Os movimentos sociais e a emergência de uma nova noção de cidadania
EVELINA DAGNINO
(Do livro: Anos 90 - Política e sociedade no Brasil,
org. Evelina Dagnino, Ed. Brasiliense,1994, pág. 103-115)
A expressão cidadania está hoje por toda parte, apropriada por todo mundo, evidentemente com sentidos e intenções
diferentes. Se isso é positivo, num certo sentido, porque indica que a expressão ganhou espaço na sociedade, por outro
lado, face à velocidade e voracidade das várias apropriações dessa noção, nos coloca a necessidade de precisar e delimitar
o seu significado: o que entendemos por cidadania, o que queremos entender por isso. A minha apresentação será uma
tentativa nessa direção, um esforço de marcar o terreno, de indicar alguns parâmetros do campo teórico e político onde
essa noção emerge, especialmente a partir da década de 1980.
Nesse esforço - preliminar, como vocês verão - vou procurar enfatizar, de um lado, o que acho que é o seu significado
original (falo da sua origem contemporânea); de outro lado, aquilo que considero seja inovador, aquilo que pode justificar o
falar-se hoje de uma nova cidadania. Acho que é possível marcar, desde logo, esses dois sentidos da cidadania destacando
o seu caráter de estratégia política, o fato de que ela expressa e responde hoje a um conjunto de interesses, desejos e
aspirações de uma parte sem dúvida significativa da sociedade, mas que certamente não se confunde com toda a
sociedade. Nesse sentido, evidentemente as apropriações e a crescente banalização desse termo não só abrigam projetos
diferentes no interior da sociedade, mas também certamente tentativas de esvaziamento do seu sentido original e
inovador. Há uma disputa histórica pela fixação do seu significativo e, portanto, de seus limites.
Acho que há duas dimensões que presidem a emergência dessa nova noção de cidadania e que devem ser lembradas para
marcar o seu terreno próprio.
Em primeiro lugar, o fato de que ela deriva e portanto está intrinsecamente ligada à experiência concreta dos movimentos
sociais, tanto os de tipo urbano - e aqui é interessante anotar como cidadania se entrelaça com o acesso à cidade - quanto
os movimentos de mulheres, negros, homossexuais, ecológicos etc. Na organização desses movimentos sociais, a luta por
direitos - tanto o direito à igualdade como o direito à diferença - constituiu a base fundamental para a emergência de uma
nova noção de cidadania.
Em segundo lugar, o fato de que, a essa experiência concreta, se agregou cumulativamente uma ênfase mais ampla na
construção da democracia, porém, mais do que isso, na sua extensão e no seu aprofundamento. Nesse sentido, a nova
noção de cidadania expressa o novo estatuto teórico e político que assumiu a questão da democracia em todo o mundo,
especialmente a partir da crise do socialismo real.
Como conseqüência dessas duas dimensões, eu destacaria um terceiro elemento que considero fundamental nessa noção
do cidadania: o e o fato de que ela organiza uma estratégia de construção democrática, de transformação social, que
afirma um nexo constitutivo entre as dimensões da cultura e da política. Incorporando características da sociedade
contemporânea, como o papel das subjetividades, a emergência de sujeitos sociais de novo tipo e de direitos de novo tipo,
a ampliação do espaço da política, essa é uma estratégia que reconhece e enfatiza o caráter intrínseco e constitutivo da
transformação cultural para a construção democrática.
A questão da cultura. democrática assume um caráter crucial no Brasil e na América Latina como um todo. Esta é uma
sociedade na qual a desigualdade econômica, a miséria, a fome são os aspectos mais visíveis de um ordenamento social
presidido pela organização hierárquica e desigual do conjunto das relações sociais: o que podemos chamar autoritarismo
social.
Profundamente enraizado na cultura brasileira e baseado predominantemente em critérios de classe, raça e gênero, esse
autoritarismo social se expressa num sistema de classificações que estabelece diferentes categorias de pessoas, dispostas
nos seus respectivos lugares na sociedade.
