O TRIGO E O JOIO: MALANDRAGEM, SONHO, SOBREVIVÊNCIA
Ana Carla Pacheco Lourenço Ferri1
Mestra em Literatura Portuguesa / UFRJ
RESUMO: O objetivo deste trabalho é a leitura crítica do romance de Fernando Namora,
publicado em 1954, O trigo e o joio. Partindo da premissa de que a palavra literária tem a
singular capacidade de escapar do autoritarismo do uso quotidiano da linguagem, a leitura
orienta-se por privilegiar elementos que comprovem haver no romance de Fernando Namora
um apelo estético que se sobrepõe ao discurso ideológico predominante no modelo tradicional
do romance neo-realista português. Para tanto, o estudo recorta a forma de heroicidade em
desvio representada pelas figuras do malandro e do sonhador, sugerindo que os pequenos
heróis construídos pela narrativa O trigo e o joio – por também serem sobreviventes de uma
realidade hostil e opressora – podem ser vistos como alegorias dessas figuras marginais.
PALAVRAS-CHAVE: Fernando Namora. Malandragem. Sonho.
Há quem diga que todas as noites são de sonhos. Mas há
também quem garanta que nem todas, só as de verão. No
fundo, isso não tem importância. O que interessa mesmo
não é a noite em si, são os sonhos. Sonhos que o homem
sonha sempre, em todos os lugares, em todas as épocas do
ano, dormindo ou acordado.
William Shakespeare
O trigo e o joio, publicado em 1954, fecha o ciclo de narrativas de Fernando Namora
ambientadas no campo e é considerado por muitos críticos como o mais importante romance
desta fase, tendo sido traduzido para o inglês, francês e alemão, e adaptado para o cinema por
Manuel Guimarães, em 1965. Na opinião de Cleonice Berardinelli, O trigo e o joio “é um
grande livro” (1982, p. 317); Urbano Tavares Rodrigues (1981, p. 89) considera-o um
“excepcional romance, metáfora da tenacidade e da esperança que já de há muito conseguiu
ressonância universal”. Este livro, assim como os outros do período rural, é inspirado nas
experiências vividas ou presenciadas pelo escritor na condição de médico de aldeia; no
entanto apresenta algumas inovações e consolida elementos que, segundo a crítica,
começaram a ser delineados por Namora no romance anterior, A noite e a madrugada (1950).
1
Professora da rede pública do Estado do Rio de Janeiro; graduada em Letras pela Universidade Iguaçu (UNIG);
Mestra em Literatura Portuguesa pela Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Este artigo é produto da Dissertação de Mestrado Uma história de pequenos heróis: uma leitura de O trigo e o
joio, de Fernando Namora, defendida em agosto de 2008.
2
Para Óscar Lopes, os dois romances “parecem corresponder a uma fase nova, caracterizada
pelo elemento picaresco, ainda não pronunciadamente definido nos anteriores” (apud
SACRAMENTO, 1967, p. 112). A opinião do crítico reafirma o que já declarava o próprio
Namora ao jornal Ler, de Lisboa, em 1953: “Tenho procurado, bem ou mal, encaminhar-me
para a novela pícara peninsular, e o meu romance A noite e a madrugada é um passo nesse
caminho, como o será o novo livro O trigo e o joio, que estou a terminar” (apud DAVIDPEYRE, 1977, p. 48). Óscar Lopes observa também que “[se] capta nestes romances
temperamento, humor, atmosfera física, uma elegância nova sem esforço aparente que
representam um progresso da arte do escritor” (apud SACRAMENTO, 1967, p 113).
Fernando Namora defendeu a liberdade de criação literária, uma liberdade que não
deveria ser limitada pelas convicções ideológicas do artista. Esteve entre os que sabiam o
quanto é improvável ao escritor manter-se preso por muito tempo ao estilo desenvolvido nos
primeiros livros, pois existem “mudanças, as quais correspondem a uma evolução própria”
(NAMORA, apud TAVARES, 1994, p.6), ou seja, não se pode negar o alargamento de
perspectivas, o inevitável processo de amadurecimento e o consequente refinamento estético
vivido pelo autor ao longo de sua carreira. O trigo e o joio problematiza a realidade social ao
tratar de questões que afetam o trabalhador rural em sua eterna luta pela sobrevivência diária
dentro de um sistema econômico opressor. Porém, os novos elementos observados por Óscar
Lopes, além da linguagem metafórica e o deslocamento de perspectiva – que não é a do
trabalhador
assalariado,
mas
a
“dum
ínfimo
proprietário
de
pequena
courela”
(SACRAMENTO, 1967, p. 115), tão oprimido quanto aquele –, mostram que este romance
não só representou o aprimoramento da escrita de seu autor como também trouxe um
arejamento a certo modelo construído pelos romances mais marcadamente “ideológicos” da
primeira fase do movimento neorealista. A longevidade de seu valor estético comprova que
uma mensagem é “tanto mais válida quanto menos agressiva” (BERARDINELLI, 1982, p.
354) ideologicamente.
Se nos fosse possível resumir as intenções estéticas de Fernando Namora, usando em
eco as próprias palavras do escritor, talvez “a procura de uma íntima coerência (o rasgar da
máscara), o apelo à dignificação da existência, o apelo a tudo o que possa resgatar os
humilhados e os atormentados, a descida aos abismos da solitude” (NAMORA, 1981, p. 31)
pudessem servir de resumo competente. Ao procurar resgatar e dignificar as existências mais
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humildes e marginalizadas, Fernando Namora constrói pequenos heróis que ganham espaço
em suas narrativas, sendo elevados à privilegiada categoria de protagonistas. O escritor, assim
como muitos outros escritores de sua época, joga luz sobre a existência de homens e mulheres
que não costumam aparecer nos registros da história oficial; homens e mulheres que lutam
heroicamente contra um quotidiano opressor. Pode-se dizer que a literatura dos anos 40 / 50 já
anunciava o que, tempos depois, seria difundido pela corrente da Nova História como uma
corrente que “reclama os caminhos do encontro com o poético” (SILVA, 1989, p. 25), pois
aposta no poder da ficção de preencher as lacunas, os silêncios do passado deixados pela
História. Boa parte da literatura portuguesa contemporânea mantém esse diálogo com a
História, iniciado pelos escritores neorealistas, “fazendo emergir, através da palavra poética,
uma história ‘calada’ pela força alienante do poder repressor” (SILVA, 1989, p. 28).
