Dennis Gabor e o desenvolvimento da holografia Seminarista: Osvaldo Canato Jr Curso: História da Mecânica Quântica (Jornada “História da Física no Século XX”) Professor: Osvaldo Pessoa Jr Programa: Pós Graduação Interunidades em Ensino de Ciências Instituição: Universidade de São Paulo A sequência I. Holografia x fotografia: quais as principais semelhanças e diferenças entre esses processos de se desenhar/escrever com luz? II. Origens e desenvolvimento da “holografia pré-laser”. III. O laser e o desenvolvimento posterior da holografia. IV. Aplicações e implicações da holografia. I.1 - A produção de uma fotografia Fonte de luz comum Luz incidente Uma máquina fotográfica é, essencialmente, uma câmara escura de orifício. filme fotográfico objeto imagem orifício O processo: câmara Luz refletida 1) Ilumina-se o objeto com luz branca comum. 2) De cada ponto iluminado do objeto um único raio de luz atravessa o orifício da câmara e incide sobre o filme. 3) A incidência de luz sobre o filme provoca modificações na estrutura atômica da emulsão gelatinosa que o recobre. Luz mais intensa, sensibiliza mais o filme. 4) Com uso de produtos químicos, revela-se o filme e cria-se o negativo da imagem, cujas regiões mais escuras correspondem a maiores incidências de luz do que nas regiões mais claras. 5) O uso de novos produtos químicos produzem o “branqueamento” do filme, permitindo a transformação do negativo em positivo. OBS: embora nas câmaras digitais não exista o filme fotográfico, a comparação com a câmara escura continua válida, com a correspondência um a um entre pontos do objeto e da imagem. I.2 - A visualização da fotografia fonte de luz comum feixe de iluminação Luz refletida fotografia Para admirar a fotografia basta observar a luz visível comum por ela refletida. I.3 - A produção de uma holografia Frente de ondas de referência. Filme holográfico Objeto Frente de ondas emitida pelo objeto P O processo: 1) A luz (frente de onda luminosa) emitida por uma fonte laser é expandida por uma lente divergente de forma a atingir o filme holográfico de duas maneiras diferentes: diretamente e após a reflexão pelo objeto. 2) As duas frentes de onda sofrem interferência ao incidirem no filme holográfico, ficando registrada não só a intensidade luminosa, mas também de que posição vieram. 3) Cada ponto do objeto emite luz para todos os pontos do filme holográfico (reflexão difusa) e em cada ponto do filme holográfico incidem raios luminosos refletidos de todos os pontos do objeto. 4) Com uso de produtos químicos, revela-se o filme e cria-se o negativo holográfico, cujas regiões mais escuras correspondem a maiores incidências de luz do que nas regiões mais claras. I.4 - A visualização do holograma Lente Divergente Luz laser transmitida Frente de onda do objeto reconstruída Luz laser de referência Franjas de interferência Holograma Fonte de luz laser Imagem virtual formada atrás do holograma Fonte laser (frente de onda de referência) Imagem virtual A observação direta do holograma não revela a imagem do objeto mas, sim, uma figura com franjas claras e escuras. As frentes de ondas emitidas pelo objeto na produção do holograma estão “desconstruídas”, superpostas com as frentes de ondas emitidas pela luz de referência. É preciso, assim, reconstruir a frente de ondas do objeto, o que é feito iluminando-se o holograma com uma luz de referência e observar, em ângulo apropriado, o feixe luminoso por ele transmitido. Em primeira aproximação, as franjas de interferência se assemelham a pequenos espelhos que refletem a luz e formam uma imagem virtual. Diferentemente da fotografia, a imagem não é vista no filme revelado, mas, sim, através dele, tratando-se de uma imagem virtual posicionada exatamente no local em que o objeto estava quando foi holografado. Cada ponto do holograma fornece, sob diferentes ângulos de visão, a imagem tridimensional do objeto. I.5 - Holografia x Fotografia A observação de holografias e fotografias permite estabelecer algumas comparações. Fotografia Holografia Ângulo de visão Único Múltiplos Dimensão Bidimensional Tridimensional Registro em cada parte do filme