TERMO DE ARQUIVAMENTO Procedimento Administrativo: 1.29.000.000150/2008-13 Objeto: Política de cotas da UFRGS. O presente procedimento administrativo foi instaurado a partir de diversas representações que aportaram nesta unidade do Ministério Público Federal, sendo quase todas elas de estudantes que prestaram o vestibular/2008 da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e restaram preteridos em razão do sistema de cotas instituído pela Universidade. Expediu-se ofício à UFRGS para que se manifestasse sobre os fatos, bem como encaminhasse cópias da Decisão nº 134/2007 e do edital do concurso vestibular/2008. Esses documentos restaram juntados aos autos, tendo sido obtidos via internet, por consulta ao site da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A UFRGS apresentou resposta, juntando documentos. É o breve relatório. Passo a fundamentar o arquivamento. Primeiramente, há que ser feita a análise do sistema de cotas instituído pela Universidade Federal no Rio Grande do Sul para após verificar-se a sua conformidade com o ordenamento jurídico, mormente com a Constituição Federal, e também com as normas de direito internacional e a legislação infraconstitucional. 1. A decisão da UFRGS instituidora do Programa de Ações Afirmativas A decisão nº 134/2007, do Conselho Universitário da UFRGS, instituiu o Programa de Ações Afirmativas, conforme estabelece o seu art. 1º, verbis: “Art. 1º - Fica instituído o Programa de Ações Afirmativas, através do Ingresso por Reserva de Vagas para o acesso a todos os cursos de graduação e cursos técnicos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, de candidatos egressos do Sistema Público de Ensino Fundamental e Médio, candidatos autodeclarados negros egressos do Sistema Público de Ensino Fundamental e Médio e candidatos indígenas.” O percentual de vagas reservadas foi fixado em 30%, vagas essas destinadas aos candidatos egressos do sistema público de ensino, nos seguintes termos: “Art. 5º – Do total de vagas oferecidas em cada curso de graduação da UFRGS serão garantidas, no mínimo, 30% (trinta por cento) para candidatos egressos do Sistema Público de Ensino Fundamental e Médio. § 1º – Entende-se por egresso do Sistema Público de Ensino Fundamental e Médio o candidato que cursou com aprovação em escola pública pelo menos a metade do Ensino fundamental e a totalidade do Ensino Médio. § 2º – (...) Art. 6º – Do total de vagas oferecidas aos candidatos egressos do Sistema Público de Ensino Fundamental e Médio, conforme estabelecido no caput do Art. 5º, no mínimo a metade será garantida aos estudantes autodeclarados negros, sem prejuízo ao disposto no § 3º do Art. 10. Parágrafo único - (...). Art. 10 - (...) § 3º – No caso de não haver candidatos em condições de preencher as vagas garantidas a negros egressos do Sistema Público de Ensino Fundamental e Médio, estas serão preenchidas por candidatos não negros oriundos de escolas públicas. Se ainda restarem vagas as mesmas voltarão ao sistema universal por curso.” Depreende-se daí que a Universidade não destinou as vagas reservadas a todos os candidatos autodeclarados negros. A metade das vagas reservadas são asseguradas aos candidatos oriundos do sistema público de ensino, e a outra metade aos candidatos negros, desde que esses também sejam provenientes do sistema público de ensino. Conforme o art. 12 da Decisão, foram disponibilizadas, para o corrente ano, dez vagas para os estudantes indígenas. O Conselho Universitário também instituiu Comissão de Acompanhamento dos Alunos do Programa de Ações Afirmativas e estabeleceu que a reserva de vagas ficará em vigor por um período de cinco anos, sendo avaliada anualmente, e poderá ser prorrogada, a partir da avaliação conclusiva, que será realizada no ano de 2012 (arts. 4º e 11). Nessa medida, com a instituição do sistema de cotas pela UFRGS, nos termos acima expostos, impõe-se o debate acerca da sua constitucionalidade e legalidade. É importante frisar que essa questão não pode ser estudada simplesmente sob determinados dispositivos da legislação brasileira, de forma isolada, havendo que se realizar uma interpretação sistemática do direito, sempre levando-se em conta a realidade social, da qual o aplicador do direito não pode se distanciar. Sob esse prisma foi que, analisando o tema, cheguei à conclusão de que o sistema de cotas, tal como instituído pela UFRGS, encontra-se em perfeita consonância com o ordenamento jurídico brasileiro, sobretudo com a Constituição Federal, conforme passarei a expor. 