3º e parágrafo único do art. 39)66.
A remuneração paga pelos serviços deve ser entendida não apenas como o
pagamento realizado diretamente pelo serviço prestado, mas também os serviços
ofertados “gratuitamente” em conjunto com outros serviços ou produtos adquiridos
(v. g., aquisição de um jogo de pneus com instalação gratuita) já que, nestes casos o
que de fato há é uma remuneração indireta disfarçada no produto ou serviço que foi
“remunerado”. Logo, serviços de voluntariado não implicam incidência do Código, já
que não se trata de oferta posta à disposição no mercado de consumo pela qual não
seja devida remuneração.
II.2.1 Responsabilidade objetiva
O fornecimento de produtos e serviços pode gerar responsabilidade civil em
razão de descumprimento de obrigações de natureza contratual (responsabilidade
civil contratual) ou de violação de direitos previstos em lei (responsabilidade civil
extracontratual ou aquiliana).
66
Por previsão expressa e também porque se trata de uma lei geral em relação a CLT, o CDC não se aplica às
relações de trabalho. Ainda, por extrapolar o propósito do presente texto, não serão abordados os serviços
securitários, de natureza bancária financeira ou de crédito.
58
O CDC divide a responsabilidade dos fornecedores em “responsabilidade pelo
fato do produto e do serviço” (Seção II do Capítulo IV), também referida pela
doutrina como “acidente de consumo”; e “responsabilidade por vício do produto e do
serviço” (Seção III do Capítulo IV). No entanto, conforme anotam ZELMO DENARI e
JAMES MARINS67, quando comparados entre si, sem consideração aos reflexos de
ordem material que causam, vício e defeito se equivalem. A distinção entre um e
outro surge, na realidade, quando se indaga acerca da espécie de prejuízo causado
ao consumidor ou a terceiros estranhos à relação básica de consumo (“vítimas do
evento” – art. 17 do CDC).
Enquanto o “vício” previsto no CDC é aquele que torna o produto ou serviço
contratado impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou diminuam
seu valor, o acidente de consumo prescinde de uma relação contratual prévia embora em geral ocorra no curso dela - e extrapola os limites econômicos do
produto ou serviço causando um prejuízo que afeta tanto o produto ou serviço em si,
como também outros bens integrantes do patrimônio do consumidor ou das vitimas
do evento68. Esta diferença é assim explicada por ZELMO DENARI69:
[...] não se pode deixar de considerar que os vícios de adequação, previstos
nos arts. 18 e segs. do Código de Defesa do Consumidor, suscitam uma
desvantagem econômica para o consumidor, mas a perda patrimonial não
ultrapassa os limites valorativos do produto ou serviço defeituoso, na exata
medida de sua inservibilidade ou imprestabilidade. Costuma-se dizer que,
nesta hipótese, a responsabilidade está in re ipsa.
De outra parte, os defeitos de insegurança, previstos nos arts. 12 e sgts. do
Código de Defesa do Consumidor, suscitam responsabilidade de muito maior
muito, pois nos acidentes de consumo os danos materiais ultrapassam, em
muito, os limites valorativos do produto ou serviço.
O acidente de consumo pode derivar de defeitos propriamente ditos, fruto de
ato comissivo do fornecedor, ou de informações insuficientes ou inadequadas acerca
da utilização e dos riscos inerentes ao produto ou serviço.
67
DENARI, Zelmo. In GRINOVER, Ada Pellegrini (et al.). Código brasileiro de defesa do consumidor:
comentado pelos autores do anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998, pp. 139/141. MARINS,
James. Responsabilidade da empresa pelo fato do produto. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993, p.
141.
68
Cfr. BONATTO, Cláudio et MORAES, Paulo Valério Dal Pai. Questões controvertidas no Código de
Defesa do Consumidor. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1998, p 114.
69
DENARI, Zelmo. In GRINOVER, Ada Pellegrini (et al.). Código brasileiro de defesa do consumidor:
comentado pelos autores do anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998, pp. 140-141.
59
No art. 12 do CDC, encontra-se a disciplina da responsabilidade civil por
acidentes de consumo oriundos de defeitos de projeto, fabricação, construção,
montagem,
fórmulas,
manipulação,
apresentação,
informação
ou
seu
acondicionamento. Já no art. 14, o CDC trata dos acidentes quando decorrentes de
defeitos relativos a serviços, informações insuficientes ou inadequadas sobre sua
fruição e risco.
O CDC adota a responsabilidade civil objetiva em detrimento da teoria da
culpa subjetiva70. Para tanto, o Código não partiu de uma única teoria dentre as
várias já formuladas como, por exemplo, “a teoria do risco da atividade” a incidir
sobre o fabricante que coloca no mercado um produto defeituoso, ou as “teorias da
culpa anônima” e “do risco integral”. Isto porque, em primeiro lugar, considerada a
diversidade de fornecedores que podem ser responsabilizados solidariamente, não
haveria uma única teoria que abarcasse ao mesmo tempo a posição jurídica do
fabricante, do produto, do construtor, do importador, do comerciante, enfim;
mormente se considerado que, no sistema do CDC, a culpa é considera em grande
parte como resultado de um dever lateral e de garantia sobre a coisa, uma culpa que
não se basta em um ato culposo subjetivo ou objeto personificado na pessoa de um
único fornecedor, mas segue o produto ou serviço agregando-se a ele e se
desvinculando de seu agente causador direto.
A responsabilidade objetiva do CDC é espécie que veio ao direito pátrio como
novidade, fruto da combinação de mais de uma teoria, como a do risco da atividade
e a da culpa anônima, combinadas com a responsabilidade post pactum finitum71
70
JAMES MARINS assim justifica a adoção da responsabilidade objetiva na sociedade de consumo,
demonstrando a adequação da culpa subjetiva a situações das quais se possa dizer de aplicabilidade típica do
direito civil com exclusão da relação de consumo:“Com inúmeras dificuldades inerentes ao sistema de
responsabilidade civil baseado na culpa, freqüentemente encontravam-se situações carecedoras de tutela
jurídica que não logravam ultrapassar as barreiras do sistema, a exigir grande esforço probatório por parte do
lesado, ou ainda situações comuns aonde o tênue laço de culpabilidade jamais poderia ser captado em
condições normais. Em verdade, o sistema de responsabilidade extracontratual com base na culpa, não
encontraria problemas para funcionar em uma sociedade fundada em atividades agrícolas e no comércio de
menor complexidade, ao passo que nosso tempo se caracteriza pelo florescimento de atividades coletivas, em
que muitas vezes não resulta possível individualizar o autor do dano; pelo permanente emprego de coisas que
geram riscos, pela realização de atividades que guardam em si mesmas uma sensível potencialidade danosa
para terceiros”.(MARINS, James. Responsabilidade da empresa pelo fato do produto. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 1993, p. 91).
71
Assim, a tradição do produto ou a prestação do serviço não bastaria para que as obrigações das partes se
considerassem como cumpridas. Efeitos contratuais persistiriam mesmo depois, vinculando e obrigando as partes
em razão da boa-fé contratual. Sobre a responsabilidade post pactum finitum como manifestação de deveres
acessórios de lealdade, informação e proteção, vide CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes.
Estudos de Direito Civil. Vol. 1. Coimbra: Almedina, 1991, pp. 143-197.
60
criando uma nova espécie. Segundo CLÁUDIA LIMA MARQUES72, a boa-fé inerente
à obrigação de garantir a qualidade do que se vende aliada ao domínio da técnica
por parte do consumidor e a correspectiva vulnerabilidade do consumidor, levaram à
teoria adotada no CDC, que ela designa de “teoria da qualidade”:
Da aceitação de uma teoria da qualidade nasceria, no sistema do CDC, um
dever anexo para o fornecedor (uma verdadeira garantia implícita de
segurança razoável, como no sistema anterior norte-americano). Este dever
seria “anexo” ao produto, isto é, concentrado no bem e não só “anexo” ao
contrato. Por conseguinte, seria um dever legal de todos os fornecedores
que ajudam a introduzir (atividade de risco) o produto no mercado.
Daí porque o CDC considera objetiva a responsabilidade (arts. 12 e 14) pela
reparação dos prejuízos sofridos pelo consumidor e por terceiros, “vítimas do
evento” (consumidores por extensão – art. 17) nas relações de consumo. Assim,
salvo quando o fornecedor de serviços for profissional liberal (art. 14), a investigação
acerca da culpa subjetiva torna-se desnecessária. O dever de indenizar surgirá pela
constatação de que (i) houve um defeito; (ii) um dano; e (iii) um nexo de causa e
efeito que indique uma relação entre o dano e o defeito73. Nos §§ dos arts. 12 e 14
encontram-se enumeradas algumas causas de exclusão de responsabilidade, bem
como referência sobre a qualificação do que não se possa considerar defeito do
produto ou serviço. Em que pese não esteja previsto no CDC, o caso fortuito ou de
força maior eximem a responsabilidade objetiva do fornecedor, salvo quando
ocorram em momento anterior à colação do produto ou serviço no mercado de
consumo. Com efeito, enquanto o produto ou serviço não está posto no mercado de
consumo o fornecedor responde por sua guarda e corre os riscos do caso fortuito e
de força maior. Logo, é irrelevante que, antes desse momento, o produto ou serviço
tenha sofrido alguma alteração porque até então não há nem que se falar em
relação jurídica de consumo. Por outro lado, se o caso fortuito e de força maior não
fossem admitidos como excludente quando o produto ou serviço já se encontram
inserido no mercado de consumo, a teoria da responsabilidade objetiva adotada pelo
72
MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V; et MIRAGEM, Bruno. Comentários ao
Código de Defesa do Consumidor. 2ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 259, itálicos da
autora.
73
Deve-se atentar para o fato de que a responsabilidade objetiva não transfere toda espécie de ônus probatório ao
agente causador, no caso o fornecedor. Enquanto a este caberá a demonstrar a ocorrência de uma das excludentes
de responsabilidade previstas no CDC e tantas outras que queira invocar em abono de sua defesa, ao consumidor
ainda caberá a demonstração de ocorrência do dano, do defeito ou vício e do nexo de causalidade.
61
CDC seria a “do risco integral”
74
, o que parece não ser o caso já que o próprio
Código prevê algumas causas excludentes75. Demais disso, o caso fortuito e de
força maior quando presentes, na realidade, quebram a relação de causa e efeito
necessária à configuração da responsabilidade objetiva de modo, a não ser que por
ela o fornecedor tenha se responsabilizado expressamente, sua força liberatória
encontra receptividade no CDC.
Os vícios do produto ou serviço, por sua vez, são tratados pelo CDC nos arts.
18 e 20, aludindo àqueles relativos à qualidade ou quantidade que diminuam o uso a
que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como vícios que decorram de
disparidade entre o bem de consumo adquirido e as qualidades e conteúdos
anunciados. Nos §§ dos arts. 18, 19 e 20 e no caput dos arts. 21, 22, 23 e 24,
encontram-se os direitos que o consumidor pode exercer quando constatado o vício,
uma qualificação exemplificativa do que sejam produtos impróprios, qualidades
mínimas dos serviços públicos e uma garantia legal de qualidade implícita.
II.2.2 Solidariedade na Cadeia de Produção e de Prestação de Serviços
De modo a afastar alegação infindável de culpa de terceiro na cadeia de
produção do bem ou serviço (acionado, o fabricante alegaria culpa do montador,
este do fornecedor da peça e assim sucessivamente), o CDC prevê a
responsabilidade solidária de todos os fornecedores direitos e indiretos76 integrantes
da cadeia de produção e de prestação de serviço, de modo a que o consumidor
possa acionar um, alguns ou todos aqueles que dela tenham participado.
Abrem-se, exceções, todavia, ao acidente de consumo que envolva o
profissional liberal prestador de serviços ou o comerciante. No caso do profissional
liberal, a responsabilidade é apurada de maneira subjetiva (art. 14, § 4º) e por isto
74
Cfr. VEDANA, Alexandre Torres. In EFING, Antônio Carlos (Coord.). Direito do consumo. V. 1, Curitiba:
Juruá Editora, 2001, p. 147.
75
Cfr. ALMEIDA, João Batista. A proteção jurídica do consumidor. 3ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2002, pp. 8889.
76
Fornecedor indireto é aquele que participa de alguma forma da criação do produto, mas não faz sua venda final
ao consumidor, transferindo essa função a um comerciante que então será o fornecedor direto.
62
mesmo afasta a solidariedade. A responsabilidade do comerciante, por sua vez, é do
tipo subsidiária segundo as condições estabelecidas no art. 13 do CDC, vale dizer,
apenas nas hipóteses ali previstas o comerciante pode ser responsabilizado.
Segundo CLÁUDIA LIMA MARQUES77 “a técnica de imputação de deveres
aos fornecedores no CDC” é realizada levando em consideração a referência que o
Código faça à “fornecedor” como gênero ou a determinadas espécies de
fornecedores:
- quando utiliza a expressão “fornecedor”, é para a imputação de deveres
solidariamente, ex vi art. 7º, parágrafo único, para toda a cadeia de
fornecedores – ex.: arts. 8º, 10, 14, 18, 19, 20, 25, § 1º, 34, 35, 36,
parágrafo único, 39, 40, 101;
- quando utiliza outras expressões (como fabricante, produtor, construtor,
importador, comerciante, representante autônomo, prepostos, órgãos
públicos, concessionários e permissionários de serviços públicos,
patrocinador da publicidade, profissionais liberais), trata-se de imputação de
deveres especiais a estes fornecedores de serviços e produtos ou para
imputação de solidariedade só entre fornecedores nominados – v. art. 8º,
parágrafo único, 12, 13, 22, 25, § 2º, 32, 33, 34.
Destarte, atentando-se para essa “técnica de imputação”, quando o CDC se
refere a fornecedores de produtos, a solidariedade se faz presente em toda a cadeia
de produção. Pelo contrário, quando, por exemplo, qualifica um fornecedor em razão
de sua atividade (v. g., construtor ou fabricante), tal qual ocorre no art. 12, a
solidariedade se restringe aos fornecedores que o dispositivo nominar.
Assim, conclui-se que a discriminação dos fornecedores referidos no art. 12 é
taxativa, indicando as espécies de fornecedores que respondem objetiva e
solidariamente pelo acidente de consumo: (1) fornecedor real (aquele que fabrica,
produz ou constrói); (2) fornecedor aparente (aquele que apenas apõe nome ou
marca no produto); (3) fornecedor presumido (aquele que importa o produto).
Em se tratando de vício de produto ou serviço a responsabilidade dos
fornecedores é igualmente apurada de forma solidária e objetiva (arts. 7º, parágrafo
único, 18, 20 e 25, § 2º) abrangendo até mesmo o profissional liberal. Não obstante,
em se tratando de vícios verifica-se certa fraqueza nos elos que unem a cadeia por
se tratar de “uma solidariedade imperfeita, porque tem como fundamento a atividade
de produção típica de cada um deles. É como se a cada um deles a lei impusesse
77
MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V; et MIRAGEM, Bruno. Comentários ao
Código de Defesa do Consumidor. 2ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 275.
63
um dever específico [...] pois todos são responsáveis [...] ao ajudar na introdução do
bem viciado no mercado”78.
A solidariedade também pode ser decorrente de previsão em outros atos
legislativos, que neste caso não têm sua aplicabilidade preterida em razão de norma
menos benéfica prevista no CDC (art. 7º, caput).
Ainda sobre a cadeia de solidariedade, têm-se o parágrafo único do art. 7º do
CDC dispondo que, em havendo ofensa aos direitos previstos no Código, todos os
ofensores “respondem solidariamente pela reparação dos danos previstos nas
normas de consumo”.
II.3 A INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA E O CDC
II.3.1 A Relação de Consumo na Atividade de Incorporação Imobiliária
Não há dúvidas de que o CDC se aplique à atividade de incorporação
imobiliária. Com efeito, além da presença dos requisitos previstos nos arts. 2º e 3º, a
referência contida79 no art. 53 do Código torna insustentável tese contrária.
Com efeito, no contexto de uma incorporação pode haver a compra e venda
de um imóvel (produto) como coisa futura, objeto da contratação de incorporação
por preço fechado, representada pela soma da fração ideal de terreno e a
construção a cargo do incorporador. Também pode haver uma conjugação de
compra e venda de fração de ideal de terreno com concomitante contratação de uma
78
MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V; et MIRAGEM, Bruno. Comentários ao
Código de Defesa do Consumidor. 2ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 338.
79
“Art. 53. Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem
como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que
estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento,
pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado.
§ 1º. (Vetado).
§ 2º. Nos contratos do sistema de consórcio de produtos duráveis, a compensação ou a restituição das parcelas
quitadas, na forma deste artigo, terá descontada, além da vantagem econômica auferida com a fruição, os
prejuízos que o desistente ou inadimplente causar ao grupo.
§ 3º. Os contratos de que trata o caput deste artigo serão expressos em moeda corrente nacional”.
64
prestação de serviços de construção, o que se dá nas incorporações com
construção por empreitada e por administração.
Conforme referido no capítulo anterior, é possível que o incorporador seja o
próprio construtor da obra. Neste caso, responderá perante os adquirentes na
condição de incorporador e construtor, abarcando assim qualquer fato ou vício do
produto ou do serviço relacionados com a condição de incorporador (irregularidades
documentais, v. g.) ou com a condição de construtor (má qualidade da fiação
elétrica, v. g.).
Todavia, conforme também referido no capítulo anterior, pode ocorrer que a
construção não seja realizada pelo incorporador, mas sim por um construtor. Mesmo
nas incorporações com construção por preço fechado (arts. 41 e 43 da LCI) o
incorporador pode contratar um construtor para realizar a obra, com a nota de que
os adquirentes, neste caso, não firmam contrato diretamente com o tal construtor,
pelo qual o incorporador responde em nome próprio perante os adquirentes.
Ainda, pode ocorrer de a construção ser contratada entre os adquirentes e um
construtor diverso da pessoa do incorporador, como prestador de serviços, hipótese
em que os adquirentes pagam o custo da construção diretamente ao construtor
contratado. Tal fato se dá nas incorporações com construção sob regime de
empreitada (arts. 55 a 57 da LCI) e nas incorporações com construção sob regime
de administração ou preço de custo (arts. 58 a 62).
Este tema, todavia, será abordado separadamente com consideração para
cada uma das três espécies de incorporação (preço fechado, empreitada e preço de
custo), quando então as responsabilidades do incorporador e do construtor serão
delimitadas.
O incorporador se configura como fornecedor em razão de organizar fatores
de produção (terreno, construção, corretagem, anúncios, etc) de maneira
profissional com propósito de pôr produto à venda no mercado de consumo. Seja um
ou mais as incorporações lançadas, é fato que cada qual é composta por mais de
uma unidade de modo a configurar habitualidade praticada por vendas sucessivas,
ainda que em um mesmo empreendimento. O intento de lucro é evidente. Em que
pese o incorporador não careça de ser um empresário, podendo sê-lo até mesmo
uma pessoa física, tal fato não permite concluir que ele não seja um fornecedor. Isto
porque fornecedor e empresário são conceitos que não se implicam reciprocamente,
em que pese a proximidade entre ambos, ainda mais porque à condição de
65
empresário se impõe inscrição no registro de comércio. A propósito, quando ainda
vigente o Código Comercial de 1850, para se caracterizar como incorporador era
dispensável a condição de comerciante. Dificuldades haviam até mesmo para
enquadrar os atos do incorporador como “atos de comércio” segundo o antigo
Regulamento 737/1850.
Sobre as condições pessoais do consumidor, a relação de consumo se
estabelece mesmo que o imóvel seja adquirido por um empresário, pessoa física ou
jurídica para utilizá-lo, por exemplo, como sede de empresa. Neste caso, o produto
ou serviço, é de fato retirado do mercado de consumo por consumidor final, um
destinatário fático e econômico do bem de vida. Como qualquer consumidor, o
empresário está protegido contra sua “vulnerabilidade”, que é imanente ao conceito
de consumidor80 e surge da mera presença de uma relação de consumo. Esse
consumidor, empresário, poderá ou não ser um hipossuficiente para os fins do inciso
VIII do art. 6º, mas para tanto há que se analisar sua condição técnica, jurídica,
cultural e econômica, análise esta dispensável no que concerne à vulnerabilidade.
Pelo contrário, não haverá que se falar em relação de consumo se a unidade
for adquirida com fim de revenda ou locação porque, neste caso, o adquirente não
será destinatário final do produto81, salvo exceções bem especiais, como o caso
daquele que reside em imóvel locado e compra imóvel de maior valor agregado com
o propósito de locá-lo e assim auferir alguma renda que lhe permita sobreviver.
II.3.1.1 A responsabilidade do incorporador
Como já enunciado, com o incorporador a relação de consumo sempre se
estabelece. O fito de lucro na promoção da incorporação (art. 28, parágrafo único,
da LCI), se traduz em desenvolvimento de atividade econômica em caráter
profissional organizada para a produção de bens (imóveis) e prestação de serviços
80
Cfr. MARINS, James. Responsabilidade da empresa pelo fato do produto. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 1993, pp. 38 e 66.
81
De igual opinião, LEANDRO LEAL GHEZZI (GHEZZI, Leandro Leal. A incorporação imobiliária. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 139) e MELHIM NAMEM CHALHUB (CHALHUB, Melhim
Namem. Da incorporação imobiliária. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar, 2003, p. 120).
66
(de construção). Assim, o incorporador sempre responde solidariamente pelo fato
do produto ou do serviço, bem assim por qualquer vício de qualidade ou quantidade
das unidades comercializadas que as tornem impróprias ou inadequadas ao uso a
que se destinam ou que diminuam seu valor (arts. 12, 18 e 25 do CDC), porque
dirigindo a incorporação o incorporador promove-a como um todo, atraindo público
consumidor imbuído de confiança. O incorporador tem dever de proteção para com
os adquirentes, do qual não se desvencilha se caso a construção for executada por
um terceiro, seja qual for o regime de incorporação (preço fechado, empreitada ou
administração).
Considerada a realidade do mercado imobiliário nacional, em que os
incorporadores em geral carecem de realizar vendas antecipadas das unidades
antes que elas estejam concluídas, de modo a captar os recursos necessários para
promover a incorporação e por vezes até mesmo pagar pelo terreno; a LCI ao
incorporador que desista de concluir o empreendimento e, de consequência, desista
também dos contratos de compra e venda de unidades que eventualmente tenha
firmado com os consumidores. Não obstante o incorporador assuma riscos inerentes
à sua atividade, a permissão é salutar e vai de encontro à função social da atividade
na medida em que proporciona que a incorporação seja abortada caso o
incorporador presuma que as vendas não serão suficientes para que fluam recursos
em volume e frequência exigidos para o êxito do cronograma das obras. Não
interessa aos consumidores firmar contrato sem o mínimo de segurança de que o
incorporador terá os recursos necessários para concluir o empreendimento. Se o
incorporador vem a saber que as vendas não são suficientes e que ele não dispõe
de todos os recursos, parece insistência desproporcional exigir-lhe que tente concluir
o empreendimento. Nesse ponto, a chegada do CDC pouco alterou considerado o
caráter especial da LCI e a adequação que a desistência representa para a
salvaguarda dos interesses dos consumidores e, de um modo geral, para todos que
tenham direitos e obrigações vinculadas ao desenvolvimento da obra. Demais disso,
está na gênese da LCI o reconhecimento de que o incorporador necessita vender
para depois construir. Com efeito, a aplicação do CDC deve respeitar a lógica
econômica do contrato de incorporação, sua função social e seu caráter coletivo,
sob pena de causar a disfunção do contrato. No mesmo sentido vem a permissão
legal para que o incorporador construa sobre terreno alheio com base apenas em
uma
procuração,
por
exemplo.
Assim,
se
as
vendas
não
ocorrem,
é
67
sistematicamente coerente que o incorporador possa desistir do empreendimento.
Sobre essa questão, EVERALDO AUGUSTO CAMBLER82, opina:
Não nos parece que os incisos IX e XI, do art. 51, do CPCon tenham
revogado o art. 34 da LCI. De acordo com o Código do Consumidor, são
nulas as cláusulas contratuais que deixem ao fornecedor a opção de
concluir ou não o contrato, embora obrigando o consumidor, bem como
autorizem o fornecedor a cancelar o contrato unilateralmente, sem que igual
direito seja conferido ao consumidor.
Somos da opinião que os dispositivos do Código restringiram o alcance da
norma contido no art. 34, que faculta o incorporador a possibilidade de fixar
prazo de carência dentro do qual lhe é lícito desistir do empreendimento.
Agora, somente na hipótese de ver frustrado o negócio, poderá o
incorporador denunciar a incorporação [...].
Portanto, o art. 34 da LCI existe em benefício do consumidor, vinculando o
incorporador ao negócio e obrigando-o a promovê-lo no prazo de 180 dias,
prorrogável por igual período, mediante revalidação da certidão do registro.
Neste prazo, o incorporador tem perfeitas condições de avaliar a reação do
mercado e verificar se é viável ou não o negócio.
Todavia, para que o direito do incorporador não passe à condição de
potestatividade desproporcionada que sujeite o consumidor à desistência irrestrita, a
LCI impõe limites que atendem os princípios da informação e da segurança jurídica.
Nesse sentido, para que possa desistir, o incorporador deve levar a registro no
cartório competente, antes de iniciar as vendas, declaração fixando as condições
que ele se reserva para o exercício daquele direito. Seria o caso, por exemplo, de se
fixar o direito de desistência caso as vendas não ultrapassem 15% do total das
unidades do empreendimento. Igualmente atendendo o dever de informação, em
tendo se reservado direito de desistência, o incorporador fica obrigado a informá-lo
em todos os documentos e contratos de venda das unidades (art. 34, § 3º),
permitindo assim que os consumidores tenham acesso a todas as condições da
incorporação. Tomadas essas providências, os interesses do consumidor estarão
preservados dentro da lógica da incorporação imobiliária.
A desistência só será valida se denunciada ao registro de imóveis no prazo de
180 (cento e oitenta) dias contados da data de apresentação dos documentos
referidos no art. 32, renováveis por mais 180 (cento e oitenta) dias se acaso ainda
estiver concluído seu registro (arts. 33, § 2º do art. 34 da LCI; e art. 12 da Lei
82
CAMBLER, Everaldo Augusto. Incorporação imobiliária: ensaio de uma teoria geral. Editora Revista dos
Tribunais, 1993, p. 29
68
4.864/65). Uma vez operada a desistência, o incorporador deve restituir a todos os
adquirentes, no prazo de 30 (trinta) dias, com correção monetária, as importância
que tenham pago. Não há responsabilidade civil para o incorporador ante a
inexistência de ilícito, o que já não acontece se o incorporador não informar o
consumidor acerca da possibilidade de desistência. Ultrapassados os 30 (trinta)
dias, o incorporador incide em ilícito e, além de devolver os valores devidos com
juros 6% ao ano, poderá responder civilmente se comprovado prejuízo ao
consumidor83.
II.3.1.2 A responsabilidade do proprietário do terreno
Não há relação de consumo entre os adquirentes e o proprietário do terreno
que tenha outorgado procuração ao incorporador autorizando-o a aliená-lo em
frações ideais (art. 31, § 1º) ou aquele que tenha firmado promessa de compra e
venda (art. 31, “a”) com base na qual o incorporador aliena ditas frações. Com efeito,
o proprietário do terreno não pratica atos incorporativos, não oferece bem algum no
mercado de consumo nem presta qualquer serviço aos adquirentes. Faltam-lhe a
habitualidade e o profissionalismo de que tratam os arts. 2º e 3º do CDC.
Em que pese de certa forma esteja envolvido na complexidade do contrato de
incorporação, sua atuação é secundária e sem participação no lucro decorrente da
atividade incorporativa ou de construção. Demais disso, a LCI, lex specialis em
relação ao CDC84, ao regular a responsabilidade civil na incorporação imobiliária,
enumera as hipóteses que podem ser exigidas do proprietário do terreno como
sendo: (i) a devolução das quantias pagas em caso de denúncia da incorporação por
ele praticada; (ii) o direito à adjudicação compulsória; (iii) e a devolução dos valores
83
Encontra-se superada a previsão de que os adquirentes poderiam cobrar tais valores “por via executiva” (art.
36), haja vista que tal previsão não satisfaz os requisitos legais de um título executivo, notadamente o prévio
reconhecimento do dever de pagamento de quantia líquida e certa. Igualmente superada está a previsão contida
no § 5º do art. 35, qual seja, a devolução em caso de resolução motivada do contrato preliminar de compra e
venda por descumprimento de obrigações do incorporador previstas no art. 35. Se acaso o incorporador não
cumprir o prazo, a via executiva não estará à disposição dos adquirentes.
84
Neste sentido o STJ quando do julgamento do REsp 80036/SP (Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, 4ª
Turma, julgado em 12/02/1996, DJ 25/03/1996 p. 8586).
69
representativos das acessões acrescidas ao terreno em caso de rescisão do
contrato por meio do qual se permitiu que o incorporador lançasse a incorporação
(art. 35, §§ 3º e 4º; e art. 40 da LCI).
Ainda sobre a possibilidade de desistência do empreendimento, quando a
promoção da incorporação estiver se desenvolvendo com base em procuração
outorgada ao incorporador pelo proprietário do terreno, por seu promitente
comprador, cessionário deste ou por promitente cessionário (art. 31, § 1º), o
respectivo outorgante (dentre eles o proprietário do terreno) também poderá
denunciar a incorporação se acaso o incorporador, tendo se reservado direito de
desistência, não exercê-la no prazo legal quando presentes as condições a tanto
fixadas no ato de registro de que trata o art. 32. Assim, exercendo a denúncia da
incorporação, o outorgante da procuração ficará responsável solidariamente com o
incorporador pela restituição dos valores pagos pelos adquirentes. Não se trata,
todavia, de conferir-lhe responsabilidades por outros atos tipicamente incorporativos.
O outorgante não passa à condição de incorporador e por isto não se lhe aplica a
solidariedade “entre incorporadores”, prevista no § 3º do art. 31. Com efeito, a
solidariedade decorrente da denúncia da incorporação é limitada à devolução dos
valores pagos pelos adquirentes. A justificativa para abrir exceção em favor da
responsabilidade solidária do outorgante da procuração (proprietário do terreno),
decorre de um poder de ingerência em ato tipicamente incorporativo que a lei lhe
faculta exercer e que, uma vez exercido, traz consigo as mesmas consequências a
que ficaria sujeito o incorporador caso denunciasse a incorporação. No ponto a lei
andou bem. Reconhecendo haver interesse do proprietário do terreno no tocante ao
êxito da incorporação que ele autorizou que se levasse a cabo sobre seu terreno, a
lei reservou-lhe a faculdade de denunciar a incorporação mesmo que contrariamente
à vontade do incorporador desde que, fazendo-lhe as vezes, responda perante os
adquirentes pela devolução dos valores que já tenham pago. Assim prevendo, a lei
nada mais prescreveu do que obrigar o proprietário do terreno a indenizar os
adquirentes pelas acessões acrescidas sobre seu terreno na linha do que já dispõe
o art. 40 da LCI.
Outra falsa impressão acerca das responsabilidades do proprietário do
terreno para com a incorporação decorre de má interpretação do art. 30 da LCI.
Prevê este dispositivo a solidariedade e a extensão da condição de incorporador aos
proprietários e titulares de direitos aquisitivos sobre o terreno que contratem a
70
construção sempre que as alienações das unidades se iniciarem antes da conclusão
das obras. No entanto, este dispositivo refere-se, na realidade, aqueles que, mesmo
sem o propósito consciente de realizar uma incorporação, acabam por praticar atos
tipicamente incorporativos previstos nos arts. 28 e 29 da LCI. Ou seja, esse
dispositivo não torna os proprietários do terreno solidários com o incorporador pelo
simples fatos de as vendas se iniciarem antes da conclusão da construção, inclusive
porque é da natureza e do conceito de incorporador que as vendas ocorram antes
do término da obra; do contrário não se cogita sequer da existência de incorporação
imobiliária conforme referido no capítulo anterior. O art. 30, aliás, é de todo
desnecessário na medida em que, se os proprietários e titulares de direitos
aquisitivos sobre o terreno contratarem a construção e iniciarem suas vendas antes
do término da obra, sua condição de incorporador será mera decorrência dos art. 29
da LCI. Não careceria de um novo dispositivo para tratar do assunto.
O proprietário do terreno, quando ele não seja o próprio incorporador, também
tem responsabilidades para com a incorporação pela transferência formal da
propriedade criada pelas frações ideais de terreno. Mas a relação que há é de direito
civil. A promoção da incorporação entendida como prática de atos tendentes a
negociar as frações ideais para venda e contratar a construção, não desobriga o
proprietário do terreno perante os consumidores, adquirentes, no tocante ao direito
de outorga da propriedade, de modo que, neste caso, o proprietário do terreno
responde solidariamente com o incorporador. Nesse sentido, o parágrafo único do
art. 39 exige que todos os adquirentes sejam informados se o alienante do terreno
ficou ou não sujeito a qualquer “prestação” ou “encargo”, vale dizer, se ele ainda tem
alguma responsabilidade contratual no sentido de garantir a efetiva transferência da
propriedade. “Prestação” ou “encargo”, aqui, têm conotação mais ampla do que o
termo técnico que representam (arts. 121 1 137 do CC/02), querendo se referir a
garantias de transmissão hígida da propriedade das frações ideais.
Aquele que outorga procuração autorizando a realização de incorporação
sobre terreno seu, não pode se retratar nem revogar os poderes para tais fins
concedidos como, aliás, prevê a LCI, nem manter comportamento que possa
prejudicar o desenvolvimento da incorporação, frustrando vendas, afastando
pretendentes, trazendo insegurança ao cumprimento da função social da atividade.
Trata-se de comportamento que se exige em cumprimento de dever acessório de
proteção
à
relação
jurídica
para
cuja
criação
o
proprietário
contribuiu
71
conscientemente outorgando poderes que de antemão sabia ou deveria saber serem
suficientes à criação de direitos reais ou com eficácia real em favor de terceiros.
Em redação um tanto confusa, o art. 40 dispõe uma última responsabilidade
para o proprietário do terreno, em caso de rescisão do contrato firmado para venda
do terreno, contrato esse com base no qual o incorporador lançou a incorporação. A
hipótese tratada só pode dizer respeito às incorporações cujas frações ideais
estejam sendo negociadas pelo incorporador com base na alínea “a” do art. 31, ou
seja, que a disponibilidade sobre elas tenha chegado ao incorporador por via de uma
promessa ou cessão de compra e venda. Não se aplica, portanto, às incorporações
em que o incorporador esteja atuando com base em uma procuração outorgada pelo
proprietário do terreno (art. 31, § 1º, da LCI), já que, neste caso, pelo compromisso
de outorgar a propriedade sobre as frações ideais de terreno o incorporador que se
compromete em nome próprio ao outorgar poderes por via de procuração pública
irrevogável e irretratável.
Pelo disposto no art. 40, uma vez rescindido o contrato, o terreno retorna ao
domínio pleno do proprietário anterior, restando rescindidas, ope legis, as cessões
ou promessas de cessão de direitos correspondentes às frações ideais de terreno
que tenham sido comercializadas pelo incorporador. Vale dizer, se o contrato com o
proprietário do terreno não for cumprido, sua rescisão extingue a incorporação em
prejuízos dos adquirentes. A estes restará o direito de serem indenizados por perdas
e danos pelo incorporador e também o direito à devolução dos valores
representativos das acessões que sobre o terreno tenham sido acrescidas pelos
atos de promoção da incorporação praticados pelo incorporador.
Por essa devolução, fica obrigado o proprietário do terreno, que é a pessoa
em favor de quem se opera a rescisão (art. 40, §§ 1º, 2º e 3º), e solidariamente com
ele o incorporador. Enquanto os adquirentes não forma ressarcidos pelas acessões
de fato acrescidas ao terreno, o proprietário do terreno não poderá negociá-lo sob
pena de nulidade. No entanto, se a rescisão, de forma incomum, for decorrência de
culpa dos adquirentes, o proprietário do terreno fica desobrigado de indenizá-los
pelas referidas acessões, cabendo o exercício do direito apenas contra o
incorporador.
Tirante essas hipóteses, o dono do terreno não responde civilmente pela
promoção da incorporação, ou seja, não responde por vícios de construção, atraso
na conclusão das obras, autorizações e alvarás concedidos ou que devessem ser
72
obtidos junto às autoridades administrativas. Possibilitada a transferência da fração
ideal de terreno, qualquer divergência que haja em razão da construção ou de
irregularidade formal na documentação do empreendimento, deve ser questionada
junto ao incorporador e, conforme o caso, junto também ao construtor.
Não se deve estender responsabilidade ao proprietário do terreno fora das
hipóteses expressamente previstas, seja aquele que o tenha alienado diretamente
ao incorporador, seja aquele lhe tenha outorgado procuração para vendê-lo em
frações ideais. Ele não está integrado na cadeia de produção do empreendimento e
nem presta contribuição para a prática de ilícitos pelo incorporador ou pelo
construtor. A promoção da incorporação é feita pelo incorporador em nome próprio,
no exercício de uma atividade lucrativa e empresarial. O proprietário do terreno não
participa dessa atividade, não a exerce profissionalmente, nem lucra com ela. Lucra,
aí sim, com a alienação de sua propriedade, mas isto por si só não permite concluir
que tenha responsabilidades pelos atos do incorporador porque a venda de uma
propriedade que é sua é ato sujeito às regras gerais de direito civil. Assim, por
exemplo, se o terreno não comporta a construção na totalidade de sua área em
razão da existência de uma nascente de água, mas ainda assim o incorporador
infringe a norma ambiental, a responsabilidade é dele, como promotor da
incorporação, não do proprietário do terreno.
É da sistemática da LCI a possibilidade de incorporação com base em
procuração outorgada sobre terreno, criada para incentivar o desenvolvimento da
atividade de modo a que não se careça de mobilizar tantos recursos financeiros
ainda no início do empreendimento. Não se deve compreender o que é um estímulo
à
atividade,
como
argumento
para
imputar
ao
proprietário
do
terreno
responsabilidade por atos inerentes a uma atividade econômica de cuja cadeia
produtiva ele não participa sob pena de se desconsiderar a lógica econômica e
jurídica da incorporação. Relativamente ao CDC a LCI deve ser entendida como lex
specialis conforme opinião de HUMBERTO THEODORO JÚNIOR85:
A esse negócio jurídico, portanto, sobre bens futuros, é de aplicar-se, em
primeiro lugar, a Lei n. 4.591/64 e, complementarmente, as regras gerais do
direito das obrigações pelo Código civil, assim como o Código de Defesa
Consumidor. Tudo, porém, em caráter subsidiário, visto que se trata de
85
THEODORO JÚNIOR, Humberto Incorporação imobiliária: atualidade do regime jurídico instituído pela Lei
n° 4.591/1964. Revista Forense, n° 100, v. 376. Rio de Janeiro: Editora Forense, nov-dez de 2004.
73
negócio jurídico sujeito a regime legal específico que não, em essência,
alterado pelas normas gerais do Código Civil e do CDC.
[...]