Uma única parte do objeto Todas as partes do objeto (holo = todo) Luz usada na produção Luz branca comum Laser Luz usada na visualização Luz branca comum Laser ou luz branca comum II.1 - Gabor e a microscopia eletrônica Dennis Gabor (1900-1979) Húngaro de ascendência judia materna. Formado em engenharia na Alemanha e inicialmente pesquisador da Siemens alemã. Com a ascendência de Hitler ao poder, deslocou-se para a Inglaterra, assumindo contrato de trabalho com a British Thomson Houston. Coube a Gabor a pesquisa quanto à melhoria da resolução do microscópio eletrônico. II.2 – Um problema de resolução óptica Poder de resolução (óptica): menor distância distinguível entre dois pontos Poder de resolução humano 0,1 a 0,2 mm 106 diâmetros atômicos Poder de resolução de microscópios 200 a 300 nm 103 diâmetros atômicos. ópticos ( 10-6 m) Poder de resolução permitido pelo uso 0,004 a 0,005 nm bem maior que o de um feixe “luminoso” de elétrons ( diâmetro de um átomo 10-12 m) Poder de resolução real do microscópio 12 Å (cerca de 6 diâmetros atômicos). eletrônico na época de Gabor Problema insolúvel, mesmo que melhorado Aberração esférica produzida pelas lentes magnéticas necessárias para focalizar o feixe de elétrons. II.3 – O insight “Por que não tomar una imagem eletrônica ruim, mas que contenha a informação 'total', reconstruir a onda e corrigi-la por métodos ópticos?" Em maio de 1948, Gabor apresenta na Nature a técnica da microscopia por frentes de ondas reconstruídas. O processo: 1. Ilumina-se o objeto com um feixe de elétrons expandido por uma lente. 2. Posiciona-se uma emulsão fotográfica à frente do objeto. 3. As frentes de ondas que passam pelo objeto se superpõem àquelas emitidas diretamente pela fonte. 4. Um padrão de interferência é gravado na tela; trata-se de uma imagem “ruim”, um holograma, com franjas escuras e claras distanciadas da ordem do comprimento de onda do elétron. 5. Um feixe de luz visível incidente nesse holograma, a partir da mesma posição original da fonte eletrônica, reconstrói as frentes de ondas transmitidas pelo objeto, formando uma imagem virtual desse objeto em seu local original. 6. Como a luz visível tem um comprimento de onda 1 milhão de vezes maior que o elétron, a imagem do objeto aparecerá ampliada nessa mesma proporção. II.4 – Resultados insatisfatórios O holograma funciona como um lente de Fresnel, produzindo um feixe convergente e outro divergente (além de um feixe residual que não sofre desvio). A imagem real formada em linha com a virtual dificultava a nitidez. Inexistência de uma fonte luminosa suficientemente coerente para produzir um adequado padrão de interferência. Entre 1947 e 1955 foram publicados apenas cerca de 50 trabalhos sobre a nova técnica de Gabor e por volta de 1958 o campo de estudo parecia estar em completo abandono. Feixe incidente desde um “ponto no infinito” Imagem virtual Placa zonal de Gabor Feixe divergente Feixe residual Feixe convergente Imagem real II.5 - Denisyuk e a fotografia de ondas Yury Nikolaevich Denisyuk (1927-2006) Russo, pesquisador do Instituto Estatal de Óptica Vavilov, em Leningrado. Desconhecendo o trabalho de Gabor e inspirado em trecho de um livro de ficção científica do escritor russo Efremov, “reinventou”, em 1958, a holografia. Já ciente do trabalho de Gabor, Denisyuk publica, em 1962, em revista científica da URSS, artigo em que descreve a técnica da fotografia de ondas. Trata-se de um holograma de reflexão . que, iluminado com luz branca comum, fornece a imagem virtual do objeto na cor do feixe de referência utilizado em sua produção . Problemas: falta de luz suficientemente coerente e má qualidade da emulsão. II.6 - Leith e a reconstrução das microondas Emmett Leith (1927-2005) Norte americano, pesquisador no Projeto Michigan (projeto secreto relacionado ao uso militar de radares, instalado em laboratório da Michigan University, em Ann Arbor). Também desconhecendo o trabalho de Gabor, “reinventou”, em 1955, a holografia a partir da técnica de registrar em um filme fotográfico a informação das ondas de radar refletidas por um objeto e sua posterior reconstrução