2. O Sistema de Cotas à Luz da Constituição Federal A Constituição Federal de 1988 conferiu especial relevância ao princípio da igualdade. Embora as constituições anteriores também tenham acolhido tal princípio, foi a Carta de 1988 que lhe deu nova feição, abandonando a concepção da igualdade sob o ponto de vista meramente formal para contemplar a igualdade substancial ou material, através da qual buscase a igualdade fática. Vários dispositivos da Carta Magna revelam o intuito do legislador constituinte, de não apenas vedar tratamentos discriminatórios, de forma estática, mas também impulsionar a busca pela igualdade material, o que somente pode ocorrer ante o reconhecimento de que pessoas em situação de desigualdade devem ser tratadas diferentemente. Já no próprio preâmbulo da Constituição, resta demonstrado o objetivo de instituição de um Estado Democrático, colocando a igualdade como um dos valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. No art. 3º, incisos I e III, são elencados, como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a erradicação da pobreza e da marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais. Doutrinadores advertem que as expressões utilizadas pelo Legislador Constituinte, como construir, erradicar e reduzir já indicam uma conduta ativa. O art. 5º, em seu “caput”, dispõe que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”.Uma leitura isolada e mais desatenta desse dispositivo poderia levar a concluir-se que está a garantir a igualdade meramente formal, mas certo é que a igualdade como direito constitucional fundamental significa isonomia substancial. Nesse sentido, Nelson Nery Júnior leciona que “a igualdade no sentido de garantia constitucional fundamental quer significar isonomia real, substancial, não meramente formal ”. (In “Código de Processo Civil Comentado”, Editora dos Tribunais, SP, 2003, p. 125). Por seu turno, Alexandre de Moraes destaca que “o que se veda são as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois, o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio conceito de Justiça, pois o que realmente protege são certas finalidades, somente se tendo por lesado o princípio constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo direito, sem que se esqueça, porém, como ressalvado por Fábio Konder Comparato, que as chamadas liberdades materiais têm por objetivo a igualdade de condições sociais, meta a ser alcançada, não só por meio de leis, mas também pela aplicação de políticas ou programa de ação estatal.” (“Direito Constitucional”, editora atlas, 11ª edição, SP, 2002, p. 64). Diversos outros dispositivos constitucionais autorizam e também estimulam a concretização da igualdade substancial, permitindo, em vários momentos, a adoção de medidas que a implementem. Cito, apenas para ilustrar, os seguintes artigos: “Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: (...) II – prevalência dos direitos humanos; (...) VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo;” “Art. 37, VIII – a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadora de deficiência e definirá os critérios de sua admissão.” “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) VII – redução das desigualdades regionais e sociais; (...) IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.” “Art. 215 . O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.” Mais especificamente em relação à educação, o art. 206 estabelece, como princípio, a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola. A respeito desse dispositivo, importante no contexto ora analisado, extrai-se o seguinte trecho do parecer emitido pelo Procurador Regional da República Domingos Sávio Dresch da Silveira, nos autos de apelação cível de processo oriundo do Paraná: “Enquanto o acesso à Universidade não for universal, há necessidade de se reequilibrar as chances de acesso para os segmentos marginalizados, a fim de garantir uma democratização na distribuição das vagas. Quando se fala em inconstitucionalidade,o que se discute é se a adoção de políticas de ação afirmativa no Brasil caracterizaria a garantia de um direito ou o estabelecimento de um privilégio. Esse aparente privilégio é, sem dúvida, um direito, pois está em consonância com os preceitos constitucionais, na medida em que procura corrigir uma situação real de discriminação, buscando justamente atingir uma igualdade de fato e não fictícia. A igualdade de condições proclamada na Carta Maior relaciona-se diretamente com uma igualdade de oportunidades, sendo que o se admitir as ações afirmativas não se estaria fomentando a discriminação, mas, ao contrário, estar-se-ia realizando um direito fundamental constitucional de acesso igualitário à educação .” (Processo nº 2005.70.00.016443-4). De fato, afigura-se nítida a preocupação do legislador