Sem dúvida, o contrato de incorporação é um contrato de consumo, dentro
da perspectiva traçada pelo Código de Defesa do Consumidor, e segundo
os conceitos de fornecedor e consumidor, assim como de produto,
elaborados pelo art. 3º, §§ 1º e 2º, da Lei 8.078, de 1990.
O CDC, todavia, não conceitua, nem disciplina os elementos e a estrutura
jurídica dos diversos contratos empregados para realizar as operações do
mercado de consumo. Cada contrato, é óbvio, tem, histórica e
culturalmente, o regime específico de cada contrato típico é que revelam o
papel (ou função) atribuída a cada um dos negócios jurídicos nominados ou
típicos.
[...]
A aplicação da lei consumerista sem outro propósito que não seja o de
proteger o consumidor, a qualquer custo, além de descumprir os próprios
fundamentos e objetivos do CDC, pode, ao desprezar a estrutura
econômica do negócio, provocar a disfunção do contrato, e não é esse o
desiderato perseguido pela Lei n. 8.078.
As crises e violações ao contrato de incorporação estão expressa e
exaustivamente previstas e disciplinadas pela Lei n. 4.591. A inovação do
CDC, portanto, somente é de admitir-se para complementar a técnica
específica de disciplina de formação e execução do contrato incorporativo.
Nunca para revogar ou impedir sua atuação. Só se pode pensar em
aprimorar a tutela específica com o reforço de medidas e procedimentos
inspirados no CDC. Este, como é óbvio, não revogou as normas especiais
disciplinadoras dos contratos e se destinou apenas a enriquecê-las, quando
necessário, com medidas repressivas à má-fé e ao desequilíbrio, intencional
ou não, na comutatividade das prestações e obrigações.
Daí porque, na medida em que a LCI limita as responsabilidades do
proprietário do terreno, resta afastada sua responsabilização fora destas hipóteses
que ela prevê, limitação essa que, a rigor, nem mesmo o CDC permite que seja
ultrapassada. Com efeito, o proprietário do terreno não fabrica, nem produz,
constrói, importa ou comercializa produto (arts. 12, 13, 18 e 19 do CDC). Também
não presta serviço aos adquirentes (art. 14 e 20 do CDC), a exemplo do construtor.
II.3.1.3 A responsabilidade do construtor
Questão interessante se coloca nas situações em que o construtor não é o
próprio incorporador. O art. 29 da LCI indica restrição à responsabilidade do
incorporador “conforme o caso” pela entrega das obras concluídas.
74
Os contratos que se firmam, no contexto da atividade de incorporação
imobiliária, para aquisição de uma unidade, podem envolver: (i) aquisição de um
produto futuro assim considerado a fração ideal de terreno em conjunto com a
construção a ser realizada, que se opera por via das incorporações sob regime de
preço fechado; ou (ii) a aquisição de um produto considerada a fração ideal de
terreno agregada à concomitante contratação de uma prestação de serviço de
construção, que se operam por via das incorporações com construção sob regime
de empreitada e de administração.
Consoante referido no capítulo anterior, três são os regimes de incorporação
(de preço fechado, de empreitada ou de administração) que podem levar à produção
de uma unidade imobiliária por meio da incorporação, resultados da conjugação: (i)
do contrato de compra e venda de fração ideal de terreno; (ii) do contrato de
prestação de serviços de construção; e (iii) do contrato firmado com o incorporador.
Considerada essa diversidade contratual, a aplicação do CDC não pode se
dar por aplicação imediatista do art. 12 (“... o fabricante, o produtor, o construtor [..].
respondem [...] por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção,
montagem [...]”), sob pena de confundir as posições jurídicas do construtor, do
incorporador e do proprietário do terreno, posições essas previstas em lei especial
(LCI) que a elas reserva tratamento diferenciado.
É fato, aliás, que a doutrina, em especial quando se debruça sobre o CDC
encarando-o como lei genérica, muito raramente aborda a incorporação imobiliária
com consideração das diferentes posições jurídicas que nela há, incidindo por isto
em equívoco que imiscui direitos e obrigações decorrentes de relações contratuais
que em certos aspectos devem permanecer separadas. O CDC só encontra análise
mais adequada ao contexto da incorporação imobiliária quando a abordagem parte
da especialidade da LCI para chegar à generalidade do CDC, conforme demonstram
algumas das mais recentes obras sobre o assunto86.
86
São caso, por exemplo, das obras de MELHIM NAMEM CHALHUB (Da incorporação...), HUMBERTO
THEODORO JÚNIOR como coordenador (O contrato imobiliária e a legislação tutelar do consumo...),
EVERALDO AUGUSTO CAMBLER (A responsabilidade civil na incorporação imobiliária...), LEANDRO
LEAL GHEZZI (A incorporação imobiliária...), FRANCISCO ARNALDO SCHIMDT (Incorporação
imobiliária...) e JÉVERSON LUÍS BOTTEGA (Incorporação imobiliária e a responsabilidade civil do
incorporador...).
75
II.3.1.3.1 Nas incorporações por preço fechado
Nas incorporações por preço fechado (arts. 41 e 43 da LCI), a atividade de
incorporação envolve a venda de coisa futura representada por fração ideal de
terreno acrescida de construção, ambas a cargo do incorporador com quem os
consumidores contratam diretamente. Neste regime, o incorporador é fornecedor
imediato de produto porque se compromete em nome próprio a produzir coisa futura
representada pela soma de uma fração ideal com uma construção. O verbo produzir,
contido no art. 12 do CDC, deve ser lido como o ato de promoção da incorporação
(art. 28, parágrafo único da LCI). Enquadrar o incorporador no art. 12 do CDC pela
realização de produção é mais adequado porque a atividade de incorporação
envolve algo mais do que a mera construção, mormente se considerada a
possibilidade de o incorporador sequer atuar como construtor da obra, mas ainda
assim por ela ser responsável (art. 28, parágrafo único, e art. 31 da LCI). Daí então
porque se possa afirmar que o incorporador, promovendo (LCI), acaba por produzir
(CDC) as unidades imobiliárias.
Ainda sobre o regime de preço fechado, o responsável primeiro frente aos
consumidores adquirentes, pela construção a ser realizada, na condição de
promotor-produtor da incorporação, é o próprio incorporador.
O incorporador pode ele próprio construir a obra ou então contratar um
terceiro (um construtor) para que o faça em seu nome, sem que os adquirentes
firmem contrato com este construtor.
Quando o próprio incorporador constrói a obra, em que pese sua condição de
promotor-produtor da incorporação já absorver a responsabilidade que sobressai
pela construção em si, ele obviamente também será responsável na condição de
construtor, conforme refere o art. 12 do CDC, podendo então cogitar-se, no caso, de
um incorporador promotor-produtor-construtor porque produz o empreendimento
promove-o e construindo-o pessoalmente. Quando assim esteja atuando, o
incorporador será fornecedor imediato e real da unidade (produto).
Por outro lado, contratando um empreiteiro para concluir a obra para si, obra
essa que ele incorporador havia se comprometido frente aos consumidores a
entregar concluída, o incorporador, agora apenas como promotor-produtor, será
responsável frente aos adquirentes na condição de fornecedor imediato (porque
76
contrata a promoção da incorporação diretamente com os adquirentes) e aparente
(porque a construção é realizada por um terceiro, um empreiteiro, por ele
contratado).
No tocante ao construtor contratado pelo incorporador no regime de preço
fechado, deve-se considerar a natureza jurídica do contrato que o liga ao produto
que é promovido e produzido pelo incorporador. Juridicamente sua participação se
dá na condição de fornecedor de serviços frente ao incorporador. Não obstante,
considerada a solidariedade e a responsabilidade objetiva da cadeia de produção,
mesmo sem ter relação jurídica imediata com os adquirentes, o construtor também
responde perante eles como fornecedor mediato e real. Assim, construtor e
incorporador são solidária e objetivamente responsáveis pela construção no regime
de preço fechado. Conforme EVERALDO AUGUSTO CAMBLER87, “ao celebrar o
contrato de construção, o incorporador estende a obrigação assumida junto aos
adquirentes ao construtor, fazendo-se substituir por este, passando ambos a
responder pela obrigação de resultando perante o contratante”.
Contudo, deve-se observar que a responsabilidade solidária e objetiva do
construtor para com o incorporador se adstringe aos limites de sua participação no
empreendimento. Por isto a LCI prevê responsabilidades para o construtor. Dentre
elas está o dever de recolhimento da contribuição social devida ao Instituto Nacional
de Seguridade Social-INSS incidente na execução de obra civil. A LCI também
responsabiliza o construtor pela averbação da conclusão da construção na matrícula
do terreno. Com efeito, em consideração de que a construção, quando concluída,
para ser averbada depende de atos inerentes ao contrato de construção (recolher a
contribuição, por exemplo), ambas as obrigações se justificam contra o construtor.
Ainda, o construtor não poderá ser responsabilizado, por exemplo, por falhas
no projeto do empreendimento (que é de responsabilidade do incorporador), por
irregularidade na concessão de alvarás pela autoridade pública autorizando a
incorporação ou por irregularidade na propriedade do terreno que impeça a
transferência definitiva de propriedade aos consumidores. O construtor é prestador
de serviços. Esta conclusão ressoa do próprio CDC, notadamente de seu art. 14,
que, ao ter disposto que o fornecedor de serviços responde, independentemente da
existência de culpa, pela reparação dos danos causados por defeitos relativas “à
87
CAMBLER, Everaldo Augusto. Responsabilidade civil na incorporação imobiliária. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 1998, p. 220, itálico do autor.
77
prestação dos serviços”. Assim, como o construtor, no regime de preço fechado, não
é fornecedor de produto, mas sim de serviços, sua responsabilidade fica circundada
aos limites do contrato de empreitada. Tanto assim o é que o art. 25, § 1º, fala em
solidariedade do fornecedor quando houver “mais de um responsável pela causação
do dano”. Esta conclusão se mostra coerente com o CC/2002, que só cogita de
solidariedade na responsabilidade por ato ilícito se a ofensa contar com mais de um
autor (arts. 927 e 942).
Demais disso, os arts. 28, parágrafo único, e 31, § 3º, da LCI, que é lei
especial, prevê que a responsabilidade pela incorporação como um todo, vale dizer,
por qualquer aspecto nela envolvido, é do incorporador de modo que, neste
particular o CDC sequer poderia estabelecer solidariedade em tema que a LCI limita.
Evidentemente que se o caso concreto indicar que o construtor teve
participação no empreendimento maior do que a mera prestação de serviço de
construção, sua responsabilidade poderá ser alargada. Isto, todavia, deve ser
analisado caso a caso.
II.3.1.3.2 No regime de empreitada
No regime de empreitada (arts. 55 a 57 da LCI) os consumidores firmam dois
contratos distintos: um para aquisição da fração ideal de terreno junto ao
incorporador e outro para execução da obra, que pode ser firmado com um
construtor ou com o próprio incorporador quando este também fizer o papel de
construtor (art. 48 da LCI).
Ao contrário do que se dá no regime de preço fechado, os consumidores
firmam contrato com o construtor pagando diretamente a ele o custo da construção.
O incorporador, assim, não recebe os valores pagos pela construção, que
pertencem
ao
construtor
em
decorrência
de
relação
contratual
com
os
consumidores. Assim, neste regime o construtor é fornecedor direto e real dos
serviços.
Aqui, assim como em todos os regimes, o incorporador é promotor-produtor
do empreendimento (art. 12 do CDC), respondendo solidária e objetivamente pelos
acidentes de consumo e vícios do produto ou serviços prestados na construção do
78
empreendimento, tal qual se dá no regime de preço fechado. Para fins de
responsabilização do incorporador, tanto em relação aos atos tipicamente
incorporativos quanto à execução da obra, é irrelevante a distinção entre o contrato
de venda de fração ideal de terreno e o contrato de construção88.
Parcela da doutrina equivocadamente entende a empreitada global (mão de
obra e materiais, como é o caso da empreitada prevista na LCI) como contrato de
compra e venda de coisa certa e futura. Tal entendimento poderia levar a que o
construtor, no regime de empreitada, fosse responsável por atos tipicamente
incorporativos praticados pelo incorporador.
No entanto, o construtor, no regime de empreitada, é mero prestador de
serviços. A alusão ao “construtor”, contida no art. 12 do CDC, não faz do
empreiteiro, contratado pelos consumidores, um fornecedor de produto89. Só pode
ser considerado construtor para fins do art. 12 o incorporador que realize ele próprio
a construção ou que assuma a obrigação de fazê-lo junto aos adquirentes mas
depois se faça substituir nessa tarefa. Compartilhando dessa distinção e também de
seus efeitos, segundo as normas do CDC, LEANDRO LEAL GHEZZI90 conclui:
Feitas estas observações, deve ser ainda diferenciado o caso em que o
incorporador é também o construtor, do caso em que os adquirentes
contratam a construção diretamente com outra empresa. Isto porque, nesta
segunda hipótese, entendemos que o incorporador é diretamente
responsável pelo produto e o construtor diretamente responsável pelo
serviço.
No caso em que os adquirentes contratam a realização da obra diretamente
com um construtor, entendemos que o incorporador se enquadraria no
conceito de comerciante, estabelecido no art. 13, I, do CDC. Assim, de
acordo com este dispositivo, o incorporador seria solidariamente
88
Cfr. CAMBLER, Everaldo Augusto. Responsabilidade civil na incorporação imobiliária. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 1998, pp. 260-261.
89
Em geral, a doutrina conceitua o construtor do ponto de vista de suas realizações materiais, como alguém que
faz algo novo surgir. É o que faz, v. g., ZELMO DENARI: “O construtor é aquele que introduz produtos
imobiliários no mercado de consumo, através do fornecimento de bens ou serviços. Sua responsabilidade por
danos causados ao consumidor pode decorrer dos serviços técnicos de construção, bem como dos defeitos
relativos ao material empregado na obra. Nesta última hipótese, responde solidariamente com o fabricante do
produto defeituoso, nos termos do § 1º do art. 25 do CDC” (ZELMO DENARI. In GRINOVER, Ada Pellegrini
(et al.). Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1998. p. 145). No entanto, para fins do art. 12 esse conceito deve ser encarado do ponto
de vista jurídico, sob pena de confundir construtor com montador, com fabricante ou com produtor. Com efeito,
do ponto vista fático, um construtor de obra não deixa de ser um montador na medida em que, empregando sua
mão-de-obra e sua técnica, une materiais (tijolos, ferro, vidro, etc) para produzir algo novo. Juridicamente, no
entanto, trata-se de um fornecedor de serviços sujeito ao art. 14 do CDC mas não ao art. 12.
90
GHEZZI, Leandro Leal. A incorporação imobiliária. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 193.
79
responsabilizado pelo defeito do produto apenas quando não pudesse ser
identificado o seu fabricante, o construtor, produtor ou importador.
Discussão semelhante já se travou no âmbito do Direito Tributário, indagandose se o contrato de construção estaria sujeito ao Imposto sobre Prestação de
Serviços de Qualquer Natureza-ISSQN ou se ao Imposto sobre Circulação de
Mercadorias-ICMS. Ocorre, todavia, que o “fazer” (a construção) prepondera sobre o
“dar” (o insumo). Na incorporação sob regime de empreitada (assim como no regime
de preço de custo referido no capítulo seguinte), a aquisição de coisa certa que de
fato há, diz respeito apenas à fração ideal de terreno, à qual se soma um segundo
contrato para que um construtor erija sobre ela uma construção. FRANCISCO
ARNALDO SCHMIDT91 segue esta linha ao observar:
Há quem veja na empreitada global, compreendendo mão-de-obra e
materiais, simples promessa de venda, equiparando a empreitada à venda
de coisa futura a prazo e preço certos, com construção por conta e risco do
incorporador. Essa distinção é particularmente importante para o memorial
da incorporação, quando o incorporado deve informar a natureza jurídica da
construção que está lançando. As duas modalidades, entretanto, além de
não se confundirem, receberam tratamento doutrinário e legal bem
diferenciados. Além da clássica distinção de Clóvis Beviláquia, segundo a
qual na empreitada de material o objeto é a criação de uma coisa pelo
trabalho do próprio empreiteiro, ou de seus operários, enquanto que na
alienação o objeto é a venda de uma coisa existente ou a ser produzida
(Código Civil, 7ª ed., vol. IV, p. 424). J. Nascimento Franco e Nisske Gondo
trazem o magistério de Alfredo de Almeida Paiva (Aspectos do Contrato de
Empreitada, Forense, 1.955, p.28), para quem na compra e venda de coisa
futura aliena-se coisa “que venha a existir de futuro mas que seja de
propriedade do vendedor”, enquanto que o objeto da empreitada é “a
execução de uma obra determinada para cuja confecção os materiais
fornecidos não concorram com o espírito de venda, mas apenas contribuem
na mesma importância e com idêntica finalidade da mão-de-obra
empregada para levá-la a bom termo.
O construtor, portanto, porque contratado diretamente pelos adquirentes, só
responde por acidentes de consumo e vícios que digam respeito ao contrato de
prestação de serviços de construção, salvo se demonstrada sua participação direta
em atos típicos do incorporador.
91
SCHMIDT, Francisco Arnaldo. Incorporação imobiliária. 2ª Ed. Porto Alegre: Norton Editor, 2006, p.106.
80
II.3.1.3.3 No regime de administração
Por último têm-se o regime de administração (arts. 58 a 62), também
designado pela LCI como “preço de custo”, em que o incorporador oferta a unidade
e estima o custo de sua construção, que pode variar segundo oscilações do
mercado, obrigando-se os adquirentes a cobrir a variação do preço dos insumos.
Assim como no regime de empreitada, os consumidores adquirem a fração ideal de
terreno junto ao incorporador e contratam a construção da obra em separado. Ao
contrário da empreitada, o custo da obra não é estabelecido, recebendo apenas uma
estimativa (art. 59, §§ 1º a 3º; art. 54, § 3º) que deve ser revista semestralmente (art.
59) de comum acordo entre a Comissão de Representantes e o construtor, podendo
implicar maior ou menor custo da obra a depender do efetivo custo dos materiais. A
cada nova alteração do custo alteram-se e os valores que cada adquirente deve
pagar de modo a que a obra seja concluída no tempo esperado (art. 60) por decisão
entre a Comissão e o construtor.
Neste regime, assim como em todos os regimes, o incorporador é promotorprodutor do empreendimento (art. 12 do CDC), respondendo solidária e
objetivamente pelos acidentes de consumo e vícios do produto ou serviços
prestados na construção do empreendimento.
Já o construtor, quando não seja ele o próprio incorporador, só responderá
pelo fato e pelo vício do serviço de construção.
Conforme EVERALDO AUGUSTO CAMBLER92, no regime de administração
os adquirentes assumem a administração da incorporação de modo a que a
responsabilidade do construtor e do incorporador podem resultar mitigadas em
pontos que, se no regime de empreitada, sua responsabilidade seria inquestionável.
A questão, todavia, só se consegue resolver diante de análise do caso concreto93.
92
CAMBLER, Everaldo Augusto. Responsabilidade civil na incorporação imobiliária. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 1998, pp. 263-265.
93
Sobre esta questão têm-se a seguinte decisão:
“INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA. CONSTRUÇÃO SOB O REGIME DE ADMINISTRAÇÃO (PREÇO DE
CUSTO). DEVOLUÇÃO DOS VALORES PAGOS POR ADQUIRENTE INADIMPLENTE. ILEGITIMIDADE
PASSIVA DA INCORPORADORA. INCIDÊNCIA DO ART. 58 DA LEI Nº 4.591/64. EMBARGOS DE
DECLARAÇÃO. AUSÊNCIA DE OMISSÃO. MULTA CARÁTER PROTELATÓRIO NÃO CARACTERIZADO.
PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA 98/STJ.
81
II.3.1.4 A responsabilidade do agente financiador
É comum a participação de instituição financeira na rede contratual da
incorporação imobiliária, concedendo crédito para financiamento da construção,
comum em casos em que o incorporador por esta via obtém os recursos necessários
para concluir o empreendimento.
Também a instituição financeira não responde por atos inerentes à atividade
do incorporador e, de igual modo, não responde pela obrigação de outorga da
propriedade sobre as frações ideais do terreno e nem por vícios ou acidentes de
consumo resultantes da construção propriamente dita94.
Sobre o assunto, aliás, “revogando” considerável jurisprudência que vinha se
formando em sentido contrário95, o § 1º do art. 31-C, introduzido pela Lei
10.931/2004, dispõe expressamente em relação às incorporações sob regime de
afetação patrimonial, o que também se deve aplicar àquelas não afetadas, que a
fiscalização da obra e do andamento da incorporação pelo agente financeiro ou
pelos adquirentes, não lhes transfere “qualquer responsabilidade pela qualidade da
- No regime de construção por administração, a responsabilidade pelo andamento, recebimento das prestações
e administração da obra é dos adquirentes, condôminos, por intermédio da comissão de representantes, e não
da incorporadora, parte ilegítima para figurar no pólo passivo de ação que visa à devolução de valores pagos
por adquirente inadimplente.
- O manejo de embargos de declaração com fim de prequestionamento não tem caráter protelatório.
Recurso especial parcialmente conhecido e provido.
(REsp 679.627/ES, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 26/10/2006, DJ
20/11/2006 p. 301)”.
94
A propósito, vejam-se as indagações feitas por EVERALDO AUGUSTO CAMBLER em palestra proferida
em seminário realizado em 2003, organizado pelo Instituto de Registro Imobiliário do Brasil e pela Associação
Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário do Brasil. (CAMBLER, Everaldo Augusto. Et alli.
Responsabilidade civil do incorporador. ln: SEMINÁRIO O CREDITO IMOBILIÁRIO EM FACE DO NOVO
CÓDIGIO CIVIL, 2003, São Paulo, debates do seminário. São Paulo: IRIB;ABECIP, 2005, pp. 127-156).
95
A título de exemplo, cita-se:
“SFH. AQUISIÇÃO DE UNIDADE HABITACIONAL. VÍCIOS DA CONSTRUÇÃO. LEGITIMIDADE DO
AGENTE FINANCEIRO. A Caixa Econômica Federal detém legitimidade para responder por ação de
indenização em virtude de vícios constatados em imóveis financiados pela empresa pública, dada a inequívoca
interdependência entre os contratos de construção e de financiamento. A obra efetuado com recursos do Sistema
Financeiro da Habitação acarreta a solidariedade do agente financeiro pela respectiva solidez e segurança.
Precedentes. (TRF4, AC 2002.70.07.000027-9, Quarta Turma, Relator Sérgio Renato Tejada Garcia, D.E.
31/08/2009)”.
82
obra, pelo prazo de entrega do imóvel ou por qualquer outra obrigação decorrente
da responsabilidade do incorporador ou do construtor”.
O § 12 do art. 31-A também cuida de afastar a responsabilidade do agente
financeiro por atos inerentes à atividade de incorporação e construção, seja sua
participação decorrente de contratação de mútuo para construção ou de garantias
recebidas em razão de quaisquer mútuos concedidos ao incorporador ou aos
adquirentes finais consumidores. Em que pese tratar-se de mera garantia creditícia,
quiçá por “excesso de clareza” o § 12 cuidou de destacar que a responsabilidade do
agente financeira também fica afastada em razão de constituição de propriedade
fiduciária sobre as unidades imobiliárias ou cessão de direitos creditórios sobre elas
constituídos.
Diferentemente se dá com a responsabilidade da instituição financeira em
torno da validade ou não da constituição, eficácia e execução de garantia hipotecária
constituída sobre o empreendimento. Antes das alterações introduzidas pela Lei
10.931/2004, consolidou-se entendimento jurisprudencial96, até surpreendente para
parcela da comunidade jurídica, no sentido de que tais hipotecas não têm eficácia
perante os adquirentes, já que é de conhecimento prévio da instituição financeira
que sobre o terreno se levanta uma construção sob a forma de incorporação em que
todas suas unidades estão destinadas ao mercado de consumo, não sendo lícito
que o direito de hipoteca do agente financeiro possa prevalecer sobre o direito
pessoal com efeitos reais nascido para os adquirentes quando da entrega de
recursos ao incorporador em pagamento de coisa futura a ser erguida justamente
com a entrega destes recursos.
Atualmente, por força daquelas alterações, a LCI conta com previsão de
validade dessas hipotecas quando constituídas em incorporações sob regime de
afetação. Isto, todavia, não pode ser entendido como se a Súmula 308 estivesse
superada. A alteração legal veio, na verdade, a corroborar a orientação
jurisprudencial porque a hipoteca permanece hígida se inserida no bojo de
incorporação com regime de afetação em decorrência de um rearranjo de direitos
reais e obrigacionais vinculados à incorporação, na medida em que o crédito
concedido, segundo a lógica da afetação, pertence aos próprios adquirentes por via
96
Trata-se da Súmula 308 do Superior Tribunal de Justiça: “A hipoteca firmada entre a construtora e o agente
financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os
adquirentes do imóvel”.
83
de sua integração à patrimônio da incorporação afetada, conforme adiante ainda
será tratado.
De todo modo, mesmo nas incorporações sob regime de afetação patrimonial,
para a higidez da garantia hipotecária é imprescindível que os recursos mutuados
pelo agente financeiro sejam de direito e de fato direcionados à aplicação na
construção, vale dizer, não basta alegar ou fazer previsão contratual no sentido de
que o empréstimo tenha sido aplicado na conclusão da incorporação. O agente
financeiro deve fiscalizar a evolução da obra de modo a garantir a aplicação dos
recursos que justificam a hipoteca. O art. 31-C prevê que a instituição financeira
poderá nomear alguém para fiscalizar e acompanhar a evolução do patrimônio de
afetação. A permissão para fiscalizar e acompanhar, no entanto, não é suficiente
para que a hipoteca seja eficaz em caso de os recursos mutuados não serem
aplicados na incorporação. Trata-se, isto sim, de um meio concedido ao agente
financeiro para preservar sua garantia, sob pena de se desnaturar o sistema da
afetação patrimonial e retornar-se sistema tradicional de incorporação não afetada.
Com efeito, se os recursos mutuados não forem direcionados à capitalização do
patrimônio afetado, não se justifica que o pagamento do agente financeiro se faça
com suas forças: desvirtuada a entrada de recursos no patrimônio afetado, o
pagamento
por
via
do
patrimônio
de
afetação
fica
prejudicado.
84
III PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO E INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA
III.1 A AUTONOMIA PATRIMONIAL E FUNCIONAL DA INCORPORAÇÃO
IMOBILIÁRIA
Antes mesmo que a Lei 10.931/2004 alterasse a LCI mediante inclusão do
patrimônio de afetação, esta já contava, desde sua edição, com medidas capazes de
resguardar os interesses dos adquirentes de unidades imobiliárias em construção
em caso de falência ou insolvência do incorporador, paralisação ou retardamento
excessivo e injustificado da obra; situações estas em que a propriedade do terreno,
das acessões e os recebíveis decorrentes da comercialização das unidades eram
destacados da titularidade material do incorporador com correspectiva transferência
aos adquirentes. Subjacente e como fonte de inspiração dessa alteração da
titularidade material, têm-se a função social da atividade, ou seja, a conclusão do
edifício, como direito dos adquirentes ainda que sem a colaboração do incorporador.
Sensível à percepção de que o empreendimento que se constrói é fruto dos
recursos entregues ao incorporador pelos adquirentes já que em geral os
incorporadores vendem para depois construir, buscou a LCI, porém de forma tímida,
apartar do patrimônio geral do incorporador, o acervo representado pelos direitos e
obrigações oriundos de determinando empreendimento em construção. Tal
separação, além de dar garantia aos adquirentes, teve como objetivo evitar que
credores do incorporador, estranhos a uma determinada obra, fossem beneficiados
em relação aos adquirentes, mediante realização de seu crédito com uma
construção e com um terreno que, em parte considerável, às vezes até
integralmente, são mera representação dos valores entregues pelos adquirentes ao
incorporador.
Nesse sentido, prevê o inciso III do art. 43 da LCI, desde sua edição, que
mesmo em caso de falência do incorporador, a maioria dos adquirentes pode se
reunir em assembleia e deliberar pela continuidade das obras sem a participação do
incorporador97. Do contrário, ou seja, caso tal deliberação seja aprovada, dispõe o
97
Fazendo referência ao inciso III do art. 43 da LCI, observa HAMILTON QUIRINO CÂMARA que “Afinal de
contas, na dicção do texto legal, se os compradores retomam as obras ficam fora da falência”. (CÂMARA,
85
mesmo inciso que aos adquirentes resta a opção de se habilitarem na falência como
credores privilegiados pelas quantias que houverem pago ao incorporador98.
Além de cogitar da hipótese de falência do incorporador como condição para
que os adquirentes assumam o término da obra, o inciso VI do art. 43 da LCI prevê
outras duas, quais sejam, a paralisação da obra ou seu retardamento excessivo e
injustificado. Logo, não é necessária a ocorrência de falência para que os
adquirentes decidam eles próprios concluí-la. Do contrário, poderia ocorrer de o
incorporador paralisar as obras sem perspectiva alguma de retomá-las, não vindo,
todavia, jamais a falir, mesmo que se encontrasse em estado de insolvência. Em
uma situação dessas de nada adiantaria aos adquirentes acionar o incorporador
pedindo reparação por perdas e danos ou a execução específica de obrigação de
fazer (concluir a obra) se ele se encontrar impossibilitado de cumprir as decisões
judiciais.
Como se vê, então, pelo sistema original da LCI, falindo o incorporador, a
edificação em curso não integra necessariamente a massa falida a fim de que seja
utilizada para pagamento dos credores habilitados segundo a ordem preferência de
seus créditos. Do mesmo modo, em caso de paralisação ou atraso excessivo e
injustificado do andamento das obras, o empreendimento pode igualmente ser
destacado do patrimônio e da gerência do incorporador, passando às mãos dos
adquirentes a fim de que estes possam concluí-la. Para que tal ocorra, o inciso VI do
art. 43 exige que os adquirentes se reúnam em assembleia e deliberem acerca da
“destituição do incorporador”, afastando-o assim desta função. Uma vez destituído, o
incorporador não poderá mais alienar, na condição de incorporador, unidades
Hamilton Quirino. Falência do incorporador imobiliário: O caso Encol. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004, p.
3).
98
Dentre aquelas duas opções (arrecadação pela massa versus conclusão da obra pelos adquirentes), percebe-se
que a lei reservou aos adquirentes, opções com diferentes possibilidades de êxito. Com efeito, a decisão pela
conclusão da obra, a depender das circunstâncias concretas, poder afastar parcial ou integralmente o prejuízo
material dos adquirentes, acontecimento este que dificilmente se verifica caso optem por se habilitarem na massa
permitindo assim que o empreendimento seja arrecadado. Exercendo esta última opção talvez nunca recebam
seus direitos ou recebam tão tardiamente considerando o tempo nada razoável de um processo de falência, que o
prejuízo acumulado pelo decurso do tempo torna essa orientação menos atraente que a retomada da construção.
Estranha-se, todavia, a razão legal dessas duas opções serem tão díspares entre si no que toca à proteção
patrimonial dos adquirentes. Com efeito, de um lado se optam por a obra, o terreno e as acessões são destacadas
da titularidade formal do incorporador; de outro, se não decidem concluí-la perdem tudo o que pagaram ao
incorporador na medida em que a arrecadação pela massa leva a que os adquirentes se habilitem como credores
preferenciais.
86
integrantes do empreendimento em construção99 sob pena de restar incurso no tipo
penal dos arts. 65 e 66 da LCI; também não participará da gestão necessária ao
término da construção, nem poderá cobrar o preço dos contratos de venda que
firmou, não só porque inadimplente mas também em razão de se encontrar afastado
da função de promotor da incorporação100. Perde assim os poderes inerentes à
condição de incorporador, previstos em resumo nos arts. 29 e 30. Retirando o
incorporador do centro de decisão dos interesses da incorporação, os adquirentes
ocupam seu lugar e, por meio da Comissão de Representantes (art. 50), recebem da
lei, dentre outros, os poderes necessários para concluir a obra, outorgar as
escrituras definitivas relativas às frações ideais de terreno prometidas em venda pelo
incorporador e também cobrar dos adquirentes os valores necessários para que a
obra seja concluída (arts. 49, 50, 52 e 63).
Percebe-se então que a LCI já trazia a ideia de que a incorporação, aí
incluído o eventual direito real de propriedade sobre o terreno, não é um patrimônio
absoluto do incorporador, nem do proprietário do terreno que eventualmente lhe
tenha outorgado poderes necessários à promoção da incorporação (arts. 30, 31 e
32, ‘m´); mas sim uma relação jurídica complexa101 em que se entrelaçam
obrigações, deveres e ônus, direitos reais e direitos pessoais obrigacionais,
sobrepondo-se uns aos outros de maneira a conformar propriedade à sua específica
função social, conferindo autonomia funcional ao empreendimento em construção
para que alcance o objetivo de vê-lo concluído, ainda que de maneira mais custosa
para os adquirentes do que aquela inicialmente contratada com o incorporador.
Como já observou NÉLSON LUIZ GUEDES FERREIRA PINTO102 acerca da LCI em
99
Em que pese na prática consiga realizar ditas alienações enquanto o terreno ou frações dele continuarem
registrados em seu nome, bem assim na hipótese em que o incorporador não seja seu proprietário mas conte com
poderes para aliená-lo na forma dos arts. 30, 31 e 32, ‘m’, da LCI.
100
Referem estas negativas à sua participação continuada na condição de incorporador e também na condição de
construtor. Mas ainda figurando o ex-incorporador como proprietário de alguma fração ideal que tenha
comercializado, terá ele direitos e deveres em caso de retomada das obras deliberada pelos adquirentes, agora na
condição de mero adquirente/proprietário, podendo inclusive votar nas assembleias como um adquirente comum.
101
Tratando do direito de propriedade como relação jurídica complexa a envolver direitos reais e pessoais bem
assim as imbricações e alterações recíprocas que um caso ao outro em prol do cumprimento de determinada
função social, confira-se FRANCISCO EDUARDO LOUREIRO (LOUREIRO, Francisco Eduardo. A
propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
102
PINTO, Nélson Luiz Guedes Ferreira. Contrato de incorporação imobiliária. In THEODORO JÚNIOR,
Humberto (coord). O contrato imobiliário e a legislação tutelar do consumo. Rio de Janeiro: Editora Forense,
2002, pp. 318-320.
87
sua versão original, destituído da função de incorporador, os direitos e obrigações,
mas nem todos (é verdade), eram de fato e de direito destacados do patrimônio do
incorporador e mantidos vinculados à finalidade de conclusão da obra:
A lei 4.591/64 sempre previu a proteção coletiva dos adquirentes no caso de
fracasso do incorporador, por atraso injustificado, paralisação de obras ou
falência. Esse direito materializa-se, através de decisão assemblear,
vinculativa para a maioria, de destituir o incorporador e prosseguir nas
obras, com ou sem um novo incorporador, o que se faz sem prejuízo do
direito de pleitear perdas e danos do incorporador destituído (artigos 34, III e
VI e 49, da lei 4.591/64 e artigo 43, da lei 7.661/45). Na hipótese destituição,
o patrimônio era na prática destacado, e os adquirentes somente
respondiam pelos débitos previdenciários, necessários à obtenção de
certidão negativa de débito a ser averbada com a baixa da construção, além
do IPTU não pago. As próprias hipotecas em favor de bancos vinham sendo
questionadas, ultimamente, quanto à sua oponibilidade aos compradores.
Tendo em vista que toda incorporação nada mais é do que a soma dos
interesses dos adquirentes que nela aplicam recursos na medida em que a
construção evolui, aliado à marcante função social dessa atividade, teve o legislador
o cuidado de possibilitar a separação da incorporação, com os direitos pessoais e
reais a ela inerentes, do patrimônio geral do incorporador. De igual maneira também
já observou FRANCISCO ARNALDO SCHMIDT103, para quem a LCI já contava com
“manifestações embrionárias” da autonomia patrimonial e funcional da incorporação
imobiliária:
A Lei 10.931, de 02 de agosto de 2.004, entre outras disposições,
acrescentou ao arsenal jurídico pertinente às incorporações imobiliária, a
figura do “patrimônio de afetação (...).
Entretanto, já na Lei 4591/64, existem dispositivos que podem ser
considerados manifestações embrionárias do instituto. Assim, por exemplo,
o art. 40, segundo o qual, ocorrendo a rescisão do contrato de alienação do
terreno de seu proprietário para o incorporador, resolvem-se também os
contratos de venda das frações ideais do terreno firmados por este, o que
gera ao adquirente das unidades futuras que não deu margem à rescisão, o
direito a ser indenizado, e, se o incorporador não o fizer, a obrigação passa
ao alienante do terreno, em favor de quem consolida-se a propriedade do
terreno e das acessões, mas a responsabilidade patrimonial deste é limitada
ao próprio terreno do empreendimento e às obras acrescidas, não
contaminando o restante do seu patrimônio.
Também o art. 58, inc. I e II da Lei 4591/64, quando, no regime construtivo
de administração, ou “a preço de custo”, determina que todas as notas e
faturas de pagamento de gastos da construção sejam emitidos para aquele
103
89.
SCHMIDT, Francisco Arnaldo. Incorporação imobiliária. 2ª Ed. Porto Alegre: Norton Editor, 2006, pp.88-
88
condomínio de obra, em nome de quem também deverá ser aberta conta
corrente bancária específica para girar toda movimentação financeira
pertinente, sem misturá-la com outras contas bancárias do incorporador e
de outras obras suas.
A Medida Provisória n° 2.221/01, porém, foi o prime iro provimento legal
baixado com o propósito declarado de instituir e regular o instituto do
patrimônio de afetação.
Outro exemplo de atribuição de autonomia funcional às incorporações
imobiliárias, encontra-se no art. 65, § 1º, II, por meio do qual se tentou obrigar a que
os recursos, quando gerados nas incorporações com construção sob regime de
administração, fossem utilizados exclusivamente na obra sob pena configurar prática
criminosa104.
Também resultado do encontro entre direitos e reais e obrigacionais na
incorporação, o art. 40 da LCI reconhece a construção como propriedade dos
adquirentes na proporção individualizada dos pagamentos por eles realizados. Prevê
o dispositivo que, rescindido o contrato de compra e venda do terreno em que o
incorporador promove a incorporação e retornando seu domínio ao alienante
original, este haverá de pagar aos adquirentes pela construção sobre ele existente,
ao invés de fazê-lo ao incorporador como forma de indenização por acessão ou
benfeitorias como haveria de se supor tivesse sido realizada por ele na condição de
promotor da incorporação. Até que esse pagamento não ocorra, o proprietário do
terreno não poderá negociá-lo sob pena de nulidade absoluta. Percebe-se aqui,
novamente, que o incorporador não é proprietário das acessões, mas sim o
coordenador de um negócio, o negócio de incorporação, por meio do qual se
angariam recursos junto aos consumidores com o propósito de prestar-lhes um
serviço. Os proprietários das acessões são os adquirentes.
104
“Art. 65. É crime contra a economia popular promover incorporação, fazendo, em proposta, contratos,
prospectos ou comunicação ao público ou aos interessados, afirmação falsa sôbre a construção do condomínio,
alienação das frações ideais do terreno ou sôbre a construção das edificações.