por meios ópticos. III.1 - O papel do laser na holografia No início da década de 60 surge o laser (Light Amplification by Stimulated Emission of Radiation). O laser é uma luz monocromática (um só comprimento de onda) e altamente coerente (emissão de luz de forma regular no tempo e no espaço). A importância da coerência do laser reside na qualidade do padrão de interferência formado no holograma. Qualquer tipo de onda pode sofrer interferência: • “água + água” pode provocar grandes elevações em objetos que bóiam em sua superfície ou se cancelarem, passando pelo objeto como se não houvesse onda alguma. • “som + som” pode resultar em som de alta intensidade ou em silêncio. • “luz + luz” pode resultar em algo brilhante ou escuridão. Mas para que a interferência luminosa ocorra de forma estável e possa ser utilizada de forma a guardar informações precisas e confiáveis, é necessário que a luz utilizada seja coerente. III.2 - Leith e Upatnieks e a fotografia sem lentes Em 1963, um trabalho conjunto de Leith com seu colega de pesquisa Juris Upatnieks (1936-), publicado no Journal of the Optical Society of America, apresenta a técnica da fotografia sem lentes ou holografia fora do eixo, como ficou mais conhecida. Na produção do holograma o feixe de referência incide inclinado de um ângulo com relação ao plano do filme holográfico. Quando o holograma é iluminado pelo feixe de referência, as imagens virtual e real não são mais formadas na mesma linha de visão. III.3 – Grande repercussão Em abril de 1964, em conferência da Optical Society of America, Upatnieks apresentou sua mais recente holografia. Surpresos, alguns dos pesquisadores presentes chegaram a perguntar “onde está o trem?”, ao que Leith respondeu “lamento ter que dizer, mas o trem voltou para Ann Arbor!”. O trabalho de Leith-Upatnieks, teve grande repercussão, trazendo um pouco de “holo” à história do holograma, pois aquelas três invenções (Gabor, Dennisyuk, Leith-Upatnieks) passaram a ser interpretadas como parte do mesmo fenômeno, cunhando-se em algum momento dessa época o termo holografia. Nos anos seguintes à apresentação de Upatnieks, mais de mil artigos sobre hologramas a laser foram publicados. Em 1966, George Stroke (1924-) publicou An Introduction to Coherent Optics and Holography, livro que teve 3665 cópias vendidas em seu primeiro ano. III.4 - Benton e o holograma de arco íris Stephen Benton (1941-2003) Norte americano, pesquisador do Massachusetts Institute of Technology. Em 1968 Benton inventou o holograma de arcoíris, um holograma de transmissão que pode ser visto com iluminação por luz branca comum e que permitiu o desenvolvimento de cópias holográficas de boa qualidade e quantidade. III.5 - Gabor e o prêmio Nobel Em 1971 Dennis Gabor é laureado com o prêmio Nobel por sua descoberta da holografia em 1947. Seguem duas citações de sua palestra proferida no recebimento do prêmio: As I said at the beginning, I shall be lucky if I shall be able to see in my lifetime the realisation of holographic electron microscopy, on which I have started 24 years ago. Summing up, I am one of the few lucky physicists who could see an idea of theirs grow into a sizeable chapter of physics. I am deeply aware that this has been achieved by an army of young, talented and enthusiastic researchers, of whom I could mention only a few by name. I want to express my heartfelt thanks to them, for having helped me by their work to this greatest of scientific honours. IV.1 - Aplicações 1964 – Robert Powell e Karl Stetson notaram franjas de interferência em um holograma de um objeto deformado; nascia a interferometria holográfica. 1972 – Lloyd Cross (1934-) desenvolve o holograma multiplex que combina técnicas cinematográficas com a holografia de transmissão por luz branca. 