CONSIDERAÇÕES SOBRE A TAREFA DA EDUCAÇÃO EM ADORNO Franciele Bete Petry UFSC Re sumo: O presente trabalho pretende apresentar algumas idéias presentes em textos de Adorno relacionados à educação, os quais foram, em sua origem, proferidos em conferências e em debates, sobretudo, na rádio de Hessen na década de 60, como Educação após Auschwitz (1965), Educação – para quê? (1966), A educação contra a barbárie (1968) e Educação e emancipação (1969). A questão principal que se coloca diz respeito àquilo a que a educação deve conduzir. A composição de uma seqüência argumentativa para estabelecer uma resposta a ela deve considerar o projeto no qual se constitui a obra de Adorno, portanto, deve assumir a tese geral contida em Dialética do Esclarecimento, escrita em parceria com Max Horkheimer, assim como as conseqüências que dela se originam e que possibilitam a Adorno desenvolver, posteriormente, as considerações presentes em Teoria da Semicultura, bem como aquelas inseridas nos textos sobre educação já mencionados. Palavras-Chave : Adorno. Filosofia da educação. Formação. Autonomia. A fim de entender de forma mais detalhada a tarefa a qual se destina a educação, é importante relembrar brevemente a tese defendida por Adorno e Horkheimer em Dialética do Esclarecimento, qual seja, de que no processo de desenvolvimento da razão, o caráter emancipador desta foi suprimido pela ênfase na dimensão instrumental e, dessa forma, o projeto do esclarecimento exigiu uma mutilação do indivíduo a fim de que pudesse se realizar. O preço que o indivíduo pagou foi sua própria alienação sobre aquilo que passou a dominar pelo conhecimento científico. Isso significa que uma forma específica de subjetividade surgiu nesse processo. O homem, que pelo uso da razão poderia ser livre, viu-se reprimido por essa mesma racionalidade. O pensamento que deveria estar ao seu alcance com fins de emancipação e de domínio sobre a natureza, tornou-se ele mesmo algo coisificado, objetivado pelo uso da razão instrumental. Esse domínio transformou-se em tirania sobre a natureza, inclusive a interna ao ser humano. Assim, desfez-se aquele ideal de autonomia na medida em que a própria consciência tornou-se objeto de domínio, portanto, quando o homem perdeu seu caráter de senhor e passou a ser também objeto de exploração da técnica proveniente do desenvolvimento daquela forma de racionalidade meramente instrumental. Além disso, o conceito de esclarecimento possui, na concepção dos autores, o germe da regressão e da barbárie. Quando a reflexão e a crítica são separadas da razão, há um abandono da consciência sobre aquele elemento regressivo e, com isso, a possibilidade de que fenômenos como o Nazismo, por exemplo, se repitam. Ou seja, se ocorre apenas o predomínio da razão instrumental, que visa somente a busca de meios que atinjam certos fins, e se esquece do caráter formativo da própria subjetividade possível mediante uma razão que supera esse momento técnico, não há condições para que a consciência se constitua de modo livre, crítico e capaz de proporcionar ao homem a percepção do outro. Ao contrário, este passa a ser somente um objeto entre os demais, logo, algo que pode ser dominado. Mas, além disso, o esclarecimento, por ser sempre uma violência sobre um objeto que a ele deve estar subjugado, já contém em si um caráter dominador, para o qual “a essência das coisas revela-se como sempre a mesma, como substrato da dominação.” (ADORNO E HORKHEIMER, 1985, p. 24). Em relação a essas idéias, pode-se indicar duas conseqüências que se ligam à educação: primeiro, que a constituição do sujeito foi alterada nesse processo a fim de que se adequasse às exigências do desenvolvimento do projeto da razão instrumental, o que significou uma mudança na formação do sujeito e mesmo no conceito desse processo. Em segundo lugar, o germe da barbárie contido no princípio da civilização poderia vir a se tornar efetivo se o caráter emancipador ou se a reflexão crítica não se detiverem sobre ele, ou seja, se o pensamento não for capaz de tomar consciência sobre a regressão contida no próprio conceito de esclarecimento. Têm-se com essas observações o