TERMO DE ARQUIVAMENTO
Procedimento Administrativo: 1.29.000.000150/2008-13
Objeto: Política de cotas da UFRGS.
O presente procedimento administrativo foi instaurado a partir de diversas representações que
aportaram nesta unidade do Ministério Público Federal, sendo quase todas elas de estudantes
que prestaram o vestibular/2008 da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e restaram
preteridos em razão do sistema de cotas instituído pela Universidade.
Expediu-se ofício à UFRGS para que se manifestasse sobre os fatos, bem como encaminhasse
cópias da Decisão nº 134/2007 e do edital do concurso vestibular/2008. Esses documentos
restaram juntados aos autos, tendo sido obtidos via internet, por consulta ao site da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
A UFRGS apresentou resposta, juntando documentos.
É o breve relatório. Passo a fundamentar o arquivamento.
Primeiramente, há que ser feita a análise do sistema de cotas instituído pela Universidade
Federal no Rio Grande do Sul para após verificar-se a sua conformidade com o ordenamento
jurídico, mormente com a Constituição Federal, e também com as normas de direito
internacional e a legislação infraconstitucional.
1. A decisão da UFRGS instituidora do Programa de Ações Afirmativas
A decisão nº 134/2007, do Conselho Universitário da UFRGS, instituiu o Programa de Ações
Afirmativas, conforme estabelece o seu art. 1º, verbis:
“Art. 1º - Fica instituído o Programa de Ações Afirmativas, através do Ingresso por Reserva
de Vagas para o acesso a todos os cursos de graduação e cursos técnicos da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, de candidatos egressos do Sistema Público de
Ensino Fundamental e Médio, candidatos autodeclarados negros egressos do Sistema
Público de Ensino Fundamental e Médio e candidatos indígenas.”
O percentual de vagas reservadas foi fixado em 30%, vagas essas destinadas aos candidatos
egressos do sistema público de ensino, nos seguintes termos:
“Art. 5º – Do total de vagas oferecidas em cada curso de graduação da UFRGS serão
garantidas, no mínimo, 30% (trinta por cento) para candidatos egressos do Sistema Público
de Ensino Fundamental e Médio.
§ 1º – Entende-se por egresso do Sistema Público de Ensino Fundamental e Médio o
candidato que cursou com aprovação em escola pública pelo menos a metade do Ensino
fundamental e a totalidade do Ensino Médio.
§ 2º – (...)
Art. 6º – Do total de vagas oferecidas aos candidatos egressos do Sistema Público de Ensino
Fundamental e Médio, conforme estabelecido no caput do Art. 5º, no mínimo a metade será
garantida aos estudantes autodeclarados negros, sem prejuízo ao disposto no § 3º do Art. 10.
Parágrafo único - (...).
Art. 10 - (...)
§ 3º – No caso de não haver candidatos em condições de preencher as vagas garantidas a
negros egressos do Sistema Público de Ensino Fundamental e Médio, estas serão
preenchidas por candidatos não negros oriundos de escolas públicas. Se ainda restarem
vagas as mesmas voltarão ao sistema universal por curso.”
Depreende-se daí que a Universidade não destinou as vagas reservadas a todos os candidatos
autodeclarados negros. A metade das vagas reservadas são asseguradas aos candidatos
oriundos do sistema público de ensino, e a outra metade aos candidatos negros, desde que
esses também sejam provenientes do sistema público de ensino.
Conforme o art. 12 da Decisão, foram disponibilizadas, para o corrente ano, dez vagas para os
estudantes indígenas.
O Conselho Universitário também instituiu Comissão de Acompanhamento dos Alunos do
Programa de Ações Afirmativas e estabeleceu que a reserva de vagas ficará em vigor por um
período de cinco anos, sendo avaliada anualmente, e poderá ser prorrogada, a partir da
avaliação conclusiva, que será realizada no ano de 2012 (arts. 4º e 11).