1978 - Akiro Tonomura (1942-) consegue observar as primeiras imagens produzidas por um microscópio eletrônico holográfico. IV.2 - Aplicações “sem fim” Armazenamento de informações secretas. Filmes holográficos. Holografia acústica. Holografia de microondas. Holograma de projeção. Hologramas gerados por computadores. Lentes Holográficas. Memórias holográficas. Produções artísticas. Reconhecimento de padrões (digitais, por exemplo). Speckle. TV holográfica. ...! IV.3 – Universo holográfico? O problema do emaranhamento: na Mecânica Quântica se admite que duas partículas podem estar correlacionadas, com um valor medido em uma delas (do spin, “para cima”, por exemplo) trazendo certeza do valor a ser medido na outra (do spin “para baixo”)…mesmo que uma delas esteja na Terra e a outra na Lua! Mas não é razoável supor transmissões de informações instantâneas, violando o limite da velocidade da luz. • A Mecânica Quântica seria, então, incompleta? • Deve-se abandonar a premissa da localidade? • O realismo deve ser rejeitado? Para David Bohm (1917-1992), um objeto não pode ser isolado do resto do universo que prima por ser indivisivo ou holográfico. Da mesma forma que dois pontos distintos de um holograma se constituem ao mesmo tempo parte e todo de uma única imagem, a separação das partículas emaranhadas seria uma ilusão, já que elas e tudo o mais fazem parte de um todo indivisível e em constante fluxo, o holomovimento. IV.4 – Bioholograma? O problema da memória: são diversas as pesquisas que mostram que não há um local específico do cérebro responsável pelo armazenamento da memória; ela parece estar dispersa por todo o cérebro. Para o neurofiologista Karl Pribram (1919-), analogamente aos padrões de interferência gravados no holograma, a memória é codificada em padrões de cruzamentos de impulsos nervosos dispersos por todo o cérebro. Para o cientista russo Peter Gariaev a questão do código genético é apenas uma parte da história acerca das funções do DNA que por ter um comportamento dual onda-partícula poderiam ser “lidos” por biofótons emitidos pelos cromossomos e projetar sua imagem holográfica. É claro que tudo isso é “prato cheio” para a “onda” do misticismo quântico…! Conclusão A holografia, nascida prematuramente, antes do surgimento do laser, inventada por Gabor, reinventada por Denisyuc e Leith e levada à prática por Benton, tem se desenvolvido como uma técnica de grande dinamicidade e extensão que, provavelmente, será projetada com frequência cada vez maior em nosso cotidiano. Como observado por Benton, “é a intersecção de ciência, arte e tecnologia que faz a holografia tão interessante”. Referências BELÉNDEZ, A. Holografía: ciencia, arte y tecnología. São Paulo: Revista. Brasileira de. Ensino de Física. v.31, n.1, abr. 2009 DENISYUC, Y. N. My way in holography. Cambridge: MIT Press. Leonardo, Archives of holography: a partial view of a three dimensional world: Special Issue, v.25, n5, pp.425-430, mai, 1992. GABOR, D. A new microscope principle. Londres: Nature, v.161, pp.777-778, mai, 1948. __________. Microscopy by Reconstructed Wave Fronts. Londres: The Proceedings of the Physical Societ A, v.197, n.1051, pp.454-487, jul, 1949. ___________. Microscopy by Reconstructed Wave Fronts: II. Londres: The Proceedings of the Physical Societ B, v.64, n.6, pp 449-469, jun, 1951. ____________. Holography, 1948-1971. Londres: Imperial Colleges of Science and Technology, Nobel Lecture., Physics, dez, 1971. GARIAEV, P.P; TOVMASH, A.V.;LEONOVA-GARIAEVA , E.A. The Wave Genetics as reality. Disponível em <http://www.inco.hu/inco12/kozpont/cikk3h.htm>. Acesso em 10 nov. 2010. HOPOPHILE INC. History of holography. Disponível em <http://www.holophile.com/history.htm>. Acesso em 10 nov. 2010. KASPER, J. E.; FELLER, S. A. The Complete Book of Holograms. New York: Wiley Science Editions, 1987. LEITH, E. N.; UPATNIEKS, J. Reconstructed wavefront and communication theory. Washington: Journal of the Optical Society of America, v.52, n.10, pp. 1123-1130, out, 1962. ____________. Reconstructed wavefront with continuous-tone objects. Washington: Journal of the Optical Society of America, v.53, n.12, pp. 1377-1381, dez, 1963. _____________. Wavefront Reconstruction with Diffused Illumination and Three-Dimensional Objects. Washington: Journal of the Optical Society of America, v.54, n.11, pp. 1295-1301, nov, 1964. PESSOA JR, O. Conceitos de Física Quântica. Volume II. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2006.