ponto de partida para uma análise daquilo em que consiste o objeto da educação para Adorno e é somente em referência ao problema que ele e Horkheimer formulam que se pode compreender o seu sentido. Dessa maneira, ao assumirem um elemento regressivo no esclarecimento, o qual é ignorado dada a obscuridade em que o homem se encontra, e a possibilidade de que ele se realize na sociedade, cabe à educação resistir, pela reflexão crítica que pode proporcionar, que a barbárie se concretize. Em função disso, Adorno diz nas primeiras linhas de Educação após Auschwitz que “a exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação.” (ADORNO, 2003d, p. 119). Esse objetivo não precisa de justificação, uma vez que Auschwitz representa, por si só, a regressão levada a cabo em suas últimas conseqüências e que afetam à humanidade como gênero. E isso não deve ser tolerado pela educação, pois esta, em todas as suas formas, deveria se voltar contra os fenômenos que revelem um elemento de regressão. Auschwitz, nesse sentido, é o exemplo que materializa a tarefa da educação, que mostra o quão difícil e séria é a meta que tem de ser alcançada, uma vez que dela é exigida uma reflexão crítica e rigorosa sobre as condições que tornaram possível a barbárie. Nas palavras de Adorno, (...) qualquer debate acerca de metas educacionais carece de significado e importância frente a essa meta: que Auschwitz não se repita. Ela foi a barbárie contra a qual se dirige toda a educação. Fala-se da ameaça de uma regressão á barbárie. Mas não se trata de uma ameaça, pois Auschwitz foi a regressão; a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as condições que geraram esta regressão (ADORNO, 2003d, p. 119). Tem-se, desse modo, o primeiro objetivo a que se remete a educação: evitar que Auschwitz se repita, impedindo que a falta de consciência sobre as condições que geraram o espaço concentracional e genocida perpetue o elemento de regressão contido na própria civilização. Adorno não parece acreditar que a “consciência verdadeira”, aquela que faz parte de um sujeito autônomo e emancipado, possa eliminar do conceito mesmo de esclarecimento o germe da regressão, mas que, pelo menos, ao se clarificar o problema nele existente, se enfatize o caráter crítico que ele pode ter em detrimento da instrumentalidade em que também pode consistir. A inspiração para esse ponto de partida na reflexão Adorno encontra em Freud, para o qual a civilização (a cultura) só emerge sobre a renúncia pulsional. Isso faz surgir um sentimento de hostilidade constante, que está na raiz mesma do desenvolvimento da civilização, pois a vida em comum exige que a liberdade seja restringida e pulsões encontrem formas de sublimação para compensar a sua não-realização. Os homens permutam a felicidade que acompanharia a concretização de suas pulsões individuais pela segurança decorrente dessa restrição social das necessidades (Bedürfnisse) (FREUD, 2002). Faz-se necessário, a fim de compreender a dimensão da tarefa da educação, explicitar o que Adorno entende por barbárie. Já se viu que Auschwitz é, em si mesma, a regressão, já que representa a realização de um projeto que não é irracional, mas diretamente ligado à efetivação de uma idéia de domínio, portanto, a uma dimensão instrumental da razão, pois se trata de um cálculo de meios ajustados a fins. O extermínio dos judeus pelos nazistas pode ser justificado racionalmente, no sentido de que é possível encontrar um modo de mostrar que aquilo que ocorreu foi planejado e não casual, que a morte nas câmaras de gás não foi acidental, mas devidamente organizada. E isso tudo porque a racionalidade, quando separada de sua dimensão crítica, torna-se irracional, apesar de não deixar de ser uma esfera da razão, ainda que possa despertar o horror. Uma definição de barbárie é encontrada no texto A educação contra a barbárie: Entendo por barbárie algo muito simples, ou seja, que estando na civilização do mais alto desenvolvimento tecnológico, as pessoas se encontrem atrasadas de um modo peculiarmente disforme em relação a sua própria civilização – e não apenas por não terem em sua arrasadora maioria experimentado