Essa noção de lugares sociais constitui um código estrito, que a casa e a rua, a sociedade e o Estado. É visível no nosso
cotidiano até fisicamente: é o elevador de serviço, a cozinha que é o lugar da mulher, cada macaco no seu galho etc. etc.
Esse autoritarismo engendra formas de sociabilidade e uma cultura autoritária de exclusão que subjaz ao conjunto das
práticas sociais e reproduz a desigualdade nas relações sociais em todos os seus níveis. Nesse sentido, sua eliminação
constitui um desafio fundamental para a efetiva democratização da sociedade. A consideração dessa dimensão implica
desde logo uma redefinição daquilo que é normalmente visto como o terreno da política e das relações de poder a serem
transformadas. (1)
E, fundamentalmente, significa uma ampliação e aprofundamento da concepção de democracia, de modo a incluir o
conjunto das práticas sociais e culturais, uma concepção de democracia que transcende o nível institucional formal e se
debruça sobre o conjunto das relações sociais permeadas pelo autoritarismo social e não apenas pela exclusão política no
sentido estrito. Nossa referência aqui, portanto, é, mais do que um regime político democrático, uma sociedade
democrática. (2)
É um pouco constrangedor e desconfortável falar disso atualmente, num contexto onde, como agravamento as
desigualdades econômicas, a fome, a miséria, o autoritarismo social se transformou em apartheid social em violência, em
genocídio. No entanto, talvez seja exatamente mais importante ainda, num momento em que a gravidade da crise
econômica acaba determinando o que considero um certo "reducionismo econômico" na análise da questão da
democracia, enfatizar essa dimensão cultural da cidadania. Mesmo porque, de outro lado, me parece evidente o vínculo
entre esse autoritarismo social enquanto matriz histórica de ordenamento da nossa sociedade e o quadro de miséria a que
chegamos hoje, sem falar da privatização desvairada do Estado e dos recursos públicos a que assistimos hoje como
componente da crise política que vivemos.
Nesse sentido, eu gostaria de mencionar uma pesquisa sobre Cultura Democrática e Cidadania realizada em junho de 1993
em Campinas, São Paulo, cujos; resultados ainda estão sendo analisados. Foram realizadas 51 entrevistas, e aplicado um
questionário, com pessoas com algum tipo de experiência associativa, distribuídas em seis setores: sindicatos de
trabalhadores, sindicatos de classes médias, movimentos sociais de tipo urbano, movimentos sociais de caráter mais amplo
(de mulheres, de negros e ecológicos), associações de empresários e vereadores. Estávamos interessados em identificar
opiniões, valores e concepções com relação à democracia, à idéia de direitos e cidadania, referidas não só à sociedade
brasileira mas também ao funcionamento interno das associações, sindicatos e movimentos em que participavam. A minha
expectativa era de que a desigualdade social e econômica fosse maciçamente privilegiada nas respostas, dado inclusive o
caráter reivindicatório que marca a atividade política de grande parte dos entrevistados. Havia uma pergunta que dizia:
Na sua opinião, o que é mais importante para se dizer que um país é democrático? E em segundo lugar?
- Que existam vários partidos políticos
- Que todos tenham alimentação e moradia
- Que brancos, negros, homens, mulheres, pobres e ricos, todos sejam tratados igualmente
- Que as pessoas possam participar de sindicatos e associações
- Que se possa criticar e protestar
Para minha surpresa, 60,8% dos entrevistados apontaram o tratamento igual para brancos, negros, homens, mulheres,
ricos e pobres em primeiro lugar. A distribuição do resultado nos vários setores também é significativa:
Movimentos sociais de caráter mais amplo
70,0%
Movimentos sociais de tipo urbano
66,6%
Sindicatos de classe média
62,5%
Sindicatos de trabalhadores
60,0%
Empresários
57,1%
Vereadores
42,8%
O que esses resultados indicam é que a existência do autoritarismo social e da hierarquização das relações sociais é
percebida, mais do que a desigualdade econômica ou a inexistência de liberdade de expressão, de organização sindical e
partidária, como um sério obstáculo à construção democrática. Essa percepção parece ser mais aguçada entre os
movimentos sociais, a cuja experiência se vincula a nova noção de cidadania. Mesmo entre os movimentos sociais urbanos,
certamente aqui o setor mais penalizado pela desigualdade econômica, essa dimensão é a mais enfatizada.