Nessa medida, com a instituição do sistema de cotas pela UFRGS, nos termos acima
expostos, impõe-se o debate acerca da sua constitucionalidade e legalidade. É importante
frisar que essa questão não pode ser estudada simplesmente sob determinados dispositivos da
legislação brasileira, de forma isolada, havendo que se realizar uma interpretação sistemática
do direito, sempre levando-se em conta a realidade social, da qual o aplicador do direito não
pode se distanciar. Sob esse prisma foi que, analisando o tema, cheguei à conclusão de que o
sistema de cotas, tal como instituído pela UFRGS, encontra-se em perfeita consonância com o
ordenamento jurídico brasileiro, sobretudo com a Constituição Federal, conforme passarei a
expor.
2. O Sistema de Cotas à Luz da Constituição Federal
A Constituição Federal de 1988 conferiu especial relevância ao princípio da igualdade.
Embora as constituições anteriores também tenham acolhido tal princípio, foi a Carta de 1988
que lhe deu nova feição, abandonando a concepção da igualdade sob o ponto de vista
meramente formal para contemplar a igualdade substancial ou material, através da qual buscase a igualdade fática.
Vários dispositivos da Carta Magna revelam o intuito do legislador constituinte, de não
apenas vedar tratamentos discriminatórios, de forma estática, mas também impulsionar a
busca pela igualdade material, o que somente pode ocorrer ante o reconhecimento de que
pessoas em situação de desigualdade devem ser tratadas diferentemente.
Já no próprio preâmbulo da Constituição, resta demonstrado o objetivo de instituição de um
Estado Democrático, colocando a igualdade como um dos valores supremos de uma sociedade
fraterna, pluralista e sem preconceitos.
No art. 3º, incisos I e III, são elencados, como objetivos fundamentais da República
Federativa do Brasil, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a erradicação da
pobreza e da marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais. Doutrinadores
advertem que as expressões utilizadas pelo Legislador Constituinte, como construir,
erradicar e reduzir já indicam uma conduta ativa.
O art. 5º, em seu “caput”, dispõe que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza”.Uma leitura isolada e mais desatenta desse dispositivo poderia levar a
concluir-se que está a garantir a igualdade meramente formal, mas certo é que a igualdade
como direito constitucional fundamental significa isonomia substancial. Nesse sentido,
Nelson Nery Júnior leciona que “a igualdade no sentido de garantia constitucional
fundamental quer significar isonomia real, substancial, não meramente formal ”. (In “Código
de Processo Civil Comentado”, Editora dos Tribunais, SP, 2003, p. 125). Por seu turno,
Alexandre de Moraes destaca que “o que se veda são as diferenciações arbitrárias, as
discriminações absurdas, pois, o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que
se desigualam, é exigência tradicional do próprio conceito de Justiça, pois o que realmente
protege são certas finalidades, somente se tendo por lesado o princípio constitucional
quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo
direito, sem que se esqueça, porém, como ressalvado por Fábio Konder Comparato, que as
chamadas liberdades materiais têm por objetivo a igualdade de condições sociais, meta a ser
alcançada, não só por meio de leis, mas também pela aplicação de políticas ou programa de
ação estatal.” (“Direito Constitucional”, editora atlas, 11ª edição, SP, 2002, p. 64).
Diversos outros dispositivos constitucionais autorizam e também estimulam a concretização
da igualdade substancial, permitindo, em vários momentos, a adoção de medidas que a
implementem. Cito, apenas para ilustrar, os seguintes artigos:
“Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos
seguintes princípios:
(...)
II – prevalência dos direitos humanos;
(...)
VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo;”
“Art. 37, VIII – a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas
portadora de deficiência e definirá os critérios de sua admissão.”
“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre
iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça
social, observados os seguintes princípios:
(...)
VII – redução das desigualdades regionais e sociais;
(...)
IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis
brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.”
“Art. 215 . O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às
fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das
manifestações culturais.”
Mais especificamente em relação à educação, o art. 206 estabelece, como princípio, a
igualdade de condições para o acesso e permanência na escola. A respeito desse
dispositivo, importante no contexto ora analisado, extrai-se o seguinte trecho do parecer
emitido pelo Procurador Regional da República Domingos Sávio Dresch da Silveira, nos
autos de apelação cível de processo oriundo do Paraná:
“Enquanto o acesso à Universidade não for universal, há necessidade de se reequilibrar as
chances de acesso para os segmentos marginalizados, a fim de garantir uma democratização
na distribuição das vagas.
