CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO stricto sensu - MESTRADO EM DIREITO ALEXANDRE TORRES VEDANA PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO NA INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA E A EFETIVIDADE DOS DIREITOS DO CONSUMIDOR CURITIBA 2009 CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO stricto sensu - MESTRADO EM DIREITO ALEXANDRE TORRES VEDANA PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO NA INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA E A EFETIVIDADE DOS DIREITOS DO CONSUMIDOR CURITIBA 2009 ALEXANDRE TORRES VEDANA PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO NA INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA E A EFETIVIDADE DOS DIREITOS DO CONSUMIDOR Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba, como requisito parcial para a obtenção do Título de Mestre em Direito. Orientador: Professor Cardozo Oliveira CURITIBA 2009 Doutor Francisco ALEXANDRE TORRES VEDANA PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO NA INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA E A EFETIVIDADE DOS DIREITOS DO CONSUMIDOR Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do Título de Mestre em Direito pelo Centro Universitário Curitiba. Banca Examinadora constituída pelos seguintes professores: Presidente: _______________________________________________ PROFESSOR DOUTOR FRANCISCO CARDOZO OLIVEIRA _______________________________________________ PROFESSOR DOUTOR PAULO ROBERTO RIBEIRO NALIN (MEMBRO EXTERNO) ________________________________ PROFESSOR DOUTOR CARLYLE POPP (MEMBRO INTERNO) Curitiba, 27 de novembro de 2009. Aos meus pais Vilson Miguel Vedana e Neusa Torres Vedana (in memoriam) RESUMO A incorporação imobiliária se caracteriza pela venda de frações ideais de terreno vinculadas à futura construção de imóvel. Em geral, a atividade do incorporador enquadra-se em relação de consumo submetendo-se ao CDC. O construtor do empreendimento, que pode ou não ser o próprio incorporador, também se sujeita às normas do CDC naquilo que é próprio da natureza jurídica da relação que o vincula aos adquirentes das unidades imobiliárias em construção. O proprietário do terreno em que se erige o empreendimento e o agente financeiro que tenha concedido mútuo para financiamento da construção também respondem perante os adquirentes de acordo com a natureza jurídica das relações que os unem à incorporação. Como forma de tentar conferir maior garantia aos adquirentes, o patrimônio de afetação estabelece uma cisão no patrimônio geral do incorporador de modo a que o empreendimento não seja considerado de sua propriedade plena, mas sim uma espécie gravada pela persecução de uma finalidade que é a conclusão do edifício e a entrega do imóvel concluído aos adquirentes consumidores. Também com o escopo de atingimento dessa finalidade, a incorporação imobiliária conta com regras próprias para solução do inadimplemento tanto do incorporador quanto dos adquirentes. Palavras-chave: Incorporação imobiliária. Patrimônio de afetação. Consumidor ABSTRACT The real estate development is characterized by the sale of fractional ideals of land linked to the future construction of property. In general, the activity of the developer falls in the consumption relation by submitting the CDC. The building constructor, which may or may not be the truly developer, is also subject to the rules of the CDC in what is proper to the nature of the relationship that binds to the buyers of real estate units under construction. The owner of the land on which is the construction and the financial agent who has given assistance to finance the construction also accountable to the purchasers consumers to the legal nature of the relationship they have with the merger. As a way of trying to give greater assurance to the buyers, the patrimony of affectation down a split in the general assets of the developer so that the development is not considered the full ownership, but one species remarkable by the pursuit of an objective which is the conclusion of building and delivery of immovable property to purchasers consumers. Also with the scope of achieving this purpose, the real estate has its own rules for solution of both the developer default on the buyers. Keywords: Real estate. Patrimony of affectation. Consumer. LISTA DE ABREVIATURAS art. – artigo arts. – artigos CBIC - Câmara Brasileira da Indústria da Construção CC/16 – Código Civil do ano de 1916 CC/02 – Código Civil do ano de 2002 CDC – Código de Defesa do Consumidor Cfr. - Conforme CF/88 – Constituição Federal do ano de 1988 CLT – Consolidação das Leis do Trabalho CPC – Código de Processo Civil IPTU – Imposto Predial Territorial Urbano INSS – Instituto Nacional de Seguridade Social LCI – Lei de Condomínio e Incorporações LCI – Lei 4.591/1964 RE – Recurso Extraodrinário REsp – Recurso Especial RET – Regime Especial de Tributação sgts. – seguintes SPE – Sociedade de Propósito Específico STF – Supremo Tribunal Federal STJ – Superior Tribunal de Justiça TJ-PR – Tribunal de Justiça do Estado do Paraná v. g. – verbi gratia, por exemplo SUMÁRIO INTRODUÇÃO ---------------------------------------------------------------------------------------- 09 I INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA – VISÃO GERAL ------------------------------------- 10 I.1 A INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA E SUA DINÂMICA ------------------------------- 10 I.2 REDE CONTRATUAL E FUNÇÃO SOCIAL NA INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA ------------------------------------------------------------------------------------- 19 I.3 PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO -------------------------------------------------------------- 25 I.4 REGIMES DE EXECUÇÃO DA OBRA ---------------------------------------------------- 28 I.4.1 Incorporação como Compra e Venda de Coisa Futura por “Preço Global” ou a “Prazo e Preço Certos”. Preço Fechado ----------------------------------------- 29 I.4.2 Incorporação com Construção sob Regime de Empreitada --------------------- 33 I.4.3 Incorporação com Construção sob Regime de Administração ou de Preço de Custo ----------------------------------------------------------------------- 39 I.5 COMISSÃO DE REPRESENTANTES ---------------------------------------------------- 42 II A INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA E O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR ------------------------------------------------------------------------------ 46 II.1 O MERCADO DE CONSUMO -------------------------------------------------------------- 46 II.2 A RELAÇÃO DE CONSUMO --------------------------------------------------------------- 52 II.2.1 Responsabilidade Objetiva ---------------------------------------------------------------- 57 II.2.2 Solidariedade na Cadeia de Produção e de Prestação de Serviços ----------- 61 II.3 A INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA E O CDC ------------------------------------------ 63 II.3.1 A Relação de Consumo na Atividade de Incorporação Imobiliária ------------- 63 II.3.1.1 A Responsabilidade do incorporador ------------------------------------------------ 65 II.3.1.2 A responsabilidade do proprietário do terreno ------------------------------------ 68 II.3.1.3 A responsabilidade do construtor ---------------------------------------------------- 73 II.3.1.3.1 Nas incorporações por preço fechado ------------------------------------------- 75 II.3.1.3.2 No regime de empreitada ----------------------------------------------------------- 77 II.3.1.3.3 No regime de administração ------------------------------------------------------- 80 II.3.1.4 A responsabilidade do agente financiador ---------------------------------------- 81 III PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO E INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA -------------- 84 III.1 A AUTONOMIA PATRIMONIAL E FUNCIONAL DA INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA ---------------------------------------------------------- 84 III.2 FONTES DO PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO ------------------------------------------ 93 III.3 NATUREZA JURÍDICA DO PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO ---------------------- 106 III.4 PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO E SEUS CREDORES ------------------------------ 118 III.5 LEGITIMIDADE ATIVA PARA DEFESA DO PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO -- 124 III.6 CRÍTICAS À INTRODUÇÃO DO PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO NA ATIVIDADE DE INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA ------------------------------ 126 IV INADIMPLEMENTO NA INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA ------------------------- 135 IV.1 INADIMPLEMENTO NA INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA. DIVERSIDADE DE CONSEQUÊNCIAS --------------------------------------------------------------------- 135 IV.2 O ART. 53 DO CDC E O INADIMPLEMENTO DOS ADQUIRENTES FRENTE AO INCORPORADOR ---------------------------------------------------------- 135 IV.3 INADIMPLEMENTO DOS ADQUIRENTES E A EXECUÇÃO EXTRAJUDICIAL (ART. 63 DA LCI). CONSTITUCIONALIDADE --------------- 143 IV.4 FALÊNCIA DO INCORPORADOR, PARALISAÇÃO OU RETARDAMENTO EXCESSIVO E INJUSTIFICADO DA OBRA ----------- 154 IV.4.1 Na Incorporação Imobiliária sem Afetação Patrimonial -------------------------- 155 IV.4.2 Na Incorporação Imobiliária com Regime de Afetação Patrimonial ----------- 163 CONCLUSÕES -------------------------------------------------------------------------------------- 174 BIBLIOGRAFIA -------------------------------------------------------------------------------------- 177 9 INTRODUÇÃO O propósito maior deste estudo é analisar se a introdução do regime de afetação patrimonial na atividade de incorporação imobiliária de fato beneficiará os consumidores adquirentes de imóveis em construção. Para responder a indagação, inicialmente o estudo abordará a dinâmica dessa atividade descrevendo suas peculiaridades, seu funcionamento e o papel desempenhado pelas possíveis partes contratantes, incorporador, construtor, proprietário de terreno em que se realiza a construção, adquirentes consumidores e agente financeiro que eventualmente tenha concedido empréstimo para financiar a incorporação. Na sequência, o tema será situado no âmbito do Código de Defesa do Consumidor com o propósito de tentar configurar como de consumo as diversas relações jurídicas possíveis na incorporação, apurando-se daí a responsabilidade civil própria de cada uma delas. Já se aproximando do fim, a incorporação imobiliária será analisada segundo sua autonomia patrimonial e funcional relativamente à pessoa do incorporador e seu patrimônio. Para tanto, o tema será passado em revista sob o ponto de vista das incorporações que tenham adotado ou não o regime de afetação patrimonial, permitindo assim um comparativo entre as duas espécies. Ato contínuo, será definida a natureza jurídica do patrimônio de afetação seguida de críticas ao instituto tal qual fora introduzido na Lei 4.591/64, passando em revista suas fontes. Por fim, na última parte, serão analisadas as consequências advindas do inadimplemento operado no contexto da incorporação, bem como os procedimentos próprios e especiais que a lei oferece para sua superação. Ao final, seguem-se as conclusões mais relevantes colhidas ao longo do estudo, numeradas em forma sequencial. 10 I INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA – VISÃO GERAL I.1 A INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA E SUA DINÂMICA Do ponto de vista do incorporador, pode se dizer que sua atividade siga um roteiro. Considerado um terreno com potencial para comportar um edifício residencial ou comercial composto por unidades imobiliárias representadas por apartamentos, salas comerciais, vagas de garagem, habitações isoladas em área urbana ou rural ou ainda por um grupo de casas térreas ou assobradas; dada pessoa, física ou jurídica, pública ou privada, vislumbra a possibilidade de auferir lucro mediante alienação dessas unidades. Se o terreno for de sua propriedade, haverá ainda necessidade de um projeto da futura edificação, elaborado por engenheiro civil, e autorizações concedidas pelas autoridades públicas competentes consideradas as peculiaridades do terreno e da respectiva obra. Se a tal pessoa for um construtor, poderá ela própria realizar a construção. Do contrário, haverá de contratar alguém que o seja e ainda providenciar para que a contraprestação de seus serviços seja paga por si própria ou por quem se interessar em adquirir as aquelas unidades imobiliárias. Mas se o terreno não for de sua propriedade, ainda assim o vislumbre de lucro poderá ser perseguido: essa pessoa terá então que obter, junto ao proprietário, uma procuração pública, uma promessa de compra e venda ou de cessão de direitos ou de permuta que sejam irrevogáveis, irretratáveis, autorizem imediata imissão na posse do terreno, sua alienação fracionada e a realização de construção sobre ele. Frequentemente se encontra doutrina contendo o roteiro que segue uma incorporação imobiliária. Porque ítil na medida em que fornece uma visão geral da dinâmica da atividade, J. NASCIMENTO FRANCO e NIESKE GONDO1 assim descrevem esse percurso: [...] 1 FRANCO, J. Nascimento et GONDO, Nieske. Incorporações imobiliárias. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1984. 11 a) com base nos estudos técnicos e nas dimensões e características do terreno, o incorporador registra a incorporação perante o Cartório de Registro de Imóveis (art. 32, § 1.º, da LCI); b) quando há prazo de carência, o registro não é definitivo, podendo o incorporador, na hipótese de fracasso do empreendimento, denunciar a incorporação no prazo de 180 dias (o art. 12, da lei n. 4.864, de 29.11.65, elevou para 180 dias o prazo de validade de registro da incorporação a que se refere o art. 33 da Lei n. 4.591/64), comunicando o fato aos adquirentes que serão reembolsados das quantias pagas, corrigidas monetariamente, com juros de 6% (seis por cento) ao ano sobre o total corrigido (arts. 33, 34 e 36 do LCI); c) lançado o empreendimento ao público, segue-se a publicação de anúncios, com a divulgação do plano de comercialização, recebimento de propostas dos adquirentes ou celebração de ajustes preliminares; assinatura do contrato de incorporação (contrato relativo à fração ideal, de construção e da convenção do condomínio). Para a assinatura do contrato de incorporação, o incorporador dispõe do prazo de 60 dias (art. 13 da Lei n. 4.864/65) contados da extinção do prazo de carência, ou, no caso deste não existir, a contar da data da assinatura de qualquer documento de ajuste (art. 35, caput, e § 1.º da LCI); d) o art. 49 da Lei n. 4.591/64 faculta aos contratantes da construção, para tratar de seus interesses em relação a ela, a eleição, em assembléia geral, antes do início das obras, da Comissão de Representantes dos adquirentes (c/c art. 50); e) dá-se início ou prosseguimento à obra e ao pagamento das parcelas reajustáveis do preço; f) o incorporador informará, por escrito, aos adquirentes, no período mínimo de seis em seis meses, o estágio da construção, quando se tratar de negócio a prazo e preço certos (art. 43 da LCI). Na construção por administração, serão realizadas reuniões semestrais para que ocorra a revisão do custo da obra, ou no prazo que o contrato fixar (art. 60); g) conclusão das obras, com a obtenção do Auto de Conclusão “habite-se” pelo incorporador (art. 44 da LCI), procedendo-se, em seguida, à instituição do condomínio, com o registro das unidades condominiais em nome de seus respectivos titulares, após o integral pagamento do preço pelos adquirentes. Essa pessoa, que sendo ou não o proprietário do terreno, idealiza a construção e adota medidas para que o edifício seja construído ainda que pelas mãos de um terceiro, é o incorporador de imóveis. Mesmo não carecendo de ser proprietário do terreno ou construtor da obra, o incorporador será sempre a pessoa que promove a construção e a transmissão da propriedade aos adquirentes das unidades. Tratando de explicar a distinção entre incorporador e construtor, ORLANDO GOMES2 alerta que: 2 GOMES, Orlando. Contratos. 18ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1999, p. 447, itálicos do autor. 12 A obrigação de construir o edifício não deve ser tomada ao pé da letra, no sentido de que o incorporador há de ser necessariamente construtor civil, mas sim, no de que lhe incumbe promover a construção, por empreitada ou por administração, se não constrói diretamente o edifício. Quando constrói por intermédio de terceiro, empreiteiro ou administrador da obra, o contrato, de empreitada ou de administração, não é absorvido pelo de incorporação, conservando, pois, sua autonomia. A obrigação que tem é de promover a construção, não de construir, sendo, assim, obrigação de fazer que, descumprida, pode ser executada à custa do incorporador, por decisão judicial. Mobilizando e organizando fatores de produção com o propósito de auferir lucro mediante oferta de bem no mercado de consumo, o incorporador caracterizase como fornecedor de produtos3 e, a depender de sua habitualidade e assento no registro público de empresas, também poderá ser empresário. Discorrendo sobre a complexidade dessa atividade, CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA4, autor do anteprojeto de que resultou a LCI, procura destrinchar a gama de atividades que se acham sob o manto da incorporação, revelando desde logo a natureza mista do contrato de incorporação: O incorporador existiu antes de o direito ter cogitado dele. E viveu a bem dizer na rua ou no alto dos edifícios em construção, antes de sentar-se no gabinete dos juristas ou no salão dos julgadores. Um indivíduo procura o proprietário de um terreno bem situado, e incute-lhe a idéia de realizar a edificação de um prédio coletivo. Mas nenhum dos dois dispõe do numerário e nenhum deles tem possibilidade de levantar por empréstimo o capital, cada vez mais vultoso, necessário a levar a termo o empreendimento. Obtém, então, opção do proprietário, na qual se estipulam as condições em que este aliena o seu imóvel. Feito isso, vai o incorporador ao arquiteto, que lhe dá o projeto. O construtor lhe fornece o orçamento. De posse dos dados que lhe permitem calcular o aspecto econômico do negócio (participação do proprietário, custo da obra, benefício do construtor e lucro), oferece à venda as unidades. Aos candidatos à aquisição não dá um documento seu, definitivo ou provisório, mas deles recebe uma “proposta” de compra, em que vêm especificadas as condições de pagamento e outras minúcias. Somente quando já conta com o número 3 Neste sentido, o CDC qualifica como fornecedor de produto quem desenvolva atividade de produção, construção ou transformação de bem móvel ou imóvel (art. 3º). A qualificação do incorporador como fornecedor resulta clara ante a redação do no art. 53 do CDC, que faz alusão a “contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações”. Ainda, conforme adiante se verá, todos os demais requisitos necessários à existência de uma relação de consumo se fazem presentes. No entanto, o incorporador não é necessariamente um empresário. E para que se forme relação de consumo tendo-o como fornecedor, também não é necessário incorporador que pratique a atividade com habitualidade. Esse tema, todavia, também será abordado novamente quando da análise do CDC. 4 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. 10ª ed., Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000, pp. 231-233, negritos do autor. 13 de subscritores suficientes para suportar os encargos da obra é que o incorporador a inicia. Se dá sua execução por empreitada, contrata com o empreiteiro; se por administração, ajusta esta com o responsável técnico e contrato o calculista, contrata os operários, contrata o fornecimento de materiais etc. [...] Diante desta variedade polimorfa de atividades, era com efeito impossível definir o incorporador dentro de fórmula tradicional das figuras componentes de qualquer contrato típico. Ele é um corretor, porque efetua a aproximação do dono do terreno com os compradores; mas é mais do que isso. É um mandatário, porque opera em nome do proprietário junto aos compradores. E porque os representa junto ao construtor, aos fornecedores, etc. É um gestor de negócios, porque, em todas as circunstâncias eventuais, defende oficiosamente os interesses de seus clientes, de um e de outro lado. É um industrial de construção civil. E às vezes um banqueiro-financiador. É um comerciante. Um pouco de tudo. Além de atividade em si, a incorporação imobiliária é forma de constituição de condomínio por unidades autônomas (condomínio pro diviso), integrada no roteiro de atos a que o incorporador se compromete a praticar quando lança um empreendimento. Sobre essa questão, PONTES DE MIRANDA5 observara que os atos de incorporação seriam negócios jurídicos preparatórios do condomínio cuja criação se segue à conclusão do empreendimento, inseridos em uma fase que designa por pré-comunial ou pré-divisional. Até o advento da LCI, a incorporação imobiliária era regulada de maneira deficiente pelo Decreto 5.481/1928 com alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 5.234/1943 e pela Lei 285/1948. Não obstante contasse com disposições permitindo a existência de condomínio horizontal pro diviso apenas de “apartamentos” componentes de “edifícios de dois ou mais pavimentos” de “pelo menos três peças”6, aquela legislação nada dispunha sobre o incorporador ou sobre o contrato de construção, em que pese àquela época a atividade incorporativa, sem nomen iuris algum, já se fizesse presente nos grandes centros urbanos. O cenário em que a 5 6 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. T. XII. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971, pp. 205-217. Só com a LCI (art. 8º, a) é que se permitiu a constituição de condomínio pro diviso em construções de pavimento único. Sobre a questão, EVERALDO AUGUSTO CAMBLER considera que a LCI não disciplina os chamados “loteamentos fechados, também denominados loteamentos em condomínio”. A regulação da constituição desta espécie de “condomínio” estaria sob a égide da Lei 6.766/79, já que, segundo o autor, nesta figura jurídica, diversamente do que se dá no condomínio pro diviso efetivamente regulado pela LCI, “os lotes são unidades autônomas, as ruas são vias de acesso e as praças de uso comum, sob a manutenção e conservação municipal. O regime condominial, previsto no art. 8º, da Lei 4.591/64, refere-se a casas térreas ou assobradadas e não a lotes de terreno, não podendo substituir o processo normal de loteamento, pelo qual procura-se garantir a realização de todas as benfeitorias e obras de infra-estrutura exigidas do loteador” (CAMBLER, Everaldo Augusto. Incorporação imobiliária: ensaio de uma teoria geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 257). 14 atividade se desenvolvia ante o vazio legislativo era de quase total irresponsabilidade do incorporador. Este, com frequência, assumia a posição jurídica de um corretor que, tendo em mãos um projeto de obra, vendia as frações ideais do terreno com base em procuração outorgada por seu proprietário e ao mesmo tempo aproximava os adquirentes da pessoa do construtor (que em geral não era o incorporador) de modo a que acertassem o preço da construção por unidade (apartamento, salas comerciais, vagas de garagem, habitações isoladas em área urbana ou rural ou ainda por grupo de casas assobradadas). Conforme recorda HUMBERTO THEODORO JÚNIOR7, depois de alienar as frações ideais de terreno e aproximar um construtor e os adquirentes com o propósito de firmarem um contrato de construção da obra, embora fosse o idealizador do empreendimento, com frequência o incorporador “[...] deixava de figurar como parte dos respectivos contratos. Não se responsabilizava pelo empreendimento e apenas se remunerava pela aproximação dos interessados finais, agindo mais como uma espécie de corretor do que como verdadeiro agente da negociação”. Ante a transformação do perfil da distribuição populacional do país, que deixava de ser preponderantemente rural para se tornar urbana, fez-se premente um incremento legislativo que disciplinasse o mercado imobiliário e de crédito imobiliário bem assim a ocupação ordenada das cidades; o que se constata de fato ter ocorrido mediante verificação de alguns do diversos diplomas legais surgidos nas décadas de 1960 e 1970 (Decreto-Lei 911/69, Lei 6.766/79, Lei 4.380/64, Lei 4.864/65, Lei 5.741/71 e Lei 6.015/73). Nesse contexto é que surge a LCI. Além de regular a atividade, essa lei especial tipificou o contrato de incorporação imobiliária sem, todavia, nominá-lo expressamente, atribuindo-lhe feições próprias, fundindo em um contrato complexo negócios que até então se ligavam ao empreendimento sem referência recíproca, como se cada um fosse independente do outro. Com efeito, do contexto de um contrato de incorporação sobressai a compra e venda de fração ideal de terreno ou sua promessa, a promoção da edificação, o contrato de construção e a instituição de condomínio pro diviso. Em que pese não haja alusão ao nomem iuris, a LCI permite 7 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Incorporação imobiliária: atualidade do regime jurídico instituído pela Lei n° 4.591/1964. Revista Forense, n° 100, v. 376. Rio de Janeiro: Editora Forense, nov-dez de 2004. 15 concluir sim pela existência de um “contrato de incorporação”, conforme unanimemente reconhece a doutrina8. A LCI inseriu várias inovações no direito pátrio e continua a fazê-lo até os dias atuais. Dada sua natureza vanguardista, pôs o país na ponta da produção legislativa de qualidade sobre o assunto9. Neste sentido, SILVIO RODRIGUES10 se refere a algumas das inovações trazidas pela LCI citando (i) a possibilidade de condomínio em construções de um único pavimento, o que até então não era previsto (art. 1º); (ii) a atribuição de natureza propter rem às obrigações devidas pelos condôminos em favor do condomínio (art. 4º); (iii) a obrigatoriedade de uma convenção de condomínio e um regimento interno registrados no cartório de imóveis (art. 9º) de modo a regular o convívio na edificação; (iv) a eleição de um síndico para representar o condomínio (art. 22); (v) a natureza real dos direitos dos promissários compradores mediante registro de seus contratos e o direito à adjudicação compulsória das unidades adquiridas (art. 35, § 4º); (vi) a responsabilidade civil do incorporador, inexistente até então (arts. 29, 30 e 31); (vii) a estabilidade contratual mediante proibição de alterações de suas condições, em especial aquela relativa ao preço. A designação legal que a lei dá à atividade – incorporação de imóveis - se explica pela consequência jurídica que os atos do incorporador acarretam. Se de início o que se têm é um único imóvel representado por um terreno, com a conclusão da edificação aquele terreno se divide juridicamente de modo a que sobre ele se incorporem tantos imóveis quantos forem os apartamentos, salas comerciais, vagas de garagem, habitações isoladas em área urbana ou rural ou ainda as casas 8 Cfr. HUMBERTO THEODORO JÚNIOR: “A incorporação, tal como conceito o direito positivo (Lei n. 4.591/64), consiste num negócio jurídico complexo, subordinado a um regime especial, que o legislador concebeu justamente para defesa dos interesses dos adquirentes de unidades autônoma de edifícios, ainda em fase de construção. Às vezes, para simplificar o fato jurídico complexo, fala-se em contrato de incorporaão. O que há, porém, é um situação jurídica, que pode engendrar vários negócios ou contratos, entre o construtor, o adquirente e outras pessoas que eventualmente tenham de intervir, como o proprietário do terreno, a empresa de projeto, a administradora das vendas, etc.”. (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Incorporação imobiliária: atualidade do regime jurídico instituído pela Lei n° 4.591/1964. Revista Forense, n° 100, v. 376. Rio de Janeiro: Editora Forense, nov-dez de 2004). 9 Cfr. EVERALDO AUGUSTO CAMBLER (Incorporação imobiliária: ensaio de uma teoria geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993) e José de Oliveira Ascensão (Direito civil: direitos reais. 5ª Ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 319). 10 RODRIGUES, Sílvio. Direito civil: direito das coisas, V. V, n. 122, p. 199 e SS, 8ª Ed. São Paulo: Saraiva, 1978, apud CAMBLER, Everaldo Augusto. Incorporação imobiliária: ensaio de uma teoria geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993, p. 20. 16 térreas ou assobradas. Assim, vale dizer que, por meio de sua atividade, o incorporador produz e reúne vários imóveis sobre um único corpo11. Os arts. 28 a 31 da LCI caracterizam a atividade de incorporação pela alienação de unidades imobiliárias autônomas integrantes de edificação ou conjunto de edificações em construção ou cuja construção ainda não esteja sequer iniciada12, seguida de uma divisão física e jurídica que se espelham entre si criando novos imóveis. Qualquer pessoa, física ou jurídica, empresária ou não, pública ou privada, pode praticar a atividade de incorporação imobiliária. Basta que realize os atos previstos nos arts. 28 a 31, com ou sem habitualidade e profissionalismo. Consoante as precisas observações de ORLANDO GOMES13: A incorporação de edifício em condomínio não requer, do incorporador, habitualidade nem profissionalidade no exercício desta atividade. Considerada em si é um empreendimento, mas não necessariamente uma empresa; o proprietário de um terreno pode, sem ser empresário de incorporações, incorporar eventualmente um edifício sem que por isso deva ser considerado empresa imobiliária. Claro é que tem essa qualidade a sociedade, ou o indivíduo, que se dedica a essa atividade comercialmente. Ainda, porém, que o incorporador não seja comerciante, e não se equipare à pessoa jurídica por injunção legal, a sua atividade, conquanto civil, pode ser definida como empresarial para efeitos fiscais, assimilado, como está, na lei, a uma empresa individual. Assim não é o incorporador esporádico, dado que toda empresa presume continuidade. Em que pese o desenvolvimento da atividade sem observância das várias obrigações que a LCI impõe ao incorporador – v. g. arquivar memorial descritivo da obra, art. 32, “g” - configurar crime contra a economia popular (arts. 65 e 66 da LCI) e ainda dar ensejo à responsabilidade civil e à nulidade de eventuais pré-contratos por ofensa ao princípio da boa-fé e descumprimento de deveres laterais de informação e proteção; o enquadramento de alguém como incorporador não depende de sua aceitação ou do cumprimento das obrigações previstas naquela legislação. A mera realização de negócios típicos de incorporação já basta para que 11 Cfr. CAMBLER, Everaldo Augusto. Incorporação imobiliária: ensaio de uma teoria geral. Editora Revista dos Tribunais, 1993, p. 19. 12 De ordinário, o mercado designa a aquisição de bem nessas condições pela expressão “compra de imóvel na planta”, querendo significar o imóvel que ainda só existe como projeto de engenharia, na planta do imóvel elaborada pelo engenheiro. 13 GOMES, Orlando. Contratos. 18ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1999, pp. 449-450. 17 se configure a existência de um incorporador; incorporador irregular é verdade, mas passível de responsabilização como se incorporador regular fosse14. De todo modo, a própria lei permite a conclusão de que a falta de registro dos documentos referidos nos arts. 28 a 32 não impede a responsabilização do incorporador. Neste sentido, o parágrafo único do art. 29 prevê a presunção de vinculação entre a alienação da fração ideal de terreno e o negócio de construção mesmo que o projeto de construção (art. 32, “d”) ainda penda de aprovação pela autoridade administrativa, “respondendo o alienante como incorporador”. De igual modo o art. 35, ao permitir a averbação de contratos preliminares mesmo que o incorporador não providencie o registro da referida documentação prevista em lei. Não caracteriza condição de incorporador imobiliário, todavia, àquele que constrói edifício para uso próprio ou que só pretenda vender e de fato só venda as unidades depois de concluída a obra15. De igual modo, não configura incorporação a venda da construção inacabada, mesmo que a mais de um comprador, sem “vincular a operação a unidades autônomas, limitando-se a transferir quotas ideais do prédio como um todo”16. Em tais situações, torna-se desnecessário observar os rigores da LCI no tocante, por exemplo, à exigência de se registrar na matrícula do terreno todos os documentos elencados no art. 32, notadamente o memorial descritivo com as especificações da obra projetada. Uma vez concluída a obra e diante da intenção de aliená-la de maneira fracionada por número de apartamentos, salas comerciais, vagas de garagem, habitações isoladas em área urbana ou rural ou ainda por casas térreas ou assobradas, o proprietário deverá constituir condomínio com base no art. 7º da LCI, apresentando requerimento devidamente instruído para que se inscreva no registro de imóveis a individualização de cada unidade, sua identificação e discriminação, bem como a fração ideal sobre o terreno e partes comuns atribuídas a cada unidade. Feito isso ter-se-á a abertura de matrículas imobiliárias individuais de modo a que cada unidade se torne uma 14 Com efeito, não faria sentido algum que alguém pratique atos incorporativos, mas deixe de ser responsabilizado como tal só porque descumpriu requisitos iniciais para o desenvolvimento lícito da incorporação. 15 Cfr. CAMBLER, Everaldo Augusto. Incorporação imobiliária: ensaio de uma teoria geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, pp. 116-117. 16 Cfr. THEODORO JÚNIOR, Humberto Incorporação imobiliária: atualidade do regime jurídico instituído pela Lei n° 4.591/1964. Revista Forense, n° 100, v. 376. Rio de Janeiro: Editora Forense, nov-dez de 2004. 18 propriedade exclusiva com direitos a partes de uso exclusivo e comum no terreno e no edifício. Como já referido, não é necessário que o incorporador seja o proprietário do terreno sobre o qual pretende realizar a construção. Este pode ser um terceiro. O que se exige do incorporador é que tenha condições de outorgar escritura que possibilite aos adquirentes das unidades registrar a propriedade sobre elas em seus nomes. As condições que autorizam o incorporador a construir sobre terreno alheio e aliená-lo em frações ideais e de maneira vinculada à construção ainda não concluída, encontram-se previstas nos arts. 31 e 32, “a”, da LCI. Assim, também pode ser incorporador (art. 31) “o proprietário do terreno, o promitente comprador, o cessionário deste ou promitente cessionário com título que satisfaça os requisitos da alínea a do Artigo 32”, bem como “o construtor [...] ou corretor de imóveis” que obtenha uma procuração com poderes para alienar o terreno em frações ideais e sobre ele promover a construção. Essa dispensa legal à condição de proprietário do terreno, bem assim da não obrigatoriedade de que a obra seja construída pelo próprio incorporador, são significativas, em primeiro lugar, de que, na atividade de incorporação imobiliária, o direito de propriedade sobre o terreno perde, por assim dizer, o caráter de “principal” para tornar-se um “acessório” da função social da atividade de incorporação. Tanto assim o é que o direito dos adquirentes de verem concluída a obra e receberem a propriedade das unidades prevalece sobre o direito de propriedade sobre o terreno, pertença ele ao incorporador ou a um terceiro17. Em segundo lugar, aquelas dispensas são significativas de uma realidade do mercado brasileiro de construção e comercialização de edifícios, qual seja, a de que a grande maioria dos incorporadores não dispõe do capital necessário para adquirir um terreno e concluir um edifício de vários pavimentos. Daí porque, além de venderem para depois construir, os incorporadores também carecem de promover as edificações sobre terreno alheio, em geral com promessa de pagamento futuro em espécie ou por meio de dação em pagamento de parte das unidades a serem construídas o que, aliás, o art. 39 da LCI permite que se faça. 17 Adiante será caracterizada mais detidamente a função social da atividade. Também será tratada a possibilidade de os adquirentes concluírem a construção sem a colaboração do incorporador e do proprietário do terreno. 19 I.2 REDE CONTRATUAL E FUNÇÃO SOCIAL NA INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA Observação compartilhada pela doutrina especializada, a incorporação imobiliária permite enfoque de variadas matizes, política, social, urbanística e jurídica. Dentre elas, a merecer especial atenção está a captação de recursos junto à população mediante promessa de entrega de coisa futura, em geral uma unidade imobiliária para servir de moradia para uma família. Daí o porquê de o art. 65 da LCI considerar “crime contra a economia popular promover incorporação, fazendo, em proposta, contratos, prospectos ou comunicação ao público ou aos interessados, afirmação falsa sobre a constituição do condomínio, alienação das frações ideais do terreno ou sobre a construção de edificações”. O aspecto social da incorporação imobiliária, aliás, foi o que sensibilizou o legislador, levando-o a regular a atividade por meio da LCI, inserida em um contexto ainda maior, tendente à redução do deficit habitacional brasileiro, fazendo coro com vários outros diplomas voltados direta ou indiretamente para o ramo da construção civil e para a atividade de crédito imobiliário, nas décadas de 1960 e 197018. A preocupação do legislador evidencia-se mediante simples leitura da LCI, que muito antes do festejado CDC, já trazia uma série de providências tendentes a dar proteger e informar aos adquirentes que, com muita frequência, viam-se às voltas com incorporadores irresponsáveis ou incipientes ante o considerável vácuo legislativo então existente e a novidade do tema no início do século passado19. Realmente, a LCI estabelece uma série de obrigações para o incorporador, voltadas à proteção e informação dos interesses dos consumidores em um grau de detalhamento tão elevado que de forma alguma seria alcançado mediante aplicação do CDC e demais legislação esparsa. Nesse sentido, os arts. 37 e 38 da LCI exigem que o incorporador comunique aos adquirentes, antes da contratação, acerca da existência de ônus reais sobre o terreno em que se vai construir, bem como o fato de eventualmente encontrar-se ele 18 Estudo aprofundado sobre o desenvolvimento e estímulo à edificação de moradia pode ser encontrado em ARAGÃO, José Maria. Sistema Financeiro da Habitação: uma análise sócio-jurídica da gênese, desenvolvimento e crise do Sistema. 2ª ed. Curitiba: Juruá Editora, 2002. 19 Cfr. HÉRCULES AGHIARIAN: “Daí, com freqüência, vermos neste diploma excepcional um dos mais precursores do que se poderia chamar, hoje de consumidores, ou simplesmente, aderentes” (AGHIARIAN, Hércules. Curso de direito imobiliário. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2003, p. 261). 20 ocupado. Igualmente acerca da proibição de o incorporador alienar frações ideais do empreendimento sem antes registrar o Memorial de Incorporação contendo todas as características do empreendimento (art. 32); do dever de discriminar as obrigações relativas aos eventuais proprietários do terreno que o tenham permutado com o incorporador por unidades a serem construídas no próprio terreno (art. 39); e tantas outras obrigações e precauções previstas na lei com a finalidade de dar segurança e ciência aos adquirentes numa época em que os deveres acessórios de proteção, lealdade e informação ainda engatinhavam em nosso sistema jurídico. Porque em geral os incorporadores brasileiros necessitam vender para depois construir, a moral e o profissionalismo se tornam fatores importantes para o alcance da função social dessa atividade. Nesse sentido, é indispensável a manutenção de uma equação representada pelos recursos captados e a evolução da obra. Logo, a aplicação, diretamente na obra, dos recursos decorrentes das vendas antecipadas, é a justificativa negocial e legal para sua ocorrência. Em sentido contrário, não se reveste de boa-fé a captação de recursos seguida de “desvio” com propósito de alavancar outros negócios do incorporador. A conclusão do empreendimento por meio de incorporação não é um direito individualizado para cada adquirente. Também não pode ser vista apenas como uma obrigação do incorporador. Na realidade, a atividade de incorporação imobiliária tem objetivo comum aos interesses do incorporador, do conjunto de adquirentes, dos eventuais agentes bancários financiadores da obra, dos trabalhadores nela empregados, enfim, de toda uma rede contratual que se forma em torno dessa atividade, conforme já observou MELHIM NAMEM CHALHUB20 ao se referir à gama de relações contratuais presentes na edificação de uma obra de incorporação: No negócio jurídico da incorporação, esses contratos são coligados, reunidos que estão para cumprimento de uma finalidade única que é a articulação de todos os meios necessários para que se promova a construção e se concretize seu resultado no Registro de Imóveis, com a averbação da construção, que resultará na individualização e discriminação das unidades imobiliárias autônomas, integrantes de um conjunto de unidades. A partir da união desses contratos e da implementação de outros atos jurídicos, entre estes, em especial, o registro da incorporação, identifica-se o negócio jurídico da incorporação, “formando o centro nuclear da incorporação imobiliária lato sensu, encontramos um negócio jurídico 20 CHALHUB, Melhim Namem. Da incorporação imobiliária. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar, 2003, p. 142, itálicos do autor. 21 unitário, composto de diversas outras declarações reunidas, complementares uma das outras: é o negócio jurídico incorporativo, ou incorporação imobiliária stricto sensu. Como em toda atividade econômica, também há função social na incorporação imobiliária que, no caso, concretiza-se mediante conclusão do edifício, quer seja essa conclusão levada a cabo por promoção do incorporador como originalmente contratado com os consumidores, quer seja pelos próprios consumidores sem a participação do incorporador caso ele se torne inadimplente. O que há de mais relevante é a conclusão da obra a ser alcançada, posto ser o meio mais adequado de preservar o maior número de interesses daqueles que, direta ou indiretamente, ligaram-se à rede contratual. A atividade de incorporação imobiliária não se mantém por ato isolado do incorporador. Trata-se de relação jurídica verdadeiramente complexa, envolvendo diversos contratos com deveres principais e acessórios que se entrelaçam ultrapassando os limites da polarização credor-devedor para irradiar efeitos sistêmicos em uma relação contratual de execução continuada marcada pelo dever de cooperação entre todos os partícipes. Nesse sentido já observou ORLANDO GOMES21 que a incorporação imobiliária abrange várias espécies de contrato, de compra e venda ou de mera promessa de coisa comum e de coisa privada, de construção e instituição de condomínio, todas elas reunidas e fundidas em uma unidade complexa, um único contrato, que adquire tipicidade conferida pela LCI e que tem um único objetivo, qual seja, a produção de novos imóveis. Lançada a incorporação e postas à venda as frações ideais do terreno em que serão edificadas as unidades autônomas, todos ganham participação na conclusão do empreendimento, de uma forma ou de outra. Se um adquirente deixa de pagar as parcelas da aquisição que fez, certamente haverá desencaixe, ainda que pequeno, nos recursos gerenciados em prol da incorporação que, como se disse, são captados por antecipação justamente para permitir que progrida. O legislador regulou a atividade de incorporação imobiliária com exata noção desse dever de cooperação. Essa colocação é reforçada quando se considera a possibilidade de derrocada da incorporação por falta de suficiente comercialização 21 GOMES, Orlando. Contratos. 18ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1999, pp. 450-451. 22 de suas unidades e, consequentemente, de recursos para levar a cabo a construção. Tal acontecimento não é debitado integralmente à imprevidência do incorporador na condição de “agente econômico absoluta e exclusivamente responsável pelos riscos de sua atividade”. Há consciência de que nem todos os incorporadores dispõem dos recursos necessários à integral conclusão de um empreendimento. Por isto mesmo é que a LCI prevê, no caput e § 4º do art. 34, que “o incorporador poderá fixar, para efetivação da incorporação, prazo de carência, dentro do qual lhe é lícito desistir do empreendimento” por meio de “denúncia” escrita apresentada ao registro de imóveis. À primeira vista a faculdade que tem o incorporador de desistir da incorporação e livrar-se do dever de entregar as unidades que eventualmente já tenha alienado sem penalização alguma, pode parecer um direito desproporcional em detrimento do consumidor se considerados os termos do art. 51, IX e XI, do CDC. No entanto, o propósito da desistência do incorporador é, pelo contrário, o de resguardar os interesses dos próprios adquirentes ante a premente possibilidade de fracasso da incorporação, que pode levar à paralisação da obra por falta de recursos com prejuízos ainda maiores a todos os contratantes. Percebendo o incorporador que a incorporação não terá sucesso por insuficiência de vendas, o melhor remédio para todos, segundo a lei, é autorizar a desistência do negócio. Aqui o princípio da força obrigatória dos contratos abre espaço para a “funcionalização da atividade”, autorizando a desistência como forma de melhor atender aos interesses de todas as partes contratantes22. Na incorporação imobiliária, mais do que em muitas outras atividades em que se encadeiam diversas relações contratuais formalmente independentes entre si, faz-se presente o conceito de rede contratual. Essa rede ganha existência não apenas pela pluralidade de consumidores, compradores desses imóveis, que juntos fomentam a atividade do incorporador interessado em apropriar-se do lucro. Não são necessários muitos esforços para perceber-se que essa rede contratual envolve muitas outras relações contratuais interligadas direta ou indiretamente, que se 22 Importante observar, entretanto, que a possibilidade de desistir da incorporação de forma lícita, consoante prevê o art. 34, não é irrestrita. Caso contrário, jamais se configuraria inadimplemento do incorporador, que poderia a qualquer momento desistir do negócio. Fiel à intenção de resguardar os interesses dos adquirentes e também ao princípio do dever de informação, o art. 34, §§ 1º e 2º, e o art. 33, da LCI, exigem que o incorporador informe aos adquirentes que naquela incorporação reservou-se ele (o incorporador) o direito de desistir do empreendimento durante determinado prazo, que não poderá jamais exceder a 360 dias contados da data do registro da incorporação no cartório de imóveis competente (art. 33 da LCI e art. 12 da Lei 4.864/65). 23 influenciam reciprocamente, mas que têm todas elas, como causa sistêmica, de um lado o consumidor que pretende comprar um imóvel e, de outro, o justo propósito de lucro por parte de quem desenvolva atividades de maneira vinculada à rede. Nessa linha segue a opinião de EVERALDO AUGUSTO CAMBLER23 afirmando: Parece-nos claro que a incorporação imobiliária lato sensu corresponde a uma pluralidade de negócios interligados, com efeitos jurídicos próprios e independentes, mas todos agrupados em torna de uma realidade jurídica única: a atividade incorporativa normatizada pela LCI. Formando o centro nuclear da incorporação imobiliária, lato sensu, encontramos um negócio jurídico unitário, composto de diversas outras declarações reunidas, complementares uma das outras: é o negócio jurídico incorporativo, ou incorporação imobiliária stricto sensu. Essas relações jurídicas típicas reunidas, complementares umas das outras, formando um negócio jurídico unitário, constituem verdadeiro negócio jurídico complexo, resultante da manifestação de vontade do incorporador (quando proprietário ou não do imóvel incorporável), do adquirente da unidade incorporada e, eventualmente, de outros participantes envolvidos. Os negócios jurídicos reunidos objetivam a promoção e realização da construção para posterior alienação das unidades formadoras da edificação, ou conjunto de edificações, produzindo-se o fenômeno do nascimento do direito de propriedade sobre esse bem e a conseqüente eficácia jurídica real. As relações que se travam nas redes contratuais por vezes guardam entre si considerável nível de independência em razão da diversidade de contratos e de partes contratantes, dando a impressão primeira de que a “quebra” de um determinado contrato não influenciará as relações jurídica e econômica dos demais. Ocorre, todavia, que a frustração das condições para o cumprimento de uma parcela das obrigações em rede pode sim afetar as demais parcelas, fazendo-se sentir perante todos os contratantes. De uma análise estrutural das redes contratuais observam-se fenômenos que mantêm seu bom funcionamento e que decorrem, justamente, dos reflexos decorrentes das relações diretas e indiretas que se estabelecem entre todas as partes contratantes24. Sobre o assunto é possível fazer uso das manifestações 23 CAMBLER, Everaldo Augusto. Incorporação imobiliária: ensaio de uma teoria geral. Editora Revista dos Tribunais, 1993, pp.180-181. 24 A propósito da interdependência das relações contratuais em rede e da necessidade de manutenção da equação financeira em cada uma de suas fases, especialmente no campo do direito bancário, leia-se, WALD, Arnoldo. O novo direito monetário: os planos econômicos, os contratos, o FGTS e a Justiça. São Paulo: Malheiros Editores, 1996. 24 catalogados por RICARDO LUIS LORENZETTI25, resguardadas pequenas alterações: (i) existência de uma causa sistêmica que une todos os contratos na rede; (ii) existência de coordenação entre os objetos individualizados e relativamente independentes de cada contrato; (iii) obrigação de colaboração interna entre os contratantes que diretamente se relacionem; e (iv) obrigação ou desejo geral de que todos os contratantes se comportem de modo a que se mantenha íntegra a estrutura da rede, evitando assim que a causa sistêmica e todos os partícipes sejam afetados. No caso em análise, então, é possível identificar o ato de aquisição de imóveis em construção como sendo a causa sistêmica em função da qual, direta ou indiretamente, vários e diversificados contratos se travam e se unem. Evidente que todos os empresários que se integram à rede têm por escopo a justa obtenção de lucro, mas a razão que dá a possibilidade de nascença a esse lucro é o consumidor e seu desejo de adquirir um imóvel. Em que pese hajam contratos que, integrados a essa cadeia, tenham finalidade que não propriamente a aquisição de um imóvel, mesmo em tais casos é possível identificar a existência de coordenação dos objetivos desses contratos com o objetivo último da cadeia (a causa sistêmica). É o que se dá, por exemplo, com o financiamento bancário concedido em favor de incorporador de imóveis a fim de que este construa determinado edifício de apartamentos e depois os revendam para os consumidores finais (causa sistêmica) obtendo com tal alienação os recursos necessários para devolver a quantia mutuada pela instituição financeira, acrescida da remuneração do capital (juros). Na rede contratual da compra-e-venda de imóveis têm-se também, como em toda relação contratual, a obrigação de cumprir a obrigação principal constante do pacto firmado com a contraparte. Mas para além desta óbvia obrigação, há também o dever de comportar-se de modo a não ferir a estrutura que mantém o bom funcionamento da rede. Na atividade de incorporação imobiliária deve-se, acima de tudo, um comportamento que contribua para que o empreendimento seja concluído. Compartilhando dessa observação acerca da função social da incorporação imobiliária como sendo a conclusão da obra, LEANDRO LEAL GHEZZI26 escreve: 25 LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, pp. 192-219. 25 [...] as incorporações imobiliárias sempre tiveram não apenas a função imediata de satisfazer os interesses dos incorporadores e dos adquirentes das unidades e, por conseguinte, de propiciar a circulação econômica, mas também, e principalmente, a função social mediata de assegurar que a satisfação desses interesses e que esta circulação econômica ocorreriam de forma segura para todos os envolvidos e, em última análise, para toda a sociedade. Assim, identifica-se a função social da atividade de incorporação imobiliária na implementação do objetivo comum das partes contratantes integradas à rede contratual que se forma em seu redor, qual seja, a conclusão do empreendimento, do edifício, da obra. Essa é a causa sistêmica. É o resultado da soma dos interesses do incorporador (lucro), do proprietário do terreno (em geral permuta por área construída), do construtor (prestação de serviços), dos interesses de quem compra imóvel “na planta” (ter o imóvel concluído) e dos interesses da sociedade como um todo (circulação de riqueza, geração de emprego e recolhimento de tributos)27. Daí porque a interpretação da LCI deve levar em consideração a contribuição para o alcance da função social, vale dizer, até que ponto determinada atitude frente à incorporação contribuirá para que o empreendimento seja concluído. I.3 PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO Mais adiante o tema afetação patrimonial será abordado de forma mais pormenorizada. Por ora, todavia, com o propósito de conferir uma visão geral sobre a incorporação, algumas considerações introdutórias devem ser apresentadas. 26 GHEZZI, Leandro Leal. A incorporação imobiliária à luz do Código de Defesa do Consumidor e do Código Civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2007, p. 54. 27 No mesmo sentido MELHIM NAMEM CHALHUB: “Com efeito, o regime jurídico das incorporações encerra controle da atividade empresarial do incorporador e determina o conteúdo do contrato (seja de compra e venda, de promessa, de empreitada, de alienação fiduciária etc), fixando diretrizes materiais e normas de conduta específicas, de acordo com os princípios da boa-fé objetiva e do equilíbrio das relações contratuais. Visa a lei assegurar a consecução da função social do contrato, mediante realização de sua finalidade econômica, o que se alcança mediante completa construção da edificação e entrega das unidades imobiliárias aos adquirentes, nas condições pactuada.”(CHALHUB, Melhim NameM. Da incorporação imobiliária. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2003, p. 279). 26 Nas décadas de 1980 e 1990, vários incorporadores foram à falência e outros tantos, sem falir, deixaram vários empreendimentos inacabados por falta de condições econômicas de concluir a promoção de sua construção. Como consequência, consumidores, adquirentes, viram-se obrigados a concluir eles próprios os empreendimentos, sem ajuda do incorporador. Para tanto, em numerosos casos, os consumidores se depararam com empecilhos jurídicos que os impediam de retomar o andamento dessas obras, considerando que a incorporação, como patrimônio do incorporador, sofria ataque de seus credores, interessados em arrecadá-la para a massa falida ou penhorá-la com o propósito de vendê-la judicialmente e quitar ações de execução singular contra devedor solvente. Considerado o propósito de aumentar a oferta de moradia no país, como forma de incrementar proteção aos consumidores adquirentes de imóvel “na planta” e também à atividade de crédito voltado ao financiamento bancário para a construção civil, a LCI foi alterada de modo a que as incorporações imobiliárias pudessem se constituir sob a forma de “patrimônio de afetação”. A alteração foi inicialmente introduzida pela Medida Provisória 2.221, de 04.09.2001, que inseriu os arts. 30-A a 30-G na LCI. Em seguida, sobreveio a Lei 10.931/2004, que revogou a Medida Provisória, aperfeiçoou o instituto da afetação patrimonial e consolidou-o mediante inserção definitiva dos arts. 31-A a 31-F. Além de alterar a LCI, a Lei 10.931/2004 inovou diversas outras questões relativas ao crédito imobiliário e criou também um “Regime Especial de Tributação (RET)” aplicável às incorporações que se desenvolvam sob forma afetação patrimonial, permitindo assim que as receitas do empreendimento afetado sejam tributadas de forma separada do incorporador, como se representassem receitas de uma nova pessoa28. 