a formação nos termos correspondentes ao conceito de civilização, mas também por se encontrarem tomadas por uma agressividade primitiva, um ódio primitivo ou, na terminologia culta, um impulso de destruição, que contribui para aumentar ainda mais o perigo de que toda esta civilização venha a explodir, aliás uma tendência imanente que a caracteriza. (ADORNO, 2003d, p. 155). Outra passagem do mesmo texto apresenta também uma definição de barbárie. Adorno diz: “suspeito que a barbárie existe em toda parte em que há uma regressão à violência física primitiva, sem que haja uma vinculação transparente com objetivos racionais na sociedade, onde exista portanto a identificação com a erupção da violência física.” (ADORNO, 2003d, p. 159). A idéia de barbárie assim concebida mostra que a regressão ocorre quando algo da própria natureza não é inteiramente dominado, mas volta como recalque, e ainda quando não se reconhece que a natureza não é inteiramente dominável. Trata-se, então, de uma organização racional da irracionalidade, ou seja, da “liberação” deliberada daquilo que nos constitui como pulsão orientada à violência. Dentre os elementos que formam o germe da regressão estão, por exemplo, a perseguição em relação aos que são considerados fracos, que resulta da ausência de consciência crítica; uma tendência extremada ao individualismo, que provém da desagregação social, de uma pressão do geral sobre o particular; o elogio à severidade que é presente na educação em geral; o problema da crise da autoridade, que é a manifestação de uma consciência coisificada; a identificação cega com os coletivos, na qual as massas se concebem como grupo quando, na verdade, estão sendo manipuladas; um elogio à técnica em vez de entendê-la como simples extensão do braço humano; a incapacidade de amar, que impossibilita aos homens realizarem experiências. Mediante a assunção das condições que geram a barbárie, algumas implicações podem ser inferidas para o campo da educação. Em relação à perseguição aos fracos, Adorno afirma que seria necessário: (...) buscar as raízes nos perseguidores e não nas vítimas, assassinadas sob os pretextos mais mesquinhos. Torna-se necessário o que a esse respeito uma vez denominei de inflexão em direção ao sujeito. É preciso reconhecer os mecanismos que tornam as pessoas capazes de cometer tais atos, é preciso revelar tais mecanismos a eles próprios, procurando impedir que se tornem novamente capazes de tais atos, na medida em que desperta uma consciência geral acerca desses mecanismos. (...) É necessário contrapor-se a uma tal ausência de consciência. (ADORNO, 2003c, p. 121). Nesse sentido, a educação deve-se dirigir a uma auto-reflexão crítica. A proposta de Adorno se vincula à noção hegeliana de negação determinada que expressa a superação do imediato no processo do pensar (HEGEL, 2003). Não basta ao sujeito apenas perceber um objeto que não é ele, é preciso ainda voltar sua consciência sobre si mesmo para, posteriormente, reconhecer-se também no outro. Tal relação permanece no que diz respeito à educação: ela deve ter como meta não moldar um sujeito, no sentido de determinar sua constituição, mas propiciar as condições para que nele a consciência se desenvolva e isso significa, principalmente, que ele se perceba como sujeito ao se diferenciar de um outro. A alteridade exigida, portanto, não é apenas uma separação do sujeito de seu objeto, mas que nesse momento de diferenciação haja também um reconhecimento de que o outro é também uma consciência e um sujeito. Nesse processo, o pensamento pode se dar conta de que aquilo que se apresenta como imediato é na verdade mediado pelo sujeito e, assim, a aparência da realidade já não se iguala à sua essência. Uma educação após Auschwitz tem de estar comprometida com a eliminação das condições que possibilitaram a barbárie, portanto, à promoção do esclarecimento geral. Isso implica em eliminar, também, os elementos de autoritarismo presentes na formação dos sujeitos, em “contrapor-se ao poder cego de todos os coletivos, fortalecendo a resistência frente aos mesmos por meio do esclarecimento do problema da coletivização.” (ADORNO, 