Registrados esses três elementos inter-relacionados que pavimentam o terreno da noção de cidadania - sua vinculação à
experiência dos movimentos sociais, à construção democrática e seu aprofundamento, e o nexo constitutivo entre cultura e
política que do meu ponto de vista, caracteriza essa noção - , eu gostaria de retomar agora um ponto fundamental que
mencionei no início, que é a idéia de cidadania enquanto estratégia política. (3)
Afirmar a cidadania como estratégia significa enfatizar o seu caráter de construção histórica, definida portanto por
interesses concretos e práticas concretas de luta e pela sua contínua transformação. Significa dizer que não há uma
essência única imanente ao conceito de cidadania, que o seu conteúdo e seu significado não são universais, não estão
definidos e delimitados previamente, mas respondem à dinâmica dos conflitos reais, tais como vividos pela sociedade num
determinado momento histórico. Esse conteúdo e significado, portanto, serão sempre definidos pela luta política.
Uma das conseqüências dessa perspectiva é a necessidade de distinguir a nova cidadania dos anos 90 da visão liberal que,
tendo gerado esse termo nos fins do século XVIII como uma resposta do Estado às reivindicações da sociedade, acabou por
essencializar a noção de cidadania. Essa "essência", de cunho liberal, continua vigente até hoje, lutando para permanecer
como tal e certamente desempenhando funções bastante diferentes daquelas que caracterizaram a sua origem.
Essa distinção, que é ao mesmo tempo política e teórica, na verdade, é o que torna possível falar de sentido inovador e de
uma nova cidadania. Por outro lado, como reflexão, essa distinção ainda não avançou suficientemente, o que eu acho que
explica várias das críticas que a nova cidadania enfrenta.
De maneira muito preliminar, acho que é possível indicar alguns itens que apontam para essa distinção. Para além de uma
semelhança de vocabulário que expressa evidentemente referências comuns, as mais óbvias se referindo à própria questão
da democracia e à noção de direitos, centrais em ambas as concepções, é preciso examinar em que medida as diferenças
políticas que emergem também de um contexto histórico diferente, como acabei de mencionar, se expressam também
como diferenças conceituais. Esses itens estão, é óbvio, claramente vinculados com o que foi dito até aqui.
1.
Um primeiro item se refere à própria noção de direitos. Considero que a nova cidadania trabalha com urna redefinição da
idéia de direitos, cujo ponto de partida é a concepção de um direito a ter direitos. Essa concepção não se limita portanto a
conquistas legais ou ao acesso a direitos previamente definidos, ou à implementação efetiva de direitos abstratos e
formais, e inclui fortemente a invenção / criação de novos direitos, que emergem de lutas específicas e da sua prática
concreta. A disputa histórica é aqui também pela fixação do significado de direito e pela afirmação de algo enquanto um
direito. O direito á autonomia sobre o seu próprio corpo, o direito à proteção ambiental e o direito à moradia são exemplos
- propositadamente bastante diferentes - dessa criação de novos direitos. (4) Além disso, acho que é possível afirmar que
essa redefinição contempla não só o direito à igualdade, mas também o direito à diferença, uma questão polêmica à qual
vou voltar.
2.