constituinte em fomentar a busca concreta pela igualdade material, o que inclui a igualdade de oportunidades. Nas palavras de J. J. Gomes Canotilho, “sob o ponto de vista jurídico-constitucional, o princípio da igualdade assume relevo enquanto princípio da igualdade de oportunidades (Equlity of opportunity) e de condições reais de vida.” (“Direito Constitucional”, Almedina, Coimbra, 1992). Embora o renomado autor refira-se à Constituição Portuguesa, o raciocínio amolda-se perfeitamente à Constituição Brasileira. É inegável que, no momento do vestibular, os estudantes provenientes de escolas públicas encontram-se em franca desvantagem em relação aos estudantes advindos de escolas particulares, nas quais a qualidade do ensino é sabidamente superior. Portanto, para o atingimento da igualdade de fato, não há como dispensar tratamento idêntico a essas situações desiguais. A desigualdade acima referida acentua-se ainda mais em relação aos afrodescendentes provenientes de escolas públicas. Embora os afrodescendentes representem 47% da população brasileira, somam apenas 2% da população universitária brasileira (aí incluídas as universidades particulares). No livro intitulado “Inclusão Étnica e Racial no Brasil – a questão das cotas no ensino superior”, José Jorge de Carvallho dedica várias páginas analisando, com base em dados estatísticos, as discrepâncias que apontam para a desigualdade entre brancos e negros no Brasil, especialmente no que diz respeito ao acesso ao ensino superior. A seguinte passagem da obra bem delineia a questão: “Chega a ser desesperadora a situação dos jovens negros que querem entrar agora na universidade pública brasileira. Do contingente de 3.600.000 secundaristas brancos, pelo menos 2.400.000 entrarão no curso superior; ou seja, 64% do contingente; e dos 2.100.000 secundaristas negros, apenas 100.000 entrarão no curso superior; ou seja, 2,1%. Imaginemos as centenas de milhares de negros perfeitamente qualificados que não conseguirão alcançar o curso superior no final do presente ano. Isso significa que, com todos os problemas, o ensino médio ainda prepara uma massa considerável de jovens negros; é o sistema de ingresso ao ensino superior que os barra de um modo absolutamente desleal. Com a recente expansão das faculdades privadas, os secundaristas brancos com menos recursos, que não conseguem entrar nas universidades públicas, estão conseguindo entrar, ainda que com mais dificuldade, no terceiro grau, mesmo que em faculdades de má qualidade. Enquanto isso, milhares de secundaristas negros, que têm uma preparação análoga à de uma grande parte dos brancos que freqüentaram a escola pública, são mais pobres que os brancos pobres e por isso têm menos chance de competir no vestibular e a maioria deles terá que ficar de fora até das piores faculdades particulares. O único modo de deter e começar a reverter o processo crônico de desvantagem dos negros no Brasil é recompensá-los conscientemente, sobretudo naqueles espaços em que essa ação compensatória tenha maior poder de multiplicação. Eis porque a implementação de um sistema temporário de cotas se torna inevitável. Na medida em que não poderemos reverter inteiramente esta questão em curto prazo, podemos pelos menos dar o primeiro passo, qual seja, incluir negros na reduzida elite pensante do país.” (Attar Editorial, SP, 2005, p. 57). O Ministro do Supremo Tribunal Federal Joaquim B. Barbosa Gomes, um dos grandes defensores das ações afirmativas, ao discorrer sobre as desigualdades no acesso à educação, refere que a exclusão social, de que os negros são as principais vítimas no Brasil, deriva de alguns fatores, dentre os quais está o vestibular, que exclui os socialmente fragilizados, de sorte a permitir que os recursos públicos destinados à educação sejam gastos não em prol de todos, mas para benefício de poucos. Conclui o Ministro: “Esta é, pois, a chave para se entender por que existem tão poucos negros nas universidades públicas brasileiras, e quase nenhum nos cursos de maior prestígio e demanda: os recursos públicos são canalizados massivamente para as classes mais afluentes, restando aos pobres (que são majoritariamente negros) 'as migalhas' do sistema. Este o aspecto perverso do sistema educacional brasileiro. Os negros são suas principais vítimas. E este é, sem dúvida, um problema constitucional de primeira grandeza, pois nos remete à noção primitiva de democracia, a saber: em que, por quem e em benefício de quem são despendidos os recursos financeiros da Nação. Agir 'afirmativamente' significa ter consciência desses problemas e tomar decisões coerentes com o imperativo indeclinável e remediá-los. Além da vontade