28 O RET foi regulamentado sucessivamente pelas Instruções Normativas da Receita Federal do Brasil n. 474/2004, 689/2006 e 934/2009. Segundo o disposto no art. 1º da Lei 10.931/2004, a adoção do RET é opcional, vale dizer, o incorporador pode optar pela adoção do regime de afetação na incorporação mas não submetê-la ao RET. Adotado o RET, todavia, o incorporador ficará sujeito (art. 4º da Lei 10.931/2004) ao pagamento equivalente a 6% (seis por cento) da receita mensal do empreendimento, alíquota essa que corresponde ao pagamento mensal unificado do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas – IRPJ, Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público - PIS/PASEP, Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL e Contribuição para Financiamento da Seguridade Social - COFINS. Se a incorporação versar sobre imóveis residenciais de interesse social de valor máximo correspondente a R$ 60 mil reais no âmbito do “Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV)”, o percentual de recolhimento é reduzido a 1% da receita mensal (§§ 6º e 7º do art. 4º). A facultatividade de adoção do RET, no entanto, não se mostra coerente com a lógica da afetação patrimonial porque, se não for adotado, os tributos gerados no âmbito da incorporação (à exceção do IPTU e contribuição social sobre a construção, devida ao INSS) não farão parte das obrigações do patrimônio afetado. Assim, o que de fato vincularia esses tributos ao empreendimento não é submissão da 27 A adoção do regime de afetação patrimonial não é obrigatória. O incorporador pode decidir se o empreendimento segue a forma tradicional da LCI ou se o submete à afetação mediante registro na matrícula imobiliária do terreno. Sob uma visão panorâmica, pelo regime da afetação o terreno e as acessões objeto de incorporação imobiliária, bem como os demais bens e direitos a ela vinculados, mantêm-se apartados do patrimônio do incorporador e constituem um “patrimônio separado”, destinado à consecução da incorporação correspondente, quitação de seu passivo e entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes. O patrimônio de afetação, assim, não se comunica com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do incorporador ou de outros patrimônios de afetação que ele eventualmente tenha constituído. Disso decorre que os recursos financeiros integrantes do patrimônio de afetação só podem ser utilizados para pagamento ou reembolso das despesas inerentes à própria incorporação. Por operar um rearranjo no direito de propriedade sobre o terreno, acessões, direitos e obrigações relacionados com a incorporação afetada, as dificuldades financeiras por que passe o incorporador, aí incluídas sua falência, sua insolvência, a paralisação ou o atraso no andamento das obras, não atingem o patrimônio de afetação constituído, que neste caso não integrará a massa concursal nem poderá sofrer qualquer outra espécie de constrição judicial decorrente de dívidas do incorporador que não estejam de alguma forma ligadas à existência do empreendimento. Se acaso o incorporador falir, tornar-se insolvente ou, de forma injustificada, paralisar a obra por mais de 30 dias ou atrasar excessivamente seu andamento, os adquirentes, por deliberação de assembleia, podem afastá-lo da função de promotor incorporação ao regime de afetação patrimonial levada a registro na matrícula imobiliária, mas sim a opção pelo RET, exercida na forma da Lei 10.931/2004 e da IN 934/2004 da Receita Federal. Entendido o RET como opcional, o incorporador deverá avaliar se ele lhe será favorável, ou seja, se diminuirá ou não a carga tributária, uma vez que o benefício que desta opção advir será por ele apropriado. Com efeito, deixando de lançar o recolhimento devido na forma do RET como passivo do patrimônio afetado para fazê-lo no regime tributário geral da empresa, a economia gerada no âmbito da afetação patrimonial poderá ser apropriado pelo incorporador depois de quitadas as demais obrigações da incorporação. A propósito do assunto, estudo de DANIEL VIEGAS RIBAS Filho apontou que a adoção do RET só é vantajosa para o incorporador quando comparado com Regime de Tributação por Lucro Real que seja superior a 12,206%. Em comparação com o Regime de Lucro Presumido, segundo o estudo, o RET seria sempre mais desvantajoso (RIBAS FILHO, Daniel Viegas. Patrimônio de afetação na atividade imobiliária: um estudo com construtoras e incorporadoras da grande São Paulo. 2006. 127f. Dissertação (Mestrado em Ciências Contábeis) - Centro Universitário Álvares Penteado – UniFecap, São Paulo, 2006). 28 do empreendimento destituindo-o da condição de incorporador (art. 37-F, §§ 1º e 2º, e art. 43, VII). Feito isso, os adquirentes deverão optar por concluir a obra sem sua participação ou então liquidar o patrimônio de afetação. Em ambas as hipóteses, por força de lei, transferem-se aos adquirentes, representados por uma “comissão de representantes”, os poderes necessários para assinar quaisquer contratos relacionados ao empreendimento para os quais até então seria imprescindível a participação pessoal do incorporador. Se decidem concluir a obra, os adquirentes hão de ratear entre si as dívidas do patrimônio afetado e os custos necessários para o término da construção. Se decidem liquidá-lo, quiçá porque essas dívidas e custos são insuportáveis, deverão vender o terreno e acessões para, em seguida, igualmente, pagar as dívidas vinculadas à incorporação. A afetação patrimonial pode ser do tipo perfeita ou imperfeita. Na primeira espécie, todos os créditos e débitos se encontram e se extinguem pelas forças (ou por sua insuficiência) do patrimônio afetado, enquanto que na imperfeita as partes podem procurar a satisfação de seus direitos em bens alheios à afetação29. Como espécie de afetação imperfeita que é, além de representar uma “proteção patrimonial” para os credores vinculados à incorporação, a atual redação da LCI não afasta a responsabilidade civil do incorporador, que continua a responder por perdas e danos com seu patrimônio geral, vale dizer, os credores vinculados à incorporação têm seus direitos “garantidos” tanto pelos bens afetados quanto pelos bens não afetados presentes e futuros do incorporador. I.4 REGIMES DE EXECUÇÃO DA OBRA O incorporador, recorde-se, é pessoa que, mesmo sem exercer domínio sobre o terreno, engendra diversas relações jurídicas com o propósito de promover a 29 Conforme CHRISTOPH FABIAN, “Há de se distinguir entre duas formas de patrimônio separado: na primeira forma, os credores privilegiados pela afetação podem recorrer apenas ao patrimônio separado. Na segunda forma, eles também podem recorrer ao patrimônio geral do devedor. O primeiro caso é denominado de separação patrimonial perfeita, enquanto o segundo caso, de separação patrimonial unilateral”. (FABIAN, Christoph. Fidúcia: negócios fiduciários e relações externas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2007, pp. 60-61). 29 incorporação, podendo, para tanto, obter uma procuração ou uma promessa de venda de seu proprietário de modo a que possa oferecê-lo à venda em frações ideais vinculadas a uma futura construção. Também como já referido, incorporador e construtor não se confundem. Enquanto a atividade de incorporação exige apenas a prática dos atos previstos nos arts. 28 a 31 da LCI, a de construção demanda conhecimento técnico afeto à área de engenharia civil regulada pela Lei 5.194/66. De todo modo, o próprio incorporador pode atuar como construtor da obra. Mas quando não o faça, um terceiro há que participar da incorporação na condição de prestador de serviços contratado pelo incorporador ou pelos próprios adquirentes, conforme adiante será demonstrado. Como promotor, o incorporador, então, põe em sinergia o direito de propriedade que um terceiro ou que ele mesmo tem sobre o terreno, com o serviço de construção que pode ser dele próprio, com os recursos dos adquirentes e, eventualmente, com os recursos do agente financeiro que tenha concedido empréstimo para o incorporador empregar na promoção do empreendimento. Considerada a diversidade entre os negócios de incorporação e de construção, a LCI regula em número de três as formas pelas quais o contrato de incorporação se conjuga com a construção e com as vendas das unidades aos adquirentes, a saber: (i) incorporação como negócio de compra e venda de coisa futura, que pode ser por “preço global” e a “prazo e preço certos”; (ii) incorporação com construção sob o “regime de empreitada”, que pode ser por “preço fixo” e “por preço reajustável”; e (iii) incorporação com construção sob “regime de administração”. Considerados os reflexos da distinção, importa analisar cada uma dessas forma de contratação. I.4.1 Incorporação como Compra e Venda de Coisa Futura por “Preço Global” e a “Prazo e Preço Certos”. Preço Fechado Com correspondência no imaginário popular, a incorporação como negócio de compra e venda de coisa futura é aquela em que o consumidor contrata o pagamento de um preço e o incorporador se compromete a lhe entregar uma unidade imobiliária construída. Também conhecida como incorporação “a preço 30 fechado”, é a forma mais comum e aceita no mercado de consumo, considerada a previsibilidade acerca do valor que o consumidor pagará e também a atribuição dos riscos da atividade exclusivamente ao incorporador; daí porque dela se dizer que corra “integralmente por conta e risco do incorporador”. Previstas nos arts. 41, 42 e 43 da LCI, a incorporação por preço global e a incorporação a prazo e preço certos se distinguem entre si pela indicação, no instrumento contratual relativo à primeira, do preço que consumidor pagará separadamente pela fração ideal de terreno e pela construção. Na incorporação a prazo e preço certo essas indicações não existem porque o preço é uno envolvendo a fração e a construção. Ainda, no preço global, o instrumento contratual pode indicar valores e prazos de pagamento diferentes para a fração de terreno e para a construção, bem como a possibilidade (contratualmente incomum) de que o inadimplemento do preço da fração não implique em rescisão da parte do contrato relativa à construção, e vice-versa. Nestas espécies de incorporação, o incorporador promete a venda de coisa futura (art. 483 do CC/02), porém certa, composta pela fração ideal de terreno e pela acessão representada na construção que ele assume concluir e averbar no registro de imóveis (art. 44). Rigorosamente, neste regime, do ponto de vista do adquirente o contrato funciona como um “compromisso preliminar de aquisição futura e, para o incorporador, como promessa de construção e de venda”30. A adoção do regime deve constar do memorial de incorporação registrado no cartório de imóveis (art. 32, “h” e “j”), vinculando a que as unidades comercializadas pelo incorporador atentem às regras próprias da espécie. Nesta modalidade de incorporação, se não for proprietário do terreno, o incorporador deverá ele figurar como procurador do real proprietário, seu promitente vendedor ou promitente cessionário (arts. 31 e 32, “a”) da fração ideal de terreno e da construção que àquela se vinculará. É do incorporador a obrigação de vender, construir e entregar a obra no prazo e na forma contratada e previamente visualizável por meio do memorial de incorporação. Uma vez lançada a incorporação e ultrapassado o prazo de 360 dias (art. 33 da LCI e art. 12 da Lei 4.864/65) contado da data do registro da incorporação 30 Cfr. CAMBLER, Everaldo Augusto. Responsabilidade civil na incorporação imobiliária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 87. 31 no cartório de imóvel dentro do qual o incorporador pode desistir da incorporação e, de consequência dos contratos que tenha firmado para venda das unidades, responderá civilmente caso não conclua a obra ou o faça para além do prazo contratualmente previsto (art. 43, II). Para tais efeitos, diferentemente do que se dá no regime de construção a preço de custo (adiante tratado), o incorporador é responsável pelos recursos necessários à conclusão da obra de modo que, ainda que não tenha obtido êxito na comercialização de unidades em número suficiente para suportar a totalidade de seu custo no tempo pactuado com os consumidores, haverá ele de encontrar meios para obter os recursos faltantes conforme obriga o art. 35, § 6º. Visando a manutenção do poder aquisitivo da moeda, os pagamentos assumidos pelos adquirentes podem ser corrigidos monetariamente. No entanto, a eles é indiferente se o custo total do empreendimento for maior ou menor do que a projeção inicial do incorporador. Os riscos, como dito, são exclusivos do incorporador. O contrato firmado entre o incorporador e o consumidor segue os requisitos gerais da Lei de Registros Públicos. Em caso de inadimplemento do consumidor aplica-se o Decreto-Lei 745/69, devendo o incorporador notificar o adquirente para que purgue sua mora no prazo de 15 dias sob pena de rescisão do contrato31. Ainda, em que pese ser pouco usual, ao invés de rescindir o contrato o incorporador pode preferir cobrar seu crédito de maneira judicial ou até mesmo extrajudicialmente pelo rito previsto no art. 63 da LCI, levando à leilão os direitos do adquirente inadimplente32. Para que o procedimento possa ser adotado pelo incorporador, basta que o contrato firmado com o adquirente o preveja. Sobre esta questão FRANCISCO ARNALDO SCHMIDT33 já observara: Quanto às sanções pelo inadimplemento contratual do comprador por falta de pagamento das parcelas do preço, só por exceção e mediante expressa 31 Com o advento do CDC, notadamente a previsão contida em seu artigo 53 dispondo a nulidade das cláusulas que impliquem em perda total dos valores pagos pelo promitente comprador sem estabelecer o limite dessa “perda”, a necessidade de acesso à via judicial torna-se imperiosa para compor o valor da devolução a que o consumidor terá direito salvo, é claro, se as partes chegarem a um acordo. 32 Adiante o tema será novamente abordado, especialmente no que toca aos princípios constitucionais do contraditório, ampla defesa, e devido processo legal. 33 SCHMIDT, Francisco Arnaldo. Incorporação imobiliária. 2ª Ed. Porto Alegre: Norton Editor, 2006, pp. 101104, negrito do autor. 32 previsão contratual, se aplicarão as regras do art. 63, isto é, aquelas que estabelecem o leilão da unidade do inadimplente, após previa notificação. Na construção por conta e risco do incorporador, via de regra a inadimplência recebe o tratamento comum aos contratos de promessa de compra e venda dos demais imóveis, iniciando pela constituição do comprador faltoso em mora mediante notificação com prazo de 15 dias para o pagamento, nos termos do dec.-lei 745/69. Não pago o débito no prazo da notificação, está autorizada a rescisão do contrato relativamente à fração ideal do terreno e à construção, esta no estágio em que se encontrar. [...] Pode causar estranheza a referência acima feita, à possibilidade de rescisão do contrato e exclusão do adquirente faltoso pelo rito previsto no art. 63 da lei 4.591, quando a incorporação é pelo regime de prazo e preço certos, já que o aludido art. 63 incumbe à Comissão de Representantes a tarefa de levar a leilão a unidade do inadimplente. Tal solução, em princípio não usual nesse regime, tem, todavia, previsão legal, podendo ser levada a efeito mesmo por uma Comissão de Representantes, cuja existência está prevista no art. 50 para representar os contratantes junto ao incorporador no caso do art. 43; ou ser executada pelo próprio incorporador, para tanto equiparado à Comissão de Representantes pelo art. 1°, VII da lei 4.864/65, após o atraso de, no mínimo, três meses do vencimento de qualquer obrigação contrat7al ou de três prestações mensais, assegurado ao devedor o direito de saldar o débito dentro do prazo de noventa dias, a contar do vencimento da obrigação não cumprida ou da primeira prestação não paga (art. 1°, VI). Enquanto a rescisão da promessa ou cessão obriga o incorporador a restituir parte dos valores pagos pelo consumidor (art. 53 do CDC), pelo rito da execução extrajudicial isto nem sempre se dará e quando se der a devolução será fruto, na verdade, de eventual lance que o arrematante dê em quantia superior à necessária para quitar as obrigações do adquirente inadimplente, tal qual se passa nas execuções por quantia certa contra devedor solvente previstas no CPC. Pelo contrário, se o lance a tanto for insuficiente, o adquirente nada receberá. Assim, em caso de adoção do procedimento previsto no art. 63, fica prejudicada a aplicação do art. 53 do CDC, na medida em que a preferência pela execução do crédito à rescisão do contrato implica diferentes efeitos para o consumidor. Percebe-se, então, a significativa diferença, não só de instrumentos disponíveis para tratar o inadimplemento do adquirente, mas também em termos de celeridade e direitos reminescentes que ecoam da rescisão. Ainda, nesta forma de incorporação, o incorporador é obrigado a fixar prazo determinado para o cumprimento de sua obrigação (entrega da unidade imobiliária) ou, quando pouco, vinculá-la a um evento determinável, claramente informado ao consumidor, que não incida em abuso contratual que coloque o consumidor em condição de desvantagem exagerada. 33 Cumprindo o princípio do dever de informação, todavia sem correspondência na realidade, o inciso I do art. 43 exige que o incorporador, mesmo quando esteja vendendo sob o regime de preço fechado, informe aos adquirentes, semestralmente, acerca do estado da obra, mencionando, dentre outros, seu percentual de evolução, perspectiva de data para conclusão ou qualquer outro acontecimento de interesse dos adquirentes. Apesar de ser extremamente incomum que ocorra nas incorporações por preço fechado, os adquirentes podem se reunir para deliberar sobre assunto de interesse coletivo, conforme preveem os arts. 43 e 49, manifestando suas decisões por meio de um órgão de representatividade denominado “Comissão de Representantes”, composto por pessoas eleitas dentre os adquirentes. No mesmo sentido os incisos III, VI e VII do art. 43, prevendo decisões assembleares dos adquirentes com o propósito de deliberar sobre a destituição do incorporador, alteração do memorial descritivo do empreendimento, continuidade das obras ante a paralisação ou retardamento injustificado da construção e extinção do patrimônio de afetação. I.4.2 Incorporação com Construção sob Regime de Empreitada Enquanto no regime de preço fechado o incorporador vende a fração ideal e ao mesmo tempo se compromete a concluir a obra por si ou por terceiro, no regime de empreitada (arts. 55 a 57) os adquirentes firmam dois contratos: um para aquisição da fração ideal de terreno junto ao incorporador e outro para execução da obra, que pode ser firmado com um construtor ou com o próprio incorporador quando este também fizer o papel de construtor (art. 48). Daí porque o art. 56 exigir que toda publicidade destinada a promover a venda de incorporação com construção pelo regime de empreitada indique separadamente o valor da fração de terreno e o preço da construção: são contratos distintos. Os consumidores assumem duas posições contratuais, como compradores da fração de terreno e como tomadores de serviço de construção. No ato de registro do memorial da incorporação, o incorporador deverá anexar (art. 32, “i” e “j”) avaliação do custo total da incorporação e discriminação do 34 custo da construção de maneira individualizada para cada unidade, bem como a minuta do contrato de construção, considerando que, como visto, no regime de empreitada, construção e fração ideal de terreno são objeto de negócios distintos. O contrato de construção poderá ter o próprio incorporador como construtor ou um terceiro, sendo permitido que sua execução só se inicie 45 (quarenta e cinco) dias depois de escoado o prazo dentro do qual é permitido que o incorporador desista incorporação desde que tenha ele se reservado essa possibilidade (art. 35). Apesar de os adquirentes serem tomadores de serviço, quem deve providenciar a assinatura do contrato de construção é incorporador. Ou ele mesmo realiza a construção ou então ele contrata em nome próprio um construtor para, no decorrer da incorporação, transferir seu custo aos adquirentes de maneira vinculada às frações de terreno que adquiriem. Deixando de providenciar o contrato de construção, o incorporador responde por perdas e danos (art. 35). Do contrato de construção deverá constar indicação do prazo de conclusão da obra e condições para sua eventual prorrogação (art. 48, § 1º), a indicação dos integrantes da “comissão de representantes” (art. 50, §§ 3º e 4º do art. 55 e art. 57) eleitos dentre os adquirentes com o propósito de acompanhar a evolução do empreendimento. Também deverá constar a quem caberá o pagamento dos custos de ligação de serviço público devidos ao Estado ou a suas concessionárias, bem como quaisquer outras despesas indispensáveis ao funcionamento do futuro condomínio (art. 51). Iniciado de fato a construção, os adquirentes das frações ideais passam então a pagar ao construtor o preço da construção relativa à sua unidade, segundo o valor indicado no memorial de incorporação e no próprio contrato firmado com o incorporador. O custo da construção relativa às frações ideais que o incorporador não vender deve ser pago por ele próprio (art. 35, § 6º). Só depois de estarem vendidas é que a responsabilidade por seu custo passa ao respectivo adquirente. Assim, quando o incorporador vende uma fração ideal antes de iniciar a obra, o adquirente pagará o preço da construção integralmente ao construtor, à conta do contato de construção. Pelo contrário, vendida a fração de terreno já próximo do término da obra ou mesmo depois que ela esteja concluída, o incorporador venderá a fração de terreno e cobrará um preço pela construção que por ela já pagou, podendo, neste caso, as partes acertarem o valor livremente. 35 Ainda, oferecendo à venda as frações ideais de terreno para quem se interesse em adquiri-las e necessariamente participar da contratação da construção, o incorporador fica como responsável pela outorga da escritura relativa à venda das frações de terreno. Ao incorporador também cabe o registro do memorial de incorporação (art. 32) antes do início da obra e a averbação da construção da edificação para efeito de individualização das unidades junto ao registro de imóveis (art. 44). O art. 610 do CC/02 prevê duas espécies de contrato de empreitada, de labor e de labor e materiais, esta última também conhecida como “empreitada global”. Pela primeira o contratante da obra fornece os materiais e o empreiteiro apenas executa o serviço, enquanto que pela segunda o empreiteiro além de prestar o serviço também se encarrega de fornecer os materiais. No entanto, o contrato de empreitada nas incorporações imobiliárias é sempre do tipo global, vale dizer, o preço contratado envolve tanto o serviço quanto o fornecimento dos materiais. Na realidade, o regime de empreitada é mais vocacionado para atender obras de pequeno vulto, com poucas unidades, em que parte dos adquirentes já se conhecem e unem esforços de maneira prévia ao início da incorporação, decidindo concluir edifício em conjunto mediante contratação de um empreiteiro e alienação de umas poucas unidades remanescentes. Não é adequado para o incorporador profissional que promova empreendimentos compostos de dezenas de unidades oferecidas no mercado de consumo. Se essa forma de incorporação era comum em meados do século passado, se ela se presta para fomentar a atividade de incorporação, menos certo não é, todavia, que nos dias de hoje ela encontra rejeição do mercado e se presta como nascedouro de frustração para os consumidores. As incorporações com construção sob regime de empreitada não são muito conhecidas e são pouco aceitas no mercado em razão de expor os consumidores a maiores riscos e deles exigir participação ativa no dia a dia da construção na condição de contratantes de sua execução. Com efeito, uma vez alienada a fração de terreno, em princípio o inadimplemento de um adquirente torna-se problema também para os demais adquirentes, na medida em que o incorporador pode, em princípio, deixar de se responsabilizar pela construção relativa à fração alienada. O inadimplemento do adquirente então terá que ser solucionado nos termos do contrato de construção, abrindo-se aí um leque de opções, podendo exemplificar-se: (i) o construtor continua construindo no mesmo ritmo e se encarrega de cobrar o 36 adquirente inadimplente; (ii) a construção é paralisada ou prorrogada; e (iii) eventualmente tal inadimplemento é suprido pelo incorporador que chama para si o direito de cobrar o inadimplente. No regime de empreitada é comum que se fira o princípio da informação e proteção dos adquirentes, revelando sua hipossuficiência técnica, na medida em que, além da questão relativa ao inadimplente, deles se exige ativa fiscalização do andamento da obra por meio da Comissão de Representantes. O regime de empreitada amaina as responsabilidades do incorporador, em especial quando este não figurar como construtor, já que ele transfere aos adquirentes a responsabilidade de dirigir a construção e travar relação com o empreiteiro34. A decisão sobre qual regime de construção se adotará é do incorporador, que para tanto deve manifestá-la no ato de registro do memorial (art. 32, “e”, “h”). Neste ato é que constará a função que ele pretende se atribuir, se de incorporador puro ou também de construtor. Do ponto de vista dos adquirentes, entretanto, o interesse real, a causa do negócio, será sempre a aquisição de coisa certa e futura. Se isto se dará mediante formalização de um contrato de compra e venda de fração de terreno seguido de um contrato de prestação de serviços de empreitada, para o consumidor trata-se de mera questão de forma. Neste sentido já observaram J. NASCIMENTO FRANCO e NIESKE GONDO35 que: Na verdade, é o incorporador quem escolhe o terreno, procura o construtor, minuta o contrato e estabelece os preços e as condições, sobrando aos condôminos apenas a posição de meros aderentes à incorporação. Assim, embora a construção se de faça sob o regime de empreitada ou de administração e não obstante se comprometam a adquirir a fração ideal do terreno do próprio incorporador [...] os interessados têm, na realidade, é a intenção de adquirir um apartamento. A empreitada para execução da obra pode ser contratado a preço fixo ou a preço reajustável por índices monetários previstos no instrumento do negócio. A 34 Essas dificuldades impedem que as incorporações com construção sob regime de empreitada e especialmente aquelas por preço de custo, adiante referidas, surjam de maneira natural do mercado sendo, isto sim, fruto de manobra de incorporadores que colhem pessoas desavisadas como bem relata HÉRCULES AGHIARIAN. (AGHIARIAN, Hércules. Patrimônio de afetação. Disponível em <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6408>. Acessado em 20.05.2009). 35 FRANCO, J. Nascimento et GONDO, Nieske. Incorporações imobiliárias. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1984, p. 133, itálicos dos autores. 37 variabilidade dos custos reais do empreiteiro não entra em cogitação, ou seja, ainda que haja elevação, esta não se refletirá nos valores contratados com os adquirentes, que só sofrem a correção pelo índice monetário. Por outro lado, quando pactuado preço fixo, nem a correção monetária do contrato de empreitada será permitida36. Comentando o § 1º do art. 55, na parte em que alude à impossibilidade de reajustamento do valor da empreita “independentemente das variações que sofrer o custo efetivo das obras e qualquer que sejam suas causas”, FRANCISCO ARNALDO SCHMIDT37 com razão observa serem “infrutíferas as alegações baseadas na teoria da imprevisão ou da onerosidade excessiva para reajustar o preço contratado fixo, mesmo em economias que padecem de inflação crônica, ou até exatamente por isso, eis que aumentos aí são previsíveis”. Inaplicável também a previsão de alteração no preço da empreitada global quando houver variação de um décimo no custo da mão-de-obra ou dos insumos, contida no art. 620 do CC38, considerada a natureza de lei especial de que se reveste o regime de empreitada atinente à atividade de incorporação imobiliária. Com efeito, o contrato de empreitada pode ou não ser pactuado no bojo de uma incorporação mas quando for o caso, a única forma de reajuste cabível é o monetário porque previsto na LCI. Para a possibilidade de variação do custo dos insumos a LCI reservou outra espécie de incorporação, qual seja, a que se desenvolve sob regime de administração. Igualmente sem aplicação nas incorporações é o art. 623 do CC39. Referindose à interrupção do contrato de empreitada, o dispositivo autoriza que o dono da 36 A previsão para que os contratos de empreitada sejam por preço fixo ou preço reajustável não diz respeito à variação do custo, mas sim à correção monetária do preço da empreitada previsto no contrato. Conforme anota Humberto Theodoro Júnior, “a variação se houver não será de composição do custo, mas de correção, segundo índices contratualmente previstos” (THEODORO JÚNIOR. Humberto. Incorporação imobiliária: atualidade do regime jurídico instituído pela Lei n° 4.591/1964. Revista Forense, n° 100, v. 376. Rio de Janeiro: Editora Forense, nov-dez de 2004). Na realidade, apenas se fala em reajuste do preço devido pelos adquirentes em função de alteração do custo real das obras quando adotado o regime de construção “por administração ou preço de custo”, adiante referido. 37 SCHMIDT, Francisco Arnaldo. Incorporação Imobiliária. 2ª Ed. Porto Alegre: Norton Editor, 2006, p. 105. 38 “Art. 620. Se ocorrer diminuição no preço do material ou da mão-de-obra superior a um décimo do preço global convencionado, poderá este ser revisto, a pedido do dono da obra, para que se lhe assegure a diferença apurada”. 39 “Art. 623. Mesmo após iniciada a construção, pode o dono da obra suspendê-la, desde que pague ao empreiteiro as despesas e lucros relativos aos serviços já feitos, mais indenização razoável, calculada em função do que ele teria ganho, se concluída a obra”. 38 obra, que no caso das incorporações sob regime de empreitada é o adquirente, “suspenda-a” mediante pagamento da indenização devida. Ocorre, todavia, que na incorporação com construção sob o regime de empreitada, em que cada adquirente paga o valor da construção separadamente, na proporção que a cada um cabe segundo o contrato que firmaram, é absolutamente inviável, porque incindível, a paralisação dos serviços correspondentes a uma ou outra unidade, na medida em que a obra envolve partes comuns e partes exclusivas inseparáveis. Ao empreiteiro inadimplente, dispõe o art. 67 da LCI, aplicam-se os incisos II, III, IV e VI do art. 43, no que couber. Vale dizer, por óbvio, que o empreiteiro deve indenizar os adquirentes em caso de atraso ou paralisação injustificado da construção (inciso II); que ele não pode alterar o projeto da construção sem autorização unânime dos adquirentes ou de autorização legal específica (inciso IV). Para além destas óbvias hipóteses, que com outras palavras já se encontram previstas no art. 55, maior dúvida se têm quanto à forma de se aplicar os incisos III e VI do art. 43 ao construtor que, falindo, atrasando ou paralisando a obra, não seja ao mesmo tempo o incorporador do empreendimento40, vale dizer, o meio de que os adquirentes podem se falar para rescindir o contrato de construção com ele firmado. A interpretação correta está na atribuição de faculdade permitindo que os adquirentes, por decisão de assembleia seguida de notificação, substituam o construtor em caso de sua falência ou insolvência, paralisação por mais de 30 ou retardamento excessivo e injustificado da obra, da mesma forma que podem proceder diante do incorporador inadimplente. Não se cogita, para que tal decisão seja tomada, se os adquirentes também devam decidir se continuam ou não a conclusão da obra como haveria se exigir em uma incorporação a preço fechado, já que, no regime de empreitada, as frações ideais não pertencem ao construtor, mas sim aos adquirentes, de modo que impossível será sua arrecadação para a massa falida. Assim, caso não decidam concluir a obra com um novo construtor, restará aos adquirentes liquidar a 40 Sobre a possibilidade de rescindir o contrato de empreitada mantendo-se, todavia, o mesmo incorporador, já observou MELHIM NAMEM CHALHUB: “A contratação da construção está, obviamente, vinculada à contratação da aquisição da fração ideal do terreno, mas é possível a resolução do contrato de construção, destacadamente, nas hipóteses previstas em lei, mantendo-se o contrato de compra e venda ou de promessa de compra e venda da fração ideal do terreno, possibilitando aos adquirentes prosseguirem a realização da obra”. (CHALHUB, Melhim Namem. Da incorporação imobiliária. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar, 2003, p. 191). 39 incorporação mediante extinção do condomínio existente sobre o terreno e acessões. Por outro lado, em sendo o empreiteiro o próprio incorporador, os adquirentes poderão, por um ato só, afastá-lo da condição de construtor e incorporador, caso em que haverão de notificá-lo pela forma prevista no inciso VI do art. 43. I.4.3 Incorporação com Construção sob Regime de Administração ou de Preço de Custo Sobre o regime de administração (arts. 58 a 62), também conhecido por “regime de preço de custo”, pode-se dizer ser o mais complexo e que menos inversão de capital traz para o construtor e para o incorporador, além de desonerálos dos riscos próprios dos regimes de preço fechado e de empreitada. Análise da função que o incorporador assume nos regimes de preço fechado, empreitada e preço de custo indicam, nesta ordem, a diminuição de suas responsabilidades mediante correspectiva transferência aos adquirentes, deixando à mostra sua natureza de prospector de negócios e aglutinador de interesses, traduzidas nas observações de CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA41 para quem o incorporador pode fazer as vezes de um construtor, um corretor, um mandatário, um financiador, um gestor de negócios, “um pouco de tudo”. O regime de administração, assim chamado em razão de os adquirentes administrarem eles próprios a obra, é tão pouco usual quanto o regime de empreitada porque inadequado para o mercado de consumo em razão da incerteza quanto aos valores com que se comprometem os adquirentes, acentuado risco e elevado grau de participação que assumem na condução da obra, aspectos estes estranhos aos propósitos de quem deseja simplesmente pagar por um imóvel e recebê-lo pronto e acabado. Sua aplicabilidade, e com mais razão que o regime de empreitada, adapta-se melhor a obras de pequeno vulto, com poucas unidades, em 41 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. 10ª ed., Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000, pp. 231-233. 40 que parte dos adquirentes já se conhecem e unem esforços de maneira prévia decidindo concluir um edifício em conjunto mediante contratação de um construtor. Descreve CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA42 que nesse regime o incorporador “oferece a unidade e a estimativa de seu custo, o qual variará na medida das oscilações do mercado, obrigando-se o adquirente a cobrir os gastos na medida em que se fizerem, mediante a atualização periódica das prestações”. NÉLSON LUIZ GUEDES FERREITA PINTO43 observa que a vantagem desse regime reside na exata correspondência entre o preço pago e o custo real de construção e a desvantagem consiste na exposição dos adquirentes às elevações de preços de mão-de-obra materiais que, às vezes, ocorrem bruscamente. Vantagens e desvantagens são, como se vê, inversamente proporcionais nos regimes de “preço fechado” e preço de custo. Assim como no regime de empreitada, o incorporador pode ser o próprio construtor, caso em que a prestação de serviços será firmada entre ele e o adquirente. Do contrário, o contrato de construção deve ser firmado entre o construtor e o incorporador no prazo de 45 (quarenta e cinco) dias contados do término do prazo dentro do qual o incorporador pode desistir da incorporação caso tenha ele se reservado esse direito. Assinado o contrato de construção, o incorporador segue pagando as obrigações mensais das frações ideais ainda não comercializadas conforme exige o § 6º do art. 35, transferindo aos adquirentes os direitos e obrigações atinentes a cada uma delas na medida em que as vai vendendo (§ 3º do art. 59), ou seja, quando o adquirente compra a fração de terreno, paga ao incorporador um determinado valor pelo qual se sub-roga nos direitos e deveres do contrato de construção na medida da fração ideal adquirida e do saldo devedor que ela tem frente ao contrato de construção. O incorporador, quando também não seja ele próprio o construtor, continua a ter participação ativa na condição de alienante das frações ideais ainda não comercializadas, de modo a trazer para a construção mais adquirentes que, uma vez aderindo, hão de contribuir para com os custos da obra diminuindo assim o limite 42 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, v. I. 21ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2005, p. 306. 43 PINTO, Nélson Luiz Guedes Ferreira. Contrato de incorporação imobiliária. In THEODORO JÚNIOR, Humberto (Org.). O contrato imobiliário e a legislação tutelar do consumo. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002, p. 299. 41 das obrigações dos adquirentes que já estiverem participando. Além disso, enquanto não comercializa todas as frações, deverá continuar a honrar os valores de construção a elas atinente. As vendas e anúncios realizados pelo incorporador devem discriminar (art. 62) o regime de construção adotado (por administração), o valor da fração ideal de terreno e o valor estimado do custo da construção atualizado com indicação do mês a que se refere dita atualização. O custo da obra, diferentemente da empreitada, não é estabelecido, recebendo apenas uma estimativa (art. 59, §§ 1º a 3º; art. 54, § 3º) por cuja inexatidão os adquirentes respondem, salvo se decorrer de má-fé do incorporador ou do construtor. Esta estimativa é revista semestralmente (art. 59) de comum acordo entre a Comissão de Representantes e o construtor (daí a importância da Comissão), podendo implicar maior ou menor custo da obra dependendo do tempo de execução que demandar, da remuneração do construtor e da variação do custo dos materiais. A cada nova alteração do custo alteram-se os valores que cada adquirente deve pagar de modo a que a obra seja concluída no tempo esperado (art. 60). No regime de administração, de forma indispensável, os adquirentes devem formar a Comissão de Representantes composta por no mínimo três eleitos dentre os compradores, antes de iniciar a obra (art. 59), de modo a que acompanhem o evoluir da incorporação (arts. 50, 60, 61 e 63) exercendo os atos de fiscalização previstos no art. 61 e, o mais importante, a alteração dos valores que os adquirentes deverão pagar; tendo em especial consideração que neste regime construtivo o custo da obra é meramente estimado e sua variação é tributada à conta integral dos adquirentes44. 44 FRANCISCO ARNALDO SCHMIDT assim expõe a dinâmica da metamorfose por que passa a incorporação em regime de preço de custo desde seu lançamento até o momento em que se encontram alienadas todas as frações ideais de terreno: “Levando em consideração a gama de poderes e atribuições que a lei confere à Assembléia Geral e à Comissão de Representantes, distinguimos nitidamente, mas incorporações em que a construção se desenvolve pelo regime de administração, duas fases: na primeira, enquanto ainda não reunido o grupo de condôminos custeadores das unidades, o incorporador é o centro de onde emanam as decisões e as providências. Ele é o dono do terreno ou se liga ao dono mediante um compromisso; escolhe o arquiteto, aprova o projeto, manda elaborar o memorial descritivo e o orçamento, registra a incorporação, escolhe corretores, promove a publicidade, efetua as vendas. Exitoso o empreendimento pela reunião de interessados nas unidades futuras, porém, começa a segunda fase, caracterizada por uma transferência do poder decisório sobre as questões que envolvem a construção, à comunidade dos condôminos, que as deliberam em Assembléia e as executam através de sua Comissão de Representantes, passando o incorporador e o construtor a uma posição quase de mandatários dos contratantes, pois sua atuação passa a depender das decisões destes em questões cruciais como aprovação de orçamentos e cronogramas físico-financeiros, fixação de valores de custeio e de 42 A obra é dos adquirentes, que para todos os efeitos constituem um “condomínio construtivo” em cujo pólo contrário se encontra o construtor, devendo todas as faturas, duplicatas, recibos, contas-correntes bancárias, depósitos, etc., serem emitidos e efetuados em seu nome (art. 58). Se o adquirente se torna inadimplente, além de a posse de sua unidade ficar retida com o condomínio construtivo (art. 52), contra ele pode ser adotado o rito de execução extrajudicial previsto no art. 63 ou outra medida de natureza judicial com o propósito de compeli-lo a pagar o valor devido. Uma vez firmado o contrato, diferentemente do que se dá no regime de preço fechado, o adquirente não pode mais desistir do negócio e receber devolução do que pagou pela fração ideal de terreno pela construção na forma preconizada pelo art. 53 do CDC. Isto se dá porque a obra é do adquirente, não do incorporador e nem do construtor. Este é mero prestador de serviços e aquele apenas vendedor da fração de terreno. O contrato de construção pelo regime de administração não envolve fornecimento de materiais. O construtor tem sua obrigação adstrita ao fornecimento de mão-de-obra e direção técnica da construção. I.5 COMISSÃO DE REPRESENTANTES A demonstrar que o contrato de incorporação imobiliária envolve múltiplos objetivos e que, do ponto de vista dos consumidores, congrega-os em torno de interesses coletivos da espécie individuais homogêneos decorrentes de origem comum, qual seja, a relação que para com o empreendimento, a LCI adiantou-se ao estágio atual em que se encontra o direito pátrio prevendo, ainda na década de 1960, a possibilidade de os consumidores se fazerem representar frente a seu fornecedor, incorporador ou construtor, por meio de um órgão de representatividade coletiva denominado “Comissão de Representantes”, composto por membros escolhidos dentre os próprios consumidores. prazos de conclusão. Lembre-se, em abono da tese, que na construção a preço de custo, a vantagem pecuniária do incorporador e do construtor é representada por honorários, ou taxas de administração e construção que recebem em pagamento da organização, administração e responsabilidade técnica da obra, ausente a idéia de lucro”. (SCHMIDT, Francisco Arnaldo. Incorporação imobiliária. 2ª Ed. Porto Alegre: Norton Editor, 2006, pp. 114-115). 43 Neste sentido, o art. 50 da LCI prevê a possibilidade de se criar a Comissão por meio de eleição em assembleia geral dos adquirentes ou por designação de seus membros no contrato de construção (estes existentes apenas nos regimes de empreitada e de administração). Sua função, segundo o mesmo dispositivo, é representar os adquirentes em qualquer regime de incorporação (prazo e preço certos, por administração ou empreitada) “em tudo o que interessar ao bom andamento da incorporação”. A Comissão se constitui formalmente levando-se a ata da assembleia ou o contrato de construção a registro em “cartório de títulos e documentos”, caso em que fica investida dos “poderes necessários para exercer todas as atribuições e praticar todos os atos que esta Lei [LCI] e o contrato de construção lhe deferirem, sem necessidade de instrumento especial outorgado pelos contratantes”45. A Comissão recebe poder de representação diretamente da lei, sem necessidade de manifestação de vontade individualizada e sem instrumento de mandato, inclusive no que tange à legitimidade processual (§ 5º do art. 63). Trata-se de universalidade de direito que, na condição de representante, vincula os demais adquirentes pelos atos que praticar nos limites da lei46. De forma um pouco mais específica, a LCI prevê caber à Comissão, nas incorporações com regime de construção por empreitada, a tarefa de fiscalizar o andamento da obra, a obediência a seu projeto e o reajuste monetário quando previsto (art. 55). Assim, no regime de empreitada, considerada a possibilidade de variação do preço ser una para todos os adquirentes nos contratos com correção, aliada aos pagamentos vinculados à evolução da obra, torna-se indispensável a constituição da Comissão de Representantes. 45 Em um acórdão do STJ, talvez o único que tenha tratado da natureza jurídica da Comissão de Representantes, relatado pelo Min. RUY ROSADO DE AGUIAR, REsp 255.593-SP, afirmou-se: “Ressalta a circunstância anotada no r. acórdão dos embargos declaratórios, de lavra do Des. Rodrigues de Carvalho: a comissão atua ex lege, daí a impropriedade da referência ao art. 18 do C Civil, pois é desnecessária a criação de pessoa jurídica e a sua formalização por atos cartorários. Trata-se de situação especial decorrente, de um lado, da frustração do plano da incorporadora e, de outro, da exigência de prosseguir-se na obra para a defesa do interesse dos condôminos, para a qual a lei muito acertadamente – traça normas específicas e trata de dispensar formalidades e burocracias. Disse bem a r. Sentença da Dra Berenice Cesar: “a comissão de condôminos é uma realidade jurídica que tem fundamento na ‘teoria da realidade’ , segundo esta é ‘um agrupamento de pessoas físicas para alcançar um fim excedente da esfera dos interesses individuais torna-se um organismo social dotado, como o homem, de um poder próprio para agir e, por isso, se categoriza como sujeito de direitos”. 46 Cfr. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, v. I. 21ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2005, p. 313. 44 No regime de administração então a importância da Comissão é absoluta porque o construtor nada mais é senão puro prestador de serviços, que não fica encarregado sequer de fornecer os insumos para a construção. Todos os materiais são adquiridos pela Comissão que por isto mesmo se têm dito, com ressalvas para especificidade do caso concreto, ser responsável por sua qualidade frente ao incorporador e ao construtor. Ainda, os adquirentes é quem suporta toda e qualquer variação de custo. Porque não convém transcrever, remete-se aos arts. 58 e 61 da LCI, que discriminam os poderes da Comissão no regime de administração. Em que pese possa se constituir a qualquer momento e em qualquer espécie de incorporação, é fato que, nas incorporações com regime de “prazo e preço certos”, em que incorporador promete a venda de coisa futura representada pela fração ideal de terreno e acessões assumindo construir a obra e entregá-la em data certa por preço previamente contratado, não se veem a constituição de Comissões de Representantes durante o curso da obra. Isto se dá justamente porque, no regime de “prazo e preço certo”, os adquirentes contratam individualmente com um incorporador que assume integralmente os riscos do empreendimento, arcando com variações de preço de insumos, comercialização insuficiente das unidades e inadimplemento dos compradores. Nesse regime, então, em princípio aos consumidores é irrelevante o inadimplemento de um ou outro adquirente. Creem que o incorporador cumpra o contrato, vale dizer, construa e lhes entregue as unidades individualizadas no registro de imóveis com a qualidade prometida. Por outro lado, é fato que, caso o incorporador venha a falir, cair em insolvência, paralisar ou retardar a obra, os adquirentes terão que formar a Comissão de Representantes para tentar concluir o empreendimento sem a participação do incorporador, conforme faculta o art. 43, III e VI, da LCI. Se adotada a afetação patrimonial os poderes da Comissão de Representantes são ampliados para que também possa fiscalizar a contabilidade de da obra (art. 31-C, 31-D, IV e V), em qualquer regime de incorporação (o que no sistema original da LCI só era permitido no regime de administração – art. 61 e art. 65, § 1º, II, da LCI). Ainda, a Comissão, em caso de falência ou destituição do incorporador, também ganha poderes legais para outorgar a propriedade das frações aos adquirentes e também, com o propósito de concluírem o término da obra (art. 31-F, §§ 1º, 3º, 4º, 5º), alienar as unidades que o incorporador não tenha comercializado. Ainda, em caso de os adquirentes decidirem pela liquidação do 45 patrimônio de afetação ao invés da conclusão, a Comissão poderá alienar (art. 31-F, §§ 7º, 8º, 9º, 14º) o terreno e suas acessões como um todo para, em seguida, quitar os credores do patrimônio afetado (art. 31-F, § 18). Por fim, dispõe o art. 63 da LCI que a Comissão de Representantes pode cobrar os adquirentes inadimplentes e até mesmo levar a leilão público suas respectivas frações ideais de terreno e acessões. Assim, verificado que um determinado contratante de unidade não está pagando, de modo a evitar que os demais sejam onerados com sua inadimplência, a LCI permite que Comissão faça a cobrança e, se for o caso, realize leilão extrajudicial da fração e acessões. A prerrogativa, no entanto, não pode ser exercida pela Comissão nas incorporações por prazo e preço certos porque neste regime a responsabilidade pela construção é do incorporador, sendo indiferente aos adquirentes que um ou outro dentre eles se torne inadimplente na relação com o incorporador já que neste regime ele assume todos os riscos. 46 II A INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA E O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR II.1 O MERCADO DE CONSUMO A noção de cidadania como hoje é concebida tem sua origem na Revolução Inglesa do século XVII e nas Revoluções Francesa e Americana do século XVIII47. Sinteticamente traduzida pelas expressões “direito a ter direitos” e “direito ao exercício efetivo dos direitos”, a cidadania evolui desde então, ampliando a gama de direitos postos à disposição do cidadão. Neste sentido têm-se classificado suas conquistas em direitos de 1ª geração, como sendo aqueles alcançados nos séculos XVIII e XIX, relacionados à obtenção de direitos individuas e políticos; direitos de 2ª geração, estes no século XX, também conhecidos como direitos sociais; e, por fim, os direitos de 3ª geração, que se inicia no século XX e segue em desenvolvimento nos dias atuais, concernentes notadamente ao reconhecimento de direitos exercitáveis de maneira coletiva. A par desse crescente de direitos e seus correspectivos deveres que de tempos em tempos são agregados ao cidadão, o Estado se modifica, assumindo novas funções de modo a se adaptar à dinâmica da sociedade48. É perceptível o surgimento do Estado Liberal como forma de fortalecimento da liberdade individual e 47 É comum falar em cidadão romano ou greco agregando-se um certo conceito de cidadania. Ocorre, todavia, que a cidadania como ora é tratada não se identifica com a da antiguidade clássica, em que pese a co-existência de alguns conceitos como, por exemplo, o de democracia. Sobre essa observação, NORBERTO LUIZ GUARINELLO escreve: “A cidadania nos Estados-nacionais contemporâneos é um fenômeno único na História. Não podemos falar de continuidade do mundo antigo, de repetição de uma experiência passada e nem mesmo de um desenvolvimento progressivo que unisse o mundo contemporâneo ao antigo. São mundos diferentes, com sociedades diferentes, nas quais pertencimento, participação e direito têm sentidos diversos”. (GUARINELLO, Luiz Norberto. Cidades-estados na antiguidade clássica. In PINSKY, Jaime et PINSKY, Carla Bassanezi (orgs.). 3ª ed. História da cidadania. São Paulo: Contexto, 2005, p. 29). 48 Em descrição dessa evolução MARCO MONDAINE põe em sucessão “Em primeiro lugar, o Estado liberal, aquele mal necessário que deve garantir a liberdade civil dos indivíduos, sua cidadania passiva, não interferindo na sua vida privada. Em segundo lugar, o Estado democrático, aquele instrumento realizador da igualdade política entre os indivíduos, sua cidadania ativa, incentivando a participação de todos no jogo político. Em terceiro lugar, o Estado de bem-estar social, aquele responsável pela efetivação da igualdade, social entre os indivíduos, sua jus-cidadania, administrando e distribuindo os recursos materiais de maneira a abreviar as distâncias econômicas entre os mesmos". (MONDAIME, Marco. O respeito aos direitos individuais. In PINSKY, Jaime et PINSKY, Carla Bassanezi (orgs.). 3ª ed. História da cidadania. São Paulo: Contexto, 2005, p. 132). 47 da participação política do cidadão frente ao Estado até então autoritário (1ª geração), seguido do Estado Democrático de Direito e do Estado de Bem-Estar Social (2ª e 3ª gerações), estes como instrumento de implementação da igualdade material, distribuição de justiça social e efetiva e coletivização dos direitos. Em meio a essa crescente modificação dos direitos individuais e criação de novos direitos coletivos e sociais, é que se desenvolve a sociedade de consumo, estimulando o surgimento dessa modificação, mas, ao mesmo tempo, sofrendo seus efeitos em uma luta incessante entre criador e criatura pela busca de um equilíbrio. Consolidada no século XX, a sociedade de consumo caracteriza-se por uma crescente oferta de produtos e serviços, feita de maneira massificada, por meio do marketing associado à oferta de crédito para aquisição de bens em escala industrial. Um dos principais motores do consumo é a informação produzida por meio de “marketing científico”49. Dentre os argumentos de que ele se utiliza está a ideia de que a aquisição de produtos e serviços é sinônimo de felicidade e que pode ser alcançada por todo habitante do globo terrestre. Daí porque parte da informação que hoje corre o planeta já não é aquela produzida localmente, de uma comunidade para a outra, mas sim aquela produzida de forma massificada com o propósito de transmitir uma dada mensagem que interesse a quem domina a técnica de informar globalmente e pode, por esse meio, criar um padrão de consumidor global para seus produtos e serviços. Em meio à promessa de realização pessoal, o consumo 49 Para realizar sua tarefa, o marketing se vale das ciências como, por exemplo, a análise físico-química do cérebro, pesquisas quantitativas e qualitativas, estudos comportamentais, psicologia, antropologia e uma série de recursos postos a serviço do mercado pela ciência, sua fiel coadjuvante desde o nascimento de liberalismo. De posse de informações acerca do público e do produto a ser vendido, a teoria da comunicação entra em campo. Dentre os processos de comunicação, o chamado “modelo positivo”, embasado no sistema de comunicação telefônica, é dentre todos o mais utilizado. Compõe-se ele dos seguintes elementos: a fonte da mensagem, o codificador, a mensagem, o canal, o decodificador e o receptor (Cfr. ROCHA, Everardo. A sociedade do sonho. 3ª ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1995, p.p. 49-51). Assim, o vendedor (a fonte) anuncia seu produto e as qualidades e benefícios que ele traz (a mensagem) por meio de um determinado meio de comunicação (canal) que mais facilmente chegue ao público alvo (o receptor), dotando essa mensagem de um estímulo (código) que será lido e aceito (decodificado) pelos receptores. Tão mais exitoso será o processo comunicativo quanto maior for a quantidade de estímulo respondido (consumo praticado). Por isso a importância de bem selecionar o receptor, escolher um canal que faça a mensagem chegar até ele e ainda criar um código que possa ser traduzido e assimilado pelo destinatário. Assim se dá, com vênia para a simplicidade do exemplo, no marketing para venda de artigos esportivos. Seleciona-se o público receptor como sendo os praticantes de atividades físicas, agregando ao produto a ideia de que sua utilização possibilita que se “vá mais longe”, transmitindo assim a ideia de vigor físico agregado ao produto a possibilitar que o receptor, praticante de atividade física, imagine-se rompendo limites físicos. É seu “eu” refletido no objeto de consumo. É comum verificar a propaganda comercial dando conta de que o consumo de determinado produto trará status social, garantia de felicidade, sucesso pessoal e profissional, realização sexual ou signo de cultura e inteligência para quem o consome. Tratam-se todos esses exemplos de códigos dirigidos a um público específico que os aceita e responde consumindo. 48 também ganha status de indício de desenvolvimento social, cultural e científico das nações. Mais até que indício, é correto dizer que o consumo passou à condição de índice mensurável por critérios científicos da ciência tradicional. Quanto maior o consumo, mais desenvolvida é a nação e maior o nível de cidadania efetiva. Constata-se que a massificação da cultura ocidental vem se prestando à maximização do mercado, fazendo da cultura não só um produto, mas também um modo de ceifar a capacidade de crítica, alienando jovens para completa entrega às “necessidades” que o mercado oferece às massas consumidoras. Com isso, o desejo pelo consumo não brota de maneira espontânea ou como fruto de necessidade vivencial: ele é criado e estimulado com ajuda da ciência. Conforme também já afirmou JAMES MARINS50 o “[...] fator de demanda, quando não gerado espontaneamente, pode ser fruto da publicidade destinada a criar desejos artificiais, levando o consumidor a render-se a apelos que o encaminham a arcar com um consumo desnecessário, isto é, com patológica inversão de prioridades [...]”. De fácil percepção os apelos sensoriais do marketing, que germina o desejo de consumo com promessas de êxito profissional, satisfação sexual, felicidade, sublimação existencial, etc. Com esse intuito a medicina, por exemplo, tem sido utilizada de maneira antiética, considerados os estudos sobre o comportamento do cérebro humano quando submetido à propaganda comercial como meio de estimular o consumo (marketing científico). Sobre o assunto, relata MARIE BÉNILDE51 a constatação de que a região do cérebro denominado “córtex pré-frontal médio”, reage de maneira mais significativa quando exposta a produtos e propagandas com nos quais o consumidor tenderia a identificar algum ponto de reflexo de sua própria personalidade, possibilitando assim a utilização do marketing cientificamente mais adequado para colher o público-alvo. O estímulo ao consumo acompanha o cidadão desde quando ele nasce. O bombardeio de mensagens subliminares, promessas de satisfação e tudo quanto mais se possam fazer crer advir positivamente do ato de consumir, são um fato já integrado na vida do cidadão, um elemento natural do meio social de cujos efeitos 50 MARINS, James. Responsabilidade da empresa pelo fato do produto. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993, p. 23. 51 BÉNILDE, Marie. Neurociências à serviço do mercado. In Le monde diplomatique Brasil. São Paulo: Instituto Polis, Ano 1, número 4, novembro de 2007. 49 dificilmente se escapa. Trata-se, como bem menciona ZYGMUNT BAUMAN52, de uma espécie eficaz de “educação continuada”: A educação de um consumidor não é uma ação solitária ou uma realização definitiva. Começa cedo, mas dura o resto da vida. O desenvolvimento das habilidades de consumidor talvez seja o único exemplo bem-sucedido da tal “educação continuada” que teóricos da educação e aqueles que a utilizam na prática defendem atualmente. As instituições responsáveis pela “educação vitalícia do consumidor” são incontáveis e ubíquas – a começar pelo fluxo diário de comerciais na TV, nos jornais, cartazes e outdoors, passando pelas pilhas de lustrosas revistas “temáticas” que competem para divulgar os estilos de vida das celebridades que lançam tendências, os grandes mestres das artes consumistas, até chegar aos vociferantes especialistas/conselheiros que oferecem as mais modernas receitas, respaldadas por meticulosas pesquisas e testadas em laboratório, com o propósito de identificar e resolver os “problemas da vida”. Nos dias de hoje, ser cidadão é ser consumidor. Indagações indiretas sobre o tema obtêm respostas que em maior ou menor grau apontam para certa dose de consumo como condição para o exercício efetivo de cidadania. Além das necessidades básicas para uma vida digna, diz-se que o homem é cidadão quando se encontra inserido no modelo de consumo via “inclusão social”. Incluir-se socialmente é, também, poder consumir em igualdade com os demais cidadãos. Em que pese haja clara atuação no âmbito do mercado de consumo, o papel do Estado e também da sociedade civil, com raras exceções, tem se pautado em reivindicações qualitativas e quantitativas atinentes aos produtos e serviços consumidos, perseguindo a atribuição de ganhos contratuais, econômicos, aos consumidores ou cidadãos contratantes, como que uma engrenagem natural do capitalismo com o distingue de “reivindicação (contratual) da coletividade”53. Assim, no estágio atual de desenvolvimento de nossa sociedade, não se vê luta contra o 52 BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. p. 73. 