Quando se fala em inconstitucionalidade,o que se discute é se a adoção de políticas de ação
afirmativa no Brasil caracterizaria a garantia de um direito ou o estabelecimento de um
privilégio. Esse aparente privilégio é, sem dúvida, um direito, pois está em consonância com
os preceitos constitucionais, na medida em que procura corrigir uma situação real de
discriminação, buscando justamente atingir uma igualdade de fato e não fictícia.
A igualdade de condições proclamada na Carta Maior relaciona-se diretamente com uma
igualdade de oportunidades, sendo que o se admitir as ações afirmativas não se estaria
fomentando a discriminação, mas, ao contrário, estar-se-ia realizando um direito
fundamental constitucional de acesso igualitário à educação .” (Processo nº
2005.70.00.016443-4).
De fato, afigura-se nítida a preocupação do legislador constituinte em fomentar a busca
concreta pela igualdade material, o que inclui a igualdade de oportunidades. Nas palavras de
J. J. Gomes Canotilho, “sob o ponto de vista jurídico-constitucional, o princípio da igualdade
assume relevo enquanto princípio da igualdade de oportunidades (Equlity of opportunity) e
de condições reais de vida.” (“Direito Constitucional”, Almedina, Coimbra, 1992). Embora o
renomado autor refira-se à Constituição Portuguesa, o raciocínio amolda-se perfeitamente à
Constituição Brasileira.
É inegável que, no momento do vestibular, os estudantes provenientes de escolas públicas
encontram-se em franca desvantagem em relação aos estudantes advindos de escolas
particulares, nas quais a qualidade do ensino é sabidamente superior. Portanto, para o
atingimento da igualdade de fato, não há como dispensar tratamento idêntico a essas situações
desiguais.
A desigualdade acima referida acentua-se ainda mais em relação aos afrodescendentes
provenientes de escolas públicas. Embora os afrodescendentes representem 47% da população
brasileira, somam apenas 2% da população universitária brasileira (aí incluídas as
universidades particulares). No livro intitulado “Inclusão Étnica e Racial no Brasil – a questão
das cotas no ensino superior”, José Jorge de Carvallho dedica várias páginas analisando, com
base em dados estatísticos, as discrepâncias que apontam para a desigualdade entre brancos e
negros no Brasil, especialmente no que diz respeito ao acesso ao ensino superior. A seguinte
passagem da obra bem delineia a questão:
“Chega a ser desesperadora a situação dos jovens negros que querem entrar agora na
universidade pública brasileira. Do contingente de 3.600.000 secundaristas brancos, pelo
menos 2.400.000 entrarão no curso superior; ou seja, 64% do contingente; e dos 2.100.000
secundaristas negros, apenas 100.000 entrarão no curso superior; ou seja, 2,1%.
Imaginemos as centenas de milhares de negros perfeitamente qualificados que não
conseguirão alcançar o curso superior no final do presente ano. Isso significa que, com todos
os problemas, o ensino médio ainda prepara uma massa considerável de jovens negros; é o
sistema de ingresso ao ensino superior que os barra de um modo absolutamente desleal. Com
a recente expansão das faculdades privadas, os secundaristas brancos com menos recursos,
que não conseguem entrar nas universidades públicas, estão conseguindo entrar, ainda que
com mais dificuldade, no terceiro grau, mesmo que em faculdades de má qualidade.
Enquanto isso, milhares de secundaristas negros, que têm uma preparação análoga à de uma
grande parte dos brancos que freqüentaram a escola pública, são mais pobres que os
brancos pobres e por isso têm menos chance de competir no vestibular e a maioria deles terá
que ficar de fora até das piores faculdades particulares.