2003c, p. 127). A educação, portanto, deve estar intimamente relacionada com a auto-reflexão crítica, pois ela é que torna possível a consciência sobre os fatores geradores da barbárie. Na medida em que se evitam as discussões sobre o que aconteceu, sobre um passado que é um corolário de catástrofes – a regressão em que se constituiu Auschwitz, as ditaduras latino-americanas –, não se elimina o potencial para que tudo se repita. O poder que pertence aos homens e que é capaz de evitar o princípio da regressão reside na autonomia, na reflexão, na resistência oferecida em relação à própria barbárie, na recusa em dela participar. Assim, a educação deve incentivar tais qualidades, deve provocar essa reflexão a fim de dissolver aquelas condições subjetivas que fazem da consciência humana uma coisa que pode ser manipulada e usada para a destruição. Como diz Adorno, a consciência coisificada é fruto de um processo em cujo início “as pessoas (...) se tornam por assim dizer iguais a coisas. Em seguida, na medida em que o conseguem, tornam os outros iguais a coisas.” (ADORNO, 2003c, p. 130). Fica claro que pessoas nas quais está ausente uma consciência verdadeira, a dominação sobre outros homens não é nada mais que dominação sobre coisas, portanto, trata-se de algo sem valor moral. Se as pessoas se confundem com aquilo que pode ser manipulado, então, para elas, parece ser justificável cometer crimes tais como aqueles realizados em sistemas ditatoriais ou totalitários. É contra isso que a educação deve se colocar. No texto A educação contra a barbárie, Adorno discute a questão da autoridade como um fator importante para a autonomia que a criança poderá desenvolver na fase adulta, embora em outros casos a autoridade seja um elemento contido no impulso de regressão e barbárie. Diz ele: Determinadas manifestações de autoridade, que assumem um outro significado, na medida em que já não são cegas, não se originam do princípio da violência, mas são conscientes, e, sobretudo, que tenham um momento de transparência inclusive para a própria criança; quando os pais “dão uma palmada” na criança porque ela arranca as asas de uma mosca, trata-se de um momento de autoridade que contribui para a desbarbarização. (ADORNO, 2003a, p. 167). O final da passagem acima cita mostra outro fim a que se destina a educação: a desbarbarização. Isso significa evitar que o germe da regressão contido no conceito de esclarecimento, bem como na sociedade capitalista moderna, que é a forma mais acabada do projeto da razão instrumental, se desenvolva. Experienciar a barbárie é atestar o fracasso da escola. Adorno não é muito otimista quanto à possibilidade da escola realizar essa tarefa, uma vez que, como já foi assinalado, o princípio da barbárie se encontra na própria sociedade. A força que reside na educação é a de insistir no desenvolvimento da auto-reflexão crítica, esforço que está na contramão das condições sociais objetivas, as quais estão configuradas no sentido de intensificar o processo de coisificação da consciência. Cabe a ela, portanto, promover a reflexão, mas, como salienta Adorno, esta deve se relacionar a “fins transparentes e humanos, e não a reflexões em abstrato” (ADORNO, 2003a, p. 161), uma vez que a reflexão, assim como a razão, pode tanto servir à dominação cega quanto à emancipação. Nesse contexto, a escola deve libertar-se dos tabus que podem provocar a barbárie. Isso significa que se deve buscar o esclarecimento de questões geralmente veladas em razão de interesses também mascarados. A manutenção dos tabus serve como aceitação da realidade e é contra isso que a escola pode se posicionar. Livrar-se do misticismo e esforçar-se por clarear o entendimento sobre a realidade são essenciais para a transformação das condições sociais existentes e que ainda são capazes de provocar a barbárie. Nas palavras de Adorno, “o pathos da escola hoje, a sua seriedade moral, está em que, no âmbito do existente, somente ela pode apontar para a desbarbarização da humanidade, na medida em que se conscientiza disto.” (ADORNO, 2003e, p. 117). Por meio de uma educação que se contraponha à barbárie, Adorno também se compromete