53 Neste sentido, examinando as forças de que resultou a edição CDC, afirma RONALDO PORTO MACEDO JR.: “Os movimentos em defesa do consumidor, ou consumerismo latu sensu, representaram uma forma de contrabalançar o poder entre produtores e consumidores. O advento e generalização do uso dos contratos padrão implicou no aumento da vulnerabilidade do consumidor nas relações contratuais de consumo. O crescimento do consumerismo e dos grupos de defesa do consumidor configurou-se inicialmente como uma forma de restabelecer o equilíbrio entre fornecedor e consumidor. Num primeiro momento, o movimento consumerista foi identificado como exemplo de grupo de interesses organizado em defesa de interesses eminentemente privados, ainda que organizados coletivamente. [...] Mesmo que o movimento do consumidor não tenha tido grande importância para formulação da legislação de proteção do consumidor, é certo que ele foi em grande medida uma resposta às demandas da classe média em relação a certas práticas contratuais de consumo. O caso brasileiro não parece contrariar essa afirmação. (MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Contratos relacionais e defesa do consumidor. São Paulo: Max Limonad, 1998, pp. 272 e 276-277). 50 consumismo desenfreado e inútil, mas sim uma busca por mais e mais consumo, consumo com melhor qualidade e preço intrínsecos aos produtos e serviços acessíveis a um número maior de cidadãos, como meio imaginado de inclusão social. Não obstante essas colocações, não é errado associar consumo à cidadania. Isto porque é pelo consumo que o cidadão se sente (e de fato é) incluído socialmente, fortalecendo o elo social e suprindo algumas necessidades básicas que o Estado não consegue satisfazer. Mas é fato que a sociedade de consumo, sem que lhe seja dada atenção necessária, desenvolve-se de maneira desequilibrada considerada a desigualdade entre partes contratantes, o poder econômico, técnico e científico e a informação assimétrica à disposição do fornecedor e do consumidor. O poder dos agentes econômicos aliado ao marketing e ao mercado de massas, distanciou as partes contratantes de modo a tornar a relação entre elas fria e impessoal, criando um vazio na relação que contribuiu para formação da vulnerabilidade do consumidor, sempre submetido às práticas comerciais e à aquisição de produtos e serviços de escala industrial de cuja criação e funcionamento sabe muito pouco. De modo a equilibrar essa relação, considerada a incapacidade e a tendência do mercado em aumentar as discrepâncias, fez-se necessária uma modificação nas relações contratuais de consumo que, particularmente no Brasil, deu-se inicialmente por via da intervenção estatal, com a edição do CDC previsto na CF/88 (art. 5º, XXXII), inspirada em princípios atinentes aos “direitos e garantias individuais” e à “ordem econômica”. A questão do consumo foi elevada à condição de tema constitucional considerada a realidade moderna que imbrica dignidade humana, consumo, cidadania, melhoria da qualidade de vida e desenvolvimento, a exigir atuação estatal no sentido de promover equilíbrio jurídico e econômico nas relações como forma de alcançar os objetivos da república (art. 3º da CF/88), de construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais, promover o bem de todos sem preconceitos e discriminação. Daí porque se possa afirmar que a defesa do consumidor, assumida no plano constitucional, traduz-se, no dizer de EROS ROBERTO GRAU54, num 54 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988. 12ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 252. 51 princípio constitucional impositivo (CANOTILHO), a cumprir sua função, como instrumento para realização do fim de assegurar a todos existência digna e objetivo particular a ser alcançado. No último sentido, assume a função de diretriz (DWORKIN) – norma-objetivo – dotada de caráter constitucional conformador, justificando a reivindicação pela realização de política pública. Por compromisso constitucional, para além de consolidar regras jurídicas, o CDC fixa diretrizes gerais de uma “política nacional de relações de consumo” (art. 4º do CDC) voltada ao respeito das necessidades dos consumidores, sua dignidade, saúde e segurança, proteção de seus interesses econômicos, melhoria de sua qualidade de vida, bem como práticas de boa-fé e efetiva transparência nas relações de consumo. Para tanto, partindo da presunção absoluta de vulnerabilidade do consumidor (art. 4º, I), o CDC estabelece uma série de princípios atinentes à complexidade intra-obrigacional da relação jurídica, compostas por deveres principais e acessórios. O primeiro deles, um dever de proteção estatal plasmado no CDC pelo “princípio da ação governamental” (art. 4º, II, IV, V, VI, VII; e art. 5º), a considerar a defesa do consumidor como direito e garantia individual exercitável contra o fornecedor e também contra o próprio Estado, implicando para este último duas ordens de comportamento: a primeira delas, como agente regulador da atividade econômica, a exigir do Estado atuação repressiva por meio exercício do poder de polícia estatal sobre os fornecedores e também uma atuação preventiva, educando e informando consumidores e fornecedores acerca de seus direitos e obrigações; a segunda, dizendo respeito ao próprio comportamento do Estado como parte fornecedora nas relações de consumo, quando dele se exige uma atuação no sentido de promover a “racionalização e melhoria dos serviços públicos” tal qual prevê o art. 4º, VIII, do CDC em complemento ao parágrafo único do art. 175 da CF/88. Segue o CDC estabelecendo o “princípio da garantia de adequação” dos produtos e serviços (art. 4º, II, “d”) de modo a que atendam a padrões mínimos de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho, daí se desdobrando o “princípio da proteção” a garantir a integridade dos bens e da pessoa do consumidor e também de terceiros estranhos à relação básica de consumo. 52 Do mesmo modo e imbricados entre si, os “princípios da boa-fé” e “da informação” (art. 4º, III, IV e VI), a exigir das partes lealdade e transparência nas tratativas, na execução e mesmo depois de encerrado o contrato, franqueando mutuamente o conhecimento pleno das condições do negócio, do produto e do serviço adquirido; princípios esses que atualmente também se encontram consagrados em todas as demais relações contratuais por força do art. 422 do CC/2002 e dos ventos do “direito contratual pós-moderno”. E por fim, o “princípio do acesso à justiça” que, apesar de não estar previsto expressamente no CDC, brota como ressonância de vários dispositivos dispersos tendentes a conferir efetividade aos direitos dos consumidores quando carecerem de socorrer-se do judiciário para vê-los cumpridos. São exemplos desse princípio: a possibilidade de inversão do ônus da prova (art. 6º, VII e VIII); a assistência jurídica integral e gratuita ao consumidor carente (art. 5º,I); a extensão da proteção do habeas data acerca de informações sobre a pessoa do consumidor (art. 43, § 4º); a aplicação das normas processuais do Título III à tutela de outros direitos e interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos (art. 117); e a ampliação do campo de atuação da Ação Civil Pública (Lei 7.347/85) por meio de aplicação do CDC (arts. 109 a 117). Nesse ambiente de proteção à parte contratual vulnerável constitucionalmente inspirado para a realização dos objetivos da república é que a incorporação imobiliária deve ser vista respeitando, todavia, aquilo que nela há de particular e necessário para a preservação da atividade, da função social, dos interesses do incorporador e, em última análise, do próprio consumidor. II.2 A RELAÇÃO DE CONSUMO A aplicabilidade do CDC carece da presença de uma “relação jurídica de consumo” cuja existência é verificada pelo preenchimento de requisitos legalmente previstos55. Descrevendo o juízo de subsunção do fato à hipótese de incidência, 55 BONATTO, Cláudio et MORAES, Paulo Valério Dal Pai. Questões controvertidas no Código de Defesa do Consumidor. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1998, p. 63. 53 CLAUDIO BONATTO e PAULO VALÉRIO DAL PAI MORAES assim se referem à caracterização da relação de consumo: Sintetizando estes ensinamentos, o suporte fático consumerista constitui-se de relação do mundo fático, na qual, de um lado está a figura do consumidor – destinatário final – e de outro um fornecedor de produto ou serviço, os quais, diante da existência de contrato de compra e venda, de prestação de serviço ou, simplesmente, diante da ocorrência de algum dano psíquico ou físico causado pelo bem-de-vida (lato sensu), geram a imediata incidência da norma protetiva, completando-se, assim, o processo de jurisdicização daquele suporte fático. Dentre as espécies de relação de consumo existentes, a chamada “relação básica de consumo” é apurada segundo a presença dos requisitos previstos no caput do art. 2º e no caput e §§ do art. 3º do CDC56, notadamente pela participação direta de um consumidor destinatário final do produto ou do serviço. Além desta, o CDC também prevê outras três espécies de relação de consumo, menos frequentes, às quais se pode referir como sendo “relações extensivas” ou “por equiparação”. A segunda delas, prevista no parágrafo único do art. 2º, equipara à posição de consumidor “a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo”. Nesta espécie de relação, o consumidor é encarado segundo a presença de interesses ou direitos difusos, tutelados coletivamente na forma do art. 81, II, do CDC, assim entendidos os interesses ou direitos “transindividuais, de natureza indivisível, de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base”. Assim, consideram-se protegidos pelo CDC na forma de conjunto, grupo, classe ou categoria, os consumidores que sofram os efeitos do fato ou vício do bem consumido, estando a merecer defesa coletiva ao invés de individualizada para cada componente do grupo, classe ou categoria. 56 “Art. 2º. Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produtos ou serviço como destinatário final. Parágrafo único. [...]. Art. 3º. Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços. § 1º. Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial. § 2º. Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista”. 54 A terceira espécie de relação de consumo vem prevista no art. 17 do CDC, que estende o conceito de consumidor a “todas as vítimas do evento”. No caso, a relação de consumo se constitui em decorrência de um acidente de consumo legalmente designado pelo Código como “fato do produto e do serviço” (Seção II do Capítulo IV do CDC). Os danos causados por produto ou serviço postos no mercado de consumo com frequência atingem terceiros, designados na doutrina americana, fonte inspiradora do CDC neste ponto, como bystanders, vale dizer, pessoas que não fizeram parte da relação básica de consumo prevista nos arts. 2º e 3º, mas ainda assim sofreram os efeitos do acidente de consumo. A quarta e última espécie de relação se forma segundo prevê o art. 29, com viés repressivo, em decorrência de mera “exposição às práticas” comerciais ilegais assim previstas nos “Capítulo V e VI” do CDC. Por essa fórmula, as práticas comerciais tendentes à formação e execução de relações básicas de consumo (oferta, apresentação, publicidade e cobrança de dívida), sofrem a incidência do CDC e podem ser coibidas em favor de potenciais consumidores, como forma de prevenção voltada à formação de relações de consumo que atentem para os princípios do Código, ou seja, é “indiferente estejam essas pessoas identificadas individualmente ou, ao revés, façam parte de uma coletividade indeterminada composta só de pessoas físicas ou só de pessoas jurídicas, ou, até, de pessoas jurídicas e de pessoas físicas [...]”57 . Ainda, para que se cogite de aplicar o CDC à determinada relação, segundo o disposto nos art. 2º e 3º (relação de consumo básica), deve-se indagar também acerca de aquisição de um produto ou de um serviço por alguém que dele pretenda fazer uso como destinatário final da cadeia de produção ou de prestação de serviço em que ele (o produto ou serviço) esteja inserido. Ato contínuo, indaga-se da presença de um fornecedor que desenvolva atividade econômica de venda do produto ou de prestação dos serviços adquiridos. Em torno do conceito de “consumidor padrão ou consumidor destinatário final” (relação de consumo básica) gira grande controvérsia, consistente em fixar o conteúdo da expressão contida no art. 2º, segundo a qual se considera consumidor 57 BENJAMIN, Antônio Hermann de Vasconcellos e. In GRINOVER, Ada Pellegrini (et al.). Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998, p. 211. 55 quem adquire produto ou serviço na condição de “destinatário final”58. Sobre a questão a doutrina se divide em duas tendências: a dos “finalistas” e a dos “maximalistas”. Adepto da teoria finalista, atualmente majoritária e em consonância com o caráter de lei especial que deve ser atribuído ao CDC, JOSÉ GERALDO BRITO FILOMENO59 afirma que o conceito de consumidor previsto no Código é exclusivamente de caráter econômico, ou seja, leva-se em consideração tãosomente o personagem que no mercado de consumo adquire bens ou então contrata a prestação de serviços como destinatário final, pressupondo-se que assim age com vistas ao atendimento de uma necessidade própria e não para o desenvolvimento de uma outra atividade. Assim, para os finalistas, reveste-se da qualidade de consumidor apenas quem adquire o bem ou serviço com o propósito de utilizá-lo em proveito próprio, retirando-o do mercado de consumo para satisfação de uma necessidade pessoal, sem propósito de revenda ou inclusão em nova cadeia de consumo. Já para os adeptos da corrente maximalista, segundo explica JAMES MARINS60, não se pode equiparar “uso final com uso privado, pois que tal equiparação não está autorizada na lei e não cabe ao intérprete restringir aonde a norma não o faz, e, ademais, é inegável que nem todo uso final é privado e que freqüentemente faz-se uso final não privado de determinado bem ou serviço”. Também explicando o ponto de vista da corrente maximalista, CLÁUDIA LIMA MARQUES61 escreve que: O CDC seria um Código geral sobre o consumo, um Código para a sociedade de consumo, o qual institui normas e princípios para todos os agentes do mercado, os quais podem assumir os papéis ora de 58 Identificando os pólos das quatro espécies de relação de consumo acima referida, ANTÔNIO CARLOS EFING classifica as possíveis espécies de “consumidor” previstas no CDC em consumidor destinatário final, consumidor intermediário exposto às práticas abusivas, consumidor que não seja destinatário final, consumidor pessoa física, consumidor pessoa jurídica, consumidor padrão, coletividade consumidora, consumidor ente despersonalizado, consumidor vítima de acidente de consumo e consumidor exposto às práticas comerciais. (EFING, Antônio Carlos. Fundamentos do direito das relações de consumo. 2ª Ed.. Curitiba: Juruá, 2004, pp. 48-66). 59 FILOMENO, José Geraldo Brito. In GRINOVER, Ada Pellegrini (et al.). Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998, p. 25, itálicos do autor. 60 MARINS, James. Responsabilidade da empresa pelo fato do produto. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993, p. 66. 61 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor: o novo regime das relações contratuais. 5ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, pp. 304-305. 56 fornecedores, ora de consumidores. A definição do art. 2º deve ser interpretada o mais extensivamente possível, segundo esta corrente, para que as normas do CDC possam ser aplicadas a um número cada vez maior de relações de mercado. Consideram que a definição do art. 2º é puramente objetiva, não importando se a pessoa física ou jurídica tem ou não fim de lucro quando adquire um produto ou utiliza um serviço. Destinatário final seria o destinatário fático do produto, aquele que o retira do mercado e o utiliza, o consome; por exemplo, a fábrica de celulose que compra carros para o transporte dos visitantes, o advogado que compra uma máquina de escrever para o seu escritório, ou mesmo o Estado quando adquire canetas para uso nas repartições e, é claro, dona-de-casa que adquire produtos alimentícios para a família. Além do consumidor num pólo da relação, n’outro será necessária a presença de um fornecedor, assim considerado quem pratique atividade econômica com profissionalismo e habitualidade62 tendentes a oferecer, no mercado de consumo, produto, serviço ou ambos de modo conjugado. Profissionalismo e habitualidade, no entanto, são as duas faces da mesma moeda, já que não se concebe alguém que seja “profissional” sem exercer sua atividade de forma “habitual”. Em geral a doutrina classifica63 os fornecedores de produtos em (arts. 12 e 13 do CDC): (a) fornecedor real - aquele que fabrica, produz ou constrói; (b) fornecedor aparente64 - aquele que tem direito de nome, marca ou signo aposto no produto; (c) fornecedor presumido - aquele que importa produto ou comercializa produto sem designação do fornecedor real. Particularmente ANTÔNIO CARLOS EFING65 agrega uma quarta espécie, os “fornecedores entes despersonalizados”, os quais diferem “das outras formas de grupos organizados com objetivo comum fundamentalmente em virtude da ausência formal de elemento essencial que se possa considerar pessoa jurídica: a affectio societatis, ou seja, a intenção expressa de manter vínculo associativo”. Segundo dispõe o § 1º do art. 3º do CDC, entende-se por produto qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial. Indo além, entende-se por produto, nas 62 Logo, não se revestiria da condição de fornecedor quem venda produto ou preste serviço de maneira esporádica, sem fazer disso sua profissão, seu sustento, ainda que se trate de uma sociedade empresária. 63 Neste sentido, DENARI, Zelmo. In GRINOVER, Ada Pellegrini (et al.). Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998, p. 145; e MARINS, James. Responsabilidade da empresa pelo fato do produto. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993, p. 98. 64 JAMES MARTINS justifica a responsabilidade do fornecedor aparente por substituição ao fornecedor real segundo a “teoria da aparência”. (MARINS, James. Responsabilidade da empresa pelo fato do produto. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993, pp. 100-101). 65 EFING, Antônio Carlos. Fundamentos do direito das relações de consumo. 2ª Ed.. Curitiba: Juruá, 2004, pp. 73-76. 57 relações de consumo, aquele bem de vida fruto de intervenção humana praticada com intuito mercantil, quer seja seu resultado fisicamente perceptível, meramente abstrato (v. g., a criação de um software), ou de mera apresentação (v. g., produtos naturais colhidos e vendidos in natura sem modificação de substância). Produto, então, nas relações de consumo, é um bem que se qualifica pela presença de um fornecedor. O conceito de produto é mais restrito que o conceito de bem de forma a se adequar ao objeto das relações de consumo, haja vista que nem todo bem pode ser objeto de apropriação econômica. Já o conceito legal de serviços alude a “qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista” e, em certos casos, até mesmo as atividades prestadas verdadeiramente de forma gratuita (§ 2º do art. 3º e parágrafo único do art. 39)66. A remuneração paga pelos serviços deve ser entendida não apenas como o pagamento realizado diretamente pelo serviço prestado, mas também os serviços ofertados “gratuitamente” em conjunto com outros serviços ou produtos adquiridos (v. g., aquisição de um jogo de pneus com instalação gratuita) já que, nestes casos o que de fato há é uma remuneração indireta disfarçada no produto ou serviço que foi “remunerado”. Logo, serviços de voluntariado não implicam incidência do Código, já que não se trata de oferta posta à disposição no mercado de consumo pela qual não seja devida remuneração. II.2.1 Responsabilidade objetiva O fornecimento de produtos e serviços pode gerar responsabilidade civil em razão de descumprimento de obrigações de natureza contratual (responsabilidade civil contratual) ou de violação de direitos previstos em lei (responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana). 66 Por previsão expressa e também porque se trata de uma lei geral em relação a CLT, o CDC não se aplica às relações de trabalho. Ainda, por extrapolar o propósito do presente texto, não serão abordados os serviços securitários, de natureza bancária financeira ou de crédito. 58 O CDC divide a responsabilidade dos fornecedores em “responsabilidade pelo fato do produto e do serviço” (Seção II do Capítulo IV), também referida pela doutrina como “acidente de consumo”; e “responsabilidade por vício do produto e do serviço” (Seção III do Capítulo IV). No entanto, conforme anotam ZELMO DENARI e JAMES MARINS67, quando comparados entre si, sem consideração aos reflexos de ordem material que causam, vício e defeito se equivalem. A distinção entre um e outro surge, na realidade, quando se indaga acerca da espécie de prejuízo causado ao consumidor ou a terceiros estranhos à relação básica de consumo (“vítimas do evento” – art. 17 do CDC). Enquanto o “vício” previsto no CDC é aquele que torna o produto ou serviço contratado impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou diminuam seu valor, o acidente de consumo prescinde de uma relação contratual prévia embora em geral ocorra no curso dela - e extrapola os limites econômicos do produto ou serviço causando um prejuízo que afeta tanto o produto ou serviço em si, como também outros bens integrantes do patrimônio do consumidor ou das vitimas do evento68. Esta diferença é assim explicada por ZELMO DENARI69: [...] não se pode deixar de considerar que os vícios de adequação, previstos nos arts. 18 e segs. do Código de Defesa do Consumidor, suscitam uma desvantagem econômica para o consumidor, mas a perda patrimonial não ultrapassa os limites valorativos do produto ou serviço defeituoso, na exata medida de sua inservibilidade ou imprestabilidade. Costuma-se dizer que, nesta hipótese, a responsabilidade está in re ipsa. De outra parte, os defeitos de insegurança, previstos nos arts. 12 e sgts. do Código de Defesa do Consumidor, suscitam responsabilidade de muito maior muito, pois nos acidentes de consumo os danos materiais ultrapassam, em muito, os limites valorativos do produto ou serviço. O acidente de consumo pode derivar de defeitos propriamente ditos, fruto de ato comissivo do fornecedor, ou de informações insuficientes ou inadequadas acerca da utilização e dos riscos inerentes ao produto ou serviço. 67 DENARI, Zelmo. In GRINOVER, Ada Pellegrini (et al.). Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998, pp. 139/141. MARINS, James. Responsabilidade da empresa pelo fato do produto. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993, p. 141. 68 Cfr. BONATTO, Cláudio et MORAES, Paulo Valério Dal Pai. Questões controvertidas no Código de Defesa do Consumidor. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1998, p 114. 69 DENARI, Zelmo. In GRINOVER, Ada Pellegrini (et al.). Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998, pp. 140-141. 59 No art. 12 do CDC, encontra-se a disciplina da responsabilidade civil por acidentes de consumo oriundos de defeitos de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação, informação ou seu acondicionamento. Já no art. 14, o CDC trata dos acidentes quando decorrentes de defeitos relativos a serviços, informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e risco. O CDC adota a responsabilidade civil objetiva em detrimento da teoria da culpa subjetiva70. Para tanto, o Código não partiu de uma única teoria dentre as várias já formuladas como, por exemplo, “a teoria do risco da atividade” a incidir sobre o fabricante que coloca no mercado um produto defeituoso, ou as “teorias da culpa anônima” e “do risco integral”. Isto porque, em primeiro lugar, considerada a diversidade de fornecedores que podem ser responsabilizados solidariamente, não haveria uma única teoria que abarcasse ao mesmo tempo a posição jurídica do fabricante, do produto, do construtor, do importador, do comerciante, enfim; mormente se considerado que, no sistema do CDC, a culpa é considera em grande parte como resultado de um dever lateral e de garantia sobre a coisa, uma culpa que não se basta em um ato culposo subjetivo ou objeto personificado na pessoa de um único fornecedor, mas segue o produto ou serviço agregando-se a ele e se desvinculando de seu agente causador direto. A responsabilidade objetiva do CDC é espécie que veio ao direito pátrio como novidade, fruto da combinação de mais de uma teoria, como a do risco da atividade e a da culpa anônima, combinadas com a responsabilidade post pactum finitum71 70 JAMES MARINS assim justifica a adoção da responsabilidade objetiva na sociedade de consumo, demonstrando a adequação da culpa subjetiva a situações das quais se possa dizer de aplicabilidade típica do direito civil com exclusão da relação de consumo:“Com inúmeras dificuldades inerentes ao sistema de responsabilidade civil baseado na culpa, freqüentemente encontravam-se situações carecedoras de tutela jurídica que não logravam ultrapassar as barreiras do sistema, a exigir grande esforço probatório por parte do lesado, ou ainda situações comuns aonde o tênue laço de culpabilidade jamais poderia ser captado em condições normais. Em verdade, o sistema de responsabilidade extracontratual com base na culpa, não encontraria problemas para funcionar em uma sociedade fundada em atividades agrícolas e no comércio de menor complexidade, ao passo que nosso tempo se caracteriza pelo florescimento de atividades coletivas, em que muitas vezes não resulta possível individualizar o autor do dano; pelo permanente emprego de coisas que geram riscos, pela realização de atividades que guardam em si mesmas uma sensível potencialidade danosa para terceiros”.(MARINS, James. Responsabilidade da empresa pelo fato do produto. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993, p. 91). 71 Assim, a tradição do produto ou a prestação do serviço não bastaria para que as obrigações das partes se considerassem como cumpridas. Efeitos contratuais persistiriam mesmo depois, vinculando e obrigando as partes em razão da boa-fé contratual. Sobre a responsabilidade post pactum finitum como manifestação de deveres acessórios de lealdade, informação e proteção, vide CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Estudos de Direito Civil. Vol. 1. Coimbra: Almedina, 1991, pp. 143-197. 60 criando uma nova espécie. Segundo CLÁUDIA LIMA MARQUES72, a boa-fé inerente à obrigação de garantir a qualidade do que se vende aliada ao domínio da técnica por parte do consumidor e a correspectiva vulnerabilidade do consumidor, levaram à teoria adotada no CDC, que ela designa de “teoria da qualidade”: Da aceitação de uma teoria da qualidade nasceria, no sistema do CDC, um dever anexo para o fornecedor (uma verdadeira garantia implícita de segurança razoável, como no sistema anterior norte-americano). Este dever seria “anexo” ao produto, isto é, concentrado no bem e não só “anexo” ao contrato. Por conseguinte, seria um dever legal de todos os fornecedores que ajudam a introduzir (atividade de risco) o produto no mercado. Daí porque o CDC considera objetiva a responsabilidade (arts. 12 e 14) pela reparação dos prejuízos sofridos pelo consumidor e por terceiros, “vítimas do evento” (consumidores por extensão – art. 17) nas relações de consumo. Assim, salvo quando o fornecedor de serviços for profissional liberal (art. 14), a investigação acerca da culpa subjetiva torna-se desnecessária. O dever de indenizar surgirá pela constatação de que (i) houve um defeito; (ii) um dano; e (iii) um nexo de causa e efeito que indique uma relação entre o dano e o defeito73. Nos §§ dos arts. 12 e 14 encontram-se enumeradas algumas causas de exclusão de responsabilidade, bem como referência sobre a qualificação do que não se possa considerar defeito do produto ou serviço. Em que pese não esteja previsto no CDC, o caso fortuito ou de força maior eximem a responsabilidade objetiva do fornecedor, salvo quando ocorram em momento anterior à colação do produto ou serviço no mercado de consumo. Com efeito, enquanto o produto ou serviço não está posto no mercado de consumo o fornecedor responde por sua guarda e corre os riscos do caso fortuito e de força maior. Logo, é irrelevante que, antes desse momento, o produto ou serviço tenha sofrido alguma alteração porque até então não há nem que se falar em relação jurídica de consumo. Por outro lado, se o caso fortuito e de força maior não fossem admitidos como excludente quando o produto ou serviço já se encontram inserido no mercado de consumo, a teoria da responsabilidade objetiva adotada pelo 72 MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V; et MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 2ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 259, itálicos da autora. 73 Deve-se atentar para o fato de que a responsabilidade objetiva não transfere toda espécie de ônus probatório ao agente causador, no caso o fornecedor. Enquanto a este caberá a demonstrar a ocorrência de uma das excludentes de responsabilidade previstas no CDC e tantas outras que queira invocar em abono de sua defesa, ao consumidor ainda caberá a demonstração de ocorrência do dano, do defeito ou vício e do nexo de causalidade. 61 CDC seria a “do risco integral” 74 , o que parece não ser o caso já que o próprio Código prevê algumas causas excludentes75. Demais disso, o caso fortuito e de força maior quando presentes, na realidade, quebram a relação de causa e efeito necessária à configuração da responsabilidade objetiva de modo, a não ser que por ela o fornecedor tenha se responsabilizado expressamente, sua força liberatória encontra receptividade no CDC. Os vícios do produto ou serviço, por sua vez, são tratados pelo CDC nos arts. 18 e 20, aludindo àqueles relativos à qualidade ou quantidade que diminuam o uso a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como vícios que decorram de disparidade entre o bem de consumo adquirido e as qualidades e conteúdos anunciados. Nos §§ dos arts. 18, 19 e 20 e no caput dos arts. 21, 22, 23 e 24, encontram-se os direitos que o consumidor pode exercer quando constatado o vício, uma qualificação exemplificativa do que sejam produtos impróprios, qualidades mínimas dos serviços públicos e uma garantia legal de qualidade implícita. II.2.2 Solidariedade na Cadeia de Produção e de Prestação de Serviços De modo a afastar alegação infindável de culpa de terceiro na cadeia de produção do bem ou serviço (acionado, o fabricante alegaria culpa do montador, este do fornecedor da peça e assim sucessivamente), o CDC prevê a responsabilidade solidária de todos os fornecedores direitos e indiretos76 integrantes da cadeia de produção e de prestação de serviço, de modo a que o consumidor possa acionar um, alguns ou todos aqueles que dela tenham participado. Abrem-se, exceções, todavia, ao acidente de consumo que envolva o profissional liberal prestador de serviços ou o comerciante. No caso do profissional liberal, a responsabilidade é apurada de maneira subjetiva (art. 14, § 4º) e por isto 74 Cfr. VEDANA, Alexandre Torres. In EFING, Antônio Carlos (Coord.). Direito do consumo. V. 1, Curitiba: Juruá Editora, 2001, p. 147. 75 Cfr. ALMEIDA, João Batista. A proteção jurídica do consumidor. 3ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2002, pp. 8889. 76 Fornecedor indireto é aquele que participa de alguma forma da criação do produto, mas não faz sua venda final ao consumidor, transferindo essa função a um comerciante que então será o fornecedor direto. 62 mesmo afasta a solidariedade. A responsabilidade do comerciante, por sua vez, é do tipo subsidiária segundo as condições estabelecidas no art. 13 do CDC, vale dizer, apenas nas hipóteses ali previstas o comerciante pode ser responsabilizado. Segundo CLÁUDIA LIMA MARQUES77 “a técnica de imputação de deveres aos fornecedores no CDC” é realizada levando em consideração a referência que o Código faça à “fornecedor” como gênero ou a determinadas espécies de fornecedores: - quando utiliza a expressão “fornecedor”, é para a imputação de deveres solidariamente, ex vi art. 7º, parágrafo único, para toda a cadeia de fornecedores – ex.: arts. 8º, 10, 14, 18, 19, 20, 25, § 1º, 34, 35, 36, parágrafo único, 39, 40, 101; - quando utiliza outras expressões (como fabricante, produtor, construtor, importador, comerciante, representante autônomo, prepostos, órgãos públicos, concessionários e permissionários de serviços públicos, patrocinador da publicidade, profissionais liberais), trata-se de imputação de deveres especiais a estes fornecedores de serviços e produtos ou para imputação de solidariedade só entre fornecedores nominados – v. art. 8º, parágrafo único, 12, 13, 22, 25, § 2º, 32, 33, 34. Destarte, atentando-se para essa “técnica de imputação”, quando o CDC se refere a fornecedores de produtos, a solidariedade se faz presente em toda a cadeia de produção. Pelo contrário, quando, por exemplo, qualifica um fornecedor em razão de sua atividade (v. g., construtor ou fabricante), tal qual ocorre no art. 12, a solidariedade se restringe aos fornecedores que o dispositivo nominar. Assim, conclui-se que a discriminação dos fornecedores referidos no art. 12 é taxativa, indicando as espécies de fornecedores que respondem objetiva e solidariamente pelo acidente de consumo: (1) fornecedor real (aquele que fabrica, produz ou constrói); (2) fornecedor aparente (aquele que apenas apõe nome ou marca no produto); (3) fornecedor presumido (aquele que importa o produto). Em se tratando de vício de produto ou serviço a responsabilidade dos fornecedores é igualmente apurada de forma solidária e objetiva (arts. 7º, parágrafo único, 18, 20 e 25, § 2º) abrangendo até mesmo o profissional liberal. Não obstante, em se tratando de vícios verifica-se certa fraqueza nos elos que unem a cadeia por se tratar de “uma solidariedade imperfeita, porque tem como fundamento a atividade de produção típica de cada um deles. É como se a cada um deles a lei impusesse 77 MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V; et MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 2ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 275. 63 um dever específico [...] pois todos são responsáveis [...] ao ajudar na introdução do bem viciado no mercado”78. A solidariedade também pode ser decorrente de previsão em outros atos legislativos, que neste caso não têm sua aplicabilidade preterida em razão de norma menos benéfica prevista no CDC (art. 7º, caput). Ainda sobre a cadeia de solidariedade, têm-se o parágrafo único do art. 7º do CDC dispondo que, em havendo ofensa aos direitos previstos no Código, todos os ofensores “respondem solidariamente pela reparação dos danos previstos nas normas de consumo”. II.3 A INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA E O CDC II.3.1 A Relação de Consumo na Atividade de Incorporação Imobiliária Não há dúvidas de que o CDC se aplique à atividade de incorporação imobiliária. Com efeito, além da presença dos requisitos previstos nos arts. 2º e 3º, a referência contida79 no art. 53 do Código torna insustentável tese contrária. Com efeito, no contexto de uma incorporação pode haver a compra e venda de um imóvel (produto) como coisa futura, objeto da contratação de incorporação por preço fechado, representada pela soma da fração ideal de terreno e a construção a cargo do incorporador. Também pode haver uma conjugação de compra e venda de fração de ideal de terreno com concomitante contratação de uma 78 MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V; et MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 2ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 338. 79 “Art. 53. Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado. § 1º. (Vetado). § 2º. Nos contratos do sistema de consórcio de produtos duráveis, a compensação ou a restituição das parcelas quitadas, na forma deste artigo, terá descontada, além da vantagem econômica auferida com a fruição, os prejuízos que o desistente ou inadimplente causar ao grupo. § 3º. Os contratos de que trata o caput deste artigo serão expressos em moeda corrente nacional”. 64 prestação de serviços de construção, o que se dá nas incorporações com construção por empreitada e por administração. Conforme referido no capítulo anterior, é possível que o incorporador seja o próprio construtor da obra. Neste caso, responderá perante os adquirentes na condição de incorporador e construtor, abarcando assim qualquer fato ou vício do produto ou do serviço relacionados com a condição de incorporador (irregularidades documentais, v. g.) ou com a condição de construtor (má qualidade da fiação elétrica, v. g.). Todavia, conforme também referido no capítulo anterior, pode ocorrer que a construção não seja realizada pelo incorporador, mas sim por um construtor. Mesmo nas incorporações com construção por preço fechado (arts. 41 e 43 da LCI) o incorporador pode contratar um construtor para realizar a obra, com a nota de que os adquirentes, neste caso, não firmam contrato diretamente com o tal construtor, pelo qual o incorporador responde em nome próprio perante os adquirentes. Ainda, pode ocorrer de a construção ser contratada entre os adquirentes e um construtor diverso da pessoa do incorporador, como prestador de serviços, hipótese em que os adquirentes pagam o custo da construção diretamente ao construtor contratado. Tal fato se dá nas incorporações com construção sob regime de empreitada (arts. 55 a 57 da LCI) e nas incorporações com construção sob regime de administração ou preço de custo (arts. 58 a 62). Este tema, todavia, será abordado separadamente com consideração para cada uma das três espécies de incorporação (preço fechado, empreitada e preço de custo), quando então as responsabilidades do incorporador e do construtor serão delimitadas. O incorporador se configura como fornecedor em razão de organizar fatores de produção (terreno, construção, corretagem, anúncios, etc) de maneira profissional com propósito de pôr produto à venda no mercado de consumo. Seja um ou mais as incorporações lançadas, é fato que cada qual é composta por mais de uma unidade de modo a configurar habitualidade praticada por vendas sucessivas, ainda que em um mesmo empreendimento. O intento de lucro é evidente. Em que pese o incorporador não careça de ser um empresário, podendo sê-lo até mesmo uma pessoa física, tal fato não permite concluir que ele não seja um fornecedor. Isto porque fornecedor e empresário são conceitos que não se implicam reciprocamente, em que pese a proximidade entre ambos, ainda mais porque à condição de 65 empresário se impõe inscrição no registro de comércio. A propósito, quando ainda vigente o Código Comercial de 1850, para se caracterizar como incorporador era dispensável a condição de comerciante. Dificuldades haviam até mesmo para enquadrar os atos do incorporador como “atos de comércio” segundo o antigo Regulamento 737/1850. Sobre as condições pessoais do consumidor, a relação de consumo se estabelece mesmo que o imóvel seja adquirido por um empresário, pessoa física ou jurídica para utilizá-lo, por exemplo, como sede de empresa. Neste caso, o produto ou serviço, é de fato retirado do mercado de consumo por consumidor final, um destinatário fático e econômico do bem de vida. Como qualquer consumidor, o empresário está protegido contra sua “vulnerabilidade”, que é imanente ao conceito de consumidor80 e surge da mera presença de uma relação de consumo. Esse consumidor, empresário, poderá ou não ser um hipossuficiente para os fins do inciso VIII do art. 6º, mas para tanto há que se analisar sua condição técnica, jurídica, cultural e econômica, análise esta dispensável no que concerne à vulnerabilidade. Pelo contrário, não haverá que se falar em relação de consumo se a unidade for adquirida com fim de revenda ou locação porque, neste caso, o adquirente não será destinatário final do produto81, salvo exceções bem especiais, como o caso daquele que reside em imóvel locado e compra imóvel de maior valor agregado com o propósito de locá-lo e assim auferir alguma renda que lhe permita sobreviver. II.3.1.1 A responsabilidade do incorporador Como já enunciado, com o incorporador a relação de consumo sempre se estabelece. O fito de lucro na promoção da incorporação (art. 28, parágrafo único, da LCI), se traduz em desenvolvimento de atividade econômica em caráter profissional organizada para a produção de bens (imóveis) e prestação de serviços 80 Cfr. MARINS, James. Responsabilidade da empresa pelo fato do produto. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993, pp. 38 e 66. 81 De igual opinião, LEANDRO LEAL GHEZZI (GHEZZI, Leandro Leal. A incorporação imobiliária. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 139) e MELHIM NAMEM CHALHUB (CHALHUB, Melhim Namem. Da incorporação imobiliária. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar, 2003, p. 120). 66 (de construção). Assim, o incorporador sempre responde solidariamente pelo fato do produto ou do serviço, bem assim por qualquer vício de qualidade ou quantidade das unidades comercializadas que as tornem impróprias ou inadequadas ao uso a que se destinam ou que diminuam seu valor (arts. 12, 18 e 25 do CDC), porque dirigindo a incorporação o incorporador promove-a como um todo, atraindo público consumidor imbuído de confiança. O incorporador tem dever de proteção para com os adquirentes, do qual não se desvencilha se caso a construção for executada por um terceiro, seja qual for o regime de incorporação (preço fechado, empreitada ou administração). Considerada a realidade do mercado imobiliário nacional, em que os incorporadores em geral carecem de realizar vendas antecipadas das unidades antes que elas estejam concluídas, de modo a captar os recursos necessários para promover a incorporação e por vezes até mesmo pagar pelo terreno; a LCI ao incorporador que desista de concluir o empreendimento e, de consequência, desista também dos contratos de compra e venda de unidades que eventualmente tenha firmado com os consumidores. Não obstante o incorporador assuma riscos inerentes à sua atividade, a permissão é salutar e vai de encontro à função social da atividade na medida em que proporciona que a incorporação seja abortada caso o incorporador presuma que as vendas não serão suficientes para que fluam recursos em volume e frequência exigidos para o êxito do cronograma das obras. Não interessa aos consumidores firmar contrato sem o mínimo de segurança de que o incorporador terá os recursos necessários para concluir o empreendimento. Se o incorporador vem a saber que as vendas não são suficientes e que ele não dispõe de todos os recursos, parece insistência desproporcional exigir-lhe que tente concluir o empreendimento. Nesse ponto, a chegada do CDC pouco alterou considerado o caráter especial da LCI e a adequação que a desistência representa para a salvaguarda dos interesses dos consumidores e, de um modo geral, para todos que tenham direitos e obrigações vinculadas ao desenvolvimento da obra. Demais disso, está na gênese da LCI o reconhecimento de que o incorporador necessita vender para depois construir. Com efeito, a aplicação do CDC deve respeitar a lógica econômica do contrato de incorporação, sua função social e seu caráter coletivo, sob pena de causar a disfunção do contrato. No mesmo sentido vem a permissão legal para que o incorporador construa sobre terreno alheio com base apenas em uma procuração, por exemplo. Assim, se as vendas não ocorrem, é 67 sistematicamente coerente que o incorporador possa desistir do empreendimento. Sobre essa questão, EVERALDO AUGUSTO CAMBLER82, opina: Não nos parece que os incisos IX e XI, do art. 51, do CPCon tenham revogado o art. 34 da LCI. De acordo com o Código do Consumidor, são nulas as cláusulas contratuais que deixem ao fornecedor a opção de concluir ou não o contrato, embora obrigando o consumidor, bem como autorizem o fornecedor a cancelar o contrato unilateralmente, sem que igual direito seja conferido ao consumidor. Somos da opinião que os dispositivos do Código restringiram o alcance da norma contido no art. 34, que faculta o incorporador a possibilidade de fixar prazo de carência dentro do qual lhe é lícito desistir do empreendimento. Agora, somente na hipótese de ver frustrado o negócio, poderá o incorporador denunciar a incorporação [...]. Portanto, o art. 34 da LCI existe em benefício do consumidor, vinculando o incorporador ao negócio e obrigando-o a promovê-lo no prazo de 180 dias, prorrogável por igual período, mediante revalidação da certidão do registro. Neste prazo, o incorporador tem perfeitas condições de avaliar a reação do mercado e verificar se é viável ou não o negócio. Todavia, para que o direito do incorporador não passe à condição de potestatividade desproporcionada que sujeite o consumidor à desistência irrestrita, a LCI impõe limites que atendem os princípios da informação e da segurança jurídica. Nesse sentido, para que possa desistir, o incorporador deve levar a registro no cartório competente, antes de iniciar as vendas, declaração fixando as condições que ele se reserva para o exercício daquele direito. Seria o caso, por exemplo, de se fixar o direito de desistência caso as vendas não ultrapassem 15% do total das unidades do empreendimento. Igualmente atendendo o dever de informação, em tendo se reservado direito de desistência, o incorporador fica obrigado a informá-lo em todos os documentos e contratos de venda das unidades (art. 34, § 3º), permitindo assim que os consumidores tenham acesso a todas as condições da incorporação. Tomadas essas providências, os interesses do consumidor estarão preservados dentro da lógica da incorporação imobiliária. A desistência só será valida se denunciada ao registro de imóveis no prazo de 180 (cento e oitenta) dias contados da data de apresentação dos documentos referidos no art. 32, renováveis por mais 180 (cento e oitenta) dias se acaso ainda estiver concluído seu registro (arts. 33, § 2º do art. 34 da LCI; e art. 12 da Lei 82 CAMBLER, Everaldo Augusto. Incorporação imobiliária: ensaio de uma teoria geral. Editora Revista dos Tribunais, 1993, p. 29 68 4.864/65). Uma vez operada a desistência, o incorporador deve restituir a todos os adquirentes, no prazo de 30 (trinta) dias, com correção monetária, as importância que tenham pago. Não há responsabilidade civil para o incorporador ante a inexistência de ilícito, o que já não acontece se o incorporador não informar o consumidor acerca da possibilidade de desistência. Ultrapassados os 30 (trinta) dias, o incorporador incide em ilícito e, além de devolver os valores devidos com juros 6% ao ano, poderá responder civilmente se comprovado prejuízo ao consumidor83. II.3.1.2 A responsabilidade do proprietário do terreno Não há relação de consumo entre os adquirentes e o proprietário do terreno que tenha outorgado procuração ao incorporador autorizando-o a aliená-lo em frações ideais (art. 31, § 1º) ou aquele que tenha firmado promessa de compra e venda (art. 31, “a”) com base na qual o incorporador aliena ditas frações. Com efeito, o proprietário do terreno não pratica atos incorporativos, não oferece bem algum no mercado de consumo nem presta qualquer serviço aos adquirentes. Faltam-lhe a habitualidade e o profissionalismo de que tratam os arts. 2º e 3º do CDC. Em que pese de certa forma esteja envolvido na complexidade do contrato de incorporação, sua atuação é secundária e sem participação no lucro decorrente da atividade incorporativa ou de construção. Demais disso, a LCI, lex specialis em relação ao CDC84, ao regular a responsabilidade civil na incorporação imobiliária, enumera as hipóteses que podem ser exigidas do proprietário do terreno como sendo: (i) a devolução das quantias pagas em caso de denúncia da incorporação por ele praticada; (ii) o direito à adjudicação compulsória; (iii) e a devolução dos valores 83 Encontra-se superada a previsão de que os adquirentes poderiam cobrar tais valores “por via executiva” (art. 36), haja vista que tal previsão não satisfaz os requisitos legais de um título executivo, notadamente o prévio reconhecimento do dever de pagamento de quantia líquida e certa. Igualmente superada está a previsão contida no § 5º do art. 35, qual seja, a devolução em caso de resolução motivada do contrato preliminar de compra e venda por descumprimento de obrigações do incorporador previstas no art. 35. Se acaso o incorporador não cumprir o prazo, a via executiva não estará à disposição dos adquirentes. 84 Neste sentido o STJ quando do julgamento do REsp 80036/SP (Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, 4ª Turma, julgado em 12/02/1996, DJ 25/03/1996 p. 8586). 69 representativos das acessões acrescidas ao terreno em caso de rescisão do contrato por meio do qual se permitiu que o incorporador lançasse a incorporação (art. 35, §§ 3º e 4º; e art. 40 da LCI). Ainda sobre a possibilidade de desistência do empreendimento, quando a promoção da incorporação estiver se desenvolvendo com base em procuração outorgada ao incorporador pelo proprietário do terreno, por seu promitente comprador, cessionário deste ou por promitente cessionário (art. 31, § 1º), o respectivo outorgante (dentre eles o proprietário do terreno) também poderá denunciar a incorporação se acaso o incorporador, tendo se reservado direito de desistência, não exercê-la no prazo legal quando presentes as condições a tanto fixadas no ato de registro de que trata o art. 32. Assim, exercendo a denúncia da incorporação, o outorgante da procuração ficará responsável solidariamente com o incorporador pela restituição dos valores pagos pelos adquirentes. Não se trata, todavia, de conferir-lhe responsabilidades por outros atos tipicamente incorporativos. O outorgante não passa à condição de incorporador e por isto não se lhe aplica a solidariedade “entre incorporadores”, prevista no § 3º do art. 31. Com efeito, a solidariedade decorrente da denúncia da incorporação é limitada à devolução dos valores pagos pelos adquirentes. A justificativa para abrir exceção em favor da responsabilidade solidária do outorgante da procuração (proprietário do terreno), decorre de um poder de ingerência em ato tipicamente incorporativo que a lei lhe faculta exercer e que, uma vez exercido, traz consigo as mesmas consequências a que ficaria sujeito o incorporador caso denunciasse a incorporação. No ponto a lei andou bem. Reconhecendo haver interesse do proprietário do terreno no tocante ao êxito da incorporação que ele autorizou que se levasse a cabo sobre seu terreno, a lei reservou-lhe a faculdade de denunciar a incorporação mesmo que contrariamente à vontade do incorporador desde que, fazendo-lhe as vezes, responda perante os adquirentes pela devolução dos valores que já tenham pago. Assim prevendo, a lei nada mais prescreveu do que obrigar o proprietário do terreno a indenizar os adquirentes pelas acessões acrescidas sobre seu terreno na linha do que já dispõe o art. 40 da LCI. Outra falsa impressão acerca das responsabilidades do proprietário do terreno para com a incorporação decorre de má interpretação do art. 30 da LCI. Prevê este dispositivo a solidariedade e a extensão da condição de incorporador aos proprietários e titulares de direitos aquisitivos sobre o terreno que contratem a 70 construção sempre que as alienações das unidades se iniciarem antes da conclusão das obras. No entanto, este dispositivo refere-se, na realidade, aqueles que, mesmo sem o propósito consciente de realizar uma incorporação, acabam por praticar atos tipicamente incorporativos previstos nos arts. 28 e 29 da LCI. Ou seja, esse dispositivo não torna os proprietários do terreno solidários com o incorporador pelo simples fatos de as vendas se iniciarem antes da conclusão da construção, inclusive porque é da natureza e do conceito de incorporador que as vendas ocorram antes do término da obra; do contrário não se cogita sequer da existência de incorporação imobiliária conforme referido no capítulo anterior. O art. 30, aliás, é de todo desnecessário na medida em que, se os proprietários e titulares de direitos aquisitivos sobre o terreno contratarem a construção e iniciarem suas vendas antes do término da obra, sua condição de incorporador será mera decorrência dos art. 29 da LCI. Não careceria de um novo dispositivo para tratar do assunto. O proprietário do terreno, quando ele não seja o próprio incorporador, também tem responsabilidades para com a incorporação pela transferência formal da propriedade criada pelas frações ideais de terreno. Mas a relação que há é de direito civil. A promoção da incorporação entendida como prática de atos tendentes a negociar as frações ideais para venda e contratar a construção, não desobriga o proprietário do terreno perante os consumidores, adquirentes, no tocante ao direito de outorga da propriedade, de modo que, neste caso, o proprietário do terreno responde solidariamente com o incorporador. Nesse sentido, o parágrafo único do art. 39 exige que todos os adquirentes sejam informados se o alienante do terreno ficou ou não sujeito a qualquer “prestação” ou “encargo”, vale dizer, se ele ainda tem alguma responsabilidade contratual no sentido de garantir a efetiva transferência da propriedade. “Prestação” ou “encargo”, aqui, têm conotação mais ampla do que o termo técnico que representam (arts. 121 1 137 do CC/02), querendo se referir a garantias de transmissão hígida da propriedade das frações ideais. Aquele que outorga procuração autorizando a realização de incorporação sobre terreno seu, não pode se retratar nem revogar os poderes para tais fins concedidos como, aliás, prevê a LCI, nem manter comportamento que possa prejudicar o desenvolvimento da incorporação, frustrando vendas, afastando pretendentes, trazendo insegurança ao cumprimento da função social da atividade. Trata-se de comportamento que se exige em cumprimento de dever acessório de proteção à relação jurídica para cuja criação o proprietário contribuiu 71 conscientemente outorgando poderes que de antemão sabia ou deveria saber serem suficientes à criação de direitos reais ou com eficácia real em favor de terceiros. Em redação um tanto confusa, o art. 40 dispõe uma última responsabilidade para o proprietário do terreno, em caso de rescisão do contrato firmado para venda do terreno, contrato esse com base no qual o incorporador lançou a incorporação. A hipótese tratada só pode dizer respeito às incorporações cujas frações ideais estejam sendo negociadas pelo incorporador com base na alínea “a” do art. 31, ou seja, que a disponibilidade sobre elas tenha chegado ao incorporador por via de uma promessa ou cessão de compra e venda. Não se aplica, portanto, às incorporações em que o incorporador esteja atuando com base em uma procuração outorgada pelo proprietário do terreno (art. 31, § 1º, da LCI), já que, neste caso, pelo compromisso de outorgar a propriedade sobre as frações ideais de terreno o incorporador que se compromete em nome próprio ao outorgar poderes por via de procuração pública irrevogável e irretratável. Pelo disposto no art. 40, uma vez rescindido o contrato, o terreno retorna ao domínio pleno do proprietário anterior, restando rescindidas, ope legis, as cessões ou promessas de cessão de direitos correspondentes às frações ideais de terreno que tenham sido comercializadas pelo incorporador. Vale dizer, se o contrato com o proprietário do terreno não for cumprido, sua rescisão extingue a incorporação em prejuízos dos adquirentes. A estes restará o direito de serem indenizados por perdas e danos pelo incorporador e também o direito à devolução dos valores representativos das acessões que sobre o terreno tenham sido acrescidas pelos atos de promoção da incorporação praticados pelo incorporador. Por essa devolução, fica obrigado o proprietário do terreno, que é a pessoa em favor de quem se opera a rescisão (art. 40, §§ 1º, 2º e 3º), e solidariamente com ele o incorporador. Enquanto os adquirentes não forma ressarcidos pelas acessões de fato acrescidas ao terreno, o proprietário do terreno não poderá negociá-lo sob pena de nulidade. No entanto, se a rescisão, de forma incomum, for decorrência de culpa dos adquirentes, o proprietário do terreno fica desobrigado de indenizá-los pelas referidas acessões, cabendo o exercício do direito apenas contra o incorporador. Tirante essas hipóteses, o dono do terreno não responde civilmente pela promoção da incorporação, ou seja, não responde por vícios de construção, atraso na conclusão das obras, autorizações e alvarás concedidos ou que devessem ser 72 obtidos junto às autoridades administrativas. Possibilitada a transferência da fração ideal de terreno, qualquer divergência que haja em razão da construção ou de irregularidade formal na documentação do empreendimento, deve ser questionada junto ao incorporador e, conforme o caso, junto também ao construtor. Não se deve estender responsabilidade ao proprietário do terreno fora das hipóteses expressamente previstas, seja aquele que o tenha alienado diretamente ao incorporador, seja aquele lhe tenha outorgado procuração para vendê-lo em frações ideais. Ele não está integrado na cadeia de produção do empreendimento e nem presta contribuição para a prática de ilícitos pelo incorporador ou pelo construtor. A promoção da incorporação é feita pelo incorporador em nome próprio, no exercício de uma atividade lucrativa e empresarial. O proprietário do terreno não participa dessa atividade, não a exerce profissionalmente, nem lucra com ela. Lucra, aí sim, com a alienação de sua propriedade, mas isto por si só não permite concluir que tenha responsabilidades pelos atos do incorporador porque a venda de uma propriedade que é sua é ato sujeito às regras gerais de direito civil. Assim, por exemplo, se o terreno não comporta a construção na totalidade de sua área em razão da existência de uma nascente de água, mas ainda assim o incorporador infringe a norma ambiental, a responsabilidade é dele, como promotor da incorporação, não do proprietário do terreno. É da sistemática da LCI a possibilidade de incorporação com base em procuração outorgada sobre terreno, criada para incentivar o desenvolvimento da atividade de modo a que não se careça de mobilizar tantos recursos financeiros ainda no início do empreendimento. Não se deve compreender o que é um estímulo à atividade, como argumento para imputar ao proprietário do terreno responsabilidade por atos inerentes a uma atividade econômica de cuja cadeia produtiva ele não participa sob pena de se desconsiderar a lógica econômica e jurídica da incorporação. Relativamente ao CDC a LCI deve ser entendida como lex specialis conforme opinião de HUMBERTO THEODORO JÚNIOR85: A esse negócio jurídico, portanto, sobre bens futuros, é de aplicar-se, em primeiro lugar, a Lei n. 4.591/64 e, complementarmente, as regras gerais do direito das obrigações pelo Código civil, assim como o Código de Defesa Consumidor. Tudo, porém, em caráter subsidiário, visto que se trata de 85 THEODORO JÚNIOR, Humberto Incorporação imobiliária: atualidade do regime jurídico instituído pela Lei n° 4.591/1964. Revista Forense, n° 100, v. 376. Rio de Janeiro: Editora Forense, nov-dez de 2004. 