O único modo de deter e começar a reverter o processo crônico de desvantagem dos negros
no Brasil é recompensá-los conscientemente, sobretudo naqueles espaços em que essa ação
compensatória tenha maior poder de multiplicação. Eis porque a implementação de um
sistema temporário de cotas se torna inevitável. Na medida em que não poderemos reverter
inteiramente esta questão em curto prazo, podemos pelos menos dar o primeiro passo, qual
seja, incluir negros na reduzida elite pensante do país.” (Attar Editorial, SP, 2005, p. 57).
O Ministro do Supremo Tribunal Federal Joaquim B. Barbosa Gomes, um dos grandes
defensores das ações afirmativas, ao discorrer sobre as desigualdades no acesso à educação,
refere que a exclusão social, de que os negros são as principais vítimas no Brasil, deriva de
alguns fatores, dentre os quais está o vestibular, que exclui os socialmente fragilizados, de
sorte a permitir que os recursos públicos destinados à educação sejam gastos não em prol de
todos, mas para benefício de poucos. Conclui o Ministro:
“Esta é, pois, a chave para se entender por que existem tão poucos negros nas universidades
públicas brasileiras, e quase nenhum nos cursos de maior prestígio e demanda: os recursos
públicos são canalizados massivamente para as classes mais afluentes, restando aos pobres
(que são majoritariamente negros) 'as migalhas' do sistema.
Este o aspecto perverso do sistema educacional brasileiro. Os negros são suas principais
vítimas. E este é, sem dúvida, um problema constitucional de primeira grandeza, pois nos
remete à noção primitiva de democracia, a saber: em que, por quem e em benefício de quem
são despendidos os recursos financeiros da Nação.
Agir 'afirmativamente' significa ter consciência desses problemas e tomar decisões coerentes
com o imperativo indeclinável e remediá-los. Além da vontade política, que é fundamental, é
preciso colocar de lado o formalismo típico da nossa praxis jurídico-institucional e entender
que a questão é de vital importância para a legítima aspiração de todos de que um dia o País
se subtraia ao opróbrio internacional a que sempre esteve confinado, e ocupe o espaço, a
posição e o respeito que a sua história, o seu povo, suas realizações e o seu peso político e
econômico recomendam.
No plano estritamente jurídico (que se subordina, a nosso sentir, à tomada de consciência
assinalada nas linhas anteriores), o Direito Constitucional vigente no Brasil, é perfeitamente
compatível com o princípio da ação afirmativa. Melhor dizendo, o Direito Brasileiro já
contempla algumas modalidades de ação afirmativa, inclusive em sede constitucional.”
(“Instrumentos e Métodos de Mitigação da Desigualdade em Direito Constitucional e
Internacional”, Página do Grupo de Trabalho “Discriminação” da PFDC, in <)
Não tenho por convincente o argumento de que o sistema de cotas estaria a estabelecer uma
discriminação aos afrodescendentes e aos indígenas, discriminação essa que também seria
proibida pela Constituição Federal. Trata-se de discriminação sim, mas uma discriminação
que regula positivamente o sistema econômico/social, de forma a amenizar as enormes
diferenças diretamente relacionadas uma história marcada por segregações racial e social. Não
está o Estado a conceder um “favor” aos afrodescendentes ou aos indígenas, mas sim
compensando, tanto quanto possível, o que lhes foi retirado ao longo dos anos.
Por outra via, é compreensível a reação dos estudantes que restaram reprovados no vestibular
da UFRGS. Vários deles encontram-se mobilizados, tendo realizado manifesto nesta
Procuradoria da República, e foram por mim recebidos. O grande argumento por eles
utilizado foi o da busca pela “igualdade”. Disseram-me, com certa indignação, que estudantes
favoráveis às cotas também fizeram manifesto em frente à UFRGS, levantando faixa onde
também constava a expressão “igualdade”. Ambos os grupos estão, realmente, defendendo a
igualdade, o que aparentemente é um paradoxo. Ocorre que um desses grupos está a invocar a
igualdade formal, e o outro a igualdade fática. Essa colisão entre igualdade jurídica e
igualdade fática foi bem abordada por Roger Raupp Rios, Magistrado Federal da Seção
Judicial de Porto Alegre, em artigo sobre o tema, a saber:
“Assim consideradas, igualdade jurídica e igualdade fática entram em rota de colisão,
implicando, nas palavras de R. Alexy o 'paradoxo da igualdade': a promoção de novas
condições, através da igualdade fática, ao exigir a instituição de tratamento diferenciado
entre os pólos das relações entre desiguais, produz desigualdade jurídica. A questão racial
serve mais uma vez de exemplo: a superação do racismo no mercado do trabalho pode exigir
a alteração de condições fáticas mediante regimes diferenciados de admissão, seleção e
demissão de empregados, configurando a colisão entre igualdade fática e igualdade jurídica.