PENA - reclusão de um a quatro anos e multa de cinco a cinqüenta vêzes o maior salário-mínimo legal
vigente no País.
§ 1º lncorrem na mesma pena:
I - o incorporador, o corretor e o construtor, individuais bem como os diretores ou gerentes de emprêsa
coletiva incorporadora, corretora ou construtora que, em proposta, contrato, publicidade, prospecto, relatório,
parecer, balanço ou comunicação ao público ou aos condôminos, candidatos ou subscritores de unidades,
fizerem afirmação falsa sôbre a constituição do condomínio, alienação das frações ideais ou sôbre a construção
das edificações;
II - o incorporador, o corretor e o construtor individuais, bem como os diretores ou gerentes de emprêsa
coletiva, incorporadora, corretora ou construtora que usar, ainda que a título de empréstimo, em proveito
próprio ou de terceiros, bens ou haveres destinados a incorporação contratada por administração, sem prévia
autorização dos interessados”. (grifamos)
89
A autonomia patrimonial da incorporação é uma imposição que brota
naturalmente da própria maneira de ser desta atividade. Dizendo como dito que o
incorporador vende para depois construir, certo é que promove a edificação com
recursos alheios, entregues em razão da confiança depositada em sua pessoa.
Neste sentido MELHIM NAMEN CHALHUB105 observa que
A atividade da incorporação imobiliária é naturalmente vocacionada para a
afetação patrimonial, seja em razão da relativa autonomia de cada
empreendimento, considerado de per si, seja por força da antecipação
parcial de pagamento por parte dos adquirentes. A incorporação, assim, tem
estrutura econômico-financeira capaz de propiciar a realização do negócio
com suas próprias forças, ou seja, com recursos financeiros gerados por si
mesma, independente de outras fontes de receita.
E de fato, se analisado o papel preponderante do incorporador imobiliário,
bem assim o papel que ele exercia antes da tipificação do contrato incorporativo e
ainda exerce, ver-se-á que a propriedade não é a “pedra de toque” de sua atividade.
Pode-se dizer até que o direito real de propriedade sobre o terreno, exercitável pelo
incorporador ou por quem lhe haja outorgado poderes para que sobre ele se
promovesse a incorporação, configura a atribuição de uma posição jurídica com
prerrogativas maiores do que as necessárias para a realização do contrato de
incorporação; uma desproporção entre o fim (promoção da construção) e os direitos
conferidos pelo meio (a propriedade)106. Ao direito de propriedade do incorporador
sobrepõe-se a função social107 que a incorporação busca realizar, uma vez que os
105
CHALHUB, Melhim Namen. Proteção patrimonial dos adquirentes nas incorporações imobiliárias.
Disponível
em
<http://www.melhimchalhub.com/files/docs/PROTECAO_PATRIMONIAL_DOS_ADQUIRENTES.pdf>.
Acessado em 17.07.2009.
106
Essa mesma observação a doutrina tem feito em relação à propriedade fiduciária em garantia, conforme
MARIA JOÃO ROMÃO CARREIRO VAZ TOMÉ e DIOGO LEITE DE CAMPOS: “Diz-se que se atribui ao
fiduciário uma posição jurídica mais forte do que aquela exigida pelo objectivo econômico que serve. Refere-se,
a este propósito, uma grande desproporção entre os meios e o fim que o negócio visa atingir – utilização de um
negócio mais forte para atingir um escopo econômico mais fraco. Transmite-se o direito de propriedade em
ordem a obter um resultado que, do ponto de vista jurídico, não exige esta transferência. Em sentido contrário,
pode lembrar-se a dificuldade de sustentar que o meio técnico adoptado é mais amplo do que o intuito
econômico prosseguido pelas partes quando seja claro que os efeitos reais do negócio, seriamente queridos
pelas partes, correspondem plenamente à pretensão econômica das mesmas que, de outro modo, na ausência
deste particular mecanismo, não poderiam em geral, atingir o resultado visado”. (TOMÉ, Maria João Ramão
Carreiro Vaz; CAMPOS, Diogo Leite de. A propriedade fiduciária (trust): Estudo para a sua consagração no
direito português. Coimbra: Almedina, 1999, p. 200).
107
Consoante observa FRANCISCO CARDOZO OLIVEIRA, a função social da propriedade não coincide
necessariamente com sua função econômica, tendendo a ser mais ampla que ela. (OLIVEIRA, Francisco
Cardozo. Hermenêutica e tutela da posse e da propriedade. Rio de Janeiro: Forense, 2006, pp. 243-244).
90
direitos reais decorrentes de sua condição de proprietário não devem ser garantidos
em prejuízo de direitos de natureza pessoal ou de natureza pessoal com efeitos
reais que se estabelecem em favor dos adquirentes, mormente porque o sucesso da
atividade do incorporador não se traduz por acúmulo de direito de propriedade em
seu favor, mas sim pela promoção de atos que garantem o surgimento de novos
direitos de propriedade em favor dos adquirentes consumidores. O próprio conceito
de incorporador108 dá conta de que ele é a pessoa que “promove” a construção,
podendo ser ou não o construtor, podendo ter ou não a propriedade do terreno. O
incorporador, na realidade, se põe como alguém dotado de conhecimento técnico e
negocial para levantar uma edificação com recursos e forças de terceiros. Antes de
mais nada, o incorporador é um “administrador de interesses”: dos interesses do
proprietário do terreno e do construtor (quando não sejam o próprio incorporador),
dos interesses dos compradores e eventualmente dos interesses do agente
financeiro que tenha concedido crédito para promover a incorporação. Pondo em
prática seu projeto, o incorporador gere a sinergia de recursos e forças que se
voltam para alcançar objetivo coletivo de concluir a obra. O incorporador é ao
mesmo tempo, como já observou CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA109, um corretor
porque aproxima o dono do terreno e os compradores quando não seja ele mesmo o
seu proprietário; um mandatário porque pode vender a fração ideal de terreno em
nome e com procuração do dono do terreno; um gestor de negócios porque gere
interesses de terceiros voltados à conclusão da obra; um industrial da construção
civil; um empresário ou comerciante; um “banqueiro-financiador” porque é normal
que venda a prazo.
Para o bom desenvolvimento da atividade de incorporação imobiliária
prescinde-se de um direito real de propriedade com todas as prerrogativas que ele
tradicionalmente confere, contrapondo o incorporador proprietário e os adquirentes
por via da sujeição passiva universal. Em favor da sociedade e dos próprios e
verdadeiros interesses do incorporador é que os direitos e obrigações vinculados à
incorporação merecem ser destacados de seu patrimônio geral, recebendo assim
108
Vejam-se, a propósito, os arts. 28, 29, 30, 31, 32, ‘a’ e ‘m’; dando conta de que o incorporador pode
promover a construção em terreno alheio mediante contratação de um construtor, reservando-se a si apenas
atividade de idealizar a obra, contratar a forma de alienação das frações ideais de terreno e também a construção,
que pode ser realizada por ele ou por um terceiro.
109
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. 10ª ed., Rio de Janeiro: Editora Forense,
2000, pp. 231-233.
91
uma função social inerente aos direitos que nascem com registro (art. 32), na
matrícula do terreno, da obra que se vai construir110. Consoante referido por
FRANCISCO CARDOZO OLIVEIRA111, a função social integra a estrutura do direito
de propriedade de modo a subordiná-la a “uma orientação finalística que considera o
uso da coisa e a relação social e historicamente situada entre proprietários e não
proprietários”.
O conceito de propriedade e direito real segundo o Código Napoleônico não
atende de maneira satisfatória a multiplicidade de interesses presentes na
incorporação imobiliária nem colabora para com a função social que, no caso, não é
exatamente uma função da propriedade, mas sim da atividade de incorporação
imobiliária; função essa que se cumpre mediante a conclusão da edificação e o
pagamento de todas as obrigações que, pelo desenvolvimento da atividade do
incorporador, comunicam-se entrando em um estado de sinergia sustentado por
interesses individuais homogêneos representados pelo desejo de ver a obra
concluída. Aqui a outrora “sacralização” do direito real de propriedade perde
importância e, sob influência dos direitos pessoais obrigacionais112, modifica-se e
com eles se funde de modo a criar um todo, em parte direito real e em parte pessoal,
sem que haja prevalência de um sobre o outro como resultado de funcionalização da
propriedade inserida no mercado de consumo113. A propriedade existe, continua a
existir, mas como uma nova espécie de propriedade sobre a qual se pode referir
como sendo a propriedade incorporativa, representativa de um direito “quase-real” e
110
Sobre a natureza de direito real que surge com o registro da incorporação na matrícula do terreno, veja-se
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. 10ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, pp. 288291.
111
OLIVEIRA, Francisco Cardozo. Hermenêutica e tutela da posse e da propriedade. Rio de Janeiro:
Forense, 2006, pp. 241-242.
112
Como superação da dicotomia entre direitos reais e direitos pessoas obrigacionais, PIETRO PERLINGIERI
propõe um abordagem da situação jurídica de modo a que dela sobressaia a função sobre a estrutura, perdendo o
direito real seu caráter de prevalência sobre os direitos pessoais de modo a que se destaque deste confronto a
“função” sobre a “estrutura” (PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil
constitucional. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, pp. 202-203 e 210).
113
Sobre o assunto ROBERTA MAURO E SILVA escreve que “[...] o novo direito dos contratos deve inspirarse na funcionalização do mercado em prol da pessoa, transformando sua disciplina quando a contratação
envolve, v. g., a aquisição de bens essenciais à manutenção da vida digna, bem como a sua disponibilidade no
mercado.”.(SILVA, Roberta Mauro e. Relações reais e relações obrigacionais: proposta para uma nova
delimitação de suas fronteiras. In TEPEDIDO, Gustavo (coord.). Obrigações: estudos na perspectiva civilconstitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 87).
92
“quase-pessoal”. Essa nova forma de propriedade é fruto da modernidade, que
suplanta e continua a suplantar esquemas amplos e rígidos de sistematização e
classificação das relações jurídicas (direito real versus pessoal, força inter parts
versus erga omnes, etc) típicos de positivismo jurídico114, em prol de microssistemas
especializados que, ao menos na atividade de incorporação, têm como objetivo
realizar uma segregação de riscos por meio de delimitação de uma rede contratual.
Não há que se falar, portanto, em direito real do incorporador ou do
proprietário do terreno segundo a teoria clássica. Como já observara EDUARDO
TAKEMI KATAOKA115:
Hoje não há apenas uma, mas várias propriedades muito diversas entre si.
Por exemplo, a propriedade fundiária urbana e rural, a propriedade
acionária, a propriedade intelectual, a propriedade de bens de consumo etc.
Cada uma destas propriedades têm uma disciplina jurídica própria, sendo
unificadas pela sua função comum.
[...] não é necessário prosseguir para mostrar que a propriedade
efetivamente mudou, e não pouco. De uma propriedade unitária, concebida
como propriedade da terra, com a sua disciplina inteiramente centrada no
código civil de cada país, passa-se à era das propriedades, muito diversas
entre si e ainda regulamentadas por diplomas extravagantes e diversos
códigos. Está-se diante de uma nova propriedade, fragmentada e inserida
em um sistema em que ela perde a sua centralidade de direito por
excelência para tornar-se um instrumento de realização de interesses não
proprietários. Isto porque a tônica passa a ser a sua função social, garantia
da realização do grande princípio da dignidade da pessoa humana, agora
central. Se antes imperavam a igualdade de disciplina e a liberdade para
negociar, hoje impera o ser humano em sua totalidade, devendo todos os
elementos sistêmicos, em face deste vetor, contribuir para sua
concretização.
Essas características da incorporação a seguem desde a origem e foram,
ainda que de forma velada, reconhecidas pela LCI. O patrimônio de afetação, então,
veio para deixar à mostra a autonomia funcional da incorporação, bem assim, mitigar
de forma expressa o direito de propriedade do incorporador.
114
Sobre a regularidade e sistematização, escrevera BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS: “A ordem positiva
tem, portanto, as duas faces de Janus: é simultaneamente, uma regularidade observada e uma forma
regularizada de produzir regularidade, o que explica que exista na natureza e na sociedade. Graças à ordem
positivista, a natureza pode tornar-se previsível e certa. Isto explica a diferença, mas também a simbiose, entre
as leis científicas e as leis positivas. A ciência moderna e o direito moderno são as duas faces do conhecimentoregulação”. (SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da
experiência. Volume I. 5ª ed. São Paulo: Cortez Editora, 2005, p. 141).
115
KATAOKA, Eduardo Takemi. Declínio do individualismo e propriedade. In TEPEDINO, Gustavo (coord.).
Problemas de direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 462.
93
III.2 FONTES DO PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO
Dizem sobre o patrimônio de afetação tratar-se ele de instituto jurídico em
função do qual determinados bens são apartados do patrimônio geral de um
determinado sujeito de direito de modo a que atendam e contribuam para que
finalidades específicas sejam alcançadas, proporcionando, ainda, a segregação de
risco a que se sujeitariam esses bens se permanecessem integrados no patrimônio
geral do sujeito, caso este em que sofreriam os efeitos decorrentes, por exemplo, de
uma falência, insolvência ou de uma constrição judicial qualquer. Sobre o assunto,
CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA116 se refere dando notícia de
Os escritores modernos imaginaram a construção de uma teoria chamada
afetação, através da qual se concebe uma espécie de separação ou divisão
do patrimônio pelo encargo na disposição do bem, e, portanto, na sua
saída do patrimônio do sujeito, mas na sua imobilização em função de uma
finalidade. Tendo sua fonte essencial na lei, pois não é ela possível senão
quando imposta ou autorizada pelo direito positivo, aparece toda vez que
certa massa de bens é sujeita a uma restrição em benefício de um fim
específico.
No campo da atividade de incorporação de imóveis, a afetação patrimonial,
com as alterações introduzidas pela Lei 10.931/2004, opera um arranjo no direito de
propriedade exercido pelo incorporador sobre os direitos oriundos da edificação,
adequando-os à persecução do término da obra como forma de proteção do
interesse da comunidade de adquirentes relacionada àquela construção em
específico e proteção também dos demais credores cujos créditos estejam ligados à
existência do empreendimento. O acervo patrimonial que compõe cada incorporação
imobiliária – o terreno, as acessões, as receitas provenientes das vendas, as
obrigações vinculadas ao negócio – realizada a segregação patrimonial, passa a
submeter-se à exclusiva finalidade de concluir a obra. No dizer de MELHIM NAMEM
CHALHUB117:
116
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, v. I. Rio de Janeiro: Editora Forense, 21ª Ed.,
2005, p. 398, negritos nossos.
117
CHALHUB, Melhim Namem. Da incorporação imobiliária. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar
Ltda., 2003, pp. 68-69.
94
Pela afetação constitui-se um patrimônio especial que, embora integrante
do patrimônio geral da empresa incorporadora, permanece incomunicável
até que se conclua a incorporação, não se comunicando nem com o
patrimônio geral do incorporador nem com outros patrimônios de afetação
que a empresa tenha constituído, razão pela qual não sofre os efeitos de
eventuais desequilíbrios da empresa incorporadora.
Por efeito da afetação, as receitas provenientes de cada patrimônio de
afetação são reservadas para exclusivo cumprimento das obrigações
vinculadas à incorporação respectiva, vedado o desvio de recursos de um
empreendimento para outro ou para o patrimônio geral do incorporador. O
volume de recursos afetados, entretanto, limite-se ao quantum necessário à
execução da incorporação, estando excluídas da afetação, obviamente, as
quantias que excederem desse limite, podendo o incorporador delas se
apropriar sem restrição alguma.
[...]
A afetação patrimonial protege os credores vinculados à incorporação, entre
eles os adquirentes das unidades imobiliárias, os trabalhadores da obra, o
fisco, a previdência, a entidade financiadora, os fornecedores, etc. Visa
esse regime assegurar a conclusão da obra e a entrega das unidades aos
adquirentes e, para esse fim, estes podem assumir a administração da
incorporação em caso de atraso injustificado da obra ou em caso de
falência; considerando a incomunicabilidade do patrimônio de afetação, os
adquirentes, ao assumir a administração, estão obrigados a destinar as
receitas da incorporação exclusivamente ao pagamento dos seus próprios
débitos, vedada sua utilização para pagamento de débitos não vinculados à
incorporação, entre eles, os decorrentes das atividades gerais da empresa
incorporadora.
Em caso de falência da empresa incorporadora, os créditos vinculados a
uma incorporação sob afetação não precisarão ser habilitados no Juízo da
falência, pois, estando vinculados àquela específica incoporaçãopatrimônio-de-afetação, esses créditos serão satisfeitos com os recursos
desse patrimônio.
A inspiração do patrimônio de afetação, no caso das incorporações reguladas
pela lei brasileira, pode ser encontrada em vários institutos jurídicos já conhecidos
tanto no Brasil quanto no exterior.
Como já referido, a redação original da LCI apenas antevia a teoria da
afetação na atividade de incorporação imobiliária, possibilitando que os adquirentes
destituíssem o incorporador e assumissem o término da construção, chamando para
si, de forma imperfeita e insuficientemente regulada, o acervo patrimonial
representado pelos direitos e obrigações relacionados à determinada incorporação.
Não obstante, a garantia dos adquirentes, pelo sistema original da LCI, somente se
realiza caso estes decidissem concluir a obra. Do contrário, ocorre a arrecadação do
empreendimento pela massa falida restando aos adquirentes se habilitarem como
credores preferenciais. Não obstante, a opção dos adquirentes pela retomada da
obra, nesse sistema original da LCI, faz-se sempre cheia de incertezas ante a
deficiência da LCI e o ataque dos credores do incorporador, que sempre veem na
95
construção paralisada - propriedade titulada em nome do incorporador e atestada
pelo registro imobiliário - uma garantia para realização de seus créditos. A questão
realmente chamou atenção quando, entre as décadas de 1980 e 1990, despontou a
insolvência de numerosos incorporadores pelo país, tendo como clientes
(adquirentes) milhares de famílias. Naquele momento o Judiciário foi chamado para
decidir diversos conflitos envolvendo a possibilidade de retomada das obras e as
hipotecas constituídas pelos incorporadores em favor de instituições financeiras
como garantia de mútuos concedidos tanto para a própria construção do
empreendimento como para finalidades outras.
De uma dessas questões resultou a edição da Súmula 308 pelo Superior
Tribunal de Justiça, consolidando o entendimento segundo o qual “A hipoteca
firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração
da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do
imóvel”. Com o fim prático, declarado pelo Judiciário, da garantia hipotecária que
tradicionalmente era ofertada aos agentes financeiros como forma de garantia real
para os financiamentos concedidos a incorporadores; o mercado de crédito
imobiliário, ainda que de maneira tímida, passou a exigir estruturas negociais
capazes de apartar do patrimônio geral do incorporador, o empreendimento em
função do qual a instituição financeira houvesse concedido financiamento, bem
assim os direitos e obrigações a ele vinculados. Inexistente, à época, lei regulando
o instituto do patrimônio de afetação nas incorporações imobiliárias, a “engenharia
jurídica” se resumiu em condicionar a concessão de financiamentos à criação de
Sociedades de Propósito Específico (SPE’s) para cada construção que contasse
com financiamento bancário. A intenção era criar uma pessoa jurídica cuja finalidade
social, prevista em seus estatutos, restringisse-se à construção de determinada
edificação (aquela para qual se concedia o financiamento). Concluída a obra e
havendo devolução do mútuo concedido pela instituição financeira, operava-se a
extinção da SPE.
Essa solução jurídica (SPE’s) traz implícita a intenção de adotar-se a afetação
patrimonial nas incorporações imobiliárias como forma de segregar o risco da
atividade geral do incorporador, na medida em que a criação de uma pessoa jurídica
que tivesse como objeto apenas a conclusão do edifício diminuiria riscos advindos
de outros negócios jurídicos de que tivesse participado o incorporador; risco esse
96
que, como se sabe, foi amargamente suportado pelos agentes financeiros118 que
viram suas hipotecas sendo declaradas ineficazes pelo Judiciário.
Ao lado dessa inspiração de ordem prática derivada da Súmula 308 do STJ, o
patrimônio de afetação conta com fontes de importância maior. Uma delas, quiçá a
mais relevante, seja o trust, instituto largamente utilizado em países do common law,
em especial Inglaterra e Estados Unidos da América. Sobre sua adoção como fonte,
MELHIM NAMEM CHALHUB, autor do texto que deu origem, com modificações, ao
projeto remetido ao Congresso Nacional de que resultou a Lei 10.931/2004, traçou
as linhas gerais que adequariam o trust às incorporações imobiliárias no Brasil119.
Daí então convém aqui descrever o trust também em linhas gerais, inclusive porque
muitas das soluções que para ele se adotam podem ajudar a responder dúvidas que
surgirão da aplicação do patrimônio de afetação às incorporações.
Trata-se o trust de uma espécie de negócio fiduciário em sentido amplo
porque se baseia na confiança que uma parte deposita na outra relativamente à
atribuição de uma titularidade patrimonial. Surgido na Inglaterra durante a Idade
Média, no contexto do feudalismo, quando então foi inicialmente designado de use,
o trust tinha por função permitir que os vassalos contornassem as prerrogativas que
o suserano tinha sobre sua propriedade imobiliária. Com o tempo e por obra de
eclesiásticos ocupantes do cargo de “chancellor” - um tipo de conselheiro real para
questões de natureza moral120 - o use passou a ser designado por trust. Sobre as
118
Notadamente com a célebre falência da incorporadora ENCOL.
119
CHALHUB, Melhim Namem. Trust: Perspectivas do direito contemporâneo na transmissão da propriedade
para administração de investimentos e garantia. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar, 2001.
120
Sobre o papel desenvolvido pelo “chanceler” durante a consolidação do use em trust, Eduardo Salomão Filho
descreve:
“A justiça medieval inglesa era, contudo, impotente para levar em consideração os direitos de beneficiários
de “uses”, pois assentava-se basicamente nos tribunais encarregados da aplicação da “common law”, formais
e legalista. Ao lado dos tribunais existia, entretanto, um importante funcionário público, o “Chancellor”, cuja
inteferência passou a ser fundamental para eficácia jurídica dos “uses”.
O “Chancellor” era inicialmente um eclesiástico a quem se atribuía a função de conselheiro do rei, dada
sua capacidade de lidar com questões de consciência, bem como a função de guarda do selo real. O rei sempre
teve poder jurisdicional a par dos tribunais por ele constituídos, o que representava o reflexo de sua situação de
preponderância, podendo os súditos, em qualquer caso, recorrer diretamente a ele em situações jurídicas
habituais. Ao fazerem isso, as petições, baseadas primordialmente em questões de justiça natural, insuscetíveis
de acolhimento pela “cammon law”, tendiam a ser passadas à análise do “Chancellor” devido a sua formação
eclesiástica e seu papel de diretor da consciência do rei”. (SALOMÃO NETO, Eduardo. O trust e o direito
brasileiro. São Paulo: Editora LTr, 1996, p. 14).
97
origens do instituto dão notícia MARIA JOÃO RAMÃO CARREIRO VAZ TOMÉ e
DIOGO LEITE DE CAMPOS121:
O use foi introduzido na Inglaterra após a conquista normanda (1066).
[...]
Visava fundamentalmente facilitar a transmissão da propriedade fundiária
no seio da família.
Por exemplo, quando um vassalo falecia, o seu suserano tinha o direito de
ter a terra na sua posse e de administrar por sua conta até que o herdeiro
do vassalo atingisse a maioridade. O instituto do use permitiu evitar este
resultado, porquanto o vassalo transferia o seu patrimônio a amigos em
trust, que se vinculavam a tê-lo em use para o disponente, durante a sua
vida e, após a sua morte, para o seu filho mais velho quando atingisse a
maioridade. Deste modo, a propriedade fundiária passava para a esfera do
herdeiro mediante a prática de um acto jurídico inter vivos e não por via
sucessória, nunca chegando assim a nascer os direitos do suserano feudal.
[...]
O trust encontra pois a sua origem na Idade Média, na prática do ius of
lands. Verificava-se a necessidade premente de ultrapassar os limites
jurídicos impostos à propriedade fundiária. O sistema feudal impunha ao
vassalo (tenant) um conjunto de obrigações perante o seu suserano (lord),
que variava em conformidade com o tipo de relação estabelecida entre eles
aquando da concessão da terra (tenure). Entre os deveres do tenant
(incidents of tenure), alguns comuns a diversos tipos de tenure,
encontravam-se o escheat (o regresso da terra à esfera do lord no caso de
o tenant sucumbir sem herdeiros ou de ser condenado por delitos de
particular gravidade), a homage (o reconhecimento da supremacia do lord
acompanhado de juramento de fidelidade e de assistência económica em
dadas circunstâncias), a wardship (a aquisição, por parte do lord, do poder
de tutela sobre os herdeiros menores do tenant, com consequência do
poder de gozar a terra sem a obrigação de prestação de contas até a
maioridade do pupilo) e o marriage (a atribuição ao lord do direito de, à
morte do tenant, escolher um cônjuge para o herdeiro solteiro, ou de obter
um montante pecuniário a título de indenização no caso de ausência do
casamento). O proprietário fundiário não podia dispor por via testamentária
da sua terra e o seu herdeiro legítimo era sempre e em qualquer caso
obrigado a pagar ao lord a renda de um ano pelo privilégio da sucessão.
[...]
Com o decurso do tempo, o chanceler estabeleceu o respeito dos direitos
do beneficiário (cestui que use) não apenas pelo trustee, mas também pelos
seus herdeiros e, assim, por qualquer terceiro adquirente a título gratuito
dos bens constituídos em use. Consagrou, por último, a oponibilidade do
direito do cestui que use a terceiros adquirentes a título oneroso que
conhecessem, ou fosse para si cognoscível, que a transmissão dos bens
ou direitos violava o trust. Os direitos do cestui que use in equity eram,
deste modo, exercidos contra terceiros em certas e determinadas
circunstâncias. A partir do momento em que o tribunal da equidade, de
acordo com a máxima “equity follows the law”, tornou os direitos do
beneficiário semelhantes àqueles reconhecidos at law, surgiu uma nova
terminologia: os direitos do trustee at law foram designados como legal
ownership e os do cestui que use sobre os bens constituídos em trust como
equitable ownership. Em virtude de também serem considerados titulares de
direitos sobre os bens, os beneficiários podiam opor os seus direitos a um
leque alargado de pessoas e exigir a adopção dos remédios adequados.
121
TOMÉ, Maria João Ramão Carreiro Vaz; CAMPOS, Diogo Leite de. A propriedade fiduciária (trust):
Estudo para a sua consagração no direito português. Coimbra: Almedina, 1999, pp. 21-24.
98
Por outro lado, como a função do trustee consistia em administrar os bens
fiduciados, a existência do trust não obstava à sua alienação.
No caso, trust significa confiança. E era com esta conotação que os negócios
se operavam na idade média entre os vassalos, quando um deles em confiança (in
trust) passava a propriedade de seus bens ao outro, acreditando que este último,
mesmo sem haver obrigação que à época fosse de natureza legal, deles faria uso ou
os transferiria em benefício de um terceiro seguindo as instruções recebidas do
vassalo fiduciante122. Com reconhecimento do chanceller, a transferência in trust
entre os vassalos implicou a modificação do direito de propriedade daquela época,
permitindo que ela passasse a ser analisada do ponto de vista de sua titularidade
formal, de sua administração e de seu benefício econômico de forma correlacionada
com diversos sujeitos de direito ao invés de sê-lo em consideração apenas de uma e
única pessoa com direito de propriedade. Assim, não obstante o trustee tivesse a
propriedade formal, seu beneficiário econômico era um terceiro, o cestui que trust,
de modo a restar ao trustee apenas um dever de administração do bem. Assim,
apesar de contar com todas as prerrogativas legais que o titulo de proprietário à
época atribuía e não obstante a constituição dessa propriedade ter se dado apenas
para contornar os direitos legais do suserano, a regra moral, confirmada por
conselhos e decisões do “chancellor”, obrigava o vassalo a cumprir as instruções
passadas com o bem, tendo-o e usando-o em sintonia com a vontade do proprietário
anterior. Daí porque se dizer até os dias de hoje que o trust centra-se “na concepção
pela qual uma pessoa pode ser investida de direito de propriedade sobre
122
MARIA JOÃO RAMÃO CARREIRO VAZ e DIOGO LEITE DE CAMPOS descrevem o trust como sendo
“[...]aquelas situações em que um sujeito transfere a titularidade de uma parte do seu patrimônio a terceiro,
estipulando a sua administração em benefício de outrem. Em virtude da separação entre a titularidade, a
administração e o benefício econômico, a administração dos bens ou direitos é exercida em benefício de outrem
em conformidade com o objectivo estabelecido no acto constitutivo do trust. Contudo, a separação operada
entre o gozo e a administração não se traduz na característica fundamental deste instituto, pois que a mesma
pode resultar da adopção de outros mecanismos jurídicos. Na verdade, o traço distintivo do trust consiste em
tanto o trustee como o beneficiário serem titulares de direitos reais sobre os bens constituídos em trust. De um
lado, o trustee, enquanto titular dos bens ou direitos tem o poder de celebrar negócios jurídicos, em seu nome,
respeitantes aos bens ou direitos trust, mesmo que em infraccção ao acto constitutivo do trust. De outro lado,
em virtude de os seus direitos não revestirem natureza meramente obrigacional, o beneficiário tem o poder de
seqüela sobre os bens em trust e não é afectado pela insolvência ou falência do trustee. Afirma-se assim que o
trust cria uma nova estrutura no direito de propriedade”. (TOMÉ, Maria João Ramão Carreiro Vaz; CAMPOS,
Diogo Leite de. A propriedade fiduciária (trust): Estudo para a sua consagração no direito português.
Coimbra: Almedina, 1999, p. 32).
99
determinado bem ou direito, mas para realização de objetivo especial, exercendo
essa propriedade em confiança, em benefício de outra pessoa”123.
Como relação jurídica, a existência de um trust se verifica pela presença de
seus elementos constitutivos básicos: vontade, objeto e partes. A vontade se têm
pela manifestação de uma pessoa, designado na relação como instituidor do trust (o
settlor), expressando desejo de transferir algum bem (res, corpus ou subject matter)
a um terceiro (o trustee ou trustor) que, aceitando-o, será seu proprietário sob a
condição de administrá-lo em favor de um beneficiário (o cestui que trust, aquele que
confia) ou ainda a ele transferir o bem no futuro.
Em geral os trusts têm objetivo de atender os interesses de beneficiários
específicos determinados ou determináveis, havendo, todavia, trusts com fim de
realização de objetivos outros, relativos a interesses coletivos difusos124, de natureza
pública ou caritativa.
O instituidor do trust pode designar a si mesmo como trustee e atribuir-se o
dever de administrar bem que já é seu em favor de um beneficiário, bem assim
comprometer-se a realizar sua transferência ao beneficiário indicado. Também pode
designar um terceiro como trustee e a si mesmo como beneficiário. Não pode,
todavia, designar a si mesmo como beneficiário de todos os seus bens pura e
simplesmente, o que possibilitaria que fraudasse seus credores na medida em que
estes ficariam impossibilitados de satisfazer seus créditos com base no patrimônio
do devedor.
Os trusts comportam duas grandes classificações: charitable ou public trusts e
private trusts; aquela voltada ao interesse público em geral, atendendo interesses
coletivos, sem beneficiário específico, com frequência concernente à realização de
objetivos caritativos; e este vocacionado ao atendimento de interesses privados de
natureza econômica com beneficiários determinados ou determináveis. Os private
trusts, por sua vez, podem ser classificados em express trusts e constructive trust
conforme seja ou não exigível a existência de uma declaração de vontade para
constituir-se o trust.
123
CHALHUB, Melhim Namem. Trust: Perspectivas do direito contemporâneo na transmissão da propriedade
para administração de investimentos e garantia. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar, 2001, p. 25.
124
São os chamados public trust ou charitable trust.
100
Os express trusts seguem a mais fiel origem do trust medieval. Dizendo
respeito a interesses patrimoniais disponíveis, dependem de manifestação de
vontade do settlor e aceitação do trustee. Já a declaração de vontade e a aceitação
da condição de trustee podem ser dispensadas nos constructive trusts, quando
então decorrem de previsão de lei125, ou seja, constatado um fato previsto em lei, à
pessoa indicada atribuiu-se, ope legis, a condição de trustee com todas as
obrigações inerentes à função, dentre elas a de admirar os bens confiados.
Nos dias de hoje, desaparecido o receio de que os bens sejam apropriados
pelo suserano, a causa do trust alterou-se, permanecendo, entretanto, a vontade de
uma pessoa (settlor) satisfazer interesses de alguém indicado como beneficiário
(cestui que trust) com manutenção da administração e da propriedade sob as mãos
de terceiros (trustee) ou do próprio settlor, tornando-a intocável para credores tanto
do settlor, quanto do beneficiário e do trustee. Um desses motivos é a vontade de ter
um profissional que administre os bens e aceite todas as responsabilidades que tem
um trustee, notadamente a de bem administrar e responder por perdas e danos em
decorrência de má gestão, sendo por tal tarefa remunerado como um trustee
profissional: um negócio que no Brasil seria claramente enquadrável como serviço
posto à disposição no mercado consumidor.
A aplicação do trust como objeto de prestação de serviço profissional de
gestão patrimonial revela um desapego ao direito de propriedade como
personificação do subjetivismo, atribuindo-lhe maior mobilidade enquanto circulação
de riqueza, mediante acentuada cisão dos direitos de disposição, uso, gozo e
fruição. A essa nova e já contumaz utilização do trust atribui-se a designação de
management trust126:
[...] o management trust traduz a resposta ao afastamento da propriedade
imobiliária de matriz familiar enquanto forma predominante da riqueza. O
trust moderno respeita a portfolios de complexos conjuntos de bens de
natureza financeira que, na esmagadora maioria dos casos, se traduzem,
em último recurso, em direitos obrigacionais perante os respectivos
emitentes.
125
Enquanto os express trusts resultam da vontade manifestada pelo settlor, os constructive trusts decorrem
diretamente de previsão legal, em situações em que, consideradas as circunstâncias fáticas, o titular da
propriedade tenha os bens em trust apenas para o benefício de terceiros.
126
TOMÉ, Maria João Ramão Carreiro Vaz; CAMPOS, Diogo Leite de. A propriedade fiduciária (trust):
Estudo para a sua consagração no direito português. Coimbra: Almedina, 1999, pp. 26-27.
101
Por outro lado, e ainda como conseqüência das alterações sofridas quer
pela própria natureza dos bens constituídos em trust, quer pela natureza da
função do trustee, assistiu-se a uma modificação da identidade do trustee.
Afirma-se que a feição com que a evolução mais recente dotou o direito dos
trusts se traduz na corporate trusteeship. Não obstante existirem ainda
muitos trustees individuais, o paradigma do trustee actual é aquele do
profissional remunerado, cuja actividade consiste em constituir e cumprir
trusts. O fiduciário societário oferece perícia e garantias. De acordo com o
regime da responsabilidade estabelecido no direito dos trusts, o trustee
arrisca ilimitadamente o seu patrimônio pessoal no caso de não cumprir as
suas obrigações. Impõe-se, nesta matéria, a regra que estabelece o critério
de deligência do profissional razoável. Este risco assumido pelo trustee
informa o trust moderno, garantindo, efectivamente, o beneficiário contra
uma multiplicidade de violações. Acresce que, este risco de
responsabilidade gera um incentivo adicional para o trustee cumprir, de boa
fé, o trust. Uma outra vantagem oferecida pelo fiduciário de natureza
societária traduz-se na sua longevidade.
Feitas essas considerações sobre o trust, é possível um paralelo com o
patrimônio de afetação na incorporação imobiliária, que o enquadre como um
express trust - porque decorre de manifestação de vontade - em que o settlor se
declara o trustee (art. 31-A, caput e § 10º, e art. 31-B) do patrimônio representativo
dos direitos e obrigações vinculados à incorporação, assumindo a obrigação de um
management trust de bem administrá-la em favor dos adquirentes ou beneficiários
(cestui que trust), o que se faz mediante cumprimento da obrigação inerente à
atividade de incorporação, qual seja, a conclusão da obra.
Não há, no civil law, todavia, instituto jurídico que faça as vezes do trust.
Dotado de aplicabilidade a qualquer relação jurídica salvo previsão legal em sentido
contrário, as finalidades do trust e a natureza jurídica da relação que se forma entre
o trustee, o beneficiário e o bem confiado, dadas as prerrogativas que a cada um se
atribuiu, só têm sido alcançadas no civil law, e com ressalvas, em decorrência de
intervenções cirúrgicas do legislador mediante autorização para contratação de
novas espécies de negócio fiduciário, ora configurando forma de garantia, ora meio
de investimento ou de administração. Com efeito,
As relações fiduciárias análogos àquelas decorrentes do trust nos países da
common law são, na civil law, reguladas de diferentes maneiras. Têm uma
estrutura diferente e os direitos conferidos às partes envolvidas são de
natureza diversa. As técnicas fiduciárias, tal como são aplicadas nos
ordenamentos da civil law, apresentam um carácter menos genérico do que
o trust anglo-americano. No direito anglo-saxónico, recorre-se ao mesmo
trust para todas as espécies de propósitos fiduciários e em todas as
ocasiões. Na civil law não existe uma técnica fiduciária genérica, mas antes
102
um número de específicas instituições fiduciárias que variam de acordo com
127
a partes envolvidas ou o propósito visado .
Autor do anteprojeto de que resultou a Lei 10.931/2004, MELHIM NAMEM
CHALHUB em mais de uma oportunidade já se referiu ao trust como fonte do
patrimônio de afetação, cogitando de sua relativa equiparação com a propriedade
fiduciária128, verbis:
Dada a característica fundamental do trust, de criação de patrimônio
separado visando a realização de fins determinados, não raras vezes se
questiona se tais escopos poderiam, nos sistemas da civil law, ser
alcançados por meio de criação de nova pessoa jurídica ou de mandato,
entre outros instrumentos. Essas figuras, entretanto, não são plenamente
equivalentes.
[...]
À procura dessa assimilação, sempre se volta a atenção o negócio
fiduciário, que se caracteriza pela atribuição de titularidade pela, em nome
próprio, mas no interesse, ou também no interesse, do transmitente ou de
um terceiro. Seria uma concepção moderna da fidúcia, já entronizada no
direito positivo de vários países da América Latina, na figura do
fideicomisso, pelo qual os bens fideicomitidos são transmitidos ao fiduciário
sob forma de propriedade fiduciária e não integram o patrimônio desse
último, formando-se com esses bens um patrimônio de afetação.
[...]
De fato, considerando-se que o trust tem como elementos essenciais um
patrimônio determinado e uma afetação, é efetivamente, mediante a
determinação de um patrimônio e sua afetação que se poderia obter a
realização dos efeitos econômicos e jurídicos do trust, isto é, mediante a
atribuição de um direito patrimonial – propriedade fiduciária – a alguém,
para que o administre no interesse de outrem, mantendo-se a propriedade
fiduciária em patrimônio separado.
[...]