73 negócio jurídico sujeito a regime legal específico que não, em essência, alterado pelas normas gerais do Código Civil e do CDC. [...] Sem dúvida, o contrato de incorporação é um contrato de consumo, dentro da perspectiva traçada pelo Código de Defesa do Consumidor, e segundo os conceitos de fornecedor e consumidor, assim como de produto, elaborados pelo art. 3º, §§ 1º e 2º, da Lei 8.078, de 1990. O CDC, todavia, não conceitua, nem disciplina os elementos e a estrutura jurídica dos diversos contratos empregados para realizar as operações do mercado de consumo. Cada contrato, é óbvio, tem, histórica e culturalmente, o regime específico de cada contrato típico é que revelam o papel (ou função) atribuída a cada um dos negócios jurídicos nominados ou típicos. [...] A aplicação da lei consumerista sem outro propósito que não seja o de proteger o consumidor, a qualquer custo, além de descumprir os próprios fundamentos e objetivos do CDC, pode, ao desprezar a estrutura econômica do negócio, provocar a disfunção do contrato, e não é esse o desiderato perseguido pela Lei n. 8.078. As crises e violações ao contrato de incorporação estão expressa e exaustivamente previstas e disciplinadas pela Lei n. 4.591. A inovação do CDC, portanto, somente é de admitir-se para complementar a técnica específica de disciplina de formação e execução do contrato incorporativo. Nunca para revogar ou impedir sua atuação. Só se pode pensar em aprimorar a tutela específica com o reforço de medidas e procedimentos inspirados no CDC. Este, como é óbvio, não revogou as normas especiais disciplinadoras dos contratos e se destinou apenas a enriquecê-las, quando necessário, com medidas repressivas à má-fé e ao desequilíbrio, intencional ou não, na comutatividade das prestações e obrigações. Daí porque, na medida em que a LCI limita as responsabilidades do proprietário do terreno, resta afastada sua responsabilização fora destas hipóteses que ela prevê, limitação essa que, a rigor, nem mesmo o CDC permite que seja ultrapassada. Com efeito, o proprietário do terreno não fabrica, nem produz, constrói, importa ou comercializa produto (arts. 12, 13, 18 e 19 do CDC). Também não presta serviço aos adquirentes (art. 14 e 20 do CDC), a exemplo do construtor. II.3.1.3 A responsabilidade do construtor Questão interessante se coloca nas situações em que o construtor não é o próprio incorporador. O art. 29 da LCI indica restrição à responsabilidade do incorporador “conforme o caso” pela entrega das obras concluídas. 74 Os contratos que se firmam, no contexto da atividade de incorporação imobiliária, para aquisição de uma unidade, podem envolver: (i) aquisição de um produto futuro assim considerado a fração ideal de terreno em conjunto com a construção a ser realizada, que se opera por via das incorporações sob regime de preço fechado; ou (ii) a aquisição de um produto considerada a fração ideal de terreno agregada à concomitante contratação de uma prestação de serviço de construção, que se operam por via das incorporações com construção sob regime de empreitada e de administração. Consoante referido no capítulo anterior, três são os regimes de incorporação (de preço fechado, de empreitada ou de administração) que podem levar à produção de uma unidade imobiliária por meio da incorporação, resultados da conjugação: (i) do contrato de compra e venda de fração ideal de terreno; (ii) do contrato de prestação de serviços de construção; e (iii) do contrato firmado com o incorporador. Considerada essa diversidade contratual, a aplicação do CDC não pode se dar por aplicação imediatista do art. 12 (“... o fabricante, o produtor, o construtor [..]. respondem [...] por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem [...]”), sob pena de confundir as posições jurídicas do construtor, do incorporador e do proprietário do terreno, posições essas previstas em lei especial (LCI) que a elas reserva tratamento diferenciado. É fato, aliás, que a doutrina, em especial quando se debruça sobre o CDC encarando-o como lei genérica, muito raramente aborda a incorporação imobiliária com consideração das diferentes posições jurídicas que nela há, incidindo por isto em equívoco que imiscui direitos e obrigações decorrentes de relações contratuais que em certos aspectos devem permanecer separadas. O CDC só encontra análise mais adequada ao contexto da incorporação imobiliária quando a abordagem parte da especialidade da LCI para chegar à generalidade do CDC, conforme demonstram algumas das mais recentes obras sobre o assunto86. 86 São caso, por exemplo, das obras de MELHIM NAMEM CHALHUB (Da incorporação...), HUMBERTO THEODORO JÚNIOR como coordenador (O contrato imobiliária e a legislação tutelar do consumo...), EVERALDO AUGUSTO CAMBLER (A responsabilidade civil na incorporação imobiliária...), LEANDRO LEAL GHEZZI (A incorporação imobiliária...), FRANCISCO ARNALDO SCHIMDT (Incorporação imobiliária...) e JÉVERSON LUÍS BOTTEGA (Incorporação imobiliária e a responsabilidade civil do incorporador...). 75 II.3.1.3.1 Nas incorporações por preço fechado Nas incorporações por preço fechado (arts. 41 e 43 da LCI), a atividade de incorporação envolve a venda de coisa futura representada por fração ideal de terreno acrescida de construção, ambas a cargo do incorporador com quem os consumidores contratam diretamente. Neste regime, o incorporador é fornecedor imediato de produto porque se compromete em nome próprio a produzir coisa futura representada pela soma de uma fração ideal com uma construção. O verbo produzir, contido no art. 12 do CDC, deve ser lido como o ato de promoção da incorporação (art. 28, parágrafo único da LCI). Enquadrar o incorporador no art. 12 do CDC pela realização de produção é mais adequado porque a atividade de incorporação envolve algo mais do que a mera construção, mormente se considerada a possibilidade de o incorporador sequer atuar como construtor da obra, mas ainda assim por ela ser responsável (art. 28, parágrafo único, e art. 31 da LCI). Daí então porque se possa afirmar que o incorporador, promovendo (LCI), acaba por produzir (CDC) as unidades imobiliárias. Ainda sobre o regime de preço fechado, o responsável primeiro frente aos consumidores adquirentes, pela construção a ser realizada, na condição de promotor-produtor da incorporação, é o próprio incorporador. O incorporador pode ele próprio construir a obra ou então contratar um terceiro (um construtor) para que o faça em seu nome, sem que os adquirentes firmem contrato com este construtor. Quando o próprio incorporador constrói a obra, em que pese sua condição de promotor-produtor da incorporação já absorver a responsabilidade que sobressai pela construção em si, ele obviamente também será responsável na condição de construtor, conforme refere o art. 12 do CDC, podendo então cogitar-se, no caso, de um incorporador promotor-produtor-construtor porque produz o empreendimento promove-o e construindo-o pessoalmente. Quando assim esteja atuando, o incorporador será fornecedor imediato e real da unidade (produto). Por outro lado, contratando um empreiteiro para concluir a obra para si, obra essa que ele incorporador havia se comprometido frente aos consumidores a entregar concluída, o incorporador, agora apenas como promotor-produtor, será responsável frente aos adquirentes na condição de fornecedor imediato (porque 76 contrata a promoção da incorporação diretamente com os adquirentes) e aparente (porque a construção é realizada por um terceiro, um empreiteiro, por ele contratado). No tocante ao construtor contratado pelo incorporador no regime de preço fechado, deve-se considerar a natureza jurídica do contrato que o liga ao produto que é promovido e produzido pelo incorporador. Juridicamente sua participação se dá na condição de fornecedor de serviços frente ao incorporador. Não obstante, considerada a solidariedade e a responsabilidade objetiva da cadeia de produção, mesmo sem ter relação jurídica imediata com os adquirentes, o construtor também responde perante eles como fornecedor mediato e real. Assim, construtor e incorporador são solidária e objetivamente responsáveis pela construção no regime de preço fechado. Conforme EVERALDO AUGUSTO CAMBLER87, “ao celebrar o contrato de construção, o incorporador estende a obrigação assumida junto aos adquirentes ao construtor, fazendo-se substituir por este, passando ambos a responder pela obrigação de resultando perante o contratante”. Contudo, deve-se observar que a responsabilidade solidária e objetiva do construtor para com o incorporador se adstringe aos limites de sua participação no empreendimento. Por isto a LCI prevê responsabilidades para o construtor. Dentre elas está o dever de recolhimento da contribuição social devida ao Instituto Nacional de Seguridade Social-INSS incidente na execução de obra civil. A LCI também responsabiliza o construtor pela averbação da conclusão da construção na matrícula do terreno. Com efeito, em consideração de que a construção, quando concluída, para ser averbada depende de atos inerentes ao contrato de construção (recolher a contribuição, por exemplo), ambas as obrigações se justificam contra o construtor. Ainda, o construtor não poderá ser responsabilizado, por exemplo, por falhas no projeto do empreendimento (que é de responsabilidade do incorporador), por irregularidade na concessão de alvarás pela autoridade pública autorizando a incorporação ou por irregularidade na propriedade do terreno que impeça a transferência definitiva de propriedade aos consumidores. O construtor é prestador de serviços. Esta conclusão ressoa do próprio CDC, notadamente de seu art. 14, que, ao ter disposto que o fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados por defeitos relativas “à 87 CAMBLER, Everaldo Augusto. Responsabilidade civil na incorporação imobiliária. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, p. 220, itálico do autor. 77 prestação dos serviços”. Assim, como o construtor, no regime de preço fechado, não é fornecedor de produto, mas sim de serviços, sua responsabilidade fica circundada aos limites do contrato de empreitada. Tanto assim o é que o art. 25, § 1º, fala em solidariedade do fornecedor quando houver “mais de um responsável pela causação do dano”. Esta conclusão se mostra coerente com o CC/2002, que só cogita de solidariedade na responsabilidade por ato ilícito se a ofensa contar com mais de um autor (arts. 927 e 942). Demais disso, os arts. 28, parágrafo único, e 31, § 3º, da LCI, que é lei especial, prevê que a responsabilidade pela incorporação como um todo, vale dizer, por qualquer aspecto nela envolvido, é do incorporador de modo que, neste particular o CDC sequer poderia estabelecer solidariedade em tema que a LCI limita. Evidentemente que se o caso concreto indicar que o construtor teve participação no empreendimento maior do que a mera prestação de serviço de construção, sua responsabilidade poderá ser alargada. Isto, todavia, deve ser analisado caso a caso. II.3.1.3.2 No regime de empreitada No regime de empreitada (arts. 55 a 57 da LCI) os consumidores firmam dois contratos distintos: um para aquisição da fração ideal de terreno junto ao incorporador e outro para execução da obra, que pode ser firmado com um construtor ou com o próprio incorporador quando este também fizer o papel de construtor (art. 48 da LCI). Ao contrário do que se dá no regime de preço fechado, os consumidores firmam contrato com o construtor pagando diretamente a ele o custo da construção. O incorporador, assim, não recebe os valores pagos pela construção, que pertencem ao construtor em decorrência de relação contratual com os consumidores. Assim, neste regime o construtor é fornecedor direto e real dos serviços. Aqui, assim como em todos os regimes, o incorporador é promotor-produtor do empreendimento (art. 12 do CDC), respondendo solidária e objetivamente pelos acidentes de consumo e vícios do produto ou serviços prestados na construção do 78 empreendimento, tal qual se dá no regime de preço fechado. Para fins de responsabilização do incorporador, tanto em relação aos atos tipicamente incorporativos quanto à execução da obra, é irrelevante a distinção entre o contrato de venda de fração ideal de terreno e o contrato de construção88. Parcela da doutrina equivocadamente entende a empreitada global (mão de obra e materiais, como é o caso da empreitada prevista na LCI) como contrato de compra e venda de coisa certa e futura. Tal entendimento poderia levar a que o construtor, no regime de empreitada, fosse responsável por atos tipicamente incorporativos praticados pelo incorporador. No entanto, o construtor, no regime de empreitada, é mero prestador de serviços. A alusão ao “construtor”, contida no art. 12 do CDC, não faz do empreiteiro, contratado pelos consumidores, um fornecedor de produto89. Só pode ser considerado construtor para fins do art. 12 o incorporador que realize ele próprio a construção ou que assuma a obrigação de fazê-lo junto aos adquirentes mas depois se faça substituir nessa tarefa. Compartilhando dessa distinção e também de seus efeitos, segundo as normas do CDC, LEANDRO LEAL GHEZZI90 conclui: Feitas estas observações, deve ser ainda diferenciado o caso em que o incorporador é também o construtor, do caso em que os adquirentes contratam a construção diretamente com outra empresa. Isto porque, nesta segunda hipótese, entendemos que o incorporador é diretamente responsável pelo produto e o construtor diretamente responsável pelo serviço. No caso em que os adquirentes contratam a realização da obra diretamente com um construtor, entendemos que o incorporador se enquadraria no conceito de comerciante, estabelecido no art. 13, I, do CDC. Assim, de acordo com este dispositivo, o incorporador seria solidariamente 88 Cfr. CAMBLER, Everaldo Augusto. Responsabilidade civil na incorporação imobiliária. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, pp. 260-261. 89 Em geral, a doutrina conceitua o construtor do ponto de vista de suas realizações materiais, como alguém que faz algo novo surgir. É o que faz, v. g., ZELMO DENARI: “O construtor é aquele que introduz produtos imobiliários no mercado de consumo, através do fornecimento de bens ou serviços. Sua responsabilidade por danos causados ao consumidor pode decorrer dos serviços técnicos de construção, bem como dos defeitos relativos ao material empregado na obra. Nesta última hipótese, responde solidariamente com o fabricante do produto defeituoso, nos termos do § 1º do art. 25 do CDC” (ZELMO DENARI. In GRINOVER, Ada Pellegrini (et al.). Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998. p. 145). No entanto, para fins do art. 12 esse conceito deve ser encarado do ponto de vista jurídico, sob pena de confundir construtor com montador, com fabricante ou com produtor. Com efeito, do ponto vista fático, um construtor de obra não deixa de ser um montador na medida em que, empregando sua mão-de-obra e sua técnica, une materiais (tijolos, ferro, vidro, etc) para produzir algo novo. Juridicamente, no entanto, trata-se de um fornecedor de serviços sujeito ao art. 14 do CDC mas não ao art. 12. 90 GHEZZI, Leandro Leal. A incorporação imobiliária. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 193. 79 responsabilizado pelo defeito do produto apenas quando não pudesse ser identificado o seu fabricante, o construtor, produtor ou importador. Discussão semelhante já se travou no âmbito do Direito Tributário, indagandose se o contrato de construção estaria sujeito ao Imposto sobre Prestação de Serviços de Qualquer Natureza-ISSQN ou se ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias-ICMS. Ocorre, todavia, que o “fazer” (a construção) prepondera sobre o “dar” (o insumo). Na incorporação sob regime de empreitada (assim como no regime de preço de custo referido no capítulo seguinte), a aquisição de coisa certa que de fato há, diz respeito apenas à fração ideal de terreno, à qual se soma um segundo contrato para que um construtor erija sobre ela uma construção. FRANCISCO ARNALDO SCHMIDT91 segue esta linha ao observar: Há quem veja na empreitada global, compreendendo mão-de-obra e materiais, simples promessa de venda, equiparando a empreitada à venda de coisa futura a prazo e preço certos, com construção por conta e risco do incorporador. Essa distinção é particularmente importante para o memorial da incorporação, quando o incorporado deve informar a natureza jurídica da construção que está lançando. As duas modalidades, entretanto, além de não se confundirem, receberam tratamento doutrinário e legal bem diferenciados. Além da clássica distinção de Clóvis Beviláquia, segundo a qual na empreitada de material o objeto é a criação de uma coisa pelo trabalho do próprio empreiteiro, ou de seus operários, enquanto que na alienação o objeto é a venda de uma coisa existente ou a ser produzida (Código Civil, 7ª ed., vol. IV, p. 424). J. Nascimento Franco e Nisske Gondo trazem o magistério de Alfredo de Almeida Paiva (Aspectos do Contrato de Empreitada, Forense, 1.955, p.28), para quem na compra e venda de coisa futura aliena-se coisa “que venha a existir de futuro mas que seja de propriedade do vendedor”, enquanto que o objeto da empreitada é “a execução de uma obra determinada para cuja confecção os materiais fornecidos não concorram com o espírito de venda, mas apenas contribuem na mesma importância e com idêntica finalidade da mão-de-obra empregada para levá-la a bom termo. O construtor, portanto, porque contratado diretamente pelos adquirentes, só responde por acidentes de consumo e vícios que digam respeito ao contrato de prestação de serviços de construção, salvo se demonstrada sua participação direta em atos típicos do incorporador. 91 SCHMIDT, Francisco Arnaldo. Incorporação imobiliária. 2ª Ed. Porto Alegre: Norton Editor, 2006, p.106. 80 II.3.1.3.3 No regime de administração Por último têm-se o regime de administração (arts. 58 a 62), também designado pela LCI como “preço de custo”, em que o incorporador oferta a unidade e estima o custo de sua construção, que pode variar segundo oscilações do mercado, obrigando-se os adquirentes a cobrir a variação do preço dos insumos. Assim como no regime de empreitada, os consumidores adquirem a fração ideal de terreno junto ao incorporador e contratam a construção da obra em separado. Ao contrário da empreitada, o custo da obra não é estabelecido, recebendo apenas uma estimativa (art. 59, §§ 1º a 3º; art. 54, § 3º) que deve ser revista semestralmente (art. 59) de comum acordo entre a Comissão de Representantes e o construtor, podendo implicar maior ou menor custo da obra a depender do efetivo custo dos materiais. A cada nova alteração do custo alteram-se e os valores que cada adquirente deve pagar de modo a que a obra seja concluída no tempo esperado (art. 60) por decisão entre a Comissão e o construtor. Neste regime, assim como em todos os regimes, o incorporador é promotorprodutor do empreendimento (art. 12 do CDC), respondendo solidária e objetivamente pelos acidentes de consumo e vícios do produto ou serviços prestados na construção do empreendimento. Já o construtor, quando não seja ele o próprio incorporador, só responderá pelo fato e pelo vício do serviço de construção. Conforme EVERALDO AUGUSTO CAMBLER92, no regime de administração os adquirentes assumem a administração da incorporação de modo a que a responsabilidade do construtor e do incorporador podem resultar mitigadas em pontos que, se no regime de empreitada, sua responsabilidade seria inquestionável. A questão, todavia, só se consegue resolver diante de análise do caso concreto93. 92 CAMBLER, Everaldo Augusto. Responsabilidade civil na incorporação imobiliária. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, pp. 263-265. 93 Sobre esta questão têm-se a seguinte decisão: “INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA. CONSTRUÇÃO SOB O REGIME DE ADMINISTRAÇÃO (PREÇO DE CUSTO). DEVOLUÇÃO DOS VALORES PAGOS POR ADQUIRENTE INADIMPLENTE. ILEGITIMIDADE PASSIVA DA INCORPORADORA. INCIDÊNCIA DO ART. 58 DA LEI Nº 4.591/64. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. AUSÊNCIA DE OMISSÃO. MULTA CARÁTER PROTELATÓRIO NÃO CARACTERIZADO. PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA 98/STJ. 81 II.3.1.4 A responsabilidade do agente financiador É comum a participação de instituição financeira na rede contratual da incorporação imobiliária, concedendo crédito para financiamento da construção, comum em casos em que o incorporador por esta via obtém os recursos necessários para concluir o empreendimento. Também a instituição financeira não responde por atos inerentes à atividade do incorporador e, de igual modo, não responde pela obrigação de outorga da propriedade sobre as frações ideais do terreno e nem por vícios ou acidentes de consumo resultantes da construção propriamente dita94. Sobre o assunto, aliás, “revogando” considerável jurisprudência que vinha se formando em sentido contrário95, o § 1º do art. 31-C, introduzido pela Lei 10.931/2004, dispõe expressamente em relação às incorporações sob regime de afetação patrimonial, o que também se deve aplicar àquelas não afetadas, que a fiscalização da obra e do andamento da incorporação pelo agente financeiro ou pelos adquirentes, não lhes transfere “qualquer responsabilidade pela qualidade da - No regime de construção por administração, a responsabilidade pelo andamento, recebimento das prestações e administração da obra é dos adquirentes, condôminos, por intermédio da comissão de representantes, e não da incorporadora, parte ilegítima para figurar no pólo passivo de ação que visa à devolução de valores pagos por adquirente inadimplente. - O manejo de embargos de declaração com fim de prequestionamento não tem caráter protelatório. Recurso especial parcialmente conhecido e provido. (REsp 679.627/ES, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 26/10/2006, DJ 20/11/2006 p. 301)”. 94 A propósito, vejam-se as indagações feitas por EVERALDO AUGUSTO CAMBLER em palestra proferida em seminário realizado em 2003, organizado pelo Instituto de Registro Imobiliário do Brasil e pela Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário do Brasil. (CAMBLER, Everaldo Augusto. Et alli. Responsabilidade civil do incorporador. ln: SEMINÁRIO O CREDITO IMOBILIÁRIO EM FACE DO NOVO CÓDIGIO CIVIL, 2003, São Paulo, debates do seminário. São Paulo: IRIB;ABECIP, 2005, pp. 127-156). 95 A título de exemplo, cita-se: “SFH. AQUISIÇÃO DE UNIDADE HABITACIONAL. VÍCIOS DA CONSTRUÇÃO. LEGITIMIDADE DO AGENTE FINANCEIRO. A Caixa Econômica Federal detém legitimidade para responder por ação de indenização em virtude de vícios constatados em imóveis financiados pela empresa pública, dada a inequívoca interdependência entre os contratos de construção e de financiamento. A obra efetuado com recursos do Sistema Financeiro da Habitação acarreta a solidariedade do agente financeiro pela respectiva solidez e segurança. Precedentes. (TRF4, AC 2002.70.07.000027-9, Quarta Turma, Relator Sérgio Renato Tejada Garcia, D.E. 31/08/2009)”. 82 obra, pelo prazo de entrega do imóvel ou por qualquer outra obrigação decorrente da responsabilidade do incorporador ou do construtor”. O § 12 do art. 31-A também cuida de afastar a responsabilidade do agente financeiro por atos inerentes à atividade de incorporação e construção, seja sua participação decorrente de contratação de mútuo para construção ou de garantias recebidas em razão de quaisquer mútuos concedidos ao incorporador ou aos adquirentes finais consumidores. Em que pese tratar-se de mera garantia creditícia, quiçá por “excesso de clareza” o § 12 cuidou de destacar que a responsabilidade do agente financeira também fica afastada em razão de constituição de propriedade fiduciária sobre as unidades imobiliárias ou cessão de direitos creditórios sobre elas constituídos. Diferentemente se dá com a responsabilidade da instituição financeira em torno da validade ou não da constituição, eficácia e execução de garantia hipotecária constituída sobre o empreendimento. Antes das alterações introduzidas pela Lei 10.931/2004, consolidou-se entendimento jurisprudencial96, até surpreendente para parcela da comunidade jurídica, no sentido de que tais hipotecas não têm eficácia perante os adquirentes, já que é de conhecimento prévio da instituição financeira que sobre o terreno se levanta uma construção sob a forma de incorporação em que todas suas unidades estão destinadas ao mercado de consumo, não sendo lícito que o direito de hipoteca do agente financeiro possa prevalecer sobre o direito pessoal com efeitos reais nascido para os adquirentes quando da entrega de recursos ao incorporador em pagamento de coisa futura a ser erguida justamente com a entrega destes recursos. Atualmente, por força daquelas alterações, a LCI conta com previsão de validade dessas hipotecas quando constituídas em incorporações sob regime de afetação. Isto, todavia, não pode ser entendido como se a Súmula 308 estivesse superada. A alteração legal veio, na verdade, a corroborar a orientação jurisprudencial porque a hipoteca permanece hígida se inserida no bojo de incorporação com regime de afetação em decorrência de um rearranjo de direitos reais e obrigacionais vinculados à incorporação, na medida em que o crédito concedido, segundo a lógica da afetação, pertence aos próprios adquirentes por via 96 Trata-se da Súmula 308 do Superior Tribunal de Justiça: “A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel”. 83 de sua integração à patrimônio da incorporação afetada, conforme adiante ainda será tratado. De todo modo, mesmo nas incorporações sob regime de afetação patrimonial, para a higidez da garantia hipotecária é imprescindível que os recursos mutuados pelo agente financeiro sejam de direito e de fato direcionados à aplicação na construção, vale dizer, não basta alegar ou fazer previsão contratual no sentido de que o empréstimo tenha sido aplicado na conclusão da incorporação. O agente financeiro deve fiscalizar a evolução da obra de modo a garantir a aplicação dos recursos que justificam a hipoteca. O art. 31-C prevê que a instituição financeira poderá nomear alguém para fiscalizar e acompanhar a evolução do patrimônio de afetação. A permissão para fiscalizar e acompanhar, no entanto, não é suficiente para que a hipoteca seja eficaz em caso de os recursos mutuados não serem aplicados na incorporação. Trata-se, isto sim, de um meio concedido ao agente financeiro para preservar sua garantia, sob pena de se desnaturar o sistema da afetação patrimonial e retornar-se sistema tradicional de incorporação não afetada. Com efeito, se os recursos mutuados não forem direcionados à capitalização do patrimônio afetado, não se justifica que o pagamento do agente financeiro se faça com suas forças: desvirtuada a entrada de recursos no patrimônio afetado, o pagamento por via do patrimônio de afetação fica prejudicado. 84 III PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO E INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA III.1 A AUTONOMIA PATRIMONIAL E FUNCIONAL DA INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA Antes mesmo que a Lei 10.931/2004 alterasse a LCI mediante inclusão do patrimônio de afetação, esta já contava, desde sua edição, com medidas capazes de resguardar os interesses dos adquirentes de unidades imobiliárias em construção em caso de falência ou insolvência do incorporador, paralisação ou retardamento excessivo e injustificado da obra; situações estas em que a propriedade do terreno, das acessões e os recebíveis decorrentes da comercialização das unidades eram destacados da titularidade material do incorporador com correspectiva transferência aos adquirentes. Subjacente e como fonte de inspiração dessa alteração da titularidade material, têm-se a função social da atividade, ou seja, a conclusão do edifício, como direito dos adquirentes ainda que sem a colaboração do incorporador. Sensível à percepção de que o empreendimento que se constrói é fruto dos recursos entregues ao incorporador pelos adquirentes já que em geral os incorporadores vendem para depois construir, buscou a LCI, porém de forma tímida, apartar do patrimônio geral do incorporador, o acervo representado pelos direitos e obrigações oriundos de determinando empreendimento em construção. Tal separação, além de dar garantia aos adquirentes, teve como objetivo evitar que credores do incorporador, estranhos a uma determinada obra, fossem beneficiados em relação aos adquirentes, mediante realização de seu crédito com uma construção e com um terreno que, em parte considerável, às vezes até integralmente, são mera representação dos valores entregues pelos adquirentes ao incorporador. Nesse sentido, prevê o inciso III do art. 43 da LCI, desde sua edição, que mesmo em caso de falência do incorporador, a maioria dos adquirentes pode se reunir em assembleia e deliberar pela continuidade das obras sem a participação do incorporador97. Do contrário, ou seja, caso tal deliberação seja aprovada, dispõe o 97 Fazendo referência ao inciso III do art. 43 da LCI, observa HAMILTON QUIRINO CÂMARA que “Afinal de contas, na dicção do texto legal, se os compradores retomam as obras ficam fora da falência”. (CÂMARA, 85 mesmo inciso que aos adquirentes resta a opção de se habilitarem na falência como credores privilegiados pelas quantias que houverem pago ao incorporador98. Além de cogitar da hipótese de falência do incorporador como condição para que os adquirentes assumam o término da obra, o inciso VI do art. 43 da LCI prevê outras duas, quais sejam, a paralisação da obra ou seu retardamento excessivo e injustificado. Logo, não é necessária a ocorrência de falência para que os adquirentes decidam eles próprios concluí-la. Do contrário, poderia ocorrer de o incorporador paralisar as obras sem perspectiva alguma de retomá-las, não vindo, todavia, jamais a falir, mesmo que se encontrasse em estado de insolvência. Em uma situação dessas de nada adiantaria aos adquirentes acionar o incorporador pedindo reparação por perdas e danos ou a execução específica de obrigação de fazer (concluir a obra) se ele se encontrar impossibilitado de cumprir as decisões judiciais. Como se vê, então, pelo sistema original da LCI, falindo o incorporador, a edificação em curso não integra necessariamente a massa falida a fim de que seja utilizada para pagamento dos credores habilitados segundo a ordem preferência de seus créditos. Do mesmo modo, em caso de paralisação ou atraso excessivo e injustificado do andamento das obras, o empreendimento pode igualmente ser destacado do patrimônio e da gerência do incorporador, passando às mãos dos adquirentes a fim de que estes possam concluí-la. Para que tal ocorra, o inciso VI do art. 43 exige que os adquirentes se reúnam em assembleia e deliberem acerca da “destituição do incorporador”, afastando-o assim desta função. Uma vez destituído, o incorporador não poderá mais alienar, na condição de incorporador, unidades Hamilton Quirino. Falência do incorporador imobiliário: O caso Encol. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004, p. 3). 98 Dentre aquelas duas opções (arrecadação pela massa versus conclusão da obra pelos adquirentes), percebe-se que a lei reservou aos adquirentes, opções com diferentes possibilidades de êxito. Com efeito, a decisão pela conclusão da obra, a depender das circunstâncias concretas, poder afastar parcial ou integralmente o prejuízo material dos adquirentes, acontecimento este que dificilmente se verifica caso optem por se habilitarem na massa permitindo assim que o empreendimento seja arrecadado. Exercendo esta última opção talvez nunca recebam seus direitos ou recebam tão tardiamente considerando o tempo nada razoável de um processo de falência, que o prejuízo acumulado pelo decurso do tempo torna essa orientação menos atraente que a retomada da construção. Estranha-se, todavia, a razão legal dessas duas opções serem tão díspares entre si no que toca à proteção patrimonial dos adquirentes. Com efeito, de um lado se optam por a obra, o terreno e as acessões são destacadas da titularidade formal do incorporador; de outro, se não decidem concluí-la perdem tudo o que pagaram ao incorporador na medida em que a arrecadação pela massa leva a que os adquirentes se habilitem como credores preferenciais. 86 integrantes do empreendimento em construção99 sob pena de restar incurso no tipo penal dos arts. 65 e 66 da LCI; também não participará da gestão necessária ao término da construção, nem poderá cobrar o preço dos contratos de venda que firmou, não só porque inadimplente mas também em razão de se encontrar afastado da função de promotor da incorporação100. Perde assim os poderes inerentes à condição de incorporador, previstos em resumo nos arts. 29 e 30. Retirando o incorporador do centro de decisão dos interesses da incorporação, os adquirentes ocupam seu lugar e, por meio da Comissão de Representantes (art. 50), recebem da lei, dentre outros, os poderes necessários para concluir a obra, outorgar as escrituras definitivas relativas às frações ideais de terreno prometidas em venda pelo incorporador e também cobrar dos adquirentes os valores necessários para que a obra seja concluída (arts. 49, 50, 52 e 63). Percebe-se então que a LCI já trazia a ideia de que a incorporação, aí incluído o eventual direito real de propriedade sobre o terreno, não é um patrimônio absoluto do incorporador, nem do proprietário do terreno que eventualmente lhe tenha outorgado poderes necessários à promoção da incorporação (arts. 30, 31 e 32, ‘m´); mas sim uma relação jurídica complexa101 em que se entrelaçam obrigações, deveres e ônus, direitos reais e direitos pessoais obrigacionais, sobrepondo-se uns aos outros de maneira a conformar propriedade à sua específica função social, conferindo autonomia funcional ao empreendimento em construção para que alcance o objetivo de vê-lo concluído, ainda que de maneira mais custosa para os adquirentes do que aquela inicialmente contratada com o incorporador. Como já observou NÉLSON LUIZ GUEDES FERREIRA PINTO102 acerca da LCI em 99 Em que pese na prática consiga realizar ditas alienações enquanto o terreno ou frações dele continuarem registrados em seu nome, bem assim na hipótese em que o incorporador não seja seu proprietário mas conte com poderes para aliená-lo na forma dos arts. 30, 31 e 32, ‘m’, da LCI. 100 Referem estas negativas à sua participação continuada na condição de incorporador e também na condição de construtor. Mas ainda figurando o ex-incorporador como proprietário de alguma fração ideal que tenha comercializado, terá ele direitos e deveres em caso de retomada das obras deliberada pelos adquirentes, agora na condição de mero adquirente/proprietário, podendo inclusive votar nas assembleias como um adquirente comum. 101 Tratando do direito de propriedade como relação jurídica complexa a envolver direitos reais e pessoais bem assim as imbricações e alterações recíprocas que um caso ao outro em prol do cumprimento de determinada função social, confira-se FRANCISCO EDUARDO LOUREIRO (LOUREIRO, Francisco Eduardo. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. 102 PINTO, Nélson Luiz Guedes Ferreira. Contrato de incorporação imobiliária. In THEODORO JÚNIOR, Humberto (coord). O contrato imobiliário e a legislação tutelar do consumo. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002, pp. 318-320. 87 sua versão original, destituído da função de incorporador, os direitos e obrigações, mas nem todos (é verdade), eram de fato e de direito destacados do patrimônio do incorporador e mantidos vinculados à finalidade de conclusão da obra: A lei 4.591/64 sempre previu a proteção coletiva dos adquirentes no caso de fracasso do incorporador, por atraso injustificado, paralisação de obras ou falência. Esse direito materializa-se, através de decisão assemblear, vinculativa para a maioria, de destituir o incorporador e prosseguir nas obras, com ou sem um novo incorporador, o que se faz sem prejuízo do direito de pleitear perdas e danos do incorporador destituído (artigos 34, III e VI e 49, da lei 4.591/64 e artigo 43, da lei 7.661/45). Na hipótese destituição, o patrimônio era na prática destacado, e os adquirentes somente respondiam pelos débitos previdenciários, necessários à obtenção de certidão negativa de débito a ser averbada com a baixa da construção, além do IPTU não pago. As próprias hipotecas em favor de bancos vinham sendo questionadas, ultimamente, quanto à sua oponibilidade aos compradores. Tendo em vista que toda incorporação nada mais é do que a soma dos interesses dos adquirentes que nela aplicam recursos na medida em que a construção evolui, aliado à marcante função social dessa atividade, teve o legislador o cuidado de possibilitar a separação da incorporação, com os direitos pessoais e reais a ela inerentes, do patrimônio geral do incorporador. De igual maneira também já observou FRANCISCO ARNALDO SCHMIDT103, para quem a LCI já contava com “manifestações embrionárias” da autonomia patrimonial e funcional da incorporação imobiliária: A Lei 10.931, de 02 de agosto de 2.004, entre outras disposições, acrescentou ao arsenal jurídico pertinente às incorporações imobiliária, a figura do “patrimônio de afetação (...). Entretanto, já na Lei 4591/64, existem dispositivos que podem ser considerados manifestações embrionárias do instituto. Assim, por exemplo, o art. 40, segundo o qual, ocorrendo a rescisão do contrato de alienação do terreno de seu proprietário para o incorporador, resolvem-se também os contratos de venda das frações ideais do terreno firmados por este, o que gera ao adquirente das unidades futuras que não deu margem à rescisão, o direito a ser indenizado, e, se o incorporador não o fizer, a obrigação passa ao alienante do terreno, em favor de quem consolida-se a propriedade do terreno e das acessões, mas a responsabilidade patrimonial deste é limitada ao próprio terreno do empreendimento e às obras acrescidas, não contaminando o restante do seu patrimônio. Também o art. 58, inc. I e II da Lei 4591/64, quando, no regime construtivo de administração, ou “a preço de custo”, determina que todas as notas e faturas de pagamento de gastos da construção sejam emitidos para aquele 103 89. SCHMIDT, Francisco Arnaldo. Incorporação imobiliária. 2ª Ed. Porto Alegre: Norton Editor, 2006, pp.88- 88 condomínio de obra, em nome de quem também deverá ser aberta conta corrente bancária específica para girar toda movimentação financeira pertinente, sem misturá-la com outras contas bancárias do incorporador e de outras obras suas. A Medida Provisória n° 2.221/01, porém, foi o prime iro provimento legal baixado com o propósito declarado de instituir e regular o instituto do patrimônio de afetação. Outro exemplo de atribuição de autonomia funcional às incorporações imobiliárias, encontra-se no art. 65, § 1º, II, por meio do qual se tentou obrigar a que os recursos, quando gerados nas incorporações com construção sob regime de administração, fossem utilizados exclusivamente na obra sob pena configurar prática criminosa104. Também resultado do encontro entre direitos e reais e obrigacionais na incorporação, o art. 40 da LCI reconhece a construção como propriedade dos adquirentes na proporção individualizada dos pagamentos por eles realizados. Prevê o dispositivo que, rescindido o contrato de compra e venda do terreno em que o incorporador promove a incorporação e retornando seu domínio ao alienante original, este haverá de pagar aos adquirentes pela construção sobre ele existente, ao invés de fazê-lo ao incorporador como forma de indenização por acessão ou benfeitorias como haveria de se supor tivesse sido realizada por ele na condição de promotor da incorporação. Até que esse pagamento não ocorra, o proprietário do terreno não poderá negociá-lo sob pena de nulidade absoluta. Percebe-se aqui, novamente, que o incorporador não é proprietário das acessões, mas sim o coordenador de um negócio, o negócio de incorporação, por meio do qual se angariam recursos junto aos consumidores com o propósito de prestar-lhes um serviço. Os proprietários das acessões são os adquirentes. 104 “Art. 65. É crime contra a economia popular promover incorporação, fazendo, em proposta, contratos, prospectos ou comunicação ao público ou aos interessados, afirmação falsa sôbre a construção do condomínio, alienação das frações ideais do terreno ou sôbre a construção das edificações. PENA - reclusão de um a quatro anos e multa de cinco a cinqüenta vêzes o maior salário-mínimo legal vigente no País. § 1º lncorrem na mesma pena: I - o incorporador, o corretor e o construtor, individuais bem como os diretores ou gerentes de emprêsa coletiva incorporadora, corretora ou construtora que, em proposta, contrato, publicidade, prospecto, relatório, parecer, balanço ou comunicação ao público ou aos condôminos, candidatos ou subscritores de unidades, fizerem afirmação falsa sôbre a constituição do condomínio, alienação das frações ideais ou sôbre a construção das edificações; II - o incorporador, o corretor e o construtor individuais, bem como os diretores ou gerentes de emprêsa coletiva, incorporadora, corretora ou construtora que usar, ainda que a título de empréstimo, em proveito próprio ou de terceiros, bens ou haveres destinados a incorporação contratada por administração, sem prévia autorização dos interessados”. (grifamos) 89 A autonomia patrimonial da incorporação é uma imposição que brota naturalmente da própria maneira de ser desta atividade. Dizendo como dito que o incorporador vende para depois construir, certo é que promove a edificação com recursos alheios, entregues em razão da confiança depositada em sua pessoa. Neste sentido MELHIM NAMEN CHALHUB105 observa que A atividade da incorporação imobiliária é naturalmente vocacionada para a afetação patrimonial, seja em razão da relativa autonomia de cada empreendimento, considerado de per si, seja por força da antecipação parcial de pagamento por parte dos adquirentes. A incorporação, assim, tem estrutura econômico-financeira capaz de propiciar a realização do negócio com suas próprias forças, ou seja, com recursos financeiros gerados por si mesma, independente de outras fontes de receita. E de fato, se analisado o papel preponderante do incorporador imobiliário, bem assim o papel que ele exercia antes da tipificação do contrato incorporativo e ainda exerce, ver-se-á que a propriedade não é a “pedra de toque” de sua atividade. Pode-se dizer até que o direito real de propriedade sobre o terreno, exercitável pelo incorporador ou por quem lhe haja outorgado poderes para que sobre ele se promovesse a incorporação, configura a atribuição de uma posição jurídica com prerrogativas maiores do que as necessárias para a realização do contrato de incorporação; uma desproporção entre o fim (promoção da construção) e os direitos conferidos pelo meio (a propriedade)106. Ao direito de propriedade do incorporador sobrepõe-se a função social107 que a incorporação busca realizar, uma vez que os 105 CHALHUB, Melhim Namen. Proteção patrimonial dos adquirentes nas incorporações imobiliárias. Disponível em <http://www.melhimchalhub.com/files/docs/PROTECAO_PATRIMONIAL_DOS_ADQUIRENTES.pdf>. Acessado em 17.07.2009. 106 Essa mesma observação a doutrina tem feito em relação à propriedade fiduciária em garantia, conforme MARIA JOÃO ROMÃO CARREIRO VAZ TOMÉ e DIOGO LEITE DE CAMPOS: “Diz-se que se atribui ao fiduciário uma posição jurídica mais forte do que aquela exigida pelo objectivo econômico que serve. Refere-se, a este propósito, uma grande desproporção entre os meios e o fim que o negócio visa atingir – utilização de um negócio mais forte para atingir um escopo econômico mais fraco. Transmite-se o direito de propriedade em ordem a obter um resultado que, do ponto de vista jurídico, não exige esta transferência. Em sentido contrário, pode lembrar-se a dificuldade de sustentar que o meio técnico adoptado é mais amplo do que o intuito econômico prosseguido pelas partes quando seja claro que os efeitos reais do negócio, seriamente queridos pelas partes, correspondem plenamente à pretensão econômica das mesmas que, de outro modo, na ausência deste particular mecanismo, não poderiam em geral, atingir o resultado visado”. (TOMÉ, Maria João Ramão Carreiro Vaz; CAMPOS, Diogo Leite de. A propriedade fiduciária (trust): Estudo para a sua consagração no direito português. Coimbra: Almedina, 1999, p. 200). 107 Consoante observa FRANCISCO CARDOZO OLIVEIRA, a função social da propriedade não coincide necessariamente com sua função econômica, tendendo a ser mais ampla que ela. (OLIVEIRA, Francisco Cardozo. Hermenêutica e tutela da posse e da propriedade. Rio de Janeiro: Forense, 2006, pp. 243-244). 90 direitos reais decorrentes de sua condição de proprietário não devem ser garantidos em prejuízo de direitos de natureza pessoal ou de natureza pessoal com efeitos reais que se estabelecem em favor dos adquirentes, mormente porque o sucesso da atividade do incorporador não se traduz por acúmulo de direito de propriedade em seu favor, mas sim pela promoção de atos que garantem o surgimento de novos direitos de propriedade em favor dos adquirentes consumidores. O próprio conceito de incorporador108 dá conta de que ele é a pessoa que “promove” a construção, podendo ser ou não o construtor, podendo ter ou não a propriedade do terreno. O incorporador, na realidade, se põe como alguém dotado de conhecimento técnico e negocial para levantar uma edificação com recursos e forças de terceiros. Antes de mais nada, o incorporador é um “administrador de interesses”: dos interesses do proprietário do terreno e do construtor (quando não sejam o próprio incorporador), dos interesses dos compradores e eventualmente dos interesses do agente financeiro que tenha concedido crédito para promover a incorporação. Pondo em prática seu projeto, o incorporador gere a sinergia de recursos e forças que se voltam para alcançar objetivo coletivo de concluir a obra. O incorporador é ao mesmo tempo, como já observou CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA109, um corretor porque aproxima o dono do terreno e os compradores quando não seja ele mesmo o seu proprietário; um mandatário porque pode vender a fração ideal de terreno em nome e com procuração do dono do terreno; um gestor de negócios porque gere interesses de terceiros voltados à conclusão da obra; um industrial da construção civil; um empresário ou comerciante; um “banqueiro-financiador” porque é normal que venda a prazo. Para o bom desenvolvimento da atividade de incorporação imobiliária prescinde-se de um direito real de propriedade com todas as prerrogativas que ele tradicionalmente confere, contrapondo o incorporador proprietário e os adquirentes por via da sujeição passiva universal. Em favor da sociedade e dos próprios e verdadeiros interesses do incorporador é que os direitos e obrigações vinculados à incorporação merecem ser destacados de seu patrimônio geral, recebendo assim 108 Vejam-se, a propósito, os arts. 28, 29, 30, 31, 32, ‘a’ e ‘m’; dando conta de que o incorporador pode promover a construção em terreno alheio mediante contratação de um construtor, reservando-se a si apenas atividade de idealizar a obra, contratar a forma de alienação das frações ideais de terreno e também a construção, que pode ser realizada por ele ou por um terceiro. 109 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. 10ª ed., Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000, pp. 231-233. 91 uma função social inerente aos direitos que nascem com registro (art. 32), na matrícula do terreno, da obra que se vai construir110. Consoante referido por FRANCISCO CARDOZO OLIVEIRA111, a função social integra a estrutura do direito de propriedade de modo a subordiná-la a “uma orientação finalística que considera o uso da coisa e a relação social e historicamente situada entre proprietários e não proprietários”. O conceito de propriedade e direito real segundo o Código Napoleônico não atende de maneira satisfatória a multiplicidade de interesses presentes na incorporação imobiliária nem colabora para com a função social que, no caso, não é exatamente uma função da propriedade, mas sim da atividade de incorporação imobiliária; função essa que se cumpre mediante a conclusão da edificação e o pagamento de todas as obrigações que, pelo desenvolvimento da atividade do incorporador, comunicam-se entrando em um estado de sinergia sustentado por interesses individuais homogêneos representados pelo desejo de ver a obra concluída. Aqui a outrora “sacralização” do direito real de propriedade perde importância e, sob influência dos direitos pessoais obrigacionais112, modifica-se e com eles se funde de modo a criar um todo, em parte direito real e em parte pessoal, sem que haja prevalência de um sobre o outro como resultado de funcionalização da propriedade inserida no mercado de consumo113. A propriedade existe, continua a existir, mas como uma nova espécie de propriedade sobre a qual se pode referir como sendo a propriedade incorporativa, representativa de um direito “quase-real” e 110 Sobre a natureza de direito real que surge com o registro da incorporação na matrícula do terreno, veja-se PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. 10ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, pp. 288291. 111 OLIVEIRA, Francisco Cardozo. Hermenêutica e tutela da posse e da propriedade. Rio de Janeiro: Forense, 2006, pp. 241-242. 112 Como superação da dicotomia entre direitos reais e direitos pessoas obrigacionais, PIETRO PERLINGIERI propõe um abordagem da situação jurídica de modo a que dela sobressaia a função sobre a estrutura, perdendo o direito real seu caráter de prevalência sobre os direitos pessoais de modo a que se destaque deste confronto a “função” sobre a “estrutura” (PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, pp. 202-203 e 210). 113 Sobre o assunto ROBERTA MAURO E SILVA escreve que “[...] o novo direito dos contratos deve inspirarse na funcionalização do mercado em prol da pessoa, transformando sua disciplina quando a contratação envolve, v. g., a aquisição de bens essenciais à manutenção da vida digna, bem como a sua disponibilidade no mercado.”.(SILVA, Roberta Mauro e. Relações reais e relações obrigacionais: proposta para uma nova delimitação de suas fronteiras. In TEPEDIDO, Gustavo (coord.). Obrigações: estudos na perspectiva civilconstitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 87). 92 “quase-pessoal”. Essa nova forma de propriedade é fruto da modernidade, que suplanta e continua a suplantar esquemas amplos e rígidos de sistematização e classificação das relações jurídicas (direito real versus pessoal, força inter parts versus erga omnes, etc) típicos de positivismo jurídico114, em prol de microssistemas especializados que, ao menos na atividade de incorporação, têm como objetivo realizar uma segregação de riscos por meio de delimitação de uma rede contratual. Não há que se falar, portanto, em direito real do incorporador ou do proprietário do terreno segundo a teoria clássica. Como já observara EDUARDO TAKEMI KATAOKA115: Hoje não há apenas uma, mas várias propriedades muito diversas entre si. Por exemplo, a propriedade fundiária urbana e rural, a propriedade acionária, a propriedade intelectual, a propriedade de bens de consumo etc. Cada uma destas propriedades têm uma disciplina jurídica própria, sendo unificadas pela sua função comum. [...] não é necessário prosseguir para mostrar que a propriedade efetivamente mudou, e não pouco. De uma propriedade unitária, concebida como propriedade da terra, com a sua disciplina inteiramente centrada no código civil de cada país, passa-se à era das propriedades, muito diversas entre si e ainda regulamentadas por diplomas extravagantes e diversos códigos. Está-se diante de uma nova propriedade, fragmentada e inserida em um sistema em que ela perde a sua centralidade de direito por excelência para tornar-se um instrumento de realização de interesses não proprietários. Isto porque a tônica passa a ser a sua função social, garantia da realização do grande princípio da dignidade da pessoa humana, agora central. Se antes imperavam a igualdade de disciplina e a liberdade para negociar, hoje impera o ser humano em sua totalidade, devendo todos os elementos sistêmicos, em face deste vetor, contribuir para sua concretização. Essas características da incorporação a seguem desde a origem e foram, ainda que de forma velada, reconhecidas pela LCI. O patrimônio de afetação, então, veio para deixar à mostra a autonomia funcional da incorporação, bem assim, mitigar de forma expressa o direito de propriedade do incorporador. 114 Sobre a regularidade e sistematização, escrevera BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS: “A ordem positiva tem, portanto, as duas faces de Janus: é simultaneamente, uma regularidade observada e uma forma regularizada de produzir regularidade, o que explica que exista na natureza e na sociedade. Graças à ordem positivista, a natureza pode tornar-se previsível e certa. Isto explica a diferença, mas também a simbiose, entre as leis científicas e as leis positivas. A ciência moderna e o direito moderno são as duas faces do conhecimentoregulação”. (SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. Volume I. 5ª ed. São Paulo: Cortez Editora, 2005, p. 141). 115 KATAOKA, Eduardo Takemi. Declínio do individualismo e propriedade. In TEPEDINO, Gustavo (coord.). Problemas de direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 462. 93 III.2 FONTES DO PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO Dizem sobre o patrimônio de afetação tratar-se ele de instituto jurídico em função do qual determinados bens são apartados do patrimônio geral de um determinado sujeito de direito de modo a que atendam e contribuam para que finalidades específicas sejam alcançadas, proporcionando, ainda, a segregação de risco a que se sujeitariam esses bens se permanecessem integrados no patrimônio geral do sujeito, caso este em que sofreriam os efeitos decorrentes, por exemplo, de uma falência, insolvência ou de uma constrição judicial qualquer. Sobre o assunto, CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA116 se refere dando notícia de Os escritores modernos imaginaram a construção de uma teoria chamada afetação, através da qual se concebe uma espécie de separação ou divisão do patrimônio pelo encargo na disposição do bem, e, portanto, na sua saída do patrimônio do sujeito, mas na sua imobilização em função de uma finalidade. Tendo sua fonte essencial na lei, pois não é ela possível senão quando imposta ou autorizada pelo direito positivo, aparece toda vez que certa massa de bens é sujeita a uma restrição em benefício de um fim específico. No campo da atividade de incorporação de imóveis, a afetação patrimonial, com as alterações introduzidas pela Lei 10.931/2004, opera um arranjo no direito de propriedade exercido pelo incorporador sobre os direitos oriundos da edificação, adequando-os à persecução do término da obra como forma de proteção do interesse da comunidade de adquirentes relacionada àquela construção em específico e proteção também dos demais credores cujos créditos estejam ligados à existência do empreendimento. O acervo patrimonial que compõe cada incorporação imobiliária – o terreno, as acessões, as receitas provenientes das vendas, as obrigações vinculadas ao negócio – realizada a segregação patrimonial, passa a submeter-se à exclusiva finalidade de concluir a obra. No dizer de MELHIM NAMEM CHALHUB117: 116 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, v. I. Rio de Janeiro: Editora Forense, 21ª Ed., 2005, p. 398, negritos nossos. 117 CHALHUB, Melhim Namem. Da incorporação imobiliária. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar Ltda., 2003, pp. 68-69. 