com o desenvolvimento de uma consciência moral, no sentido de que aqueles que são esclarecidos, que tiveram a experiência da formação cultural sentirão vergonha diante da violência e se cometerem uma agressão física arbitrária, deverão se sentir mal frente ao que foram capazes de fazer. Como o autor afirma, “somente quando formos exitosos no despertar desta vergonha, de maneira que qualquer pessoa se torne incapaz de tolerar brutalidade dos outros, só então será possível falar do resto.” (ADORNO, 2003a, 165). A educação tem que se dirigir à emancipação, no sentido empregado por Kant, de que os homens sejam senhores de si próprios, para que saiam de um estado de heteronomia de que eles são culpados. Muitos dos fatores que geram a barbárie existem nos indivíduos porque estes já não são capazes de fazer experiências. A ausência destas torna a vida dos homens fragmentada, uma simples sucessão de instantes nos quais não há um reconhecimento de um eu que seja ao mesmo tempo firme unificado, mas aberto à experiência do outro, sem a qual não há emancipação. Para Adorno, a “emancipação significa o mesmo que conscientização, racionalidade” (ADORNO, 2003b, p. 143). E tais elementos estão inseridos numa realidade composta também por um momento de adaptação, conforme aquela tensão já apresentada no texto Teoria da Semicultura (ADORNO, 1996). A educação tem que saber lidar com os dois momentos (autonomia e adaptação), mas não pode permanecer naquele de adaptação, pois não deve formar as crianças e jovens para o conformismo. Para Adorno (2003b, p. 143), o caráter ideológico do tempo presente (que, ironicamente, “prescinde” de conteúdos específicos) consiste na própria organização do mundo e exerce forte influência nas pessoas, superando, inclusive, a educação. Por isso, esta deve ter presente a idéia de que há na realidade uma necessidade de adaptação, por meio da qual as pessoas se orientam no mundo. Sem isso, a educação mostrar-se-ia impotente e ideológica. Entretanto, se enfatizasse esse caráter da cultura – da adaptação –, também seria problemática, pois estaria “produzindo nada além de well adjusted people, pessoas bem ajustadas, em conseqüência do que a situação existente se impõe precisamente no que tem de pior.” (ADORNO, 2003b, p. 143). É por isso que o próprio conceito de educação, analogamente ao que ocorre com o de esclarecimento, deve identificar a ambigüidade que nele está presente para não se converter num produto da falta de consciência que critica. Isso parece estar relacionado ao que Adorno diz ser a causa objetiva da barbárie. Além dos fatores subjetivos, há uma situação que se apresenta como condição para que a barbárie se realize que é, para Adorno, a falência da cultura. Diz ele: A cultura, que conforme sua própria natureza promete tantas coisas, não cumpriu a sua promessa. Ela dividiu os homens. A divisão mais importante é aquela entre trabalho físico e intelectual. Deste modo ela subtraiu aos homens a confiança em si e na própria cultura. E como costuma acontecer nas coisas humanas, a conseqüência disto foi que a raiva dos homens não se dirigiu contra o não-cumprimento da situação pacífica que se encontra propriamente no conceito de cultura. Em vez dito, a raiva se voltou contra a própria promessa ela mesma, expressando-se na forma fatal de que essa promessa não deveria existir. (ADORNO, 2003a, p. 164). Esse ódio direcionado contra a promessa da própria cultura é um impedimento à emancipação, na medida em que, ao modificar a consciência das pessoas, torna-as incapazes de realizar experiências fundamentais no processo emancipador. Os homens, então, deixam de ser aptos à experiência, e “interpõem entre si mesmos e aquilo a ser experimentado aquela camada estereotipada a que é preciso se opor.” (ADORNO, 2003b, p. 148). Aqui se pode pensar na idéia da formação dos ideais, que são modelos impostos do exterior e que representam a heteronomia, já que não são produtos de uma consciência emancipada, mas, ao contrário, revelam justamente que a consciência perdeu sua autoridade e capacidade de resistir às imposições da sociedade. Isso também se relaciona à inaptidão à experiência, entendida