Um segundo ponto, que retoma o direito a ter direitos, é que a nova cidadania, ao contrário da concepção liberal, não se
vincula a uma estratégia das classes dominantes e do Estado para a incorporação política progressiva dos setores excluídos,
com vistas a uma maior integração social, ou como condição jurídica e política indispensável à instalação do capitalismo. A
nova cidadania requer (e até é pensada como sendo esse processo) a constituição de sujeitos sociais ativos, definindo o que
eles consideram ser os seus direitos e lutando pelo seu reconhecimento. Nesse sentido, ela é uma estratégia dos nãocidadãos, dos excluídos, uma cidadania "de baixo para cima".
3.
A ênfase nesse processo de constituição de sujeitos, no "tornar-se cidadão", na difusão de uma "cultura de direitos retoma
a questão da cultura democrática que mencionei antes e mostra um terceiro ponto de diferença que é o alargamento do
âmbito da nova cidadania, cujo significado e importância estão longe de se esgotar no seu resultado enquanto aquisição
formal-legal de um conjunto de direitos. Ela se constitui também enquanto uma proposta de sociabilidade. Novas formas
de sociabilidade, um desenho mais igualitário das relações sociais em todos os seus níveis, e não apenas a incorporação ao
sistema político no seu sentido estrito. Esse alargamento do âmbito da cidadania no brasil de hoje pode também ser
pensado em termos de uma simultaneidade da conquista dos direitos civis, políticos e sociais, a que se refere Marshall,
uma situação bastante distinta da que o próprio Marshall considera tenha sido aquela dos países avançados, onde essas
conquistas se deram em momentos distintos.
4.
Essa ampliação implica, em relação com a concepção liberal, que a nova cidadania tem que transcender o foco privilegiado
da relação com o Estado, ou entre o Estado e o indivíduo, para incluir fortemente a relação com a sociedade civil. O
processo de construção da cidadania enquanto afirmação e reconhecimento de direitos è, especialmente na sociedade
brasileira, um processo de transformação das práticas sociais enraizadas na sociedade como um todo. Um processo de
aprendizado social, de construção de novas formas de relação, que inclui de um lado, evidentemente, a constituição de
cidadãos enquanto sujeitos sociais ativos, mas também, de outro lado, para a sociedade como um todo, um aprendizado de
convivência com esses cidadãos emergentes que recusam permanecer nos lugares que foram definidos socialmente e
culturalmente para eles. Isso supõe uma "reforma intelectual e moral", para usar um termo gramsciano. Parece-me que aí
está exatamente a radicalidade da cidadania enquanto estratégia política. Supor que o reconhecimento formal de direitos
pelo Estado encerra a luta pela cidadania é um equívoco que subestima tanto o espaço da sociedade civil como arena
política, como o enraizamento do autoritarismo social.
5.
Um quinto ponto seria a idéia e que a nova cidadania transcende uma referência central do conceito liberal que é a
reivindicação de acesso, inclusão, memberschip, "pertencimento" (belonging) ao sistema político na medida em que o que
está de fato em jogo é o direito de participar efetivamente da própria definição desse sistema, o direito de definir aquilo no
qual queremos ser incluídos, a invenção de uma nova sociedade. Estou pensando aqui, de um lado, no fato de que a
conquista dos direitos de cidadania, tal como definidos por aqueles que hoje no Brasil estão excluídos dela, implicará,
desde logo, modificações radicais na nossa sociedade e na estrutura das relações de poder que a caracterizam. Mas, por
outro lado, penso também, e em termos mais concretos, em práticas políticas recentes, como por exemplo as que têm
surgido em algumas cidades, administradas por governos municipais das Frentes Populares (26 prefeituras entre 1988 e
1992), onde os setores populares e suas organizações abriram espaço para uma participação efetiva na gestão das políticas
públicas. Estou me referindo aqui a experiências como a dos Conselhos Populares de Porto Alegre, especialmente o do
Orçamento Participativo, talvez a mais bem sucedida delas. O Fórum do Orçamento Participativo é um processo que se
iniciou em 1989 na gestão de Olívio Dutra e que tem se ampliado com a nova gestão de Tarso Genro, chegando a envolver,
em 1983, dez mil pessoas nas "rodadas" de discussão realizadas até o mês de julho. Essas rodadas incluem reuniões em 16
regiões da cidade que, nos seus Conselhos Populares e Plenárias Regionais, decidem as prioridades de investimento da
Prefeitura, que são então encaminhadas para o Fórum, com representantes eleitos (1 para cada 10 presentes nas
assembléias ou 1 para cada 20 presentes nas reuniões preparatórias nos bairros: em 1993 foram eleitos 700 delegados).