94 Pela afetação constitui-se um patrimônio especial que, embora integrante do patrimônio geral da empresa incorporadora, permanece incomunicável até que se conclua a incorporação, não se comunicando nem com o patrimônio geral do incorporador nem com outros patrimônios de afetação que a empresa tenha constituído, razão pela qual não sofre os efeitos de eventuais desequilíbrios da empresa incorporadora. Por efeito da afetação, as receitas provenientes de cada patrimônio de afetação são reservadas para exclusivo cumprimento das obrigações vinculadas à incorporação respectiva, vedado o desvio de recursos de um empreendimento para outro ou para o patrimônio geral do incorporador. O volume de recursos afetados, entretanto, limite-se ao quantum necessário à execução da incorporação, estando excluídas da afetação, obviamente, as quantias que excederem desse limite, podendo o incorporador delas se apropriar sem restrição alguma. [...] A afetação patrimonial protege os credores vinculados à incorporação, entre eles os adquirentes das unidades imobiliárias, os trabalhadores da obra, o fisco, a previdência, a entidade financiadora, os fornecedores, etc. Visa esse regime assegurar a conclusão da obra e a entrega das unidades aos adquirentes e, para esse fim, estes podem assumir a administração da incorporação em caso de atraso injustificado da obra ou em caso de falência; considerando a incomunicabilidade do patrimônio de afetação, os adquirentes, ao assumir a administração, estão obrigados a destinar as receitas da incorporação exclusivamente ao pagamento dos seus próprios débitos, vedada sua utilização para pagamento de débitos não vinculados à incorporação, entre eles, os decorrentes das atividades gerais da empresa incorporadora. Em caso de falência da empresa incorporadora, os créditos vinculados a uma incorporação sob afetação não precisarão ser habilitados no Juízo da falência, pois, estando vinculados àquela específica incoporaçãopatrimônio-de-afetação, esses créditos serão satisfeitos com os recursos desse patrimônio. A inspiração do patrimônio de afetação, no caso das incorporações reguladas pela lei brasileira, pode ser encontrada em vários institutos jurídicos já conhecidos tanto no Brasil quanto no exterior. Como já referido, a redação original da LCI apenas antevia a teoria da afetação na atividade de incorporação imobiliária, possibilitando que os adquirentes destituíssem o incorporador e assumissem o término da construção, chamando para si, de forma imperfeita e insuficientemente regulada, o acervo patrimonial representado pelos direitos e obrigações relacionados à determinada incorporação. Não obstante, a garantia dos adquirentes, pelo sistema original da LCI, somente se realiza caso estes decidissem concluir a obra. Do contrário, ocorre a arrecadação do empreendimento pela massa falida restando aos adquirentes se habilitarem como credores preferenciais. Não obstante, a opção dos adquirentes pela retomada da obra, nesse sistema original da LCI, faz-se sempre cheia de incertezas ante a deficiência da LCI e o ataque dos credores do incorporador, que sempre veem na 95 construção paralisada - propriedade titulada em nome do incorporador e atestada pelo registro imobiliário - uma garantia para realização de seus créditos. A questão realmente chamou atenção quando, entre as décadas de 1980 e 1990, despontou a insolvência de numerosos incorporadores pelo país, tendo como clientes (adquirentes) milhares de famílias. Naquele momento o Judiciário foi chamado para decidir diversos conflitos envolvendo a possibilidade de retomada das obras e as hipotecas constituídas pelos incorporadores em favor de instituições financeiras como garantia de mútuos concedidos tanto para a própria construção do empreendimento como para finalidades outras. De uma dessas questões resultou a edição da Súmula 308 pelo Superior Tribunal de Justiça, consolidando o entendimento segundo o qual “A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel”. Com o fim prático, declarado pelo Judiciário, da garantia hipotecária que tradicionalmente era ofertada aos agentes financeiros como forma de garantia real para os financiamentos concedidos a incorporadores; o mercado de crédito imobiliário, ainda que de maneira tímida, passou a exigir estruturas negociais capazes de apartar do patrimônio geral do incorporador, o empreendimento em função do qual a instituição financeira houvesse concedido financiamento, bem assim os direitos e obrigações a ele vinculados. Inexistente, à época, lei regulando o instituto do patrimônio de afetação nas incorporações imobiliárias, a “engenharia jurídica” se resumiu em condicionar a concessão de financiamentos à criação de Sociedades de Propósito Específico (SPE’s) para cada construção que contasse com financiamento bancário. A intenção era criar uma pessoa jurídica cuja finalidade social, prevista em seus estatutos, restringisse-se à construção de determinada edificação (aquela para qual se concedia o financiamento). Concluída a obra e havendo devolução do mútuo concedido pela instituição financeira, operava-se a extinção da SPE. Essa solução jurídica (SPE’s) traz implícita a intenção de adotar-se a afetação patrimonial nas incorporações imobiliárias como forma de segregar o risco da atividade geral do incorporador, na medida em que a criação de uma pessoa jurídica que tivesse como objeto apenas a conclusão do edifício diminuiria riscos advindos de outros negócios jurídicos de que tivesse participado o incorporador; risco esse 96 que, como se sabe, foi amargamente suportado pelos agentes financeiros118 que viram suas hipotecas sendo declaradas ineficazes pelo Judiciário. Ao lado dessa inspiração de ordem prática derivada da Súmula 308 do STJ, o patrimônio de afetação conta com fontes de importância maior. Uma delas, quiçá a mais relevante, seja o trust, instituto largamente utilizado em países do common law, em especial Inglaterra e Estados Unidos da América. Sobre sua adoção como fonte, MELHIM NAMEM CHALHUB, autor do texto que deu origem, com modificações, ao projeto remetido ao Congresso Nacional de que resultou a Lei 10.931/2004, traçou as linhas gerais que adequariam o trust às incorporações imobiliárias no Brasil119. Daí então convém aqui descrever o trust também em linhas gerais, inclusive porque muitas das soluções que para ele se adotam podem ajudar a responder dúvidas que surgirão da aplicação do patrimônio de afetação às incorporações. Trata-se o trust de uma espécie de negócio fiduciário em sentido amplo porque se baseia na confiança que uma parte deposita na outra relativamente à atribuição de uma titularidade patrimonial. Surgido na Inglaterra durante a Idade Média, no contexto do feudalismo, quando então foi inicialmente designado de use, o trust tinha por função permitir que os vassalos contornassem as prerrogativas que o suserano tinha sobre sua propriedade imobiliária. Com o tempo e por obra de eclesiásticos ocupantes do cargo de “chancellor” - um tipo de conselheiro real para questões de natureza moral120 - o use passou a ser designado por trust. Sobre as 118 Notadamente com a célebre falência da incorporadora ENCOL. 119 CHALHUB, Melhim Namem. Trust: Perspectivas do direito contemporâneo na transmissão da propriedade para administração de investimentos e garantia. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar, 2001. 120 Sobre o papel desenvolvido pelo “chanceler” durante a consolidação do use em trust, Eduardo Salomão Filho descreve: “A justiça medieval inglesa era, contudo, impotente para levar em consideração os direitos de beneficiários de “uses”, pois assentava-se basicamente nos tribunais encarregados da aplicação da “common law”, formais e legalista. Ao lado dos tribunais existia, entretanto, um importante funcionário público, o “Chancellor”, cuja inteferência passou a ser fundamental para eficácia jurídica dos “uses”. O “Chancellor” era inicialmente um eclesiástico a quem se atribuía a função de conselheiro do rei, dada sua capacidade de lidar com questões de consciência, bem como a função de guarda do selo real. O rei sempre teve poder jurisdicional a par dos tribunais por ele constituídos, o que representava o reflexo de sua situação de preponderância, podendo os súditos, em qualquer caso, recorrer diretamente a ele em situações jurídicas habituais. Ao fazerem isso, as petições, baseadas primordialmente em questões de justiça natural, insuscetíveis de acolhimento pela “cammon law”, tendiam a ser passadas à análise do “Chancellor” devido a sua formação eclesiástica e seu papel de diretor da consciência do rei”. (SALOMÃO NETO, Eduardo. O trust e o direito brasileiro. São Paulo: Editora LTr, 1996, p. 14). 97 origens do instituto dão notícia MARIA JOÃO RAMÃO CARREIRO VAZ TOMÉ e DIOGO LEITE DE CAMPOS121: O use foi introduzido na Inglaterra após a conquista normanda (1066). [...] Visava fundamentalmente facilitar a transmissão da propriedade fundiária no seio da família. Por exemplo, quando um vassalo falecia, o seu suserano tinha o direito de ter a terra na sua posse e de administrar por sua conta até que o herdeiro do vassalo atingisse a maioridade. O instituto do use permitiu evitar este resultado, porquanto o vassalo transferia o seu patrimônio a amigos em trust, que se vinculavam a tê-lo em use para o disponente, durante a sua vida e, após a sua morte, para o seu filho mais velho quando atingisse a maioridade. Deste modo, a propriedade fundiária passava para a esfera do herdeiro mediante a prática de um acto jurídico inter vivos e não por via sucessória, nunca chegando assim a nascer os direitos do suserano feudal. [...] O trust encontra pois a sua origem na Idade Média, na prática do ius of lands. Verificava-se a necessidade premente de ultrapassar os limites jurídicos impostos à propriedade fundiária. O sistema feudal impunha ao vassalo (tenant) um conjunto de obrigações perante o seu suserano (lord), que variava em conformidade com o tipo de relação estabelecida entre eles aquando da concessão da terra (tenure). Entre os deveres do tenant (incidents of tenure), alguns comuns a diversos tipos de tenure, encontravam-se o escheat (o regresso da terra à esfera do lord no caso de o tenant sucumbir sem herdeiros ou de ser condenado por delitos de particular gravidade), a homage (o reconhecimento da supremacia do lord acompanhado de juramento de fidelidade e de assistência económica em dadas circunstâncias), a wardship (a aquisição, por parte do lord, do poder de tutela sobre os herdeiros menores do tenant, com consequência do poder de gozar a terra sem a obrigação de prestação de contas até a maioridade do pupilo) e o marriage (a atribuição ao lord do direito de, à morte do tenant, escolher um cônjuge para o herdeiro solteiro, ou de obter um montante pecuniário a título de indenização no caso de ausência do casamento). O proprietário fundiário não podia dispor por via testamentária da sua terra e o seu herdeiro legítimo era sempre e em qualquer caso obrigado a pagar ao lord a renda de um ano pelo privilégio da sucessão. [...] Com o decurso do tempo, o chanceler estabeleceu o respeito dos direitos do beneficiário (cestui que use) não apenas pelo trustee, mas também pelos seus herdeiros e, assim, por qualquer terceiro adquirente a título gratuito dos bens constituídos em use. Consagrou, por último, a oponibilidade do direito do cestui que use a terceiros adquirentes a título oneroso que conhecessem, ou fosse para si cognoscível, que a transmissão dos bens ou direitos violava o trust. Os direitos do cestui que use in equity eram, deste modo, exercidos contra terceiros em certas e determinadas circunstâncias. A partir do momento em que o tribunal da equidade, de acordo com a máxima “equity follows the law”, tornou os direitos do beneficiário semelhantes àqueles reconhecidos at law, surgiu uma nova terminologia: os direitos do trustee at law foram designados como legal ownership e os do cestui que use sobre os bens constituídos em trust como equitable ownership. Em virtude de também serem considerados titulares de direitos sobre os bens, os beneficiários podiam opor os seus direitos a um leque alargado de pessoas e exigir a adopção dos remédios adequados. 121 TOMÉ, Maria João Ramão Carreiro Vaz; CAMPOS, Diogo Leite de. A propriedade fiduciária (trust): Estudo para a sua consagração no direito português. Coimbra: Almedina, 1999, pp. 21-24. 98 Por outro lado, como a função do trustee consistia em administrar os bens fiduciados, a existência do trust não obstava à sua alienação. No caso, trust significa confiança. E era com esta conotação que os negócios se operavam na idade média entre os vassalos, quando um deles em confiança (in trust) passava a propriedade de seus bens ao outro, acreditando que este último, mesmo sem haver obrigação que à época fosse de natureza legal, deles faria uso ou os transferiria em benefício de um terceiro seguindo as instruções recebidas do vassalo fiduciante122. Com reconhecimento do chanceller, a transferência in trust entre os vassalos implicou a modificação do direito de propriedade daquela época, permitindo que ela passasse a ser analisada do ponto de vista de sua titularidade formal, de sua administração e de seu benefício econômico de forma correlacionada com diversos sujeitos de direito ao invés de sê-lo em consideração apenas de uma e única pessoa com direito de propriedade. Assim, não obstante o trustee tivesse a propriedade formal, seu beneficiário econômico era um terceiro, o cestui que trust, de modo a restar ao trustee apenas um dever de administração do bem. Assim, apesar de contar com todas as prerrogativas legais que o titulo de proprietário à época atribuía e não obstante a constituição dessa propriedade ter se dado apenas para contornar os direitos legais do suserano, a regra moral, confirmada por conselhos e decisões do “chancellor”, obrigava o vassalo a cumprir as instruções passadas com o bem, tendo-o e usando-o em sintonia com a vontade do proprietário anterior. Daí porque se dizer até os dias de hoje que o trust centra-se “na concepção pela qual uma pessoa pode ser investida de direito de propriedade sobre 122 MARIA JOÃO RAMÃO CARREIRO VAZ e DIOGO LEITE DE CAMPOS descrevem o trust como sendo “[...]aquelas situações em que um sujeito transfere a titularidade de uma parte do seu patrimônio a terceiro, estipulando a sua administração em benefício de outrem. Em virtude da separação entre a titularidade, a administração e o benefício econômico, a administração dos bens ou direitos é exercida em benefício de outrem em conformidade com o objectivo estabelecido no acto constitutivo do trust. Contudo, a separação operada entre o gozo e a administração não se traduz na característica fundamental deste instituto, pois que a mesma pode resultar da adopção de outros mecanismos jurídicos. Na verdade, o traço distintivo do trust consiste em tanto o trustee como o beneficiário serem titulares de direitos reais sobre os bens constituídos em trust. De um lado, o trustee, enquanto titular dos bens ou direitos tem o poder de celebrar negócios jurídicos, em seu nome, respeitantes aos bens ou direitos trust, mesmo que em infraccção ao acto constitutivo do trust. De outro lado, em virtude de os seus direitos não revestirem natureza meramente obrigacional, o beneficiário tem o poder de seqüela sobre os bens em trust e não é afectado pela insolvência ou falência do trustee. Afirma-se assim que o trust cria uma nova estrutura no direito de propriedade”. (TOMÉ, Maria João Ramão Carreiro Vaz; CAMPOS, Diogo Leite de. A propriedade fiduciária (trust): Estudo para a sua consagração no direito português. Coimbra: Almedina, 1999, p. 32). 99 determinado bem ou direito, mas para realização de objetivo especial, exercendo essa propriedade em confiança, em benefício de outra pessoa”123. Como relação jurídica, a existência de um trust se verifica pela presença de seus elementos constitutivos básicos: vontade, objeto e partes. A vontade se têm pela manifestação de uma pessoa, designado na relação como instituidor do trust (o settlor), expressando desejo de transferir algum bem (res, corpus ou subject matter) a um terceiro (o trustee ou trustor) que, aceitando-o, será seu proprietário sob a condição de administrá-lo em favor de um beneficiário (o cestui que trust, aquele que confia) ou ainda a ele transferir o bem no futuro. Em geral os trusts têm objetivo de atender os interesses de beneficiários específicos determinados ou determináveis, havendo, todavia, trusts com fim de realização de objetivos outros, relativos a interesses coletivos difusos124, de natureza pública ou caritativa. O instituidor do trust pode designar a si mesmo como trustee e atribuir-se o dever de administrar bem que já é seu em favor de um beneficiário, bem assim comprometer-se a realizar sua transferência ao beneficiário indicado. Também pode designar um terceiro como trustee e a si mesmo como beneficiário. Não pode, todavia, designar a si mesmo como beneficiário de todos os seus bens pura e simplesmente, o que possibilitaria que fraudasse seus credores na medida em que estes ficariam impossibilitados de satisfazer seus créditos com base no patrimônio do devedor. Os trusts comportam duas grandes classificações: charitable ou public trusts e private trusts; aquela voltada ao interesse público em geral, atendendo interesses coletivos, sem beneficiário específico, com frequência concernente à realização de objetivos caritativos; e este vocacionado ao atendimento de interesses privados de natureza econômica com beneficiários determinados ou determináveis. Os private trusts, por sua vez, podem ser classificados em express trusts e constructive trust conforme seja ou não exigível a existência de uma declaração de vontade para constituir-se o trust. 123 CHALHUB, Melhim Namem. Trust: Perspectivas do direito contemporâneo na transmissão da propriedade para administração de investimentos e garantia. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar, 2001, p. 25. 124 São os chamados public trust ou charitable trust. 100 Os express trusts seguem a mais fiel origem do trust medieval. Dizendo respeito a interesses patrimoniais disponíveis, dependem de manifestação de vontade do settlor e aceitação do trustee. Já a declaração de vontade e a aceitação da condição de trustee podem ser dispensadas nos constructive trusts, quando então decorrem de previsão de lei125, ou seja, constatado um fato previsto em lei, à pessoa indicada atribuiu-se, ope legis, a condição de trustee com todas as obrigações inerentes à função, dentre elas a de admirar os bens confiados. Nos dias de hoje, desaparecido o receio de que os bens sejam apropriados pelo suserano, a causa do trust alterou-se, permanecendo, entretanto, a vontade de uma pessoa (settlor) satisfazer interesses de alguém indicado como beneficiário (cestui que trust) com manutenção da administração e da propriedade sob as mãos de terceiros (trustee) ou do próprio settlor, tornando-a intocável para credores tanto do settlor, quanto do beneficiário e do trustee. Um desses motivos é a vontade de ter um profissional que administre os bens e aceite todas as responsabilidades que tem um trustee, notadamente a de bem administrar e responder por perdas e danos em decorrência de má gestão, sendo por tal tarefa remunerado como um trustee profissional: um negócio que no Brasil seria claramente enquadrável como serviço posto à disposição no mercado consumidor. A aplicação do trust como objeto de prestação de serviço profissional de gestão patrimonial revela um desapego ao direito de propriedade como personificação do subjetivismo, atribuindo-lhe maior mobilidade enquanto circulação de riqueza, mediante acentuada cisão dos direitos de disposição, uso, gozo e fruição. A essa nova e já contumaz utilização do trust atribui-se a designação de management trust126: [...] o management trust traduz a resposta ao afastamento da propriedade imobiliária de matriz familiar enquanto forma predominante da riqueza. O trust moderno respeita a portfolios de complexos conjuntos de bens de natureza financeira que, na esmagadora maioria dos casos, se traduzem, em último recurso, em direitos obrigacionais perante os respectivos emitentes. 125 Enquanto os express trusts resultam da vontade manifestada pelo settlor, os constructive trusts decorrem diretamente de previsão legal, em situações em que, consideradas as circunstâncias fáticas, o titular da propriedade tenha os bens em trust apenas para o benefício de terceiros. 126 TOMÉ, Maria João Ramão Carreiro Vaz; CAMPOS, Diogo Leite de. A propriedade fiduciária (trust): Estudo para a sua consagração no direito português. Coimbra: Almedina, 1999, pp. 26-27. 101 Por outro lado, e ainda como conseqüência das alterações sofridas quer pela própria natureza dos bens constituídos em trust, quer pela natureza da função do trustee, assistiu-se a uma modificação da identidade do trustee. Afirma-se que a feição com que a evolução mais recente dotou o direito dos trusts se traduz na corporate trusteeship. Não obstante existirem ainda muitos trustees individuais, o paradigma do trustee actual é aquele do profissional remunerado, cuja actividade consiste em constituir e cumprir trusts. O fiduciário societário oferece perícia e garantias. De acordo com o regime da responsabilidade estabelecido no direito dos trusts, o trustee arrisca ilimitadamente o seu patrimônio pessoal no caso de não cumprir as suas obrigações. Impõe-se, nesta matéria, a regra que estabelece o critério de deligência do profissional razoável. Este risco assumido pelo trustee informa o trust moderno, garantindo, efectivamente, o beneficiário contra uma multiplicidade de violações. Acresce que, este risco de responsabilidade gera um incentivo adicional para o trustee cumprir, de boa fé, o trust. Uma outra vantagem oferecida pelo fiduciário de natureza societária traduz-se na sua longevidade. Feitas essas considerações sobre o trust, é possível um paralelo com o patrimônio de afetação na incorporação imobiliária, que o enquadre como um express trust - porque decorre de manifestação de vontade - em que o settlor se declara o trustee (art. 31-A, caput e § 10º, e art. 31-B) do patrimônio representativo dos direitos e obrigações vinculados à incorporação, assumindo a obrigação de um management trust de bem administrá-la em favor dos adquirentes ou beneficiários (cestui que trust), o que se faz mediante cumprimento da obrigação inerente à atividade de incorporação, qual seja, a conclusão da obra. Não há, no civil law, todavia, instituto jurídico que faça as vezes do trust. Dotado de aplicabilidade a qualquer relação jurídica salvo previsão legal em sentido contrário, as finalidades do trust e a natureza jurídica da relação que se forma entre o trustee, o beneficiário e o bem confiado, dadas as prerrogativas que a cada um se atribuiu, só têm sido alcançadas no civil law, e com ressalvas, em decorrência de intervenções cirúrgicas do legislador mediante autorização para contratação de novas espécies de negócio fiduciário, ora configurando forma de garantia, ora meio de investimento ou de administração. Com efeito, As relações fiduciárias análogos àquelas decorrentes do trust nos países da common law são, na civil law, reguladas de diferentes maneiras. Têm uma estrutura diferente e os direitos conferidos às partes envolvidas são de natureza diversa. As técnicas fiduciárias, tal como são aplicadas nos ordenamentos da civil law, apresentam um carácter menos genérico do que o trust anglo-americano. No direito anglo-saxónico, recorre-se ao mesmo trust para todas as espécies de propósitos fiduciários e em todas as ocasiões. Na civil law não existe uma técnica fiduciária genérica, mas antes 102 um número de específicas instituições fiduciárias que variam de acordo com 127 a partes envolvidas ou o propósito visado . Autor do anteprojeto de que resultou a Lei 10.931/2004, MELHIM NAMEM CHALHUB em mais de uma oportunidade já se referiu ao trust como fonte do patrimônio de afetação, cogitando de sua relativa equiparação com a propriedade fiduciária128, verbis: Dada a característica fundamental do trust, de criação de patrimônio separado visando a realização de fins determinados, não raras vezes se questiona se tais escopos poderiam, nos sistemas da civil law, ser alcançados por meio de criação de nova pessoa jurídica ou de mandato, entre outros instrumentos. Essas figuras, entretanto, não são plenamente equivalentes. [...] À procura dessa assimilação, sempre se volta a atenção o negócio fiduciário, que se caracteriza pela atribuição de titularidade pela, em nome próprio, mas no interesse, ou também no interesse, do transmitente ou de um terceiro. Seria uma concepção moderna da fidúcia, já entronizada no direito positivo de vários países da América Latina, na figura do fideicomisso, pelo qual os bens fideicomitidos são transmitidos ao fiduciário sob forma de propriedade fiduciária e não integram o patrimônio desse último, formando-se com esses bens um patrimônio de afetação. [...] De fato, considerando-se que o trust tem como elementos essenciais um patrimônio determinado e uma afetação, é efetivamente, mediante a determinação de um patrimônio e sua afetação que se poderia obter a realização dos efeitos econômicos e jurídicos do trust, isto é, mediante a atribuição de um direito patrimonial – propriedade fiduciária – a alguém, para que o administre no interesse de outrem, mantendo-se a propriedade fiduciária em patrimônio separado. [...] A figura que mais se aproxima da estrutura do trust, sem agredir o sistema romanístico, é a propriedade fiduciária que, no direito positivo brasileiro, é adotada para fins de administração dos bens imóveis integrantes de carteiras de fundos de investimento imobiliário, na qual a construção legislativa se ajusta à estrutura do trust sem deixar de atender o conceito unitário de propriedade. Trata-se da Lei n° 8.668, de 1993, que, para fins de organização de fundos de investimento imobiliário, estabelece que (a) os bens que constituirão a carteira do fundo serão adquiridos pela sociedade administradora em seu próprio nome, mas em caráter fiduciário, (b) esses bens terão autonomia em relação aos bens do patrimônio geral da sociedade administrador, isto é, constituirão um patrimônio de afetação destinado aos subscritores das quotas do fundo, e (c) a sociedade administradora é investida do poder-dever de administrar essa carteira, incluindo o poder de disposição sobre os bens que a compõem, desde que para atender as finalidades do fundo. 127 TOMÉ, Maria João Ramão Carreiro Vaz; CAMPOS, Diogo Leite de. A propriedade fiduciária (trust): Estudo para a sua consagração no direito português. Coimbra: Almedina, 1999, p. 199. 128 CHALHUB, Melhim Namem. Trust: Perspectivas do direito contemporâneo na transmissão da propriedade para administração de investimentos e garantia. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar, 2001, pp. 91, 93, 9596 e 99-100. 103 O negócio fiduciário em sentido strictu iniciou sua jornada no direito pátrio com propósito de constituição de garantia, previsto no art. 66 da Lei 4.728/65 (Lei de Mercado de Capitais)129 e, em seguida, no Decreto-Lei 911/64. Outros institutos, entretanto, conhecidos há bom tempo em nosso sistema, têm-se prestado ao atingimento de finalidades semelhantes às do trust. É o caso do fideicomisso, previsto no art. 1.733 do CC/16130 e no art. 1.951 do CC/02131. O fideicomisso, igualmente fonte de inspiração para o patrimônio de afetação, guarda no Brasil, nos dias de hoje, a aplicação inicial que fez surgir o trust, relacionada com a administração de heranças e criação de propriedade resolutiva em favor de terceiros indicados pelo testador. Ainda, antes mesmo de sua introdução pela via da incorporação imobiliária, em que pese a menor aproximação, o patrimônio de afetação já encontrava similar no direito brasileiro em outros institutos tradicionais como, por exemplo, o encargo a que ficam sujeitos os bens representados pela massa falida, os bens da pessoa ausente e do tutelado, os bens das fundações, a herança quanto às dívidas do falecido e às despesas do inventário, os bens gravados com cláusula de usufruto, inalienabilidade ou indisponibilidade e o próprio bem de família. Em todos esses exemplos há uma massa patrimonial que, em maior ou menor grau, é tida e administrada com objetivos específicos, permanecendo inatacável por credores outros que não tenham seu crédito originado de relação jurídica que se relacione à existência, formação e manutenção desse “patrimônio afetado”. Em recentes diplomas legais brasileiros, o negócio fiduciário foi previsto com escopo de investimento por meio de criação de patrimônios de afetação atinentes ao 129 Consoante dá notícia CHRISTOPH FABIAN, em que pese sua inserção no sistema de direito positivo da civil law ser recente, “na perspectiva histórica, o negócio fiduciário aparece como um instituto que existiu já no direito romano de forma elaborada e aplicada em várias situações, mas que caiu em esquecimento, simplesmente desapareceu, e começou a voltar, desde o séc. XIX com estrutura nova e, desde então, alargou o seu campo de aplicação até hoje”. (FABIAN, Christoph. Fidúcia: negócios fiduciários e relações externas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2007, p. 19). 130 “Art. 1.733. Pode também o testador instituir herdeiros ou legatários por meio de fideicomisso, impondo a um deles, o gravado ou fiduciário, a obrigação de, por sua morte, a certo tempo, ou sob certa condição, transmitir ao outro, que se qualifica de fideicomissário, a herança, ou legado”. 131 “Art. 1.951. Pode o testador instituir herdeiros ou legatários, estabelecendo que, por ocasião de sua morte, a herança ou o legado se transmita ao fiduciário, resolvendo-se o direito deste, por sua morte, a certo tempo ou sob certa condição, em favor de outrem, que se qualifica de fideicomissário”. 104 mercado financeiro. É o caso da propriedade fiduciária dos fundos de investimento imobiliário132 (Lei 8.668/93) e os direitos creditórios decorrentes da securitização de recebíveis imobiliários133 (Lei 9.514/97). Essas leis se referem ao patrimônio do Fundo de Investimento e ao patrimônio que lastreia os Certificados de Recebíveis Imobiliários como sendo de natureza fiduciária. E nestes dois exemplos, há uma pessoa (fiduciário) gerindo determinado patrimônio em benefício de outrem (fiduciante). Não obstante o patrimônio pertencer ao fiduciário, sua administração se dá no interesse do fiduciante, para atingir objetivos determinados, que no caso são de investimento. Acentuando o interesse prático do instituto, por obra do atual Código Civil o negócio fiduciário fora consagrado com certo grau de generalidade mas com espoco exclusivo de garantia (art. 1.361 e sgts), relacionado a bens móveis. 132 “Art. 1º Ficam instituídos Fundos de Investimento Imobiliário, sem personalidade jurídica, caracterizados pela comunhão de recursos captados por meio do Sistema de Distribuição de Valores Mobiliários, na forma da Lei nº 6.385, de 7 de dezembro de 1976, destinados a aplicação em empreendimentos imobiliários”. “Art. 6º O patrimônio do Fundo será constituído pelos bens e direitos adquiridos pela instituição administradora, em caráter fiduciário. Art. 7º Os bens e direitos integrantes do patrimônio do Fundo de Investimento Imobiliário, em especial os bens imóveis mantidos sob a propriedade fiduciária da instituição administradora, bem como seus frutos e rendimentos, não se comunicam com o patrimônio desta, observadas, quanto a tais bens e direitos, as seguintes restrições: [...]”. (grifamos) 133 “Art. 9º. A companhia securitizadora poderá instituir regime fiduciário sobre créditos imobiliários, a fim de lastrear a emissão de Certificados de Recebíveis Imobiliários, sendo agente fiduciário uma instituição financeira ou companhia autorizada para esse fim pelo BACEN e beneficiários os adquirentes dos títulos lastreados nos recebíveis objeto desse regime. [...] Art. 11. Os créditos objeto do regime fiduciário: I - constituem patrimônio separado, que não se confunde com o da companhia securitizadora; II - manter-se-ão apartados do patrimônio da companhia securitizadora até que se complete o resgate de todos os títulos da série a que estejam afetados; III - destinam-se exclusivamente à liquidação dos títulos a que estiverem afetados, bem como ao pagamento dos respectivos custos de administração e de obrigações fiscais; IV - estão isentos de qualquer ação ou execução pelos credores da companhia securitizadora; V - não são passíveis de constituição de garantias ou de excussão por quaisquer dos credores da companhia securitizadora, por mais privilegiados que sejam; VI - só responderão pelas obrigações inerentes aos títulos a ele afetados. (...) § 3º A realização dos direitos dos beneficiários limitar-se-á aos créditos imobiliários integrantes do patrimônio separado, salvo se tiverem sido constituídas garantias adicionais por terceiros. Art 12. Instituído o regime fiduciário, incumbirá à companhia securitizadora administrar cada patrimônio separado, manter registros contábeis independentes em relação a cada um deles e elaborar e publicar as respectivas demonstrações financeiras. Parágrafo único. A totalidade do patrimônio da companhia securitizadora responderá pelos prejuízos que esta causar por descumprimento de disposição legal ou regulamentar, por negligência ou administração temerária ou, ainda, por desvio da finalidade do patrimônio separado”. (grifamos) 105 No tocante à incorporação imobiliária, a versão original da LCI previa que os adquirentes poderiam concluir a obra em caso de insucesso do incorporador, retirando, de maneira imperfeita, o empreendimento de seu domínio e poder de gestão. Ante a realidade que se apresentou nas décadas de 1980 e 1990, editou-se a Medida Provisória 2.221/2001 introduzindo o patrimônio de afetação. Todavia, a Medida não foi convertida em lei; foi revogada pela Lei 10.931/2004, que melhorou as disposições nela inicialmente previstas e introduziu o patrimônio de afetação de maneira definitiva na atividade de incorporação imobiliária mediante a inserção, no Título II da LCI, do “capítulo I-A. Do Patrimônio de Afetação” e seus respectivos arts. 31-A a 31-F. Também foram alterados o § 2º do art. 32, o inciso VII do art. 43 e o caput e o § 2º do art. 50. Na sequência foi editada a Lei de Falência e Recuperação de Empresas dispondo que, em caso de falência do incorporador, o patrimônio afetado não é arrecadado pela massa (art. 119, IX, da Lei 11.101/2005), podendo seguir a execução dos atos necessários ao cumprimento de seu objetivo. Também acentuando a autonomia funcional das incorporações, a Lei 10.931/2004 criou (arts. 1º a 11) o “Regime Especial de Tributação – RET” para os patrimônios de afetação, no âmbito federal, de adesão facultativa a critério do incorporador. Por esse regime, o empreendimento em construção passa a ser tributado de maneira separada da empresa incorporadora, como se empresa fosse, nos termos134 do art. 1º. A tributação se dá mediante alíquota de 7% sobre base de cálculo única representada pela receita mensal do empreendimento (valores provenientes das vendas) e envolve o pagamento conjunto do “Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas – IRPJ”, “Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público - PIS/PASEP”, “Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL” e “Contribuição para Financiamento da Seguridade Social – COFINS”. 134 “Art. 1º. Para cada incorporação submetida ao regime especial de tributação, a incorporadora ficará sujeita ao pagamento equivalente a sete por cento da receita mensal recebida, o qual corresponderá ao pagamento mensal unificado dos seguintes impostos e contribuições”. 106 III.3 NATUREZA JURÍDICA DO PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO A doutrina tem repetido que o patrimônio de afetação nas incorporações imobiliárias confere maior proteção aos consumidores, na medida em que estes passam a ter uma “garantia” de que os recursos entregues ao incorporador como forma de pagamento da aquisição ou promessa de aquisição de unidade imobiliária, de fato serão aplicados na construção do empreendimento; evitando assim que sejam desviados para honrar compromissos do incorporador que não tenham relação direta com o empreendimento. Como visto, há, na versão original da LCI, o reconhecimento implícito de que a incorporação goza de autonomia funcional e que a preservação das clássicas prerrogativas de proprietário atribuídas ao incorporador ou ao proprietário do terreno, era desnecessária para o bom desenvolvimento da atividade e segurança dos adquirentes, já que estes se tornam “proprietários progressivamente”, na medida em que vão realizando os pagamentos previstos no contrato firmado135, no sentido de o direito real das promessas de compra e venda registradas e a eficácia real daquelas desprovidas de registros se potencializam a cada parcela de preço integralizada pelos consumidores adquirentes. Quando se refere ao patrimônio de afetação aplicado às incorporações imobiliárias, em geral a doutrina o descreve como uma parcela menor do patrimônio geral do incorporador, gravada pela execução de uma finalidade cujo atingimento é administrado pelo incorporador sob a fiscalização dos adquirentes e do agente financeiro que eventualmente tenha concedido crédito para a construção. Não obstante, cabe uma reflexão diferente acerca do patrimônio de afetação tal qual fora inserido na LCI, e, de consequência, sobre as prerrogativas e os limites que tocam tanto ao incorporador quanto aos adquirentes na relação que mantêm entre si, na relação com o próprio patrimônio afetado e também na relação que mantêm com terceiros. 135 Escrevendo sobre as promessas de compra e venda, José Osório de Azevedo Júnior observara que “À medida em que o crédito vai sendo recebido, aquele pouco que restava do direito de propriedade junto ao compromitente vendedor, isto é, aquela pequena parcela do poder de dispor, como que vai desaparecendo até se apagar de todo”. (AZEVEDO JÚNIOR, José Osório de. Compromisso de compra e venda. São Paulo: Saraiva, 1983, p. 7). 107 Pois bem. Toda pessoa tem um patrimônio e todo patrimônio tem pelo menos um titular. Em que pese haja alguma divergência, têm-se refutado a ideia de patrimônio sem proprietário136. O patrimônio é, assim, repete a doutrina, uma extensão da personalidade do sujeito de direito. Para CLÓVIS BEVILAQUA o patrimônio é composto por todas as relações jurídicas de natureza patrimonial de uma pessoa, que é o seu titular. CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA137 acrescenta que nele se incluem tanto as obrigações passivas quanto as ativas e que todo patrimônio é marcado pelos princípios da unidade e da indivisibilidade, vale dizer, cada pessoa tem um único patrimônio que, por ser único, é também indivisível. O ilustre autor refuta, assim, os casos “em que parece ocorrer a multiplicidade de patrimônios na mesma pessoa” e contesta a opinião dada por DE PAGE, segundo quem seriam hipóteses de divisibilidade do patrimônio “a comunhão parcial, as substituições fideicomissárias, as sucessões anômalas, a falência, etc”. Para CAIO MAIO, todavia, e com razão, não há, nesses casos, “pluralidade ou divisibilidade de patrimônio. O que há é a distinção de bens de procedência diversa no mesmo patrimônio. No mesmo patrimônio, acervos distintos pela origem ou pela destinação”. Discorrendo sobre a teoria da afetação patrimonial, ORLANDO GOMES138 afirma que “a idéia de afetação explica a possibilidade da existência de patrimônios especiais. Consiste numa restrição pela qual determinados bens se dispõem, para servir a fim desejado, limitando-se, por este modo, a ação dos credores”. Já CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA139 considera haver nessa teoria um caráter de novidade na medida em que rompe com ideia de que o devedor responde pelo pagamento de suas dívidas com todo seu patrimônio presente e futuro (art. 591 do CPC), ressalvados aqueles ditos impenhoráveis por força de lei (art. 649 do CPC). Entretanto, os princípios da unidade e da indivisibilidade do patrimônio seguem 136 Exceção referida pela doutrina encontra-se no art. 1.261 do Código Civil do Quebec, província do Canadá, que assim dispõe: “O patrimônio fiduciário, formado por bens transferidos em fidúcia, constitui um patrimônio de afetação autônomo e distinto deste do constituinte, do fiduciário ou do beneficiário, sobre o qual nenhum deles tem direito real”. 137 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, v. I. Rio de Janeiro: Editora Forense, 21ª Ed., 2005, p. 391. 138 139 GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 15ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 203. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, v. I. 21 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2005, p. 400. 108 inabalados. Com efeito, o fato de alguns bens, integrantes do patrimônio total, responderem apenas por uma parte das dívidas de seu titular enquanto os outros bens podem responder por todas elas, não implica dizer que sejam dois patrimônios separados na medida em que seu titular segue sendo o mesmo, projetando sua personalidade sobre toda a gama de relações jurídicas de que participa, mesmo sobre aquelas vocacionadas ou afetadas para o atingimento de determinado objetivo. A expressão “patrimônio de afetação”, com a conotação que é dada na atividade de incorporação de imóveis, traduz, isto sim, os contornos de uma da relação jurídica, sua causa ou motivo e a res que ela envolve. Parece tecnicamente impróprio aludir a um “novo patrimônio”. Na verdade, o patrimônio segue uno e indivisível do ponto de vista de seu titular porque e a relação jurídica se mantém ligada ao sujeito ou sujeitos de direito, alterada, porém, pela modificação de seu conteudo no que toca à parte afetada. Pesam sobre o patrimônio de afetação das incorporações imobiliárias direitos pessoais, reais ou com efeitos reais atribuídos aos adquirentes e ao incorporador. Esse patrimônio de afetação não se resume à afirmação de que seja apenas uma parte do patrimônio geral do incorporador gravada pela persecução de uma finalidade. Há, isto sim, uma alteração no direito de propriedade dos bens e direitos vinculados à incorporação, representada pela atribuição de direitos reais e pessoais com ou sem efeitos reais aos adquirentes. Essas alterações se traduzem justamente pela existência de uma propriedade fiduciária. Conforme observa CHRISTOPH FABIAN140, “em geral, uma pessoa tem um patrimônio que, por sua vez, tem um titular. Em algumas – mas não todas – formas das relações fiduciárias, porém, a situação patrimonial é diferente: os bens em fidúcia constituirão um patrimônio separado”. Com a inserção do regime de afetação pela Lei 10.931/2004, têm-se uma alteração na estrutura do direito de propriedade que o incorporador exercia sobre o terreno, acessões e demais direitos vinculados à obra. Essa alteração se opera mediante sua divisão entre o incorporador e os adquirentes ou potenciais adquirentes, seguida de atribuição de uma obrigação e de um poder de gestão 140 FABIAN, Christoph. Fidúcia: negócios fiduciários e relações externas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2007, p. 51. 109 conferido ao incorporador (um poder-dever) tendente a armá-lo com os meios necessários para que cumpra a obrigação de promover a construção, gerindo interesses que são seus e dos adquirentes, aproximando assim o conceito de incorporador à de administrador dotado de know how para levar a cabo uma obra mesmo que não disponha de todos os recursos para tanto necessários, mesmo sem ser proprietário pleno da incorporação. Essa alteração no direito de propriedade é justamente um reflexo da função social no caso concreto, no sentido de que os poderes sobre a coisa ultrapassam os interesses do incorporador proprietário para favorecer terceiros não proprietários como forma de atingir uma dada finalidade, no caso a conclusão do empreendimento141. Frequentemente lembrada e estudada no Brasil como forma de constituição de garantia (a conhecida alienação fiduciária do DL 911/69), a fidúcia também pode servir com o fim especial de exploração econômica de um bem ou de investimento142. Essa alteração estrutural do direito de propriedade, além daquele escopo de gestão, tem também uma característica de fidúcia de garantia na medida em que limita o domínio do incorporador sobre as receitas e sobre o terreno 141 Neste sentido FRANCISCO CARDOZO OLIVEIRA: “A extensão dos poderes proprietários, na propriedade funcionalizada, é medida através da relação concreta entre proprietários e não-proprietários. A função social enriquece a propriedade, porque confere ao exercícios dos poderes proprietários valor que ultrapassa a relação entre o proprietários e a coisa. A funcionalização valoriza a utilidade individual e coletiva proporcionada pelo uso do bem, direcionando para o objetivo finalístico traçado pelo ordenamento jurídico”. (OLIVEIRA, FRANCISCO, Cardozo Oliveira. Hermenêutica e tutela da pose e da propriedade. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 243). 142 A fidúcia como gênero pode envolver manifestações diversas, com conteudos diversos, mas sempre estruturada em torno das prerrogativas de uso, gozo, fruição e disposição do bem. Assim, não há absoluta correspondência, por exemplo, entre a fidúcia germana, a francesa, clássica romana, ou a anglo-americana (Cfr. MARIA TOMÉ e DIGO DE CAMPOS (A propriedade fiduciária...), FABIAN CHRISTOPH (Fidúcia...) e MELHIM NAMEM CHALHUB (Negócio fiduciário...). Neste sentido, calha transcrever observação de JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES, que faz perceber maior aproximação entre o patrimônio de afetação nas LCI e a fidúcia germânica do que a fidúcia romana: “Se é certo que há autores que pretendem distinguir na propriedade que se transmite ao credor por força de negócio fiduciário, a propriedade formal que pertenceria ao fiduciário e a propriedade material que seria o fiduciante, é também indubitável que os juristas atualmente, em maioria esmagadora, salientam que a propriedade fiduciária transferida por negócio fiduciário ao credor, para garantir-lhe o crédito, não difere estruturalmente do direito de propriedade que, sem tal escopo, se transmite ao adquirente. Em se tratando de negócio fiduciário do tipo romano, a propriedade fiduciária é a propriedade plena, tanto que o credor pode aliená-la a terceiro, sem que o devedor, ao pagar a divida, tenha outro direito contra ele que não o exigir perdas e danos por não poder o credor retransferir-lhe a coisa como se obrigou pelo pactum fiduciae; e contra o terceiro nenhum direito assiste ao devedor. Em caso de negócio fiduciário do tipo germânico, a propriedade fiduciária que dele resulta nada mais é do que uma propriedade limitada, porque subordinada a condição resolutiva (o pagamento do débito pelo devedor), motivo por que, se o credor, antes de ocorrida a condição, a transferir a terceiro, este a adquirirá também como propriedade resolúvel, perdendo-a para o devedor, se a dívida for solvida”. (ALVES, José Carlos Moreira. Da alienação fiduciária em garantia. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p.155). 110 obrigando-o à prática de atos que digam respeito apenas aos interesses da obra, preservando assim os interesses pessoais e reais dos adquirentes. Mesmo antes das alterações introduzidas pela Lei 10.931/2004, aos direitos dos adquirentes já eram reconhecidos efeitos reais ou “quase-reais” a despeito de classicamente se enquadrarem com relações de natureza pessoal com efeitos inter parts. Citam-se, como exemplos, a sobreposição absoluta dos direitos pessoais com efeitos dos adquirentes sobre os direitos reais representativos de garantia hipotecária constituída sobre o terreno e suas acessões (Súmula 308 do STJ); e a possibilidade de oposição de embargos de terceiro e o reconhecimento da eficácia dos contratos de promessa de compra e venda ainda que desprovidos de registro (Súmula 84 do STJ). Caso de patrimônio afetado a que a lei de forma explicita se refere como sendo caso de “propriedade fiduciária”, são os Fundos de Investimento Imobiliário143. Além desse caso, há também o Projeto de Código de Obrigações de 1965, que por seu art. 675, dispunha sobre o contrato de fidúcia sob forma de patrimônio separado nos seguintes termos: “Os bens objeto da fidúcia constituem patrimônio separado e serão administrados de acordo com as instruções prescritas pelo instituidor e, na falta destes, com a diligência o homem de negócios legal e honesto”. Deve-se atenção, todavia, para que não se generalize ao ponto de enquadrar todo e qualquer “patrimônio de afetação” em regime de propriedade fiduciária. Uma rápida consulta à doutrina passa uma ideia geral segundo a qual patrimônio de afetação seria qualquer bem, relação jurídica ou parcela de patrimônio que estivesse vinculada ao atingimento de uma finalidade qualquer. Mas essa mesma noção geral passa ao largo da tese que ora se põe quando alude, por exemplo, ao bem de família como propriedade fiduciária só porque destinado a servir de moradia, ou à massa falida só porque destinada a satisfazer as obrigações do falido144. A par disso, têm-se em consideração o fato de não haver uma teoria sólida que defina a 143 Sobre a propriedade fiduciária nos Fundos de Investimento Imobiliário escreveu CHRISTOPH FABIAN: “Na área das relações fiduciárias, o patrimônio de afetação existe no caso dos Fundos de Investimento Imobiliário (art. 7º, da Lei 8.668, de 25.6.1993). Há uma separação nítida entre a massa fiduciária e a massa geral da administradora (fiduciária). As duas massas não se comunicam entre si, não devem se juntar e a massa fiduciária não responde por obrigações da administradora. Os credores pessoas da fiduciária não podem penhorar os bens afiduciados”. (FABIAN, CHRISTOPH. Fidúcia: negócios fiduciários e relações externas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2007, p. 61). 144 Cfr. FABIAN, Christoph. Fidúcia: negócios fiduciários e relações externas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2007, p. 57. 111 natureza jurídica do instituto do patrimônio de afetação, as posições ocupadas pelos sujeitos de direito. Há, isto sim, casuísmo com que a legislação de diversos países tratam o instituto, com identidade de nomem iuris mas com diferenças quanto à natureza jurídica145, conforme CHRISTOPH FABIAN: A doutrina utiliza várias denominações para esta forma de patrimônio, como “patrimônio separado”, “autônomo” ou de “afetação”. Também, os ordenamentos jurídicos estrangeiros não utilizam o mesmo conceito. Na doutrina francesa, por exemplo, aplica-se o termo “affectacion” enquanto o legislador argentino prefere o termo “separado” e no direito alemão predomina o termo “sonderermöge” (patrimônio especial). Nós não sobrevalorizamos as diversas denominações, pois consideramos que uma abordagem sobre o patrimônio separado não deve ser elaborado através de conceitos. Também, o conceito dos termos mencionados não reflete maiores diferenças. No caso da LCI, as alterações operadas pela Lei 10.931 de 2004 permitem concluir sobre sua natureza de propriedade fiduciária na incorporação. A adoção do regime de afetação patrimonial não é obrigatória, decorre de declaração unilateral de vontade do incorporador (caput do art. 31-A e § 10). Mas se o incorporador adotá-la, a disponibilidade sobre o terreno, sobre as acessões e demais direitos vinculados à incorporação ficarão destinados à consecução da obra correspondente. Feito o registro a propriedade sobre esses bens é imediatamente modificada, porque, nos termos do art. 31-A, caput, manter-se-ão “apartados do patrimônio do incorporador e constituirão patrimônio de afetação”. Esses bens, então, não mais se comunicarão “com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do incorporador ou de outros patrimônios de afetação por ele constituídos” e só responderão “por dívidas e obrigações vinculadas à incorporação respectiva” (§ 1º do art. 31-A). Ainda, só poderão ser objeto de garantia real em operações cujo financiamento concedido seja integralmente aplicado na construção do empreendimento e na entrega das unidades aos adquirentes (§ 3º do art. 31-A). Todos os recursos financeiros gerados em função da incorporação (vendas e obtenção de financiamento concedido por agente financeiro, v.g.), ficam afetados de modo a que só possam ser utilizados “para pagamento ou reembolso das despesas inerentes à incorporação” (§ 6º do art. 31-A). 145 FABIAN, CHRISTOPH. Fidúcia: negócios fiduciários e relações externas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2007, pp 53-54. 112 Tanto se modificam os direitos do incorporador sobre a incorporação (terreno, acessões, recebíveis creditórios, etc), que só se excluem da afetação, podendo então por ele serem apropriados, os recursos financeiros que excederem a importância necessária à conclusão da obra e à quitação do financiamento eventualmente concedido para a construção (art. 31-A, § 8º, I). Este será, propriamente, o lucro do incorporador, que pode ou não existir. Do terreno, que era propriedade sua ou de um terceiro antes do registro da afetação, restará apenas a possibilidade de receber pelo preço da venda de suas frações (§ 7º, art. 31-A) para posterior aplicação das quantias recebidas diretamente na incorporação. E se não houver quem compre as unidades, se o incorporador falir ou entrar insolvência ou se ele for destituído (art. 43, VII), o patrimônio de afetação, aí incluídos o terreno e as acessões, deverá ser liquidado para honrar apenas as dívidas da incorporação afetada ou para que tenha continuidade com os adquirentes gestionando o término da obra. O patrimônio de afetação continua patrimônio de titularidade (formal) do incorporador, que dele ainda pode dispor desse patrimônio, mas não em consideração de interesses próprios e exclusivos seus. Deverá se atentar também para os interesses dos adquirentes, do eventual agente financeiro e, de um modo geral, de todos que tenham se tornado credores ou devedores em decorrência de atos e negócios jurídicos praticados em consideração à incorporação afetada. Conforme observa CHRISTOPH FABIAN146, “o patrimônio de afetação qualifica-se pela sua finalidade e não mais, como no caso do patrimônio unitário, pelo seu titular. A pessoa que se relaciona com este patrimônio de afetação somente “empresta” a sua titularidade”147. Tratando dessa mesma questão com alusão a “titularidade formal e substancial, como expressão da função social da propriedade no direito atual, escreve PIETRO PERLINGIERI: Titularidade formal e substancial. [...] Ela [a distinção] inspira-se na quantidade de poder que um determinado sujeito tem e é relevante, sobretudo, na teoria dos direitos reais e, especialmente, da propriedade. Esta última situação é a mais idônea para descrever a referida distinção: sucede freqüentemente que a um sujeito seja reconhecida a titularidade (formal) da situação enquanto que o conjunto de poderes e faculdades que constituem o seu conteúdo seja atribuído a outros, ou mesmo seja excluído 146 FABIAN, Christoph. Fidúcia: negócios fiduciários e relações externas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2007, p. 57. 147 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, pp. 109-110. 113 por lei. Existem hipóteses nas quais um sujeito é, para determinados fins, ainda considerado proprietário, titular (formal) da situação proprietária, mas se encontra privado, por vezes irreversivelmente, dos direitos ou dos poderes característicos daquela propriedade. {...}. Vice-versa, há quem assume substacialmente os poderes e os direitos – ou de qualquer jeito, a maior parte deles – que são típicos do proprietário, apesar de não o ser. Nesta hipótese tem-se uma titularidade substancial. O incorporador, então, é titular da coisa comum apenas para fins de administrá-la, apondo sua titularidade sobre ela, mediante anotação no registro imobiliário. Às restrições criadas para incorporador em relação aos bens que antes do registro da afetação eram plenamente seus, corresponde a perda parcial dos poderes inerentes ao domínio. O terreno, as acessões e os direitos vinculados à construção tanto não lhe pertencem como propriedade plena que, por força o art. 31A, § 8º, I, o incorporador só recebe com domínio exclusivo, fora do regime de afetação, portanto, os recursos gerados pela atividade que sejam superiores ao necessário para concluir o empreendimento. É digno de nota observar que o patrimônio de afetação opera uma modificação profunda no direito de propriedade. Com efeito, ele não se limita a produzir uma divisão compartilhada nos poderes do proprietário haja vista que, ao separar propriedade em forma e propriedade em substância, o patrimônio de afetação extingue parcela da propriedade do incorporador na exata medida em que a transfere aos adquirentes. O incorporador tem o poder de gerir lato sensu o patrimônio afetado, praticando todos os atos de administração e de disposição que se afigurem necessárias. Contudo, não tem o poder de uso nem o de colher os frutos do corpus como se ele existisse para si. Também não tem o poder de destruílo materialmente porque o bem já não lhe pertence. Trata-se de uma propriedade tão especial que nunca chega a compreender o usus, o fructus, ou o abusus, já que adstringe o incorporador a ter como propriedade exclusiva apenas o lucro da atividade representado pela diferença positiva entre o valor das vendas das unidades imobiliárias e o custo para a conclusão do empreendimento. A atribuição de natureza de propriedade fiduciária sobre a incorporação afetada pode ensejar dúvidas quanto à sua adequação a princípios estruturantes do civil law, concernentes aos poderes de uso, gozo, disposição e reivindicação atribuídos ao titular de direito de propriedade, à publicidade dos direitos reais, à sua 114 taxatividade (numerus clausus) e tipicidade148 e também à separação rígida entre direitos reais e direitos pessoais. Sob uma lógica dogmática típica das grandes codificações da civil law, uma das barreiras que se erguem diz respeito à impossibilidade de dividir o direito de propriedade em “direito em forma” e “direito em substância” entre duas ou mais pessoas, cindindo assim um direito (o de propriedade) que em princípio é absoluto e pertence apenas a um proprietário. Quanto a isto não parece haver dificuldade porque essa divisão entre forma e substância decorre das próprias alterações introduzidas na LCI. Não se trata, portanto, de contornar o princípio da taxatividade dos direitos reais. Quando muito, a questão poderia ser situada no campo da tipicidade, vale dizer, no quadro de permissividades que o princípio da taxatividade oferece para manipulação da autonomia da vontade. Nesse sentido é que se enquadraria a possibilidade de a incorporação ser ou não submetida ao regime de afetação por decisão unilateral do incorporador. Demais disso, como visto, o próprio direito romano-germânico contempla tradicionalmente diversas figuras jurídicas que comportam a distribuição de poderes típicos de proprietário entre mais duas ou mais pessoas, com maior ou menor intensidade como é o caso, por exemplo, do usufruto. Com efeito, a natureza jurídica de propriedade fiduciária não é uma consequência pura da autonomia da vontade, mas sim decorrência de previsão legal. Em que pese a Lei 10.931/2004 não faça referência expressa à existência, no caso, de propriedade fiduciária, as alterações que ela introduziu na LCI descrevem direitos e obrigações e modificam os contornos do direito de propriedade, o que basta para que se possa cogitar de sua verdadeira natureza jurídica que, como é por demais sabido, sobreleva o nomem iuris ou a falta de sua indicação pelo texto legal149. Com efeito, é tarefa do interprete dizer da natureza das coisas sob pena de 148 Porque em geral são tratados como uma coisa, importante distinguir taxatividade e tipicidade dos direitos reais conforme alerta de GUSTAVO TEPEDINO: “Por quanto interessa ao presente trabalho, basta apenas registrar que o princípio do numerus clausus se refere à exclusividade de competência do legislador para a criação de direitos reais, os quais por sua vez, possuem conteúdo típico, daí resultando um segundo princípio, corolário do primeiro, o da tipicidade dos direitos reais, segundo o qual o estabelecimento de direitos reais não pode contrariar a estruturação dos poderes atribuídos ao respectivo titular. Ambos os princípios, tratados indiferentemente pela civilística brasileira, embora se apresentem aparentemente coincidentes, diferenciam-se na medida em que o primeiro diz respeito à fonte do direito real e o segundo à modalidade de seu exercício”. (TEPEDINO, Gustavo. Multipropriedade imobiliária. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 82). 149 Cfr. ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito civil: direitos reais. 5ª Ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1993, pp. 155-156. 115 se impedir a investigação científica acerca do conteudo das descrições normativas. Sobre o assunto já observou a doutrina150 [...] que o legislador não se reservou a prerrogativa de qualificar como reais determinados direitos: esse papel compete ao intérprete. A lei – e só ela – pode criar direitos reais e o intérprete – e só ele – pode, face aos dados legais, decidir se determinada figura integra ou não o numerus clausus imposto pelo Cód. Civil. O intérprete é livre de integrar no conceito de direito real situações que o legislador não qualificou expressamente como tais, e que porventura não considerou sequer figuras autônomas de direito subjectivo, mas a que atribuiu o regime jurídico correspondente aos direitos reais. Com efeito, afigura-se necessário distinguir claramente a criação de novas figuras de direito real, da qualificação como reais de certas situações estabelecidas por lei. A tipicidade taxativa não implica um monopólio legal na qualificação de direitos reais. O intérprete pode incluir nesta categoria qualquer situação, desde que nela encontre os seus traços essenciais. [...] Por outro lado, a interpretação extensiva é perfeitamente admissível no âmbito do direito das coisas e é admitida, nomeadamente, na interpretação das descrições legais dos direitos reais. A tipologia taxativa não impede que se admitam modificações dos direitos reais. Efectivamente, o direito real tem todo um conteúdo acessório, que é vastamente moldável pelas partes, mediante a substituição de disposições supletivas. Esse conteúdo é estranho à descrição fundamental em que consiste o tipo; faz parte do direito real, mas escapa ao objectivo subjacente ao numerus clausus. A tipologia taxativa dos direitos reais não exclui que estes sejam na ordem jurídica portuguesa tipos abertos. [...] Também não impressiona como barreira à tese, o fato de a incorporação em geral se iniciar sem que a propriedade fiduciária esteja composta de um lado pelo incorporador e, de outro, pelos adquirentes151. É que, no caso, a relação fiduciária se forma de maneira progressiva na medida em que consumidores vão a ela aderindo ao firmarem contratos relativos à aquisição das unidades. Registrada e tornada pública a afetação, o incorporador anuncia no mercado a possibilidade de aquisição mediante adesão, pelos consumidores, ao regime fiduciário. Enquanto as frações não são vendidas, elas e suas respectivas acessões seguem em regime fiduciário sob total administração do incorporador e como tal favorecem aqueles que já tenham firmados contratos com o incorporador na medida em que não poderão ser 150 TOMÉ, Maria João Ramão Carreiro Vaz; CAMPOS, Diogo Leite de. A propriedade fiduciária (trust): Estudo para a sua consagração no direito português. Coimbra: Almedina, 1999, p. 287, nota 590. 151 Comparativamente ao trust, cumpre recordar que o settlor, nos private trusts, pode constituir seus próprios bens em trust elegendo a si próprio como trustee (administrador) dos bens. 116 destacadas do regime fiduciário (afetação) para que um outro propósito lhes seja dado senão o de verter recursos para a obra152. A propriedade da incorporação afetada tanto não é exclusiva do incorporador que o § 2º do art. 31-A prevê que este “responde pelos prejuízos que causar ao patrimônio”, vale dizer, ele responde pelos danos causados a um patrimônio que é comum entre ele e os adquirentes. Fosse patrimônio exclusivo do incorporador, não haveria razão para que fosse obrigado a reparar dano que, nesta hipótese, seria a um patrimônio próprio. Corolário da propriedade dos adquirentes, o art. 31-C e o art. 31-D, III, VI e VII, garantem-lhes o direito de fiscalizar o patrimônio de afetação, revelando assim um interesse que não diz respeito apenas ao cumprimento de um contrato especifico firmado entre um determinado adquirente e o incorporador, mas sim a todas as relações jurídicas que possam de alguma maneira afetar o empreendimento. Quiçá os dispositivos que mais deixem em evidência a natureza dos direitos dos adquirentes sejam o art. 31-F e seus parágrafos. Por eles se chega à conclusão de que os adquirentes são responsáveis, junto com o incorporador, pela conclusão da obra e pagamento dos credores que em função dele como tal tenham se constituído. Esses dispositivos demonstram que os adquirentes deixaram de ser meros consumidores de uma relação jurídica de natureza pessoal para se tornarem donos da obra por direito de propriedade constituída de forma fiduciária e com propósito de administração atribuída ao incorporador em seu próprio nome e em nome dos adquirentes. Se o incorporador falir, entrar em insolvência, paralisar ou retardar injustificadamente a obra, o juiz da falência ou da insolvência, os adquirentes deverão decidir se concluem a obra sem a participação do incorporador aportando todos os recursos para tanto necessário, ou se deixam-na inacabada e assim liquidam o patrimônio de afetação mediante venda do terreno e das acessões seguida pelo pagamento dos credores do patrimônio afetado. Se decidem concluí-la, os adquirentes ficam obrigados a honrar todas as obrigações que o incorporador carreou para o âmbito do patrimônio afetado como, 152 A propósito da multiplicidade de direitos reais presentes na afetação patrimonial e forma que eles se combinam entre si e também com direitos obrigacionais com o propósito de conferir autonomia funcional à incorporação com poderes de passíveis de serem exercidos pela comissão de representantes, calha a classificação de José de Oliveira Ascensão, entre direitos reais simples e direitos reais. (ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito civil: direitos reais. 5ª Ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1993, pp. 166-168). 117 por exemplo, o contrato de financiamento firmado com o agente financeiro, a mãode-obra empregada na construção e, quiçá, até mesmo obrigações constituídas de forma fraudulenta contra o patrimônio afetado (§§ 11 e 12 do art. 31-F). Concluída a obra e quitadas essas obrigações, só então os adquirentes receberão suas unidades desoneradas das dívidas constituídas no âmbito do patrimônio de afetação. Mas se, por razões as mais diversas, dentre elas o custo, os adquirentes decidam não concluir a construção, restará a eles vender o terreno e as acessões e, em seguida, pagar os credores do patrimônio afetado segundo a ordem de preferências estabelecida (§§ 14 e 18 do art. 31-F). E mesmo se os recursos forem mais que suficientes para honrar as dívidas afetadas, os adquirentes nada receberão: terão de entregar o saldo à massa falida e perante ela se habilitarem. Ora, se os adquirentes não são considerados credores do patrimônio de afetação ao lado do agente financeiro, do proprietário do terreno, dos empregados, dentre outros, é porque na verdade os adquirentes são proprietários e como tal não podem ser “beneficiados” com o produto da venda da coisa que já é sua e que se encontra onerada153. Alijados de sua condição de consumidores tecnicamente hipossuficientes, que poderiam reclamar do incorporador a entrega de suas unidades prontas e acabadas sem que fossem preteridos, v. g., em favor do direito de crédito do “dono da loja de materiais de construção” ou do agente financeiro e credor hipotecário (Súmula 308 do STJ); com o patrimônio de afetação os adquirentes passaram à condição de proprietário fiduciário e dono da obra, ainda consumidores perante o incorporador, mas responsáveis perante os credores do patrimônio afetado. Assim, de um lado, os adquirentes são consumidores perante o incorporador e dele recebem uma garantia fiduciária de que os recursos não são desviados; de outro, perante os credores do patrimônio, são devedores. Fosse o caso de manter os adquirentes em uma relação jurídica de natureza pessoal, não haveria motivo para tirá-los da condição de consumidor perante o agente financeiro, por exemplo, para colocá-los ao lado do incorporador como coresponsáveis pelo pagamento da hipoteca. 153 Evidente a distorção criada para o conceito de consumidor. A proteção oferecida pelo patrimônio de afetação para os momentos de crise do incorporador, em nada favorecem os adquirentes, deixando muito a desejar frente à versão original da LCI. 118 III.4 PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO E SEUS CREDORES Consoante já referido, no tocante às incorporações imobiliárias, a teoria da afetação sugere que os bens de uma determinada incorporação, tais como o terreno, as acessões e os recebíveis decorrentes da comercialização de suas frações ideais, fiquem vinculados para que o objetivo maior seja alcançado, qual seja, a conclusão do empreendimento, entrega das unidades imobiliárias e pagamento dos credores que tenham relação com a incorporação. Assim, por exemplo, o desvio desses recebíveis para outros objetivos que não seja a quitação de obrigações nascidas de atos necessários a conclusão do empreendimento implicaria desvirtuamento da teoria da afetação. Nisto a doutrina é unânime: o patrimônio de afetação só responde por obrigações que dele próprio tenham se originado. Neste sentido, MELHIM NAMEM CHALHUB154 teoriza: Por efeito da afetação, as receitas provenientes de cada patrimônio de afetação são reservadas para exclusivo cumprimento das obrigações vinculadas à incorporação respectiva, vedado o desvio de recursos de um empreendimento para outro ou para o patrimônio geral do incorporador. [...] A afetação patrimonial protege os credores vinculados à incorporação, entre eles os adquirentes das unidades imobiliárias, os trabalhadores da obra, o fisco, a previdência, a entidade financiadora, os fornecedores, etc. Via esse regime assegurar a conclusão da obra e a entrega das unidades aos adquirentes e, para esse fim, estes podem assumir a administração da incorporação em caso de atraso injustificado da obra ou em caso de falência; considerando a incomunicabilidade do patrimônio de afetação, os adquirentes, ao assumir a administração, estarão obrigados a destinar as receitas da incorporação exclusivamente ao pagamento dos seus próprios débitos, vedada sua utilização para pagamento de débitos não vinculados à incorporação, entre eles, os decorrentes das atividades gerais da empresa incorporadora. Estabelecida essa larga premissa pode-se dizer que os bens componentes do patrimônio afetado são impenhoráveis. Credores do incorporador que não tenham relação com a afetação não poderão penhorar sequer as frações ideais de terreno que eventualmente estejam registradas em seu nome porque elas, na verdade, não lhe pertencem. Pertencem sim à afetação, em favor de quem devem ser convertidas 154 CHALHUB, Melhim Namem. Da incorporação imobiliária. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar, 2003, pp. 68-69. 119 em recursos para serem aplicados na obra. Logo, quem, além de estar penhorando indevidamente a fração, levar a cabo eventual leilão, adjudicação ou qualquer outra forma de venda judicial, ficará obrigada a pagar os custos da construção que toquem à fração de terreno. Não fosse desta forma, seria o caso de se cogitar que uma minoria de dois adquirentes sejam obrigados a concluir a obra apenas porque as frações ideais restantes foram transferidas de maneira quitada para credores do incorporador. Claro que o incorporador “responde pelos prejuízos que causar ao patrimônio de afetação” (art. 31-A, § 2º), mas isto não implica dizer que as unidades do empreendimento podem ser desvinculadas da afetação sob pena de frustrar-se a própria lógica do sistema instituído pela Lei 10.931/2004. Enquanto o incorporador administra o patrimônio afetado e também o seu patrimônio geral cumprindo todas as obrigações inerentes a cada um deles; enquanto ele leva a termo a construção, quita todas as obrigações trabalhistas, fiscais e todos os fornecedores que tenham vendido material utilizado na obra, quita o preço do terreno e também o financiamento bancário concedido para alavancar recursos necessários à construção até que a comercialização das unidades gerasse recurso em volume; a incorporação imobiliária afetada não enfrentará problema algum. Não há questionamentos, já que nestas circunstâncias todos receberam o que de direito. Coisa bem diversa ocorre quando a incorporação entra em colapso, atrasando ou paralisando sem justificativa ou ainda em caso de falência ou insolvência do incorporador. Quando isto ocorre, e em geral ocorre por insuficiência de recursos, muitos credores do incorporador, dentre eles os adquirentes das unidades em construção, terão seus direitos frustrados. Empregados não recebem seus salários nem rescisões, tributos deixam de ser recolhidos, fornecedores deixam de pagos. Em geral a doutrina tem mencionado que a afetação patrimonial protege os credores vinculados à incorporação, aí incluídos os consumidores, os trabalhadores da obra, o fisco, o agente financiador, etc. Mas é preciso indagar mais de modo a saber de fato quais são os credores com direito a serem satisfeitos com o acervo que compõe o patrimônio de afetação. A Lei n° 10.931/2004 não tratou suficientemente dessa questão e nem a doutrina. É crucial que o incorporador administre a afetação com boa-fé e ética empresarial, mantendo uma administração transparente, agindo com lealdade e prudência ao tratar dos direitos e obrigações que se vinculam ao patrimônio de afetação, atentando sempre para o dever de proteção que sobre ele recaia pela 120 ocupação de uma função de administrador, de interesses alheios. Deve ele ter sempre em conta que o patrimônio também pertence aos adquirentes numa combinação de forças que legitima interesses de múltiplas pessoas, devendo, por isto, atentar-se para a ocorrência de conflitos de interesses exclusivos seus com interesses da afetação, evitando auferir vantagens que a administração da incorporação lhe facilita. Neste ponto novamente calham as observações de MARIA JOÃO RAMÃO CARREIRO VAZ TOMÉ e DIOGO LEITE DE CAMPOS155 acerca dos deveres de gestão que o trustee tem frente ao trust que administrada em favor dos beneficiários: Conforme foi mencionado supra, o direito da administração fiduciária, o fulcro do moderno direito dos trusts, estabelece dois princípios fundamentais: o dever de lealdade e o dever de prudência. O primeiro obriga o trustee a administrar os bens única e exclusivamente no interesse do beneficiário e implementa aquela titularidade do beneficiário sobre os bens ou direitos constituídos em trust. O trustee é o legal owner dos bens ou direitos, mas apenas para seu gozo por parte do beneficiário. O dever de lealdade impede o trustee de celebrar negócios consigo mesmo que tenham por objecto os bens ou direitos em trust de um lado e, de outro, de se encontrar em situação de conflito de interesses adversa ao bom funcionamento do trust. Por seu turno, o dever de administração prudente consagra um critério de razoabilidade, comparável àquela do bom pai de família do direito da responsabilidade civil. Trata-se de um padrão objectivo de diligência que coloca o trustee “under a duty to the beneficiary in administering the trust to exercise such care and skill as a man of ordinary prudence would exercise in dealing with his own property”. São muitas as normas sobre a administração fiduciária, como aquelas que regulam os deveres de guarda e de prestação de contas, de informação, de investimento ou de preservação dos bens em trust e de os tornar produtivos, de execução e de defesa de direitos, de diversificação dos investimentos e de minimização dos custos. Todas estas normas se subsumem, em último recurso, aos deveres da lealdade e de prudência e constituem meios de satisfação dos direitos eqüitativos do beneficiário. A combinação da ampla discricionaridade do trustee com estas normas sobre a administração fudiciária, que visam proteger o beneficiário contra eventuais abusos dessa mesma discricionaridade, constitui a segunda melhor solução para o problema da execução do negócio trust. A lealdade e a prudência, enquanto normas do trust fiduciary law, forma o regime supletivo da conduta do trustee. Em caso de paralisação, retardamento injustificado da obra, falência ou insolvência do incorporador, dispõe o art. 31-F e seu § 2º, que os credores por “obrigações e encargos objeto da incorporação” não carecem de se habilitar junto à massa, nem procurar receber seus créditos do incorporador mediante direcionamento de suas pretensões sobre seu patrimônio geral, porque seus direitos 155 TOMÉ, Maria João Ramão Carreiro Vaz; CAMPOS, Diogo Leite de. A propriedade fiduciária (trust): Estudo para a sua consagração no direito português. Coimbra: Almedina, 1999, pp. 167-168. 121 serão honrados com as forças do patrimônio de afetação, quer os adquirentes decidam continuar a obra sem a participação do incorporador, quer decidam liquidar o patrimônio vendendo-o sem concluir a obra (art. 31-F, §§ 1º e 7º). Qualquer que seja a decisão dos adquirentes - conclusão da obra ou liquidação do patrimônio de afetação -, a Lei n° 10 .931/2004 deixou evidente que os direitos de crédito do agente financeiro que conceder empréstimo para a construção há de ser pago (art. 31-F, § 11). O § 18 do art. 31-F prevê que, uma vez liquidado o patrimônio de afetação, a Comissão de Representantes deverá utilizar o produto de sua venda para quitar as obrigações trabalhistas, previdenciárias e tributárias vinculadas ao patrimônio de afetação segundo a ordem de preferência de direito material prevista na legislação e, caso tenham os adquirentes realizado algum rateio para quitar qualquer dívida dessa natureza, a preferência seguinte dirá respeito ao reembolso desses valores, como que uma subrrogação na natureza do crédito (trabalhista ou fiscal) que os adquirentes hajam quitado. Em seguida a preferência a se quitar diz respeito aos valores que os adquirentes, por meio do condomínio construtivo, houverem, por algum motivo156, desembolsado para a construção das acessões de responsabilidade do incorporador, prevista no § 6º do art. 35 e § 5º do art. 31-A. Ato contínuo, quita-se os direitos do proprietário do terreno quando este não seja o próprio incorporador. Por fim, se sobejarem recursos, dispõe o inciso VI do § 18, estes deverão ser entregues à massa falida, sem que se faça qualquer previsão quanto aos valores que os adquirentes pagaram pelas frações ideais e acessões realizadas ou não (estas porque os respectivos recursos foram desviadas de sua finalidade pelo incorporador). Aos adquirentes restará então se habilitar na massa, mesmo tendo direitos vinculados e exercitáveis contra o patrimônio de afetação, mesmo tendo vertido valores para ele. A Lei 10.931/2004 também não faz nenhuma alusão aos demais credores do patrimônio de afetação como, por exemplo, os fornecedores de material e os 156 A previsão, ao que parece, diz respeito à hipótese em que os adquirentes tenham pago valor superior ao necessário para que a obra atingisse o estágio em que se encontrar no momento da paralisação, o que leva a crer que o incorporador fez uso do excedente dos recursos pagos para quitar a parte das acessões que ainda eram de sua obrigação em razão de não ainda terem sido comercializadas, oportunidade que o custo por seu pagamento é assumido pelo novo adquirente. 122 prestadores de serviço de modo a que, em caso de liquidação, seus créditos possam ser perseguidos junto à massa falida. Em sendo esta a forma preconizada para quitar os direitos cuja quitação deva ocorrer por conta da afetação patrimonial, com desamparo total dos maiores interessados (os adquirentes) e dos fornecedores e prestadores de serviço, haveria desrespeito ao § 1º do art. 31-A, segundo o qual a afetação garante a quitação das “dívidas e obrigações vinculadas à incorporação respectiva”. Considerada a incongruência, a ordem de preferências prevista no § 18 do art. 31-F deve ser completada mediante inserção do direito de reembolso dos adquirentes pelos valores pagos ao incorporador e também o direito de recebimento dos fornecedores de material utilizado na obra e dos prestadores de serviços. Demais disso, a própria ordem preferências contida no referido § 18 não se mostra correta em caso de liquidação do patrimônio de afetação, na medida em que a instituição financeira deveria ter grau de preferência igual ao dos adquirentes pelos valores vertidos em acessões de sua responsabilidade, assim como o grau de preferência dos fornecedores de material e prestadores de serviço. Isto porque, a garantia real do agente financeiro, prevista no § 3º do art. 31-A só prevalece se acaso se consumar o objetivo da previsto no dispositivo, qual seja, “a entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes”. Uma vez frustrado este objetivo por decisão de assembleia que opte por liquidar o patrimônio afetado, a garantia real do agente financeiro perde essa natureza e passa à condição de garantia pessoal em pé igualdade com o direito de reembolso dos adquirentes que, assim com o agente financeiro, outra coisa não fizeram senão entregar recursos ao incorporador que passaram a compor o patrimônio afetado assim como os recursos financiados pelo agente financeiro. Igualmente perde o caráter de direito real caso os recursos financiados pelo agente financeiro não sejam integralmente empregados na construção do empreendimento. Não basta, deve-se frisar, a mera previsão contratual constante do contrato de empréstimo aludindo a que os recursos mutuados devam ser utilizados na construção. No caso a destinação há de ser fática, comprovada documentalmente, cabendo ao agente financeiro adotar auditoria contábil na afetação e ainda vincular a liberação do empréstimo a pagamento que ele próprio fará a credores comprovadamente vinculados a incorporação afetada. 123 O patrimônio de afetação pode ser instituído mesmo depois de iniciada a obra (art. 31-B) e, como tal, acabar servindo para prejudicar credores do incorporador que, neste caso, não poderão dirigir suas pretensões sobre os recebíveis ou sobre as unidades não comercializadas pelo incorporador. De todo modo, Fica implícito que terceiros de boa fé estarão protegidos desde que comprovem haver sido instituído o patrimônio de afetação, quando já existentes obrigações e, tal instituição, tenha por fim driblar a expectativa de seus direitos, mesmo que estranhos à incorporação. Contudo, a casualidade desta concorrência, entre terceiros e adquirentes - todos em mesmo nível de boa fé -, tornar-se-á desafio para os Tribunais estabelecerem a quem atribuir preferência. Em qualquer caso, como o ressalva o parágrafo 2 do citado artigo 31-A da Lei 4.591/64, fica o incorporador responsável pelos prejuízos que causar ao patrimônio de 157 afetação, quando então responderá pessoalmente com seus bens . Como visto, o incorporador responde com seus bens pessoais pelo prejuízo que causar ao patrimônio de afetação. No entanto, a Lei 10.931/2004 não esclarece a legitimidade para pleitear essa reparação. Considerada a inspiração conferida pelo trust ao patrimônio de afetação, as seguintes providências lá adotadas aqui podem ser empregadas, fazendo os adquirentes as vezes dos beneficiários do trust e o incorporador a do trustee, conforme notícia de MARIA JOÃO RAMÃO CARREIRO VAZ RAMÃO e DIOGO LEITE DE CAMPOS158: O beneficiário tem igualmente o poder de exigir ao trustee a contabilidade devidamente organizada dos benefícios que lhe são devidos. Não sendo titular dos rendimentos actuais produzidos pelos bens ou direitos constituídos em trust, pode exigir a apresentação da sua contabilidade. Tem igualmente a faculdade de requerer a respectiva auditoria. Pode também exigir ao trustee a evolução de qualquer proveito que, sem o devido consentimento, haja retirado da administração do trust. Em certas circunstâncias, tem o poder de exigir ao trustee a reconsideração do exercício da sua discricionaridade, ou seja, do exercício do poder de selecção, assim como de impugnar o seu exercício aparentemente caprichoso. O beneficiário tem igualmente o poder de intentar acções judiciais fundadas na desonestidade, ausência ou incompetência do trustee. Deste modo, é, em geral, titular do poder de requerer ao tribunal a investigação e a fiscalização da administração do trust. 157 Cfr. AGHIARIAN, Hércules. Patrimônio de afetação. <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6408>. Acessado em 20.05.2009). 158 Disponível em TOMÉ, Maria João Ramão Carreiro Vaz; CAMPOS, Diogo Leite de. A propriedade fiduciária (trust): Estudo para a sua consagração no direito português. Coimbra: Almedina, 1999, pp. 139-140. 124 Pode outrossim exigir ao trustee a adopção das medidas adequadas contra terceiro adquirente de má fé de bens ou direitos constituídos em trust. Tendo todos os beneficiários contemplados pelo acto constitutivo do trust já nascido completamente e com vida, e tendo capacidade de exercício de direitos, é-lhes permitido extinguir consensualmente o trust e dar instruções ao trustee sobre o destino dos respectivos bens ou direitos. O poder de modificar o trust não lhes era, contudo, reconhecido Questão sem trato legal diz respeito aos direitos trabalhistas do empregado que tenha empenhado seu labor em mais de um empreendimento do incorporador gerando, todavia, créditos trabalhistas durante toda a relação de emprego, quiçá até mesmo em decorrência de um acidente de trabalho. Pela teoria da afetação, o empregado só poderá exigir do patrimônio de afetação os créditos que se formaram durante o período que trabalhou naquela específica incorporação. Entretanto, a Lei 10.931/2004 não trata desta questão, deixando margem a que o empregado exija a totalidade de seus créditos. Credores do incorporador que não tenham seus créditos constituídos em função do patrimônio afetado obviamente não podem pleitear pagamento com as forças da incorporação. Além de tal impedimento constar de lei expressa, a publicidade dos direitos reais decorrentes do registro da afetação patrimonial não o permite. Como meio de conferir segurança e proteção da boa-fé, disponibilizando à sociedade meio adequado para conhecer e saber dos direitos reais existentes sobre a coisa, o registro da afetação gera eficácia erga omnes revestida de publicidade. III.5 LEGITIMIDADE ATIVA PARA DEFESA DO PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO A separação da incorporação do patrimônio geral do incorporador por meio de afetação não lhe retira a titularidade nem legitimidade processual para defender o patrimônio afetado, o que, aliás, está expressamente previsto no inciso I do art. 31D. Não obstante, a afetação patrimonial vai além da mera atribuição de finalidade específica a determinada parcela do patrimônio geral do incorporador. E em que pese continue a integrar seu patrimônio geral, acentuam-se interesses de terceiros sobre a gestão da incorporação afetada. Esses interesses, aliás, já podiam 125 ser vistos no texto original da LCI ante os poderes conferidos à Comissão de Representantes159. A titularidade representada pelo registro do imóvel em nome do incorporador passa a ter um caráter mais formal que material. A natureza jurídica do incorporador ganha acentuado ar de gestor, administrando interesses que são próprios, relacionados ao lucro que almeja, e também interesses que são de terceiros que lhe entregam recursos e forças para que realize o interesse comum relacionado com fim do patrimônio de afetação. Uma das obrigações do incorporador que atue sob o regime de afetação consiste em separar e dar tratamento atomizado aos bens, direitos e obrigações que constituem a massa patrimonial. Só assim se consegue conhecer o que de fato integra o patrimônio afetado, quais suas receitas e por quais obrigações ele responde. Daí o porquê de art. 31-D exigir que se mantenha apartados os bens e direitos objeto de cada incorporação; que se preserve os recursos captados pela incorporação de modo a que de fato sejam direcionados à conclusão da obra; prestar informação obrigatória trimestralmente acerca do estágio da obra e dos recursos captados no período com auxílio de profissionais habilitados; manter e movimentar os recursos do patrimônio em conta bancária aberta com esta específica finalidade; e ainda franquear acesso à contabilidade do patrimônio afetado aos adquirentes e ao agente financeiro que tenha concedido empréstimo para a construção da obra. São deveres que visam a que os direitos dos adquirentes (conclusão da obra e pagamento do empréstimo) sejam conduzidos de modo a que ao final se frustrem por má administração. Deixando o incorporador de atender essas obrigações estará ele descumprindo o contrato de incorporação e, em razão disto, sujeitando-se a medidas judiciais e extrajudiciais que podem variar de pedidos de indenização, cumprimento de obrigações de fazer e, como medida extrema, à sua destituição da função de incorporador. De fato, o art. 43, VII, não prevê a possibilidade de destituição do incorporador por decisão de assembleia em caso de descumprimento dos deveres 159 Poderes de fiscalização do andamento das obras (art. 49); destituição do incorporador e tomada das obras em nome dos próprios adquirentes (incisos VI e VII do art. 43 e art. 50); gerência direta do contrato de construção, em nome dos adquirentes, nas incorporações sob o regime de preço de custo, com possibilidade de contratação de valores de forma vinculativa (arts. 60 e 61); legitimidade ativa nos casos do art. 63 e seu § 5º. 126 que têm ele frente ao patrimônio de afetação, notadamente daqueles previstos no art. 31-D. A letra do dispositivo se restringe a permiti-la em caso de paralisação ou retardamento injustificado da obra, falência ou insolvência do incorporador. Não obstante, tal providência possa ser alcançada pela via judicial, considerando que a lei não pode excluir de apreciação do Judiciário lesão ou ameaça de lesão a direito. Do contrário, ter-se-ia que admitir a situação em que o incorporador dilapide o patrimônio de afetação, vincule-o a dívidas e obrigações que em rigor não lhe digam respeito, mesmo mantendo temporariamente em dia o andamento da obra de modo a que, no futuro, quiçá quando as obras venham a ser paralisadas de maneira proposital e fraudulenta, tenham os adquirentes que honrar tais obrigações, ou quando pouco discutir se elas têm relação com o patrimônio. III.6 CRÍTICAS À INTRODUÇÃO DO PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO NA ATIVIDADE DE INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA O art. 31-A dispõe que o incorporador pode submeter a incorporação a regime de afetação, em função da qual o terreno e acessões objeto da incorporação afetada, bem assim os demais bens e direitos a ela vinculados mantenham-se “apartados do patrimônio do incorporador e constituirão patrimônio de afetação, destinado à consecução da incorporação correspondente e à entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes”. A constituição formal da afetação patrimonial sobre a incorporação se dá mediante averbação de termo no registro de imóveis firmado pelo incorporador, podendo ocorrer antes ou depois de já iniciada a obra (art. 31-B). Instituído o patrimônio de afetação, o incorporador torna-se “administrador de interesses alheios”. Daí porque serem exigíveis fiscalizações na contabilidade mediante auditoria dos adquirentes, representados pela Comissão de Representantes, ou pelo agente financiador da obra (art. 31-C). A adoção do regime de afetação exige do incorporador o cumprimento de uma série de obrigações contábeis e deveres acessórios. Nesse sentido, por exemplo, dispõe o art. 31-D que o incorporador tem o dever de manter apartados os bens e direitos de cada incorporação (inciso II), informar periodicamente os 127 adquirentes sobre o estado da obra (inciso IV), manter e movimentar os recursos financeiros do patrimônio de afetação em conta de depósito aberta especificamente para tal fim (inciso V), fornecer balancetes trimestrais aos adquirentes (inciso VI) e manter escrituração contábil completa relativamente a cada incorporação imobiliária sob regime de afetação (inciso VIII). Adotado o regime de incorporação, o incorporador lançará então em contabilidade própria da incorporação afetada, suas receitas e despesas, seus direitos e suas obrigações, até a conclusão da obra e pagamento dos credores vinculados ao patrimônio afetado. Obtendo, por exemplo, financiamento bancário para a construção, o incorporador lançará como passivo daquela incorporação (patrimônio de afetação) o crédito que tem a instituição financeira. Da mesma forma, segue contabilizando como crédito seu (do incorporador) a aquisição de materiais de construção, despesas com formalização de documentos, projetos, obtenção de alvarás e etc, realizadas com recursos próprios do incorporador. Iniciadas as alienações, os valores recebidos ou a receber serão contabilizados na conta de créditos e utilizados para pagamentos das dívidas da incorporação e assim sucessivamente, até que o empreendimento esteja concluído e quitadas estejam todas as obrigações que com ele se relacionem. Esse é, basicamente, o funcionando e algumas das obrigações do incorporador que atue sob o regime de afetação patrimonial. Outras inovações foram introduzidas na LCI. Além da possibilidade de retomada da obra pelos adquirentes em caso de falência do incorporador, paralisação ou atraso injustificado a obra (art. 43, VI) tal qual já era previsto na LCI em sua redação original; os §§ 1º e 2º do art. 31-F aprofundam a noção de segregação patrimonial estabelecendo que as incorporações sob o regime de afetação não sofrerão, em hipótese alguma, os efeitos da decretação da falência ou insolvência do incorporador (art. 31-F, caput), mesmo que os adquirentes não optem por concluir a obra (o que não ocorria anteriormente à Lei 10.931/2.004). Neste caso, abriu-se uma possibilidade nova, qual seja, a de liquidação do patrimônio de afetação mediante sua alienação integral com o propósito de pagamento dos credores a ele vinculados (art. 31-F, §§ 9º e 18). Em caso de falência não há comunicação entre o patrimônio de afetação representado por determinada incorporação imobiliária e o patrimônio geral do incorporador, ou mesmo qualquer outro patrimônio de afetação gerido pelo 128 incorporador falido. Concatenado a essa previsão, dispõe o art. 119, IX, da Lei de Recuperação Judicial e Falências (Lei 11.101/2.005) que, os patrimônios de afetação, constituídos para cumprimento de destinação específica, obedecerão ao disposto na legislação respectiva, permanecendo seus bens, direitos e obrigações separados dos do falido até o advento do respectivo termo ou até o cumprimento de sua finalidade, ocasião em que o administrador judicial arrecadará o saldo a favor da massa falida ou inscreverá na classe própria o crédito que contra ela remanescer. Em caso de falência do incorporador, paralisação ou atraso injustificado a obra, os adquirentes então decidirão (§§ 9º e 18 do art. 31-F) o destino da incorporação em assembleia, podendo ser a conclusão da obra por eles próprios ou a liquidação do patrimônio de afetação mediante sua alienação integral. Em qualquer dessas hipóteses a Comissão de Representantes (órgão representativo dos interesses dos adquirentes) ficará responsável e investida por força de lei dos poderes necessários para alienar o patrimônio de afetação para fins de liquidação mesmo que o imóvel esteja (como geralmente está) registrado em nome do incorporador, ou ainda (se for o caso) de prosseguir no gerenciamento da obra até sua conclusão (art. 31-F, § 3º a 11 e § 14; art. 63, § 5º). Nesse momento (o da assembleia – art. 31, § 1º) os adquirentes devem refletir profundamente acerca da decisão a ser tomada, tendo por base propostas de valor para término da obra e quitação de todo o passivo do patrimônio de afetação. Essa decisão é crucial (liquidar o patrimônio ou concluir a obra). No entanto, o art. 31-F, § 1º, confere apenas 60 dias para que a decisão seja tomada. Ora, se já é difícil que compradores de um imóvel “na planta” se conheçam em uma grande cidade, mais ainda será exigir que estejam preparados para uma decisão dessa importância. Mas optando por liquidar o patrimônio de afetação mediante sua alienação para posterior rateio entre os credores e eles próprios, nada mais terão os adquirentes que aplicar na obra. Pelo contrário, optando por concluir a obra, os adquirentes se tornam pessoalmente devedores por todo o passivo do patrimônio de afetação conforme dispõe o § 11 do art. 30-F: “Caso decidam pela continuação da obra, os adquirentes ficarão automaticamente sub-rogados nos direitos, nas obrigações e nos encargos relativos à incorporação, inclusive aqueles relativos ao contrato de financiamento da obra, se houver”. 129 A grande questão que se coloca é a de conhecer a extensão do que sejam as “obrigações” e os “encargos” relativos à incorporação. Nesse sentido, obviamente é crédito do patrimônio de afetação o preço de venda das unidades para os adquirentes. Esse crédito de ordinário deve ser pago ao incorporador no prazo pactuado sob pena de incidirem juros e multa moratória. Todavia, esse mesmo crédito pode ser transferido pelo incorporador como meio de antecipar receita (que se espera seja aplicada na obra), fazendo com ele cessão fiduciária. Para tal hipótese, dispõe o art. 31-A, § 4º, que, “No caso de cessão, plena ou fiduciária, de direitos creditórios oriundos da comercialização das unidades imobiliárias componentes da incorporação, o produto da cessão também passará a integrar o patrimônio de afetação, observado o disposto no § 6o”. Se o incorporador consegue concluir a obra de maneira ideal, esse dispositivo não gera perplexidade alguma. A cessão fiduciária será e deverá ser honrada nos termos contratados com os adquirentes. Mas se o incorporador vier a falir ou abandonar a obra, certamente que os adquirentes terão direitos em decorrência desse inadimplemento, dentre os quais a exceção do contrato não cumprido. A dificuldade está em cobrar do patrimônio de afetação, certamente com encargos, um crédito cedido fiduciariamente por um inadimplente (o incorporador), imputando os ônus à conta dos adquirentes (parte contratante inocente) para que estes posteriormente sejam ressarcidos pelo incorporador (art. 31-A, § 2º). O mesmo se diga sobre o financiamento concedido por instituição financeira para conclusão da obra. Fracassando o incorporador, novamente se imputará aos adquirentes o pagamento do financiamento (que também se espera tenha sido aplicado na obra) com os encargos previstos no contrato firmado entre incorporador e instituição financeira. O § 18 do art. 31-F também estabelece que, optando por liquidar o patrimônio de afetação, após sua alienação os adquirentes devem quitar as obrigações trabalhistas a ele vinculadas. No entanto, não existe menção para o caso de os adquirentes optarem por concluir a obra, restando então certa dúvida sobre também haver nesta hipótese (retomada da obra), integração das obrigações trabalhistas no passivo do patrimônio. Destaque-se que a única referência a obrigações trabalhistas é essa constante do § 18 do art. 31-F. De todo modo, a interpretação leva a crer que sim, que há dita integração em caso de continuidade das obras, não só porque seria incongruente houvesse apenas para o caso de liquidação (§ 18 do art. 31-F), mas 130 também porque o raciocínio está em conformidade com a teoria da afetação patrimonial. Outrossim, a previsão de vinculação das obrigações trabalhistas ao patrimônio de afetação leva à necessidade de que os empregados, via de regra os que laboram no canteiro de obras, sejam separados por patrimônio de afetação. Não pode o incorporador utilizar a mão-de-obra de um empregado na construção de mais de um empreendimento. É o que sugere a teoria da afetação (segregação de riscos, obrigações e patrimônio). Ocorre, no entanto, que essa separação de empregados por patrimônio de afetação é absolutamente incompatível com a legislação trabalhista. Certamente que se o incorporador, após concluída determinada incorporação que estivesse afetada, vier a transferir o empregado para o canteiro de obra de outra incorporação também afetada, o eventual passivo trabalhista decorrente do período de trabalho no patrimônio anterior acarretará consequências para o próximo. Logo, não existe possibilidade de separação absoluta do passivo trabalhista, salvo se a cada obra encerrada o incorporador demitir todos os empregados e contratar novos, diversos dos primeiros, nas futuras obras que vier a iniciar. Também se deve considerar o risco do acidente de trabalho, acentuado na construção civil, cujo ressarcimento passa à responsabilidade do patrimônio de afetação, podendo atingir somas consideráveis. Os riscos das obrigações trabalhistas correm contra os adquirentes. E certamente existirão porque incorporador que vem a falir, paralisa ou retarda obra, dificilmente está quite com seus empregados, isto sem considerar o passivo trabalhista oculto, de difícil visualização, que só se apresenta ao término da relação empregatícia com a propositura de uma reclamatória. A maneira como a questão laboral foi tratada pela Lei 10.931/2004 deixou muito a desejar pondo a descoberto os adquirentes. O tema mereceria tratamento mais detalhado de modo a que se impusesse com modificações explícitas também para o Direito do Trabalho como forma de conferir maior segurança às partes. O mesmo § 1º do art. 31-F dispõe que os adquirentes também devem quitar as obrigações tributárias e previdenciárias vinculadas ao patrimônio de afetação. Sobre o tema dispõe também no § 20 que 131 Ficam excluídas da responsabilidade dos adquirentes as obrigações relativas, de maneira direta ou indireta, ao imposto de renda e à contribuição social sobre o lucro, devidas pela pessoa jurídica do incorporador, inclusive por equiparação, bem como as obrigações oriundas de outras atividades do incorporador não relacionadas diretamente com as incorporações objeto de afetação. Ocorre, todavia, que a conjugação desses dispositivos é incompatível com os arts. 1º a 11 da Lei 10.931/2004. Com efeito, estes dispositivos criaram o Regime Especial de Tributação-RET para os patrimônios de afetação, com adesão facultativa, tributando-os de maneira destacada do patrimônio geral do incorporador mediante alíquota de 7% sobre base de cálculo única consistente na receita mensal do empreendimento, representando pagamento único para Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas-IRPJ, Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público-PIS/PASEP, Contribuição Social sobre o Lucro Líquido-CSLL e Contribuição para Financiamento da Seguridade SocialCOFINS. Assim, se o incorporador aderiu ao Regime Especial de Tributação-RET, em caso de falência, atraso ou retardamento da obra, os adquirentes liquidam o patrimônio de afetação ou concluem a obra e, em qualquer dos casos, haverão de pagar o tributo devido pela adesão ao RET, calculado à taxa de 7% sobre as receitas auferidas porém não recolhidas pelo incorporador. No entanto, se o incorporador não optou pelo RET, a tributação que existirá será sobre o patrimônio geral do incorporador. Logo, pelo disposto no inciso I, § 18, art. 31-F, não haverá tributo vinculado “ao respectivo patrimônio de afetação”. A este argumento alia-se o § 20 ao estabelecer que os adquirentes não são obrigados a pagar os tributos decorrentes do patrimônio geral do incorporador. Ainda tratando sobre o que se possa considerar como “obrigações” e “encargos” relativos à incorporação afetada, dúvidas maiores surgem quando se analisa a questão contábil do patrimônio de afetação. Neste sentido, questiona-se se também seria obrigação do patrimônio eventuais dívidas dolosamente contabilizadas e dívidas omitidas de sua contabilidade. Com efeito, optando por concluir a obra e chamando à aplicação o disposto no § 11 do art. 31-F, os adquirentes podem ser surpreendidos com credores não mencionados na contabilidade. A esse pequeno catálogo de problemas que só agravam a posição dos adquirentes outros ainda se somam. Na maioria esmagadora dos casos em que 132 decidem concluir um edifício em razão do inadimplemento do incorporador, os adquirentes se veem obrigados a aplicar na obra mais recursos do que aqueles que haviam pactuado no contrato de compra e venda firmado com o incorporador. A obra consome mais do que seu custo projetado. É ingênua a suposição de que esse fato não se repetirá tão-somente porque adotado o regime de afetação patrimonial sob fiscalização contábil de um agente financeiro ou de uma Comissão de Representantes. O propósito da afetação patrimonial é este. É um propósito ético e legal. Discorrendo sobre a questão do limite de recursos (ou sua falta) que devem ser aportados pelos adquirentes que assumem a conclusão da obra, discorre MELHIM NAMEM CHALHUB160 explicando que: O fato de o aporte de recursos dos adquirentes estar limitado ao valor contratado para a aquisição das suas unidades não significa que este devem, necessariamente, interromper o aporte uma vez que atingido esse valor; podem e, conforme as circunstâncias, talvez devam os adquirentes continuar aportando recursos além daquele limite, se julgarem conveniente a conclusão da obra; o limite de responsabilidade dos adquirentes apenas indica que o quantum do aporte que exceder o valor contratado para a aquisição poderá ser ressarcido pelo incorporador, malgrado as dificuldades de obtenção de ressarcimento em caso de falência. Atualmente, pelo contido no § 11 do art. 31-F, optado pela conclusão das obras, os adquirentes serão responsabilizados perante uma plêiade de credores do patrimônio de afetação, que lhes cobrarão responsabilidades que não existia no regime originalmente previsto na LCI. Indubitavelmente, o maior favorecido com o surgimento da afetação foram as instituições financeiras, que por meio dela ficaram imunes à Súmula 308 do STJ, que é anterior à Lei 10.931/2004 (§ 3º do art. 31-A; art. 31-E, I; § 18, II, do art. 31-F). Além da garantia real, os agentes financeiros passaram a contar com a garantia pessoal de liquidação de seus créditos mediante esforço dos adquirentes (§ 11 do art. 31-F; § 4º do art. 31-A; §§ 12, IV, e 15 do art. 31-F), doravante devedores subsidiários das dívidas contraídas pelo incorporador para a construção da obra ainda que, teoricamente, utilizadas com outras finalidades (“desvio de recursos”). Por fim, também se afastou das instituições financeiras a jurisprudência que vinha se formando no sentido de responsabilizá-las pela qualidade e segurança das obras (§ 12 do art. 31-A; § 1º do art. 31-C). 160 CHALHUB, Melhim Namem. Das incorporações. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar, 2003, p. 118. 133 Tanto é correto dizer que o maior beneficiado foram as instituições financeiras que apenas se têm utilizado o patrimônio de afetação (é facultativo a “critério” do incorporador – art. 31-A, caput) nas incorporações em que haja financiamento bancário161. Quer dizer, são as instituições financeiras que têm exigido a afetação, não os incorporadores nem os consumidores (estes nem imaginam que ela exista). Compartilhando do entendimento sobre o agravamento da posição dos adquirentes, NÉLSON LUIZ GUEDES FERREIRA PINTO162 assim se posicionou quando escreveu ao tempo da Medida Provisória 2.221/2001: A lei 4.591/64 sempre previu a proteção coletiva dos adquirentes no caso de fracasso do incorporador, por atraso injustificado, paralisação de obras ou falência. Esse direito materializa-se, através de decisão assemblear, vinculativa para a maioria, de destituir o incorporador e prosseguir nas obras, com ou sem um novo incorporador, o que se faz sem prejuízo do direito de pleitear perdas e danos do incorporador destituído (artigos 34, III e VI e 49, da lei 4.591/64 e artigo 43, da lei 7.661/45). Na hipótese destituição, o patrimônio era na prática destacado, e os adquirentes somente respondiam pelo débitos previdenciários, necessários à obtenção de certidão negativa de débito a ser averbada com a baixa da construção, além do IPTU não pago. As próprias hipotecas em favor de bancos vinham sendo questionadas, ultimamente, quanto à sua oponibilidade aos compradores. Com a instituição do patrimônio de afetação, as normas previstas para as hipóteses de fracasso do incorporador diferem das anteriores, com vantagens e desvantagens para os adquirentes. [...] 161 Conforme notícia veiculada pela Câmara Brasileira da Indústria da Construção-CBIC em 15.01.2007, até o ano de 2006, ou seja, passados mais cinco anos desde a edição da MP 2.221/2001, em todo o país apenas para 90 empreendimentos fora aplicado o regime de afetação, em geral pela presença de interesse de instituição financeira, verbis: “Só 90 empreendimentos imobiliários em todo o país adotaram o patrimônio de afetação em 2006, o equivalente a 20% dos que tiveram financiamento da caderneta de poupança para construção de imóveis residenciais. A adesão das construtoras a esse regime opcional de segregação contábil -criado para proteger pessoas que compram e bancos que financiam moradia na planta - ainda está está longe da pretendida pelas instituições financeiras. Mas, vem crescendo desde o primeiro ano de sua efetiva utilização, em 2005, quando foi de apenas 12%. Essa foi a conclusão a que chegou o vice-presidente da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), José Carlos Martins, ao confrontar dados da Secretaria da Receita Federal (SRF) com números do Banco Central sobre operações do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE, cuja fonte é a caderneta) com as construtoras. Embora lenta, a evolução está dentro do esperado tanto pela CBIC quanto pela Abecip, associação que representa as instituições financeiras com carteira de crédito imobiliário. Para os bancos, o cenário ideal seria uma adesão de 100%, reconhece o diretor geral da Abecip, Osvaldo Fonseca, sabendo que isso ainda vai demorar. "O patrimônio de afetação exige uma profunda mudança de cultura das construtoras. Se fosse fácil, seria obrigatório", diz Fonseca. Ele acredita que a exigência do regime em todos os empreendimentos financiados pelo sistema bancário só será possível a partir de 2014, quando completará dez anos a lei atualmente em vigor.”. (CÂMARA Brasileira da Indústria da construção. Segregação contábil atinge 20% do empreendimentos. Disponível em: < http://www.cbic.org.br/mostraPagina.asp?codServico=1491&codPagina=7930>. Acesso em 20.10.2009). 162 O contrato imobiliário e a legislação tutelar do consumo. Coordenação: THEODORO JÚNIOR, Humberto. 1ª ed., Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002, pp. 318-320. 134 A grande desvantagem da destituição do incorporador, no caso de patrimônio de afetação e decisão assemblear pela continuidade das obras, consiste na responsabilidade solidária dos adquirentes pela liquidação de débitos trabalhistas, previdenciários e tributário do referido patrimônio (art. 30C, § 3º), bem como pela sub-rogação em todas as demais obrigações e encargos do patrimônio afetado, inclusive do financiamento (artigo 30C, § 7º). Essas são algumas críticas. Outras aqui poderiam ser incorporadas mas para evitar de repeti-las, foram deixadas inseridas na parte que trata do inadimplemento na incorporação imobiliária. 135 IV INADIMPLEMENTO NA INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA IV.1 INADIMPLEMENTO NA INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA. DIVERSIDADE DE CONSEQUÊNCIAS Em geral, o inadimplemento contratual abre a possibilidade de pedir-se a resolução do contrato com perdas e danos ou sua execução forçada, colocando as partes da relação contratual em pólos opostos. Assim também se dá na incorporação imobiliária, a depender do regime de incorporação adotado, quando um determinado consumidor descumpre o contrato firmado com o incorporador ou com o construtor, e vice-versa. No entanto, considerada a multiplicidade de interesses presentes na incorporação imobiliária, unidas entre si ainda pela função social da atividade (conclusão da obra), quando o inadimplente for o incorporador, soluções diversas se abrem de modo a que se alcance o desiderato inicial dos consumidores, de adquirir um imóvel. Pelos mesmos motivos, quando o inadimplente for o consumidor regras especiais permitem procedimentos diferenciados para a execução do contrato. Essas particularidades é que serão abordadas nos itens que se seguem. IV.2 O ART. 53 DO CDC E O INADIMPLEMENTO DOS ADQUIRENTES FRENTE AO INCORPORADOR Um dos meios de que se valem os incorporadores para alavancar os recursos necessários à construção de um edifício consiste em combinar recursos de caixa do próprio incorporador com recursos provenientes das vendas antecipadas dos imóveis, feitas ainda no curso da obra (vendas de “imóvel na planta”). Esse sistema de financiamento da construção é previsto e autorizado pela LCI, notadamente em razão da insuficiência de recursos por parte dos incorporadores brasileiros, indo além, autoriza até mesmo que o incorporador construa sobre terreno alheio com base em uma procuração. Tanto assim que a própria LCI prevê, como já referido, a 136 possibilidade de o incorporador desistir dos contratos firmados se acaso perceber que o volume de vendas “na planta” não será suficiente para obter os recursos necessários para que a construção seja concluída no prazo previsto. São opções adotadas pelo legislador com o intuito de fomentar a atividade, franqueando sua prática a um maior número de empresários que, não obstante não disponham de todos os recursos necessários, são responsáveis e tecnicamente capazes. Assim, considerado esse sistema de financiamento, a previsibilidade do fluxo de recursos decorrentes das vendas realizadas pelo incorporador é fator decisivo para o sucesso da incorporação ou, quando menos, para o lucro do incorporador. Sem esses recursos e sem caixa suficiente, para concluir a incorporação o incorporador terá que se socorrer de linhas de crédito que lhe gerarão encargos financeiros. Evidente então que a manutenção dos contratos de compra e venda de imóveis “na planta” é condição para que a atividade empresarial do incorporador tenha sucesso e, de consequência, para que a função social da atividade seja alcançada permitindo a conclusão da obra em prol dos consumidores e todos os demais partícipes que se relacionam direta ou indiretamente pela rede contratual que se forma na incorporação. Não obstante tais ponderações, significativa parcela da jurisprudência passou a interpretar o art. 53 do CDC como se fosse lícito ao consumidor desistir do contrato de compra e venda firmado sem que haja culpa do incorporador, até mesmo depois que o consumidor tenha recebido a posse do imóvel já concluído. Segundo essa jurisprudência, mesmo que inadimplente, o consumidor pode desistir do contrato e ainda obter devolução de parte considerável dos valores que já tenha pago163. A simples “insuportabilidade das prestações”, mesmo que não haja excesso de cobrança, tem justificado essa desistência164. 163 Em geral, a jurisprudência tem permitido que do total pago pelo consumidor seja retido pelo incorporador um percentual entre 20% e 30% como forma de indenizar seus prejuízos, indenização esta que, diga-se de passagem, tem sido arbitrada sem atenção às especificidades do caso concreto, como se todo e qualquer prejuízo suportado pelo incorporador fosse indenizado pela retenção daquele percentual de 20% a 30%. Evidente que há casos em que a fixação desse percentual representará uma retenção superior ao prejuízo causado ao incorporador e, em outras, inferior. 164 Neste sentido é que se firmou a orientação do STJ no REsp 1056704/MA que “[...] o promitente-comprador, por motivo de dificuldade financeira, pode ajuizar ação de rescisão contratual e, objetivando, também reaver o reembolso dos valores vertidos”. 137 Ocorre, todavia, que tal jurisprudência implica rejeitar o próprio significado de contrato como vínculo que une as partes e torna obrigatório o cumprimento das obrigações sob pena de execução ou de pedido de rescisão à disposição sempre do contratante inocente (no caso o incorporador – art. 475 do CC/02), exceto, é claro, naqueles casos previstos em lei como, v. g., a onerosidade excessiva superveniente. A questão passo ao largo de uma justificativa dos consumidores da qual se possa dizer embasada em boa-fé, considerando, conforme anota PAULO NALIN, que boa-fé não se presta para frustrar “legítimas expectativas contratuais formuladas na esfera jurídica de qualquer dos contratantes”165. Em que pese a relativização da força obrigatória do contrato, permanece hígido o dever de cumprimento das obrigações e a necessidade de imputação da culpa sob pena de tornar sem efeito as expectativas criadas em um dos contratantes em razão das declarações de vontade feitas pelo outro. A função social do contrato, que no caso consiste em colaborar para que o empreendimento seja concluído em benefício dos consumidores adquirentes, da atividade do incorporador e de toda a rede contratual que se forma no entorno da incorporação, também é desrespeitada. Na medida em que se faculta a um comprador desistir do contrato sem imputação de culpa à parte contrária, confere-se tal direito a todos os demais, criando assim descompasso no fluxo de recursos que frustra a expectativa projetada pelo incorporador. Como resultado possível têm-se a paralisação ou atraso da obra, causando prejuízos a todos os contratantes, especialmente àqueles adimplentes. A função social do contrato de compra e venda de unidade imobiliária em construção só será atendida se acaso o funcionamento do negócio ocorrer com uma segurança jurídica mínima. Por isso, o fundamento econômico e jurídico do contrato, quando este for firmado em conformidade com a lei, deve ser respeitado166. A pacta sunt servanda não pode ser relativizada ao ponto de permitir o fim do vínculo em razão de qualquer dificuldade financeira particular do consumidor. Com efeito, se as cláusulas contratuais não estabelecem prestações desproporcionais e se não há desproporcionalidade das prestações em decorrência de onerosidade excessiva 165 NALIN, Paulo Roberto Ribeiro. Ética e boa-fé no adimplemento contratual. In FACHIN, Luiz Edson (coord.). Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 195. 166 Evidente que não se defende, em nome do ato jurídico perfeito, os abusos que contra os consumidores são praticados no mercado de consumo. 