O trigo e o joio conta as aventuras de um pequeno lavrador, Loas, que luta para
sobreviver com sua família, através de seu pedaço de chão, sonhando, sobretudo, em vê-lo
cultivado. Loas é mais um excluído que sofre a opressão de um sistema agrícola favorável
somente aos grandes proprietários rurais. Cortando o caminho dessa família, aparece o
vagabundo Barbaças, um outro excluído, que é seduzido pelo obstinado e esperto Loas a
ajudá-lo na construção do sonho da terra. Do encontro de homens tão diferentes, nasce um
novo núcleo familiar ligado pelo desejo de aquisição de uma burra que pudesse agilizar o
preparo da terra para a sementeira do trigo.
No novo núcleo familiar, o trabalho não é compreendido como forma de opressão,
mas sim de libertação, pois significa mais do que algo necessário para a subsistência ou
enriquecimento material, o trabalho é, acima de tudo, um verdadeiro legado de amor à terra:
"Um homem nascia com a herança de uma terra e cumpria-lhe deixar o legado, íntegro, aos
que viessem depois. O legado não era a terra, choiso ou herdade, mas a capacidade de amor e
tenacidade que seria capaz de lhe oferecer" (Tj, p. 47). A realização do sonho da terra
cultivada depende da aquisição de uma burra, que passa a ser uma aspiração coletiva que já
não pode mais ser adiada. A burra é um sonho não apenas de Loas, mas é também de Joana,
Alice e agora de Barbaças que, pela primeira vez, desfruta do convívio familiar,
experimentando de perto o que é o afeto. Porém, o fadista Vieirinha – sujeito falastrão e capaz
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de muitas artimanhas para gozar de boa vida, regrada à bebida e a mulheres – frustrará os
desejos da inusitada família: primeiro convence Barbaças a gastar com vinho e raparigas o
dinheiro reservado para a compra da burra; depois, num acaso infeliz, provoca a morte do
animal ao condená-lo levianamente a uma doença de que não poderia estar contaminado.
Gostaríamos de defender, neste artigo, a ideia de que Barbaças, Loas e Vieirinha
acabam por constituir uma tríade de pequenos heróis que encarnam figuras emblemáticas da
literatura ocidental: o pícaro, o sonhador e o malandro. Estas figuras seriam como
antepassados dos personagens de Fernando Namora, que habilmente convoca a tradição
literária para contar a história de homens comuns, mostrando ser possível construir uma
heroicidade em desvio através do poder de um sonho capaz de unir um solitário vagabundo,
um delirante irremediável e um reles boa-vida.2
A ação do pícaro é impulsionada pela miséria, sua luta é em busca da própria
sobrevivência. A figura do malandro – saída do folclore brasileiro e que ganhou feições
literárias a partir do século XIX com o romance de Manuel Antônio de Almeida, Memórias de
um Sargento de Milícias (1854) – distancia-se do herói da novela picaresca porque suas
trapaças são praticadas sem um objetivo concreto. Este outro exemplo de heroicidade
marginal “pratica a astúcia pela astúcia (mesmo quando ela tem por finalidade safá-lo de uma
enrascada)” (CANDIDO, 1993, p. 26). O comentário3 do crítico refere-se ao herói do romance
brasileiro, mas poderia referir-se aos heróis de O trigo e o joio. Loas, Barbaças e Vieirinha
aproximam-se do pícaro porque lutam com os meios possíveis para sobreviver em um
quotidiano opressor, porém também podemos notar semelhanças com o malandro nesses
personagens, pois muitas vezes suas trapaças são fruto apenas do simples desejo do jogo, da
sedução em mostrarem-se mais espertos do que os outros, sinais do apego à boa vida que
rejeita qualquer forma de trabalho.
O personagem Vieirinha, sujeito “vermelhaço e sorridente, maneirinho, barrigudo”
(Tj, p. 78), é visto por alguns críticos como uma espécie de pícaro mau e irrecuperável; no
entanto, entendemos que ele está mais para um malandro sem emenda. O fadista sempre
soube aproveitar-se da intimidade e do manejo com as palavras para enredar os interlocutores
mais ingênuos, pois “trazia em si, nos gestos e nos discursos, o cheiro do mundo, sugestões
2
Optamos, aqui, por observar apenas as características das figuras do malandro e do sonhador nos personagens
do romance de Fernando Namora. Por ser o grande ancestral dos heróis marginais recriados pela forma
romanesca, o pícaro saído da novela espanhola do século XVI exige um espaço de reflexão que não cabe neste
artigo.
3
O comentário de Antonio Candido está inserto em seu ensaio “Dialética da Malandragem” (1993), no qual
analisa o romance de Manuel Antônio de Almeida, Memórias de Um Sargento de Milícias.
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perigosas e perturbáveis” (TJ, p 81), como a que levou Barbaças a lhe entregar todo o
dinheiro de Loas. Vieirinha de fato ludibriou Barbaças em nome da necessidade de saciar o
desejo de estar com uma mulher. Mas não se pode desprezar que sua atitude também
demonstra certo prazer de ver o outro envolvido por suas manhas, mostrando assim suas
habilidades diante de uma platéia ingênua. É este prazer que justifica, por exemplo, o fato de
humilhar gratuitamente Barbaças diante de Rosa, a rapariga da barraca de tiro, mostrando-se
mais habilidoso no manejo com a espingarda:
(...) De testa afogueada, experimentou ainda mais duas vezes, enquanto o olhar
volúvel da rapariga flutuava no balcão e o Vieirinha, bamboleando o ventre, esperava
a sua vez de pegar na espingarda para dar ao Barbaças uma lição de pontaria. Toda a
gente na vila sabia que ele matara dezenas de leões, de onças, de elefantes, e iria agora
certificar-se se ele era homem para espatifar de olhos fechados toda a cacada da
barraca.
– Você parece uma velha a tremer com o gatilho! – disse a rapariga, ao receber a arma
das mãos do Barbaças (...) (TJ, p. 85).
Em outra passagem, depois de já ter consumido todo o dinheiro de Loas, Vieirinha usa
de um discurso cínico com o apavorado Barbaças ao dizer que este poderia escolher entre
passar algumas horas com Rosa ou comprar uma burra:
– Então, meu velho!? – saudou o [Vieirinha], dando o braço à rapariga e à
companheira. – Hem?! Que tal a surpresa? ’tás com uma cara de quem tem as tripas
num novelo!
– E a burra?...
– É assim que recebes estas senhoras, ingrato! Duas senhoras excelentemente bem
dispostas com o velho Vieira, simpáticas, fagueirinhas, duas senhoras que merecem
dúzias de leques de Espanha, e tu não tens mais nada para lhes dizer do que esse
negócio da burra! /.../
– Vosmecê bem sabe que o seu compadre espera por mim. Tenho de lhe levar a burra
ou o dinheiro – disse o Barbaças, numa voz que pretendia ser ríspida e resultava
lamentosa.
– É questão de escolheres. ’tás excelentemente fornecido de dinheiro para voltares à
feira e comprar o que te apetecer (TJ, p. 106-107).