A figura que mais se aproxima da estrutura do trust, sem agredir o sistema
romanístico, é a propriedade fiduciária que, no direito positivo brasileiro, é
adotada para fins de administração dos bens imóveis integrantes de
carteiras de fundos de investimento imobiliário, na qual a construção
legislativa se ajusta à estrutura do trust sem deixar de atender o conceito
unitário de propriedade. Trata-se da Lei n° 8.668, de 1993, que, para fins de
organização de fundos de investimento imobiliário, estabelece que (a) os
bens que constituirão a carteira do fundo serão adquiridos pela sociedade
administradora em seu próprio nome, mas em caráter fiduciário, (b) esses
bens terão autonomia em relação aos bens do patrimônio geral da
sociedade administrador, isto é, constituirão um patrimônio de afetação
destinado aos subscritores das quotas do fundo, e (c) a sociedade
administradora é investida do poder-dever de administrar essa carteira,
incluindo o poder de disposição sobre os bens que a compõem, desde que
para atender as finalidades do fundo.
127
TOMÉ, Maria João Ramão Carreiro Vaz; CAMPOS, Diogo Leite de. A propriedade fiduciária (trust):
Estudo para a sua consagração no direito português. Coimbra: Almedina, 1999, p. 199.
128
CHALHUB, Melhim Namem. Trust: Perspectivas do direito contemporâneo na transmissão da propriedade
para administração de investimentos e garantia. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar, 2001, pp. 91, 93, 9596 e 99-100.
103
O negócio fiduciário em sentido strictu iniciou sua jornada no direito pátrio
com propósito de constituição de garantia, previsto no art. 66 da Lei 4.728/65 (Lei de
Mercado de Capitais)129 e, em seguida, no Decreto-Lei 911/64. Outros institutos,
entretanto, conhecidos há bom tempo em nosso sistema, têm-se prestado ao
atingimento de finalidades semelhantes às do trust. É o caso do fideicomisso,
previsto no art. 1.733 do CC/16130 e no art. 1.951 do CC/02131. O fideicomisso,
igualmente fonte de inspiração para o patrimônio de afetação, guarda no Brasil, nos
dias de hoje, a aplicação inicial que fez surgir o trust, relacionada com a
administração de heranças e criação de propriedade resolutiva em favor de terceiros
indicados pelo testador.
Ainda, antes mesmo de sua introdução pela via da incorporação imobiliária,
em que pese a menor aproximação, o patrimônio de afetação já encontrava similar
no direito brasileiro em outros institutos tradicionais como, por exemplo, o encargo a
que ficam sujeitos os bens representados pela massa falida, os bens da pessoa
ausente e do tutelado, os bens das fundações, a herança quanto às dívidas do
falecido e às despesas do inventário, os bens gravados com cláusula de usufruto,
inalienabilidade ou indisponibilidade e o próprio bem de família.
Em todos esses exemplos há uma massa patrimonial que, em maior ou
menor grau, é tida e administrada com objetivos específicos, permanecendo
inatacável por credores outros que não tenham seu crédito originado de relação
jurídica que se relacione à existência, formação e manutenção desse “patrimônio
afetado”.
Em recentes diplomas legais brasileiros, o negócio fiduciário foi previsto com
escopo de investimento por meio de criação de patrimônios de afetação atinentes ao
129
Consoante dá notícia CHRISTOPH FABIAN, em que pese sua inserção no sistema de direito positivo da civil
law ser recente, “na perspectiva histórica, o negócio fiduciário aparece como um instituto que existiu já no
direito romano de forma elaborada e aplicada em várias situações, mas que caiu em esquecimento,
simplesmente desapareceu, e começou a voltar, desde o séc. XIX com estrutura nova e, desde então, alargou o
seu campo de aplicação até hoje”. (FABIAN, Christoph. Fidúcia: negócios fiduciários e relações externas.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2007, p. 19).
130
“Art. 1.733. Pode também o testador instituir herdeiros ou legatários por meio de fideicomisso, impondo a
um deles, o gravado ou fiduciário, a obrigação de, por sua morte, a certo tempo, ou sob certa condição,
transmitir ao outro, que se qualifica de fideicomissário, a herança, ou legado”.
131
“Art. 1.951. Pode o testador instituir herdeiros ou legatários, estabelecendo que, por ocasião de sua morte, a
herança ou o legado se transmita ao fiduciário, resolvendo-se o direito deste, por sua morte, a certo tempo ou
sob certa condição, em favor de outrem, que se qualifica de fideicomissário”.
104
mercado financeiro. É o caso da propriedade fiduciária dos fundos de investimento
imobiliário132 (Lei 8.668/93) e os direitos creditórios decorrentes da securitização de
recebíveis imobiliários133 (Lei 9.514/97). Essas leis se referem ao patrimônio do
Fundo de Investimento e ao patrimônio que lastreia os Certificados de Recebíveis
Imobiliários como sendo de natureza fiduciária. E nestes dois exemplos, há uma
pessoa (fiduciário) gerindo determinado patrimônio em benefício de outrem
(fiduciante). Não obstante o patrimônio pertencer ao fiduciário, sua administração se
dá no interesse do fiduciante, para atingir objetivos determinados, que no caso são
de investimento.
Acentuando o interesse prático do instituto, por obra do atual Código Civil o
negócio fiduciário fora consagrado com certo grau de generalidade mas com espoco
exclusivo de garantia (art. 1.361 e sgts), relacionado a bens móveis.
132
“Art. 1º Ficam instituídos Fundos de Investimento Imobiliário, sem personalidade jurídica, caracterizados
pela comunhão de recursos captados por meio do Sistema de Distribuição de Valores Mobiliários, na forma da
Lei nº 6.385, de 7 de dezembro de 1976, destinados a aplicação em empreendimentos imobiliários”.
“Art. 6º O patrimônio do Fundo será constituído pelos bens e direitos adquiridos pela instituição
administradora, em caráter fiduciário.
Art. 7º Os bens e direitos integrantes do patrimônio do Fundo de Investimento Imobiliário, em especial os bens
imóveis mantidos sob a propriedade fiduciária da instituição administradora, bem como seus frutos e
rendimentos, não se comunicam com o patrimônio desta, observadas, quanto a tais bens e direitos, as seguintes
restrições: [...]”. (grifamos)
133
“Art. 9º. A companhia securitizadora poderá instituir regime fiduciário sobre créditos imobiliários, a fim de
lastrear a emissão de Certificados de Recebíveis Imobiliários, sendo agente fiduciário uma instituição
financeira ou companhia autorizada para esse fim pelo BACEN e beneficiários os adquirentes dos títulos
lastreados nos recebíveis objeto desse regime.
[...]
Art. 11. Os créditos objeto do regime fiduciário:
I - constituem patrimônio separado, que não se confunde com o da companhia securitizadora;
II - manter-se-ão apartados do patrimônio da companhia securitizadora até que se complete o resgate de todos
os títulos da série a que estejam afetados;
III - destinam-se exclusivamente à liquidação dos títulos a que estiverem afetados, bem como ao pagamento dos
respectivos custos de administração e de obrigações fiscais;
IV - estão isentos de qualquer ação ou execução pelos credores da companhia securitizadora;
V - não são passíveis de constituição de garantias ou de excussão por quaisquer dos credores da companhia
securitizadora, por mais privilegiados que sejam;
VI - só responderão pelas obrigações inerentes aos títulos a ele afetados.
(...)
§ 3º A realização dos direitos dos beneficiários limitar-se-á aos créditos imobiliários integrantes do patrimônio
separado, salvo se tiverem sido constituídas garantias adicionais por terceiros.
Art 12. Instituído o regime fiduciário, incumbirá à companhia securitizadora administrar cada patrimônio
separado, manter registros contábeis independentes em relação a cada um deles e elaborar e publicar as
respectivas demonstrações financeiras.
Parágrafo único. A totalidade do patrimônio da companhia securitizadora responderá pelos prejuízos que esta
causar por descumprimento de disposição legal ou regulamentar, por negligência ou administração temerária
ou, ainda, por desvio da finalidade do patrimônio separado”. (grifamos)
105
No tocante à incorporação imobiliária, a versão original da LCI previa que os
adquirentes poderiam concluir a obra em caso de insucesso do incorporador,
retirando, de maneira imperfeita, o empreendimento de seu domínio e poder de
gestão. Ante a realidade que se apresentou nas décadas de 1980 e 1990, editou-se
a Medida Provisória 2.221/2001 introduzindo o patrimônio de afetação. Todavia, a
Medida não foi convertida em lei; foi revogada pela Lei 10.931/2004, que melhorou
as disposições nela inicialmente previstas e introduziu o patrimônio de afetação de
maneira definitiva na atividade de incorporação imobiliária mediante a inserção, no
Título II da LCI, do “capítulo I-A. Do Patrimônio de Afetação” e seus respectivos arts.
31-A a 31-F. Também foram alterados o § 2º do art. 32, o inciso VII do art. 43 e o
caput e o § 2º do art. 50. Na sequência foi editada a Lei de Falência e Recuperação
de Empresas dispondo que, em caso de falência do incorporador, o patrimônio
afetado não é arrecadado pela massa (art. 119, IX, da Lei 11.101/2005), podendo
seguir a execução dos atos necessários ao cumprimento de seu objetivo.
Também acentuando a autonomia funcional das incorporações, a Lei
10.931/2004 criou (arts. 1º a 11) o “Regime Especial de Tributação – RET” para os
patrimônios de afetação, no âmbito federal, de adesão facultativa a critério do
incorporador. Por esse regime, o empreendimento em construção passa a ser
tributado de maneira separada da empresa incorporadora, como se empresa fosse,
nos termos134 do art. 1º. A tributação se dá mediante alíquota de 7% sobre base de
cálculo única representada pela receita mensal do empreendimento (valores
provenientes das vendas) e envolve o pagamento conjunto do “Imposto de Renda
das Pessoas Jurídicas – IRPJ”, “Contribuição para os Programas de Integração
Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público - PIS/PASEP”,
“Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL” e “Contribuição para
Financiamento da Seguridade Social – COFINS”.
134
“Art. 1º. Para cada incorporação submetida ao regime especial de tributação, a incorporadora ficará sujeita
ao pagamento equivalente a sete por cento da receita mensal recebida, o qual corresponderá ao pagamento
mensal unificado dos seguintes impostos e contribuições”.
106
III.3 NATUREZA JURÍDICA DO PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO
A doutrina tem repetido que o patrimônio de afetação nas incorporações
imobiliárias confere maior proteção aos consumidores, na medida em que estes
passam a ter uma “garantia” de que os recursos entregues ao incorporador como
forma de pagamento da aquisição ou promessa de aquisição de unidade imobiliária,
de fato serão aplicados na construção do empreendimento; evitando assim que
sejam desviados para honrar compromissos do incorporador que não tenham
relação direta com o empreendimento.
Como visto, há, na versão original da LCI, o reconhecimento implícito de que
a incorporação goza de autonomia funcional e que a preservação das clássicas
prerrogativas de proprietário atribuídas ao incorporador ou ao proprietário do terreno,
era desnecessária para o bom desenvolvimento da atividade e segurança dos
adquirentes, já que estes se tornam “proprietários progressivamente”, na medida em
que vão realizando os pagamentos previstos no contrato firmado135, no sentido de o
direito real das promessas de compra e venda registradas e a eficácia real daquelas
desprovidas de registros se potencializam a cada parcela de preço integralizada
pelos consumidores adquirentes.
Quando se refere ao patrimônio de afetação aplicado às incorporações
imobiliárias, em geral a doutrina o descreve como uma parcela menor do patrimônio
geral do incorporador, gravada pela execução de uma finalidade cujo atingimento é
administrado pelo incorporador sob a fiscalização dos adquirentes e do agente
financeiro que eventualmente tenha concedido crédito para a construção.
Não obstante, cabe uma reflexão diferente acerca do patrimônio de afetação
tal qual fora inserido na LCI, e, de consequência, sobre as prerrogativas e os limites
que tocam tanto ao incorporador quanto aos adquirentes na relação que mantêm
entre si, na relação com o próprio patrimônio afetado e também na relação que
mantêm com terceiros.
135
Escrevendo sobre as promessas de compra e venda, José Osório de Azevedo Júnior observara que “À medida
em que o crédito vai sendo recebido, aquele pouco que restava do direito de propriedade junto ao
compromitente vendedor, isto é, aquela pequena parcela do poder de dispor, como que vai desaparecendo até se
apagar de todo”. (AZEVEDO JÚNIOR, José Osório de. Compromisso de compra e venda. São Paulo: Saraiva,
1983, p. 7).
107
Pois bem. Toda pessoa tem um patrimônio e todo patrimônio tem pelo menos
um titular. Em que pese haja alguma divergência, têm-se refutado a ideia de
patrimônio sem proprietário136. O patrimônio é, assim, repete a doutrina, uma
extensão da personalidade do sujeito de direito.
Para CLÓVIS BEVILAQUA o patrimônio é composto por todas as relações
jurídicas de natureza patrimonial de uma pessoa, que é o seu titular. CAIO MÁRIO
DA SILVA PEREIRA137 acrescenta que nele se incluem tanto as obrigações
passivas quanto as ativas e que todo patrimônio é marcado pelos princípios da
unidade e da indivisibilidade, vale dizer, cada pessoa tem um único patrimônio que,
por ser único, é também indivisível. O ilustre autor refuta, assim, os casos “em que
parece ocorrer a multiplicidade de patrimônios na mesma pessoa” e contesta a
opinião dada por DE PAGE, segundo quem seriam hipóteses de divisibilidade do
patrimônio “a comunhão parcial, as substituições fideicomissárias, as sucessões
anômalas, a falência, etc”. Para CAIO MAIO, todavia, e com razão, não há, nesses
casos, “pluralidade ou divisibilidade de patrimônio. O que há é a distinção de bens
de procedência diversa no mesmo patrimônio. No mesmo patrimônio, acervos
distintos pela origem ou pela destinação”.
Discorrendo sobre a teoria da afetação patrimonial, ORLANDO GOMES138
afirma que “a idéia de afetação explica a possibilidade da existência de patrimônios
especiais. Consiste numa restrição pela qual determinados bens se dispõem, para
servir a fim desejado, limitando-se, por este modo, a ação dos credores”. Já CAIO
MÁRIO DA SILVA PEREIRA139 considera haver nessa teoria um caráter de novidade
na medida em que rompe com ideia de que o devedor responde pelo pagamento de
suas dívidas com todo seu patrimônio presente e futuro (art. 591 do CPC),
ressalvados aqueles ditos impenhoráveis por força de lei (art. 649 do CPC).
Entretanto, os princípios da unidade e da indivisibilidade do patrimônio seguem
136
Exceção referida pela doutrina encontra-se no art. 1.261 do Código Civil do Quebec, província do Canadá,
que assim dispõe: “O patrimônio fiduciário, formado por bens transferidos em fidúcia, constitui um patrimônio
de afetação autônomo e distinto deste do constituinte, do fiduciário ou do beneficiário, sobre o qual nenhum
deles tem direito real”.
137
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, v. I. Rio de Janeiro: Editora Forense, 21ª Ed.,
2005, p. 391.
138
139
GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 15ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 203.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, v. I. 21 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense,
2005, p. 400.
108
inabalados. Com efeito, o fato de alguns bens, integrantes do patrimônio total,
responderem apenas por uma parte das dívidas de seu titular enquanto os outros
bens podem responder por todas elas, não implica dizer que sejam dois patrimônios
separados na medida em que seu titular segue sendo o mesmo, projetando sua
personalidade sobre toda a gama de relações jurídicas de que participa, mesmo
sobre aquelas vocacionadas ou afetadas para o atingimento de determinado
objetivo.
A expressão “patrimônio de afetação”, com a conotação que é dada na
atividade de incorporação de imóveis, traduz, isto sim, os contornos de uma da
relação jurídica, sua causa ou motivo e a res que ela envolve. Parece tecnicamente
impróprio aludir a um “novo patrimônio”. Na verdade, o patrimônio segue uno e
indivisível do ponto de vista de seu titular porque e a relação jurídica se mantém
ligada ao sujeito ou sujeitos de direito, alterada, porém, pela modificação de seu
conteudo no que toca à parte afetada.
Pesam sobre o patrimônio de afetação das incorporações imobiliárias direitos
pessoais, reais ou com efeitos reais atribuídos aos adquirentes e ao incorporador.
Esse patrimônio de afetação não se resume à afirmação de que seja apenas uma
parte do patrimônio geral do incorporador gravada pela persecução de uma
finalidade. Há, isto sim, uma alteração no direito de propriedade dos bens e direitos
vinculados à incorporação, representada pela atribuição de direitos reais e pessoais
com ou sem efeitos reais aos adquirentes. Essas alterações se traduzem justamente
pela existência de uma propriedade fiduciária. Conforme observa CHRISTOPH
FABIAN140, “em geral, uma pessoa tem um patrimônio que, por sua vez, tem um
titular. Em algumas – mas não todas – formas das relações fiduciárias, porém, a
situação patrimonial é diferente: os bens em fidúcia constituirão um patrimônio
separado”.
Com a inserção do regime de afetação pela Lei 10.931/2004, têm-se uma
alteração na estrutura do direito de propriedade que o incorporador exercia sobre o
terreno, acessões e demais direitos vinculados à obra. Essa alteração se opera
mediante sua divisão entre o incorporador e os adquirentes ou potenciais
adquirentes, seguida de atribuição de uma obrigação e de um poder de gestão
140
FABIAN, Christoph. Fidúcia: negócios fiduciários e relações externas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris
Editor, 2007, p. 51.
109
conferido ao incorporador (um poder-dever) tendente a armá-lo com os meios
necessários para que cumpra a obrigação de promover a construção, gerindo
interesses que são seus e dos adquirentes, aproximando assim o conceito de
incorporador à de administrador dotado de know how para levar a cabo uma obra
mesmo que não disponha de todos os recursos para tanto necessários, mesmo sem
ser proprietário pleno da incorporação. Essa alteração no direito de propriedade é
justamente um reflexo da função social no caso concreto, no sentido de que os
poderes sobre a coisa ultrapassam os interesses do incorporador proprietário para
favorecer terceiros não proprietários como forma de atingir uma dada finalidade, no
caso a conclusão do empreendimento141.
Frequentemente lembrada e estudada no Brasil como forma de constituição
de garantia (a conhecida alienação fiduciária do DL 911/69), a fidúcia também pode
servir com o fim especial de exploração econômica de um bem ou de
investimento142. Essa alteração estrutural do direito de propriedade, além daquele
escopo de gestão, tem também uma característica de fidúcia de garantia na medida
em que limita o domínio do incorporador sobre as receitas e sobre o terreno
141
Neste sentido FRANCISCO CARDOZO OLIVEIRA: “A extensão dos poderes proprietários, na propriedade
funcionalizada, é medida através da relação concreta entre proprietários e não-proprietários. A função social
enriquece a propriedade, porque confere ao exercícios dos poderes proprietários valor que ultrapassa a relação
entre o proprietários e a coisa. A funcionalização valoriza a utilidade individual e coletiva proporcionada pelo
uso do bem, direcionando para o objetivo finalístico traçado pelo ordenamento jurídico”. (OLIVEIRA,
FRANCISCO, Cardozo Oliveira. Hermenêutica e tutela da pose e da propriedade. Rio de Janeiro: Forense,
2006, p. 243).
142
A fidúcia como gênero pode envolver manifestações diversas, com conteudos diversos, mas sempre
estruturada em torno das prerrogativas de uso, gozo, fruição e disposição do bem. Assim, não há absoluta
correspondência, por exemplo, entre a fidúcia germana, a francesa, clássica romana, ou a anglo-americana (Cfr.
MARIA TOMÉ e DIGO DE CAMPOS (A propriedade fiduciária...), FABIAN CHRISTOPH (Fidúcia...) e
MELHIM NAMEM CHALHUB (Negócio fiduciário...). Neste sentido, calha transcrever observação de JOSÉ
CARLOS MOREIRA ALVES, que faz perceber maior aproximação entre o patrimônio de afetação nas LCI e a
fidúcia germânica do que a fidúcia romana: “Se é certo que há autores que pretendem distinguir na propriedade
que se transmite ao credor por força de negócio fiduciário, a propriedade formal que pertenceria ao fiduciário e
a propriedade material que seria o fiduciante, é também indubitável que os juristas atualmente, em maioria
esmagadora, salientam que a propriedade fiduciária transferida por negócio fiduciário ao credor, para
garantir-lhe o crédito, não difere estruturalmente do direito de propriedade que, sem tal escopo, se transmite ao
adquirente. Em se tratando de negócio fiduciário do tipo romano, a propriedade fiduciária é a propriedade
plena, tanto que o credor pode aliená-la a terceiro, sem que o devedor, ao pagar a divida, tenha outro direito
contra ele que não o exigir perdas e danos por não poder o credor retransferir-lhe a coisa como se obrigou pelo
pactum fiduciae; e contra o terceiro nenhum direito assiste ao devedor. Em caso de negócio fiduciário do tipo
germânico, a propriedade fiduciária que dele resulta nada mais é do que uma propriedade limitada, porque
subordinada a condição resolutiva (o pagamento do débito pelo devedor), motivo por que, se o credor, antes de
ocorrida a condição, a transferir a terceiro, este a adquirirá também como propriedade resolúvel, perdendo-a
para o devedor, se a dívida for solvida”. (ALVES, José Carlos Moreira. Da alienação fiduciária em garantia.
3ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p.155).
110
obrigando-o à prática de atos que digam respeito apenas aos interesses da obra,
preservando assim os interesses pessoais e reais dos adquirentes.
Mesmo antes das alterações introduzidas pela Lei 10.931/2004, aos direitos
dos adquirentes já eram reconhecidos efeitos reais ou “quase-reais” a despeito de
classicamente se enquadrarem com relações de natureza pessoal com efeitos inter
parts. Citam-se, como exemplos, a sobreposição absoluta dos direitos pessoais com
efeitos dos adquirentes sobre os direitos reais representativos de garantia
hipotecária constituída sobre o terreno e suas acessões (Súmula 308 do STJ); e a
possibilidade de oposição de embargos de terceiro e o reconhecimento da eficácia
dos contratos de promessa de compra e venda ainda que desprovidos de registro
(Súmula 84 do STJ).
Caso de patrimônio afetado a que a lei de forma explicita se refere como
sendo caso de “propriedade fiduciária”, são os Fundos de Investimento Imobiliário143.
Além desse caso, há também o Projeto de Código de Obrigações de 1965, que por
seu art. 675, dispunha sobre o contrato de fidúcia sob forma de patrimônio separado
nos seguintes termos: “Os bens objeto da fidúcia constituem patrimônio separado e
serão administrados de acordo com as instruções prescritas pelo instituidor e, na
falta destes, com a diligência o homem de negócios legal e honesto”.
Deve-se atenção, todavia, para que não se generalize ao ponto de enquadrar
todo e qualquer “patrimônio de afetação” em regime de propriedade fiduciária. Uma
rápida consulta à doutrina passa uma ideia geral segundo a qual patrimônio de
afetação seria qualquer bem, relação jurídica ou parcela de patrimônio que estivesse
vinculada ao atingimento de uma finalidade qualquer. Mas essa mesma noção geral
passa ao largo da tese que ora se põe quando alude, por exemplo, ao bem de
família como propriedade fiduciária só porque destinado a servir de moradia, ou à
massa falida só porque destinada a satisfazer as obrigações do falido144. A par
disso, têm-se em consideração o fato de não haver uma teoria sólida que defina a
143
Sobre a propriedade fiduciária nos Fundos de Investimento Imobiliário escreveu CHRISTOPH FABIAN: “Na
área das relações fiduciárias, o patrimônio de afetação existe no caso dos Fundos de Investimento Imobiliário
(art. 7º, da Lei 8.668, de 25.6.1993). Há uma separação nítida entre a massa fiduciária e a massa geral da
administradora (fiduciária). As duas massas não se comunicam entre si, não devem se juntar e a massa
fiduciária não responde por obrigações da administradora. Os credores pessoas da fiduciária não podem
penhorar os bens afiduciados”. (FABIAN, CHRISTOPH. Fidúcia: negócios fiduciários e relações externas.
Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2007, p. 61).
144
Cfr. FABIAN, Christoph. Fidúcia: negócios fiduciários e relações externas. Porto Alegre: Sérgio Antônio
Fabris Editor, 2007, p. 57.
111
natureza jurídica do instituto do patrimônio de afetação, as posições ocupadas pelos
sujeitos de direito. Há, isto sim, casuísmo com que a legislação de diversos países
tratam o instituto, com identidade de nomem iuris mas com diferenças quanto à
natureza jurídica145, conforme CHRISTOPH FABIAN:
A doutrina utiliza várias denominações para esta forma de patrimônio, como
“patrimônio separado”, “autônomo” ou de “afetação”. Também, os
ordenamentos jurídicos estrangeiros não utilizam o mesmo conceito. Na
doutrina francesa, por exemplo, aplica-se o termo “affectacion” enquanto o
legislador argentino prefere o termo “separado” e no direito alemão
predomina o termo “sonderermöge” (patrimônio especial). Nós não
sobrevalorizamos as diversas denominações, pois consideramos que uma
abordagem sobre o patrimônio separado não deve ser elaborado através de
conceitos. Também, o conceito dos termos mencionados não reflete
maiores diferenças.
No caso da LCI, as alterações operadas pela Lei 10.931 de 2004 permitem
concluir sobre sua natureza de propriedade fiduciária na incorporação.
A adoção do regime de afetação patrimonial não é obrigatória, decorre de
declaração unilateral de vontade do incorporador (caput do art. 31-A e § 10). Mas se
o incorporador adotá-la, a disponibilidade sobre o terreno, sobre as acessões e
demais direitos vinculados à incorporação ficarão destinados à consecução da obra
correspondente. Feito o registro a propriedade sobre esses bens é imediatamente
modificada, porque, nos termos do art. 31-A, caput, manter-se-ão “apartados do
patrimônio do incorporador e constituirão patrimônio de afetação”. Esses bens,
então, não mais se comunicarão “com os demais bens, direitos e obrigações do
patrimônio geral do incorporador ou de outros patrimônios de afetação por ele
constituídos” e só responderão “por dívidas e obrigações vinculadas à incorporação
respectiva” (§ 1º do art. 31-A). Ainda, só poderão ser objeto de garantia real em
operações cujo financiamento concedido seja integralmente aplicado na construção
do empreendimento e na entrega das unidades aos adquirentes (§ 3º do art. 31-A).
Todos os recursos financeiros gerados em função da incorporação (vendas e
obtenção de financiamento concedido por agente financeiro, v.g.), ficam afetados de
modo a que só possam ser utilizados “para pagamento ou reembolso das despesas
inerentes à incorporação” (§ 6º do art. 31-A).
145
FABIAN, CHRISTOPH. Fidúcia: negócios fiduciários e relações externas. Porto Alegre: Sérgio Antônio
Fabris Editor, 2007, pp 53-54.
112
Tanto se modificam os direitos do incorporador sobre a incorporação (terreno,
acessões, recebíveis creditórios, etc), que só se excluem da afetação, podendo
então por ele serem apropriados, os recursos financeiros que excederem a
importância necessária à conclusão da obra e à quitação do financiamento
eventualmente concedido para a construção (art. 31-A, § 8º, I). Este será,
propriamente, o lucro do incorporador, que pode ou não existir.
Do terreno, que era propriedade sua ou de um terceiro antes do registro da
afetação, restará apenas a possibilidade de receber pelo preço da venda de suas
frações (§ 7º, art. 31-A) para posterior aplicação das quantias recebidas diretamente
na incorporação. E se não houver quem compre as unidades, se o incorporador falir
ou entrar insolvência ou se ele for destituído (art. 43, VII), o patrimônio de afetação,
aí incluídos o terreno e as acessões, deverá ser liquidado para honrar apenas as
dívidas da incorporação afetada ou para que tenha continuidade com os adquirentes
gestionando o término da obra.
O patrimônio de afetação continua patrimônio de titularidade (formal) do
incorporador, que dele ainda pode dispor desse patrimônio, mas não em
consideração de interesses próprios e exclusivos seus. Deverá se atentar também
para os interesses dos adquirentes, do eventual agente financeiro e, de um modo
geral, de todos que tenham se tornado credores ou devedores em decorrência de
atos e negócios jurídicos praticados em consideração à incorporação afetada.
Conforme observa CHRISTOPH FABIAN146, “o patrimônio de afetação qualifica-se
pela sua finalidade e não mais, como no caso do patrimônio unitário, pelo seu titular.
A pessoa que se relaciona com este patrimônio de afetação somente “empresta” a
sua titularidade”147. Tratando dessa mesma questão com alusão a “titularidade
formal e substancial, como expressão da função social da propriedade no direito
atual, escreve PIETRO PERLINGIERI:
Titularidade formal e substancial. [...] Ela [a distinção] inspira-se na
quantidade de poder que um determinado sujeito tem e é relevante,
sobretudo, na teoria dos direitos reais e, especialmente, da propriedade.
Esta última situação é a mais idônea para descrever a referida distinção:
sucede freqüentemente que a um sujeito seja reconhecida a titularidade
(formal) da situação enquanto que o conjunto de poderes e faculdades que
constituem o seu conteúdo seja atribuído a outros, ou mesmo seja excluído
146
FABIAN, Christoph. Fidúcia: negócios fiduciários e relações externas. Porto Alegre: Sérgio Antônio
Fabris Editor, 2007, p. 57.
147
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, pp. 109-110.
113
por lei. Existem hipóteses nas quais um sujeito é, para determinados fins,
ainda considerado proprietário, titular (formal) da situação proprietária, mas
se encontra privado, por vezes irreversivelmente, dos direitos ou dos
poderes característicos daquela propriedade. {...}.
Vice-versa, há quem assume substacialmente os poderes e os direitos – ou
de qualquer jeito, a maior parte deles – que são típicos do proprietário,
apesar de não o ser. Nesta hipótese tem-se uma titularidade substancial.
O incorporador, então, é titular da coisa comum apenas para fins de
administrá-la, apondo sua titularidade sobre ela, mediante anotação no registro
imobiliário. Às restrições criadas para incorporador em relação aos bens que antes
do registro da afetação eram plenamente seus, corresponde a perda parcial dos
poderes inerentes ao domínio. O terreno, as acessões e os direitos vinculados à
construção tanto não lhe pertencem como propriedade plena que, por força o art. 31A, § 8º, I, o incorporador só recebe com domínio exclusivo, fora do regime de
afetação, portanto, os recursos gerados pela atividade que sejam superiores ao
necessário para concluir o empreendimento.
É digno de nota observar que o patrimônio de afetação opera uma
modificação profunda no direito de propriedade. Com efeito, ele não se limita a
produzir uma divisão compartilhada nos poderes do proprietário haja vista que, ao
separar propriedade em forma e propriedade em substância, o patrimônio de
afetação extingue parcela da propriedade do incorporador na exata medida em que
a transfere aos adquirentes. O incorporador tem o poder de gerir lato sensu o
patrimônio afetado, praticando todos os atos de administração e de disposição que
se afigurem necessárias. Contudo, não tem o poder de uso nem o de colher os
frutos do corpus como se ele existisse para si. Também não tem o poder de destruílo materialmente porque o bem já não lhe pertence. Trata-se de uma propriedade
tão especial que nunca chega a compreender o usus, o fructus, ou o abusus, já que
adstringe o incorporador a ter como propriedade exclusiva apenas o lucro da
atividade representado pela diferença positiva entre o valor das vendas das
unidades imobiliárias e o custo para a conclusão do empreendimento.
A atribuição de natureza de propriedade fiduciária sobre a incorporação
afetada pode ensejar dúvidas quanto à sua adequação a princípios estruturantes do
civil law, concernentes aos poderes de uso, gozo, disposição e reivindicação
atribuídos ao titular de direito de propriedade, à publicidade dos direitos reais, à sua
114
taxatividade (numerus clausus) e tipicidade148 e também à separação rígida entre
direitos reais e direitos pessoais.
Sob uma lógica dogmática típica das grandes codificações da civil law, uma
das barreiras que se erguem diz respeito à impossibilidade de dividir o direito de
propriedade em “direito em forma” e “direito em substância” entre duas ou mais
pessoas, cindindo assim um direito (o de propriedade) que em princípio é absoluto e
pertence apenas a um proprietário. Quanto a isto não parece haver dificuldade
porque essa divisão entre forma e substância decorre das próprias alterações
introduzidas na LCI. Não se trata, portanto, de contornar o princípio da taxatividade
dos direitos reais. Quando muito, a questão poderia ser situada no campo da
tipicidade, vale dizer, no quadro de permissividades que o princípio da taxatividade
oferece para manipulação da autonomia da vontade. Nesse sentido é que se
enquadraria a possibilidade de a incorporação ser ou não submetida ao regime de
afetação por decisão unilateral do incorporador.
Demais disso, como visto, o próprio direito romano-germânico contempla
tradicionalmente diversas figuras jurídicas que comportam a distribuição de poderes
típicos de proprietário entre mais duas ou mais pessoas, com maior ou menor
intensidade como é o caso, por exemplo, do usufruto.
Com efeito, a natureza jurídica de propriedade fiduciária não é uma
consequência pura da autonomia da vontade, mas sim decorrência de previsão
legal. Em que pese a Lei 10.931/2004 não faça referência expressa à existência, no
caso, de propriedade fiduciária, as alterações que ela introduziu na LCI descrevem
direitos e obrigações e modificam os contornos do direito de propriedade, o que
basta para que se possa cogitar de sua verdadeira natureza jurídica que, como é por
demais sabido, sobreleva o nomem iuris ou a falta de sua indicação pelo texto
legal149. Com efeito, é tarefa do interprete dizer da natureza das coisas sob pena de
148
Porque em geral são tratados como uma coisa, importante distinguir taxatividade e tipicidade dos direitos
reais conforme alerta de GUSTAVO TEPEDINO: “Por quanto interessa ao presente trabalho, basta apenas
registrar que o princípio do numerus clausus se refere à exclusividade de competência do legislador para a
criação de direitos reais, os quais por sua vez, possuem conteúdo típico, daí resultando um segundo princípio,
corolário do primeiro, o da tipicidade dos direitos reais, segundo o qual o estabelecimento de direitos reais não
pode contrariar a estruturação dos poderes atribuídos ao respectivo titular. Ambos os princípios, tratados
indiferentemente pela civilística brasileira, embora se apresentem aparentemente coincidentes, diferenciam-se
na medida em que o primeiro diz respeito à fonte do direito real e o segundo à modalidade de seu exercício”.
(TEPEDINO, Gustavo. Multipropriedade imobiliária. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 82).
149
Cfr. ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito civil: direitos reais. 5ª Ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1993, pp.
155-156.
115
se impedir a investigação científica acerca do conteudo das descrições normativas.
Sobre o assunto já observou a doutrina150
[...] que o legislador não se reservou a prerrogativa de qualificar como reais
determinados direitos: esse papel compete ao intérprete. A lei – e só ela –
pode criar direitos reais e o intérprete – e só ele – pode, face aos dados
legais, decidir se determinada figura integra ou não o numerus clausus
imposto pelo Cód. Civil. O intérprete é livre de integrar no conceito de direito
real situações que o legislador não qualificou expressamente como tais, e
que porventura não considerou sequer figuras autônomas de direito
subjectivo, mas a que atribuiu o regime jurídico correspondente aos direitos
reais. Com efeito, afigura-se necessário distinguir claramente a criação de
novas figuras de direito real, da qualificação como reais de certas situações
estabelecidas por lei. A tipicidade taxativa não implica um monopólio legal
na qualificação de direitos reais. O intérprete pode incluir nesta categoria
qualquer situação, desde que nela encontre os seus traços essenciais. [...]
Por outro lado, a interpretação extensiva é perfeitamente admissível no
âmbito do direito das coisas e é admitida, nomeadamente, na interpretação
das descrições legais dos direitos reais. A tipologia taxativa não impede que
se admitam modificações dos direitos reais. Efectivamente, o direito real
tem todo um conteúdo acessório, que é vastamente moldável pelas partes,
mediante a substituição de disposições supletivas. Esse conteúdo é
estranho à descrição fundamental em que consiste o tipo; faz parte do
direito real, mas escapa ao objectivo subjacente ao numerus clausus. A
tipologia taxativa dos direitos reais não exclui que estes sejam na ordem
jurídica portuguesa tipos abertos. [...]
Também não impressiona como barreira à tese, o fato de a incorporação em
geral se iniciar sem que a propriedade fiduciária esteja composta de um lado pelo
incorporador e, de outro, pelos adquirentes151. É que, no caso, a relação fiduciária se
forma de maneira progressiva na medida em que consumidores vão a ela aderindo
ao firmarem contratos relativos à aquisição das unidades. Registrada e tornada
pública a afetação, o incorporador anuncia no mercado a possibilidade de aquisição
mediante adesão, pelos consumidores, ao regime fiduciário. Enquanto as frações
não são vendidas, elas e suas respectivas acessões seguem em regime fiduciário
sob total administração do incorporador e como tal favorecem aqueles que já
tenham firmados contratos com o incorporador na medida em que não poderão ser
150
TOMÉ, Maria João Ramão Carreiro Vaz; CAMPOS, Diogo Leite de. A propriedade fiduciária (trust):
Estudo para a sua consagração no direito português. Coimbra: Almedina, 1999, p. 287, nota 590.
151
Comparativamente ao trust, cumpre recordar que o settlor, nos private trusts, pode constituir seus próprios
bens em trust elegendo a si próprio como trustee (administrador) dos bens.
116
destacadas do regime fiduciário (afetação) para que um outro propósito lhes seja
dado senão o de verter recursos para a obra152.
A propriedade da incorporação afetada tanto não é exclusiva do incorporador
que o § 2º do art. 31-A prevê que este “responde pelos prejuízos que causar ao
patrimônio”, vale dizer, ele responde pelos danos causados a um patrimônio que é
comum entre ele e os adquirentes. Fosse patrimônio exclusivo do incorporador, não
haveria razão para que fosse obrigado a reparar dano que, nesta hipótese, seria a
um patrimônio próprio.
Corolário da propriedade dos adquirentes, o art. 31-C e o art. 31-D, III, VI e
VII, garantem-lhes o direito de fiscalizar o patrimônio de afetação, revelando assim
um interesse que não diz respeito apenas ao cumprimento de um contrato especifico
firmado entre um determinado adquirente e o incorporador, mas sim a todas as
relações jurídicas que possam de alguma maneira afetar o empreendimento.
Quiçá os dispositivos que mais deixem em evidência a natureza dos direitos
dos adquirentes sejam o art. 31-F e seus parágrafos. Por eles se chega à conclusão
de que os adquirentes são responsáveis, junto com o incorporador, pela conclusão
da obra e pagamento dos credores que em função dele como tal tenham se
constituído. Esses dispositivos demonstram que os adquirentes deixaram de ser
meros consumidores de uma relação jurídica de natureza pessoal para se tornarem
donos da obra por direito de propriedade constituída de forma fiduciária e com
propósito de administração atribuída ao incorporador em seu próprio nome e em
nome dos adquirentes.