138 superveniente (art. 6º, V, do CDC), o contrato continua a vincular as partes. A propósito desse assunto o enunciado nº 22 das Jornadas de Direito Civil do STJ conclui que “A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral, que reforça o princípio da conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas”. Na realidade, a correta interpretação do art. 53 do CDC sequer confere direito de ação ao inadimplente para que peça a rescisão do vínculo invocando como causa de pedir seu próprio inadimplemento. O dispositivo de fato proíbe que o fornecedor se aproprie de todos os valores pagos pelo consumidor quando do desfazimento do contrato, mas só confere pretensão jurídica para rescisão contratual ao contratante inocente. Comentando o art. 53 do CDC, NÉLSON LUIZ GUEDES FERREIRA PINTO167 explica com clareza seu real sentido e acusa a jurisprudência de paternalista: A crise do contrato de incorporação passou a ser extremamente grave, com o rompimento de seu equilíbrio e funcionalidade, quando expressiva corrente jurisprudencial passou a ignorar os princípios da culpa contratual e da irretratabilidade das promessas de compra e venda, prestigiados inclusive no Código de Defesa do Consumidor, interpretando as avessas o artigo 53, da Lei 8.079/90, para conceder ao comprador inadimplente o direito de arrependimento ou resilição, diante de áleas ordinárias, como valorização ou desvalorização do imóvel ou perda de renda ou salário. Examinado-se o citado artigo 53, verifica-se que o sujeito da oração é sem dívida o credor, o fundamento que enseja o pedido é o inadimplemento do comprador, a pretensão é o pedido de retomada do bem e a conseqüência é a devolução de parte do preço pago. Assim sendo, a lei não contempla rescisão do contrato quando não há iniciativa do incorporador em pedir a retomada do imóvel do inadimplente. Negando esse direito de resilição por parte do inadimplente, há forte e expressiva corrente jurisprudencial que não se deixa levar pelo paternalismo e pelo subjetivismo do direito alternativo, que busca fazer "justiça social" através de decisões judiciais. Nesse sentido temos, entre outros, os seguintes julgados: Resp. 61.190/SP, relator ministro Carlos Alberto Menezes Direto; Resp 59.870/SP, relator ministro Ari Pargendler; TAMG, apelação 234.121-3, relator juiz Caetano Levi Lopes [...] 167 PINTO, Nélson Luiz Guedes Ferreira. Contrato de incorporação imobiliária. In THEODORO JÚNIOR, Humberto (Coord). O contrato imobiliário e a legislação tutelar do consumo. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002, pp. 294-295, grifos e negritos do autor. 139 No mesmo sentido, o HUMBERTO THEODORO JUNIOR168, para quem tais decisões ferem a ética e a boa-fé: O art. 53 do CDC, porém, não veio inovar em matéria de legitimidade de partes para provocar a dissolução do contrato bilateral. As regras básicas, para tanto, continuam sendo as do Código Civil. O dispositivo em questão nada mais fez do que sintetizar, em matéria de resolução contratual por inadimplemento do consumidor na aquisição de bens imóveis e moveis por alienação fiduciária, os princípios da ética, boa-fé, equidade e equilíbrio que presidem as relações obrigacionais, de molde a garantir-se a compensação do fornecedor que aquela não deu causa, como também prestações pagas. [...] A boa-fé, valorizada pelo CDC, obviamente não pode servir de pretexto para anular a força do contrato, indispensável à ideologia do regime econômico adotado constitucionalmente. Admitir por outro lado, que o infrator do contrato, ou seja, a parte inadimplente, venha a usar sua própria infração como justificativa para pleitear a rescisão do contrato importa simplesmente anular a maior conquista da teoria do direito contratual, que é a boa-fé, tão ressaltada, entre nós, pelo próprio Código de Defesa do Consumidor. Segundo princípio fundamental dos contratos bilaterais, aquele que não cumpre a prestação a seu cargo não pode exigir o cumprimento da prestação do outro contratante; e aquele que, tendo cumprido a prestação que lhe competia, se vê prejudicado pelo inadimplemento, tem a opção entre executar a prestação da parte faltosa e romper o contrato com perdas e danos. Jamais se poderá, em respeito ao principio da boa-fé, aceitar que o responsável pela violação do contrato se torne titular do direito potestativo de impor sua vontade a parte inocente, forçando-a rescisão do negocio jurídico. O art. 421 do CC/02 dispõe que “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. Muito se invoca esse dispositivo mediante deturpação de seu sentido, não raras vezes concluindo que, no mercado de consumo, há função social quando se decide em favor do consumidor porque é a parte mais fraca da relação quem necessita de proteção. Altera-se até mesmo a equação econômica do contrato redistribuindo seus valores entre as partes a fim de conferir “justiça” à decisão em prol do consumidor. O art. 421 do CC/02, que em verdade nada traz de novo em relação ao CC/16, apenas deixa explícito que o contrato é um meio para atingir um determinado fim (ele tem uma função). Esse fim, essa função, não é algo imanente ao contrato, mas ao regime de produção em que ele está inserido. Assim, a função de um contrato no regime socialista pode ser a realização de justiça distributiva. No 168 THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato imobiliário e legislação tutelar do consumo. In THEODORO JÚNIOR, Humberto (coord). O contrato imobiliário e a legislação tutelar de consumo. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002, pp. 99-102. 140 entanto, no regime capitalista a função social do contrato é meio de desenvolvimento da atividade produtiva do particular, é instrumento de trabalho, é meio para circulação de riqueza, para realização de trocas justas e também meio de acesso ao mercado de consumo. Funcionalizar o contrato para atender um objetivo (fazer justiça social, distributiva) que ele não tem em determinado regime econômico (capitalista), significa ir contra sua própria existência, frustrando suas potencialidades econômica e social. O efeito causado pelo desfazimento imotivado do contrato consiste, em última análise, em prejudicar o próprio consumidor. A suposição de que tais decisões judiciais melhoram sua situação padece de visão coletivista porque apenas vê os consumidores envolvidos no litígio de que resulta a decisão judicial, estes sim os reais favorecidos. Para o bom funcionamento do mercado se fazem necessárias regras claras e interpretação razoável que não deturpe os direitos e obrigações das partes, condizentes com a função social dos contratos. A necessidade de avaliação de riscos para fins de projeção de lucros é um fato determinante na decisão sobre em que e como trabalhar. Se não há objetividade nessa avaliação, teoricamente o risco pode ser adotado como máximo. E quanto maior o risco para o mercado menos mercado há. Não obstante a fundamentação das decisões que autorizam a desistência imotivada do contrato, o que de mais contundente há para se dizer contra elas talvez seja o fato de não refletirem a noção que o cidadão comum tem acerca da ideia de contrato. Essa noção não é algo que seja fruto de desinformação do leigo, mas sim decorrente do senso comum que inspira as mais básicas regras de direito. Mais que isso, é uma noção que se depreende da prática do dia-a-dia, que impõe a conclusão de que não se pode desistir dos contratos por ato de mera potestatividade. Esse cidadão comum, que se guia pelas regras da experiência que inspiram o direito e que nele se encontram positivadas, deve ter seus direitos respeitados em nome da boa-fé e da segurança jurídica. Ele é a figura ideal de um honesto e cuidadoso pai de família, que se toma como modelo de comportamento nas relações jurídicas. É, enfim, o homem adimplente, o cidadão que atua em respeito ao direito alheio e exige o respeito ao seu, que tem um padrão de comportamento objetivamente visível no mundo jurídico e sensível a qualquer razão. Esse homem é aquele que a doutrina 141 usualmente designa de homo medius. Ao levar em conta os fatos da vida, o juiz deve encarar a qualquer um, nas suas negociações habituais da vida, como o bonus pater familias, o homo diligens, isto é, quem, como tal, é homem diligente e zeloso. A interpretação jurisprudencial dominante acerca do art. 53 do CDC, todavia, não parece razoável a esse homem médio, na medida em que desafia o senso comum que confere uma determinada boa-fé a quem contrata. E na medida em que esse senso comum encontra-se positivado (garantia mínima de preservação dos contratos), certamente também há desrespeito à segurança jurídica em seu mais comezinho significado, qual seja, a impossibilidade de o contratante inadimplente desistir do pacto passando os ônus de seu insucesso ao contratante inocente. Falando-se no senso comum desse homem médio relativamente a questões patrimoniais, vê-se aí a questão da legitimidade da lei e da ilegitimidade das decisões judiciais. O que seja legitimo pode ter significado diferente para um mesmo fato, conforme o tempo, o lugar e, especialmente, o regime de produção adotado pela sociedade (capitalista, socialista, anarquista, corporativista, artesanal ou feudalista). O caráter de um direito patrimonial em razão de sua (i)legitimidade é aferido segundo os padrões de funcionalidade em que a economia está inserida. O mercado é um fato social169 que integra a própria estrutura e o modo de ser da sociedade. Não se trata de indagar qual é o melhor regime de produção, mas sim a noção de legitimidade que de cada regime brota. Tratando desta questão, EROS ROBERTO GRAU170 identifica a legitimidade como sendo o “direito pressuposto”, fruto de padrões histórico-culturais e do regime de produção adotados na sociedade, o qual informa a lei (o “direito posto”): 169 Sobre o mercado como fato social, escreve Luciano Benetti Timm: “Em uma perspectiva de análise econômica do Direito, não se rejeita que existam interesses coletivos dignos de tutela nas relações contratuais. Contudo a coletividade é identificável na estrutura do mercado que está por trás do contrato que está sendo celebrado e do processo judicial relacionado ao litígio a ele pertinente (em verdade, a própria Lei 8.884/94 reconhece ser o mercado protegido por ela um interesse difuso ou coletivo digno de tutela). Nesse sentido, o todo em um contrato de financiamento habitacional é representado pela cadeia ou rede de mutuários (e potenciais mutuários), que dependem do cumprimento do contrato daquele indivíduo para alimentar o sistema financeiro habitacional, viabilizando novos financiamentos a quem precisa. Assim, se houver quebra na cadeia, com inadimplementos contratuais, quem sai perdendo é a coletividade (que ficará sem recursos e acabará pagando um juro maior). Até porque, conceitualmente e mesmo na vida real, os bancos não emprestam o seu dinheiro, mas uma moeda captada no mercado”. ( Direito, economia e a função social do contrato: em busca dos verdadeiros interesses coletivos protegíveis no mercado do crédito. <http://www.viadesignlabs.com/lawandeconomics/Funcao_Social_Contrato.pdf>, acessado em 04/12/2007). 170 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. São Paulo: Malheiros Editores, 5ª Ed., 2003, pp. 88-92. 142 A legitimidade de que ora cuido, pois – legitimidade que não se identifica com legalidade; legitimidade do direito posto –, é produto da autoridade, entendida esta como decorrente da captação de padrões histórico-culturais, e não da captação de qualquer vontade ou conjunto de vontades (...). Impõe-se superarmos, no entanto, qualquer idealismo que se pretende sustentar desde minha afirmação inicial, neste capítulo. É que a necessidade de revelação (captação) dos padrões históricoculturais da sociedade induz que dotado de autoridade é o legislador capaz de reconhecer as aspirações sociais e o interesse social, onde esboçada a idéia de uma sociedade ideal. O que importa é podermos definir quando e como o legislador exercita autoridade. A questão resolve-se no plano da realidade histórico-cultural e do estado de atuação das forças materiais produtivas, consideradas, ainda, as noções de direito pressuposto e de direito posto. [...] Diremos, então, que um direito posto é legítimo quando permite o pleno desenvolvimento das forças materiais produtivas, em determinada sociedade; ilegítimo, quando constitui entrave ao pleno desenvolvimento dessas forças, ocasião em que se instala um época de revolução social. [...] Minha postulação, que afasta qualquer idealismo, permite-nos verificar que, inúmeras vezes, um direito posto legítimo é precisamente o que instumenta dominação de classe e justifica a titularidade do poder por essa mesma classe. Assim, as sociedades feudais veiculavam direitos legítimos enquanto esses direitos, ainda que instrumentando dominação de classe e justificação do poder, permitiram o pleno desenvolvimento das forças materiais produtivas feudais. E assim por diante: a ilegitimidade de um direito se manifesta quando se instalam, em todas as suas possíveis nuanças, movimentos e épocas de revolução social. Com isso, creio, desmitificamos a legitimidade. Os padrões culturais e as aspirações de cada sociedade estão informados por condições históricas. Assim, houve uma legitimidade feudal, como há uma legitimidade capitalista e se poderá falar (ainda) de uma legitimidade socialista. Legítimo, assim – direito de outro modo -, é o direito posto que permite o pleno desenvolvimento das forças materiais produtivas. Os padrões culturais e as aspirações que estão em jogo, caracterizantes ou não caracterizantes da legitimidade de um direito, são os que afirmam ou negam o estado de coexistência dos vários modos de produção que coexistem na sociedade ao qual é aplicado. Em conclusão, a desistência dos contratos de compra e venda com base no art. 53 do CDC não encontra amparo em nível constitucional e infraconstitucional, atentando contra a função social dos contratos, contra a boa-fé, além de desvirtuar o sistema de incorporação imobiliária quando visto como rede contratual. 143 IV.3 INADIMPLEMENTO DOS ADQUIRENTES E A EXECUÇÃO EXTRAJUDICIAL (ART. 63 DA LCI). CONSTITUCIONALIDADE No tocante à forma de realizar o custeio da construção têm-se que ela pode se dar por três meios conforme se trate: (a) incorporação a prazo e preço certos ou por preço fechado (arts. 41 e 43); (b) incorporação com construção a preço de custo ou por administração (art. 58); e (c) incorporação com construção por empreitada a preço reajustável ou fixo (art. 55). No regime de construção a prazo e preço certos, conhecido no jargão comercial como “a preço fechado”, como visto, os compradores pactuam com o incorporador um preço que envolve a fração ideal do terreno e o custo da construção da obra, cujo data de conclusão é assumida por conta e risco do incorporador. Assim, o incorporador vende a fração e se compromete a entregar a unidade construída, sendo indiferente para os compradores se os custos efetivos forem superiores ou inferiores à soma dos preços de venda de todas as unidades alienadas pelo incorporador. Neste regime de construção, o construtor poderá ser o próprio incorporador ou um terceiro por ele contratado. O preço da compra e venda firmada com os adquirentes pode ser pactuado com ou sem correção monetária. Já na incorporação a preço de custo ou por administração, os adquirentes são compradores apenas de uma fração ideal do terreno. O custo efetivo da construção que se levantará é de responsabilidade de quem compra dita fração, ou seja, são os compradores quem, diretamente, paga pela construção e arca com os riscos de elevação do preço final da construção. Lançada a incorporação, até que a fração ideal de terreno seja vendida, é do incorporador a responsabilidade pelo pagamento do custo da construção que lhe diga respeito (§ 6º do art. 35 e § 5º do art. 55). Uma vez alienada a fração pelo preço pedido pelo incorporador, seu adquirente assumirá o custo remanescente da construção. Assim, o incorporador segue pagando o custo da construção relativa às frações que não comercializar, até que todas estejam comercializadas, quando então só os recursos dos compradores é que verterão para o pagamento da construção. O próprio incorporador pode figurar como construtor, firmado contrato de construção à parte. No regime de preço de custo não se imputa ao incorporador a responsabilidade por demora na conclusão da obra ocasionada 144 pelo inadimplemento dos adquirentes, que neste caso são condôminos da construção, responsáveis entre si. Já no regime de empreitada, o incorporador vende aos interessados exclusivamente as frações ideais de terreno, que depois passam a pagar o custo da construção previamente pactuado em um contrato de empreitada. Tal qual no regime de preço de custo, até que a fração ideal seja vendida, a responsabilidade pelo pagamento do custo da construção que lhe diga respeito é do incorporador (§ 6º do art. 35 e § 5º do art. 55). O custeio da construção é dos compradores, mas ele não é sujeito a alterações como se dá no regime de preço de custo, salvo no tocante à correção monetária. O empreiteiro poderá ser o próprio incorporador ou um terceiro. A lei também permite que a empreitada seja contratada por preço fixo ou com correção monetária. Como se vê, os recursos necessários à construção dos edifícios, direta ou indiretamente, provêm dos adquirentes. São eles quem paga o custo das construções levadas a cabo sob os regimes de empreitada e de administração (preço de custo). Já nas incorporações a preço e prazo certos (preço fechado), quem assume os riscos de concluir a obra é o incorporador, mas indiretamente também são os compradores que, pelas mãos daquele, canalizam recursos para a construção. Em qualquer dos casos, sem que os adquirentes vertam recursos para custear a obra muito provavelmente ela entrará em colapso, retardando ou paralisando. Considerada essa possibilidade, importa analisar um dos instrumentos que lei põe à disposição das partes com a finalidade de solucionar a inadimplência. Trata-se do procedimento de cobrança previsto no art. 63 da LCI, conhecido por “execução extrajudicial” ou “leilão extrajudicial”. Sem passar pelo crivo do Judiciário, esse procedimento de cobrança torna viável a perda de propriedade de bem imóvel (fração ideal de terreno com a eventual construção acrescida) e móvel (direito de crédito), decorrentes da relação jurídica que mantém o inadimplente vinculado à edificação, ao incorporador e aos demais adquirentes. Sua adoção pode se dar em qualquer espécie de incorporação (por fechado ou com construção a preço de custo e por empreitada). O que substancialmente se altera é legitimidade ativa para recebimento do crédito reclamado. 145 Assim, quando o pagamento construção é rateado diretamente entre os adquirentes das unidades (regimes de empreitada e a preço de custo), dependendo que constar previsto no contrato de construção e na convenção do condomínio construtivo (se houver), o procedimento de cobrança do art. 63 da LCI poderá ser deflagrado pela comissão de representantes, composta por pessoas eleitas dentre os adquirentes (arts. 49 e 50), ou pelo construtor, conforme autoriza o caput daquele artigo combinado com os incisos VI e VII do art. 1º da Lei 4.864/65171. Quando houver previsão de que o débito do inadimplente seja cobrado pela Comissão de Representantes, após recebido o valor, ela deverá tomar as providências para que o crédito do construtor seja satisfeito. Na mesma linha de raciocínio, o art. 52 da LCI prevê que o adquirente inadimplente não receberá a posse do imóvel enquanto não quitar o preço da construção que lhe toca, caso em que permanecerá retida com o construtor ou com o condomínio construtivo, conforme o caso. Em qualquer dos casos, o construtor ou a comissão de representantes deverá remeter notificação ao inadimplente para que este purgue a mora no prazo de 10 (dez) dias sob pena de sua fração ideal de terreno e respectiva construção, com todos os direitos e obrigações com ela conexos, serem vendidas em leilão público. Em havendo arrematação no leilão, devem ser observadas as regras de imputação de pagamento previstas nos §§ 2º e 4º do art. 63. Quitado o débito principal, despesas, honorários e multa, o que sobejar do valor pago será entregue ao devedor, à semelhança do que se dá nas execuções judiciais. Pouco usual, mas nem por isso ilegal ou incompatível com o CDC considerado o caráter de lex specialis da LCI, nas construções sob o regime de preço fechado também pode ser adotado o procedimento de cobrança previsto no 171 “Art. 1º Sem prejuízo das disposições da Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964 os contratos que tiverem por objeto a venda ou a construção de habitações com pagamento a prazo poderão prever a correção monetária da dívida, com o conseqüente reajustamento das prestações mensais de amortização e juros, observadas as seguintes normas: (...) VI - A rescisão do contrato por inadimplemento do adquirente sòmente poderá ocorrer após o atraso de, no mínimo, 3 (três) meses do vencimento de qualquer obrigação contratual ou de 3 (três) prestações mensais, assegurado ao devedor o direito de purgar a mora dentro do prazo de 90 (noventa) dias, a contar da data do vencimento da obrigação não cumprida ou da primeira prestação não paga. VII - Nos casos de rescisão a que se refere o item anterior, o alienante poderá promover a transferência para terceiro dos direitos decorrentes do contrato, observadas, no que forem aplicáveis, as disposições dos §§ 1º a 8º do art. 63 da Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, ficando o alienante, para tal fim, investido dos podêres naqueles dispositivos conferidos à Comissão de Representantes”. 146 art. 63172. Para tanto, os incisos VI e VII do art. 1º da Lei 4.864/65, investem o incorporador dos mesmos poderes que têm as Comissões de Representantes para realização do procedimento de execução extrajudicial. Neste caso, todavia, tendo em conta que no regime de “preço fechado” (art. 43) é o incorporador quem responde pelo término da obra frente aos adquirentes e suporta com recursos próprios a insuficiência das vendas ou o inadimplemento de seus clientes, a ele é atribuída a legitimidade ativa para realizar a cobrança e para apropriar-se dos valores pagos a título de purgação da mora ou de arrematação. O procedimento de execução extrajudicial previsto no art. 63 é rápido e eficaz. Foi o meio encontrado pelo legislador para reduzir o tempo de recuperação do crédito. Diante da necessidade de estabilização do fluxo de entradas para pagamento da construção e atendimento do cronograma de execução da obra, de modo a não penalizar os adimplentes e toda a rede contratual que se forma em torno da edificação, a LCI demonstra preferência por este procedimento. Trata-se de opção pela coletividade em detrimento da obrigatoriedade de processamento pela via judicial a demandar maiores sacrifícios à parte inocente e maior dilatação de tempo em favor do devedor, prevalecendo o interesse coletivo representado no bom andamento da obra sem que impedir que o devedor questione a dívida judicialmente se assim o desejar. Determinadas relações exigem soluções processuais próprias ou até mesmo para-processuais, especializadas, sem as quais se compromete o direito material. Aspectos marcantes da modernidade, a velocidade e a eficiência são indispensáveis para que certas relações jurídicas atinjam seu escopo no tempo projetado de modo a evitar perda patrimonial. A opção em questão parece ser a que melhor atende ao interesse coletivo sem desrespeitar o direito fundamental à ampla defesa. A pergunta, que já se deixou antever linhas atrás, diz respeito à constitucionalidade da perda de propriedade pelo procedimento previsto no art. 63, considerada previsão de inafastabilidade da apreciação de lesão ou ameaça de lesão a direito pelo judiciário, do devido processo legal, contraditório e ampla defesa, previstos no art. 5º, XXXV, LIV e LV, da CF/88. Os princípios em que se traduzem esses incisos do art. 5º, estão intimamente ligados e coordenados entre si, podendo ser traduzidos todos eles como “direito ao 172 Cfr. CÂMARA, Hamilton Quirino, Falência do incorporador imobiliário: o caso Encol. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, pp. 66-68. 147 devido processo legal”173. Destrinchando-os, aí se têm, por alto, os princípios da proibição de autotutela, da inafastabilidade do controle jurisdicional, do contraditório e da ampla defesa. A incidência desses princípios se percebe com vigor diante de algum ato ou lei que impeça ou dificulte o direito de defesa. Daí que, considerada a possibilidade de perda de propriedade sem o devido processo legal pelo procedimento do art. 63 da LCI, a resposta acerca de sua constitucionalidade deve envolver todos os três incisos, em que pese a sugestão primeira que sobressai indicar que o desrespeito seria apenas do inciso LIV, segundo o qual “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. A discussão, aliás, não diz respeito apenas ao procedimento da LCI. Com efeito, guardadas as peculiaridades de cada procedimento, há modos semelhantes de cobrança de créditos pela via extrajudicial, com perda de propriedade (plena ou fiduciária), previstos em outros diplomas legais. Dentre eles têm-se a chamada “execução extrajudicial” de contratos de mútuos com garantia hipotecária vinculados ao Sistema Financeiro da Habitação, regulada pelo art. 29 e seguintes174 do Decreto-Lei 70/66. Nos contratos de alienação fiduciária de bens imóveis e móveis, a venda extrajudicial da coisa como forma de satisfação do direito do credor, também é prevista, respectivamente175, nos arts. 25 a 30 da Lei 9.514/97 e no art. 2º do 173 Neste sentido opina NÉLSON NERY JÚNIOR, para quem bastaria que a Constituição tivesse previsto que todos tem direito ao devido processo legal para que estivessem envolvidos todos os incisos XXXV, LIV e LV, em um só. (NERY JÚNIOR, Nélson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, p. 28). 174 Dispõem os arts. 31 e 32 do DL 70/66: “Art. 31. Vencida e não paga a dívida hipotecária, no todo ou em parte, o credor que houver preferido executála de acordo com este decreto-lei formalizará ao agente fiduciário a solicitação de execução da dívida, instruindo-a com os seguintes documentos: [...] Art. 32. Não acudindo o devedor à purgação do débito, o agente fiduciário estará de pleno direito autorizado a publicar editais e a efetuar no decurso dos 15 (quinze) dias imediatos, o primeiro público leilão do imóvel hipotecado. [...]”. 175 Lei 9.514/97: “Art. 26. Vencida e não paga, no todo ou em parte, a dívida e constituído em mora o fiduciante, consolidar-se-á, nos termos deste artigo, a propriedade do imóvel em nome do fiduciário. § 1º. Para os fins do disposto neste artigo, o fiduciante, ou seu representante legal ou procurador regularmente constituído, será intimado, a requerimento do fiduciário, pelo oficial do competente Registro de Imóveis, a satisfazer, no prazo de quinze dias, a prestação vencida e as que se vencerem até a data do pagamento, os juros convencionais, as penalidades e os demais encargos contratuais, os encargos legais, inclusive tributos, as contribuições condominiais imputáveis ao imóvel, além das despesas de cobrança e de intimação”. 148 Decreto-Lei 911/69. O mesmo se dá no CC/02 que, reafirmando o que já previa o CC/16, continua autorizando, por meio dos arts. 1.433, IV, e 1.436, que o credor pignoratício venda o bem empenhado para quitação de seu crédito176. Curiosamente, não se veem debates judiciais acerca da constitucionalidade do art. 63 da LCI, diferentemente do que se dá com procedimento de execução extrajudicial regulado pelo Decreto-Lei 70/66, de todos aqueles acima citados, o que mais se assemelha com o procedimento da LCI. Por isto, então, interessa colher entendimentos acerca deste Decreto-Lei. Sobre o DL 70/66 ficou conhecido o posicionamento do extinto Primeiro Tribunal de Alçada Cível do Estado de São Paulo, que chegou a editar uma súmula, a de número 39, por maioria de votos na Arguição de Inconstitucionalidade n. 493.349-9/01, julgada em 23/06/1994177. No mesmo sentido foi a posição firmada pelo extinto Tribunal de Alçada do Estado do Rio Grande do Sul no Incidente de Inconstitucionalidade na Apelação Cível n. 189040938, julgado em 01/06/1990. Há sérios argumentos por parte daqueles que sustentam a incompatibilidade das chamadas “execuções extrajudiciais” com a CF/88. Todavia, há dentre eles quem invoque argumentos de pouca pertinência, trazidos para o bojo da discussão de maneira forçosa, e ainda outros tanto demasiadamente apaixonados. Invocam-se, por exemplo, o princípio republicano para afirmar que todo o poder emana do povo e que como tal todos devem ser considerados iguais perante a lei (princípio da isonomia), ao passo, na contramão, a execução extrajudicial (no caso do DL 70/66) só é permitida “em favor de instituições financeiras”, além de remeter ao período da Ditadura Militar em nosso país. A alegação de existência de autotutela é citada com frequência, ao passo que, em sentido contrário, o Estado teria chamado para si, com exclusividade, o dever de solucionar os conflitos sociais por meio de processos judiciais. Argumenta-se também com meras citações Decreto-Lei 911/69: “Art. 2º. No caso de inadimplemento ou mora nas obrigações contratuais garantidas mediante alienação fiduciária, o proprietário fiduciário ou credor poderá vender a coisa a terceiros independentemente de leilão, hasta pública, avaliação prévia ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, salvo disposição expressa em contrário prevista no contrato, devendo aplicar o preço da venda no pagamento de seu crédito e das despesas decorrentes e entregar ao devedor o saldo apurado, se houver”. 176 177 O CC/16 também contava com essa previsão no art. 774, III, e no art. 802, V. Súmula 39 do extinto 1º TAC de São Paulo: “São inconstitucionais os artigos 30, parte final, e 31 a 38 do Decreto-lei nº 70 de 21.11.1966”. 149 conceituais, sem êxito na demonstração de conexão com o tema da constitucionalidade propriamente dita, os princípios da dignidade da pessoa humana, o direito à cidadania e o direito à habitação, querendo com isso supor que dignidade, cidadania e habitação são suficientes para evitar a cobrança de um crédito que, diga-se de passagem, na maioria esmagadora dos casos é composto por parcela incontroversa e significativa. Não obstante, a constitucionalidade se faz presente. E neste sentido é que a jurisprudência majoritária se formou, inclusive a do STF. De início deve-se assentar que o direito nem sempre veda a autotela. Razões de ordem prática e equidade recomendam que em certos casos ela seja exercida como, por exemplo, na legítima defesa do patrimônio ou da incolumidade física. O que se exige para que a autotutela seja lícita e constitucional é sua previsão normativa acompanhada de proporcionalidade, exercício não abusivo do direito subjetivo e acesso aberto às vias judiciais. Discorrendo sobre a lei arbitragem, HUMBERTO THEODORO JÚNIOR178 observa: Já se afirmou que a noção de jurisdição veio se afirmando e consolidando à medida que o desenvolvimento do Estado pôde substituir a primitiva autotutela (justiça pelas próprias mãos do ofendido) pela atual tutela jurisdicional, com que se intentou estabelecer o monopólio da jurisdição. No entanto, a assunção desse monopólio não foi completa, porque, mesmo em nossos dias a ordem jurídica ainda tolera, embora como exceções, algumas modalidades de autotutela, como a legítima defesa, no âmbito do direito penal, e o desforço imediato, o direito de retenção, o penhor legal, etc., no campo do direito civil. Fora, porém, das hipóteses excepcionais previstas em lei, a justiça pelas próprias mãos é vetada e configura, até mesmo, crime tipificado no Código Penal (art. 345). O inciso XXXV do art. 5º da CF/88 dispõe que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Dele, duas leituras podem ser feitas. Uma é a de que toda controvérsia poderia ser levada à decisão do Judiciário, que teria o dever de conhecê-la e resolvê-la. A outra é a de que toda controvérsia só poderia ser decidida pelo Judiciário. Comentando o “amplo acesso ao Judiciário”, CELSO RIBEIRO BASTOS179 diz ser excessivo este último ponto de vista. Para ele, o significado correto é apenas o de que “lei alguma poderá auto178 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Arbitragem e terceiro: litisconsórcio fora do pacto arbitral. Outras intervenções. Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem, n. 14. São Paulo: Revista dos Tribunais, out-dez de 2001. 179 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 13ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1990, p. 198. 150 excluir-se da apreciação do Poder Judiciário quanto à sua constitucionalidade, nem poderá dizer que ela seja ininvocável pelos interessados perante o Poder Judiciário para resolução das controvérsias que surjam da sua aplicação”. Para infirmar a constitucionalidade do procedimento de cobrança em questão, também importa a orientação que se adotou em relação à arbitragem extrajudicial prevista180 pela Lei 9.307/1996. Por ocasião do julgamento do pedido de homologação de sentença arbitral prolatada na Espanha (SE 5.206), o STF decidiu analisar de ofício e incidentalmente, como matéria prejudicial, a constitucionalidade da previsão de atribuição de efeito de coisa julgada material à sentença arbitral que torna inatacável seu mérito pela via judicial quando preenchidos os requisitos formais previstos em lei181. Comparativamente, a Lei 9.307/1996 restringe a possibilidade de discussão judicial em um nível bem mais acentuado que os procedimentos de “execução extrajudicial” antes referidos. Com efeito, a análise de mérito das questões submetidas à arbitragem não podem ser apreciadas pelo Judiciário. Não obstante, o STF reconheceu a constitucionalidade da Lei 9.307/1996 por ocasião daquele julgamento. Prevaleceu o entendimento de que a inafastabilidade do controle jurisdicional em caso de lesão ou ameaça de lesão a direito, não significa que o interessado esteja obrigado a buscar o Judiciário para decidir as divergências em que esteja envolvido. Entendeu-se que o art. 5º, XXXV, da CF/88, garante o direito de ação, mas não obriga sua utilização uma vez que o ajuizamento de medida judicial é uma faculdade, não um dever. O princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional dá conta de que “a lei não excluirá da apreciação do poder Judiciário lesão ou ameaça 180 “Art. 1º As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis”. “Art. 3º As partes interessadas podem submeter a solução de seus litígios ao juízo arbitral mediante convenção de arbitragem, assim entendida a cláusula compromissória e o compromisso arbitral”. “Art. 18. O árbitro é juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário”. 181 Consoante histórico contido no voto do Min. Sepúlveda Pertence, a questão da inconstitucionalidade da arbitragem passou a ser aventada com a Constituição Federal de 1946, que foi a primeira a prever, assim como todas as que lhe sucederam, que nenhuma lesão ou ameaça de lesão seria afastada do conhecimento do Judiciário. Não obstante, a arbitragem já era prevista em nossa legislação desde as Ordenações Filipinas (Livro III, Título XVI e XVII), passando pela Constituição do Império, pelo Código Comercial de 1850 (arts. 245, 294, 348, 739, 783 e 846), pelo Regulamento 737/1850 (art. 411, § 1º), pela Lei 1.350/1866, pelo Decreto 3.900/1867, pelo Código Civil de 1916 (arts. 1.037 a 1.048) e pelos Códigos de Processo Civil de 1938 (arts. 1.031 a 1.046) e 1973 (1.072 a 1.102). 151 a direito”, mas não proíbe que as partes busquem outros meios de solução para suas controvérsias, na medida em que já é aceita a transação extrajudicial como meio de prevenir ou extinguir litígio que verse sobre direito disponível. O Min. NÉLSON JOBIM votou naquela oportunidade dizendo que, não obstante constar do capítulo dos direitos individuais fundamentais, “o destinatário da norma [o art. 5º, XXXV, da CF] não é o cidadão, mas, sim, o sistema legal, ou seja, é proibido ao sistema legal criar mecanismos que excluam da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Lançando mão de uma interpretação histórica, JOSÉ MARIA ROSSANI GARCEZ182 relata como o princípio da inafastabilidade surgiu pela primeira vez em uma Constituição brasileira (a de 1946), concluindo, com PONTES DE MIRANDA, que seu destinatário é o legislador, não o particular: O mesmo remonta aos tempos do Estado Novo, em que o regime ditatorial fazia com que os inquéritos parlamentares e policiais fossem levados a efeito sem que os envolvidos tivessem assegurado direito e garantias mínimas, sendo vedado ao Judiciário o reexame da questão. Nesse contexto, no regime legal de 1937, justificou-se o preceito inserido na Constituição Federal de 1946 em razão da legislação existente, excludente de apreciação judicial inquéritos parlamentares policiais, prevendo não poder a lei excluir a apreciação do Poder Judiciário a lesão ou ameaça de direito, sendo ele mantido nas Cartas de 1967 e 1988, quase com a mesma redação. Como ensina Pontes de Miranda (Comentários...), o objetivo do referido dispositivo constitucional foi educar as próprias autoridades governamentais, já que é para elas que se direciona o princípio – diz Pontes: “dirige-se ela aos legisladores: os legisladores ordinários nenhuma regra jurídica podem editar que permita preclusão em processo administrativo, ou em inquérito parlamentar, de modo que exclua a cognição pelo Poder Judiciário. O mesmo, evidentemente, não se aplica às partes, desejosas de solucionar suas controvérsias por um método fora da jurisdição estatal, teoricamente ao menos com maior especialização e rapidez, atribuindo por sua própria a exclusiva manifestação de vontades, poderes para que árbitros privados possam ditar a solução de suas controvérsias através de um laudo que se obrigam a cumprir e que tem agora, também no Brasil, força de lei e eficácia coativa similar à sentença judicial transitada e julgado. O que se garante ao cidadão, então, seria apenas uma opção de submeter o litígio à decisão do Judiciário ou a um terceiro particular. No mesmo sentido votou a Minª. ELLEN GRACIE no julgamento da SE 5.206: 182 GARCEZ, José Maria Rossani. Constitucionalidade da Lei 9.307/96. Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem, n° 10. São Paulo: Revista dos Tribunais, out-dez de 2000. 152 Entendo que a garantia de acesso ao judiciário é daqueles direitos fundamentais nos quais se reconhece maior peso ao que Canotilho (“Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, Coimbra, Livraria Almedina, 4ª ed., p. 401 e seguintes) denomina de função de direitos de defesa dos cidadãos. Ou seja, no plano jurídico-objetivo, representa a impossibilidade, para o Estado legislador, de excluir da apreciação judicial determinadas matérias e, no plano jurídico-subjetivo, “o poder de exercer positivamente o direito de ação”. A mesma garantia, em função de prestação social, corresponde à obrigação estatal de instituir e manter mecanismos judiciários equipados e suficientes ao atendimento dos litígios judicializáveis. E, por último, em sua função de não discriminação, obriga o Estado a prestar jurisdição a todos, assegurando a gratuidade a quem não possa enfrentar as custas do processo, garantindo o concurso de defensor dativo ao criminoso pobre e, mesmo, os serviços de consultoria e advocacia gratuita no cível, como forma de equalizar os cidadãos em suas condições de efetivo acesso à Justiça. Como se vê, o cidadão pode invocar o judiciário, para a solução de conflitos, mas, não está proibido de valer-se de outros mecanismos de composição de litígios. Já o Estado, este sim, não pode afastar do controle jurisdicional as divergências que a ele queiram submeter os cidadãos. No caso aqui tratado, nem o art. 63 da LCI e nem o Decreto-Lei 70/66, felizmente em passagem alguma, impedem que o devedor bata às portas do Poder Judiciário e suspenda o procedimento de execução extrajudicial. Ainda que se trate de devedor confesso ao menos de parte da dívida reclamada, também felizmente, o Judiciário tem determinado a suspensão das execuções. O mesmo se diz acerca da possibilidade de suspensão do procedimento caso haja nele algum vício formal (v.g., falta de notificação para purgação da mora ou de publicação de editais de leilão). De fato, o procedimento do art. 63 da LCI não prevê contraditório em seu bojo. Isto, todavia, não o inquina de inconstitucional na medida em que o devedor poderá se valer do Judiciário antes, durante e até mesmo depois de o procedimento ser encerrado. Ainda, a falta de contraditório extrajudicial é coerente com o sistema adotado, porque sua finalidade é a cobrança da dívida, não se tratando de um sistema de julgamento, mediação, conciliação ou arbitragem que tenha por escopo compor as partes ou dizer o direito aplicável. O iuris dictum continua com o Judiciário. Demais disso, é intuitivo que o contraditório numa fase extrajudicial de cobrança, sem atribuição de poder de decisão e controle com força vinculante a quem quer seja, seria algo totalmente inócuo, de modo que o mais adequado 153 realmente foi permitir, como permitido está, que o devedor que pretender discutir valores ou formalidades, valha-se de medida judicial própria. No momento em que o devedor recebe a notificação para que purgue a mora no prazo de 10 dias, abre-se-lhe a oportunidade de exercer o contraditório mediante propositura de uma ação judicial, equivalendo ela ao recebimento de uma citação. A marca do contraditório é a possibilidade de reação. Nas ações de execução judicial, o devedor é citado para pagar, dar, fazer ou deixar de fazer algo. O contraditório será exercido mediante oferecimento de embargos do devedor. Logo, a iniciativa do contraditório é do devedor. O mesmo se dá, mutatis mutandi, com o procedimento do art. 63: o devedor será notificado e poderá, se quiser, ajuizar ação própria para impedir o leilão, podendo alegar toda a matéria de fato e de direito, de maneira até mais abrangente (é interessante observar) do que poderia fazer no bojo uma ação de embargos à execução de título extrajudicial, considerada a nova redação do inciso III do art. 739, e do caput e §§ 3º e 5º do art. 739-A, todos do CPC. Neste sentido, MELHIM NAMEM CHALHUB183: Com efeito, o contraditório se caracteriza, fundamentalmente, pela efetiva possibilidade de reação, a partir do momento em que a parte toma ciência de algum ato que lhe seja desfavorável, como observa Sergio La China, para quem a manifestação técnica do contraditório decorre da articulação de dois aspectos, quais sejam, a informação (notificação, citação), e reação (embargos, ação), necessária sempre a primeira, eventual a segunda (mas necessário que seja efetivamente viável). Dizendo da possibilidade de acesso ao Judiciário e da constitucionalidade do art. 63, FRANCISCO ARNALDO SCHMIDT184 já escrevera que: Isso a lei não impede, nem poderia fazê-lo, sob pena de, aí sim, abrigar preceito inconstitucional. Veja-se que a existência de processos judiciais questionando a validade do art. 63 constitui o melhor argumento contra a alegação de que a matéria teria sido subtraída à apreciação do Poder Judiciário. No mesmo sentido, posicionou-se HUMBERTO THEODORO JÚNIOR185: 183 CHALHUB, Melhim Namem. Negócio fiduciário. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, pp. 301-302. 184 SCHMIDT, Francisco Arnaldo. Incorporação Imobiliária. 2ª ed. Porto Alegre: Norton Editor, 2006, p. 141. 185 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Incorporação imobiliária: atualidade do regime jurídico instituído pela Lei n° 4.591/1964. Revista Forense, n° 100, vol. 376. Rio de Janeiro: Editora Forense, nov-dez de 2004. 154 Não procede, também, acusação de ofensa ao devido processo legal, por autorizar a Lei n° 4.591/64 a alienação forçada sem prévia decisão judicial. De fato, o leilão previsto pela Lei de Incorporações é extrajudicial e será realizado por leiloeiro oficial. Não depende, pois, de qualquer procedimento em juízo, o que, todavia, não impede o condômino inadimplente de recorrer ao Judiciário se se considerar prejudicado ou se tiver motivo para discutir o débito, sobrestar o leilão ou formular qualquer pretensão prejudicial à hasta pública ou aos seus resultados. Autorizando o procedimento sumário e extrajudicial do leilão, a lei objetivou apressar o reequilíbrio econômico do empreendimento, sem, contudo, trancar ao condômino que não se julgue em mora as vias judiciais para a defesa de seus direitos. Como já mencionado, em que pese não se verificarem questionamentos judiciais sobre a constitucionalidade do art. 63 da LCI, os Tribunais têm aceito o procedimento em questão exceto em caso de inobservância de regularidades formais. Neste sentido têm-se acórdãos do STF186 (RE 79.431-RJ, RE 81.144-SP e RE 83.287-RJ) do Stj (REsp 345.677-SP, REsp 66.699-RJ e REsp 9.818-SP) e do TJ-PR (Apelações Cíveis n°: 62.602-0, 120.991-4, 17 .025-8, 156.259-4, 49.123-6, 114.503-7 e 355.322-2. Agravos de Instrumento n°: 4 40.617-5, 321.751-8 e 462.0744). IV.4 FALÊNCIA DO INCORPORADOR, PARALISAÇÃO OU RETARDAMENTO EXCESSIVO E INJUSTIFICADO DA OBRA O inadimplemento do incorporador ou do construtor toma proporções preocupantes quando da decretação de sua falência ou em caso de paralisação ou retardamento excessivo e injustificado da obra. Revestindo-se de natureza absoluta, esse inadimplemento ganha contornos coletivos atingindo interesses ou direitos individuais homogêneos relacionados ao conjunto de consumidores adquirentes. 186 A propósito, têm a ementa que mais adentro foi na questão: “INCORPORAÇÃO IMOBILIARIA. ACÓRDÃO QUE CONSIDEROU LEGITIMA CLÁUSULA CONTRATUAL EM QUE OS CONDOMINOS OUTORGARAM AO INCORPORADOR OU AO CONSTRUTOR AUTORIZAÇÃO PARA EFETUAR O LEILÃO PREVISTO NO ART. 63, PARAGRAFO 1., DA L. 4.591, DE 16.12.1964. PROMESSA DE COMPRA E VENDA NÃO INSCRITA CONSTITUI DIREITO PESSOAL E DISPENSA A NOTIFICAÇÃO DA MULHER DO COMPRADOR PARA A PURGAÇÃO DA MORA. INEXISTÊNCIA DE OFENSA A DIREITO FEDERAL OU DISSIDIO DE JULGADOS. RECURSO EXTRAORDINÁRIO NÃO CONHECIDO. (RE 79431, Relator(a): Min. RODRIGUES ALCKMIN, PRIMEIRA TURMA, julgado em 18/11/1975, DJ 12-031976)”. 155 Demais disso, atinge também todos os demais contratos que de alguma forma estejam relacionados com a incorporação como são o caso, por exemplo, do financiamento bancário concedido para a construção da obra e do contrato de compra e venda do terreno sobre o qual se erige a construção. A apreciação do tema deve levar em conta se a incorporação encontra-se ou não sob o regime de afetação patrimonial, haja vista a diversidade de efeitos, direitos, obrigações e providências que o inadimplemento absoluto provoca para as partes contratantes. IV.4.1 Na Incorporação Imobiliária sem Afetação Patrimonial As obras das incorporações em que não se tenha adotado o regime de afetação patrimonial podem ser concluídas pelos consumidores adquirentes, sem participação do incorporador. A possibilidade está prevista no art. 43, III e VI, desde a edição da LCI no ano de 1964. Os incisos III e VI situam-se em artigo que trata especificamente das incorporações sob regime de prazo e preço certos, em que o incorporador se compromete a transferir a propriedade da fração ideal de terreno e ainda construir o empreendimento em determinado prazo, fazendo-o ele próprio ou um construtor por ele contratado e remunerado. Não obstante, a aplicabilidade desses incisos se estende a todos os regimes por força do art. 49 da LCI. O inciso VI prevê que a paralisação ou o atraso injustificado da obra por tempo superior a 30 (trinta) dias pode se converter em inadimplemento absoluto. O inciso III, por sua vez, prevê que “em caso de falência do incorporador, pessoa física ou jurídica, e não ser possível à maioria prosseguir na construção das edificações”, restará aos adquirentes se habilitarem individualmente na massa falida como credores privilegiados pela quantia que tenham pago ao incorporador, respondendo subsidiariamente seus bens pessoais. No entanto, ao contrário do que o dispositivo possa dar a entender, a falência do incorporador por si só não implica paralisação da obra e não permite “à maioria prosseguir na construção das edificações”. Com efeito, em que pese seja raro, pelo fato de a incorporação tratar-se de contrato bilateral, mesmo falido o incorporador terá direito de concluir o empreendimento se acaso tiver condições de fazê-lo e se 156 neste sentido se manifestar o administrador da massa187. Do contrário, abre-se aos adquirentes a possibilidade de decidirem se concluem a construção ou não. Decidindo positivamente, o terreno e suas acessões não serão arrecadas pela massa falida188. E se o incorporador falido que tenha optado por cumprir o contrato vir a atrasar ou paralisar o andamento da obra, os adquirentes poderão concluir a obra sem sua participação189, caso em que deverão adotar as medidas previstas no 187 Conforme art. 117 e art. 119, VI, da Lei 11.101/2005 (Lei de Recuperação e Falência de Empresas), combinados com o Decreto-Lei 58/1937 e seu regulamento (Decreto 3.079/1938). 188 MELHIM NAMEM CHALHUB ao justificar a adoção do regime de afetação patrimonial demonstra, e com razão, apreensão acerca da possibilidade de se destacar o empreendimento da massa falida, vendo empecilhos jurídicos no tocante à outorga da propriedade das frações ideais de terreno e à destinação do estoque de unidades que o incorporador eventualmente ainda não tenha comercializado. Segundo ele, essas providências são facilmente contornadas quando se está diante de incorporação com regime de empreitada ou de administração, em que as frações ideais tenham sido alienadas mediante um contrato registrado na matrícula da incorporação. Do contrário, os adquirentes que não tenham registrados seus contratos deveriam se habilitar como credores obrigacionais. Neste ponto, todavia, parece equivocada a observação do ilustre autor na medida em que o art. 43 da LCI prevê que, em decidindo a maioria prosseguir com a obra, não há o que habilitar na massa, mas sim requerer a transferência da propriedade definitiva das frações ideais de terreno, verbis: “Além disso, em caso de falência da incorporadora, os bens que integram o acervo de todas as suas incorporações devem ser arrecadados à massa, daí surgindo dúvidas e incertezas quanto à plena eficácia das disposições dos incisos III e VI do art. 43 da Lei 4.591/64. De fato, o inciso III do art. 43 prevê que, em caso de falência do incorporador, os adquirentes serão considerados credores privilegiados da massa, enquanto que o inciso VI admite a substituição do incorporador, em caso de atraso ou paralisação da obra. Se a incorporação tiver sido pactuada mediante compra e venda da fração ideal do terreno (pela qual cada adquirente se torne proprietário das frações ideais, mediante escritura de compra e venda registrada) e celebração de contrato de construção do edifício, a solução, caso sobrevenha a falência do incorporador, há de ser relativamente simples, pois o terreno já não estará integrando o patrimônio deste e, portanto, não será arrecadado, enquanto que, no que tange à obra, o contrato de construção poderá ser distratado, nos termos do art. 43 da Lei de Falências, que permite ao síndico prosseguir ou não a execução dos contratos em curso, conforme seja conveniente para a massa ou não. Essa forma jurídica de contratação da incorporação, entretanto, é rara, sendo mais comum a contratação de promessa de compra e venda de unidade imobiliária (fração ideal + acessões) como “coisa futura”. Nesse caso, o incorporador é titular do domínio sobre imóvel e, em contrapartida, é sujeito passivo de obrigação de construir e entregar a unidade, bem como da obrigação de outorgar o contrato definitivo de compra e venda.Muito embora aqui, também, se aplique a regra do art. 43 da Lei de Falências, pela qual Síndico da Massa dirá da conveniência ou não do cumprimento desse contrato de promessa de compra e venda, será necessária autorização judicial para transmissão do domínio para o adquirentes. Nesses casos, é comum apresentarem-se duas situações: a primeira, contemplando contratos de promessa de compra e venda registrados no Registro de Imóveis e a segunda contemplando contratos de promessa sem registro. No primeiro caso, estando os contratos registrados, a autorização poderá ser deferida à vista de documento comprobatório do registro e da comprovação do pagamento do preço; em regra, esses pedidos de autorização não encontram obstáculo. (..) Entretanto, poderão ocorrer dificuldades nos casos em que os adquirentes tenham deixado de registrar seus contatos de aquisição de unidades, pois, enquanto na primeira hipótese (...) o adquirente é investido de direito real sobre o imóvel, na outra hipótese (...), o direito do adquirente tem natureza meramente obrigacional, e é na configuração de direito de crédito que deve ser habilitado no Juízo onde se processa falência, ali passando a concorrer com os demais créditos, de acordo com o regime de preferências estabelecido em lei”.(CHALHUB, Melhim Namem. Da incorporação imobiliária. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar, 2003, p. 73). 189 Fazendo referência ao inciso III do art. 43 da LCI, observa HAMILTON QUIRINO CÂMARA, comentando caso concreto resultannte da quebra da incorporadora ENCOL: “Foi fundamental a corajosa desvinculação de mais de 700 empreendimentos do processo de falência, com rigoroso cumprimento do artigo 43, III da Lei 157 inciso VI do art. 43, vale dizer, deverão notificar o incorporador marcando-lhe prazo de 30 (trinta) dias para que lhe dê andamento regular. Passado o prazo de 30 (trinta) dias sem as obras tenham se normalizado, os adquirentes poderão ser reunir em assembleia e destituir o incorporador da posição de incorporador, condição sine qua nom para que o este não possa mais praticar atos tendentes a promover a incorporação, o que parece implicar proibição de continuar a alienar novas frações ideais de terreno e cobrar ou receber valores eventualmente devidos pelos adquirentes, em que pese não haja um sistema de proteção aos incautos que, desconhecendo essa proibição, acabem por adquirir ou pagar o incorporador. A destituição do incorporador não depende de medida judicial com contraditório e ampla defesa a ser proposta pelos adquirentes. A mera notificação seguida de assembleia dos adquirentes já lhe produz os efeitos. Até pelo contrário: é o incorporador quem deverá adotar alguma medida judicial para evitar sua destituição, caso em que deverá comprovar que a paralisação ou o atraso não existem, que são inferiores a 30 (trinta) dias ou que são justificados. Assim, além da força desconstitutiva que a LCI confere à decisão da assembleia, inverte-se o ônus da prova relativa ao estágio da construção obrigando a que o incorporador vá ao judiciário provocar o contraditório e a ampla defesa. Escrevendo sobre o inciso VI do art. 43, CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA190 escreve a que a função do juiz, neste caso, é a de determinar a notificação do incorporador e nada mais. Posteriormente, verificado pelos 4.591/64. Afinal de contas, na dicção do texto legal, se os compradores retomam as obras ficam fora da falência”. O Tribunal de Justiça de Goiás decidiu que, na forma da Lei n. 4.591/64, os empreendimentos de obras paradas não integram a massa falida, desde que os adquirentes decidam retomar as obras, passando para a propriedade dos condôminos, inclusive as unidades de estoque, o que é obtido mediante simples alvará judicial, para proceder às ”. (CÂMARA, Hamilton Quirino. Falência do incorporador imobiliário: O caso Encol. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004, p. 3). Também comentando a questão, JÉVERSON LUÍS BOTTEGA demonstra incerteza quanto ao entendimento do art. 43, III, ao comparar as incorporações com e sem regime de afetação patrimonial: “Pelo sistema da Lei 4.591/64, segundo o disposto no artigo 43, III, em caso de falência do incorporador os adquirentes podem optar por prosseguir na construção da edificação ou serem credores privilegiados da empresa incorporadora nas importâncias pagas até o momento da decretação da falência. O benefício em relação à nova Lei é que, pela 4.591/64, segundo a jurisprudência majoritária [apelação cível n. 200100508574, 3ª Turma do TJ-GO, p.e.], os adquirentes não assumem a responsabilidade pelo pagamento das dívidas tributárias, previdenciárias e trabalhistas que deveriam ter sido pagas pelo incorporador falido com recursos provenientes das prestações já pagas pelos adquirentes, enquanto que, constituído o patrimônio de afetação, os adquirentes tem que, de certa forma, pagar pelo que já pagaram” (BOTTEGA, Jéverson Luís. Incorporação imobiliária e a responsabilidade civil do incorporador. Porto Alegre: Norton Editor, 2005, p. 64). 190 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. 10ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000, pp. 286-287. 158 adquirentes que este não retomou a conclusão da obra, podem eles se reunir em assembleia, votar e aprovar ou não a destituição do incorporador sem que, para tanto tenham que obter qualquer tipo de manifestação judicial. Veja-se: Verificado o fato – paralisação ou retardamento excessivo -, o incorporador será notificado para reiniciar a obra ou imprimir-lhe andamento normal. Aqui é preciso dar uma explicação: fala-se que o juiz poderá notifica o incorporador, não para significar que tomará a iniciativa desta providência, pois que o juiz não procede ex officio, mas que, a requerimento de qualquer interessado, ordenará notificação. Realizada esta, e decorrido o prazo de 30 dias sem que as obras se reiniciem ou o andamento readquira a normalidade, os interessados não precisam ir a juízo para resolver o contrato, porque a lei lhes oferece a faculdade de, pela sua vontade, destituírem o incorporador. Invertendo-se a situação, armam-se os adquirentes de formidável poder. Na verdade, lançá-los nos azares de uma demanda para, ao fim de luta profiada, conseguirem com a resolução do contrato a liberdade de prosseguir com outro incorporador ou tomarem diretamente a direção da edificação, sempre constitui maior obstáculo para que os interessados se movimentassem. Ainda, o art. 43, VI, não exige qualquer espécie de assembleia ou quórum para que seja realizada a notificação judicial ali prevista. Quórum será necessário posteriormente, se acaso os adquirentes optarem por destituir o incorporador em decisão assemblear. Para requerer a notificação judicial basta uma única pessoa, conforme também opina NÉLSON LUIZ GUEDES FERREIRA PINTO191. Aprovada a destituição do incorporador, os adquirentes devem tomar a posse do terreno e das acessões, o que se faz de forma indiferente ao fato de serem propriedade formal o incorporador ou de um terceiro que tenha autorizado a incorporação sobre o terreno. Se necessário, poderão adotar medidas judiciais porque sem a posse frustra-se o direito de retomar a obra garantida pelo art. 43. Ainda, os adquirentes deverão contratar construtor para concluí-la, rateando entre si o custo do término da construção e também adotar as medidas judiciais necessárias para que tenham registrado em seus nomes a propriedade da fração ideal adquirida. 