Embora considerasse Vieirinha “homem para nos saltar ao caminho e armar-nos um
laço” (Tj, pp. 196-197), Loas não ficava muito atrás dele em matéria de malandragem. Na
maior parte da narrativa, o coureleiro usa do poder de persuasão de suas palavras para buscar
meios de realizar seus objetivos: “descosia a língua, que era talvez uma maneira de se
aproximar das coisas profundamente desejadas” (Tj, p. 28). Algumas vezes, tem atitudes
absolutamente egoístas a fim de não colocar em risco o desejo de transformar seu pequeno
pedaço de chão numa herdade, utilizando-se de uma esperteza malandra. Certa vez, manteve
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Barbaças com uma aparência repugnante – cabeludo e sujo – com o propósito de que o vadio
fosse rejeitado pelos moradores da vila e não tivesse mais vontade de deixar a courela, pois
não queria perder a força de trabalho de seu pretenso “sócio”. O coureleiro apostava, assim,
na indigência da figura de Barbaças para que este permanecesse no lugar da exclusão social.
Mas Loas também gostava de usar de sua esperteza apenas para manter certo prestígio junto à
família – como na passagem em que se reúnem para decidir sobre a melhor época para a
compra da burra: “Loas recorreu à tabuada dos dedos, olhando para o tecto, no seu jeito de
inspirado (...)” (Tj, p. 62). O pai de Alice era um malandro vaidoso, valia-se do que aprendera
nos livros para alimentar a fama de adivinho do futuro. Neste sentido, além da atração pelo
jogo e pela vaidade, percebe-se que Loas se utiliza de uma suposta sabedoria para tirar
vantagem da realidade de ignorância que o cerca:
(...) E o Loas sorria, vaidoso, gozando a ignorância dos parceiros. Ele não precisava de
calendário para consultar o futuro. Marés, dias da semana, luas, vistos à distância de
um século (se lhe desse na gana ir tão longe nas previsões), eram com ele. /.../ esses
cálculos nada tinham de fantásticos: aprendera-os em livros, alfarrábios, enciclopédias
de alquimias e mau olhado. Essa cultura de bruxedos servia-lhe para que algumas
velhas o temessem e para ocasiões como esta, em que era preciso aliciar um qualquer
para umas lérias (Tj, p. 29).
Dos três pequenos heróis de O trigo e o joio, Barbaças era o menos astuto; no entanto,
nos tempos de vadiagem na vila, não perdia a chance de pilhar “uma galinha ingênua” (Tj, p.
27) só para se divertir, para afastar a “azeda melancolia” (Tj, p. 27) dos dias. Com D. Quitéria
mantinha um cômico jogo de interesses em que não se pode negar o seu lado patife, pois
assim como a rica senhora aproveitava-se dele para mostrar à vila sua “caridosíssima” alma,
tentando salvá-lo da vida de pecado, ele muitas vezes fora à sua casa só para conseguir algum
alimento que lhe garantisse mais tempo entregue à preguiça e ao ócio. A malandragem
também está inscrita na declarada falta de fé de Barbaças, aqui usada como forma de chocar e
seduzir o “trabalho santo” da beata:
– Deves uma promessa, Luís – dizia-lhe D. Quitéria, de tempos a tempos.
– Que é lá isso?! – respondia ele, como quem arreda um insulto.
– À Senhora de Fátima, que te salvou, meu renegado! Devias lá ir a pé, durante dois
dias e três noites, agradecer-lhe a divina graça.
– Graça tem vomecê com essas idéias.
D. Quitéria benzia-se com pavor, espreitando o céu insondável, donde viria um dardo
de fogo emudecer o sacrílego.
– Tenho de rezar por ti, filho do pecado!
– Ora, desse-me vomecê presuntos, em vez de rezas!... (Tj, p. 26).
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Uma prova de que o comportamento de Barbaças com D. Quitéria não era
consequência apenas de sua existência pícara é o comentário do narrador sobre a reação do
ex-vadio ao conseguir arrancar daquela senhora que misturava “rezas com insultos às criadas”
(Tj, p. 66) a quantia necessária para concretizar a compra da burra tão esperada por Loas e sua
família: “Sentia-se perplexo. Noutros tempos, este vitorioso jogo com a velha ter-lhe-ia dado
uma incomparável satisfação e iria dali, vaidoso, propalá-lo aos camaradas” (Tj, p. 217). É
preciso dizer que a malandragem de Barbaças, no caso do dinheiro tirado da beata para a
aquisição do animal de Loas, foi usada para a causa nobre do sonho coletivo e não pelo gosto
da simples trapaça.
A nosso ver, a naturalidade com que os personagens de O trigo e o joio transitam pelo
mundo da ordem e pelo da desordem (escolhendo, muitas vezes, de maneira consciente o
lugar da desordem, só pelo simples prazer da burla) cria “um universo que parece liberto do
peso do erro e do pecado” (CANDIDO, 1993, p. 47). O leitor, também influenciado por um
narrador bastante tolerante, não condena o comportamento dos personagens, ao contrário,
chega a ver suas trapaças com certa simpatia. Talvez porque – a exemplo do que diz Antonio
Candido (1993, p. 47) sobre os personagens do romance Memórias de um Sargento de
Milícias – Loas, Barbaças e Vieirinha “fazem coisas que poderiam ser qualificadas como
reprováveis, mas fazem também outras dignas de louvor, que as compensam. E como todos
têm defeitos, ninguém merece censura”.
O que também chama atenção, nas passagens em que a malandragem dos personagens
se faz presente, é a atmosfera de humor, reeditando a característica cômica das narrativas de
origem popular. O espírito aventureiro e lúdico que acompanha os personagens do romance,
de alguma maneira, contribui para que eles suportem as pressões do quotidiano. Segundo
Eduardo Diatay B. de Menezes (1974, p. 13-14), o jogo e o cômico são recursos encontrados
pelo ser humano para atenuar ou mesmo rejeitar a realidade que lhe oprime:
(...) O cômico, como o jogo, é uma confrontação com os fatos em favor da fantasia, é
uma maneira de negar o real pela ficção, e um meio de livrar-se de suas pressões e
constrangimentos. O jogo, como o cômico, está associado à alegria, surpresa,
arrebatamento, farsa, burla, divertimento, irrealidade...
É possível dizer que o jogo, a burla e o humor presentes em O trigo e o joio rompem
com certa tradição de severidade em torno das obras de cunho ortodoxamente neorealista;
além disso, conferem ao romance o mérito de resgatar uma das funções do texto literário, que
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é a do entretenimento através do trabalho estético e a de despertar no leitor o prazer da leitura.