como a “continuidade da consciência em que perdura o ainda não existente e em que o exercício e a associação fundamentam uma tradição no indivíduo – fica substituída por um estado informativo pontual, desconectado, intercambiável e efêmero, e que se sabe ficará borrado no próximo instante por outras informações” (ADORNO, 1996, p. 405). Quando ela está ausente, compromete-se o espaço da formação do ego. Tal incapacidade, entretanto, não reside exclusivamente no indivíduo, mas é resultado desse movimento, pode-se dizer, da indústria cultural e da semiformação, em que ele se encontra e que altera profundamente sua sensibilidade, a ponto de formar uma resistência à cultura, assim como à educação. Nesse sentido, entende-se que tal aversão é produto do ressentimento, daquela raiva pelo não-cumprimento da promessa da cultura, da impossibilidade de participar da formação cultural. Ao invés de desejarem uma apropriação verdadeira dos bens culturais, ou seja, de terem a experiência da formação em seu conceito original, os indivíduos são levados a se opor àquilo que lhes seria essencial para se constituírem como sujeitos autônomos. É nesse contexto que a educação deve assumir sua tarefa de formação para a emancipação. Seu principal objetivo consistirá em tornar claro os mecanismos que ocasionam a aversão ao próprio conceito de cultura, pois, no caso dessas pessoas, não se trata tanto daquela ausência de formação que caracteriza a tendência de democratizar a semiformação, mas do ressentimento que sentem por serem excluídas da esfera formativa da cultura. A educação, então, poderia contribuir para a modificação dessas situações subjetivas na medida em que poderia esclarecer e dissolver os mecanismos de repressão a que as pessoas estão submetidas sem, no entanto, estarem conscientes disso, e que destroem a possibilidade delas terem experiências. O que parece necessário fazer aqui é estabelecer aquilo que caracteriza a consciência, que é, para Adorno, (...) o pensar em relação à realidade, ao conteúdo – a relação entre as formas e estruturas de pensamento do sujeito e aquilo que este não é. Este sentido mais profundo de consciência ou faculdade de pensar não é apenas o desenvolvimento lógico formal, mas ele corresponde literalmente à capacidade de fazer experiências. Eu diria que pensar é o mesmo que fazer experiências intelectuais. Nesta medida e nos termos que procuramos expor, a educação para a experiência é idêntica à educação para a emancipação. (ADORNO, 2003b, p. 151). Nessa passagem há uma relação íntima entre a educação (Erziehung) e a formação cultural (Bildung), pois, na medida em que a última tem como característica a aptidão a se ter experiências, e a educação também assume um “dever” de incentivá-las, ambas se identificam. A educação que se remete à emancipação coincide com o conceito de formação cultural e, conseqüentemente, deve se opor à semiformação que é o processo reificador da consciência das pessoas, incapacitando-as de fazerem experiências. Além disso, é possível perceber na passagem acima que a educação também se relaciona à filosofia, pois esta, quando se constitui como crítica ao pensamento, deve manter com seu objeto uma relação de reflexão rigorosa, ou seja, deve considerar aquilo que toma como conteúdo de seu pensamento algo que deve ser objeto de reflexão em todas as suas formas e possibilidades. A importância disso reside na idéia de que a capacidade de fazer experiências é condição para a formação/constituição do sujeito. Para que isto ocorra, é necessário combater o enfraquecimento do eu que obscurece a identidade do próprio indivíduo, negando a ele a sua individualidade. Isso ocorre, principalmente, no contexto do predomínio da indústria cultural, que no processo de transformação dos bens culturais em mercadorias e, conseqüentemente, na ideologia em que ela mesma se constitui, torna impossível a afirmação do indivíduo na sociedade. É nesse sentido que Adorno retoma, no texto Educação e emancipação, a definição de esclarecimento dada por Kant. Se a emancipação consiste na saída dos homens de sua auto-inculpável menoridade, então, a educação que tenha