(...)
Neste sentido, vale referir a posição de Marcelo Neves. Invocando a doutrina de Celso
Antônio Bandeira de Mello, sustenta que a discriminação social negativa, implicando
obstáculos reais ao exercício dos direitos, justifica a discriminação jurídica afirmativa em
favor de negros e índios no Brasil. Neste contexto, fica satisfeita, portanto, a correlação
lógica entre o fator discrímen e a desequiparação, justificando a introdução de eventuais
vantagens comparativas em favor deste grupos.” (“Jurisdição e Direitos Fundamentais”, in
Caderno de Direito Constitucional, 2006, EMAGIS)
Diante de tantas discrepâncias notoriamente existentes, a implementação do sistema de cotas
pelas Universidades mostra-se não só possível, como necessária. Não pode o Estado, através
de suas instituições, continuar fechando os olhos, assumindo a clássica postura de
neutralidade. As Universidades também não podem estar alheias a esse processo, devendo
empreender os seus esforços para a efetiva universalização do acesso à educação. A norma
constitucional há que ser aplicada para todos, sem restringir-se o seu âmbito material a
parcelas privilegiadas da população. A máxima de que os iguais devem ser tratados como
iguais e os desiguais com desigualdade há que ultrapassar a concepção meramente formal
para buscar-se a igualdade fática, o que somente é possível através de uma conduta ativa,
vale dizer, afirmativa.
Carmem Lúcia Antunes Rocha, hoje também Ministra do Supremo Tribunal Federal, trata
acertadamente do tema, ao mencionar que somente a ação afirmativa possibilita a verdade do
princípio da igualdade. Por essa desigualação positiva promove-se a igualação jurídica
efetiva. Colha-se a seguinte passagem, em que a Ministra explicita serem as ações afirmativas
necessárias para a realização dos objetivos fundamentais da República, traçados na
Constituição Federal:
“Se a igualdade jurídica fosse apenas a vedação de tratamentos discriminatórios, o princípio
seria absolutamente insuficiente para possibilitar a realização dos objetivos fundamentais da
República constitucionalmente definidos. Pois daqui para a frente, nas novas leis e
comportamentos regulados pelo Direito, apenas seriam impedidas manifestações de
preconceitos ou cometimentos discriminatórios. Mas como mudar, então, tudo o que se tem e
se sedimentou na história política, social e econômica nacional ? Somente a 'ação
afirmativa', vale dizer, a atuação transformadora, igualadora pelo e segundo o Direito
possibilita a verdade do princípio da igualdade, para se chegar à igualdade que a
Constituição Brasileira garante como direito fundamental de todos. O art. 3º traz uma
declaração, uma afirmação e uma determinação em seus dizeres. Declara-se ali, implícita
mas claramente, que a República Federativa do Brasil não é livre, porque não se organiza
segundo a universalidade desse pressuposto fundamental para o exercício dos direito, pelo
que, não dispondo todos de condições para o exercício de sua liberdade, não pode ser justa.
Não é justa porque plena de desigualdades antijurídicas e deploráveis para abrigar o mínimo
de condições dignas para todos. E não é solidária porque fundada em preconceitos de toda
sorte(...) O inciso IV, do mesmo art. 3º, é mais claro e afinado, até mesmo no verbo
utilização, com a ação afirmativa. Por ele se tem ser um dos objetivos fundamentais
promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, e quaisquer
formas de discriminação. Verifica-se, então, que não se repetiu apenas o mesmo modelo
principiológico que adotaram constituintes anteriormente atuantes no país. Aqui se
determina agora uma ação afirmativa(...).” (in “Ação Afirmativa – O Conteúdo Democrático
do Princípio da Igualdade Jurídica, Revista Trimestral de Direito Público, nº 15/96, p. 85).