Função um tanto abafada numa época em que os escritores, imbuídos do desejo de serem
porta-vozes daqueles que viviam uma realidade infeliz, pareciam recusar a alegria e a
felicidade. O depoimento de Mário Dionísio, no prefácio do livro de Manuel da Fonseca,
Poemas Completos, exprime bem o espírito predominante entre os escritores na fase inicial do
movimento neo-realista:
(...) um coração pulsando por todos os humilhados e ofendidos (líamos muito
Dostoievski, apesar do que terá parecido), uma obstinada recusa a ser feliz num
mundo agressivamente infeliz, uma ânsia de dádiva total e o grande sonho de criar
uma literatura nova, radicada na convicção de que, na luta imensa pela libertação do
homem, ela teria um papel inestimável a desempenhar contra o egoísmo, os interesses
mesquinhos, a conivência, a indiferença perante o crime, a glorificação do mundo
podre (...) (DIONÍSIO, apud TORRES, 1977, p. 81-82)
A atmosfera de humor4 presente em O trigo e o joio leva-nos a abrir um parêntese para
salientar um aspecto da narrativa de Fernando Namora muito pouco comum no universo de
obras neo-realistas: a presença de uma criança que vive uma infância feliz. A menina Alice
tem uma estrutura familiar que lhe permite brincar, sonhar, enfim, ser inocente. Suas
conversas com Barbaças são capazes de provocar o riso espontâneo no mais sisudo dos
leitores. Merece registro a pureza da cena em que a menina sugere a Barbaças que Vieirinha
vai ter um bebê assim como a gata vai ter filhotes porque ambos estão com a barriga muito
grande:
(...) Alice chegara-se para junto dos três homens e parecia fascinada pelo Vieirinha.
Esteve tanto tempo a observá-lo, de boca pasmada, que o Barbaças foi espreitar o
homem de perto.
– Que vês tu ali, rapariga?
Ela corou, como se a tivessem surpreendido numa falta. Depois, aproximando a boca
de um ouvido do Barbaças, segredou:
– O Ti Vieirinha anda com a barriga gorda. Ele e a gata vão ter meninos.
Barbaças preparava-se para engolir o último naco de pão e engasgou-se tão
ruidosamente que acordou o Vieirinha. Loas acudiu-lhe aos murros nas costas.
– O pão foi-te para o goto, rapaz. Come mais devagar... (Tj, p. 172).
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Não fizemos aqui nenhuma distinção entre humor e cômico, porém os teóricos costumam considerar que o
cômico se refere a ocorrências mais lúdicas, engraçadas ou mesmo absurdas, em que o contraste entre o real e o
verossímil propicia ao leitor um alívio, uma descarga emocional que resulta em riso mais intenso. O cômico
evidencia-se, principalmente, nas situações que envolvem personagens. O humor estaria nas tiradas irônicas que
partem, sobretudo, da voz narrativa. O humor pode não ser percebido por todos os leitores, pois é mais subjetivo
e ideológico. Ressaltamos que as duas formas estão presentes em O trigo e o joio.
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Além de recorrer ao humor e a ironia, tornando a narrativa mais sedutora, Fernando
Namora também inova ao revelar um mundo que, até então, parecia interditado ao homem
comum, aos desclassificados, pois revela um mundo de desejos e de sonhos. Sem abandonar a
problemática social do campo, a narrativa mostra os anseios, as indagações do camponês
humilde que não abre mão de sonhar. Os pequenos heróis de O trigo e o joio têm
necessidades que ultrapassam a questão da fome e, por isso, também possuem grandeza, pois,
segundo Vergílio Ferreira (1969, p. 281), “não se altera o homem fundamental, quando
ascende em humanidade, esse que sofre, ri, sonha; mas altera-se a qualidade humana disso,
pelo que aí se sonha, ri ou sofre”. O romancista Fernando Namora “desanimaliza” o homem
comum, dando-lhe o requinte de sujeito desejante.
A necessidade do sonho permeia o caráter dos três heróis do romance e identifica-os
com a figura do sonhador. Para sustentar esse argumento, baseamo-nos nas teorias de Erich
Auerbach e Ian Watt, acerca do personagem criado por Miguel de Cervantes, Dom Quixote,
que se fixou na tradição literária como a imagem do idealismo, da aventura, do sonho. A luta
de Dom Quixote, para “manter sua idealização sob o fogo das implacáveis baterias da
realidade cotidiana” (WATT, 1997, p. 64), custou-lhe a exposição ao ridículo e a fama de
insensato ou destrambelhado, mas também lhe transformou num personagem apaixonante aos
olhos dos leitores, já que vêem nessa luta uma “grandeza idealista, (...) incondicional e
heróica” (AUERBACH, 2007, p. 307). É o procedimento quixotesco presente na composição
da figura do sonhador que pretendemos atar ao comportamento de Loas, Barbaças e Vieirinha.
Loas “precisava planear coisas novas e extraordinárias” (Tj, p. 232), mas seu grande
sonho era transformar sua pequena courela numa herdade. Este sonho não significava o desejo
do enriquecimento, pois o coureleiro era diferente de Cortes e Maldonado. Desejava, sim,
mais conforto para sua família, bem como queria reaver a parelha de mulas que lhe traria de
volta o respeito dos vizinhos. A relação de Loas com a terra era principalmente de amor, um
amor que misturava contemplação e erotismo. A propósito, Urbano Tavares Rodrigues (1981,
pp. 90-91) afirma que “se há texto na literatura portuguesa onde a mulher e a terra
(sexualizada) se identificam como objecto de desejo (...) esse texto é bem O trigo e o joio”. A
terra significava para Loas o corpo da mulher amada que ele deseja fecundar, tocar; porém,
mais do que um desejo erótico, sentia um desejo quase sublime de contemplar o espetáculo
solene que era, para ele, o momento do cultivo e da procriação do solo. A courela era para
Loas a sua Dulcinéia encantada, “a ideal e incomparável senhora do seu coração”
(AUERBACH, 2007, p. 303):
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(...) A campina, de tão lânguida, amolengava os músculos dos homens, e o Loas,
amando a terra, desejando-a como se deseja fecundar um corpo de mulher, era no
entanto impotente para traduzir tudo isso em acção. Erguia a enxada meia dúzia de
vezes e parava, embevecido, esperando que a gleba, sob esse breve estímulo, se
multiplicasse em alvoroço e fertilidade. Como se o esforço físico o impedisse de
assistir à solenidade dessa procriação. No seu apelo à terra havia o desejo fanático de
nela deixar uma cicatriz, mas uma cicatriz de amor e não de suor (Tj, p. 34).