política, que é fundamental, é preciso colocar de lado o formalismo típico da nossa praxis jurídico-institucional e entender que a questão é de vital importância para a legítima aspiração de todos de que um dia o País se subtraia ao opróbrio internacional a que sempre esteve confinado, e ocupe o espaço, a posição e o respeito que a sua história, o seu povo, suas realizações e o seu peso político e econômico recomendam. No plano estritamente jurídico (que se subordina, a nosso sentir, à tomada de consciência assinalada nas linhas anteriores), o Direito Constitucional vigente no Brasil, é perfeitamente compatível com o princípio da ação afirmativa. Melhor dizendo, o Direito Brasileiro já contempla algumas modalidades de ação afirmativa, inclusive em sede constitucional.” (“Instrumentos e Métodos de Mitigação da Desigualdade em Direito Constitucional e Internacional”, Página do Grupo de Trabalho “Discriminação” da PFDC, in <) Não tenho por convincente o argumento de que o sistema de cotas estaria a estabelecer uma discriminação aos afrodescendentes e aos indígenas, discriminação essa que também seria proibida pela Constituição Federal. Trata-se de discriminação sim, mas uma discriminação que regula positivamente o sistema econômico/social, de forma a amenizar as enormes diferenças diretamente relacionadas uma história marcada por segregações racial e social. Não está o Estado a conceder um “favor” aos afrodescendentes ou aos indígenas, mas sim compensando, tanto quanto possível, o que lhes foi retirado ao longo dos anos. Por outra via, é compreensível a reação dos estudantes que restaram reprovados no vestibular da UFRGS. Vários deles encontram-se mobilizados, tendo realizado manifesto nesta Procuradoria da República, e foram por mim recebidos. O grande argumento por eles utilizado foi o da busca pela “igualdade”. Disseram-me, com certa indignação, que estudantes favoráveis às cotas também fizeram manifesto em frente à UFRGS, levantando faixa onde também constava a expressão “igualdade”. Ambos os grupos estão, realmente, defendendo a igualdade, o que aparentemente é um paradoxo. Ocorre que um desses grupos está a invocar a igualdade formal, e o outro a igualdade fática. Essa colisão entre igualdade jurídica e igualdade fática foi bem abordada por Roger Raupp Rios, Magistrado Federal da Seção Judicial de Porto Alegre, em artigo sobre o tema, a saber: “Assim consideradas, igualdade jurídica e igualdade fática entram em rota de colisão, implicando, nas palavras de R. Alexy o 'paradoxo da igualdade': a promoção de novas condições, através da igualdade fática, ao exigir a instituição de tratamento diferenciado entre os pólos das relações entre desiguais, produz desigualdade jurídica. A questão racial serve mais uma vez de exemplo: a superação do racismo no mercado do trabalho pode exigir a alteração de condições fáticas mediante regimes diferenciados de admissão, seleção e demissão de empregados, configurando a colisão entre igualdade fática e igualdade jurídica. (...) Neste sentido, vale referir a posição de Marcelo Neves. Invocando a doutrina de Celso Antônio Bandeira de Mello, sustenta que a discriminação social negativa, implicando obstáculos reais ao exercício dos direitos, justifica a discriminação jurídica afirmativa em favor de negros e índios no Brasil. Neste contexto, fica satisfeita, portanto, a correlação lógica entre o fator discrímen e a desequiparação, justificando a introdução de eventuais vantagens comparativas em favor deste grupos.” (“Jurisdição e Direitos Fundamentais”, in Caderno de Direito Constitucional, 2006, EMAGIS) Diante de tantas discrepâncias notoriamente existentes, a implementação do sistema de cotas pelas Universidades mostra-se não só possível, como necessária. Não pode o Estado, através de suas instituições, continuar fechando os olhos, assumindo a clássica postura de neutralidade. As Universidades também não podem estar alheias a esse processo, devendo empreender os seus esforços para a efetiva universalização do acesso à educação. A norma constitucional há que ser aplicada para todos, sem restringir-se o seu âmbito material a parcelas privilegiadas da população. A máxima de que os iguais devem ser tratados como iguais e os desiguais com desigualdade há que ultrapassar a concepção meramente formal para buscar-se a igualdade fática, o que somente é possível através de uma conduta ativa, vale dizer, afirmativa. Carmem Lúcia Antunes Rocha, hoje também Ministra do Supremo Tribunal Federal, trata acertadamente do tema, ao mencionar que somente a ação afirmativa possibilita a verdade do princípio da igualdade. Por essa desigualação positiva promove-se a igualação