O poder judiciário também vem reconhecendo a constitucionalidade das ações afirmativas. A
2ª Seção Seção do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, competente para apreciar esse
tema, consolidou o entendimento de que o sistema de cotas para o vestibular não ofende o
princípio da igualdade e pode ser estipulado por ato da própria Universidade. Com base nesse
argumento, foi recentemente negado seguimento a agravo de instrumento interposto por
candidata preterida no vestibular em razão do sistema de cotas instituído pela UFRGS,
decisão essa publicada em 29.01.2008.
A título de exemplificação, transcrevo a seguinte ementa, que bem aborda
análise:
o tema em
“ADMINISTRATIVO. APELAÇÃO. VESTIBULAR. SISTEMA DE COTAS RACIAIS E
SOCIAIS. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS. DIREITOS FUNDAMENTAIS.
1. É simplismo alegar que a Constituição proíbe 'discrimen' fundado em raça ou em cor. O
que, a partir da declaração de direitos humanos, buscou-se proibir foi a intolerância em
relação às diferenças, o tratamento desfavorável a determinadas raças, a sonegação de
oportunidades a determinadas etnias. Basta olhar em volta para perceber que o negro no
Brasil não desfruta de igualdade no que tange ao desenvolvimento de suas potencialidades e
ao preenchimento dos espaços de poder.
2. É simplismo argumentar que a discriminação existente é em razão dos estamentos sociais;
muito embora o branco pobre padeça também de carência de chances, fato irrecusável é que
à figura do negro associou-se, imbricou-se mesmo, uma conotação de pobreza que a
disparidade acaba por encontrar dupla motivação: por ser pobre ou por ser negro,
presumidamente pobre.
3. Não se trata aqui de reparar no presente uma injustiça passada; não se trata de vindita ou
compensação pelas agruras da escravidão; a injustiça aí está, presente: as universidades,
formadoras das elites, habitadas por esmagadora maioria branca. 'Premissa maxima venia',
não há como deixar de dizê-lo, ver a disparidade atual e aceitá-la comodamente é atitude
racista em sua raiz.
4. Simplismo, também, dizer que as cotas nas universidades não são o remédio adequado,
que o tratamento a ser dispensado ao problema está em propiciar-se um ensino básico
democratizado e de qualidade. É claro que as cotas raciais não constituem a única
providência necessária, não se há de erigi-la em solução. Não se pode, todavia, considerá-la
como mero paliativo, pois uma elite nova, equilibrada em diversificação racial, por certo
contribuirá em muito para a construção da sociedade pluralista e democrática que o Brasil
requer.
5. Embora não haja base legal para coagir a entidade de ensino a fixar cotas em seus exames
vestibulares, como asseverou o Ministro Nelson Jobim (SL n. 60/SP), 'sponte propria' pode a
Universidade fazê-lo, até porque os direitos fundamentais garantidos na Constituição têm
efeitos imediatos, não podendo a disposição que determina o direito a uma vida digna
coabitar com a perenização das desigualdades.
6. O interesse particular não pode prevalecer sobre a política pública; não se poderia
sacrificar a busca de um modelo de justiça social apenas para evitar prejuízo particular.”
(Apelação Cível nº 2005.70.00.013067-9/PR, Rel. Juiz Federal Loraci Flores de Lima,
25.07.2006)
Outros Tribunais Regionais Federais também já se pronunciaram no mesmo sentido, como o
Tribunal Regional Federal da 1ª Região, ao negar provimento a recurso contra sentença que
julgou procedente ação ajuizada pelo Ministério Público Federal de Minas Gerais (AC
199938000363308, DJU 19.04.2007, p. 47).