O desejo de ver sua terra fecundada fazia de Loas um homem ousado. O que muitos
viam como insensatez era para ele uma possibilidade de ter sua herdade, de poder quebrar
com a condição submissa e arcaica dos outros lavradores. Por isso, não hesitou em hipotecar a
courela a fim de conseguir recursos que lhe permitissem comprar um motor para irrigar a sua
pequena lavoura. A “insensatez” de Loas pode ser relacionada com a imoderação, com a ideia
fixa que leva Dom Quixote a deixar sua casa em busca de fantasiosas aventuras. Segundo
Erich Auerbach (2007, p. 312), “é nas asas da loucura que a sabedoria alça voo, atravessa o
mundo e se enriquece nele”. O engenho comprado por Loas não funcionou e ainda lhe custou
a chacota dos outros lavradores, mas os fracassos não eram motivo para o desânimo, pois
havia grandeza em seu sonho, uma grandeza que faltava aos ricos latifundiários, que no fundo
invejavam seu desprendimento:
(...) Os grandes lavradores, que até aí tinham murchado as orelhas ao anúncio de um
pobretanas como o Loas lhes dar lições de lavoura, espremeram o fracasso
impiedosamente; meses depois, ainda mordiam a paciência do Loas:
– Eh, vizinho, tenho uma horta nas baixas da herdade; se tu fosses lá montar um
engenho...
O Loas ria. Talvez lhe apetecesse muito mais responder-lhes com certo gesto, mas, no
seu riso, havia uma divertida piedade pela bruteza daqueles ricaços, estupidificados
em egoísmo e rotina, riso que os enxovalharia muito mais do que um palavrão a
propósito (Tj, p. 36).
Essa passagem reafirma o argumento de que O trigo e o joio, assim como outros
romances neorealistas, denuncia a estrutura ultrapassada do sistema agrário português em
meados do século XX; uma estrutura mantida pelos interesses de latifundiários que se
firmavam no poder à custa da exploração do trabalhador assalariado e de uma política
arraigada aos valores de uma velha aristocracia feudal. A propósito, parece interessante
observar que o romance de Cervantes (como as novelas picarescas) testemunhou o declínio da
sociedade feudal e o surgimento da sociedade burguesa; conseqüentemente, assistiu à perda
de prestígio do cavaleiro feudal, substituído por homens pagos a soldo. A figura do pícaro e a
do cavaleiro de Cervantes colocavam em xeque as novelas de cavalaria que, embora
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deslocadas da realidade histórica em grande parte da Europa, permaneciam como forte
tradição ibérica. Segundo Felix Brun, as novelas de cavalaria espanholas do século XVI
tinham como funções: fazer acreditar em um mundo sem dinheiro, porque o fidalgo estava
falido e oferecer a este fidalgo desocupado a ilusão de uma importância que já não tinha:
(...) En efecto, la novela de caballería reúne paradójicamente estas dos funciones: crea
un mundo de sueño, un mundo, sin dinero, porque el hidalgo no lo tenía (Don Quijote
y el mesonero), y ofrece al hidalgo desocupado la ilusión de una función social que,
por su carácter abstracto, refleja al mismo tiempo esta desocupación (BRUN, 1969, p.
139).
Loas precisava de ajuda para lavrar a terra e Barbaças seria o “sócio” ideal. Não foi
difícil fazer com que ele ficasse na courela por algum tempo, mas o pequeno lavrador sabia
que o vadio logo se cansaria da vida longe da vila. Não bastava a garantia de boa comida e a
falsa promessa de sociedade para manter Barbaças preso ao trabalho com a terra, era preciso
envolvê-lo no sonho de fazer daquele pequeno pedaço de chão uma herdade. As investidas de
Loas para seduzir Barbaças foram muitas. Ele criou histórias tão fora da realidade, que
acabaram, elas mesmas, pondo em risco os seus objetivos. Valendo-se da fama de ter
“prestígio junto das forças sobrenaturais” (Tj, p. 45), tentou impressionar o “sócio” com a
história de que ele, Loas, fora chamado por sua mãe já morta para viver junto dela. Sendo
assim, como não poderia contrariar os mortos, precisava de que Barbaças ficasse na courela
para cuidar de Joana e Alice. À maneira bem quixotesca, o coureleiro prometeu inclusive
fazer um testamento em que passaria todos os seus bens para o companheiro em troca da
ajuda, tal qual, no romance de Cervantes, Dom Quixote promete uma ilha a Sancho “em
recompensa pelos seus serviços” (WATT, 1997, p. 73). Diferentemente de Sancho, Barbaças
não se empolgou com a proposta de Loas, que se viu obrigado a lançar mão de algo mais
persuasivo; porém acabou exagerando no irrealismo da nova história e, assim, despertou a
fúria de Barbaças que compreendeu as verdadeiras intenções do “sócio” de enredá-lo só para
que continuasse trabalhando em sua terra. Ao perceber que Barbaças havia se afeiçoado a um
pequeno ratinho aparecido na courela, Loas resolve dizer que aquele bichinho roedor poderia
ser a reencarnação do avô do vadio, que teria voltado por estar satisfeito com a sociedade
entre o neto e o antigo amigo coureleiro.
A falta de escrúpulo de Loas para manter Barbaças a seu lado, assim como a reação
zangada do vadio, mostra que o relacionamento dos dois, pelo menos no início, não era de
amizade incondicional e que predominavam os interesses de cada um (o comportamento mais
12
egoísta pertencia a Loas). Embora aqui o que de fato nos interesse seja atar o comportamento
dos personagens de O trigo e o joio ao procedimento idealista e sonhador de Quixote, não
podemos deixar de notar a semelhança entre a relação de Loas com Barbaças e a relação de
Dom Quixote com Sancho Pança. Para Erich Auerbach (2007, p. 314-315), os personagens do
romance espanhol também “não estão sempre e ininterruptamente unidos em amor e
fidelidade”; o que reflete o “caráter vacilante e mesclado das relações humanas”, relações
estas sujeitas aos interesses individuais. A cômica passagem sobre a história do ratinho e do
avô reencarnado de Barbaças demonstra também o quanto Loas era capaz de qualquer
invencionice para convencer as pessoas de se envolverem com o seu sonho, aproximando-se
ainda mais do comportamento quixotesco, pois “quando as pessoas não se transformam
voluntariamente, é Dom Quixote quem as transforma com sua doidice” (AUERBACH, 2007,
p. 314):
– Poças, Ti Loas! – protestou o Barbaças, revoltado com a impudica imaginação do
lavrador.
– Juro-te. Por isso eu te digo que esse [ratinho] que aí tens pode muito bem ser o teu
avô, que foi um homem de honra e meu amigo. Talvez ele esteja consolado com a
nossa sociedade e goste de nos ver juntos e queira viver na courela ao pé de nós. Se
eu tivesse a certeza disso, Barbaças, um raio me parta: nunca mais te deixaria sair
daqui. Com mortos já te disse que não se brinca.
Barbaças deixou descair as pálpebras. Percebera, enfim, as intenções do patife do
Loas.