Se o incorporador falir, entrar em insolvência, paralisar ou retardar
injustificadamente a obra, o juiz da falência ou da insolvência, os adquirentes
deverão decidir se concluem a obra sem a participação do incorporador aportando
todos os recursos para tanto necessário, ou se deixam-na inacabada e assim
liquidam o patrimônio de afetação mediante venda do terreno e das acessões
seguida pelo pagamento dos credores do patrimônio afetado.
Se decidem concluí-la, os adquirentes ficam obrigados a honrar todas as
obrigações que o incorporador carreou para o âmbito do patrimônio afetado como,
152
A propósito da multiplicidade de direitos reais presentes na afetação patrimonial e forma que eles se
combinam entre si e também com direitos obrigacionais com o propósito de conferir autonomia funcional à
incorporação com poderes de passíveis de serem exercidos pela comissão de representantes, calha a classificação
de José de Oliveira Ascensão, entre direitos reais simples e direitos reais. (ASCENSÃO, José de Oliveira.
Direito civil: direitos reais. 5ª Ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1993, pp. 166-168).
117
por exemplo, o contrato de financiamento firmado com o agente financeiro, a mãode-obra empregada na construção e, quiçá, até mesmo obrigações constituídas de
forma fraudulenta contra o patrimônio afetado (§§ 11 e 12 do art. 31-F). Concluída a
obra e quitadas essas obrigações, só então os adquirentes receberão suas unidades
desoneradas das dívidas constituídas no âmbito do patrimônio de afetação.
Mas se, por razões as mais diversas, dentre elas o custo, os adquirentes
decidam não concluir a construção, restará a eles vender o terreno e as acessões e,
em seguida, pagar os credores do patrimônio afetado segundo a ordem de
preferências estabelecida (§§ 14 e 18 do art. 31-F). E mesmo se os recursos forem
mais que suficientes para honrar as dívidas afetadas, os adquirentes nada
receberão: terão de entregar o saldo à massa falida e perante ela se habilitarem.
Ora, se os adquirentes não são considerados credores do patrimônio de afetação ao
lado do agente financeiro, do proprietário do terreno, dos empregados, dentre
outros, é porque na verdade os adquirentes são proprietários e como tal não podem
ser “beneficiados” com o produto da venda da coisa que já é sua e que se encontra
onerada153.
Alijados de sua condição de consumidores tecnicamente hipossuficientes, que
poderiam reclamar do incorporador a entrega de suas unidades prontas e acabadas
sem que fossem preteridos, v. g., em favor do direito de crédito do “dono da loja de
materiais de construção” ou do agente financeiro e credor hipotecário (Súmula 308
do STJ); com o patrimônio de afetação os adquirentes passaram à condição de
proprietário fiduciário e dono da obra, ainda consumidores perante o incorporador,
mas responsáveis perante os credores do patrimônio afetado. Assim, de um lado, os
adquirentes são consumidores perante o incorporador e dele recebem uma garantia
fiduciária de que os recursos não são desviados; de outro, perante os credores do
patrimônio, são devedores.
Fosse o caso de manter os adquirentes em uma relação jurídica de natureza
pessoal, não haveria motivo para tirá-los da condição de consumidor perante o
agente financeiro, por exemplo, para colocá-los ao lado do incorporador como coresponsáveis pelo pagamento da hipoteca.
153
Evidente a distorção criada para o conceito de consumidor. A proteção oferecida pelo patrimônio de afetação
para os momentos de crise do incorporador, em nada favorecem os adquirentes, deixando muito a desejar frente
à versão original da LCI.
118
III.4 PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO E SEUS CREDORES
Consoante já referido, no tocante às incorporações imobiliárias, a teoria da
afetação sugere que os bens de uma determinada incorporação, tais como o
terreno, as acessões e os recebíveis decorrentes da comercialização de suas
frações ideais, fiquem vinculados para que o objetivo maior seja alcançado, qual
seja, a conclusão do empreendimento, entrega das unidades imobiliárias e
pagamento dos credores que tenham relação com a incorporação. Assim, por
exemplo, o desvio desses recebíveis para outros objetivos que não seja a quitação
de obrigações nascidas de atos necessários a conclusão do empreendimento
implicaria desvirtuamento da teoria da afetação. Nisto a doutrina é unânime: o
patrimônio de afetação só responde por obrigações que dele próprio tenham se
originado. Neste sentido, MELHIM NAMEM CHALHUB154 teoriza:
Por efeito da afetação, as receitas provenientes de cada patrimônio de
afetação são reservadas para exclusivo cumprimento das obrigações
vinculadas à incorporação respectiva, vedado o desvio de recursos de um
empreendimento para outro ou para o patrimônio geral do incorporador.
[...]
A afetação patrimonial protege os credores vinculados à incorporação, entre
eles os adquirentes das unidades imobiliárias, os trabalhadores da obra, o
fisco, a previdência, a entidade financiadora, os fornecedores, etc. Via esse
regime assegurar a conclusão da obra e a entrega das unidades aos
adquirentes e, para esse fim, estes podem assumir a administração da
incorporação em caso de atraso injustificado da obra ou em caso de
falência; considerando a incomunicabilidade do patrimônio de afetação, os
adquirentes, ao assumir a administração, estarão obrigados a destinar as
receitas da incorporação exclusivamente ao pagamento dos seus próprios
débitos, vedada sua utilização para pagamento de débitos não vinculados à
incorporação, entre eles, os decorrentes das atividades gerais da empresa
incorporadora.
Estabelecida essa larga premissa pode-se dizer que os bens componentes do
patrimônio afetado são impenhoráveis. Credores do incorporador que não tenham
relação com a afetação não poderão penhorar sequer as frações ideais de terreno
que eventualmente estejam registradas em seu nome porque elas, na verdade, não
lhe pertencem. Pertencem sim à afetação, em favor de quem devem ser convertidas
154
CHALHUB, Melhim Namem. Da incorporação imobiliária. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar,
2003, pp. 68-69.
119
em recursos para serem aplicados na obra. Logo, quem, além de estar penhorando
indevidamente a fração, levar a cabo eventual leilão, adjudicação ou qualquer outra
forma de venda judicial, ficará obrigada a pagar os custos da construção que toquem
à fração de terreno. Não fosse desta forma, seria o caso de se cogitar que uma
minoria de dois adquirentes sejam obrigados a concluir a obra apenas porque as
frações ideais restantes foram transferidas de maneira quitada para credores do
incorporador. Claro que o incorporador “responde pelos prejuízos que causar ao
patrimônio de afetação” (art. 31-A, § 2º), mas isto não implica dizer que as unidades
do empreendimento podem ser desvinculadas da afetação sob pena de frustrar-se a
própria lógica do sistema instituído pela Lei 10.931/2004.
Enquanto o incorporador administra o patrimônio afetado e também o seu
patrimônio geral cumprindo todas as obrigações inerentes a cada um deles;
enquanto ele leva a termo a construção, quita todas as obrigações trabalhistas,
fiscais e todos os fornecedores que tenham vendido material utilizado na obra, quita
o preço do terreno e também o financiamento bancário concedido para alavancar
recursos necessários à construção até que a comercialização das unidades gerasse
recurso em volume; a incorporação imobiliária afetada não enfrentará problema
algum. Não há questionamentos, já que nestas circunstâncias todos receberam o
que de direito. Coisa bem diversa ocorre quando a incorporação entra em colapso,
atrasando ou paralisando sem justificativa ou ainda em caso de falência ou
insolvência do incorporador. Quando isto ocorre, e em geral ocorre por insuficiência
de recursos, muitos credores do incorporador, dentre eles os adquirentes das
unidades em construção, terão seus direitos frustrados. Empregados não recebem
seus salários nem rescisões, tributos deixam de ser recolhidos, fornecedores deixam
de pagos. Em geral a doutrina tem mencionado que a afetação patrimonial protege
os credores vinculados à incorporação, aí incluídos os consumidores, os
trabalhadores da obra, o fisco, o agente financiador, etc. Mas é preciso indagar mais
de modo a saber de fato quais são os credores com direito a serem satisfeitos com o
acervo que compõe o patrimônio de afetação. A Lei n° 10.931/2004 não tratou
suficientemente dessa questão e nem a doutrina.
É crucial que o incorporador administre a afetação com boa-fé e ética
empresarial, mantendo uma administração transparente, agindo com lealdade e
prudência ao tratar dos direitos e obrigações que se vinculam ao patrimônio de
afetação, atentando sempre para o dever de proteção que sobre ele recaia pela
120
ocupação de uma função de administrador, de interesses alheios. Deve ele ter
sempre em conta que o patrimônio também pertence aos adquirentes numa
combinação de forças que legitima interesses de múltiplas pessoas, devendo, por
isto, atentar-se para a ocorrência de conflitos de interesses exclusivos seus com
interesses da afetação, evitando auferir vantagens que a administração da
incorporação lhe facilita. Neste ponto novamente calham as observações de MARIA
JOÃO RAMÃO CARREIRO VAZ TOMÉ e DIOGO LEITE DE CAMPOS155 acerca dos
deveres de gestão que o trustee tem frente ao trust que administrada em favor dos
beneficiários:
Conforme foi mencionado supra, o direito da administração fiduciária, o
fulcro do moderno direito dos trusts, estabelece dois princípios
fundamentais: o dever de lealdade e o dever de prudência. O primeiro
obriga o trustee a administrar os bens única e exclusivamente no interesse
do beneficiário e implementa aquela titularidade do beneficiário sobre os
bens ou direitos constituídos em trust. O trustee é o legal owner dos bens
ou direitos, mas apenas para seu gozo por parte do beneficiário. O dever de
lealdade impede o trustee de celebrar negócios consigo mesmo que tenham
por objecto os bens ou direitos em trust de um lado e, de outro, de se
encontrar em situação de conflito de interesses adversa ao bom
funcionamento do trust. Por seu turno, o dever de administração prudente
consagra um critério de razoabilidade, comparável àquela do bom pai de
família do direito da responsabilidade civil. Trata-se de um padrão objectivo
de diligência que coloca o trustee “under a duty to the beneficiary in
administering the trust to exercise such care and skill as a man of ordinary
prudence would exercise in dealing with his own property”. São muitas as
normas sobre a administração fiduciária, como aquelas que regulam os
deveres de guarda e de prestação de contas, de informação, de
investimento ou de preservação dos bens em trust e de os tornar
produtivos, de execução e de defesa de direitos, de diversificação dos
investimentos e de minimização dos custos. Todas estas normas se
subsumem, em último recurso, aos deveres da lealdade e de prudência e
constituem meios de satisfação dos direitos eqüitativos do beneficiário. A
combinação da ampla discricionaridade do trustee com estas normas sobre
a administração fudiciária, que visam proteger o beneficiário contra
eventuais abusos dessa mesma discricionaridade, constitui a segunda
melhor solução para o problema da execução do negócio trust. A lealdade e
a prudência, enquanto normas do trust fiduciary law, forma o regime
supletivo da conduta do trustee.
Em caso de paralisação, retardamento injustificado da obra, falência ou
insolvência do incorporador, dispõe o art. 31-F e seu § 2º, que os credores por
“obrigações e encargos objeto da incorporação” não carecem de se habilitar junto à
massa,
nem
procurar
receber
seus
créditos
do
incorporador
mediante
direcionamento de suas pretensões sobre seu patrimônio geral, porque seus direitos
155
TOMÉ, Maria João Ramão Carreiro Vaz; CAMPOS, Diogo Leite de. A propriedade fiduciária (trust):
Estudo para a sua consagração no direito português. Coimbra: Almedina, 1999, pp. 167-168.
121
serão honrados com as forças do patrimônio de afetação, quer os adquirentes
decidam continuar a obra sem a participação do incorporador, quer decidam liquidar
o patrimônio vendendo-o sem concluir a obra (art. 31-F, §§ 1º e 7º).
Qualquer que seja a decisão dos adquirentes - conclusão da obra ou
liquidação do patrimônio de afetação -, a Lei n° 10 .931/2004 deixou evidente que os
direitos de crédito do agente financeiro que conceder empréstimo para a construção
há de ser pago (art. 31-F, § 11).
O § 18 do art. 31-F prevê que, uma vez liquidado o patrimônio de afetação, a
Comissão de Representantes deverá utilizar o produto de sua venda para quitar as
obrigações trabalhistas, previdenciárias e tributárias vinculadas ao patrimônio de
afetação segundo a ordem de preferência de direito material prevista na legislação
e, caso tenham os adquirentes realizado algum rateio para quitar qualquer dívida
dessa natureza, a preferência seguinte dirá respeito ao reembolso desses valores,
como que uma subrrogação na natureza do crédito (trabalhista ou fiscal) que os
adquirentes hajam quitado.
Em seguida a preferência a se quitar diz respeito aos valores que os
adquirentes, por meio do condomínio construtivo, houverem, por algum motivo156,
desembolsado
para
a
construção
das
acessões
de
responsabilidade
do
incorporador, prevista no § 6º do art. 35 e § 5º do art. 31-A. Ato contínuo, quita-se os
direitos do proprietário do terreno quando este não seja o próprio incorporador.
Por fim, se sobejarem recursos, dispõe o inciso VI do § 18, estes deverão ser
entregues à massa falida, sem que se faça qualquer previsão quanto aos valores
que os adquirentes pagaram pelas frações ideais e acessões realizadas ou não
(estas porque os respectivos recursos foram desviadas de sua finalidade pelo
incorporador). Aos adquirentes restará então se habilitar na massa, mesmo tendo
direitos vinculados e exercitáveis contra o patrimônio de afetação, mesmo tendo
vertido valores para ele.
A Lei 10.931/2004 também não faz nenhuma alusão aos demais credores do
patrimônio de afetação como, por exemplo, os fornecedores de material e os
156
A previsão, ao que parece, diz respeito à hipótese em que os adquirentes tenham pago valor superior ao
necessário para que a obra atingisse o estágio em que se encontrar no momento da paralisação, o que leva a crer
que o incorporador fez uso do excedente dos recursos pagos para quitar a parte das acessões que ainda eram de
sua obrigação em razão de não ainda terem sido comercializadas, oportunidade que o custo por seu pagamento é
assumido pelo novo adquirente.
122
prestadores de serviço de modo a que, em caso de liquidação, seus créditos
possam ser perseguidos junto à massa falida.
Em sendo esta a forma preconizada para quitar os direitos cuja quitação deva
ocorrer por conta da afetação patrimonial, com desamparo total dos maiores
interessados (os adquirentes) e dos fornecedores e prestadores de serviço, haveria
desrespeito ao § 1º do art. 31-A, segundo o qual a afetação garante a quitação das
“dívidas e obrigações vinculadas à incorporação respectiva”.
Considerada a incongruência, a ordem de preferências prevista no § 18 do
art. 31-F deve ser completada mediante inserção do direito de reembolso dos
adquirentes pelos valores pagos ao incorporador e também o direito de recebimento
dos fornecedores de material utilizado na obra e dos prestadores de serviços.
Demais disso, a própria ordem preferências contida no referido § 18 não se
mostra correta em caso de liquidação do patrimônio de afetação, na medida em que
a instituição financeira deveria ter grau de preferência igual ao dos adquirentes pelos
valores vertidos em acessões de sua responsabilidade, assim como o grau de
preferência dos fornecedores de material e prestadores de serviço. Isto porque, a
garantia real do agente financeiro, prevista no § 3º do art. 31-A só prevalece se
acaso se consumar o objetivo da previsto no dispositivo, qual seja, “a entrega das
unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes”. Uma vez frustrado este objetivo
por decisão de assembleia que opte por liquidar o patrimônio afetado, a garantia real
do agente financeiro perde essa natureza e passa à condição de garantia pessoal
em pé igualdade com o direito de reembolso dos adquirentes que, assim com o
agente financeiro, outra coisa não fizeram senão entregar recursos ao incorporador
que passaram a compor o patrimônio afetado assim como os recursos financiados
pelo agente financeiro.
Igualmente perde o caráter de direito real caso os recursos financiados pelo
agente financeiro não sejam integralmente empregados na construção do
empreendimento. Não basta, deve-se frisar, a mera previsão contratual constante do
contrato de empréstimo aludindo a que os recursos mutuados devam ser utilizados
na
construção.
No
caso
a
destinação
há
de
ser
fática,
comprovada
documentalmente, cabendo ao agente financeiro adotar auditoria contábil na
afetação e ainda vincular a liberação do empréstimo a pagamento que ele próprio
fará a credores comprovadamente vinculados a incorporação afetada.
123
O patrimônio de afetação pode ser instituído mesmo depois de iniciada a obra
(art. 31-B) e, como tal, acabar servindo para prejudicar credores do incorporador
que, neste caso, não poderão dirigir suas pretensões sobre os recebíveis ou sobre
as unidades não comercializadas pelo incorporador. De todo modo,
Fica implícito que terceiros de boa fé estarão protegidos desde que
comprovem haver sido instituído o patrimônio de afetação, quando já
existentes obrigações e, tal instituição, tenha por fim driblar a expectativa de
seus direitos, mesmo que estranhos à incorporação. Contudo, a
casualidade desta concorrência, entre terceiros e adquirentes - todos em
mesmo nível de boa fé -, tornar-se-á desafio para os Tribunais
estabelecerem a quem atribuir preferência. Em qualquer caso, como
o
ressalva o parágrafo 2 do citado artigo 31-A da Lei 4.591/64, fica o
incorporador responsável pelos prejuízos que causar ao patrimônio de
157
afetação, quando então responderá pessoalmente com seus bens .
Como visto, o incorporador responde com seus bens pessoais pelo prejuízo
que causar ao patrimônio de afetação. No entanto, a Lei 10.931/2004 não esclarece
a legitimidade para pleitear essa reparação. Considerada a inspiração conferida pelo
trust ao patrimônio de afetação, as seguintes providências lá adotadas aqui podem
ser empregadas, fazendo os adquirentes as vezes dos beneficiários do trust e o
incorporador a do trustee, conforme notícia de MARIA JOÃO RAMÃO CARREIRO
VAZ RAMÃO e DIOGO LEITE DE CAMPOS158:
O beneficiário tem igualmente o poder de exigir ao trustee a contabilidade
devidamente organizada dos benefícios que lhe são devidos. Não sendo
titular dos rendimentos actuais produzidos pelos bens ou direitos
constituídos em trust, pode exigir a apresentação da sua contabilidade. Tem
igualmente a faculdade de requerer a respectiva auditoria.
Pode também exigir ao trustee a evolução de qualquer proveito que, sem o
devido consentimento, haja retirado da administração do trust.
Em certas circunstâncias, tem o poder de exigir ao trustee a reconsideração
do exercício da sua discricionaridade, ou seja, do exercício do poder de
selecção, assim como de impugnar o seu exercício aparentemente
caprichoso.
O beneficiário tem igualmente o poder de intentar acções judiciais fundadas
na desonestidade, ausência ou incompetência do trustee. Deste modo, é,
em geral, titular do poder de requerer ao tribunal a investigação e a
fiscalização da administração do trust.
157
Cfr.
AGHIARIAN,
Hércules.
Patrimônio
de
afetação.
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6408>. Acessado em 20.05.2009).
158
Disponível
em
TOMÉ, Maria João Ramão Carreiro Vaz; CAMPOS, Diogo Leite de. A propriedade fiduciária (trust):
Estudo para a sua consagração no direito português. Coimbra: Almedina, 1999, pp. 139-140.
124
Pode outrossim exigir ao trustee a adopção das medidas adequadas contra
terceiro adquirente de má fé de bens ou direitos constituídos em trust.
Tendo todos os beneficiários contemplados pelo acto constitutivo do trust já
nascido completamente e com vida, e tendo capacidade de exercício de
direitos, é-lhes permitido extinguir consensualmente o trust e dar instruções
ao trustee sobre o destino dos respectivos bens ou direitos. O poder de
modificar o trust não lhes era, contudo, reconhecido
Questão sem trato legal diz respeito aos direitos trabalhistas do empregado
que tenha empenhado seu labor em mais de um empreendimento do incorporador
gerando, todavia, créditos trabalhistas durante toda a relação de emprego, quiçá até
mesmo em decorrência de um acidente de trabalho. Pela teoria da afetação, o
empregado só poderá exigir do patrimônio de afetação os créditos que se formaram
durante o período que trabalhou naquela específica incorporação. Entretanto, a Lei
10.931/2004 não trata desta questão, deixando margem a que o empregado exija a
totalidade de seus créditos.
Credores do incorporador que não tenham seus créditos constituídos em
função do patrimônio afetado obviamente não podem pleitear pagamento com as
forças da incorporação. Além de tal impedimento constar de lei expressa, a
publicidade dos direitos reais decorrentes do registro da afetação patrimonial não o
permite. Como meio de conferir segurança e proteção da boa-fé, disponibilizando à
sociedade meio adequado para conhecer e saber dos direitos reais existentes sobre
a coisa, o registro da afetação gera eficácia erga omnes revestida de publicidade.
III.5 LEGITIMIDADE ATIVA PARA DEFESA DO PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO
A separação da incorporação do patrimônio geral do incorporador por meio de
afetação não lhe retira a titularidade nem legitimidade processual para defender o
patrimônio afetado, o que, aliás, está expressamente previsto no inciso I do art. 31D.
Não obstante, a afetação patrimonial vai além da mera atribuição de
finalidade específica a determinada parcela do patrimônio geral do incorporador. E
em que pese continue a integrar seu patrimônio geral, acentuam-se interesses de
terceiros sobre a gestão da incorporação afetada. Esses interesses, aliás, já podiam
125
ser vistos no texto original da LCI ante os poderes conferidos à Comissão de
Representantes159.
A titularidade representada pelo registro do imóvel em nome do incorporador
passa a ter um caráter mais formal que material. A natureza jurídica do incorporador
ganha acentuado ar de gestor, administrando interesses que são próprios,
relacionados ao lucro que almeja, e também interesses que são de terceiros que lhe
entregam recursos e forças para que realize o interesse comum relacionado com fim
do patrimônio de afetação.
Uma das obrigações do incorporador que atue sob o regime de afetação
consiste em separar e dar tratamento atomizado aos bens, direitos e obrigações que
constituem a massa patrimonial. Só assim se consegue conhecer o que de fato
integra o patrimônio afetado, quais suas receitas e por quais obrigações ele
responde. Daí o porquê de art. 31-D exigir que se mantenha apartados os bens e
direitos objeto de cada incorporação; que se preserve os recursos captados pela
incorporação de modo a que de fato sejam direcionados à conclusão da obra;
prestar informação obrigatória trimestralmente acerca do estágio da obra e dos
recursos captados no período com auxílio de profissionais habilitados; manter e
movimentar os recursos do patrimônio em conta bancária aberta com esta específica
finalidade; e ainda franquear acesso à contabilidade do patrimônio afetado aos
adquirentes e ao agente financeiro que tenha concedido empréstimo para a
construção da obra.
São deveres que visam a que os direitos dos adquirentes (conclusão da obra
e pagamento do empréstimo) sejam conduzidos de modo a que ao final se frustrem
por má administração.
Deixando
o
incorporador
de
atender
essas
obrigações
estará
ele
descumprindo o contrato de incorporação e, em razão disto, sujeitando-se a
medidas judiciais e extrajudiciais que podem variar de pedidos de indenização,
cumprimento de obrigações de fazer e, como medida extrema, à sua destituição da
função de incorporador.
De fato, o art. 43, VII, não prevê a possibilidade de destituição do
incorporador por decisão de assembleia em caso de descumprimento dos deveres
159
Poderes de fiscalização do andamento das obras (art. 49); destituição do incorporador e tomada das obras em
nome dos próprios adquirentes (incisos VI e VII do art. 43 e art. 50); gerência direta do contrato de construção,
em nome dos adquirentes, nas incorporações sob o regime de preço de custo, com possibilidade de contratação
de valores de forma vinculativa (arts. 60 e 61); legitimidade ativa nos casos do art. 63 e seu § 5º.
126
que têm ele frente ao patrimônio de afetação, notadamente daqueles previstos no
art. 31-D. A letra do dispositivo se restringe a permiti-la em caso de paralisação ou
retardamento injustificado da obra, falência ou insolvência do incorporador. Não
obstante, tal providência possa ser alcançada pela via judicial, considerando que a
lei não pode excluir de apreciação do Judiciário lesão ou ameaça de lesão a direito.
Do contrário, ter-se-ia que admitir a situação em que o incorporador dilapide o
patrimônio de afetação, vincule-o a dívidas e obrigações que em rigor não lhe digam
respeito, mesmo mantendo temporariamente em dia o andamento da obra de modo
a que, no futuro, quiçá quando as obras venham a ser paralisadas de maneira
proposital e fraudulenta, tenham os adquirentes que honrar tais obrigações, ou
quando pouco discutir se elas têm relação com o patrimônio.
III.6 CRÍTICAS À INTRODUÇÃO DO PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO NA ATIVIDADE
DE INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA
O art. 31-A dispõe que o incorporador pode submeter a incorporação a regime
de afetação, em função da qual o terreno e acessões objeto da incorporação
afetada, bem assim os demais bens e direitos a ela vinculados mantenham-se
“apartados do patrimônio do incorporador e constituirão patrimônio de afetação,
destinado à consecução da incorporação correspondente e à entrega das unidades
imobiliárias aos respectivos adquirentes”.
A constituição formal da afetação patrimonial sobre a incorporação se dá
mediante averbação de termo no registro de imóveis firmado pelo incorporador,
podendo ocorrer antes ou depois de já iniciada a obra (art. 31-B).
Instituído o patrimônio de afetação, o incorporador torna-se “administrador de
interesses alheios”. Daí porque serem exigíveis fiscalizações na contabilidade
mediante
auditoria
dos
adquirentes,
representados
pela
Comissão
de
Representantes, ou pelo agente financiador da obra (art. 31-C).
A adoção do regime de afetação exige do incorporador o cumprimento de
uma série de obrigações contábeis e deveres acessórios. Nesse sentido, por
exemplo, dispõe o art. 31-D que o incorporador tem o dever de manter apartados os
bens e direitos de cada incorporação (inciso II), informar periodicamente os
127
adquirentes sobre o estado da obra (inciso IV), manter e movimentar os recursos
financeiros do patrimônio de afetação em conta de depósito aberta especificamente
para tal fim (inciso V), fornecer balancetes trimestrais aos adquirentes (inciso VI) e
manter escrituração contábil completa relativamente a cada incorporação imobiliária
sob regime de afetação (inciso VIII).
Adotado o regime de incorporação, o incorporador lançará então em
contabilidade própria da incorporação afetada, suas receitas e despesas, seus
direitos e suas obrigações, até a conclusão da obra e pagamento dos credores
vinculados ao patrimônio afetado. Obtendo, por exemplo, financiamento bancário
para a construção, o incorporador lançará como passivo daquela incorporação
(patrimônio de afetação) o crédito que tem a instituição financeira.
Da mesma forma, segue contabilizando como crédito seu (do incorporador) a
aquisição de materiais de construção, despesas com formalização de documentos,
projetos, obtenção de alvarás e etc, realizadas com recursos próprios do
incorporador. Iniciadas as alienações, os valores recebidos ou a receber serão
contabilizados na conta de créditos e utilizados para pagamentos das dívidas da
incorporação e assim sucessivamente, até que o empreendimento esteja concluído
e quitadas estejam todas as obrigações que com ele se relacionem.
Esse é, basicamente, o funcionando e algumas das obrigações do
incorporador que atue sob o regime de afetação patrimonial.
Outras inovações foram introduzidas na LCI.
Além da possibilidade de retomada da obra pelos adquirentes em caso de
falência do incorporador, paralisação ou atraso injustificado a obra (art. 43, VI) tal
qual já era previsto na LCI em sua redação original; os §§ 1º e 2º do art. 31-F
aprofundam
a
noção
de
segregação
patrimonial
estabelecendo
que
as
incorporações sob o regime de afetação não sofrerão, em hipótese alguma, os
efeitos da decretação da falência ou insolvência do incorporador (art. 31-F, caput),
mesmo que os adquirentes não optem por concluir a obra (o que não ocorria
anteriormente à Lei 10.931/2.004). Neste caso, abriu-se uma possibilidade nova,
qual seja, a de liquidação do patrimônio de afetação mediante sua alienação integral
com o propósito de pagamento dos credores a ele vinculados (art. 31-F, §§ 9º e 18).
Em caso de falência não há comunicação entre o patrimônio de afetação
representado por determinada incorporação imobiliária e o patrimônio geral do
incorporador, ou mesmo qualquer outro patrimônio de afetação gerido pelo
128
incorporador falido. Concatenado a essa previsão, dispõe o art. 119, IX, da Lei de
Recuperação Judicial e Falências (Lei 11.101/2.005) que,
os patrimônios de afetação, constituídos para cumprimento de destinação
específica, obedecerão ao disposto na legislação respectiva, permanecendo
seus bens, direitos e obrigações separados dos do falido até o advento do
respectivo termo ou até o cumprimento de sua finalidade, ocasião em que o
administrador judicial arrecadará o saldo a favor da massa falida ou
inscreverá na classe própria o crédito que contra ela remanescer.
Em caso de falência do incorporador, paralisação ou atraso injustificado a
obra, os adquirentes então decidirão (§§ 9º e 18 do art. 31-F) o destino da
incorporação em assembleia, podendo ser a conclusão da obra por eles próprios ou
a liquidação do patrimônio de afetação mediante sua alienação integral. Em
qualquer dessas hipóteses a Comissão de Representantes (órgão representativo
dos interesses dos adquirentes) ficará responsável e investida por força de lei dos
poderes necessários para alienar o patrimônio de afetação para fins de liquidação
mesmo que o imóvel esteja (como geralmente está) registrado em nome do
incorporador, ou ainda (se for o caso) de prosseguir no gerenciamento da obra até
sua conclusão (art. 31-F, § 3º a 11 e § 14; art. 63, § 5º). Nesse momento (o da
assembleia – art. 31, § 1º) os adquirentes devem refletir profundamente acerca da
decisão a ser tomada, tendo por base propostas de valor para término da obra e
quitação de todo o passivo do patrimônio de afetação.
Essa decisão é crucial (liquidar o patrimônio ou concluir a obra). No entanto, o
art. 31-F, § 1º, confere apenas 60 dias para que a decisão seja tomada. Ora, se já é
difícil que compradores de um imóvel “na planta” se conheçam em uma grande
cidade, mais ainda será exigir que estejam preparados para uma decisão dessa
importância.
Mas optando por liquidar o patrimônio de afetação mediante sua alienação
para posterior rateio entre os credores e eles próprios, nada mais terão os
adquirentes que aplicar na obra. Pelo contrário, optando por concluir a obra, os
adquirentes se tornam pessoalmente devedores por todo o passivo do patrimônio de
afetação conforme dispõe o § 11 do art. 30-F: “Caso decidam pela continuação da
obra, os adquirentes ficarão automaticamente sub-rogados nos direitos, nas
obrigações e nos encargos relativos à incorporação, inclusive aqueles relativos ao
contrato de financiamento da obra, se houver”.
129
A grande questão que se coloca é a de conhecer a extensão do que sejam as
“obrigações” e os “encargos” relativos à incorporação. Nesse sentido, obviamente é
crédito do patrimônio de afetação o preço de venda das unidades para os
adquirentes. Esse crédito de ordinário deve ser pago ao incorporador no prazo
pactuado sob pena de incidirem juros e multa moratória. Todavia, esse mesmo
crédito pode ser transferido pelo incorporador como meio de antecipar receita (que
se espera seja aplicada na obra), fazendo com ele cessão fiduciária. Para tal
hipótese, dispõe o art. 31-A, § 4º, que, “No caso de cessão, plena ou fiduciária, de
direitos
creditórios
oriundos
da
comercialização
das
unidades
imobiliárias
componentes da incorporação, o produto da cessão também passará a integrar o
patrimônio de afetação, observado o disposto no § 6o”.
Se o incorporador consegue concluir a obra de maneira ideal, esse dispositivo
não gera perplexidade alguma. A cessão fiduciária será e deverá ser honrada nos
termos contratados com os adquirentes. Mas se o incorporador vier a falir ou
abandonar a obra, certamente que os adquirentes terão direitos em decorrência
desse inadimplemento, dentre os quais a exceção do contrato não cumprido. A
dificuldade está em cobrar do patrimônio de afetação, certamente com encargos, um
crédito cedido fiduciariamente por um inadimplente (o incorporador), imputando os
ônus à conta dos adquirentes (parte contratante inocente) para que estes
posteriormente sejam ressarcidos pelo incorporador (art. 31-A, § 2º). O mesmo se
diga sobre o financiamento concedido por instituição financeira para conclusão da
obra. Fracassando o incorporador, novamente se imputará aos adquirentes o
pagamento do financiamento (que também se espera tenha sido aplicado na obra)
com os encargos previstos no contrato firmado entre incorporador e instituição
financeira.
O § 18 do art. 31-F também estabelece que, optando por liquidar o patrimônio
de afetação, após sua alienação os adquirentes devem quitar as obrigações
trabalhistas a ele vinculadas. No entanto, não existe menção para o caso de os
adquirentes optarem por concluir a obra, restando então certa dúvida sobre também
haver nesta hipótese (retomada da obra), integração das obrigações trabalhistas no
passivo do patrimônio. Destaque-se que a única referência a obrigações trabalhistas
é essa constante do § 18 do art. 31-F. De todo modo, a interpretação leva a crer que
sim, que há dita integração em caso de continuidade das obras, não só porque seria
incongruente houvesse apenas para o caso de liquidação (§ 18 do art. 31-F), mas
130
também porque o raciocínio está em conformidade com a teoria da afetação
patrimonial.
Outrossim, a previsão de vinculação das obrigações trabalhistas ao
patrimônio de afetação leva à necessidade de que os empregados, via de regra os
que laboram no canteiro de obras, sejam separados por patrimônio de afetação. Não
pode o incorporador utilizar a mão-de-obra de um empregado na construção de mais
de um empreendimento. É o que sugere a teoria da afetação (segregação de riscos,
obrigações e patrimônio). Ocorre, no entanto, que essa separação de empregados
por patrimônio de afetação é absolutamente incompatível com a legislação
trabalhista. Certamente que se o incorporador, após concluída determinada
incorporação que estivesse afetada, vier a transferir o empregado para o canteiro de
obra de outra incorporação também afetada, o eventual passivo trabalhista
decorrente do período de trabalho no patrimônio anterior acarretará consequências
para o próximo. Logo, não existe possibilidade de separação absoluta do passivo
trabalhista, salvo se a cada obra encerrada o incorporador demitir todos os
empregados e contratar novos, diversos dos primeiros, nas futuras obras que vier a
iniciar.
Também se deve considerar o risco do acidente de trabalho, acentuado na
construção civil, cujo ressarcimento passa à responsabilidade do patrimônio de
afetação, podendo atingir somas consideráveis.
Os riscos das obrigações trabalhistas correm contra os adquirentes. E
certamente existirão porque incorporador que vem a falir, paralisa ou retarda obra,
dificilmente está quite com seus empregados, isto sem considerar o passivo
trabalhista oculto, de difícil visualização, que só se apresenta ao término da relação
empregatícia com a propositura de uma reclamatória.
A maneira como a questão laboral foi tratada pela Lei 10.931/2004 deixou
muito a desejar pondo a descoberto os adquirentes. O tema mereceria tratamento
mais detalhado de modo a que se impusesse com modificações explícitas também
para o Direito do Trabalho como forma de conferir maior segurança às partes.
O mesmo § 1º do art. 31-F dispõe que os adquirentes também devem quitar
as obrigações tributárias e previdenciárias vinculadas ao patrimônio de afetação.
Sobre o tema dispõe também no § 20 que
131
Ficam excluídas da responsabilidade dos adquirentes as obrigações
relativas, de maneira direta ou indireta, ao imposto de renda e à
contribuição social sobre o lucro, devidas pela pessoa jurídica do
incorporador, inclusive por equiparação, bem como as obrigações oriundas
de outras atividades do incorporador não relacionadas diretamente com as
incorporações objeto de afetação.
Ocorre, todavia, que a conjugação desses dispositivos é incompatível com os
arts. 1º a 11 da Lei 10.931/2004. Com efeito, estes dispositivos criaram o Regime
Especial de Tributação-RET para os patrimônios de afetação, com adesão
facultativa, tributando-os de maneira destacada do patrimônio geral do incorporador
mediante alíquota de 7% sobre base de cálculo única consistente na receita mensal
do empreendimento, representando pagamento único para Imposto de Renda das
Pessoas Jurídicas-IRPJ, Contribuição para os Programas de Integração Social e de
Formação do Patrimônio do Servidor Público-PIS/PASEP, Contribuição Social sobre
o Lucro Líquido-CSLL e Contribuição para Financiamento da Seguridade SocialCOFINS.
Assim, se o incorporador aderiu ao Regime Especial de Tributação-RET, em
caso de falência, atraso ou retardamento da obra, os adquirentes liquidam o
patrimônio de afetação ou concluem a obra e, em qualquer dos casos, haverão de
pagar o tributo devido pela adesão ao RET, calculado à taxa de 7% sobre as
receitas auferidas porém não recolhidas pelo incorporador. No entanto, se o
incorporador não optou pelo RET, a tributação que existirá será sobre o patrimônio
geral do incorporador. Logo, pelo disposto no inciso I, § 18, art. 31-F, não haverá
tributo vinculado “ao respectivo patrimônio de afetação”. A este argumento alia-se o
§ 20 ao estabelecer que os adquirentes não são obrigados a pagar os tributos
decorrentes do patrimônio geral do incorporador.
Ainda tratando sobre o que se possa considerar como “obrigações” e
“encargos” relativos à incorporação afetada, dúvidas maiores surgem quando se
analisa a questão contábil do patrimônio de afetação. Neste sentido, questiona-se se
também seria obrigação do patrimônio eventuais dívidas dolosamente contabilizadas
e dívidas omitidas de sua contabilidade. Com efeito, optando por concluir a obra e
chamando à aplicação o disposto no § 11 do art. 31-F, os adquirentes podem ser
surpreendidos com credores não mencionados na contabilidade.
A esse pequeno catálogo de problemas que só agravam a posição dos
adquirentes outros ainda se somam. Na maioria esmagadora dos casos em que
132
decidem concluir um edifício em razão do inadimplemento do incorporador, os
adquirentes se veem obrigados a aplicar na obra mais recursos do que aqueles que
haviam pactuado no contrato de compra e venda firmado com o incorporador. A obra
consome mais do que seu custo projetado. É ingênua a suposição de que esse fato
não se repetirá tão-somente porque adotado o regime de afetação patrimonial sob
fiscalização contábil de um agente financeiro ou de uma Comissão de
Representantes. O propósito da afetação patrimonial é este. É um propósito ético e
legal. Discorrendo sobre a questão do limite de recursos (ou sua falta) que devem
ser aportados pelos adquirentes que assumem a conclusão da obra, discorre
MELHIM NAMEM CHALHUB160 explicando que:
O fato de o aporte de recursos dos adquirentes estar limitado ao valor
contratado para a aquisição das suas unidades não significa que este
devem, necessariamente, interromper o aporte uma vez que atingido esse
valor; podem e, conforme as circunstâncias, talvez devam os adquirentes
continuar aportando recursos além daquele limite, se julgarem conveniente
a conclusão da obra; o limite de responsabilidade dos adquirentes apenas
indica que o quantum do aporte que exceder o valor contratado para a
aquisição poderá ser ressarcido pelo incorporador, malgrado as dificuldades
de obtenção de ressarcimento em caso de falência.