Destarte, as ações afirmativas, das quais o sistema de cotas é parte, são medidas necessárias
para a concretização do princípio constitucional da igualdade material.
3. A Ações Afirmativas e os Tratados Internacionais de Direitos Humanos
A Constituição Federal consagrou, no que se refere aos Direitos Fundamentais, dupla fonte
normativa, sendo uma delas os tratados internacionais de proteção aos direitos humanos dos
quais o Brasil é parte.
Nesse sentido, o § 2º do art. 5º da Carta Magna dispõe:
“Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do
regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a
República Federativa do Brasil seja parte.”
A Emenda Constitucional nº 45/2004 acrescentou ao art. 5º o § 3º, estabelecendo que “os
tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que foram aprovados, em cada
Casa do Congresso nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos
membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.”
Já o § 1º do art.5º da Constiuição Federal estabelece que as normas definidoras dos direitos
e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
Depreende-se que a Constituição Federal concede tratamento especial aos direitos e garantias
internacionalmente consagrados, sendo que sob essa ótica devem ser vistos os tratados e
convenções internacionais que versam sobre direitos humanos.
O Brasil é signatário de vários instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos,
sendo merecedoras de destaque a Convenção Internacional para a Eliminação de todas as
Formas de Discriminação Racial e a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher, diplomas esses que expressamente permitem a utilização das
ações afirmativas.
Ressalte-se que a Convenção Internacional para a Eliminação de todas as formas de
Discriminação Racial, ratificada pelo Brasil em 27.03.1968, prevê as ações afirmativas, nos
seguintes termos:
“Art. 1º – 4. Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com
o único objetivo de assegurar o progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou
de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais
grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais,
contanto que tais medidas não conduzam, em conseqüência, à manutenção de direitos
separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados os
seus objetivos.”
Tal regramento disciplina e estimula a prática das ações afirmativas, não se limitando, em sua
abrangência, aos grupos raciais ou étnicos, e sim abarcando todos os indivíduos que
necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar-lhes igual gozo ou
exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais. Por conseguinte, estão abrangidos
os cidadãos advindos das escolas públicas, na medida em que no Brasil encontram-se eles em
situação de desigualdade.
Assim, não se diga que o sistema de contas não pode ser implementado pelas Universidades
em razão da inexistência de legislação autorizativa. Ora, conforme já se expôs, as ações
afirmativas vêm a assegurar o pleno exercício de direito fundamental preconizado em norma
constitucional de aplicação imediata. Além disso, demonstrou-se que a legislação
internacional já incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro prevê expressamente as ações
afirmativas. E como se não bastasse, a Universidade possui autonomia para estabelecer os
critérios de ingresso por vestibular, conforme se passará a expor.
4. Autonomia da Universidade para Estabelecer o Sistema de Cotas
A autonomia das Universidades decorre de mandamento constitucional, determinando o art.
207 que “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de
gestão financeira e patrimonial,e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino,
pesquisa e extensão.”.
Cuida-se de norma de aplicação imediata e eficácia plena, que “confere à universidade o
poder de se autodeterminar, desde que tal autodeterminação não exorbite da ordem jurídica
democrática vigente em nosso país” (nesse sentido, Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra
Martins, in “Comentários à Constituição do Brasil”, 8º volume, saraiva, 1998, p. 471).
A Lei nº 9.394/96, ao estabelecer as diretrizes e bases da educação nacional, deixa antever que
incumbe às universidades deliberar sobre os critérios e normas de seleção de estudantes,
conforme extrai-se do seu art. 51, verbis:
“As instituições de educação superior credenciadas como universidades, ao deliberar sobre
critérios e normas de seleção e admissão de estudantes, levarão em conta os efeitos desses
critérios sobre a orientação do ensino médio, articulando-se com os órgãos normativos dos
sistemas de ensino.”