191 “No caso de paralisação da obra pelo incorporador ou de sua falência, qualquer adquirente poderá promover a notificação do mesmo para reiniciar e dar andamento normal à construção, no prazo de 30 dias”. (PINTO, Nélson Luiz Guedes Ferreira. Contrato de incorporação imobiliária. In THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato imobiliário e a legislação tutelar do consumo. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002, p. 271). 159 Até o advento da Lei 10.931/2004, que introduziu o patrimônio de afetação, a LCI não contava com nenhum dispositivo que orientasse como haveria de se realizar o rateio da construção entre os adquirentes. Atualmente, em que pese faça alusão apenas às incorporações sob o regime de afetação, o § 12 do art. 31-F também pode ser aplicado às incorporações desprovidas de afetação patrimonial. Com efeito, além de provocar um efeito sistemático sobre toda a LCI, a norma deste dispositivo atende os princípios da boa-fé dos adquirentes e da solidariedade para com o objetivo de concluir a obra, consideradas a perspectiva prévia e espontaneamente assumida com o incorporador no sentido de pagar pela unidade o valor expresso no contrato (boa-fé) e também a contribuição para o término na obra em conjunto com os demais adquirentes (solidariedade). Sobre a decisão solidária da maioria, J. NASCIMENTO FRANCO e NIESKE GONDO destacam que fracassando o incorporador “... e assumindo o encargo de dar andamento às obras, por intermédio da comissão, a maioria [dos adquirentes] menos não faz do que agir em benefício de todos, salvando o patrimônio comum”192. Assim, o rateio do custo da retomada das obras deve ser realizado levando em consideração, em primeiro lugar, o valor que cada adquirente já pagou ao incorporador. Em havendo quem ainda não tenha quitado o preço da aquisição, deverá pagar o remanescente ao fundo de construção formado pelos adquirentes para o término da obra. Ato contínuo, se acaso a soma desses saldos remanescentes não for suficiente para concluir o empreendimento (como na prática em geral não é), todos os adquirentes hão de realizar novos aportes rateados segundo a área total de cada unidade, inclusive aqueles que haviam quitado seus contatos junto ao incorporador destituído193. Sobre esta questão, mesmo que dissesse respeito ao condômino pro indiviso e geral de Direito Civil, ainda assim todos os adquirentes ficariam obrigados a contribuir para com o custeio das 192 FRANCO, J. Nascimento et GONDO, Nieske. Incorporações imobiliárias. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 136. 193 Neste sentido, veja-se o seguinte julgado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro: “Reunião dos adquirentes sob a forma de Comissão, através de Assembléia Geral, para o reinício das obras. Despesas de manutenção e com a regularização jurídica do terreno, para o fim de viabilizar o reinício das obras, as quais incumbem aos adquirentes, tenham ou não quitado integralmente o preço junto ao incorporador original (artigo 43, VI da Lei nº 4.591/64). Situação que se equipara a do condômino de cota-parte para as despesas de conservação da coisa comum e a suportar os ônus a que estiver sujeita (art. 624 do Código civil), sob pena de enriquecimento ilícito”. (apelação cível .6.276/01, de 05.06.01, da 7ª Câmara Cível, relatora a Des. Célia Vidal) (destacamos). Sobre o assunto, têm-se também julgado do Tribunal de Justiça do Paraná, proferido na apelação cível nº 142.018-4, de que foi relator da apelação o Des. Domingos Ramina. 160 benfeitorias ou acessões realizadas em seu proveito, consoante art. 1.315 do CC/02. Ainda, calha transcrever novamente as lições (incisivas) de J. NASCIMENTO FRANCO e NIESKE GONDO194 para quem todos os beneficiários ficam obrigados a contribuir com sua cota para a construção, pois não é justo que eles se coloquem na cômoda posição de esperar o término das obras, para receber os apartamentos prontos, sem nada pagar ou pagando afinal. Num ou noutro caso haveria enriquecimento ilícito à custa dos que lutaram para evitar o colapso da incorporação. Que se voltem os inconformados contra o incorporador, responsabilizando-o civil ou criminalmente. Mas que paguem a sua parte, contribuindo para o êxito do plano estabelecido pela maioria. A aquisição e quitação de imóvel na planta não exime adquirente algum de contribuir para o custeio do término da obra, porque se trata de dívida comum. É uma regra de equidade porque seria injusto que alguns paguem pelo término da construção enquanto outros recebem-na pronta sem nada contribuir, quando na realidade o culpado é o incorporador. Prejuízo com a paralisação da obra todos os adquirentes têm. Se aqueles que haviam quitado seus contratos junto ao incorporador tiveram um prejuízo, igualmente tiveram quem tenha quitado apenas em parte. A diferença de prejuízo entre um e outro se igualará com a retomada das obras e o dever de quitação dos saldos para com o incorporador transferido ao condomínio de adquirentes. Com efeito, a destituição do incorporador por decisão da assembleia altera a relação jurídica de direito material, em certa medida individualista, que ligava os adquirentes ao empreendimento por via do contrato firmado com o incorporador, fazendo surgir uma nova relação jurídica diretamente com os demais adquirentes por força do art. 43, VI, da LCI, agora marcadamente coletiva, solidária e voltada para o alcance da função social da incorporação imobiliária, qual seja, a construção do empreendimento mediante contribuição de todos os consumidores sem a participação do incorporador. Em verdade, as dívidas oriundas da assembleia que decide concluir a obra têm natureza jurídica de dívida propter rem, que se vincula ao imóvel, tornando obrigatória sua quitação por quem quer que venha se tornar seu proprietário, o que, aliás, encontra-se previsto na parte final do art. 63 da LCI (“... pelo débito respondem os direitos à respectiva fração ideal de terreno e à parte construída adicionada”). 194 FRANCO, J Nascimento et GONDO, Nieske. Incorporações imobiliárias. São Paulo: Revista dos Tribunais, pp. 126-127. 161 Essa natureza jurídica de dívida propter rem já foi reconhecida pelo STJ, consoante acórdão prolatado no Recurso Especial nº 255.593-SP, do qual foi relator o Min. RUY ROSADO DE AGUIAR, acolhido por unanimidade. Nessa decisão, reconheceuse a obrigação de pagamento de credor hipotecário que arrematou o imóvel para satisfação de seu crédito, mas ainda assim, na condição de novo proprietário, foi obrigado a pagar a dívida relativa à construção195. Deve-se também analisar situação possível em que o incorporador ainda não tenha comercializado todas as frações ideais de terreno por ocasião de sua destituição e retomada das obras por decisão da assembleia. Neste caso, o incorporador tem a obrigação de arcar com os custos de construção a elas inerentes. A obrigação vem disposta no art. 35, § 6º, da LCI. Do contrário, o incorporador não poderia ser considerado responsável pela promoção da incorporação, notadamente nas incorporações em regimes de preço fechado (arts. 41 e 43). Esta obrigação não se altera pela destituição ou falência do incorporador 195 Sobre a questão assim decidiu o STJ no Recurso Especial nº 255.593-SP, de que foi relator Min. RUY ROSADO DE AGUIAR: “São duas as questões propostas neste especial: a legitimidade ativa da autora e a ilegitimidade do banco réu em ação de cobrança de parcelas do preço de custo para a construção do imóvel, parcelas devidas pelos primitivos condôminos, cujas unidades foram adjudicadas ao agente financeiro em execução hipotecária. A comissão de representantes dos condôminos de edifício em construção por incorporação, que recebe da assembléia geral dos contratantes da construção, depois de destituída a incorporadora do empreendimento por decisão judicial (art 43, inc. VI, da lei 4591/64), a função de “prosseguir na obra”, fica, por força da lei, “investida nos poderes necessários para exercer todas as atribuições e praticar todos os atos que esta lei e o contrato de construção lhe deferirem, sem necessidade de instrumento especial outorgado pelos contratantes” (art 50, § 1º da Lei 4591/64), entre eles o de cobrar as parcelas ema atraso. Ressalta a circunstância anotada no r. acórdão dos embargos declaratórios, de lavra do Des. Rodrigues de Carvalho: a comissão atua ex lege, daí a impropriedade da referência ao art. 18 do C Civil, pois é desnecessária a criação de pessoa jurídica e a sua formalização por atos cartorários. Trata-se de situação especial decorrente, de um lado, da frustração do plano da incorporadora e, de outro, da exigência de prosseguir-se na obra para a defesa do interesse dos condôminos, para a qual a lei muito acertadamente – traça normas específicas e trata de dispensar formalidades e burocracias. Disse bem a r. Sentença da Dra Berenice Cesar: “a comissão de condôminos é uma realidade jurídica que tem fundamento na ‘teoria da realidade’ , segundo esta é ‘um agrupamento de pessoas físicas para alcançar um fim excedente da esfera dos interesses individuais torna-se um organismo social dotado, como o homem, de um poder próprio para agir e, por isso, se categoriza como sujeito de direitos’. A responsabilidade do agente financeiro, adjudicante das unidades, decorre da aplicação de duas ordens de argumentos: a) pelo princípio geral que veda o enriquecimento sem causa, o banco que recebe o imóvel para pagamento de seu crédito não pode deixar de pagar as parcelas correspondentes ao custo da construção, pois, do contrário, estaria incorporando ao seu patrimônio, sem nada despender, o que foi feito às custas dos demais condôminos; b) nos termos do art 33 do DL 70/66 , terão preferência sobre o credor hipotecário as demais obrigações contratuais vencidas, especialmente as fiscais e os prêmios de seguro. Diante dos termos claros desse dispositivo, não se pode acolher a assertiva do recorrente, no sentido de que as obrigações contratuais vencidas são apenas as estabelecidas entre o mutuário em atraso e o agente financeiro, pois a regra principal traçada no referido artigo de lei existe para estabelecer que os outros créditos terão preferência sobre o credor hipotecário. Se tais dívidas devem ser satisfeitas com o que for apurado no leilão, a adjudicação pelo banco lhe acarreta a responsabilidade por elas. Lembro a especificidade da situação, porquanto a relação se estabeleceu no âmbito do sistema da habitação, com regramento próprio, em que houve a adjudicação pelo agente financeiro, o que a distingue de outras hipóteses em que o terceiro adquirente de ordinário não responde pelas obrigações contratualmente assumidas pelo primitivo proprietário”. 162 que, nestas hipóteses, assume posição idêntica à dos adquirentes no tocante ao dever de contribuir para a conclusão da obra tornando-se assim um deles de fato e de direito, obrigado a contribuir para com a construção sob pena de ver seus direitos serem alienados em leilão público196 conforme § 6º do art. 63. Sobre o assunto, a opinião de JÉVERSON LUÍS BOTTEGA197: Não tendo sido todas as unidades comercializadas, a massa poderá ser condômina no empreendimento, tendo, como os demais condôminos, que custear a obra (artigo 35, § 6º) ou, não sendo de interesse, os condôminos, que retomaram a obra para finalizá-la, poderão comercializar referidas unidades como objetivo de buscar aporte financeiro para a construção. Assim, destacado o empreendimento do patrimônio do incorporador destituído e decidindo pela conclusão das obras segundo as regras estabelecidas pela LCI para as incorporações sem regime de afetação, os adquirentes apartam do patrimônio geral do incorporador a propriedade sobre as frações ideais de terreno já comercializadas e suas respectivas acessões. Ante a necessidade de um construtor para concluir a obra, os adquirentes hão de contribuir para sua retomada. Já as unidades que porventura ainda não tenham sido comercializadas pelo incorporador destituído, igualmente gerarão uma obrigação de pagamento para seu proprietário que, em não pagando, poderá ser cobrado judicial ou extrajudicialmente (art. 63 da LCI). Eventuais saldos devedores dos contratos firmados com o incorporador a ele não mais serão pagos, transferindo-se esse direito ao novo fundo construtivo, por força de alteração da relação jurídica de direito material que ligava os adquirentes ao empreendimento. As dívidas do incorporador, sejam elas apuradas ou não em processo de falência, não atingem os adquirentes, não oneram o empreendimento e nem permitem a criação de constrição judicial sobre (penhora, arrestos...), exceto em 196 Comenta HAMILTON QUIRINO CÂMARA caso concreto de falência decreta no Estado de Goiás, dizendo: “O Tribunal de Justiça de Goiás decidiu que, na forma da Lei n. 4.591/64, os empreendimentos de obras paradas não integram a massa falida, desde que os adquirentes decidam retomar as obras, passando para a propriedade dos condôminos, inclusive as unidades de estoque, o que é obtido mediante simples alvará judicial, para proceder às devidas transferências no Registro de Imóveis. Isto porque o incorporador é obrigado a contribuir, para as unidades não comercializadas, da mesma forma que os compradores. O mesmo haverá de se aplicar nos casos em que não houve falência do incorporador, que ainda possui unidades em estoque. Na verdade, ele é proprietário da cota de terreno, mas deverá aportar todo o valor da construção, sob pena de ter leiloada sua unidade, em processo extrajudicial”. (CÂMARA, Hamilton Quirino. Falência do incorporador imobiliário: O caso Encol. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004, p. 41). 197 BOTTEGA, Jéverson Luís. Incorporação imobiliária e a responsabilidade civil do incorporador. Porto Alegre: Norton Editor, 2005, p. 65. 163 relação as frações ideais não comercializadas desde que ainda não tenham sido levadas a leilão. De todo modo, a aquisição por venda judicial ou adjudicação de unidades não comercializadas pelo incorporador implica transferência, ao arrematante ou adjudicatário, da obrigação de pagamento dos custos da construção (obrigação propter rem), na medida em que a unidade, neste caso, não é transferida isenta de obrigações, mas sim oneradas pelo custo da construção. Exceção se faz presente em relação ao IPTU incidente sobre o terreno e à contribuição devida ao INSS calculada sobre a obra edificada (art. 30, VI, da Lei 8.212/91) que. A despeito de terem como sujeito passivo tributário o proprietário do terreno (em geral o incorporador) e o construtor ou o promotor da construção, se os adquirentes destituem o incorporador e optam por concluir as obras, com o empreendimentos se transferem as obrigações essas obrigações tributárias. De todo modo, malgrado a econômica disciplina da LCI no tocante à descrição das providências, direitos e obrigações por ocasião da retomada das obras em caso de inadimplência do incorporador que não tenha adotado o regime de afetação patrimonial, há base legal suficiente para que a função social da atividade seja alcançada sem impor obrigações desproporcionais aos consumidores já desgastados e prejudicados. IV.4.2 Na Incorporação Imobiliária com Regime de Afetação Patrimonial O propósito da introdução do patrimônio de afetação pela Lei 10.931/2004 foi o de evitar prejuízo aos consumidores adquirentes de imóvel “na planta”. Para alcançar tal desiderato, os vários, incompletos e tecnicamente censuráveis dispositivos inseridos na LCI (ao todo 6 artigos, 46 parágrafos e 27 incisos), do pondo de vista dos benefícios atribuídos aos adquirentes, podem assim ser divididos: (i) dispositivos com escopo de evitar que os recursos pagos pelos adquirentes sejam gastos com outras finalidades que não a própria conclusão do empreendimento; (ii) dispositivos que visam a conferir segurança jurídica para os adquirentes caso decidam eles próprios concluir o empreendimento em hipóteses de falência do incorporador, retardamento ou paralisação das obras, facilitando-lhes, para tal fim, a transferência da posse e da administração do empreendimento, dos 164 créditos e débitos a ele vinculados, e do eventual estoque de unidades que ainda não tenham sido comercializadas pelo incorporador. Idealmente têm-se alardeado boas intenções ao patrimônio de afetação. Todavia, uma análise detida que dele se faça em comparativo com as “garantias” que a LCI já conferia aos adquirentes, aliadas a jurisprudência que se formou em torno da atividade de incorporação imobiliária, desmistifica a boa nova e demonstra que, em caso de retomarem das obras, os adquirentes deixam de ser consumidores responsáveis apenas pelo custo da construção remanescente, IPTU e contribuição ao INSS, para se tornarem responsáveis por obrigações passivas que o empreendimento tenha gerado e ainda gerará no curso de sua execução. Quando o incorporador tem sucesso no empreendimento, levando-o a cabo no prazo, com ou sem regime de afetação, os adquirentes nada sofrem. No entanto, é ingenuidade supor que a falência de um incorporador ou o retardamento ou paralisação excessiva e injustificada da obra não cause prejuízo aos adquirentes só porque previsto em lei que os recursos pagos pelos consumidores ficam “afetados” ao empreendimento de modo a que dele não podem ser desviados. Não só porque a Lei 10.931/2004 ficou aquém de uma regulação completa, com ou sem afetação sabe-se que, exceto em caso de rigorosa fiscalização no curso da obra por parte de um agente financeiro ou dos próprios adquirentes (fato este último de que não se têm notícia), o incorporador de má-fé ou encurralado pela derrocada que se avizinha, perde as rédeas do negócio e acaba por desvirtuar a afetação patrimonial. Também não há avanços significativos no tocante à operacionalização da retomada das obras, considerando as condições que para tanto são impostas pela Lei 10.931/2004. Enquanto o regime tradicional da LCI autoriza que os adquirentes concluam o empreendimento sem fixar prazo algum para decidam se o farão ou não (desde, é claro, que seja antes da venda do ativo do falido), os §§ 1º e 2º do art. 31-F da LCI exigem que os adquirentes, que por certo nem se conhecem, no exíguo prazo de 60 dias contados da decretação da falência do incorporador, formem opinião suficiente para decidir se irão ou não concluir o empreendimento. Caso positivo, deverão decidir desde logo sobre “os termos da continuação da obra ou da liquidação do patrimônio de afetação”. Evidente que, em termos de operacionalização o dispositivo em questão foi deveras otimista considerando que os consumidores, pessoas 165 desprovidas de conhecimento técnico em engenharia, contabilidade e direito, até então se encontram alheios à real situação por que passa a incorporação. Na mesma linha de otimismo irreal laborou o § 14 do ar. 31-F ao designar prazo exíguo de 60 dias para que se consiga designar o leilão extrajudicial de trata o art. 63 com o propósito de cobrar o saldo dos adquirentes inadimplementos ou alienar a integralidade do terreno e das acessões caso a assembleia tenha deliberado pela liquidação do patrimônio de afetação ao invés do término da obra (§ 1º do art. 31-F). Uma vez deliberada a continuidade das obras, o art. 9º da Lei 10.931/2004 fixa prazo de um ano, ou até a data de concessão do “habite-se” se esta ocorrer em prazo inferior, para que os adquirentes realizem o pagamento das “obrigações tributárias, previdenciárias e trabalhistas” vinculadas ao patrimônio de afetação cujas hipóteses de incidência tenham ocorrido até a data de “decretação da falência, ou insolvência do incorporador”. Caso o pagamento não ocorra no prazo, dispõe o mesmo art. 9º que “perde a eficácia a deliberação pela continuidade da obra a que se refere o § 1º do art. 31-F da Lei nº 4.591, de 1964”. Essa previsão, inserida em capítulo da Lei 10.931/2004 voltado à regulação tributária do patrimônio de afetação, tem por mais evidente dos objetivos o atendimento de interesses fiscalistas do Estado. Representa, na verdade, retrocesso quando comparado com as incorporações sem regime de afetação, na medida em que retira um direito (o de concluir a obra) que já era garantido desde 1964 e de forma incondicionada ao pagamento das obrigações tributárias, previdenciárias e trabalhistas referidas no art. 9º da Lei 10.931/2004198. De todo modo, é muito severa a pena de perda do caráter de afetação da incorporação, mormente porque um ano não parece ser tempo absolutamente seguro para que os adquirentes consigam adotar todas as providências necessárias para levar a leilão as unidades dos adquirentes inadimplentes ou aquelas integrantes do estoque não comercializado pelo 198 No mesmo sentido, MELHIM NAMEM CHALHUB: “A restrição ao exercício dos direitos dos adquirentes é inadmissível, mesmo se se considerar que eles sejam devedores, ainda que sejam devedores inadimplentes e mesmo que se mantenham na condição de devedores inadimplentes.Ora, a pendência do débito não priva a pessoa do uso e da fruição de seus bens ou direitos, mesmo que estes estejam submetido a constrição judicial”. (CHALHUB, Melhim Namem. Da incorporação imobiliária. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar, 2003, p. 116). A essas observações acrescenta-se que a exigência de pagamento em um ano ou até a data do “habita-se” não equivale a dizer que os credores do incorporador já estariam suportando o ônus da demora na solução de seus créditos em razão de os adquirentes terem deliberado pela conclusão do empreendimento porque, como é sabido, a falência ou qualquer processo judicial dificilmente satisfaz o credor de forma plena em período inferior a 12 meses. Logo, o art. 9º de fato só se presta para impingir dificuldade aos consumidores em benefícios dos credores, como se aqueles fossem culpados pelo inadimplemento do incorporador. 166 incorporador, conclusão esta que se agrava na medida em que não há como saber se de fato haverá arrematante sem o qual os adquirentes não terão os recursos necessários para quitar as obrigações especificadas no art. 9º. Demais disso, medidas judiciais podem suspender a realização desses leilões. Ainda sobre o art. 9º da Lei 10.931/200, a perda de efeitos da afetação patrimonial só poderá ocorrer se acaso os adquirentes tenham assumido a conclusão das obras em concomitante decretação de falência ou insolvência do incorporador. Assim, por ausência de previsão o dispositivo não tem aplicabilidade às incorporações afetadas em que a retomada da construção seja decorrência de seu atraso excessivo ou paralisação injustificada sem concomitante falência ou insolvência do incorporador (art. 43, VII, da LCI). Com efeito, além de se referir especificamente à falência e insolvência, o art. 9º da Lei 10.931/2004 cita apenas a deliberação a que se refere o § 1º do art. 31-F, ao passo que a decisão pela retomada das obras sem que tenha havido falência ou insolvência encontra-se prevista no art. 43, VI. No § 6º do art. 31-F, criou-se um empecilho para os adquirentes que ainda não tenham quitado seus contratos com o incorporador como acontece com considerável quantidade de consumidores199. Ao exigir-lhes que ofereçam garantias reais para que possam receber a propriedade de suas unidades, dificultou-se algo que, pelo regime original da LCI, já contava com solução suficiente por meio de vinculação da fração ideal de terreno e acessão ao pagamento dos custos da construção por via de obrigação de natureza propter rem (art. 63). Por outro lado, representando um avanço, os §§ 1º e 7º do art. 31-F permitem que os adquirentes decidam concluir a obra ou liquidar o patrimônio de afetação 199 HÉRCULES AGHIARIAN assim explica o propósito do § 6º do art. 31-F: “Mais uma vez a redação dada ao dispositivo da lei constitui-se em técnica tímida. Em estilo confuso estabelece o parágrafo sexto do mesmo artigo 31-F que os contratos definitivos serão celebrados mesmo com os adquirentes que tenham obrigações a cumprir perante o incorporador ou a instituição financiadora, desde que comprovadamente adimplentes; situação em que a outorga do contrato fica condicionada à constituição de garantia real sobre o imóvel, para assegurar o pagamento do débito remanescente. Ao que tudo indica, o legislador quis ressaltar que qualquer adquirente, mesmo aquele que tenha obrigações pendentes para com o incorporador – isto é, o que ainda não integralizou os valores devidos para aquisição das unidades prometidas -, não estará impedido de celebrar contratos com a Comissão de Representantes. Para tanto, será necessário, apenas, que tais obrigações pendentes, de natureza de trato sucessivo, estejam sendo adimplidas em seu tempo de pagamento. Ou seja, o adquirente em mora, ou o inadimplente, não poderá firmar contrato com a Comissão de Representantes. De toda sorte, em face das obrigações pendentes, e para não colocar em risco o empreendimento, será necessário a este adquirente dar garantia, de alguma forma, de que as obrigações pendentes serão adimplidas, quer pelo pagamento normal, quer através da garantia”. (AGHIARIAN, Hércules. Patrimônio de afetação. Disponível em <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6408>. Acessado em 20.05.2009). 167 mediante alienação de seu terreno e suas acessões seguida de pagamento de seu passivo. Em qualquer dos casos, o empreendimento é destacado da massa falida, providência esta que não se permite nas incorporações desprovidas de afetação patrimonial, em que o empreendimento acaba arrecado pela massa caso os adquirentes não decidam concluí-lo. Decidindo pela liquidação, o produto da venda do terreno e das acessões as dívidas do patrimônio de afetação devem ser pagas pela Comissão de Representantes segundo a ordem de preferências estabelecida no art. 31-F, § 18. Também representativo de avanço em relação às incorporações não afetadas, como já referido, o § 12 do art. 31-F disciplina a forma de rateio dos custos para o término da obra pelos adquirentes em caso afastamento do incorporador original, minorando as dúvidas até então existentes. Outra inovação trazida pela Lei 10.931/2004 refere-se aos poderes necessários para outorga de escrituras aos adquirentes quando estes tenham firmado apenas promessa de compra e venda com o incorporador. Até então, destituído o incorporador, os adquirentes haviam de obter junto a ele a transferência da propriedade de suas frações ideais, providência esta que nem sempre se satisfazia de maneira pacífica e fácil. Agora, por força dos §§ 3º, 4º e 5º do art. 31-F, a destituição do incorporador investe a Comissão de Representantes, composta por consumidores eleitos dentre os adquirentes, ope legis, dos poderes necessários para transferir a propriedade aos adquirentes, podendo, do mesmo modo, alienar em leilão público todo o estoque de unidades (§ 15 do art. 31-F) que o incorporador não tenha comercializado. Do mesmo modo, caso a assembleia dos adquirentes (§§ 1º e 2º do art. 31-F) decida pela liquidação do patrimônio de afetação, a Comissão de de Representantes terá poderes para vender a propriedade do terreno e acessões (§ 7º, 8º, 9º e 14 do art. 31-F). A má técnica com que foram redigidos os §§ 14, 15, 17, 18 do art. 31-F, sugere iguais consequências para o arrematante e para os credores do patrimônio afetado em caso de leilão extrajudicial das frações ideais e acessões em decorrência da decisão pela continuidade das obras, e também em caso de alienação integral do terreno e suas acessões para fins de liquidação do patrimônio de afetação. Na realidade, quando o § 15 dispõe que o arrematante fica sub-rogado “nos direitos e obrigações relativas ao empreendimento, inclusive nas obrigações de eventual financiamento” e também nas obrigações existentes perante o proprietário 168 do terreno, está ele se referindo à arrematação de frações ideais e acessões de adquirentes inadimplementos ou integrantes do estoque não comercializado pelo incorporador, realizada com o propósito de alavancar recursos para concluir a obra tal qual decisão tomada na assembleia de trata os §§ 1º e 2º do art. 31-F. Pelo contrário, quando a arrematação tenha se realizado com o propósito de liquidar do patrimônio de afetação, caso em que a venda envolverá todo o terreno e acessões, obviamente o arrematante não ficará obrigado a quitar as obrigações do empreendimento, nem mesmo aquelas atinentes a eventual financiamento e aos direitos do proprietário do terreno. Com efeito, a arrematação efetivada em liquidação do patrimônio é feita em vias de extinguir a afetação (art. 31-E, II) e por isto mesmo não pode obrigar o arrematante a pagar, além do preço que se comprometeu a pagar pelo terreno e acessões, eventuais dívidas do empreendimento. Assim, uma vez arrematado e pago o preço, o único direito os credores do empreendimento afetado será o de participar de seu rateio segundo a ordem de preferências estabelecida no § 18 do art. 31-F. Sendo o preço de arrematação insuficiente para cobrir todo o passivo, aos credores só restará dirigir seu inconformismo contra o incorporador destituído de modo a que pague os valores faltantes (art. 31-A, § 2º). Aos consumidores somente os ônus. Concluído o empreendimento ou liquidado o patrimônio de afetação, se acaso sobejar receitas depois de quitado o passivo do patrimônio de afetação, o excedente deve ser entregue ao incorporador destituído (§ 13 do art. 31-F) ao invés de ser rateado entre ele, incorporador, e os adquirentes segundo a lógica da afetação patrimonial e também em consideração aos prejuízos de ordem material e moral que por certo a um ou a outro sempre são acarretados. Observe-se que esta previsão de restituição também não existe nas incorporações desprovidas de afetação patrimonial. Questão um tanto séria e que deixa à mostra o quanto o regime de afetação pode ser desfavorável aos adquirentes em comparação ao sistema original da LCI, diz respeito à real extensão das obrigações que assumem os adquirentes quando deliberem a continuidade da obra em assembleia. O § 11 do art. 31-F prevê que, neste caso, “os adquirentes ficarão automaticamente sub-rogados nos direitos, nas obrigações e nos encargos relativos à incorporação, inclusive aqueles relativos ao contrato de financiamento da obra, se houver”. A leitura deste dispositivo somada à lógica da afetação patrimonial, leva a crer que os adquirentes se tornam 169 responsáveis por todas as obrigações que estejam afetadas à incorporação, ainda que, para tanto, seja necessário que todos os adquirentes vertam recursos em quantia superior àquela prevista nos contratos firmados com o incorporador, de modo a permitir que essa responsabilidade seja infinita em termos de valores. A conclusão ganha reforço quando se leva em consideração o inciso I do art. 31-E, segundo o qual a extinção do patrimônio de afetação se dá, dentre outras causas, pela averbação da conclusão da obra na matrícula imobiliária e, quando for o caso, pela “extinção das obrigações do incorporador perante a instituição financeira do empreendimento”. Vale dizer, a conclusão da obra em si não basta: é preciso quitar também o agente financeiro que tenha concedido crédito para a construção do empreendimento. Antes da Lei 10.931/2004 ter alterado a LCI, o regime de afetação patrimonial nela figurou inserido na forma dos arts. 30-A a 30-F por força da Medida Provisória 2.221, de 04.09.2001. Para o término do patrimônio de afetação, o art. 30-B, § 8º, I, impunha, como uma das condições, a “extinção das obrigações do incorporador perante a instituição financiadora do empreendimento”. Já o art. 30-A, § 14, II, acrescentava que a extinção também dependia da quitação das “obrigações tributárias, trabalhistas e previdenciárias” vinculadas ao empreendimento. Revogada a Medida Provisória 2.221/2004, a Lei 10.931/2004 não manteve na LCI o teor do art. 30-A, § 14, II. Todavia, o art. 9º da Lei 10.931/2004 continua a prever, como já visto, que os adquirentes devem quitar integralmente as obrigações tributárias, trabalhistas e previdenciárias que tenham hipótese de incidência em data anterior à falência ou insolvência do incorporador. Logo, por força de interpretação entre o art. 9º da Lei 10.931/2004, o inciso I do art. 31-E da LCI e a lógica do patrimônio de afetação, é possível que ainda haja quem conclua que os adquirentes, ao retomar as obras, ficam responsáveis pelo pagamento das dívidas fiscais, previdenciária, trabalhista e mais o financiamento bancário contraído pelo incorporador ainda que a soma desse passivo supere o custo projetado do empreendimento. No entanto, essa interpretação correta não parece a correta, notadamente porque as alterações introduzidas pela Lei 10.931/2004 na LCI, são carentes de técnica e exigem esforço do intérprete. Já à época da Medida Provisória 2.221/2001, 170 MELHIN NAMEM CHALHUB200 criticava essa transferência de responsabilidades do incorporador para os adquirentes com argumentos que continuam aplicáveis ainda hoje: Esclarece o § 14 do art. 30C que “na hipótese dos §§ 2º a 6º os valores arrecadados à massa constituirão crédito privilegiado dos adquirentes” e que, ainda na hipótese dos citados parágrafos, “a extinção do patrimônio de afetação (...) não poderá ocorrer enquanto não integralmente pagas as obrigações tributárias, trabalhistas e previdenciárias a ele vinculadas”; a segunda parte dessa disposição, que condiciona a extinção do patrimônio de afetação ao resgate das obrigações tributárias, trabalhistas e previdenciárias, não comporta dúvida, pois, de acordo com a ordem natural das coisas, a extinção de qualquer massa patrimonial se dá mediante a realização do ativo e liquidação do passivo, no limite das forças do patrimônio , salvo em casos especiais, como, por exemplo, nas hipóteses de responsabilização do sócios. No caso das incorporações imobiliárias, ressalve-se apenas, que, embora o incorporador responda com seus bens pessoais pelos prejuízos que causar aos adquirentes e ao patrimônio de afetação, bem como aos credores, nos termos da Lei de Falências, essa responsabilidade não é extensiva aos adquirentes, não só por não terem estes nenhuma vinculação societária com a empresa incorporadora ou com a vida pessoal do incorporador, como, também, porque, dada sua qualidade de contratantes da aquisição de unidades, sua responsabilidade é limitada às forças do patrimônio de afetação, tendo como teto o valor da aquisição de suas unidades imobiliárias. Com razão o autor. Os consumidores, vulneráveis e em geral hipossuficientes, com direito de indenização passível de ser exigido de maneira solidária contra todos os fornecedores que tenham figurado na cadeia de produção, não podem, ao adquirir um bem de consumo, ver sua condição jurídica ser subvertida de modo a que passem eles a responder pelo insucesso da atividade empresarial de seu fornecedor, assumindo condição de incorporador substituto e devedor solidário frente aos credores daquele. Nota-se o desassossego da situação: passam a devedores do agente financeiro e até mesmo dos empregados de um possível construtor contratado pelo incorporador, pessoas essas que na verdade, pelo CDC, podem se responsabilizados pelo consumidor. Ademais, o patrimônio de afetação se forma com receitas e trabalho vindos dos adquirentes, do agente financeiro, dos trabalhadores empregados na obra, do proprietário do terreno, enfim. É essa soma que compõe o patrimônio de afetação. Assim, não faz sentido que apenas os adquirentes sejam responsabilizados pelo insucesso da incorporação, que inclusive pode ser fruto de fraude praticada pelo 200 CHALHUB, Melhim Namem. Da incorporação imobiliária. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar, 2003, p 123. 171 incorporador, de modo a garantir os créditos dos demais partícipes da rede contratual. Daí porque, se o patrimônio não é suficiente para cobrir as obrigações, ele é insolvente e deve necessariamente acarretar algum prejuízo a todos os partícipes, não só aos consumidores sob pena de transformá-los em incorporadores substitutos e solidariamente responsáveis pelo passivo afetado. De todo modo, interpretação sistemática da LCI pode afastar esse absurdo. Nesse sentido, o § 12 do art. 31-F dispõe que, decida a continuidade das obras pelos adquirentes, procede-se ao rateio das obrigações em que eles se sub-rogam de modo a que cada adquirente responda “individualmente pelo saldo porventura existente entre as receitas do empreendimento e o custo da conclusão da incorporação na proporção dos coeficientes de construção atribuíveis às respectivas unidades, se outro critério de rateio não for deliberado em assembléia geral”. Em complemento, o inciso III do § 12 conceitua “receitas” como sendo as parcelas vencidas e vincendas, ou seja, aquelas que tenham constatado do contrato firmado com o incorporador; ao passo que inciso IV do mesmo § 12 conceitua “custo de conclusão da incorporação” como sendo todo o “custeio da construção do edifício e a averbação da construção das edificações para efeito de individualização e discriminação das unidades nos termos do art. 44”. Com base nessas premissas legais, os adquirentes só estariam obrigados a quitar os débitos fiscais, previdenciários, trabalhistas e também o financiamento bancário (art. 9º da Lei 10.931/2004 e art. 31-E, I, da LCI), se acaso as “receitas” representativas dos saldos dos contratos firmados com o incorporador e do eventual estoque de unidades ainda não comercializadas excederem o valor necessário ao “custeio da construção do edifício” que, como bem esclarece o § 12, tem por fim apenas individualizar e discriminar as unidades junto ao cartório de imóveis. Têm-se outro argumento no § 18, VI, do art. 30-F. Uma vez que as receitas sejam superiores às dívidas do patrimônio de afetação e ao custeio da construção, o excedente deve ser entregue ao incorporador, providência esta que não ocorria se acaso os adquirentes fossem (o que não são) sucessores e responsáveis solidários do incorporador. Dúvida também há, sobre a qual algo já fora dito, no tocante à facultatividade da adoção do “Regime Especial de Tributação (RET)”, exercitável pelo incorporador, e a efetiva vinculação do passivo tributário ao empreendimento a comprometer os adquirentes. 172 Regulamentado sucessivamente pelas Instruções Normativas da Receita Federal do Brasil n. 474/2004, 689/2006 e 934/2009, ao criar o RET, a Lei 10.931/2004 teve por escopo permitir que as receitas do empreendimento afetado sejam tributadas de forma separada do incorporador, como se fosse uma nova pessoa. Segundo o disposto no art. 1º da Lei 10.931/2004, a adoção do RET é opcional, vale dizer, o incorporador pode optar pela adoção do regime de afetação da incorporação, mas não submetê-la ao RET. Adotado o RET, todavia, o incorporador ficará sujeito (art. 4º da Lei 10.931/2004) ao pagamento equivalente a 6% (seis por cento) da receita mensal do empreendimento, alíquota essa que corresponde ao pagamento mensal unificado do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas – IRPJ, Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público - PIS/PASEP, Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL e Contribuição para Financiamento da Seguridade Social - COFINS. Se a incorporação versar sobre imóveis residenciais de interesse social de valor máximo correspondente a R$ 60 mil reais no âmbito do “Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV)”, o percentual de recolhimento é reduzido a 1% da receita mensal (§§ 6º e 7º do art. 4º da Lei 10.931/2004). A facultatividade de adoção do RET, no entanto, não se mostra coerente com a lógica da afetação patrimonial porque, se não for adotado, os tributos gerados no âmbito da incorporação (à exceção do IPTU) não farão parte das obrigações do patrimônio afetado. Assim, o que de fato vincularia os demais tributos ao empreendimento não é submissão da incorporação ao regime de afetação patrimonial levada a registrado na matrícula imobiliária, mas sim a opção pelo RET, exercida na forma da Lei 10.931/2004 e da IN 934/2004 da Receita Federal. Daí porque entendido o RET como opcional, caso os adquirentes decidam concluir a obra ou liquidar o patrimônio de afetação, não será necessário quitar as obrigações fiscais e previdenciárias do empreendimento porque que não afetadas e, neste caso, fica parcialmente afastada a previsão do art. 9º da Lei 10.931/2004 segundo a qual os adquirentes teriam prazo para quitar as obrigações tributárias e previdenciárias sob pena de ficar sem efeito o regime de afetação e a deliberação pela retomada das obras ou liquidação do patrimônio. 173 Restaria aos adquirentes pagar as obrigações trabalhistas e ao fisco cobrar do incorporador os tributos devidos pelo incorporador por regime de lucro real ou de lucro presumido segundo esteja ele enquadrado. 174 CONCLUSÕES 1 - A atividade de incorporação se caracteriza pela alienação de unidades imobiliárias autônomas integrantes de edificação ou conjunto de edificações em construção ou cuja construção ainda não esteja iniciada, seguida de uma divisão física e jurídica que se espelham entre si criando novos imóveis sob a forma de condomínio pro diviso. 2 - A incorporação imobiliária pode se desenvolver sob três modelos (incorporação por preço fechado, com construção por regime de empreitada e com construção por regime de administração), que conjugam entre si o contrato de venda das frações ideais de terreno com o contrato de construção do edifício. 3 - O incorporador pode figurar como construtor em todos os três modelos de incorporação ou apenas como incorporador. 4 - A incorporação imobiliária se desenvolve em rede contratual que une direta ou indiretamente o incorporador, o construtor, os consumidores adquirentes, o agente financeiro que eventualmente tenha concedido crédito para financiar a promoção da incorporação, o proprietário do terreno sobre o qual se erige a construção, os fornecedores de matéria-prima, os trabalhadores empregados na obra e o Estado. 5 - A função social da atividade de incorporação imobiliária se traduz pela a conclusão do edifício. 6 - A rede contratual da incorporação imobiliária tem como causa sistêmica a aquisição de imóvel por parte do consumidor adquirente. 7 - Análise da função que o incorporador assume nos modelos incorporação por preço fechado, empreitada e preço de custo indicam, nesta ordem, a diminuição de suas responsabilidades mediante correspectiva transferência aos consumidores adquirentes. 8 - Como promotor-produtor do empreendimento, o incorporador sempre será considerado fornecedor perante os consumidores, em qualquer modelo de incorporação (preço fechado, empreitada e administração), mesmo que não atue como construtor, respondendo assim tanto por acidentes de consumo quanto por vícios inseridos em qualquer fase da cadeia de produção e prestação de serviço de que resulte a conclusão do empreendimento. 175 9 - O proprietário do terreno que tenha permitido ao incorporador a promoção de empreendimento imobiliário sobre seu imóvel só tem responsabilidade para com os consumidores nas hipóteses expressamente previstas na LCI. 10 – Exceto nas incorporações por preço fechado, o construtor do empreendimento, quando não seja ele o próprio incorporador, participa apenas como prestador de serviços de construção, responde por acidente de consumo e vícios decorrentes de seus serviços propriamente ditos, mas não responde por atos que a LCI qualifique como sendo tipicamente incorporativos. 11 - O agente financiador não tem responsabilidade por atos tipicamente incorporativos nem por acidentes de consumo ou vícios decorrentes da prestação de serviços de construção. 12 - A hipoteca constituída em favor de agente financeiro como forma de garantia do crédito concedido para a construção do empreendimento, no regime de afetação patrimonial, não tem eficácia se os recursos não forem comprovadamente empregados na incorporação. 13 - A incorporação imobiliária goza de autonomia funcional e patrimonial em relação ao incorporador e seu patrimônio geral. 14 - A afetação patrimonial nas incorporações imobiliárias implica atribuição de propriedade fiduciária sobre o terreno, acessões, créditos e demais direitos e obrigações a ela vinculados, divida entre o incorporador e os adquirentes, aquele com propriedade formal e estes com a propriedade substancial. 15 - Como integrante da relação fiduciária, o incorporador só mantém sua propriedade formal sobre a incorporação como meio de cumprir dever de administração voltada ao atingimento de sua função social da atividade. 16 - A desistência dos contratos de compra e venda com base no art. 53 do CDC pelos consumidores não encontra amparo legal, atentando contra a função social dos contratos e contra a boa-fé, além de desvirtuar o sistema de incorporação imobiliária quando visto como rede contratual. 17 - O artigo 63 da LCI não fere os princípios da inafastabilidade do controle jurisdicional, da proibição de autotutela e do contraditório, tendo sido recepcionado pela CF/88. 18 - Em caso de falência, insolvência, paralisação ou retardamento da obra, os adquirentes podem destituir o incorporador e decidirem concluir o empreendimento sem sua participação, caso em que todos os titulares de direitos 176 sobre as unidades imobiliárias em construção ficam obrigados a contribuir para o seu término, inclusive o incorporador, falido ou não, que ainda disponha de unidades sem comercialização. 19 - As obrigações fiscais da incorporação imobiliária só ficam de fato afetadas se acaso, além de adotar o regime de afetação, o incorporador também aderir ao Regime Especial de Tributação-RET. 20 - No regime de afetação, caso decidam concluir o empreendimento sem a participação do incorporador, os recursos aportados pelos consumidores adquirentes com o propósito de quitar as obrigações da incorporação não devem exceder o custo projetado do empreendimento, de modo que só estarão obrigados a pagar, com essa finalidade, os recursos que correspondam à soma das prestações vencidas e vincendas constantes dos contratos firmado com o incorporador. Uma vez pagas as prestações vencidas e vincendas, se ainda remanescer credores estes haverão de receber os créditos remanescentes pessoalmente do incorporador. A partir daí os consumidores poderão concluir o empreendimento sem que haja necessidade de quitar obrigações afetadas à incorporação. 21 - O regime de afetação patrimonial não favorece os consumidores adquirentes de imóvel “na planta” caso tenham eles próprios que concluir o empreendimento, quando comparado ao sistema tradicional da LCI, salvo no tocante a algumas facilidades operacionais. 177 BIBLIOGRAFIA AGUIRRE Y ALDAZ, Carlos Martinez de. El derecho civil a finales del siglo XX. Madrid: Tecnos, 1991; AGHIARIAN, Hércules. Curso de direito imobiliário. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2003; _____. Patrimônio de afetação. Disponível em <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6408>. Acessado em 20.05.2009; ALMEIDA, João Batista. A proteção jurídica do consumidor. 3ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2002; ALVES, José Carlos Moreira. Da alienação fiduciária em garantia. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987; ARAGÃO, José Maria. Sistema financeiro da habitação: uma análise sócio-jurídica da gênese, desenvolvimento e crise do sistema. Curitiba: Juruá Editora, 1999; ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito civil: direitos reais. 5ª Ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1; ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ENTIDADES DE CRÉDITO IMOBILIÁRIO E POUPANÇA – ABECIP. O Sistema Financeiro da Habitação em seus 30 Anos de Existência. Realizações, Entraves e Novas Proposições. [s.l.]: [s.n.], abr., 1994; AURNAGUE, Sebastián Vidal. Fideicomiso. Un sólo instrumento y muchas zonas oscuras. Disponível em <http://www.justiniano.com/revista_doctrina/Fideicomiso.html>. 20.01.2004; : Acessado em: 178 AZEVEDO JÚNIOR, José Osório de. Compromisso de compra e venda. São Paulo: Saraiva, 1983; BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 13ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1990; BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004; BÉNILDE, Marie. Neurociências à serviço do mercado. In Le monde diplomatique Brasil. São Paulo: Instituto Polis, Ano 1, número 4, novembro de 2007; BONATTO, Cláudio et MORAES, Paulo Valério Dal Pai. Questões controvertidas no Código de Defesa do Consumidor. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1998; BOTTEGA, Jéverson Luís. Incorporação imobiliária e a responsabilidade civil do incorporador. Porto Alegre: Norton Editor, 2005; CÂMARA Brasileira da Indústria da construção. Segregação contábil atinge 20% do empreendimentos. Disponível em: < http://www.cbic.org.br/mostraPagina.asp?codServico=1491&codPagina=7930>. Acesso em 20.10.2009; CÂMARA, Hamilton Quirino. Falência do incorporador imobiliário: o caso Encol. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004; CAMBLER, Everaldo Augusto. Incorporação imobiliária: ensaio de uma teoria geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993; _____. Et al. Responsabilidade civil do incorporador. ln: SEMINÁRIO O CREDITO IMOBILIÁRIO EM FACE DO NOVO CÓDIGIO CIVIL, 2003, São Paulo, debates do seminário. São Paulo: IRIB;ABECIP, 2005; 179 _____. Responsabilidade civil na incorporação imobiliária. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998; CHALHUB, Melhim Namem. Da incorporação imobiliária. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar, 2003; _____. Negócio fiduciário. 2ª ed. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar, 2000; _____. Proteção patrimonial dos adquirentes nas incorporações imobiliárias. Disponível em <http://www.melhimchalhub.com/files/docs/PROTECAO_PATRIMONIAL_DOS_A DQUIRENTES.pdf>. Acessado em 17.07.2009. _____. Trust: Perspectivas do direito contemporâneo na transmissão da propriedade para administração de investimentos e garantia. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar, 2001; CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no Direito Civil. Vol. 1. Coimbra: Almedina, 2007; _____. Estudos de Direito Civil. Vol. 1. Coimbra: Almedina, 1991; CORRALES, Francisco. The real property trust in Mexico. Disponível em: <http://www.natlaw.com/pubs/corrales.htm>. Acessado em: 25.01.2004; CORRÊA, Luiz Fabiano. A proteção da boa-fé nas aquisições patrimoniais. Campinas: Interlex Informações Jurídica, 2001; CUNHA, Daniela Moura Ferreira. Responsabilidade pré-contratual por ruptura das negociações. Coimbra: Almedina, 2006; 180 EFING, Antônio Carlos. Direito constitucional do consumidor: a dignidade humana como fundamento da proteção legal. In EFING, Antônio Carlos (Coord.). Direito do consumo. V. 1. Curitiba: Juruá Editora, 2001; _____. Fundamentos do direito das relações de consumo. 2ª Ed.. Curitiba: Juruá, 2004; FABIAN, Christoph. Fidúcia: negócios fiduciários e relações externas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2007; FRANCO, J. Nascimento et GONDO, Nieske. Incorporações imobiliárias. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1984; GARCEZ, José Maria Rossani. Constitucionalidade da Lei 9.307/96. Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem, n° 10. São Paulo: Revista dos Tribunais, out-dez de 2000; GHEZZI, Leandro Leal. A incorporação imobiliária. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007; GOMES, Orlando. Contratos. 18ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1999; _____. Introdução ao direito civil. 15ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000; GONDINHO, André Pinto da Rocha Osório. Direitos reais e autonomia da vontade: o princípio da tipicidade dos direitos reais. Rio de Janeiro: Renovar, 2000; GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988. 12ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007; GRINOVER, Ada Pellegrini. Et ali. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998; 181 GUARINELLO, Luiz Norberto. Cidades-estados na antiguidade clássica. In PINSKY, Jaime e PINSKY, Carla Bassanezi (orgs.). 3ª ed. História da cidadania. São Paulo: Contexto, 2005; KATAOKA, Eduardo Takemi. Declínio do individualismo e propriedade. In TEPEDINO, Gustavo (coord.). Problemas de direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000; LORENZETTI, Ricardo Luiz. Fundamentos do direito privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998; LOUREIRO, Francisco Eduardo. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Renovar, 2003; MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Contratos relacionais e defesa do consumidor. São Paulo: Max Limonad, 1998; MARINS, James. Responsabilidade da empresa pelo fato do produto. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993; MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor: o novo regime das relações contratuais. 5ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006; MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIM, Antônio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao código de defesa do consumidor. 2ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006; MARQUES FILHO, Vicente de Paula et DINIZ, Marcelo de Lima Castro (coords). Incorporação imobiliária & patrimônio de afetação: Lei 1.931/04 numa abordagem interdisciplinar. Curitiba: Editora Juruá, 2006; MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. T. XII. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971; 182 MONDAIME, Marco. O respeito aos direitos individuais. In PINSKY, Jaime e PINSKY, Carla Bassanezi (orgs.). 3ª ed. História da cidadania. São Paulo: Contexto, 2005; NALIN, Paulo. Ética e boa-fé no adimplemento contratual. In FACHIN, Luiz Edson (coord). Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998; NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. O código de defesa do consumidor e sua interpretação jurisprudencial. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2000; NERY JÚNIOR, Nélson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996; NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006; NORONHA, Fernando. Direitos das obrigações, vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2003; OLIVEIRA, Francisco Cardozo. Hermenêutica e tutela da posse e da propriedade. Rio de Janeiro: Forense, 2006; PARDAL, Francisco Rodrigues et FONSECA, Manuel Baptista Dias da. Da propriedade horizontal no código civil e legislação complementar. 4ª Ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1986; PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002; PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, v. I. Rio de Janeiro: Editora Forense, 21ª Ed., 2005; 183 ______. Condomínio e incorporações. 10ª ed. Rio de Janeiro: Companhia Editora Forense, 2000; PINHEIRO, Rosalise Fidalgo. O abuso do direito e as relações contratuais. Rio de Janeiro: Renovar, 2002; PINTO, Nélson Luiz Guedes Ferreira. Contrato de incorporação imobiliária. In THEODORO JÚNIOR, Humberto (Org.). O contrato imobiliário e a legislação tutelar do consumo. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002; POPP, Carlyle. Responsabilidade civil pré-negocial: o rompimento das tratativas. Curitiba: Juruá, 2001; PORTO NETO, Benedicto. Manual jurídico para construção civil. São Paulo: Editora PINI, 2007; RIBAS FILHO, Daniel Viegas. Patrimônio de afetação na atividade imobiliária: um estudo com construtoras e incorporadoras da grande São Paulo. 2006. 127f. Dissertação (Mestrado em Ciências Contábeis) - Centro Universitário Álvares Penteado – UniFecap, São Paulo, 2006; ROCHA, Everardo. A sociedade do sonho. 3ª ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1995; RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil: direito das coisas, V. 5. 27ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2002; ROSENVALD, Nélson. Dignidade humana e boa-fé no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2005; SALOMÃO NETO, Eduardo. O trust e o direito brasileiro. São Paulo: Editora Ltr, 1996; SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. Volume I. 5ª ed. São Paulo: Cortez Editora, 2005; 184 SCHMIDT, Francisco Arnaldo. Incorporação Imobiliária. 2ª Ed. Porto Alegre: Norton Editor, 2006; SILVA, Roberta Mauro e. Relações reais e relações obrigacionais: proposta para uma nova delimitação de suas fronteiras. In: TEPEDIDO, Gustavo (coord.). Obrigações: estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; STURZENEGGER, Luiz Carlos. A doutrina do “patrimônio de afetação” e o novo sistema de pagamentos brasileiro. Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem, n° 11, PP 229-244. São Paulo: Revista dos Tribuna is, jan-mar 2001; TEPEDINO, Gustavo. Multipropriedade imobiliária. São Paulo: Saraiva, 1993; THEODORO JÚNIOR, Humberto. Arbitragem e terceiro: litisconsórcio fora do pacto arbitral. Outras intervenções. Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem, n. 14. São Paulo: Revista dos Tribunais, out-dez de 2001; _____. O contrato e sua função social. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004; _____ (Org.). O contrato imobiliário e a legislação tutelar do consumo. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002; _____. Incorporação imobiliária: atualidade do regime jurídico instituído pela Lei n° 4.591/1964. Revista Forense, n° 100, v. 376. Rio de Janeiro: Editora Forense, nov-dez de 2004; TIMM, Luciano Benetti. Direito, economia e a função social do contrato: em busca dos verdadeiros interesses coletivos protegíveis no mercado do crédito. Disponível em: 185 <http://www.viadesignlabs.com/lawandeconomics/Funcao_Social_Contrato.pdf>. Acessado em: 04.12.2007; TOMÉ, Maria João Ramão Carreiro Vaz; CAMPOS, Diogo Leite de. A propriedade fiduciária (trust): Estudo para a sua consagração no direito português. Coimbra: Almedina, 1999; TUTIKIAN, Cláudia Fonseca. Da incorporação imobiliária: Implementação do direito fundamental à moradia. São Paulo: Quartier Latin, 2008; VALCÁRCEL, Cecilia Remiro. El fideicomiso como herramienta para la inversión inmobiliaria en Argentina. Actualidad Jurídica Uría & Menéndez, n. 13. s/l, s/ed. Jan-abr, 2006. VEDANA, Alexandre Torres. Responsabilidade civil do Estado e das pessoas jurídicas prestadoras de serviços públicos. In EFING, Antônio Carlos (Coord.). Direito do consumo, V. 1. Curitiba: Juruá Editora, 2001; WALD, Arnoldo. Alguns aspectos do regime jurídico do Sistema Financeiro Imobiliário (Lei 9.514/97). Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, n. 04. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, jan.-abr. 1999.