Atualmente, pelo contido no § 11 do art. 31-F, optado pela conclusão das
obras, os adquirentes serão responsabilizados perante uma plêiade de credores do
patrimônio de afetação, que lhes cobrarão responsabilidades que não existia no
regime originalmente previsto na LCI.
Indubitavelmente, o maior favorecido com o surgimento da afetação foram as
instituições financeiras, que por meio dela ficaram imunes à Súmula 308 do STJ,
que é anterior à Lei 10.931/2004 (§ 3º do art. 31-A; art. 31-E, I; § 18, II, do art. 31-F).
Além da garantia real, os agentes financeiros passaram a contar com a garantia
pessoal de liquidação de seus créditos mediante esforço dos adquirentes (§ 11 do
art. 31-F; § 4º do art. 31-A; §§ 12, IV, e 15 do art. 31-F), doravante devedores
subsidiários das dívidas contraídas pelo incorporador para a construção da obra
ainda que, teoricamente, utilizadas com outras finalidades (“desvio de recursos”).
Por fim, também se afastou das instituições financeiras a jurisprudência que vinha se
formando no sentido de responsabilizá-las pela qualidade e segurança das obras (§
12 do art. 31-A; § 1º do art. 31-C).
160
CHALHUB, Melhim Namem. Das incorporações. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar, 2003, p. 118.
133
Tanto é correto dizer que o maior beneficiado foram as instituições financeiras
que apenas se têm utilizado o patrimônio de afetação (é facultativo a “critério” do
incorporador – art. 31-A, caput) nas incorporações em que haja financiamento
bancário161. Quer dizer, são as instituições financeiras que têm exigido a afetação,
não os incorporadores nem os consumidores (estes nem imaginam que ela exista).
Compartilhando do entendimento sobre o agravamento da posição dos
adquirentes, NÉLSON LUIZ GUEDES FERREIRA PINTO162 assim se posicionou
quando escreveu ao tempo da Medida Provisória 2.221/2001:
A lei 4.591/64 sempre previu a proteção coletiva dos adquirentes no caso
de fracasso do incorporador, por atraso injustificado, paralisação de obras
ou falência. Esse direito materializa-se, através de decisão assemblear,
vinculativa para a maioria, de destituir o incorporador e prosseguir nas
obras, com ou sem um novo incorporador, o que se faz sem prejuízo do
direito de pleitear perdas e danos do incorporador destituído (artigos 34, III
e VI e 49, da lei 4.591/64 e artigo 43, da lei 7.661/45). Na hipótese
destituição, o patrimônio era na prática destacado, e os adquirentes
somente respondiam pelo débitos previdenciários, necessários à obtenção
de certidão negativa de débito a ser averbada com a baixa da construção,
além do IPTU não pago. As próprias hipotecas em favor de bancos vinham
sendo questionadas, ultimamente, quanto à sua oponibilidade aos
compradores.
Com a instituição do patrimônio de afetação, as normas previstas para as
hipóteses de fracasso do incorporador diferem das anteriores, com
vantagens e desvantagens para os adquirentes.
[...]
161
Conforme notícia veiculada pela Câmara Brasileira da Indústria da Construção-CBIC em 15.01.2007, até o
ano de 2006, ou seja, passados mais cinco anos desde a edição da MP 2.221/2001, em todo o país apenas para 90
empreendimentos fora aplicado o regime de afetação, em geral pela presença de interesse de instituição
financeira, verbis:
“Só 90 empreendimentos imobiliários em todo o país adotaram o patrimônio de afetação em 2006, o
equivalente a 20% dos que tiveram financiamento da caderneta de poupança para construção de imóveis
residenciais. A adesão das construtoras a esse regime opcional de segregação contábil -criado para proteger
pessoas que compram e bancos que financiam moradia na planta - ainda está está longe da pretendida pelas
instituições financeiras. Mas, vem crescendo desde o primeiro ano de sua efetiva utilização, em 2005, quando
foi de apenas 12%.
Essa foi a conclusão a que chegou o vice-presidente da Câmara Brasileira da Indústria da Construção
(CBIC), José Carlos Martins, ao confrontar dados da Secretaria da Receita Federal (SRF) com números do
Banco Central sobre operações do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE, cuja fonte é a
caderneta) com as construtoras. Embora lenta, a evolução está dentro do esperado tanto pela CBIC quanto pela
Abecip, associação que representa as instituições financeiras com carteira de crédito imobiliário.
Para os bancos, o cenário ideal seria uma adesão de 100%, reconhece o diretor geral da Abecip, Osvaldo
Fonseca, sabendo que isso ainda vai demorar. "O patrimônio de afetação exige uma profunda mudança de
cultura das construtoras. Se fosse fácil, seria obrigatório", diz Fonseca. Ele acredita que a exigência do regime
em todos os empreendimentos financiados pelo sistema bancário só será possível a partir de 2014, quando
completará dez anos a lei atualmente em vigor.”. (CÂMARA Brasileira da Indústria da construção. Segregação
contábil
atinge
20%
do
empreendimentos.
Disponível
em:
<
http://www.cbic.org.br/mostraPagina.asp?codServico=1491&codPagina=7930>. Acesso em 20.10.2009).
162
O contrato imobiliário e a legislação tutelar do consumo. Coordenação: THEODORO JÚNIOR,
Humberto. 1ª ed., Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002, pp. 318-320.
134
A grande desvantagem da destituição do incorporador, no caso de
patrimônio de afetação e decisão assemblear pela continuidade das obras,
consiste na responsabilidade solidária dos adquirentes pela liquidação de
débitos trabalhistas, previdenciários e tributário do referido patrimônio (art.
30C, § 3º), bem como pela sub-rogação em todas as demais obrigações e
encargos do patrimônio afetado, inclusive do financiamento (artigo 30C, §
7º).
Essas são algumas críticas. Outras aqui poderiam ser incorporadas mas para
evitar de repeti-las, foram deixadas inseridas na parte que trata do inadimplemento
na incorporação imobiliária.
135
IV INADIMPLEMENTO NA INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA
IV.1 INADIMPLEMENTO NA INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA. DIVERSIDADE DE
CONSEQUÊNCIAS
Em geral, o inadimplemento contratual abre a possibilidade de pedir-se a
resolução do contrato com perdas e danos ou sua execução forçada, colocando as
partes da relação contratual em pólos opostos. Assim também se dá na
incorporação imobiliária, a depender do regime de incorporação adotado, quando
um determinado consumidor descumpre o contrato firmado com o incorporador ou
com o construtor, e vice-versa.
No entanto, considerada a multiplicidade de interesses presentes na
incorporação imobiliária, unidas entre si ainda pela função social da atividade
(conclusão da obra), quando o inadimplente for o incorporador, soluções diversas se
abrem de modo a que se alcance o desiderato inicial dos consumidores, de adquirir
um imóvel. Pelos mesmos motivos, quando o inadimplente for o consumidor regras
especiais permitem procedimentos diferenciados para a execução do contrato.
Essas particularidades é que serão abordadas nos itens que se seguem.
IV.2 O ART. 53 DO CDC E O INADIMPLEMENTO DOS ADQUIRENTES FRENTE
AO INCORPORADOR
Um dos meios de que se valem os incorporadores para alavancar os recursos
necessários à construção de um edifício consiste em combinar recursos de caixa do
próprio incorporador com recursos provenientes das vendas antecipadas dos
imóveis, feitas ainda no curso da obra (vendas de “imóvel na planta”). Esse sistema
de financiamento da construção é previsto e autorizado pela LCI, notadamente em
razão da insuficiência de recursos por parte dos incorporadores brasileiros, indo
além, autoriza até mesmo que o incorporador construa sobre terreno alheio com
base em uma procuração. Tanto assim que a própria LCI prevê, como já referido, a
136
possibilidade de o incorporador desistir dos contratos firmados se acaso perceber
que o volume de vendas “na planta” não será suficiente para obter os recursos
necessários para que a construção seja concluída no prazo previsto.
São opções adotadas pelo legislador com o intuito de fomentar a atividade,
franqueando sua prática a um maior número de empresários que, não obstante não
disponham de todos os recursos necessários, são responsáveis e tecnicamente
capazes.
Assim, considerado esse sistema de financiamento, a previsibilidade do fluxo
de recursos decorrentes das vendas realizadas pelo incorporador é fator decisivo
para o sucesso da incorporação ou, quando menos, para o lucro do incorporador.
Sem esses recursos e sem caixa suficiente, para concluir a incorporação o
incorporador terá que se socorrer de linhas de crédito que lhe gerarão encargos
financeiros.
Evidente então que a manutenção dos contratos de compra e venda de
imóveis “na planta” é condição para que a atividade empresarial do incorporador
tenha sucesso e, de consequência, para que a função social da atividade seja
alcançada permitindo a conclusão da obra em prol dos consumidores e todos os
demais partícipes que se relacionam direta ou indiretamente pela rede contratual
que se forma na incorporação.
Não obstante tais ponderações, significativa parcela da jurisprudência passou
a interpretar o art. 53 do CDC como se fosse lícito ao consumidor desistir do contrato
de compra e venda firmado sem que haja culpa do incorporador, até mesmo depois
que o consumidor tenha recebido a posse do imóvel já concluído. Segundo essa
jurisprudência, mesmo que inadimplente, o consumidor pode desistir do contrato e
ainda obter devolução de parte considerável dos valores que já tenha pago163. A
simples “insuportabilidade das prestações”, mesmo que não haja excesso de
cobrança, tem justificado essa desistência164.
163
Em geral, a jurisprudência tem permitido que do total pago pelo consumidor seja retido pelo incorporador um
percentual entre 20% e 30% como forma de indenizar seus prejuízos, indenização esta que, diga-se de passagem,
tem sido arbitrada sem atenção às especificidades do caso concreto, como se todo e qualquer prejuízo suportado
pelo incorporador fosse indenizado pela retenção daquele percentual de 20% a 30%. Evidente que há casos em
que a fixação desse percentual representará uma retenção superior ao prejuízo causado ao incorporador e, em
outras, inferior.
164
Neste sentido é que se firmou a orientação do STJ no REsp 1056704/MA que “[...] o promitente-comprador,
por motivo de dificuldade financeira, pode ajuizar ação de rescisão contratual e, objetivando, também reaver o
reembolso dos valores vertidos”.
137
Ocorre, todavia, que tal jurisprudência implica rejeitar o próprio significado de
contrato como vínculo que une as partes e torna obrigatório o cumprimento das
obrigações sob pena de execução ou de pedido de rescisão à disposição sempre do
contratante inocente (no caso o incorporador – art. 475 do CC/02), exceto, é claro,
naqueles casos previstos em lei como, v. g., a onerosidade excessiva superveniente.
A questão passo ao largo de uma justificativa dos consumidores da qual se
possa dizer embasada em boa-fé, considerando, conforme anota PAULO NALIN,
que boa-fé não se presta para frustrar “legítimas expectativas contratuais formuladas
na esfera jurídica de qualquer dos contratantes”165. Em que pese a relativização da
força obrigatória do contrato, permanece hígido o dever de cumprimento das
obrigações e a necessidade de imputação da culpa sob pena de tornar sem efeito as
expectativas criadas em um dos contratantes em razão das declarações de vontade
feitas pelo outro.
A função social do contrato, que no caso consiste em colaborar para que o
empreendimento seja concluído em benefício dos consumidores adquirentes, da
atividade do incorporador e de toda a rede contratual que se forma no entorno da
incorporação, também é desrespeitada. Na medida em que se faculta a um
comprador desistir do contrato sem imputação de culpa à parte contrária, confere-se
tal direito a todos os demais, criando assim descompasso no fluxo de recursos que
frustra a expectativa projetada pelo incorporador. Como resultado possível têm-se a
paralisação ou atraso da obra, causando prejuízos a todos os contratantes,
especialmente àqueles adimplentes.
A função social do contrato de compra e venda de unidade imobiliária em
construção só será atendida se acaso o funcionamento do negócio ocorrer com uma
segurança jurídica mínima. Por isso, o fundamento econômico e jurídico do contrato,
quando este for firmado em conformidade com a lei, deve ser respeitado166. A pacta
sunt servanda não pode ser relativizada ao ponto de permitir o fim do vínculo em
razão de qualquer dificuldade financeira particular do consumidor. Com efeito, se as
cláusulas contratuais não estabelecem prestações desproporcionais e se não há
desproporcionalidade das prestações em decorrência de onerosidade excessiva
165
NALIN, Paulo Roberto Ribeiro. Ética e boa-fé no adimplemento contratual. In FACHIN, Luiz Edson
(coord.). Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 195.
166
Evidente que não se defende, em nome do ato jurídico perfeito, os abusos que contra os consumidores são
praticados no mercado de consumo.
138
superveniente (art. 6º, V, do CDC), o contrato continua a vincular as partes. A
propósito desse assunto o enunciado nº 22 das Jornadas de Direito Civil do STJ
conclui que “A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil,
constitui cláusula geral, que reforça o princípio da conservação do contrato,
assegurando trocas úteis e justas”.
Na realidade, a correta interpretação do art. 53 do CDC sequer confere direito
de ação ao inadimplente para que peça a rescisão do vínculo invocando como causa
de pedir seu próprio inadimplemento. O dispositivo de fato proíbe que o fornecedor
se aproprie de todos os valores pagos pelo consumidor quando do desfazimento do
contrato, mas só confere pretensão jurídica para rescisão contratual ao contratante
inocente. Comentando o art. 53 do CDC, NÉLSON LUIZ GUEDES FERREIRA
PINTO167 explica com clareza seu real sentido e acusa a jurisprudência de
paternalista:
A crise do contrato de incorporação passou a ser extremamente grave, com
o rompimento de seu equilíbrio e funcionalidade, quando expressiva
corrente jurisprudencial passou a ignorar os princípios da culpa
contratual e da irretratabilidade das promessas de compra e venda,
prestigiados inclusive no Código de Defesa do Consumidor, interpretando
as avessas o artigo 53, da Lei 8.079/90, para conceder ao comprador
inadimplente o direito de arrependimento ou resilição, diante de áleas
ordinárias, como valorização ou desvalorização do imóvel ou perda de
renda ou salário.
Examinado-se o citado artigo 53, verifica-se que o sujeito da oração é sem
dívida o credor, o fundamento que enseja o pedido é o inadimplemento
do comprador, a pretensão é o pedido de retomada do bem e a
conseqüência é a devolução de parte do preço pago. Assim sendo, a lei
não contempla rescisão do contrato quando não há iniciativa do
incorporador em pedir a retomada do imóvel do inadimplente.
Negando esse direito de resilição por parte do inadimplente, há forte e
expressiva corrente jurisprudencial que não se deixa levar pelo
paternalismo e pelo subjetivismo do direito alternativo, que busca fazer
"justiça social" através de decisões judiciais. Nesse sentido temos, entre
outros, os seguintes julgados: Resp. 61.190/SP, relator ministro Carlos
Alberto Menezes Direto; Resp 59.870/SP, relator ministro Ari Pargendler;
TAMG, apelação 234.121-3, relator juiz Caetano Levi Lopes [...]
167
PINTO, Nélson Luiz Guedes Ferreira. Contrato de incorporação imobiliária. In THEODORO JÚNIOR,
Humberto (Coord). O contrato imobiliário e a legislação tutelar do consumo. Rio de Janeiro: Editora Forense,
2002, pp. 294-295, grifos e negritos do autor.
139
No mesmo sentido, o HUMBERTO THEODORO JUNIOR168, para quem tais
decisões ferem a ética e a boa-fé:
O art. 53 do CDC, porém, não veio inovar em matéria de legitimidade de
partes para provocar a dissolução do contrato bilateral. As regras básicas,
para tanto, continuam sendo as do Código Civil. O dispositivo em questão
nada mais fez do que sintetizar, em matéria de resolução contratual por
inadimplemento do consumidor na aquisição de bens imóveis e moveis por
alienação fiduciária, os princípios da ética, boa-fé, equidade e equilíbrio que
presidem as relações obrigacionais, de molde a garantir-se a compensação
do fornecedor que aquela não deu causa, como também prestações pagas.
[...]
A boa-fé, valorizada pelo CDC, obviamente não pode servir de pretexto
para anular a força do contrato, indispensável à ideologia do regime
econômico adotado constitucionalmente.
Admitir por outro lado, que o infrator do contrato, ou seja, a parte
inadimplente, venha a usar sua própria infração como justificativa para
pleitear a rescisão do contrato importa simplesmente anular a maior
conquista da teoria do direito contratual, que é a boa-fé, tão ressaltada,
entre nós, pelo próprio Código de Defesa do Consumidor.
Segundo princípio fundamental dos contratos bilaterais, aquele que não
cumpre a prestação a seu cargo não pode exigir o cumprimento da
prestação do outro contratante; e aquele que, tendo cumprido a prestação
que lhe competia, se vê prejudicado pelo inadimplemento, tem a opção
entre executar a prestação da parte faltosa e romper o contrato com perdas
e danos. Jamais se poderá, em respeito ao principio da boa-fé, aceitar que
o responsável pela violação do contrato se torne titular do direito potestativo
de impor sua vontade a parte inocente, forçando-a rescisão do negocio
jurídico.
O art. 421 do CC/02 dispõe que “A liberdade de contratar será exercida em
razão e nos limites da função social do contrato”. Muito se invoca esse dispositivo
mediante deturpação de seu sentido, não raras vezes concluindo que, no mercado
de consumo, há função social quando se decide em favor do consumidor porque é a
parte mais fraca da relação quem necessita de proteção. Altera-se até mesmo a
equação econômica do contrato redistribuindo seus valores entre as partes a fim de
conferir “justiça” à decisão em prol do consumidor.
O art. 421 do CC/02, que em verdade nada traz de novo em relação ao
CC/16, apenas deixa explícito que o contrato é um meio para atingir um determinado
fim (ele tem uma função). Esse fim, essa função, não é algo imanente ao contrato,
mas ao regime de produção em que ele está inserido. Assim, a função de um
contrato no regime socialista pode ser a realização de justiça distributiva. No
168
THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato imobiliário e legislação tutelar do consumo. In THEODORO
JÚNIOR, Humberto (coord). O contrato imobiliário e a legislação tutelar de consumo. Rio de Janeiro:
Editora Forense, 2002, pp. 99-102.
140
entanto, no regime capitalista a função social do contrato é meio de desenvolvimento
da atividade produtiva do particular, é instrumento de trabalho, é meio para
circulação de riqueza, para realização de trocas justas e também meio de acesso ao
mercado de consumo. Funcionalizar o contrato para atender um objetivo (fazer
justiça social, distributiva) que ele não tem em determinado regime econômico
(capitalista),
significa
ir
contra
sua
própria
existência,
frustrando
suas
potencialidades econômica e social.
O efeito causado pelo desfazimento imotivado do contrato consiste, em última
análise, em prejudicar o próprio consumidor. A suposição de que tais decisões
judiciais melhoram sua situação padece de visão coletivista porque apenas vê os
consumidores envolvidos no litígio de que resulta a decisão judicial, estes sim os
reais favorecidos.
Para o bom funcionamento do mercado se fazem necessárias regras claras e
interpretação razoável que não deturpe os direitos e obrigações das partes,
condizentes com a função social dos contratos. A necessidade de avaliação de
riscos para fins de projeção de lucros é um fato determinante na decisão sobre em
que e como trabalhar. Se não há objetividade nessa avaliação, teoricamente o risco
pode ser adotado como máximo. E quanto maior o risco para o mercado menos
mercado há.
Não obstante a fundamentação das decisões que autorizam a desistência
imotivada do contrato, o que de mais contundente há para se dizer contra elas talvez
seja o fato de não refletirem a noção que o cidadão comum tem acerca da ideia de
contrato. Essa noção não é algo que seja fruto de desinformação do leigo, mas sim
decorrente do senso comum que inspira as mais básicas regras de direito. Mais que
isso, é uma noção que se depreende da prática do dia-a-dia, que impõe a conclusão
de que não se pode desistir dos contratos por ato de mera potestatividade. Esse
cidadão comum, que se guia pelas regras da experiência que inspiram o direito e
que nele se encontram positivadas, deve ter seus direitos respeitados em nome da
boa-fé e da segurança jurídica. Ele é a figura ideal de um honesto e cuidadoso pai
de família, que se toma como modelo de comportamento nas relações jurídicas. É,
enfim, o homem adimplente, o cidadão que atua em respeito ao direito alheio e exige
o respeito ao seu, que tem um padrão de comportamento objetivamente visível no
mundo jurídico e sensível a qualquer razão. Esse homem é aquele que a doutrina
141
usualmente designa de homo medius. Ao levar em conta os fatos da vida, o juiz
deve encarar a qualquer um, nas suas negociações habituais da vida, como o bonus
pater familias, o homo diligens, isto é, quem, como tal, é homem diligente e zeloso.
A interpretação jurisprudencial dominante acerca do art. 53 do CDC, todavia,
não parece razoável a esse homem médio, na medida em que desafia o senso
comum que confere uma determinada boa-fé a quem contrata. E na medida em que
esse senso comum encontra-se positivado (garantia mínima de preservação dos
contratos), certamente também há desrespeito à segurança jurídica em seu mais
comezinho significado, qual seja, a impossibilidade de o contratante inadimplente
desistir do pacto passando os ônus de seu insucesso ao contratante inocente.
Falando-se no senso comum desse homem médio relativamente a questões
patrimoniais, vê-se aí a questão da legitimidade da lei e da ilegitimidade das
decisões judiciais. O que seja legitimo pode ter significado diferente para um mesmo
fato, conforme o tempo, o lugar e, especialmente, o regime de produção adotado
pela sociedade (capitalista, socialista, anarquista, corporativista, artesanal ou
feudalista). O caráter de um direito patrimonial em razão de sua (i)legitimidade é
aferido segundo os padrões de funcionalidade em que a economia está inserida. O
mercado é um fato social169 que integra a própria estrutura e o modo de ser da
sociedade. Não se trata de indagar qual é o melhor regime de produção, mas sim a
noção de legitimidade que de cada regime brota. Tratando desta questão, EROS
ROBERTO GRAU170 identifica a legitimidade como sendo o “direito pressuposto”,
fruto de padrões histórico-culturais e do regime de produção adotados na sociedade,
o qual informa a lei (o “direito posto”):
169
Sobre o mercado como fato social, escreve Luciano Benetti Timm: “Em uma perspectiva de análise
econômica do Direito, não se rejeita que existam interesses coletivos dignos de tutela nas relações contratuais.
Contudo a coletividade é identificável na estrutura do mercado que está por trás do contrato que está sendo
celebrado e do processo judicial relacionado ao litígio a ele pertinente (em verdade, a própria Lei 8.884/94
reconhece ser o mercado protegido por ela um interesse difuso ou coletivo digno de tutela). Nesse sentido, o
todo em um contrato de financiamento habitacional é representado pela cadeia ou rede de mutuários (e
potenciais mutuários), que dependem do cumprimento do contrato daquele indivíduo para alimentar o sistema
financeiro habitacional, viabilizando novos financiamentos a quem precisa. Assim, se houver quebra na cadeia,
com inadimplementos contratuais, quem sai perdendo é a coletividade (que ficará sem recursos e acabará
pagando um juro maior). Até porque, conceitualmente e mesmo na vida real, os bancos não emprestam o seu
dinheiro, mas uma moeda captada no mercado”. ( Direito, economia e a função social do contrato: em busca
dos
verdadeiros
interesses
coletivos
protegíveis
no
mercado
do
crédito.
<http://www.viadesignlabs.com/lawandeconomics/Funcao_Social_Contrato.pdf>, acessado em 04/12/2007).
170
GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. São Paulo: Malheiros Editores, 5ª Ed., 2003,
pp. 88-92.
142
A legitimidade de que ora cuido, pois – legitimidade que não se identifica
com legalidade; legitimidade do direito posto –, é produto da autoridade,
entendida esta como decorrente da captação de padrões histórico-culturais,
e não da captação de qualquer vontade ou conjunto de vontades (...).
Impõe-se superarmos, no entanto, qualquer idealismo que se pretende
sustentar desde minha afirmação inicial, neste capítulo.
É que a necessidade de revelação (captação) dos padrões históricoculturais da sociedade induz que dotado de autoridade é o legislador capaz
de reconhecer as aspirações sociais e o interesse social, onde esboçada a
idéia de uma sociedade ideal.
O que importa é podermos definir quando e como o legislador exercita
autoridade.
A questão resolve-se no plano da realidade histórico-cultural e do estado de
atuação das forças materiais produtivas, consideradas, ainda, as noções de
direito pressuposto e de direito posto.
[...]
Diremos, então, que um direito posto é legítimo quando permite o pleno
desenvolvimento das forças materiais produtivas, em determinada
sociedade; ilegítimo, quando constitui entrave ao pleno desenvolvimento
dessas forças, ocasião em que se instala um época de revolução social.
[...]
Minha postulação, que afasta qualquer idealismo, permite-nos verificar que,
inúmeras vezes, um direito posto legítimo é precisamente o que instumenta
dominação de classe e justifica a titularidade do poder por essa mesma
classe.
Assim, as sociedades feudais veiculavam direitos legítimos enquanto esses
direitos, ainda que instrumentando dominação de classe e justificação do
poder, permitiram o pleno desenvolvimento das forças materiais produtivas
feudais. E assim por diante: a ilegitimidade de um direito se manifesta
quando se instalam, em todas as suas possíveis nuanças, movimentos e
épocas de revolução social.
Com isso, creio, desmitificamos a legitimidade. Os padrões culturais e as
aspirações de cada sociedade estão informados por condições históricas.
Assim, houve uma legitimidade feudal, como há uma legitimidade capitalista
e se poderá falar (ainda) de uma legitimidade socialista.
Legítimo, assim – direito de outro modo -, é o direito posto que permite o
pleno desenvolvimento das forças materiais produtivas. Os padrões
culturais e as aspirações que estão em jogo, caracterizantes ou não
caracterizantes da legitimidade de um direito, são os que afirmam ou negam
o estado de coexistência dos vários modos de produção que coexistem na
sociedade ao qual é aplicado.
Em conclusão, a desistência dos contratos de compra e venda com base no
art. 53 do CDC não encontra amparo em nível constitucional e infraconstitucional,
atentando contra a função social dos contratos, contra a boa-fé, além de desvirtuar o
sistema de incorporação imobiliária quando visto como rede contratual.
143
IV.3 INADIMPLEMENTO DOS ADQUIRENTES E A EXECUÇÃO EXTRAJUDICIAL
(ART. 63 DA LCI). CONSTITUCIONALIDADE
No tocante à forma de realizar o custeio da construção têm-se que ela pode
se dar por três meios conforme se trate: (a) incorporação a prazo e preço certos ou
por preço fechado (arts. 41 e 43); (b) incorporação com construção a preço de custo
ou por administração (art. 58); e (c) incorporação com construção por empreitada a
preço reajustável ou fixo (art. 55).
No regime de construção a prazo e preço certos, conhecido no jargão
comercial como “a preço fechado”, como visto, os compradores pactuam com o
incorporador um preço que envolve a fração ideal do terreno e o custo da construção
da obra, cujo data de conclusão é assumida por conta e risco do incorporador.
Assim, o incorporador vende a fração e se compromete a entregar a unidade
construída, sendo indiferente para os compradores se os custos efetivos forem
superiores ou inferiores à soma dos preços de venda de todas as unidades
alienadas pelo incorporador. Neste regime de construção, o construtor poderá ser o
próprio incorporador ou um terceiro por ele contratado. O preço da compra e venda
firmada com os adquirentes pode ser pactuado com ou sem correção monetária.
Já na incorporação a preço de custo ou por administração, os adquirentes são
compradores apenas de uma fração ideal do terreno. O custo efetivo da construção
que se levantará é de responsabilidade de quem compra dita fração, ou seja, são os
compradores quem, diretamente, paga pela construção e arca com os riscos de
elevação do preço final da construção. Lançada a incorporação, até que a fração
ideal de terreno seja vendida, é do incorporador a responsabilidade pelo pagamento
do custo da construção que lhe diga respeito (§ 6º do art. 35 e § 5º do art. 55). Uma
vez alienada a fração pelo preço pedido pelo incorporador, seu adquirente assumirá
o custo remanescente da construção. Assim, o incorporador segue pagando o custo
da construção relativa às frações que não comercializar, até que todas estejam
comercializadas, quando então só os recursos dos compradores é que verterão para
o pagamento da construção. O próprio incorporador pode figurar como construtor,
firmado contrato de construção à parte. No regime de preço de custo não se imputa
ao incorporador a responsabilidade por demora na conclusão da obra ocasionada
144
pelo inadimplemento dos adquirentes, que neste caso são condôminos da
construção, responsáveis entre si.
Já no regime de empreitada, o incorporador vende aos interessados
exclusivamente as frações ideais de terreno, que depois passam a pagar o custo da
construção previamente pactuado em um contrato de empreitada. Tal qual no
regime de preço de custo, até que a fração ideal seja vendida, a responsabilidade
pelo pagamento do custo da construção que lhe diga respeito é do incorporador (§
6º do art. 35 e § 5º do art. 55). O custeio da construção é dos compradores, mas ele
não é sujeito a alterações como se dá no regime de preço de custo, salvo no tocante
à correção monetária. O empreiteiro poderá ser o próprio incorporador ou um
terceiro. A lei também permite que a empreitada seja contratada por preço fixo ou
com correção monetária.
Como se vê, os recursos necessários à construção dos edifícios, direta ou
indiretamente, provêm dos adquirentes. São eles quem paga o custo das
construções levadas a cabo sob os regimes de empreitada e de administração
(preço de custo). Já nas incorporações a preço e prazo certos (preço fechado),
quem assume os riscos de concluir a obra é o incorporador, mas indiretamente
também são os compradores que, pelas mãos daquele, canalizam recursos para a
construção.
Em qualquer dos casos, sem que os adquirentes vertam recursos para
custear a obra muito provavelmente ela entrará em colapso, retardando ou
paralisando. Considerada essa possibilidade, importa analisar um dos instrumentos
que lei põe à disposição das partes com a finalidade de solucionar a inadimplência.
Trata-se do procedimento de cobrança previsto no art. 63 da LCI, conhecido por
“execução extrajudicial” ou “leilão extrajudicial”.
Sem passar pelo crivo do Judiciário, esse procedimento de cobrança torna
viável a perda de propriedade de bem imóvel (fração ideal de terreno com a eventual
construção acrescida) e móvel (direito de crédito), decorrentes da relação jurídica
que mantém o inadimplente vinculado à edificação, ao incorporador e aos demais
adquirentes.
Sua adoção pode se dar em qualquer espécie de incorporação (por fechado
ou com construção a preço de custo e por empreitada). O que substancialmente se
altera é legitimidade ativa para recebimento do crédito reclamado.
145
Assim, quando o pagamento construção é rateado diretamente entre os
adquirentes das unidades (regimes de empreitada e a preço de custo), dependendo
que constar previsto no contrato de construção e na convenção do condomínio
construtivo (se houver), o procedimento de cobrança do art. 63 da LCI poderá ser
deflagrado pela comissão de representantes, composta por pessoas eleitas dentre
os adquirentes (arts. 49 e 50), ou pelo construtor, conforme autoriza o caput daquele
artigo combinado com os incisos VI e VII do art. 1º da Lei 4.864/65171. Quando
houver previsão de que o débito do inadimplente seja cobrado pela Comissão de
Representantes, após recebido o valor, ela deverá tomar as providências para que o
crédito do construtor seja satisfeito. Na mesma linha de raciocínio, o art. 52 da LCI
prevê que o adquirente inadimplente não receberá a posse do imóvel enquanto não
quitar o preço da construção que lhe toca, caso em que permanecerá retida com o
construtor ou com o condomínio construtivo, conforme o caso.
Em qualquer dos casos, o construtor ou a comissão de representantes deverá
remeter notificação ao inadimplente para que este purgue a mora no prazo de 10
(dez) dias sob pena de sua fração ideal de terreno e respectiva construção, com
todos os direitos e obrigações com ela conexos, serem vendidas em leilão público.
Em havendo arrematação no leilão, devem ser observadas as regras de imputação
de pagamento previstas nos §§ 2º e 4º do art. 63. Quitado o débito principal,
despesas, honorários e multa, o que sobejar do valor pago será entregue ao
devedor, à semelhança do que se dá nas execuções judiciais.
Pouco usual, mas nem por isso ilegal ou incompatível com o CDC
considerado o caráter de lex specialis da LCI, nas construções sob o regime de
preço fechado também pode ser adotado o procedimento de cobrança previsto no
171
“Art. 1º Sem prejuízo das disposições da Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964 os contratos que tiverem
por objeto a venda ou a construção de habitações com pagamento a prazo poderão prever a correção monetária
da dívida, com o conseqüente reajustamento das prestações mensais de amortização e juros, observadas as
seguintes normas:
(...)
VI - A rescisão do contrato por inadimplemento do adquirente sòmente poderá ocorrer após o atraso de, no
mínimo, 3 (três) meses do vencimento de qualquer obrigação contratual ou de 3 (três) prestações mensais,
assegurado ao devedor o direito de purgar a mora dentro do prazo de 90 (noventa) dias, a contar da data do
vencimento da obrigação não cumprida ou da primeira prestação não paga.
VII - Nos casos de rescisão a que se refere o item anterior, o alienante poderá promover a transferência para
terceiro dos direitos decorrentes do contrato, observadas, no que forem aplicáveis, as disposições dos §§ 1º a 8º
do art. 63 da Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, ficando o alienante, para tal fim, investido dos podêres
naqueles dispositivos conferidos à Comissão de Representantes”.
146
art. 63172. Para tanto, os incisos VI e VII do art. 1º da Lei 4.864/65, investem o
incorporador dos mesmos poderes que têm as Comissões de Representantes para
realização do procedimento de execução extrajudicial. Neste caso, todavia, tendo
em conta que no regime de “preço fechado” (art. 43) é o incorporador quem
responde pelo término da obra frente aos adquirentes e suporta com recursos
próprios a insuficiência das vendas ou o inadimplemento de seus clientes, a ele é
atribuída a legitimidade ativa para realizar a cobrança e para apropriar-se dos
valores pagos a título de purgação da mora ou de arrematação.
O procedimento de execução extrajudicial previsto no art. 63 é rápido e eficaz.
Foi o meio encontrado pelo legislador para reduzir o tempo de recuperação do
crédito. Diante da necessidade de estabilização do fluxo de entradas para
pagamento da construção e atendimento do cronograma de execução da obra, de
modo a não penalizar os adimplentes e toda a rede contratual que se forma em
torno da edificação, a LCI demonstra preferência por este procedimento.
Trata-se de opção pela coletividade em detrimento da obrigatoriedade de
processamento pela via judicial a demandar maiores sacrifícios à parte inocente e
maior dilatação de tempo em favor do devedor, prevalecendo o interesse coletivo
representado no bom andamento da obra sem que impedir que o devedor questione
a dívida judicialmente se assim o desejar.
Determinadas relações exigem soluções processuais próprias ou até mesmo
para-processuais, especializadas, sem as quais se compromete o direito material.
Aspectos marcantes da modernidade, a velocidade e a eficiência são indispensáveis
para que certas relações jurídicas atinjam seu escopo no tempo projetado de modo
a evitar perda patrimonial.
A opção em questão parece ser a que melhor atende ao interesse coletivo
sem desrespeitar o direito fundamental à ampla defesa. A pergunta, que já se deixou
antever linhas atrás, diz respeito à constitucionalidade da perda de propriedade pelo
procedimento previsto no art. 63, considerada previsão de inafastabilidade da
apreciação de lesão ou ameaça de lesão a direito pelo judiciário, do devido processo
legal, contraditório e ampla defesa, previstos no art. 5º, XXXV, LIV e LV, da CF/88.
Os princípios em que se traduzem esses incisos do art. 5º, estão intimamente
ligados e coordenados entre si, podendo ser traduzidos todos eles como “direito ao
172
Cfr. CÂMARA, Hamilton Quirino, Falência do incorporador imobiliário: o caso Encol. Rio de Janeiro:
Editora Lumen Juris, 2004, pp. 66-68.
147
devido processo legal”173. Destrinchando-os, aí se têm, por alto, os princípios da
proibição de autotutela, da inafastabilidade do controle jurisdicional, do contraditório
e da ampla defesa.
A incidência desses princípios se percebe com vigor diante de algum ato ou
lei que impeça ou dificulte o direito de defesa. Daí que, considerada a possibilidade
de perda de propriedade sem o devido processo legal pelo procedimento do art. 63
da LCI, a resposta acerca de sua constitucionalidade deve envolver todos os três
incisos, em que pese a sugestão primeira que sobressai indicar que o desrespeito
seria apenas do inciso LIV, segundo o qual “ninguém será privado da liberdade ou
de seus bens sem o devido processo legal”.
A discussão, aliás, não diz respeito apenas ao procedimento da LCI. Com
efeito, guardadas as peculiaridades de cada procedimento, há modos semelhantes
de cobrança de créditos pela via extrajudicial, com perda de propriedade (plena ou
fiduciária), previstos em outros diplomas legais. Dentre eles têm-se a chamada
“execução extrajudicial” de contratos de mútuos com garantia hipotecária vinculados
ao Sistema Financeiro da Habitação, regulada pelo art. 29 e seguintes174 do
Decreto-Lei 70/66.
Nos contratos de alienação fiduciária de bens imóveis e móveis, a venda
extrajudicial da coisa como forma de satisfação do direito do credor, também é
prevista, respectivamente175, nos arts. 25 a 30 da Lei 9.514/97 e no art. 2º do
173
Neste sentido opina NÉLSON NERY JÚNIOR, para quem bastaria que a Constituição tivesse previsto que
todos tem direito ao devido processo legal para que estivessem envolvidos todos os incisos XXXV, LIV e LV,
em um só. (NERY JÚNIOR, Nélson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 3ª ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1996, p. 28).
174
Dispõem os arts. 31 e 32 do DL 70/66:
“Art. 31. Vencida e não paga a dívida hipotecária, no todo ou em parte, o credor que houver preferido executála de acordo com este decreto-lei formalizará ao agente fiduciário a solicitação de execução da dívida,
instruindo-a com os seguintes documentos:
[...]
Art. 32. Não acudindo o devedor à purgação do débito, o agente fiduciário estará de pleno direito autorizado a
publicar editais e a efetuar no decurso dos 15 (quinze) dias imediatos, o primeiro público leilão do imóvel
hipotecado.
[...]”.
175
Lei 9.514/97:
“Art. 26. Vencida e não paga, no todo ou em parte, a dívida e constituído em mora o fiduciante, consolidar-se-á,
nos termos deste artigo, a propriedade do imóvel em nome do fiduciário.