tal propósito deve admitir o pressuposto de que todos são capazes de alcançar a maioridade da razão. Contudo, se a educação não levar em conta as condições objetivas e subjetivas existentes na sociedade e no indivíduo, as quais são responsáveis pela destruição da formação e, conseqüentemente, da constituição do sujeito, então, ela também se torna ideológica e impotente frente à tarefa que assumiu para si. Adorno não alimenta um otimismo em relação à possibilidade da emancipação, mas tampouco nega que ela possa se realizar. Reafirmando uma dialética do esclarecimento, é possível pensar que a educação não conduz necessariamente à emancipação se não a colocar como seu objetivo principal. Quando o autor recorda a resposta de Kant à pergunta “vivemos nós agora numa época esclarecida” (KANT, 1988, p. 17), aponta para a contradição social existente, a qual se constitui numa enorme dificuldade para a realização da emancipação. Diz ele: O motivo evidentemente é a contradição social; é que a organização social em que vivemos continua sendo heterônoma, isto é, nenhuma pessoa pode existir na sociedade atual realmente conforme suas próprias determinações; enquanto isto ocorre, a sociedade forma as pessoas mediante inúmeros canais e instâncias mediadoras, de um modo tal que tudo absorvem e aceitam nos termos desta configuração heterônoma que se desviou de si mesma em sua consciência. É claro que isto chega às instituições, até a discussão acerca da educação política e outras questões semelhantes. O problema propriamente dito da emancipação hoje é se e como a gente – e quem é “a gente”, eis uma grande questão a mais – pode enfrentá-lo. (ADORNO, 2003d, p. 182). A força que a educação tem, quando comprometida com a formação cultural, reside na possibilidade de incentivar a resistência, de produzir no indivíduo uma consciência verdadeira, de esclarecer os mecanismos de repressão social que influenciam a vontade das pessoas, levando-as a se oporem contra aquilo que lhes é essencial. Ao assumir a emancipação com seu fim, a educação pode resgatar a capacidade dos homens de realizar experiências, de refletir sobre a realidade, de estabelecer uma relação de crítica com o conteúdo de seu pensamento, enfim, de se constituírem como sujeitos autônomos. Essa tarefa, porém, é de difícil realização, pois se depara com inúmeros obstáculos sociais, com a contradição existente no próprio conceito de esclarecimento. Mas a consciência sobre isso já é um passo em direção à destruição dos mitos que ainda aprisionam os homens. Por isso a formação cultural tem que estar ao lado da educação, pois não é nem sua base, nem seu resultado, mas um processo que ocorre naqueles que são educados para a emancipação. Quando ambas estiverem ligadas, as chances de superar as barreiras que impedem a saída do homem de sua menoridade serão maiores. Referências ADORNO, T. W. A educação contra a barbárie. In: Educação e Emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 2003a. ADORNO, T. W. Educação – para quê?. In: Educação e Emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 2003b. ADORNO, T. W. Educação após Auschwitz. In: Educação e Emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 2003c. ADORNO, T. W. Educação e emancipação. In: Educação e Emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 2003d. ADORNO, T. W. Tabus acerca do magistério. In: Educação e Emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 2003e. ADORNO, T. W. Teoria da Semicultura. Tradução de Newton Ramos de Oliveira, Bruno Pucci, Cláudia B. Moura Abreu, revisão pelos autores, com colaboração de Paula Ramos de Oliveira. In: Educação & Sociedade: Revista quadrimestral de ciência da educação, ano XVII, n.º 56, Campinas: Editora Papirus, dez./1996, pp. 388-411. ADORNO, T. W., HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. (Tradução: Guido A. de Almeida). FREUD, S. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 2002. HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes: Bragança Paulista: USF, 2002. KANT, I. Resposta à pergunta: o que é Iluminismo? In: A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa: Edições 70, 1988.