– Eh, avô de uma figa! Isso tem um piadão!
(...)
– Fique sabendo que me vou embora. Estou farto de enxada e de mentiras! (Tj, p.
55).
A atitude de Loas também nos parece em conformidade com a observação de que o
idealismo de Dom Quixote leva-o a um comportamento “tão carente de sentido e tão
inconciliável com o mundo existente que a única coisa que resulta disso é uma cômica
confusão. Não só tem possibilidade de êxito, mas não encontra nenhum ponto de apoio na
realidade; atinge o vazio” (AUERBACH, 2007, p. 307). Ainda segundo o autor de Mimeses,
“a ideia fixa preserva Dom Quixote de sentir [-se] responsável pelo que apronta, de modo que
mesmo para sua consciência não há possibilidade de existir qualquer conflito trágico”
(AUERBACH, 2007, p. 309-310). O comentário é muito apropriado no tocante ao pai de
Alice, pois, ao mesmo tempo em que se mostrava um homem incapaz de guardar rancor –
haja vista ter perdoado Barbaças e Vieirinha por terem gastado o dinheiro da compra da burra
com orgia da feira –, sua determinação ao perseguir seu sonho resguardava-o de qualquer
sentimento de culpa. Assim aconteceu todas as vezes em que enganou Barbaças para mantê-lo
13
na courela, ou quando escondeu do sócio que a burra poderia ter lepra, deixando-o exposto a
um possível contágio. Neste caso específico, até se sentiu um pouco culpado, mas, como
“estoirava se não tivesse uma besta na courela” (Tj, p. 278), preferiu sacrificar Barbaças.
De todas as características de Loas que o ligam à figura do sonhador, a mais marcante
é sua rejeição a uma saída trágica. Diante de todos os infortúnios na tentativa de concretizar
seu sonho, o coureleiro permanece otimista, continua acreditando, como se encontrasse na
impossibilidade o alimento para manter o sonho vivo. A exemplo do que afirma Ian Watt
(1997, p. 64) sobre o personagem de Cervantes, também em Loas “qualquer derrota pode ser
racionalizada de modo a fortalecer sua ilusão original”. O trecho transcrito a seguir parecenos resumir a personalidade do pequeno lavrador. Mas, antes, é preciso registrar o lirismo que
envolve a comovente obstinação do pequeno lavrador e, também, o cuidado estético de
Fernando Namora ao lançar mão frequentemente de recursos linguísticos que “poetizam” sua
narrativa. Neste trecho, o romancista utiliza o recurso da personificação para opor a courela –
que aparece humanizada com um coração – à ferrugem, ao comerciante, às estradas e aos
motores, enfim, aos elementos opressores do quotidiano de Loas – que aparecem como
agentes de ações de valores semânticos destrutivos:
(...) A ferrugem viera corroer o engenho, o comerciante da cidade hipotecara-lhe o
coração da courela, os anos ruins, as estradas e os motores tinham vindo roubar-lhe a
parelha de mulas – mas o sonho continuava de pé. Ele se levantaria dos destroços, ele
iria recomeçar em cada dia (TJ, p. 47-48).
Como podemos notar, a oposição entre o que Loas deseja e a realidade que o cerca põe
em evidência as dificuldades enfrentadas por ele, mostrando assim a intenção narrativa de
problematizar o contexto sócio-econômico rural. Isso leva-nos também a recuperar as
palavras de Erich Auerbach (2007, p. 314) sobre o fato de que a loucura não tira o
personagem de Cervantes de sua existência quotidiana: “os personagens e os acontecimentos
da vida quotidiana estão continuamente em contraste com aquela loucura, e aparecem
salientadas com ainda maior rigor graças àquele contraste”.
Dom Quixote “supera o choque” com a realidade buscando “na sua própria ideia fixa
(...) uma saída que o livra tanto do desespero quanto da cura” (AUERBACH, 2007, p. 304).
Em Loas, a necessidade de buscar soluções ou desculpas que pudessem proteger o sonho do
fim iminente se torna mais frequente depois da revelação sobre a origem da burra. Apesar de
todo o pavor trazido pela palavra infeliz de Vieirinha, o lavrador não deixa de acreditar;
mesmo depois de longos períodos soterrado por pensamentos terríveis que quase o
14
enlouquecem e que deixam o sonho “impregnado de nojo” (Tj, p. 267), ainda assim ele
encontra a cada amanhecer uma luz que lhe renova as esperanças5: “Era durante as horas da
noite que Loas ampliava, até ao desespero, estes conflitos e pesadelos. Ao romper do dia, a
luz límpida da manhã aliviava a paisagem dos seus terrores, dos seus espectros, do seu nojo –
e as pessoas e as coisas surgiam purificadas” (Tj, p. 277).
O sonho da terra permanece vivo em Loas de forma comovente até o fim da narrativa,
pois até o último momento ele tenta de todas as maneiras evitar o desfecho trágico,
precipitado pelo ato extremo de Joana que faz escorrer o sonho junto com o sangue da burra:
– Joana! Joana não é preciso matar a burra!
(...)
– Não faças essa cara de parva! Já não é preciso, digo-te eu. O Vieirinha sabe que a
morféia não se pega às burras, mas só agora é que eu o percebi. Alice poderá brincar
com a burra todas as vezes que lhe apetecer!
(...)
– Já não é preciso, Joana. Tu vais ver o que faremos desta courela. É agora que
havemos de plantar a tua vinha, os pinheiros, tudo o que quiseres (Tj, p. 330-331).
Para Cleonice Berardinelli (1982, p. 342), “só à Joana (...) caberia, na lógica da
narrativa, a execução efectiva da burra”, pois, diferentemente dos outros personagens, não
tinha identificação com a charneca, com o seu clima abafado, pois viera do Norte e sentia
falta do clima verde e úmido de sua região. Acostumou-se a viver à sombra do marido, a
sufocar os próprios desejos em favor dos desejos dele; mas, aos poucos, Joana foi emergindo
da condição submissa e tornando-se atuante. Foi ela quem teve a iniciativa de entregar para
Barbaças a missão de comprar a burra, assim como foi ela quem obteve as primeiras
informações sobre o animal que seria depois comprado da “gente das Malhadas” (Tj, p. 194).
O gesto da mulher de Loas, ao matar a burra, não refletia apenas a vontade cega de livrar a
filha do perigo da lepra. Havia neste gesto uma insubordinação que refletia todo seu cansaço
da instabilidade e dos delírios do marido. Mais ainda, a morte da burra significava para Joana,
mesmo que não tivesse consciência disto, a sua chance de voltar ao Norte, a sua chance de
tentar impor o seu sonho ao sonho do marido:
Ela ouviu falar em pinheiros e voltou-se, sonâmbula, para a colina. Mesmo daquela
distância, ela sentia as agulhas dos pinheiros penteando o vento. Loas seguiu-lhe o
olhar e as ideias.