§ 1º. Para os fins do disposto neste artigo, o fiduciante, ou seu representante legal ou procurador regularmente
constituído, será intimado, a requerimento do fiduciário, pelo oficial do competente Registro de Imóveis, a
satisfazer, no prazo de quinze dias, a prestação vencida e as que se vencerem até a data do pagamento, os juros
convencionais, as penalidades e os demais encargos contratuais, os encargos legais, inclusive tributos, as
contribuições condominiais imputáveis ao imóvel, além das despesas de cobrança e de intimação”.
148
Decreto-Lei 911/69. O mesmo se dá no CC/02 que, reafirmando o que já previa o
CC/16, continua autorizando, por meio dos arts. 1.433, IV, e 1.436, que o credor
pignoratício venda o bem empenhado para quitação de seu crédito176.
Curiosamente, não se veem debates judiciais acerca da constitucionalidade
do art. 63 da LCI, diferentemente do que se dá com procedimento de execução
extrajudicial regulado pelo Decreto-Lei 70/66, de todos aqueles acima citados, o que
mais se assemelha com o procedimento da LCI. Por isto, então, interessa colher
entendimentos acerca deste Decreto-Lei.
Sobre o DL 70/66 ficou conhecido o posicionamento do extinto Primeiro
Tribunal de Alçada Cível do Estado de São Paulo, que chegou a editar uma súmula,
a de número 39, por maioria de votos na Arguição de Inconstitucionalidade n.
493.349-9/01, julgada em 23/06/1994177. No mesmo sentido foi a posição firmada
pelo extinto Tribunal de Alçada do Estado do Rio Grande do Sul no Incidente de
Inconstitucionalidade na Apelação Cível n. 189040938, julgado em 01/06/1990.
Há sérios argumentos por parte daqueles que sustentam a incompatibilidade
das chamadas “execuções extrajudiciais” com a CF/88. Todavia, há dentre eles
quem invoque argumentos de pouca pertinência, trazidos para o bojo da discussão
de maneira forçosa, e ainda outros tanto demasiadamente apaixonados.
Invocam-se, por exemplo, o princípio republicano para afirmar que todo o
poder emana do povo e que como tal todos devem ser considerados iguais perante
a lei (princípio da isonomia), ao passo, na contramão, a execução extrajudicial (no
caso do DL 70/66) só é permitida “em favor de instituições financeiras”, além de
remeter ao período da Ditadura Militar em nosso país. A alegação de existência de
autotutela é citada com frequência, ao passo que, em sentido contrário, o Estado
teria chamado para si, com exclusividade, o dever de solucionar os conflitos sociais
por meio de processos judiciais. Argumenta-se também com meras citações
Decreto-Lei 911/69:
“Art. 2º. No caso de inadimplemento ou mora nas obrigações contratuais garantidas mediante alienação
fiduciária, o proprietário fiduciário ou credor poderá vender a coisa a terceiros independentemente de leilão,
hasta pública, avaliação prévia ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, salvo disposição expressa
em contrário prevista no contrato, devendo aplicar o preço da venda no pagamento de seu crédito e das
despesas decorrentes e entregar ao devedor o saldo apurado, se houver”.
176
177
O CC/16 também contava com essa previsão no art. 774, III, e no art. 802, V.
Súmula 39 do extinto 1º TAC de São Paulo: “São inconstitucionais os artigos 30, parte final, e 31 a 38 do
Decreto-lei nº 70 de 21.11.1966”.
149
conceituais,
sem
êxito
na
demonstração
de
conexão
com
o
tema
da
constitucionalidade propriamente dita, os princípios da dignidade da pessoa
humana, o direito à cidadania e o direito à habitação, querendo com isso supor que
dignidade, cidadania e habitação são suficientes para evitar a cobrança de um
crédito que, diga-se de passagem, na maioria esmagadora dos casos é composto
por parcela incontroversa e significativa.
Não obstante, a constitucionalidade se faz presente. E neste sentido é que a
jurisprudência majoritária se formou, inclusive a do STF. De início deve-se assentar
que o direito nem sempre veda a autotela. Razões de ordem prática e equidade
recomendam que em certos casos ela seja exercida como, por exemplo, na legítima
defesa do patrimônio ou da incolumidade física. O que se exige para que a
autotutela seja lícita e constitucional é sua previsão normativa acompanhada de
proporcionalidade, exercício não abusivo do direito subjetivo e acesso aberto às vias
judiciais. Discorrendo sobre a lei arbitragem, HUMBERTO THEODORO JÚNIOR178
observa:
Já se afirmou que a noção de jurisdição veio se afirmando e consolidando à
medida que o desenvolvimento do Estado pôde substituir a primitiva
autotutela (justiça pelas próprias mãos do ofendido) pela atual tutela
jurisdicional, com que se intentou estabelecer o monopólio da jurisdição. No
entanto, a assunção desse monopólio não foi completa, porque, mesmo em
nossos dias a ordem jurídica ainda tolera, embora como exceções, algumas
modalidades de autotutela, como a legítima defesa, no âmbito do direito
penal, e o desforço imediato, o direito de retenção, o penhor legal, etc., no
campo do direito civil. Fora, porém, das hipóteses excepcionais previstas
em lei, a justiça pelas próprias mãos é vetada e configura, até mesmo,
crime tipificado no Código Penal (art. 345).
O inciso XXXV do art. 5º da CF/88 dispõe que “a lei não excluirá da
apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Dele, duas leituras
podem ser feitas. Uma é a de que toda controvérsia poderia ser levada à decisão do
Judiciário, que teria o dever de conhecê-la e resolvê-la. A outra é a de que toda
controvérsia só poderia ser decidida pelo Judiciário. Comentando o “amplo acesso
ao Judiciário”, CELSO RIBEIRO BASTOS179 diz ser excessivo este último ponto de
vista. Para ele, o significado correto é apenas o de que “lei alguma poderá auto178
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Arbitragem e terceiro: litisconsórcio fora do pacto arbitral. Outras
intervenções. Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem, n. 14. São Paulo:
Revista dos Tribunais, out-dez de 2001.
179
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 13ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1990, p. 198.
150
excluir-se da apreciação do Poder Judiciário quanto à sua constitucionalidade, nem
poderá dizer que ela seja ininvocável pelos interessados perante o Poder Judiciário
para resolução das controvérsias que surjam da sua aplicação”.
Para infirmar a constitucionalidade do procedimento de cobrança em questão,
também importa a orientação que se adotou em relação à arbitragem extrajudicial
prevista180 pela Lei 9.307/1996. Por ocasião do julgamento do pedido de
homologação de sentença arbitral prolatada na Espanha (SE 5.206), o STF decidiu
analisar de ofício e incidentalmente, como matéria prejudicial, a constitucionalidade
da previsão de atribuição de efeito de coisa julgada material à sentença arbitral que
torna inatacável seu mérito pela via judicial quando preenchidos os requisitos
formais previstos em lei181.
Comparativamente, a Lei 9.307/1996 restringe a possibilidade de discussão
judicial em um nível bem mais acentuado que os procedimentos de “execução
extrajudicial” antes referidos. Com efeito, a análise de mérito das questões
submetidas à arbitragem não podem ser apreciadas pelo Judiciário. Não obstante, o
STF reconheceu a constitucionalidade da Lei 9.307/1996 por ocasião daquele
julgamento.
Prevaleceu o entendimento de que a inafastabilidade do controle jurisdicional
em caso de lesão ou ameaça de lesão a direito, não significa que o interessado
esteja obrigado a buscar o Judiciário para decidir as divergências em que esteja
envolvido. Entendeu-se que o art. 5º, XXXV, da CF/88, garante o direito de ação,
mas não obriga sua utilização uma vez que o ajuizamento de medida judicial é uma
faculdade, não um dever. O princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional dá
conta de que “a lei não excluirá da apreciação do poder Judiciário lesão ou ameaça
180
“Art. 1º As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a
direitos patrimoniais disponíveis”.
“Art. 3º As partes interessadas podem submeter a solução de seus litígios ao juízo arbitral mediante convenção
de arbitragem, assim entendida a cláusula compromissória e o compromisso arbitral”.
“Art. 18. O árbitro é juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou a
homologação pelo Poder Judiciário”.
181
Consoante histórico contido no voto do Min. Sepúlveda Pertence, a questão da inconstitucionalidade da
arbitragem passou a ser aventada com a Constituição Federal de 1946, que foi a primeira a prever, assim como
todas as que lhe sucederam, que nenhuma lesão ou ameaça de lesão seria afastada do conhecimento do
Judiciário. Não obstante, a arbitragem já era prevista em nossa legislação desde as Ordenações Filipinas (Livro
III, Título XVI e XVII), passando pela Constituição do Império, pelo Código Comercial de 1850 (arts. 245, 294,
348, 739, 783 e 846), pelo Regulamento 737/1850 (art. 411, § 1º), pela Lei 1.350/1866, pelo Decreto 3.900/1867,
pelo Código Civil de 1916 (arts. 1.037 a 1.048) e pelos Códigos de Processo Civil de 1938 (arts. 1.031 a 1.046) e
1973 (1.072 a 1.102).
151
a direito”, mas não proíbe que as partes busquem outros meios de solução para
suas controvérsias, na medida em que já é aceita a transação extrajudicial como
meio de prevenir ou extinguir litígio que verse sobre direito disponível.
O Min. NÉLSON JOBIM votou naquela oportunidade dizendo que, não
obstante constar do capítulo dos direitos individuais fundamentais, “o destinatário da
norma [o art. 5º, XXXV, da CF] não é o cidadão, mas, sim, o sistema legal, ou seja, é
proibido ao sistema legal criar mecanismos que excluam da apreciação do Poder
Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Lançando mão de uma interpretação histórica, JOSÉ MARIA ROSSANI
GARCEZ182 relata como o princípio da inafastabilidade surgiu pela primeira vez em
uma Constituição brasileira (a de 1946), concluindo, com PONTES DE MIRANDA,
que seu destinatário é o legislador, não o particular:
O mesmo remonta aos tempos do Estado Novo, em que o regime ditatorial
fazia com que os inquéritos parlamentares e policiais fossem levados a
efeito sem que os envolvidos tivessem assegurado direito e garantias
mínimas, sendo vedado ao Judiciário o reexame da questão.
Nesse contexto, no regime legal de 1937, justificou-se o preceito inserido na
Constituição Federal de 1946 em razão da legislação existente, excludente
de apreciação judicial inquéritos parlamentares policiais, prevendo não
poder a lei excluir a apreciação do Poder Judiciário a lesão ou ameaça de
direito, sendo ele mantido nas Cartas de 1967 e 1988, quase com a mesma
redação.
Como ensina Pontes de Miranda (Comentários...), o objetivo do referido
dispositivo
constitucional
foi
educar
as
próprias
autoridades
governamentais, já que é para elas que se direciona o princípio – diz
Pontes: “dirige-se ela aos legisladores: os legisladores ordinários nenhuma
regra jurídica podem editar que permita preclusão em processo
administrativo, ou em inquérito parlamentar, de modo que exclua a cognição
pelo Poder Judiciário.
O mesmo, evidentemente, não se aplica às partes, desejosas de solucionar
suas controvérsias por um método fora da jurisdição estatal, teoricamente
ao menos com maior especialização e rapidez, atribuindo por sua própria a
exclusiva manifestação de vontades, poderes para que árbitros privados
possam ditar a solução de suas controvérsias através de um laudo que se
obrigam a cumprir e que tem agora, também no Brasil, força de lei e eficácia
coativa similar à sentença judicial transitada e julgado.
O que se garante ao cidadão, então, seria apenas uma opção de submeter o
litígio à decisão do Judiciário ou a um terceiro particular. No mesmo sentido votou a
Minª. ELLEN GRACIE no julgamento da SE 5.206:
182
GARCEZ, José Maria Rossani. Constitucionalidade da Lei 9.307/96. Revista de Direito Bancário, do
Mercado de Capitais e da Arbitragem, n° 10. São Paulo: Revista dos Tribunais, out-dez de 2000.
152
Entendo que a garantia de acesso ao judiciário é daqueles direitos
fundamentais nos quais se reconhece maior peso ao que Canotilho (“Direito
Constitucional e Teoria da Constituição”, Coimbra, Livraria Almedina, 4ª ed.,
p. 401 e seguintes) denomina de função de direitos de defesa dos
cidadãos. Ou seja, no plano jurídico-objetivo, representa a impossibilidade,
para o Estado legislador, de excluir da apreciação judicial determinadas
matérias e, no plano jurídico-subjetivo, “o poder de exercer positivamente o
direito de ação”.
A mesma garantia, em função de prestação social, corresponde à
obrigação estatal de instituir e manter mecanismos judiciários equipados e
suficientes ao atendimento dos litígios judicializáveis.
E, por último, em sua função de não discriminação, obriga o Estado a
prestar jurisdição a todos, assegurando a gratuidade a quem não possa
enfrentar as custas do processo, garantindo o concurso de defensor dativo
ao criminoso pobre e, mesmo, os serviços de consultoria e advocacia
gratuita no cível, como forma de equalizar os cidadãos em suas condições
de efetivo acesso à Justiça.
Como se vê, o cidadão pode invocar o judiciário, para a solução de
conflitos, mas, não está proibido de valer-se de outros mecanismos de
composição de litígios. Já o Estado, este sim, não pode afastar do controle
jurisdicional as divergências que a ele queiram submeter os cidadãos.
No caso aqui tratado, nem o art. 63 da LCI e nem o Decreto-Lei 70/66,
felizmente em passagem alguma, impedem que o devedor bata às portas do Poder
Judiciário e suspenda o procedimento de execução extrajudicial. Ainda que se trate
de devedor confesso ao menos de parte da dívida reclamada, também felizmente, o
Judiciário tem determinado a suspensão das execuções. O mesmo se diz acerca da
possibilidade de suspensão do procedimento caso haja nele algum vício formal (v.g.,
falta de notificação para purgação da mora ou de publicação de editais de leilão).
De fato, o procedimento do art. 63 da LCI não prevê contraditório em seu
bojo. Isto, todavia, não o inquina de inconstitucional na medida em que o devedor
poderá se valer do Judiciário antes, durante e até mesmo depois de o procedimento
ser encerrado. Ainda, a falta de contraditório extrajudicial é coerente com o sistema
adotado, porque sua finalidade é a cobrança da dívida, não se tratando de um
sistema de julgamento, mediação, conciliação ou arbitragem que tenha por escopo
compor as partes ou dizer o direito aplicável. O iuris dictum continua com o
Judiciário. Demais disso, é intuitivo que o contraditório numa fase extrajudicial de
cobrança, sem atribuição de poder de decisão e controle com força vinculante a
quem quer seja, seria algo totalmente inócuo, de modo que o mais adequado
153
realmente foi permitir, como permitido está, que o devedor que pretender discutir
valores ou formalidades, valha-se de medida judicial própria.
No momento em que o devedor recebe a notificação para que purgue a mora
no prazo de 10 dias, abre-se-lhe a oportunidade de exercer o contraditório mediante
propositura de uma ação judicial, equivalendo ela ao recebimento de uma citação. A
marca do contraditório é a possibilidade de reação. Nas ações de execução judicial,
o devedor é citado para pagar, dar, fazer ou deixar de fazer algo. O contraditório
será exercido mediante oferecimento de embargos do devedor. Logo, a iniciativa do
contraditório é do devedor. O mesmo se dá, mutatis mutandi, com o procedimento
do art. 63: o devedor será notificado e poderá, se quiser, ajuizar ação própria para
impedir o leilão, podendo alegar toda a matéria de fato e de direito, de maneira até
mais abrangente (é interessante observar) do que poderia fazer no bojo uma ação
de embargos à execução de título extrajudicial, considerada a nova redação do
inciso III do art. 739, e do caput e §§ 3º e 5º do art. 739-A, todos do CPC. Neste
sentido, MELHIM NAMEM CHALHUB183:
Com efeito, o contraditório se caracteriza, fundamentalmente, pela efetiva
possibilidade de reação, a partir do momento em que a parte toma ciência
de algum ato que lhe seja desfavorável, como observa Sergio La China,
para quem a manifestação técnica do contraditório decorre da articulação
de dois aspectos, quais sejam, a informação (notificação, citação), e reação
(embargos, ação), necessária sempre a primeira, eventual a segunda (mas
necessário que seja efetivamente viável).
Dizendo da possibilidade de acesso ao Judiciário e da constitucionalidade do
art. 63, FRANCISCO ARNALDO SCHMIDT184 já escrevera que:
Isso a lei não impede, nem poderia fazê-lo, sob pena de, aí sim, abrigar
preceito inconstitucional. Veja-se que a existência de processos judiciais
questionando a validade do art. 63 constitui o melhor argumento contra a
alegação de que a matéria teria sido subtraída à apreciação do Poder
Judiciário.
No mesmo sentido, posicionou-se HUMBERTO THEODORO JÚNIOR185:
183
CHALHUB, Melhim Namem. Negócio fiduciário. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, pp. 301-302.
184
SCHMIDT, Francisco Arnaldo. Incorporação Imobiliária. 2ª ed. Porto Alegre: Norton Editor, 2006, p. 141.
185
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Incorporação imobiliária: atualidade do regime jurídico instituído pela Lei
n° 4.591/1964. Revista Forense, n° 100, vol. 376. Rio de Janeiro: Editora Forense, nov-dez de 2004.
154
Não procede, também, acusação de ofensa ao devido processo legal, por
autorizar a Lei n° 4.591/64 a alienação forçada sem prévia decisão judicial.
De fato, o leilão previsto pela Lei de Incorporações é extrajudicial e será
realizado por leiloeiro oficial. Não depende, pois, de qualquer procedimento
em juízo, o que, todavia, não impede o condômino inadimplente de recorrer
ao Judiciário se se considerar prejudicado ou se tiver motivo para discutir o
débito, sobrestar o leilão ou formular qualquer pretensão prejudicial à hasta
pública ou aos seus resultados. Autorizando o procedimento sumário e
extrajudicial do leilão, a lei objetivou apressar o reequilíbrio econômico do
empreendimento, sem, contudo, trancar ao condômino que não se julgue
em mora as vias judiciais para a defesa de seus direitos.
Como já mencionado, em que pese não se verificarem questionamentos
judiciais sobre a constitucionalidade do art. 63 da LCI, os Tribunais têm aceito o
procedimento em questão exceto em caso de inobservância de regularidades
formais. Neste sentido têm-se acórdãos do STF186 (RE 79.431-RJ, RE 81.144-SP e
RE 83.287-RJ) do Stj (REsp 345.677-SP, REsp 66.699-RJ e REsp 9.818-SP) e do
TJ-PR (Apelações Cíveis n°: 62.602-0, 120.991-4, 17 .025-8, 156.259-4, 49.123-6,
114.503-7 e 355.322-2. Agravos de Instrumento n°: 4 40.617-5, 321.751-8 e 462.0744).
IV.4
FALÊNCIA DO INCORPORADOR, PARALISAÇÃO OU RETARDAMENTO
EXCESSIVO E INJUSTIFICADO DA OBRA
O inadimplemento do incorporador ou do construtor toma proporções
preocupantes quando da decretação de sua falência ou em caso de paralisação ou
retardamento excessivo e injustificado da obra. Revestindo-se de natureza absoluta,
esse inadimplemento ganha contornos coletivos atingindo interesses ou direitos
individuais homogêneos relacionados ao conjunto de consumidores adquirentes.
186
A propósito, têm a ementa que mais adentro foi na questão:
“INCORPORAÇÃO IMOBILIARIA. ACÓRDÃO QUE CONSIDEROU LEGITIMA CLÁUSULA CONTRATUAL
EM QUE OS CONDOMINOS OUTORGARAM AO INCORPORADOR OU AO CONSTRUTOR AUTORIZAÇÃO
PARA EFETUAR O LEILÃO PREVISTO NO ART. 63, PARAGRAFO 1., DA L. 4.591, DE 16.12.1964.
PROMESSA DE COMPRA E VENDA NÃO INSCRITA CONSTITUI DIREITO PESSOAL E DISPENSA A
NOTIFICAÇÃO DA MULHER DO COMPRADOR PARA A PURGAÇÃO DA MORA. INEXISTÊNCIA DE
OFENSA A DIREITO FEDERAL OU DISSIDIO DE JULGADOS. RECURSO EXTRAORDINÁRIO NÃO
CONHECIDO.
(RE 79431, Relator(a): Min. RODRIGUES ALCKMIN, PRIMEIRA TURMA, julgado em 18/11/1975, DJ 12-031976)”.
155
Demais disso, atinge também todos os demais contratos que de alguma forma
estejam relacionados com a incorporação como são o caso, por exemplo, do
financiamento bancário concedido para a construção da obra e do contrato de
compra e venda do terreno sobre o qual se erige a construção.
A apreciação do tema deve levar em conta se a incorporação encontra-se ou
não sob o regime de afetação patrimonial, haja vista a diversidade de efeitos,
direitos, obrigações e providências que o inadimplemento absoluto provoca para as
partes contratantes.
IV.4.1 Na Incorporação Imobiliária sem Afetação Patrimonial
As obras das incorporações em que não se tenha adotado o regime de
afetação patrimonial podem ser concluídas pelos consumidores adquirentes, sem
participação do incorporador. A possibilidade está prevista no art. 43, III e VI, desde
a edição da LCI no ano de 1964. Os incisos III e VI situam-se em artigo que trata
especificamente das incorporações sob regime de prazo e preço certos, em que o
incorporador se compromete a transferir a propriedade da fração ideal de terreno e
ainda construir o empreendimento em determinado prazo, fazendo-o ele próprio ou
um construtor por ele contratado e remunerado. Não obstante, a aplicabilidade
desses incisos se estende a todos os regimes por força do art. 49 da LCI.
O inciso VI prevê que a paralisação ou o atraso injustificado da obra por
tempo superior a 30 (trinta) dias pode se converter em inadimplemento absoluto. O
inciso III, por sua vez, prevê que “em caso de falência do incorporador, pessoa física
ou jurídica, e não ser possível à maioria prosseguir na construção das edificações”,
restará aos adquirentes se habilitarem individualmente na massa falida como
credores privilegiados pela quantia que tenham pago ao incorporador, respondendo
subsidiariamente seus bens pessoais.
No entanto, ao contrário do que o dispositivo possa dar a entender, a falência
do incorporador por si só não implica paralisação da obra e não permite “à maioria
prosseguir na construção das edificações”. Com efeito, em que pese seja raro, pelo
fato de a incorporação tratar-se de contrato bilateral, mesmo falido o incorporador
terá direito de concluir o empreendimento se acaso tiver condições de fazê-lo e se
156
neste sentido se manifestar o administrador da massa187. Do contrário, abre-se aos
adquirentes a possibilidade de decidirem se concluem a construção ou não.
Decidindo positivamente, o terreno e suas acessões não serão arrecadas pela
massa falida188. E se o incorporador falido que tenha optado por cumprir o contrato
vir a atrasar ou paralisar o andamento da obra, os adquirentes poderão concluir a
obra sem sua participação189, caso em que deverão adotar as medidas previstas no
187
Conforme art. 117 e art. 119, VI, da Lei 11.101/2005 (Lei de Recuperação e Falência de Empresas),
combinados com o Decreto-Lei 58/1937 e seu regulamento (Decreto 3.079/1938).
188
MELHIM NAMEM CHALHUB ao justificar a adoção do regime de afetação patrimonial demonstra, e com
razão, apreensão acerca da possibilidade de se destacar o empreendimento da massa falida, vendo empecilhos
jurídicos no tocante à outorga da propriedade das frações ideais de terreno e à destinação do estoque de unidades
que o incorporador eventualmente ainda não tenha comercializado. Segundo ele, essas providências são
facilmente contornadas quando se está diante de incorporação com regime de empreitada ou de administração,
em que as frações ideais tenham sido alienadas mediante um contrato registrado na matrícula da incorporação.
Do contrário, os adquirentes que não tenham registrados seus contratos deveriam se habilitar como credores
obrigacionais. Neste ponto, todavia, parece equivocada a observação do ilustre autor na medida em que o art. 43
da LCI prevê que, em decidindo a maioria prosseguir com a obra, não há o que habilitar na massa, mas sim
requerer a transferência da propriedade definitiva das frações ideais de terreno, verbis:
“Além disso, em caso de falência da incorporadora, os bens que integram o acervo de todas as suas
incorporações devem ser arrecadados à massa, daí surgindo dúvidas e incertezas quanto à plena eficácia das
disposições dos incisos III e VI do art. 43 da Lei 4.591/64.
De fato, o inciso III do art. 43 prevê que, em caso de falência do incorporador, os adquirentes serão
considerados credores privilegiados da massa, enquanto que o inciso VI admite a substituição do incorporador,
em caso de atraso ou paralisação da obra.
Se a incorporação tiver sido pactuada mediante compra e venda da fração ideal do terreno (pela qual cada
adquirente se torne proprietário das frações ideais, mediante escritura de compra e venda registrada) e
celebração de contrato de construção do edifício, a solução, caso sobrevenha a falência do incorporador, há de
ser relativamente simples, pois o terreno já não estará integrando o patrimônio deste e, portanto, não será
arrecadado, enquanto que, no que tange à obra, o contrato de construção poderá ser distratado, nos termos do
art. 43 da Lei de Falências, que permite ao síndico prosseguir ou não a execução dos contratos em curso,
conforme seja conveniente para a massa ou não.
Essa forma jurídica de contratação da incorporação, entretanto, é rara, sendo mais comum a contratação de
promessa de compra e venda de unidade imobiliária (fração ideal + acessões) como “coisa futura”. Nesse caso,
o incorporador é titular do domínio sobre imóvel e, em contrapartida, é sujeito passivo de obrigação de
construir e entregar a unidade, bem como da obrigação de outorgar o contrato definitivo de compra e
venda.Muito embora aqui, também, se aplique a regra do art. 43 da Lei de Falências, pela qual Síndico da
Massa dirá da conveniência ou não do cumprimento desse contrato de promessa de compra e venda, será
necessária autorização judicial para transmissão do domínio para o adquirentes. Nesses casos, é comum
apresentarem-se duas situações: a primeira, contemplando contratos de promessa de compra e venda
registrados no Registro de Imóveis e a segunda contemplando contratos de promessa sem registro. No primeiro
caso, estando os contratos registrados, a autorização poderá ser deferida à vista de documento comprobatório
do registro e da comprovação do pagamento do preço; em regra, esses pedidos de autorização não encontram
obstáculo. (..) Entretanto, poderão ocorrer dificuldades nos casos em que os adquirentes tenham deixado de
registrar seus contatos de aquisição de unidades, pois, enquanto na primeira hipótese (...) o adquirente é
investido de direito real sobre o imóvel, na outra hipótese (...), o direito do adquirente tem natureza meramente
obrigacional, e é na configuração de direito de crédito que deve ser habilitado no Juízo onde se processa
falência, ali passando a concorrer com os demais créditos, de acordo com o regime de preferências estabelecido
em lei”.(CHALHUB, Melhim Namem. Da incorporação imobiliária. Rio de Janeiro: Livraria e Editora
Renovar, 2003, p. 73).
189
Fazendo referência ao inciso III do art. 43 da LCI, observa HAMILTON QUIRINO CÂMARA, comentando
caso concreto resultannte da quebra da incorporadora ENCOL: “Foi fundamental a corajosa desvinculação de
mais de 700 empreendimentos do processo de falência, com rigoroso cumprimento do artigo 43, III da Lei
157
inciso VI do art. 43, vale dizer, deverão notificar o incorporador marcando-lhe prazo
de 30 (trinta) dias para que lhe dê andamento regular.
Passado o prazo de 30 (trinta) dias sem as obras tenham se normalizado, os
adquirentes poderão ser reunir em assembleia e destituir o incorporador da posição
de incorporador, condição sine qua nom para que o este não possa mais praticar
atos tendentes a promover a incorporação, o que parece implicar proibição de
continuar a alienar novas frações ideais de terreno e cobrar ou receber valores
eventualmente devidos pelos adquirentes, em que pese não haja um sistema de
proteção aos incautos que, desconhecendo essa proibição, acabem por adquirir ou
pagar o incorporador.
A destituição do incorporador não depende de medida judicial com
contraditório e ampla defesa a ser proposta pelos adquirentes. A mera notificação
seguida de assembleia dos adquirentes já lhe produz os efeitos. Até pelo contrário: é
o incorporador quem deverá adotar alguma medida judicial para evitar sua
destituição, caso em que deverá comprovar que a paralisação ou o atraso não
existem, que são inferiores a 30 (trinta) dias ou que são justificados. Assim, além da
força desconstitutiva que a LCI confere à decisão da assembleia, inverte-se o ônus
da prova relativa ao estágio da construção obrigando a que o incorporador vá ao
judiciário provocar o contraditório e a ampla defesa.
Escrevendo sobre o inciso VI do art. 43, CAIO MÁRIO DA SILVA
PEREIRA190 escreve a que a função do juiz, neste caso, é a de determinar a
notificação do incorporador e nada mais. Posteriormente, verificado pelos
4.591/64. Afinal de contas, na dicção do texto legal, se os compradores retomam as obras ficam fora da
falência”. O Tribunal de Justiça de Goiás decidiu que, na forma da Lei n. 4.591/64, os empreendimentos de
obras paradas não integram a massa falida, desde que os adquirentes decidam retomar as obras, passando para
a propriedade dos condôminos, inclusive as unidades de estoque, o que é obtido mediante simples alvará
judicial, para proceder às ”. (CÂMARA, Hamilton Quirino. Falência do incorporador imobiliário: O caso
Encol. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004, p. 3). Também comentando a questão, JÉVERSON LUÍS BOTTEGA
demonstra incerteza quanto ao entendimento do art. 43, III, ao comparar as incorporações com e sem regime de
afetação patrimonial: “Pelo sistema da Lei 4.591/64, segundo o disposto no artigo 43, III, em caso de falência do
incorporador os adquirentes podem optar por prosseguir na construção da edificação ou serem credores
privilegiados da empresa incorporadora nas importâncias pagas até o momento da decretação da falência. O
benefício em relação à nova Lei é que, pela 4.591/64, segundo a jurisprudência majoritária [apelação cível n.
200100508574, 3ª Turma do TJ-GO, p.e.], os adquirentes não assumem a responsabilidade pelo pagamento das
dívidas tributárias, previdenciárias e trabalhistas que deveriam ter sido pagas pelo incorporador falido com
recursos provenientes das prestações já pagas pelos adquirentes, enquanto que, constituído o patrimônio de
afetação, os adquirentes tem que, de certa forma, pagar pelo que já pagaram” (BOTTEGA, Jéverson Luís.
Incorporação imobiliária e a responsabilidade civil do incorporador. Porto Alegre: Norton Editor, 2005, p.
64).
190
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. 10ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense,
2000, pp. 286-287.
158
adquirentes que este não retomou a conclusão da obra, podem eles se reunir em
assembleia, votar e aprovar ou não a destituição do incorporador sem que, para
tanto tenham que obter qualquer tipo de manifestação judicial. Veja-se:
Verificado o fato – paralisação ou retardamento excessivo -, o incorporador
será notificado para reiniciar a obra ou imprimir-lhe andamento normal. Aqui
é preciso dar uma explicação: fala-se que o juiz poderá notifica o
incorporador, não para significar que tomará a iniciativa desta providência,
pois que o juiz não procede ex officio, mas que, a requerimento de qualquer
interessado, ordenará notificação.
Realizada esta, e decorrido o prazo de 30 dias sem que as obras se
reiniciem ou o andamento readquira a normalidade, os interessados não
precisam ir a juízo para resolver o contrato, porque a lei lhes oferece a
faculdade de, pela sua vontade, destituírem o incorporador.
Invertendo-se a situação, armam-se os adquirentes de formidável poder. Na
verdade, lançá-los nos azares de uma demanda para, ao fim de luta
profiada, conseguirem com a resolução do contrato a liberdade de
prosseguir com outro incorporador ou tomarem diretamente a direção da
edificação, sempre constitui maior obstáculo para que os interessados se
movimentassem.
Ainda, o art. 43, VI, não exige qualquer espécie de assembleia ou quórum
para que seja realizada a notificação judicial ali prevista. Quórum será necessário
posteriormente, se acaso os adquirentes optarem por destituir o incorporador em
decisão assemblear. Para requerer a notificação judicial basta uma única pessoa,
conforme também opina NÉLSON LUIZ GUEDES FERREIRA PINTO191.
Aprovada a destituição do incorporador, os adquirentes devem tomar a posse
do terreno e das acessões, o que se faz de forma indiferente ao fato de serem
propriedade formal o incorporador ou de um terceiro que tenha autorizado a
incorporação sobre o terreno. Se necessário, poderão adotar medidas judiciais
porque sem a posse frustra-se o direito de retomar a obra garantida pelo art. 43.
Ainda, os adquirentes deverão contratar construtor para concluí-la, rateando
entre si o custo do término da construção e também adotar as medidas judiciais
necessárias para que tenham registrado em seus nomes a propriedade da fração
ideal adquirida.
191
“No caso de paralisação da obra pelo incorporador ou de sua falência, qualquer adquirente poderá
promover a notificação do mesmo para reiniciar e dar andamento normal à construção, no prazo de 30 dias”.
(PINTO, Nélson Luiz Guedes Ferreira. Contrato de incorporação imobiliária. In THEODORO JÚNIOR,
Humberto. O contrato imobiliário e a legislação tutelar do consumo. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002, p.
271).
159
Até o advento da Lei 10.931/2004, que introduziu o patrimônio de afetação, a
LCI não contava com nenhum dispositivo que orientasse como haveria de se realizar
o rateio da construção entre os adquirentes. Atualmente, em que pese faça alusão
apenas às incorporações sob o regime de afetação, o § 12 do art. 31-F também
pode ser aplicado às incorporações desprovidas de afetação patrimonial. Com
efeito, além de provocar um efeito sistemático sobre toda a LCI, a norma deste
dispositivo atende os princípios da boa-fé dos adquirentes e da solidariedade para
com o objetivo de concluir a obra, consideradas a perspectiva prévia e
espontaneamente assumida com o incorporador no sentido de pagar pela unidade o
valor expresso no contrato (boa-fé) e também a contribuição para o término na obra
em conjunto com os demais adquirentes (solidariedade). Sobre a decisão solidária
da maioria, J. NASCIMENTO FRANCO e NIESKE GONDO destacam que
fracassando o incorporador “... e assumindo o encargo de dar andamento às obras,
por intermédio da comissão, a maioria [dos adquirentes] menos não faz do que agir
em benefício de todos, salvando o patrimônio comum”192.
Assim, o rateio do custo da retomada das obras deve ser realizado levando
em consideração, em primeiro lugar, o valor que cada adquirente já pagou ao
incorporador. Em havendo quem ainda não tenha quitado o preço da aquisição,
deverá pagar o remanescente ao fundo de construção formado pelos adquirentes
para o término da obra. Ato contínuo, se acaso a soma desses saldos
remanescentes não for suficiente para concluir o empreendimento (como na prática
em geral não é), todos os adquirentes hão de realizar novos aportes rateados
segundo a área total de cada unidade, inclusive aqueles que haviam quitado seus
contatos junto ao incorporador destituído193. Sobre esta questão, mesmo que
dissesse respeito ao condômino pro indiviso e geral de Direito Civil, ainda assim
todos os adquirentes ficariam obrigados a contribuir para com o custeio das
192
FRANCO, J. Nascimento et GONDO, Nieske. Incorporações imobiliárias. São Paulo: Revista dos
Tribunais, p. 136.
193
Neste sentido, veja-se o seguinte julgado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro: “Reunião dos
adquirentes sob a forma de Comissão, através de Assembléia Geral, para o reinício das obras. Despesas de
manutenção e com a regularização jurídica do terreno, para o fim de viabilizar o reinício das obras, as quais
incumbem aos adquirentes, tenham ou não quitado integralmente o preço junto ao incorporador original
(artigo 43, VI da Lei nº 4.591/64). Situação que se equipara a do condômino de cota-parte para as despesas de
conservação da coisa comum e a suportar os ônus a que estiver sujeita (art. 624 do Código civil), sob pena de
enriquecimento ilícito”. (apelação cível .6.276/01, de 05.06.01, da 7ª Câmara Cível, relatora a Des. Célia
Vidal) (destacamos). Sobre o assunto, têm-se também julgado do Tribunal de Justiça do Paraná, proferido na
apelação cível nº 142.018-4, de que foi relator da apelação o Des. Domingos Ramina.
160
benfeitorias ou acessões realizadas em seu proveito, consoante art. 1.315 do CC/02.
Ainda, calha transcrever novamente as lições (incisivas) de J. NASCIMENTO
FRANCO e NIESKE GONDO194 para quem
todos os beneficiários ficam obrigados a contribuir com sua cota para a
construção, pois não é justo que eles se coloquem na cômoda posição de
esperar o término das obras, para receber os apartamentos prontos, sem
nada pagar ou pagando afinal. Num ou noutro caso haveria enriquecimento
ilícito à custa dos que lutaram para evitar o colapso da incorporação. Que
se voltem os inconformados contra o incorporador, responsabilizando-o civil
ou criminalmente. Mas que paguem a sua parte, contribuindo para o êxito
do plano estabelecido pela maioria.
A aquisição e quitação de imóvel na planta não exime adquirente algum de
contribuir para o custeio do término da obra, porque se trata de dívida comum. É
uma regra de equidade porque seria injusto que alguns paguem pelo término da
construção enquanto outros recebem-na pronta sem nada contribuir, quando na
realidade o culpado é o incorporador. Prejuízo com a paralisação da obra todos os
adquirentes têm. Se aqueles que haviam quitado seus contratos junto ao
incorporador tiveram um prejuízo, igualmente tiveram quem tenha quitado apenas
em parte. A diferença de prejuízo entre um e outro se igualará com a retomada das
obras e o dever de quitação dos saldos para com o incorporador transferido ao
condomínio de adquirentes. Com efeito, a destituição do incorporador por decisão da
assembleia altera a relação jurídica de direito material, em certa medida
individualista, que ligava os adquirentes ao empreendimento por via do contrato
firmado com o incorporador, fazendo surgir uma nova relação jurídica diretamente
com os demais adquirentes por força do art. 43, VI, da LCI, agora marcadamente
coletiva, solidária e voltada para o alcance da função social da incorporação
imobiliária, qual seja, a construção do empreendimento mediante contribuição de
todos os consumidores sem a participação do incorporador.
Em verdade, as dívidas oriundas da assembleia que decide concluir a obra
têm natureza jurídica de dívida propter rem, que se vincula ao imóvel, tornando
obrigatória sua quitação por quem quer que venha se tornar seu proprietário, o que,
aliás, encontra-se previsto na parte final do art. 63 da LCI (“... pelo débito respondem
os direitos à respectiva fração ideal de terreno e à parte construída adicionada”).
194
FRANCO, J Nascimento et GONDO, Nieske. Incorporações imobiliárias. São Paulo: Revista dos
Tribunais, pp. 126-127.
161
Essa natureza jurídica de dívida propter rem já foi reconhecida pelo STJ, consoante
acórdão prolatado no Recurso Especial nº 255.593-SP, do qual foi relator o Min.
RUY ROSADO DE AGUIAR, acolhido por unanimidade. Nessa decisão, reconheceuse a obrigação de pagamento de credor hipotecário que arrematou o imóvel para
satisfação de seu crédito, mas ainda assim, na condição de novo proprietário, foi
obrigado a pagar a dívida relativa à construção195.