jurídica efetiva. Colha-se a seguinte passagem, em que a Ministra explicita serem as ações afirmativas necessárias para a realização dos objetivos fundamentais da República, traçados na Constituição Federal: “Se a igualdade jurídica fosse apenas a vedação de tratamentos discriminatórios, o princípio seria absolutamente insuficiente para possibilitar a realização dos objetivos fundamentais da República constitucionalmente definidos. Pois daqui para a frente, nas novas leis e comportamentos regulados pelo Direito, apenas seriam impedidas manifestações de preconceitos ou cometimentos discriminatórios. Mas como mudar, então, tudo o que se tem e se sedimentou na história política, social e econômica nacional ? Somente a 'ação afirmativa', vale dizer, a atuação transformadora, igualadora pelo e segundo o Direito possibilita a verdade do princípio da igualdade, para se chegar à igualdade que a Constituição Brasileira garante como direito fundamental de todos. O art. 3º traz uma declaração, uma afirmação e uma determinação em seus dizeres. Declara-se ali, implícita mas claramente, que a República Federativa do Brasil não é livre, porque não se organiza segundo a universalidade desse pressuposto fundamental para o exercício dos direito, pelo que, não dispondo todos de condições para o exercício de sua liberdade, não pode ser justa. Não é justa porque plena de desigualdades antijurídicas e deploráveis para abrigar o mínimo de condições dignas para todos. E não é solidária porque fundada em preconceitos de toda sorte(...) O inciso IV, do mesmo art. 3º, é mais claro e afinado, até mesmo no verbo utilização, com a ação afirmativa. Por ele se tem ser um dos objetivos fundamentais promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, e quaisquer formas de discriminação. Verifica-se, então, que não se repetiu apenas o mesmo modelo principiológico que adotaram constituintes anteriormente atuantes no país. Aqui se determina agora uma ação afirmativa(...).” (in “Ação Afirmativa – O Conteúdo Democrático do Princípio da Igualdade Jurídica, Revista Trimestral de Direito Público, nº 15/96, p. 85). O poder judiciário também vem reconhecendo a constitucionalidade das ações afirmativas. A 2ª Seção Seção do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, competente para apreciar esse tema, consolidou o entendimento de que o sistema de cotas para o vestibular não ofende o princípio da igualdade e pode ser estipulado por ato da própria Universidade. Com base nesse argumento, foi recentemente negado seguimento a agravo de instrumento interposto por candidata preterida no vestibular em razão do sistema de cotas instituído pela UFRGS, decisão essa publicada em 29.01.2008. A título de exemplificação, transcrevo a seguinte ementa, que bem aborda análise: o tema em “ADMINISTRATIVO. APELAÇÃO. VESTIBULAR. SISTEMA DE COTAS RACIAIS E SOCIAIS. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS. DIREITOS FUNDAMENTAIS. 1. É simplismo alegar que a Constituição proíbe 'discrimen' fundado em raça ou em cor. O que, a partir da declaração de direitos humanos, buscou-se proibir foi a intolerância em relação às diferenças, o tratamento desfavorável a determinadas raças, a sonegação de oportunidades a determinadas etnias. Basta olhar em volta para perceber que o negro no Brasil não desfruta de igualdade no que tange ao desenvolvimento de suas potencialidades e ao preenchimento dos espaços de poder. 2. É simplismo argumentar que a discriminação existente é em razão dos estamentos sociais; muito embora o branco pobre padeça também de carência de chances, fato irrecusável é que à figura do negro associou-se, imbricou-se mesmo, uma conotação de pobreza que a disparidade acaba por encontrar dupla motivação: por ser pobre ou por ser negro, presumidamente pobre. 3. Não se trata aqui de reparar no presente uma injustiça passada; não se trata de vindita ou compensação pelas agruras da escravidão; a injustiça aí está, presente: as universidades, formadoras das elites, habitadas por esmagadora maioria branca. 'Premissa maxima venia', não há como deixar de dizê-lo, ver a disparidade atual e aceitá-la comodamente é atitude racista em sua raiz. 4. Simplismo, também, dizer que as cotas nas universidades não são o remédio adequado, que o tratamento a ser dispensado ao problema está em propiciar-se um ensino básico democratizado e de qualidade. É claro que as cotas raciais não constituem a única providência necessária, não se há de erigi-la em solução. Não se pode, todavia, considerá-la como mero paliativo, pois uma elite nova, equilibrada em diversificação racial, por certo contribuirá em muito para a construção da sociedade pluralista e democrática que o Brasil requer. 