5
Segundo Roxana Eminescu (1983, p. 27), no artigo “O tempo disfarçado: a estrutura temporal no romance de
Fernando Namora”, é frequente na obra do autor de O trigo e o joio a oposição entre dia e noite, “a alvorada,
como instante da revelação”.
15
– Se um dia a seara ardesse e o monte ardesse também, Joana, a gente fugia para ali.
Mas nada disso acontece. Hei de ter tanta água no engenho que a courela será uma
lezíria.
Mas, num ímpeto, ela puxou-lhe a espingarda das mãos. E, antes que ele pudesse
tomar consciência do que se passava, um estampido vermelho reboou na serenidade
da manhã e a burra oscilou sobre o piso orvalhado (...) (Tj, p. 331).
Barbaças começa essa história como um grande vadio, “de cérebro deliciosamente
vazio” (Tj, p. 27), como uma criatura que não poderia desejar nada além de uns pedaços de
chouriço, umas galinhas ou leitões surrupiados de algum vizinho mais distraído e uns copos
de vinho. Ele só começa a conhecer o sentido de palavras como afeto e lealdade quando se
une à família de Loas. É através do pequeno coureleiro que a palavra sonho passa a fazer parte
da existência miserável do vadio: “Barbaças estava longe da complexidade desses
sentimentos, mas, naquele instante, sentia-se conduzido a um mundo sedutor e ignorado” (Tj,
p. 34). O convívio com um homem que lhe revela ser “possível dar gosto e grandeza a uma
tarefa quando ela se funde numa razão para a vida” (Tj, p. 42) desperta algo novo em
Barbaças. Ele começa a entender que pode fazer parte de um sonho, que pode contribuir de
fato para a sua concretização.
No entanto, o sonho da terra ainda não era dele, não compreendia muito bem o que
significava a aquisição de uma burra para Loas. Isto só acontece ao descobrir que até um pária
como ele poderia ter o próprio sonho, poderia descobrir sensações e desejos que
ultrapassavam em muito a simples vontade de comer alguns nacos de presunto. A revelação
de que também teria o direito de desfrutar outros prazeres veio do encontro com Rosa, a
rapariga da barraca de tiro. Seu encantamento por Rosa e o desejo que ela lhe despertara – o
desejo num homem virgem, ou num homem que possivelmente só conhecia a sofreguidão do
sexo e não o seu prazer – fizeram-no render-se a Vieirinha e concordar em gastar o dinheiro
de Loas: “Barbaças fechou os olhos, como quem se prepara para um mergulho suicida, e
entregou-lhe a carteira” (Tj, p. 104).
O grande momento de Barbaças com a mulher da flor vermelha foi interrompido
violentamente pela guarda justo quando “ia participar de todos os sabores da vida” (Tj, p.
124), talvez porque para um maltês como ele esse momento ainda fosse um excesso para sua
vida de privações. A própria paisagem, um bosque de eucaliptos, parecia anunciar que aquele
seria um mundo estranho, proibido: “Barbaças, homem de paisagens livres e nuas, sentia-se
ali como perante um mundo interdito (...)” (Tj, p. 104). Mas nem a violência desta interdição
ou a traição ao companheiro Loas eram capazes de tirar daquele homem a extraordinária
sensação de saber o que é ter um desejo só seu. Esta sensação libertava-o “da crosta de
16
primarismo biológico” (Tj, p. 124) a que estivera preso até então, levando-o a descobrir uma
sexualidade erótica, algo que estava para muito além da “mera sexualidade animal” (PAZ,
1995, p. 12). Na sua condição de pária, “reconhecia que valia a pena o remorso de uma vida
só para que os seus sentidos estivessem perto de alguma coisa que não era preciso ser violada
para encher um tremendo vazio da sua existência” (Tj, p. 109). Este sentimento de Barbaças
em relação à rapariga estava muito próximo do misto de contemplação e desejo erótico que
Loas nutria pela terra. O vadio agora já podia compreender o sonho do lavrador e a partir de
então sua maior aspiração seria contribuir para sua realização. A compra da burra passou a ser
sua ideia fixa não só por saber o que isso significava para Loas, mas por ser também um
sonho dele próprio, Barbaças: “(...) já era tão interessado na burra como o Loas e a Alice, pois
a burra ia ligá-lo a um mundo que ele levara tempo a descobrir” (Tj, p. 209). Já conhecemos
o caminho percorrido por Barbaças até a realização de seu objetivo e, por isso, é possível
relacioná-lo ao comentário de Ian Watt (1997, p. 72) sobre Dom Quixote: “o protagonista
segue um curso de ação, conduzindo na cabeça a mais simples das ideias, que antes de ser
efetivada poderá, no entanto, levá-lo a um número infinito de aventuras”.
Vieirinha não tinha o sentimento de Loas e de Barbaças pela terra, embora nutrisse
carinho pelo meloal cultivado na choupana herdada de um tio-avô cônego: “Vieirinha
voltava-se muitas vezes para trás, apreciando o seu periódico refúgio de eremita” (Tj, p. 308).
Era um falastrão e não se melindrava por passar uma alma ingênua para trás sempre que
vislumbrava a chance de poder saciar sua “desesperada libertinagem” (Tj, p. 121); mas, no
fundo, vivia a opressão de dias solitários, sonhava “com mundos que os outros escarneciam”
(TJ, p. 123). Neste sentido, Vieirinha era muito parecido com Loas, pois também não se
adaptava à realidade mesquinha e rotineira daqueles que não conseguiam sair dos limites da
vila nem mesmo através da imaginação. A fama de devasso escondia um drama que o
consumia, não havia sequer uma mulher na vila que quisesse ser sua companheira:
– Vejo bem que tu gostas de mulheres, compadre. Um raio me parta se tu não
gostarias mais de ter uma mulher do que uma boa herdade com parelhas, bois, porcos
e tudo! Porque não te casas?
– Casar, eu?! Toda a gente fala em casar. “Casa-te, Vieirinha; Casa-te, Vieirinha!”
Mas eu já disse que não queria casar? E onde arranjo eu a mulher?