Deve-se também analisar situação possível em que o incorporador ainda não
tenha comercializado todas as frações ideais de terreno por ocasião de sua
destituição e retomada das obras por decisão da assembleia. Neste caso, o
incorporador tem a obrigação de arcar com os custos de construção a elas
inerentes. A obrigação vem disposta no art. 35, § 6º, da LCI. Do contrário, o
incorporador não poderia ser considerado responsável pela promoção da
incorporação, notadamente nas incorporações em regimes de preço fechado (arts.
41 e 43). Esta obrigação não se altera pela destituição ou falência do incorporador
195
Sobre a questão assim decidiu o STJ no Recurso Especial nº 255.593-SP, de que foi relator Min. RUY
ROSADO DE AGUIAR:
“São duas as questões propostas neste especial: a legitimidade ativa da autora e a ilegitimidade do banco réu
em ação de cobrança de parcelas do preço de custo para a construção do imóvel, parcelas devidas pelos
primitivos condôminos, cujas unidades foram adjudicadas ao agente financeiro em execução hipotecária.
A comissão de representantes dos condôminos de edifício em construção por incorporação, que recebe da
assembléia geral dos contratantes da construção, depois de destituída a incorporadora do empreendimento por
decisão judicial (art 43, inc. VI, da lei 4591/64), a função de “prosseguir na obra”, fica, por força da lei,
“investida nos poderes necessários para exercer todas as atribuições e praticar todos os atos que esta lei e o
contrato de construção lhe deferirem, sem necessidade de instrumento especial outorgado pelos contratantes”
(art 50, § 1º da Lei 4591/64), entre eles o de cobrar as parcelas ema atraso. Ressalta a circunstância anotada
no r. acórdão dos embargos declaratórios, de lavra do Des. Rodrigues de Carvalho: a comissão atua ex lege,
daí a impropriedade da referência ao art. 18 do C Civil, pois é desnecessária a criação de pessoa jurídica e a
sua formalização por atos cartorários. Trata-se de situação especial decorrente, de um lado, da frustração do
plano da incorporadora e, de outro, da exigência de prosseguir-se na obra para a defesa do interesse dos
condôminos, para a qual a lei muito acertadamente – traça normas específicas e trata de dispensar
formalidades e burocracias. Disse bem a r. Sentença da Dra Berenice Cesar: “a comissão de condôminos é uma
realidade jurídica que tem fundamento na ‘teoria da realidade’ , segundo esta é ‘um agrupamento de pessoas
físicas para alcançar um fim excedente da esfera dos interesses individuais torna-se um organismo social
dotado, como o homem, de um poder próprio para agir e, por isso, se categoriza como sujeito de direitos’.
A responsabilidade do agente financeiro, adjudicante das unidades, decorre da aplicação de duas ordens de
argumentos: a) pelo princípio geral que veda o enriquecimento sem causa, o banco que recebe o imóvel para
pagamento de seu crédito não pode deixar de pagar as parcelas correspondentes ao custo da construção, pois,
do contrário, estaria incorporando ao seu patrimônio, sem nada despender, o que foi feito às custas dos demais
condôminos; b) nos termos do art 33 do DL 70/66 , terão preferência sobre o credor hipotecário as demais
obrigações contratuais vencidas, especialmente as fiscais e os prêmios de seguro. Diante dos termos claros
desse dispositivo, não se pode acolher a assertiva do recorrente, no sentido de que as obrigações contratuais
vencidas são apenas as estabelecidas entre o mutuário em atraso e o agente financeiro, pois a regra principal
traçada no referido artigo de lei existe para estabelecer que os outros créditos terão preferência sobre o credor
hipotecário. Se tais dívidas devem ser satisfeitas com o que for apurado no leilão, a adjudicação pelo banco lhe
acarreta a responsabilidade por elas.
Lembro a especificidade da situação, porquanto a relação se estabeleceu no âmbito do sistema da
habitação, com regramento próprio, em que houve a adjudicação pelo agente financeiro, o que a distingue de
outras hipóteses em que o terceiro adquirente de ordinário não responde pelas obrigações contratualmente
assumidas pelo primitivo proprietário”.
162
que, nestas hipóteses, assume posição idêntica à dos adquirentes no tocante ao
dever de contribuir para a conclusão da obra tornando-se assim um deles de fato e
de direito, obrigado a contribuir para com a construção sob pena de ver seus direitos
serem alienados em leilão público196 conforme § 6º do art. 63. Sobre o assunto, a
opinião de JÉVERSON LUÍS BOTTEGA197:
Não tendo sido todas as unidades comercializadas, a massa poderá ser
condômina no empreendimento, tendo, como os demais condôminos, que
custear a obra (artigo 35, § 6º) ou, não sendo de interesse, os condôminos,
que retomaram a obra para finalizá-la, poderão comercializar referidas
unidades como objetivo de buscar aporte financeiro para a construção.
Assim, destacado o empreendimento do patrimônio do incorporador destituído
e decidindo pela conclusão das obras segundo as regras estabelecidas pela LCI
para as incorporações sem regime de afetação, os adquirentes apartam do
patrimônio geral do incorporador a propriedade sobre as frações ideais de terreno já
comercializadas e suas respectivas acessões. Ante a necessidade de um construtor
para concluir a obra, os adquirentes hão de contribuir para sua retomada. Já as
unidades que porventura ainda não tenham sido comercializadas pelo incorporador
destituído, igualmente gerarão uma obrigação de pagamento para seu proprietário
que, em não pagando, poderá ser cobrado judicial ou extrajudicialmente (art. 63 da
LCI). Eventuais saldos devedores dos contratos firmados com o incorporador a ele
não mais serão pagos, transferindo-se esse direito ao novo fundo construtivo, por
força de alteração da relação jurídica de direito material que ligava os adquirentes ao
empreendimento.
As dívidas do incorporador, sejam elas apuradas ou não em processo de
falência, não atingem os adquirentes, não oneram o empreendimento e nem
permitem a criação de constrição judicial sobre (penhora, arrestos...), exceto em
196
Comenta HAMILTON QUIRINO CÂMARA caso concreto de falência decreta no Estado de Goiás, dizendo:
“O Tribunal de Justiça de Goiás decidiu que, na forma da Lei n. 4.591/64, os empreendimentos de obras
paradas não integram a massa falida, desde que os adquirentes decidam retomar as obras, passando para a
propriedade dos condôminos, inclusive as unidades de estoque, o que é obtido mediante simples alvará judicial,
para proceder às devidas transferências no Registro de Imóveis. Isto porque o incorporador é obrigado a
contribuir, para as unidades não comercializadas, da mesma forma que os compradores. O mesmo haverá de se
aplicar nos casos em que não houve falência do incorporador, que ainda possui unidades em estoque. Na
verdade, ele é proprietário da cota de terreno, mas deverá aportar todo o valor da construção, sob pena de ter
leiloada sua unidade, em processo extrajudicial”. (CÂMARA, Hamilton Quirino. Falência do incorporador
imobiliário: O caso Encol. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004, p. 41).
197
BOTTEGA, Jéverson Luís. Incorporação imobiliária e a responsabilidade civil do incorporador. Porto
Alegre: Norton Editor, 2005, p. 65.
163
relação as frações ideais não comercializadas desde que ainda não tenham sido
levadas a leilão. De todo modo, a aquisição por venda judicial ou adjudicação de
unidades
não
comercializadas
pelo
incorporador
implica
transferência,
ao
arrematante ou adjudicatário, da obrigação de pagamento dos custos da construção
(obrigação propter rem), na medida em que a unidade, neste caso, não é transferida
isenta de obrigações, mas sim oneradas pelo custo da construção.
Exceção se faz presente em relação ao IPTU incidente sobre o terreno e à
contribuição devida ao INSS calculada sobre a obra edificada (art. 30, VI, da Lei
8.212/91) que. A despeito de terem como sujeito passivo tributário o proprietário do
terreno (em geral o incorporador) e o construtor ou o promotor da construção, se os
adquirentes destituem o incorporador e optam por concluir as obras, com o
empreendimentos se transferem as obrigações essas obrigações tributárias.
De todo modo, malgrado a econômica disciplina da LCI no tocante à
descrição das providências, direitos e obrigações por ocasião da retomada das
obras em caso de inadimplência do incorporador que não tenha adotado o regime de
afetação patrimonial, há base legal suficiente para que a função social da atividade
seja alcançada sem impor obrigações desproporcionais aos consumidores já
desgastados e prejudicados.
IV.4.2 Na Incorporação Imobiliária com Regime de Afetação Patrimonial
O propósito da introdução do patrimônio de afetação pela Lei 10.931/2004 foi
o de evitar prejuízo aos consumidores adquirentes de imóvel “na planta”. Para
alcançar tal desiderato, os vários, incompletos e tecnicamente censuráveis
dispositivos inseridos na LCI (ao todo 6 artigos, 46 parágrafos e 27 incisos), do
pondo de vista dos benefícios atribuídos aos adquirentes, podem assim ser
divididos: (i) dispositivos com escopo de evitar que os recursos pagos pelos
adquirentes sejam gastos com outras finalidades que não a própria conclusão do
empreendimento; (ii) dispositivos que visam a conferir segurança jurídica para os
adquirentes caso decidam eles próprios concluir o empreendimento em hipóteses de
falência do incorporador, retardamento ou paralisação das obras, facilitando-lhes,
para tal fim, a transferência da posse e da administração do empreendimento, dos
164
créditos e débitos a ele vinculados, e do eventual estoque de unidades que ainda
não tenham sido comercializadas pelo incorporador.
Idealmente têm-se alardeado boas intenções ao patrimônio de afetação.
Todavia, uma análise detida que dele se faça em comparativo com as “garantias”
que a LCI já conferia aos adquirentes, aliadas a jurisprudência que se formou em
torno da atividade de incorporação imobiliária, desmistifica a boa nova e demonstra
que, em caso de retomarem das obras, os adquirentes deixam de ser consumidores
responsáveis apenas pelo custo da construção remanescente, IPTU e contribuição
ao INSS, para se tornarem responsáveis por obrigações passivas que o
empreendimento tenha gerado e ainda gerará no curso de sua execução.
Quando o incorporador tem sucesso no empreendimento, levando-o a cabo
no prazo, com ou sem regime de afetação, os adquirentes nada sofrem. No entanto,
é ingenuidade supor que a falência de um incorporador ou o retardamento ou
paralisação excessiva e injustificada da obra não cause prejuízo aos adquirentes só
porque previsto em lei que os recursos pagos pelos consumidores ficam “afetados”
ao empreendimento de modo a que dele não podem ser desviados.
Não só porque a Lei 10.931/2004 ficou aquém de uma regulação completa,
com ou sem afetação sabe-se que, exceto em caso de rigorosa fiscalização no curso
da obra por parte de um agente financeiro ou dos próprios adquirentes (fato este
último de que não se têm notícia), o incorporador de má-fé ou encurralado pela
derrocada que se avizinha, perde as rédeas do negócio e acaba por desvirtuar a
afetação patrimonial.
Também não há avanços significativos no tocante à operacionalização da
retomada das obras, considerando as condições que para tanto são impostas pela
Lei 10.931/2004.
Enquanto o regime tradicional da LCI autoriza que os adquirentes concluam o
empreendimento sem fixar prazo algum para decidam se o farão ou não (desde, é
claro, que seja antes da venda do ativo do falido), os §§ 1º e 2º do art. 31-F da LCI
exigem que os adquirentes, que por certo nem se conhecem, no exíguo prazo de 60
dias contados da decretação da falência do incorporador, formem opinião suficiente
para decidir se irão ou não concluir o empreendimento. Caso positivo, deverão
decidir desde logo sobre “os termos da continuação da obra ou da liquidação do
patrimônio de afetação”. Evidente que, em termos de operacionalização o dispositivo
em questão foi deveras otimista considerando que os consumidores, pessoas
165
desprovidas de conhecimento técnico em engenharia, contabilidade e direito, até
então se encontram alheios à real situação por que passa a incorporação. Na
mesma linha de otimismo irreal laborou o § 14 do ar. 31-F ao designar prazo exíguo
de 60 dias para que se consiga designar o leilão extrajudicial de trata o art. 63 com o
propósito de cobrar o saldo dos adquirentes inadimplementos ou alienar a
integralidade do terreno e das acessões caso a assembleia tenha deliberado pela
liquidação do patrimônio de afetação ao invés do término da obra (§ 1º do art. 31-F).
Uma vez deliberada a continuidade das obras, o art. 9º da Lei 10.931/2004
fixa prazo de um ano, ou até a data de concessão do “habite-se” se esta ocorrer em
prazo inferior, para que os adquirentes realizem o pagamento das “obrigações
tributárias, previdenciárias e trabalhistas” vinculadas ao patrimônio de afetação cujas
hipóteses de incidência tenham ocorrido até a data de “decretação da falência, ou
insolvência do incorporador”. Caso o pagamento não ocorra no prazo, dispõe o
mesmo art. 9º que “perde a eficácia a deliberação pela continuidade da obra a que
se refere o § 1º do art. 31-F da Lei nº 4.591, de 1964”. Essa previsão, inserida em
capítulo da Lei 10.931/2004 voltado à regulação tributária do patrimônio de afetação,
tem por mais evidente dos objetivos o atendimento de interesses fiscalistas do
Estado.
Representa,
na verdade,
retrocesso
quando comparado com
as
incorporações sem regime de afetação, na medida em que retira um direito (o de
concluir a obra) que já era garantido desde 1964 e de forma incondicionada ao
pagamento das obrigações tributárias, previdenciárias e trabalhistas referidas no art.
9º da Lei 10.931/2004198. De todo modo, é muito severa a pena de perda do caráter
de afetação da incorporação, mormente porque um ano não parece ser tempo
absolutamente seguro para que os adquirentes consigam adotar todas as
providências necessárias para levar a leilão as unidades dos adquirentes
inadimplentes ou aquelas integrantes do estoque não comercializado pelo
198
No mesmo sentido, MELHIM NAMEM CHALHUB: “A restrição ao exercício dos direitos dos adquirentes é
inadmissível, mesmo se se considerar que eles sejam devedores, ainda que sejam devedores inadimplentes e
mesmo que se mantenham na condição de devedores inadimplentes.Ora, a pendência do débito não priva a
pessoa do uso e da fruição de seus bens ou direitos, mesmo que estes estejam submetido a constrição judicial”.
(CHALHUB, Melhim Namem. Da incorporação imobiliária. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar, 2003,
p. 116). A essas observações acrescenta-se que a exigência de pagamento em um ano ou até a data do “habita-se”
não equivale a dizer que os credores do incorporador já estariam suportando o ônus da demora na solução de
seus créditos em razão de os adquirentes terem deliberado pela conclusão do empreendimento porque, como é
sabido, a falência ou qualquer processo judicial dificilmente satisfaz o credor de forma plena em período inferior
a 12 meses. Logo, o art. 9º de fato só se presta para impingir dificuldade aos consumidores em benefícios dos
credores, como se aqueles fossem culpados pelo inadimplemento do incorporador.
166
incorporador, conclusão esta que se agrava na medida em que não há como saber
se de fato haverá arrematante sem o qual os adquirentes não terão os recursos
necessários para quitar as obrigações especificadas no art. 9º. Demais disso,
medidas judiciais podem suspender a realização desses leilões.
Ainda sobre o art. 9º da Lei 10.931/200, a perda de efeitos da afetação
patrimonial só poderá ocorrer se acaso os adquirentes tenham assumido a
conclusão das obras em concomitante decretação de falência ou insolvência do
incorporador. Assim, por ausência de previsão o dispositivo não tem aplicabilidade
às incorporações afetadas em que a retomada da construção seja decorrência de
seu atraso excessivo ou paralisação injustificada sem concomitante falência ou
insolvência do incorporador (art. 43, VII, da LCI). Com efeito, além de se referir
especificamente à falência e insolvência, o art. 9º da Lei 10.931/2004 cita apenas a
deliberação a que se refere o § 1º do art. 31-F, ao passo que a decisão pela
retomada das obras sem que tenha havido falência ou insolvência encontra-se
prevista no art. 43, VI.
No § 6º do art. 31-F, criou-se um empecilho para os adquirentes que ainda
não tenham quitado seus contratos com o incorporador como acontece com
considerável quantidade de consumidores199. Ao exigir-lhes que ofereçam garantias
reais para que possam receber a propriedade de suas unidades, dificultou-se algo
que, pelo regime original da LCI, já contava com solução suficiente por meio de
vinculação da fração ideal de terreno e acessão ao pagamento dos custos da
construção por via de obrigação de natureza propter rem (art. 63).
Por outro lado, representando um avanço, os §§ 1º e 7º do art. 31-F permitem
que os adquirentes decidam concluir a obra ou liquidar o patrimônio de afetação
199
HÉRCULES AGHIARIAN assim explica o propósito do § 6º do art. 31-F:
“Mais uma vez a redação dada ao dispositivo da lei constitui-se em técnica tímida. Em estilo confuso
estabelece o parágrafo sexto do mesmo artigo 31-F que os contratos definitivos serão celebrados mesmo com os
adquirentes que tenham obrigações a cumprir perante o incorporador ou a instituição financiadora, desde que
comprovadamente adimplentes; situação em que a outorga do contrato fica condicionada à constituição de
garantia real sobre o imóvel, para assegurar o pagamento do débito remanescente.
Ao que tudo indica, o legislador quis ressaltar que qualquer adquirente, mesmo aquele que tenha obrigações
pendentes para com o incorporador – isto é, o que ainda não integralizou os valores devidos para aquisição das
unidades prometidas -, não estará impedido de celebrar contratos com a Comissão de Representantes. Para
tanto, será necessário, apenas, que tais obrigações pendentes, de natureza de trato sucessivo, estejam sendo
adimplidas em seu tempo de pagamento. Ou seja, o adquirente em mora, ou o inadimplente, não poderá firmar
contrato com a Comissão de Representantes. De toda sorte, em face das obrigações pendentes, e para não
colocar em risco o empreendimento, será necessário a este adquirente dar garantia, de alguma forma, de que as
obrigações pendentes serão adimplidas, quer pelo pagamento normal, quer através da garantia”.
(AGHIARIAN,
Hércules.
Patrimônio
de
afetação.
Disponível
em
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6408>. Acessado em 20.05.2009).
167
mediante alienação de seu terreno e suas acessões seguida de pagamento de seu
passivo. Em qualquer dos casos, o empreendimento é destacado da massa falida,
providência esta que não se permite nas incorporações desprovidas de afetação
patrimonial, em que o empreendimento acaba arrecado pela massa caso os
adquirentes não decidam concluí-lo.
Decidindo pela liquidação, o produto da venda do terreno e das acessões as
dívidas do patrimônio de afetação devem ser pagas pela Comissão de
Representantes segundo a ordem de preferências estabelecida no art. 31-F, § 18.
Também representativo de avanço em relação às incorporações não
afetadas, como já referido, o § 12 do art. 31-F disciplina a forma de rateio dos custos
para o término da obra pelos adquirentes em caso afastamento do incorporador
original, minorando as dúvidas até então existentes.
Outra inovação trazida pela Lei 10.931/2004 refere-se aos poderes
necessários para outorga de escrituras aos adquirentes quando estes tenham
firmado apenas promessa de compra e venda com o incorporador. Até então,
destituído o incorporador, os adquirentes haviam de obter junto a ele a transferência
da propriedade de suas frações ideais, providência esta que nem sempre se
satisfazia de maneira pacífica e fácil. Agora, por força dos §§ 3º, 4º e 5º do art. 31-F,
a destituição do incorporador investe a Comissão de Representantes, composta por
consumidores eleitos dentre os adquirentes, ope legis, dos poderes necessários
para transferir a propriedade aos adquirentes, podendo, do mesmo modo, alienar em
leilão público todo o estoque de unidades (§ 15 do art. 31-F) que o incorporador não
tenha comercializado. Do mesmo modo, caso a assembleia dos adquirentes (§§ 1º
e 2º do art. 31-F) decida pela liquidação do patrimônio de afetação, a Comissão de
de Representantes terá poderes para vender a propriedade do terreno e acessões (§
7º, 8º, 9º e 14 do art. 31-F).
A má técnica com que foram redigidos os §§ 14, 15, 17, 18 do art. 31-F,
sugere iguais consequências para o arrematante e para os credores do patrimônio
afetado em caso de leilão extrajudicial das frações ideais e acessões em
decorrência da decisão pela continuidade das obras, e também em caso de
alienação integral do terreno e suas acessões para fins de liquidação do patrimônio
de afetação. Na realidade, quando o § 15 dispõe que o arrematante fica sub-rogado
“nos direitos e obrigações relativas ao empreendimento, inclusive nas obrigações de
eventual financiamento” e também nas obrigações existentes perante o proprietário
168
do terreno, está ele se referindo à arrematação de frações ideais e acessões de
adquirentes inadimplementos ou integrantes do estoque não comercializado pelo
incorporador, realizada com o propósito de alavancar recursos para concluir a obra
tal qual decisão tomada na assembleia de trata os §§ 1º e 2º do art. 31-F. Pelo
contrário, quando a arrematação tenha se realizado com o propósito de liquidar do
patrimônio de afetação, caso em que a venda envolverá todo o terreno e acessões,
obviamente o arrematante não ficará obrigado a quitar as obrigações do
empreendimento, nem mesmo aquelas atinentes a eventual financiamento e aos
direitos do proprietário do terreno. Com efeito, a arrematação efetivada em
liquidação do patrimônio é feita em vias de extinguir a afetação (art. 31-E, II) e por
isto mesmo não pode obrigar o arrematante a pagar, além do preço que se
comprometeu
a
pagar
pelo
terreno
e
acessões,
eventuais
dívidas
do
empreendimento. Assim, uma vez arrematado e pago o preço, o único direito os
credores do empreendimento afetado será o de participar de seu rateio segundo a
ordem de preferências estabelecida no § 18 do art. 31-F. Sendo o preço de
arrematação insuficiente para cobrir todo o passivo, aos credores só restará dirigir
seu inconformismo contra o incorporador destituído de modo a que pague os valores
faltantes (art. 31-A, § 2º).
Aos consumidores somente os ônus. Concluído o empreendimento ou
liquidado o patrimônio de afetação, se acaso sobejar receitas depois de quitado o
passivo do patrimônio de afetação, o excedente deve ser entregue ao incorporador
destituído (§ 13 do art. 31-F) ao invés de ser rateado entre ele, incorporador, e os
adquirentes segundo a lógica da afetação patrimonial e também em consideração
aos prejuízos de ordem material e moral que por certo a um ou a outro sempre são
acarretados. Observe-se que esta previsão de restituição também não existe nas
incorporações desprovidas de afetação patrimonial.
Questão um tanto séria e que deixa à mostra o quanto o regime de afetação
pode ser desfavorável aos adquirentes em comparação ao sistema original da LCI,
diz respeito à real extensão das obrigações que assumem os adquirentes quando
deliberem a continuidade da obra em assembleia. O § 11 do art. 31-F prevê que,
neste caso, “os adquirentes ficarão automaticamente sub-rogados nos direitos, nas
obrigações e nos encargos relativos à incorporação, inclusive aqueles relativos ao
contrato de financiamento da obra, se houver”. A leitura deste dispositivo somada à
lógica da afetação patrimonial, leva a crer que os adquirentes se tornam
169
responsáveis por todas as obrigações que estejam afetadas à incorporação, ainda
que, para tanto, seja necessário que todos os adquirentes vertam recursos em
quantia superior àquela prevista nos contratos firmados com o incorporador, de
modo a permitir que essa responsabilidade seja infinita em termos de valores. A
conclusão ganha reforço quando se leva em consideração o inciso I do art. 31-E,
segundo o qual a extinção do patrimônio de afetação se dá, dentre outras causas,
pela averbação da conclusão da obra na matrícula imobiliária e, quando for o caso,
pela “extinção das obrigações do incorporador perante a instituição financeira do
empreendimento”. Vale dizer, a conclusão da obra em si não basta: é preciso quitar
também o agente financeiro que tenha concedido crédito para a construção do
empreendimento.
Antes da Lei 10.931/2004 ter alterado a LCI, o regime de afetação patrimonial
nela figurou inserido na forma dos arts. 30-A a 30-F por força da Medida Provisória
2.221, de 04.09.2001. Para o término do patrimônio de afetação, o art. 30-B, § 8º, I,
impunha, como uma das condições, a “extinção das obrigações do incorporador
perante a instituição financiadora do empreendimento”. Já o art. 30-A, § 14, II,
acrescentava que a extinção também dependia da quitação das “obrigações
tributárias, trabalhistas e previdenciárias” vinculadas ao empreendimento.
Revogada a Medida Provisória 2.221/2004, a Lei 10.931/2004 não manteve
na LCI o teor do art. 30-A, § 14, II. Todavia, o art. 9º da Lei 10.931/2004 continua a
prever, como já visto, que os adquirentes devem quitar integralmente as obrigações
tributárias, trabalhistas e previdenciárias que tenham hipótese de incidência em data
anterior à falência ou insolvência do incorporador. Logo, por força de interpretação
entre o art. 9º da Lei 10.931/2004, o inciso I do art. 31-E da LCI e a lógica do
patrimônio de afetação, é possível que ainda haja quem conclua que os adquirentes,
ao retomar as obras, ficam responsáveis pelo pagamento das dívidas fiscais,
previdenciária, trabalhista e mais o financiamento bancário contraído pelo
incorporador ainda que a soma desse passivo supere o custo projetado do
empreendimento.
No entanto, essa interpretação correta não parece a correta, notadamente
porque as alterações introduzidas pela Lei 10.931/2004 na LCI, são carentes de
técnica e exigem esforço do intérprete. Já à época da Medida Provisória 2.221/2001,
170
MELHIN NAMEM CHALHUB200 criticava essa transferência de responsabilidades do
incorporador para os adquirentes com argumentos que continuam aplicáveis ainda
hoje:
Esclarece o § 14 do art. 30C que “na hipótese dos §§ 2º a 6º os valores
arrecadados à massa constituirão crédito privilegiado dos adquirentes” e
que, ainda na hipótese dos citados parágrafos, “a extinção do patrimônio de
afetação (...) não poderá ocorrer enquanto não integralmente pagas as
obrigações tributárias, trabalhistas e previdenciárias a ele vinculadas”; a
segunda parte dessa disposição, que condiciona a extinção do patrimônio
de afetação ao resgate das obrigações tributárias, trabalhistas e
previdenciárias, não comporta dúvida, pois, de acordo com a ordem natural
das coisas, a extinção de qualquer massa patrimonial se dá mediante a
realização do ativo e liquidação do passivo, no limite das forças do
patrimônio , salvo em casos especiais, como, por exemplo, nas hipóteses
de responsabilização do sócios. No caso das incorporações imobiliárias,
ressalve-se apenas, que, embora o incorporador responda com seus bens
pessoais pelos prejuízos que causar aos adquirentes e ao patrimônio de
afetação, bem como aos credores, nos termos da Lei de Falências, essa
responsabilidade não é extensiva aos adquirentes, não só por não terem
estes nenhuma vinculação societária com a empresa incorporadora ou com
a vida pessoal do incorporador, como, também, porque, dada sua qualidade
de contratantes da aquisição de unidades, sua responsabilidade é limitada
às forças do patrimônio de afetação, tendo como teto o valor da aquisição
de suas unidades imobiliárias.
Com
razão
o
autor.
Os
consumidores,
vulneráveis
e
em
geral
hipossuficientes, com direito de indenização passível de ser exigido de maneira
solidária contra todos os fornecedores que tenham figurado na cadeia de produção,
não podem, ao adquirir um bem de consumo, ver sua condição jurídica ser
subvertida de modo a que passem eles a responder pelo insucesso da atividade
empresarial de seu fornecedor, assumindo condição de incorporador substituto e
devedor solidário frente aos credores daquele. Nota-se o desassossego da situação:
passam a devedores do agente financeiro e até mesmo dos empregados de um
possível construtor contratado pelo incorporador, pessoas essas que na verdade,
pelo CDC, podem se responsabilizados pelo consumidor.
Ademais, o patrimônio de afetação se forma com receitas e trabalho vindos
dos adquirentes, do agente financeiro, dos trabalhadores empregados na obra, do
proprietário do terreno, enfim. É essa soma que compõe o patrimônio de afetação.
Assim, não faz sentido que apenas os adquirentes sejam responsabilizados pelo
insucesso da incorporação, que inclusive pode ser fruto de fraude praticada pelo
200
CHALHUB, Melhim Namem. Da incorporação imobiliária. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar,
2003, p 123.
171
incorporador, de modo a garantir os créditos dos demais partícipes da rede
contratual. Daí porque, se o patrimônio não é suficiente para cobrir as obrigações,
ele é insolvente e deve necessariamente acarretar algum prejuízo a todos os
partícipes, não só aos consumidores sob pena de transformá-los em incorporadores
substitutos e solidariamente responsáveis pelo passivo afetado.
De todo modo, interpretação sistemática da LCI pode afastar esse absurdo.
Nesse sentido, o § 12 do art. 31-F dispõe que, decida a continuidade das obras
pelos adquirentes, procede-se ao rateio das obrigações em que eles se sub-rogam
de modo a que cada adquirente responda “individualmente pelo saldo porventura
existente entre as receitas do empreendimento e o custo da conclusão da
incorporação na proporção dos coeficientes de construção atribuíveis às respectivas
unidades, se outro critério de rateio não for deliberado em assembléia geral”. Em
complemento, o inciso III do § 12 conceitua “receitas” como sendo as parcelas
vencidas e vincendas, ou seja, aquelas que tenham constatado do contrato firmado
com o incorporador; ao passo que inciso IV do mesmo § 12 conceitua “custo de
conclusão da incorporação” como sendo todo o “custeio da construção do edifício e
a averbação da construção das edificações para efeito de individualização e
discriminação das unidades nos termos do art. 44”.
Com base nessas premissas legais, os adquirentes só estariam obrigados a
quitar os débitos fiscais, previdenciários, trabalhistas e também o financiamento
bancário (art. 9º da Lei 10.931/2004 e art. 31-E, I, da LCI), se acaso as “receitas”
representativas dos saldos dos contratos firmados com o incorporador e do eventual
estoque de unidades ainda não comercializadas excederem o valor necessário ao
“custeio da construção do edifício” que, como bem esclarece o § 12, tem por fim
apenas individualizar e discriminar as unidades junto ao cartório de imóveis.
Têm-se outro argumento no § 18, VI, do art. 30-F. Uma vez que as receitas
sejam superiores às dívidas do patrimônio de afetação e ao custeio da construção, o
excedente deve ser entregue ao incorporador, providência esta que não ocorria se
acaso os adquirentes fossem (o que não são) sucessores e responsáveis solidários
do incorporador.
Dúvida também há, sobre a qual algo já fora dito, no tocante à facultatividade
da adoção do “Regime Especial de Tributação (RET)”, exercitável pelo incorporador,
e a efetiva vinculação do passivo tributário ao empreendimento a comprometer os
adquirentes.
172
Regulamentado sucessivamente pelas Instruções Normativas da Receita
Federal do Brasil n. 474/2004, 689/2006 e 934/2009, ao criar o RET, a Lei
10.931/2004 teve por escopo permitir que as receitas do empreendimento afetado
sejam tributadas de forma separada do incorporador, como se fosse uma nova
pessoa.
Segundo o disposto no art. 1º da Lei 10.931/2004, a adoção do RET é
opcional, vale dizer, o incorporador pode optar pela adoção do regime de afetação
da incorporação, mas não submetê-la ao RET. Adotado o RET, todavia, o
incorporador ficará sujeito (art. 4º da Lei 10.931/2004) ao pagamento equivalente a
6% (seis por cento) da receita mensal do empreendimento, alíquota essa que
corresponde ao pagamento mensal unificado do Imposto de Renda das Pessoas
Jurídicas – IRPJ, Contribuição para os Programas de Integração Social e de
Formação do Patrimônio do Servidor Público - PIS/PASEP, Contribuição Social
sobre o Lucro Líquido – CSLL e Contribuição para Financiamento da Seguridade
Social - COFINS. Se a incorporação versar sobre imóveis residenciais de interesse
social de valor máximo correspondente a R$ 60 mil reais no âmbito do “Programa
Minha Casa, Minha Vida (PMCMV)”, o percentual de recolhimento é reduzido a 1%
da receita mensal (§§ 6º e 7º do art. 4º da Lei 10.931/2004).
A facultatividade de adoção do RET, no entanto, não se mostra coerente com
a lógica da afetação patrimonial porque, se não for adotado, os tributos gerados no
âmbito da incorporação (à exceção do IPTU) não farão parte das obrigações do
patrimônio afetado. Assim, o que de fato vincularia os demais tributos ao
empreendimento não é submissão da incorporação ao regime de afetação
patrimonial levada a registrado na matrícula imobiliária, mas sim a opção pelo RET,
exercida na forma da Lei 10.931/2004 e da IN 934/2004 da Receita Federal.
Daí porque entendido o RET como opcional, caso os adquirentes decidam
concluir a obra ou liquidar o patrimônio de afetação, não será necessário quitar as
obrigações fiscais e previdenciárias do empreendimento porque que não afetadas e,
neste caso, fica parcialmente afastada a previsão do art. 9º da Lei 10.931/2004
segundo a qual os adquirentes teriam prazo para quitar as obrigações tributárias e
previdenciárias sob pena de ficar sem efeito o regime de afetação e a deliberação
pela retomada das obras ou liquidação do patrimônio.
173
Restaria aos adquirentes pagar as obrigações trabalhistas e ao fisco cobrar
do incorporador os tributos devidos pelo incorporador por regime de lucro real ou de
lucro presumido segundo esteja ele enquadrado.
174
CONCLUSÕES
1 - A atividade de incorporação se caracteriza pela alienação de unidades
imobiliárias autônomas integrantes de edificação ou conjunto de edificações em
construção ou cuja construção ainda não esteja iniciada, seguida de uma divisão
física e jurídica que se espelham entre si criando novos imóveis sob a forma de
condomínio pro diviso.
2 - A incorporação imobiliária pode se desenvolver sob três modelos
(incorporação por preço fechado, com construção por regime de empreitada e com
construção por regime de administração), que conjugam entre si o contrato de venda
das frações ideais de terreno com o contrato de construção do edifício.
3 - O incorporador pode figurar como construtor em todos os três modelos de
incorporação ou apenas como incorporador.
4 - A incorporação imobiliária se desenvolve em rede contratual que une
direta ou indiretamente o incorporador, o construtor, os consumidores adquirentes, o
agente financeiro que eventualmente tenha concedido crédito para financiar a
promoção da incorporação, o proprietário do terreno sobre o qual se erige a
construção, os fornecedores de matéria-prima, os trabalhadores empregados na
obra e o Estado.
5 - A função social da atividade de incorporação imobiliária se traduz pela a
conclusão do edifício.
6 - A rede contratual da incorporação imobiliária tem como causa sistêmica a
aquisição de imóvel por parte do consumidor adquirente.
7 - Análise da função que o incorporador assume nos modelos incorporação
por preço fechado, empreitada e preço de custo indicam, nesta ordem, a diminuição
de suas responsabilidades mediante correspectiva transferência aos consumidores
adquirentes.
8 - Como promotor-produtor do empreendimento, o incorporador sempre será
considerado fornecedor perante os consumidores, em qualquer modelo de
incorporação (preço fechado, empreitada e administração), mesmo que não atue
como construtor, respondendo assim tanto por acidentes de consumo quanto por
vícios inseridos em qualquer fase da cadeia de produção e prestação de serviço de
que resulte a conclusão do empreendimento.
175
9 - O proprietário do terreno que tenha permitido ao incorporador a promoção
de empreendimento imobiliário sobre seu imóvel só tem responsabilidade para com
os consumidores nas hipóteses expressamente previstas na LCI.
10 – Exceto nas incorporações por preço fechado, o construtor do
empreendimento, quando não seja ele o próprio incorporador, participa apenas
como prestador de serviços de construção, responde por acidente de consumo e
vícios decorrentes de seus serviços propriamente ditos, mas não responde por atos
que a LCI qualifique como sendo tipicamente incorporativos.
11 - O agente financiador não tem responsabilidade por atos tipicamente
incorporativos nem por acidentes de consumo ou vícios decorrentes da prestação de
serviços de construção.
12 - A hipoteca constituída em favor de agente financeiro como forma de
garantia do crédito concedido para a construção do empreendimento, no regime de
afetação patrimonial, não tem eficácia se os recursos não forem comprovadamente
empregados na incorporação.
13 - A incorporação imobiliária goza de autonomia funcional e patrimonial em
relação ao incorporador e seu patrimônio geral.
14 - A afetação patrimonial nas incorporações imobiliárias implica atribuição
de propriedade fiduciária sobre o terreno, acessões, créditos e demais direitos e
obrigações a ela vinculados, divida entre o incorporador e os adquirentes, aquele
com propriedade formal e estes com a propriedade substancial.
15 - Como integrante da relação fiduciária, o incorporador só mantém sua
propriedade formal sobre a incorporação como meio de cumprir dever de
administração voltada ao atingimento de sua função social da atividade.
16 - A desistência dos contratos de compra e venda com base no art. 53 do
CDC pelos consumidores não encontra amparo legal, atentando contra a função
social dos contratos e contra a boa-fé, além de desvirtuar o sistema de incorporação
imobiliária quando visto como rede contratual.
17 - O artigo 63 da LCI não fere os princípios da inafastabilidade do controle
jurisdicional, da proibição de autotutela e do contraditório, tendo sido recepcionado
pela CF/88.
18 - Em caso de falência, insolvência, paralisação ou retardamento da obra,
os
adquirentes
podem
destituir
o
incorporador
e
decidirem
concluir
o
empreendimento sem sua participação, caso em que todos os titulares de direitos
176
sobre as unidades imobiliárias em construção ficam obrigados a contribuir para o
seu término, inclusive o incorporador, falido ou não, que ainda disponha de unidades
sem comercialização.
19 - As obrigações fiscais da incorporação imobiliária só ficam de fato
afetadas se acaso, além de adotar o regime de afetação, o incorporador também
aderir ao Regime Especial de Tributação-RET.
20 - No regime de afetação, caso decidam concluir o empreendimento sem a
participação
do
incorporador,
os
recursos
aportados
pelos
consumidores
adquirentes com o propósito de quitar as obrigações da incorporação não devem
exceder o custo projetado do empreendimento, de modo que só estarão obrigados a
pagar, com essa finalidade, os recursos que correspondam à soma das prestações
vencidas e vincendas constantes dos contratos firmado com o incorporador. Uma
vez pagas as prestações vencidas e vincendas, se ainda remanescer credores estes
haverão de receber os créditos remanescentes pessoalmente do incorporador. A
partir daí os consumidores poderão concluir o empreendimento sem que haja
necessidade de quitar obrigações afetadas à incorporação.
21 - O regime de afetação patrimonial não favorece os consumidores
adquirentes de imóvel “na planta” caso tenham eles próprios que concluir o
empreendimento, quando comparado ao sistema tradicional da LCI, salvo no tocante
a algumas facilidades operacionais.
177
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