5. Embora não haja base legal para coagir a entidade de ensino a fixar cotas em seus exames vestibulares, como asseverou o Ministro Nelson Jobim (SL n. 60/SP), 'sponte propria' pode a Universidade fazê-lo, até porque os direitos fundamentais garantidos na Constituição têm efeitos imediatos, não podendo a disposição que determina o direito a uma vida digna coabitar com a perenização das desigualdades. 6. O interesse particular não pode prevalecer sobre a política pública; não se poderia sacrificar a busca de um modelo de justiça social apenas para evitar prejuízo particular.” (Apelação Cível nº 2005.70.00.013067-9/PR, Rel. Juiz Federal Loraci Flores de Lima, 25.07.2006) Outros Tribunais Regionais Federais também já se pronunciaram no mesmo sentido, como o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, ao negar provimento a recurso contra sentença que julgou procedente ação ajuizada pelo Ministério Público Federal de Minas Gerais (AC 199938000363308, DJU 19.04.2007, p. 47). Destarte, as ações afirmativas, das quais o sistema de cotas é parte, são medidas necessárias para a concretização do princípio constitucional da igualdade material. 3. A Ações Afirmativas e os Tratados Internacionais de Direitos Humanos A Constituição Federal consagrou, no que se refere aos Direitos Fundamentais, dupla fonte normativa, sendo uma delas os tratados internacionais de proteção aos direitos humanos dos quais o Brasil é parte. Nesse sentido, o § 2º do art. 5º da Carta Magna dispõe: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” A Emenda Constitucional nº 45/2004 acrescentou ao art. 5º o § 3º, estabelecendo que “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que foram aprovados, em cada Casa do Congresso nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.” Já o § 1º do art.5º da Constiuição Federal estabelece que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Depreende-se que a Constituição Federal concede tratamento especial aos direitos e garantias internacionalmente consagrados, sendo que sob essa ótica devem ser vistos os tratados e convenções internacionais que versam sobre direitos humanos. O Brasil é signatário de vários instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, sendo merecedoras de destaque a Convenção Internacional para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial e a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, diplomas esses que expressamente permitem a utilização das ações afirmativas. Ressalte-se que a Convenção Internacional para a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, ratificada pelo Brasil em 27.03.1968, prevê as ações afirmativas, nos seguintes termos: “Art. 1º – 4. Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que tais medidas não conduzam, em conseqüência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos.” Tal regramento disciplina e estimula a prática das ações afirmativas, não se limitando, em sua abrangência, aos grupos raciais ou étnicos, e sim abarcando todos os indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar-lhes igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais. Por conseguinte, estão abrangidos os cidadãos advindos das escolas públicas, na medida em que no Brasil encontram-se eles em situação de desigualdade. Assim, não se diga que o sistema de contas não pode ser implementado pelas Universidades em razão da inexistência de legislação autorizativa. Ora, conforme já se expôs, as ações afirmativas vêm a assegurar o pleno exercício de direito fundamental preconizado em norma constitucional de aplicação imediata. Além disso, demonstrou-se que a legislação internacional já incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro prevê expressamente as ações afirmativas. E como se não bastasse, a Universidade possui autonomia para estabelecer os critérios de ingresso por vestibular, conforme se passará a expor. 4. Autonomia da Universidade para Estabelecer o Sistema de Cotas A autonomia das Universidades decorre de mandamento constitucional, determinando o art. 207 que “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial,e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.”