Além disso, esses delegados se organizam em comissões que acompanham o trabalho das empreiteiras contratadas pela
Prefeitura, fiscalizando prazos, qualidade e adequação das obras realizadas.
Porto Alegre é um exemplo entre muitos. Há um pipocar de microexperiências que não pode ser minimizado porque deixa
entrever as possibilidades de transformações importantes como resultados da construção da cidadania. Acho também que
essas experiências apontam uma nova fase dos próprios movimentos sociais, representada pelo seu esforço de adequação
à institucionalidade democrática, que revela uma alteração qualitativa nas suas práticas. Esse "salto de qualidade" interpela
diretamente, embora não invalide seu sentido, algumas observações já clássicas sobre o caráter dos movimentos sociais,
por exemplo, a predominância de interesses de tipo corporativo, que os fariam competir frente ao Estado pelo seu
atendimento, uma relação meramente clientelista com o Estado ou com quem pudesse atender esses interesses, a idéia
dos movimentos contra o Estado etc.
Ao contrário do que possa parecer, não me parece haver nenhuma contradição em enfatizar essas experiências de
intervenção popular no Estado, logo depois de ter mencionado a importância da sociedade civil e da transformação cultural
como espaços fundamentais de luta política para a construção da cidadania. O que essas experiências apontam é
exatamente que essa redefinição não é apenas dos modos de tomada de decisões no interior do Estado como também dos
modos como se dão as relações Estado-sociedade. Além disso, não aparece haver dúvida quanto ao fato de que elas
expressam - e contribuem para reforçar - a existência de sujeitos-cidadãos e de uma cultura de direitos que inclui o direito
de ser co-partícipe da gestão da cidade. As dificuldades comumente apontadas para que os setores populares venham
efetivamente a desempenhar esse papel, dificuldades que são reais e extremamente complexas, como as assimetrias de
informação, de uso da linguagem, de saber técnico, não estão servindo de pretexto para que se descarte essa possibilidade,
mas estão sendo enfrentadas na prática.
Mais ainda, eu riria que esse tipo de processo contribui para a criação de um espaço público onde os interesses comuns e
os particulares, as especificidades e diferenças podem ser discutidos, como tem ocorrido, por exemplo, tanto no âmbito
dos Conselhos Populares dos bairros como na discussão mais ampla no Fórum do Orçamento Participativo.
Um espaço público como uma cena na qual o conflito é visto como "necessário, irredutível e legítimo", onde "o próprio
direito é sujeito a uma constante reinterpretação, enquanto debate sempre reaberto sobre o justo e o injusto, o legítimo e
o ilegítimo". (5)
Gosto de contar a historinha, - real - sobre o bispo de Porto Alegre, que três anos atrás procurou o então prefeito Olívio
Dutra, no seu gabinete para apresentar a proposta de construção de um novo estacionamento para um santuário no bairro
da Glória. Ele foi gentilmente remetido ao Conselho Popular do bairro, onde Sua Eminência teve que responder a perguntas
sobre por que a igreja, com tantos fiéis no bairro sem ter onde morar, queria usar um terreno daquele tamanho para
estacionamento.
Será sempre possível argumentar, de novo, que esse tipo de espaço público é instituído pelo Estado com intenções
autolegitimadoras, como instrumento de cooptação etc. Gostaria de antecipar dois alertas a essa interpretação, que não é
certamente descabida mas corre o risco de simplificar excessivamente a situação real.