Loas sentiu-se impressionado com a lógica terrível dessa pergunta. O compadre
Vieirinha tinha um drama a consumi-lo e entristecia reconhecer que não era possível
encontrar-lhe imediatamente uma solução. (Tj, p. 166-167)
O drama de Vieirinha era o mesmo drama de todo libertino, porque este “necessita
sempre do outro e nisso consiste sua condenação: depende de seu objeto e é escravo de sua
17
vítima” (PAZ, 1995, p. 24-25). O devasso não possuía o seu objeto de desejo a tempo e à
hora, precisava esperar pelas prostitutas, que só vinham com a feira uma vez por ano. Esta
longa temporada longe de uma companhia feminina transformava o desejo de Vieirinha em
uma obsessão, justificando qualquer enleio para satisfazê-lo. Assim como Loas, ele possuía
uma ideia fixa que o preservava de qualquer sentimento de culpa, de qualquer espécie de
remorso por ter prejudicado ou burlado alguém (é o mundo sem pecados de que fala Antonio
Candido). A falta de conflitos em Vieirinha fica clara nesta passagem, em que tenta
impressionar o grupo formado pelos homens mais importantes da vila; uma plateia por sinal
que não lhe deixava muito à vontade, pois falava com mais imponência para os homens
simples:
– Ele passou-me o dinheiro para se comprar uma burra, é certo. E se o meu compadre
Loas precisa da burra, mais cedo ou mais tarde terá a burra em casa. O Vieirinha
nunca falta à sua palavra. Porém, naquele momento, o dinheiro pertencia-me, porque
era eu que precisava dele, mais do qualquer outra pessoa. O Loas podia esperar. Mas
ele terá o dinheiro da burra porque, agora, é ele a precisar desse dinheiro mais do que
qualquer outra pessoa do mundo. (Tj, p. 138).
Vieirinha não estava diretamente envolvido com a construção do sonho de Loas, mas
acaba, ainda que involuntariamente, contribuindo para a não realização deste sonho. A
revelação do personagem sobre a procedência da burra foi necessária para o desenrolar da
trama e para seu desfecho trágico. O tempo ficcional coincide com o tempo referencialmente
histórico e aquele ainda não era o tempo da vitória do sonho da terra. Naquele momento, não
era possível a um pequeno lavrador, por mais determinação pessoal que tivesse, superar a
opressão de um contexto econômico-social que favorecia os latifundiários e aumentava a
injustiça e a desigualdade no campo. Havia uma grande “distância entre os desejos do
indivíduo (...) e a realidade” (WATT, 1997, p. 76).
Para uma literatura que se propunha a testemunhar os problemas sociais, seria estética
e ideologicamente contraditória a concretização do sonho no âmbito do universo ficcional.
Por mais que Fernando Namora tenha defendido a escrita ficcional como o ato de reinventar,
sua narrativa não poderia negar ou ignorar os litígios do homem português com o seu tempo.
Talvez por isso a impossibilidade de um final feliz para a história do pequeno lavrador já se
anunciasse na epígrafe do romance: “O mundo da literatura é, porém, um triste mundo”.
Contudo, se o final de O trigo e o joio não é feliz, também não instaura a desesperança. Fica a
sensação de que a história não acaba com a morte da burra; o final parece não concluso, à
espera de um recomeço, não apenas pela necessidade de manter a verossimilhança, mas
18
principalmente porque a trajetória dos personagens é marcada pela persistência, pela
capacidade de acreditar na possibilidade de vencer a luta contra um quotidiano que insiste em
lhes soterrar os desejos.
Na luta para driblar os desafios do quotidiano opressor, Loas Barbaças e Vieirinha
tendem a percorrer caminhos fora da ordem e do lícito. A aceitação de uma existência em
desvio aproxima estes pequenos heróis das figuras do pícaro, do malandro e do sonhador,
todos saídos de uma tradição de personagens que lutaram contra realidades hostis. Não é fácil
divisar as características de cada uma destas formas de heroicidade em desvio porque há entre
elas uma forte identificação. Estão unidas por uma promessa de libertação, de fuga de um
espaço social que lhes oprime. A coragem de colocarem-se para fora da norma, a fim de
realizarem seus sonhos, faz com que sejam figuras extremamente sedutoras e vistas com
simpatia pelos leitores. Sentimo-nos seduzidos pelos heróis marginais porque eles realizam no
espaço da ficção o que gostaríamos de realizar no espaço real. A submissão às normas sociais
afasta-nos dos sonhos que acalentamos e acabamos de alguma forma compensando nossas
frustrações com as vitórias desses heróis, como explica Ian Watt (1997, p. 84):
Identificamo-nos com Dom Quixote, esperamos que ele triunfe sobre a realidade, e
nos sentimos ao mesmo tempo aliviados e invejosos quando ele consegue, uma e
várias outras vezes, fazer com que todos joguem o seu jogo, graças unicamente à sua
obstinada recusa de jogar qualquer outro. Ao mesmo tempo, gratificamo-nos com as
zombarias do narrador ao herói, porque elas nos ajudam a reconhecer o quanto é fraca
a base das nossas próprias e vacilantes tentativas de viver a vida dos nossos sonhos.
Entendemos que a narrativa de Fernando Namora demonstra uma intencionalidade,
que foi a mesma de Cervantes, de responder “à necessidade de mostrar que a associação de
valores há muito abandonados” – a grandeza de espírito, a alegria, o afeto, a esperança, a
humanidade – “com a união de seres humanos movidos por um só objetivo pode sobreviver
até mesmo em face das contradições insolúveis e em muito à brutalidade do mundo que os
rodeia” (WATT, 1997, p. 99). Os pequenos heróis de O trigo e o joio também são sedutores
porque, assim como as figuras do pícaro, do malandro e do sonhador, apostam no jogo que
lhes garanta a concretização de seus sonhos e, em nome deles, colocam seus desejos acima de
qualquer ordem. A luta é comovente porque é contrária a situações sociais injustas e
desumanas e porque não duvida de que a liberdade é a maior de todas as riquezas. Loas,
Barbaças e Vieirinha fazem-nos acreditar que ao menos na ficção esta luta pode ser vencida
pelo pequeno.
19
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WATT, Ian. Mitos do individualismo moderno: Fausto, Dom Quixote, Dom Juan, Robinson
Crusoe. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
20
The wheat and the weed: roguery, dream, survival
Ana Carla Pacheco Lourenço Ferri
Mestra em Literatura Portuguesa / UFRJ
Abstract: The aim of this assignment is a critical reading of Fernando Namora’s novel,
published in 1954, The Wheat and the Weed. Considering that the literary word has the unique
capacity to escape from the authoritarism of the ordinary use of the language, this reading
finds its own way by giving privilege to elements that prove there is an esthetic appeal on
Fernando Namora’s novel that overcomes to the ideological speech mainly present in the
traditional standard of the Portuguese neo-realistic novel. Therefore, the study cuts the shape
of heroism diversion represented by the pictures of a scoundrel and of a dreamer, suggesting
that the little heroes constructed by the narrative The Wheat and the Weed – for also being
survivors of a hostility and oppressive reality – may be seen as allegories of these cunning
pictures.
Key-words: Fernando Namora. Roguery. Dreamer.
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O TRIGO E O JOIO: MALANDRAGEM, SONHO