. Cuida-se de norma de aplicação imediata e eficácia plena, que “confere à universidade o poder de se autodeterminar, desde que tal autodeterminação não exorbite da ordem jurídica democrática vigente em nosso país” (nesse sentido, Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, in “Comentários à Constituição do Brasil”, 8º volume, saraiva, 1998, p. 471). A Lei nº 9.394/96, ao estabelecer as diretrizes e bases da educação nacional, deixa antever que incumbe às universidades deliberar sobre os critérios e normas de seleção de estudantes, conforme extrai-se do seu art. 51, verbis: “As instituições de educação superior credenciadas como universidades, ao deliberar sobre critérios e normas de seleção e admissão de estudantes, levarão em conta os efeitos desses critérios sobre a orientação do ensino médio, articulando-se com os órgãos normativos dos sistemas de ensino.” Veja-se que as normas que regem os processos seletivos para o ingresso nos cursos de graduação da UFRGS são elaboradas pela própria Universidade, através do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE) e do Conselho Universitário (CONSUN). Se a Universidade não tivesse autonomia para instituir o sistema de cotas, por ser matéria reservada à legislação infraconstitucional, então o mesmo raciocínio deveria ser aplicado às demais diretrizes do processo seletivo. No entanto, não se discute a autonomia da universidade na elaboração de tais regramentos. Portanto, entendo que a UFRGS possui autonomia para instituir o Programa de Ações Afirmativas, a fim de garantir a todos o acesso ao conhecimento, o que obviamente não impede que sobrevenha lei infraconstitucional que verse sobre o sistema de cotas, caso em que caberá a Universidade adequar-se aos seus termos. Sabe-se que a autonomia universitária não é irrestrita, devendo o sistema de cotas ser estabelecido sob o balizamento da ordem jurídica e com proporcionalidade nos critérios de seleção. Reputo serem razoáveis os critérios entabulados na Decisão nº 134/2007, reservando-se 30% das vagas aos candidatos egressos do Sistema Público de Ensino Fundamental e Médio, sendo metade dessas vagas destinadas aos afrodescendentes também egressos do Sistema Público de Ensino Fundamental e Médio. Conforme já se comentou, nas palavras de José Jorge de Carvallho, milhares de secundaristas negros, que têm uma preparação análoga à de uma grande parte dos brancos que freqüentaram a escola pública, são mais pobres do que os brancos pobres e por isso têm menos chances de competir no vestibular. Isso justifica que sejam asseguradas metade das vagas reservadas aos alunos negros provenientes de escolas públicas. A reserva de vagas será avaliada anualmente, e ficará em vigor por um período de cinco anos, o que condiz com o caráter temporário das ações afirmativas, na medida em que perduram até que se restabeleça a igualdade material. O Edital do Concurso Vestibular ainda estabelece critérios de eliminação (item 6.3), aos quais os cotistas também estão submetidos. No caso de não existirem candidatos em condições de preencher as vagas garantidas a optantes egressos do ensino público autodeclarados negros, estas serão preenchidas por candidatos optantes egressos do ensino público. Se ainda restarem vagas, as mesmas voltarão ao sistema de ingresso por Acesso Universal. Portanto, cai por terra qualquer argumento no sentido de que o sistema de cotas da UFRGS violaria o art. 208, inciso V, da Constituição Federal, que prevê a garantia de acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um. Os candidatos às vagas reservada haverão que apresentar bom desempenho, pelas regras de eliminação e, além disso, concorrerão entre si. Por fim, é de se ressaltar que as ações afirmativas revelam-se uma tendência no cenário nacional – o sistema de cotas já foi instituído por várias Universidades Federais, como a do Rio de Janeiro, da Bahia, de São Paulo e de Brasília – e no cenário mundial. Conforme Joaquim B. Barbosa Gomes, “as nações que historicamente se apegaram ao conceito de igualdade formal são aquelas onde se verificam os mais gritantes índices de injustiça social, eis que, em última análise, fundamentar toda e qualquer política governamental de combate à desigualdade social na garantia de que todos terão acesso aos mesmos 'instrumentos' de combate corresponde, na prática a assegurar a perpetuação da desigualdade.” (in “Instrumentos e Métodos de Mitigação da Desigualdade em Direito Constitucional e Internacional”, Página do Grupo de Trabalho “Discriminação” da PFDC, in <>). em estudo jurídico solicitado pelo Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais). Diante disso, entendo não ser o caso de ajuizamento de ação civil pública, razão pela qual DETERMINO , com fulcro no art. 7º, I, da Lei Complementar nº 75/93, o ARQUIVAMENTO do presente procedimento administrativo. Remetam-se cópias deste termo de arquivamento aos representantes, informando a possibilidade de recurso na forma legal, à Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão. Após, à PFDC. Porto Alegre, 31 de janeiro de 2008. Suzete Bragagnolo Procuradora Regional dos Direitos do Cidadão