O primeiro vem por via empírica: no caso específico de Porto Alegre, a pesquisa tem ressaltado que os movimentos
populares urbanos de Porto Alegre têm uma longa e sólida história de luta, que inclui não só a construção institucional de
associações como a FRACAB e a UAMPA, como um esforço constante de construir estruturas de representação
democráticas e transparentes, que reivindicam hoje a co-gestão dos serviços que significam o atendimento dos direitos
sociais. (6)
Além disso, esses movimentos têm tido historicamente uma vinculação partidária relativamente diversificada, com uma
participação importante do PDT, em cuja gestão na Prefeitura, aliás, se iniciaram as discussões sobre a criação dos
Conselhos Populares, além, evidentemente, do PT. Essas características dificultam uma análise simplista de pura
instrumentalização pelo Estado. O segundo ponto é de caráter teórico e se liga à idéia de pensar os movimentos sociais
como redes, com maior ou menor visibilidade mas sempre com certa permanência, como sujeitos políticos não só coletivos
mas múltiplos, heterogêneos, que compartilham alguns princípios básicos sobre a participação popular, a cidadania e a
construção democrática, e que hoje podem ser vistos como incluindo desde associações de moradores até organizações
não governamentais, setores partidários e, por que não, setores do Estado, especialmente nos níveis municipal e estadual.
(7)
Esses experimentos de co-gestão dos serviços públicos são evidentemente tanto mais complexos quanto escassos são os
recursos públicos destinados a novos investimentos, demandando o processamento político das demandas específicas e a
sua negociação no âmbito da cidade como um todo, processos que apontam, numa proporção até microscópica, se
quiserem, para um elemento fundamental na construção democrática: a carência se generalizando como interesse comum
e se universalizando como direito.
6. Um sexto e último ponto, que é conseqüência dos anteriores, se refere à idéia de que essa nova noção de cidadania pode
constituir um quadro de referência complexo e aberto para dar conta da diversidade de questões emergentes nas
sociedades latino-americanas: da igualdade à diferença, da saúde aos meios de comunicação de massa, do racismo ao
aborto, do meio ambiente à moradia. É nesse contexto que eu queria retomar uma questão difícil que mencionei antes, a
de que a nova noção de cidadania é capaz de incorporar tanto a noção de igualdade como a da diferença. Acho que um
esforço de diferenciação com relação à visão liberal, como o que eu apenas consegui esboçar aqui, é absolutamente crucial
para confrontar as críticas que a noção de cidadania tem recebido, especialmente as que vêm da teoria feminista.
A visão crítica da teoria feminista sobre a cidadania, que se estende também à noção de um espaço público como espaço
de construção de direitos, pode ser resumida na objeção que coloca às premissas de racionalidade, universalidade e
imparcialidade, que presidiriam essas noções.
Estou me referindo aqui especialmente às críticas desenvolvidas por Iris Marion Young, Nancy Fraser e Mary Dietz. (8)
Para escapar a esses determinantes, que basicamente não contemplariam a questão da diferença, tão vital ao pensamento
feminista, sugere-se, por exemplo, uma "cidadania diferenciada" e um "público heterogêneo". Não é a ocasião para
desenvolver uma análise mais detida dessas críticas, e eu nem tenho competência para isso. Mas gostaria de sugerir que o
que eu tentei apontar aqui como uma visão historicizada da cidadania como estratégia me parece um quadro de referência
teórico e político onde seria possível articular o direito à igualdade com o direito à diferença.
Enquanto estratégia, o conteúdo da cidadania é sempre definido pela luta política e é portanto capaz de incorporar
dimensões da subjetividade, aspirações e desejos, em suma, interesses - no sentido de lhes dá E. P. Thompson quando diz:
"interesse é tudo aquilo que interessa às pessoas, inclusive o que lhes é mais caro", (9) na medida em que esses interesses,
através da luta política, consigam se generalizar como interesse coletivo e se instituir em direitos.