Veja-se que as normas que regem os processos seletivos para o ingresso nos cursos de
graduação da UFRGS são elaboradas pela própria Universidade, através do Conselho de
Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE) e do Conselho Universitário (CONSUN). Se a
Universidade não tivesse autonomia para instituir o sistema de cotas, por ser matéria
reservada à legislação infraconstitucional, então o mesmo raciocínio deveria ser aplicado às
demais diretrizes do processo seletivo. No entanto, não se discute a autonomia da
universidade na elaboração de tais regramentos.
Portanto, entendo que a UFRGS possui autonomia para instituir o Programa de Ações
Afirmativas, a fim de garantir a todos o acesso ao conhecimento, o que obviamente não
impede que sobrevenha lei infraconstitucional que verse sobre o sistema de cotas, caso em
que caberá a Universidade adequar-se aos seus termos.
Sabe-se que a autonomia universitária não é irrestrita, devendo o sistema de cotas ser
estabelecido sob o balizamento da ordem jurídica e com proporcionalidade nos critérios de
seleção.
Reputo serem razoáveis os critérios entabulados na Decisão nº 134/2007, reservando-se 30%
das vagas aos candidatos egressos do Sistema Público de Ensino Fundamental e Médio, sendo
metade dessas vagas destinadas aos afrodescendentes também egressos do Sistema Público de
Ensino Fundamental e Médio. Conforme já se comentou, nas palavras de José Jorge de
Carvallho, milhares de secundaristas negros, que têm uma preparação análoga à de uma
grande parte dos brancos que freqüentaram a escola pública, são mais pobres do que os
brancos pobres e por isso têm menos chances de competir no vestibular. Isso justifica que
sejam asseguradas metade das vagas reservadas aos alunos negros provenientes de escolas
públicas.
A reserva de vagas será avaliada anualmente, e ficará em vigor por um período de cinco anos,
o que condiz com o caráter temporário das ações afirmativas, na medida em que perduram até
que se restabeleça a igualdade material.
O Edital do Concurso Vestibular ainda estabelece critérios de eliminação (item 6.3), aos quais
os cotistas também estão submetidos. No caso de não existirem candidatos em condições de
preencher as vagas garantidas a optantes egressos do ensino público autodeclarados negros,
estas serão preenchidas por candidatos optantes egressos do ensino público. Se ainda restarem
vagas, as mesmas voltarão ao sistema de ingresso por Acesso Universal.
Portanto, cai por terra qualquer argumento no sentido de que o sistema de cotas da UFRGS
violaria o art. 208, inciso V, da Constituição Federal, que prevê a garantia de acesso aos
níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de
cada um. Os candidatos às vagas reservada haverão que apresentar bom desempenho, pelas
regras de eliminação e, além disso, concorrerão entre si.
Por fim, é de se ressaltar que as ações afirmativas revelam-se uma tendência no cenário
nacional – o sistema de cotas já foi instituído por várias Universidades Federais, como a do
Rio de Janeiro, da Bahia, de São Paulo e de Brasília – e no cenário mundial. Conforme
Joaquim B. Barbosa Gomes, “as nações que historicamente se apegaram ao conceito de
igualdade formal são aquelas onde se verificam os mais gritantes índices de injustiça social,
eis que, em última análise, fundamentar toda e qualquer política governamental de combate
à desigualdade social na garantia de que todos terão acesso aos mesmos 'instrumentos' de
combate corresponde, na prática a assegurar a perpetuação da desigualdade.”
(in
“Instrumentos e Métodos de Mitigação da Desigualdade em Direito Constitucional e
Internacional”, Página do Grupo de Trabalho “Discriminação” da PFDC, in <>).
em estudo jurídico solicitado pelo Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais).
Diante disso, entendo não ser o caso de ajuizamento de ação civil pública, razão pela qual
DETERMINO , com fulcro no art. 7º, I, da Lei Complementar nº 75/93, o
ARQUIVAMENTO do presente procedimento administrativo.
Remetam-se cópias deste termo de arquivamento aos representantes, informando a
possibilidade de recurso na forma legal, à Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão.
Após, à PFDC.
Porto Alegre, 31 de janeiro de 2008.
Suzete Bragagnolo
Procuradora Regional dos Direitos do Cidadão
Download

to get the file - Procuradoria da República no RS