Se eu não ouso empreender aqui a tarefa de uma análise sistemática da teoria feminista sobre a cidadania, e me sentindo
obrigada a argumentar em defesa dessa possibilidade de articulação, vou me valer de um ar tigo de Flávio Pierucci, cujo
título é "Ciladas da diferença" e que me ajudou enormente a organizar as poucas idéias claras que talvez eu tenha sobre o
assunto. (10)
O argumento central do texto é que a questão da diferença, a atenção, a obsessão e a celebração da diferença têm sido
historicamente - e certamente, hoje, o neo-racismo europeu é uma evidência disso - um elemento fundamental do
pensamento e da prática do conservadorismo, da direita.
Para o autor, o "efeito perverso por excelência do enfoque na diferença (...) como bandeira de luta dos movimentos de
esquerda (... ) o embaçamento do foco ou um obscurecimento ainda maior das diferenças definidoras dos campos
adversários na guerra ideológica"; esse enfoque "( ... ) legitima que a diferença seja invocada e as distâncias alargadas" (p.
14). A isso ele agrega a necessária elitização do que ele chama a opção diferencialista da esquerda (p. 16), que exigiria um
trabalho conceitual mais cuidadoso, refinado e crítico, em contraste com a afirmação enfática da diferença utilizada pela
direita, que seria "uma constatação do bom senso", um fato concreto, uma "verdade imediata e inconteste".
Como, ao lado disso, Flávio também parece entreabrir uma porta de saída para a cilada da diferença, ao dizer: "para a
esquerda não pode haver escolha entre a igualdade e a diferença, como a escolha há e sempre houve para a direita. Se é
para alguém da esquerda abraçar a diferença, que o faça sem abrir mão da igualdade" (p. 16), eu vou tentar explorar um
pouco essa brecha.
Para mim não se trata de recusar a diferença, mas de entender o que ela designa. Em vez de mergulhar na cilada, eu
gostaria de reafirmar, como tem sido uma tendência importante também no campo da teoria feminista, a existência de um
vínculo intrínseco entre a igualdade e a diferença. No campo da direita, a diferença sempre emerge como afirmação do
privilégio e portanto como defesa da desigualdade. No campo da esquerda, no campo da cidadania, a diferença emerge
enquanto reivindicação precisamente na medida em que ela determina desigualdade. A afirmação da diferença está
sempre ligada à reivindicação de que ela possa simplesmente existir como tal, o direito de que ela possa ser vivida sem que
isso signifique, sem que tenha como conseqüência, o tratamento desigual, a discriminação.
Ao querer escapar da cilada não quero recusar ou negar os riscos dessa articulação. Só que eles não me parecem maiores
do que os riscos de aceitar a disjuntiva entre igualdade e diferença. Com relação ao risco de embaçar o foco, de
obscurecimento das fronteiras, eu diria que todo campo político relevante é sempre um campo minado, um campo de
disputa pela fixação de significados. Os mecanismos de apropriação e desapropriação de significados são parte constitutiva
da luta política. Por outro lado, dizer que a diferença "positiva" (aquela afirmada na defesa de um privilégio) seja um dado
sensível imediato e portanto facilmente apreensível por todo mundo, e que a diferença "negativa" (que serve de base à
discriminação e à desigualdade) não o seja, requerendo elaboração teórica complexa, corre o risco de ser mais um viés
profissional de pesquisador do conservadorismo popular do que uma avaliação adequada senão da consciência, pelo
menos da sensibilidade dos milhões de mulheres, negros, nordestinos, homossexuais, velhos, deficientes físicos etc. etc.
etc. que sobrevivem ao seu cotidiano nessa nossa cultura autoritária.
Uma das razões fundamentais da sedução que a noção de uma nova cidadania exerce hoje em dia é a possibilidade de que
ela traga respostas aos desafios deixados pelo fracasso tanto de concepções teóricas como de estratégias políticas que não
foram capazes de articular essa multiplicidade de dimensões que, nas sociedades contemporâneas, integram hoje a busca
de uma vida melhor. Dessa capacidade de articular os múltiplos campos onde se trava hoje no Brasil a luta pela construção
da democracia e pelo seu aprofundamento, depende o futuro da nova cidadania enquanto estratégia política.
NOTAS
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
10.
Ver Ernest Laclau." New Social Movements and the Plurality of the Social", e David Slater. "Social Movements and a
Recasting of the Political", in New Social movements and the State in Latin Anterica, org, por David Slater, Amsterdã, Cedla,
1985.
Esforços recentes de reconceitualização da noção de democracia expressam preocupações semelhantes; e evidenciam o
novo estatuto teórico e político que ela tem assumido nos últimos anos em todo o mundo. Ver, por exemplo. Dimensions of
Radical Democracy, org. por Chantal Mouffe, Londres, Verso, 1992; Francisco Weffort, Qual democracia?, São Paulo,
Companhia das Letras, 1992.
Para a noção de cidadania como estratégia política, ver Antie Wiener, "Citizenschip - New Dynamics of na Old Concept. A
Comparative Perspective", mimeo, trabalho apresentado no XVIi Internacional Congress, da Latin American Studies
Association, Los Angeles, Califórnia, 1992
Por exemplo juntamente com os direitos tradicionalmente assegurados em legislações anteriores, foram incorporados à Lei
Orgânica do Município de Porto Alegre em1989, o direito ao 'meio ambiente equilibrado' e o direito à habitação. Na
Constituição Federal de 1988, diferentemente, a questão da habitação não foi reconhecida como direito, ao lado de outros
como educação etc., recebendo outro tipo de tratamento no texto constitucional.
A primeira citação é de Claude Lefort, Pensando o político, Rio de janeiro, Paz e Terra, 1991, p. 264. A segunda, de Vera da
Silva Telles, "Espaço público e espaço privado na constituição do social: notas sobre o pensamento de Hannah Arendt",
Tempo Socia4 2(1), 1990, p. 45. 6.
Ver Sergio Baierle, "Um novo princípio ético-político: Prática social e sujeito nos movimentos populares urbanos em Porto
Alegre nos anos 80", dissertação de Mestrado, Departamento de Ciência Política, UNICAMP, 1992.
A idéia de pensar os movimento sociais como redes foi desenvolvida, entre outros, por Sonia Alvarez e Ana Maria Doimo.
Ver Sonia Alvarez. "Deepening Democracy: Popular Movement Networks. Constitutional Reform and Radical Urban
Regimes in Contemporary Brazil", em Mobilizing the Community: Local Politics in the Era of the Global City, org. por Robert
Fischer e Joseph Kling, Califórnia, Sage Publications, 1993, e Ana Maria Doimo, "Movimento Popular pós-70: Formação de
um campo ético-político", tese de Doutoramento, USP, 1993.
Ver, por exemplo. Iris Marion Young. Polity and Group Difference: A Critique of the Ideal of Universal Citizenship", Ethics, 99
(jan. 1989), e "Imparcialidade e público cívico: Algumas implicações das críticas feministas da teoria moral e política", em S.
Benhabib e D. Cornell, O feminismo como crítica da modernidade, Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos, 1992; Nancy Fraser,
"Rethinking the Public Sphere", Social Text, 25/26, 1991; Mary Dietz. "Context is All: Feminism and Theories of Citizenship",
em Chantal Mouffe. Dimensions of Radical Democracy, Londres, Verso, 1992.
"... a noção de que todos os interesses podem ser classificados em objetivos materiais cientificamente identificáveis não
passa do mau hálito do utilitarismo", A miséria da teoria, Rio de janeiro, Zahar, 1981, p. 194.
Antônio Flávio Pierucci, "Ciladas da diferença", Tempo Social, revista de Sociologia da USP, São Paulo 2(2), 2º' semestre
1993, p. 10 .
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