O TRIGO E O JOIO: MALANDRAGEM, SONHO, SOBREVIVÊNCIA Ana Carla Pacheco Lourenço Ferri1 Mestra em Literatura Portuguesa / UFRJ RESUMO: O objetivo deste trabalho é a leitura crítica do romance de Fernando Namora, publicado em 1954, O trigo e o joio. Partindo da premissa de que a palavra literária tem a singular capacidade de escapar do autoritarismo do uso quotidiano da linguagem, a leitura orienta-se por privilegiar elementos que comprovem haver no romance de Fernando Namora um apelo estético que se sobrepõe ao discurso ideológico predominante no modelo tradicional do romance neo-realista português. Para tanto, o estudo recorta a forma de heroicidade em desvio representada pelas figuras do malandro e do sonhador, sugerindo que os pequenos heróis construídos pela narrativa O trigo e o joio – por também serem sobreviventes de uma realidade hostil e opressora – podem ser vistos como alegorias dessas figuras marginais. PALAVRAS-CHAVE: Fernando Namora. Malandragem. Sonho. Há quem diga que todas as noites são de sonhos. Mas há também quem garanta que nem todas, só as de verão. No fundo, isso não tem importância. O que interessa mesmo não é a noite em si, são os sonhos. Sonhos que o homem sonha sempre, em todos os lugares, em todas as épocas do ano, dormindo ou acordado. William Shakespeare O trigo e o joio, publicado em 1954, fecha o ciclo de narrativas de Fernando Namora ambientadas no campo e é considerado por muitos críticos como o mais importante romance desta fase, tendo sido traduzido para o inglês, francês e alemão, e adaptado para o cinema por Manuel Guimarães, em 1965. Na opinião de Cleonice Berardinelli, O trigo e o joio “é um grande livro” (1982, p. 317); Urbano Tavares Rodrigues (1981, p. 89) considera-o um “excepcional romance, metáfora da tenacidade e da esperança que já de há muito conseguiu ressonância universal”. Este livro, assim como os outros do período rural, é inspirado nas experiências vividas ou presenciadas pelo escritor na condição de médico de aldeia; no entanto apresenta algumas inovações e consolida elementos que, segundo a crítica, começaram a ser delineados por Namora no romance anterior, A noite e a madrugada (1950). 1 Professora da rede pública do Estado do Rio de Janeiro; graduada em Letras pela Universidade Iguaçu (UNIG); Mestra em Literatura Portuguesa pela Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Este artigo é produto da Dissertação de Mestrado Uma história de pequenos heróis: uma leitura de O trigo e o joio, de Fernando Namora, defendida em agosto de 2008. 2 Para Óscar Lopes, os dois romances “parecem corresponder a uma fase nova, caracterizada pelo elemento picaresco, ainda não pronunciadamente definido nos anteriores” (apud SACRAMENTO, 1967, p. 112). A opinião do crítico reafirma o que já declarava o próprio Namora ao jornal Ler, de Lisboa, em 1953: “Tenho procurado, bem ou mal, encaminhar-me para a novela pícara peninsular, e o meu romance A noite e a madrugada é um passo nesse caminho, como o será o novo livro O trigo e o joio, que estou a terminar” (apud DAVIDPEYRE, 1977, p. 48). Óscar Lopes observa também que “[se] capta nestes romances temperamento, humor, atmosfera física, uma elegância nova sem esforço aparente que representam um progresso da arte do escritor” (apud SACRAMENTO, 1967, p 113). Fernando Namora defendeu a liberdade de criação literária, uma liberdade que não deveria ser limitada pelas convicções ideológicas do artista. Esteve entre os que sabiam o quanto é improvável ao escritor manter-se preso por muito tempo ao estilo desenvolvido nos primeiros livros, pois existem “mudanças, as quais correspondem a uma evolução própria” (NAMORA, apud TAVARES, 1994, p.6), ou seja, não se pode negar o alargamento de perspectivas, o inevitável processo de amadurecimento e o consequente refinamento estético vivido pelo autor ao longo de sua carreira. O trigo e o joio problematiza a realidade social ao tratar de questões que afetam o trabalhador rural em sua eterna luta pela sobrevivência diária dentro de um sistema econômico opressor. Porém, os novos elementos observados por Óscar Lopes, além da linguagem metafórica e o deslocamento de perspectiva – que não é a do trabalhador assalariado, mas a “dum ínfimo proprietário de pequena courela” (SACRAMENTO, 1967, p. 115), tão oprimido quanto aquele –, mostram que este romance não só representou o aprimoramento da escrita de seu autor como também trouxe um arejamento a certo modelo construído pelos romances mais marcadamente “ideológicos” da primeira fase do movimento neorealista. A longevidade de seu valor estético comprova que uma mensagem é “tanto mais válida quanto menos agressiva” (BERARDINELLI, 1982, p. 354) ideologicamente. Se nos fosse possível resumir as intenções estéticas de Fernando Namora, usando em eco as próprias palavras do escritor, talvez “a procura de uma íntima coerência (o rasgar da máscara), o apelo à dignificação da existência, o apelo a tudo o que possa resgatar os humilhados e os atormentados, a descida aos abismos da solitude” (NAMORA, 1981, p. 31) pudessem servir de resumo competente. Ao procurar resgatar e dignificar as existências mais 3 humildes e marginalizadas, Fernando Namora constrói pequenos heróis que ganham espaço em suas narrativas, sendo elevados à privilegiada categoria de protagonistas. O escritor, assim como muitos outros escritores de sua época, joga luz sobre a existência de homens e mulheres que não costumam aparecer nos registros da história oficial; homens e mulheres que lutam heroicamente contra um quotidiano opressor. Pode-se dizer que a literatura dos anos 40 / 50 já anunciava o que, tempos depois, seria difundido pela corrente da Nova História como uma corrente que “reclama os caminhos do encontro com o poético” (SILVA, 1989, p. 25), pois aposta no poder da ficção de preencher as lacunas, os silêncios do passado deixados pela História. Boa parte da literatura portuguesa contemporânea mantém esse diálogo com a História, iniciado pelos escritores neorealistas, “fazendo emergir, através da palavra poética, uma história ‘calada’ pela força alienante do poder repressor” (SILVA, 1989, p. 28). O trigo e o joio conta as aventuras de um pequeno lavrador, Loas, que luta para sobreviver com sua família, através de seu pedaço de chão, sonhando, sobretudo, em vê-lo cultivado. Loas é mais um excluído que sofre a opressão de um sistema agrícola favorável somente aos grandes proprietários rurais. Cortando o caminho dessa família, aparece o vagabundo Barbaças, um outro excluído, que é seduzido pelo obstinado e esperto Loas a ajudá-lo na construção do sonho da terra. Do encontro de homens tão diferentes, nasce um novo núcleo familiar ligado pelo desejo de aquisição de uma burra que pudesse agilizar o preparo da terra para a sementeira do trigo. No novo núcleo familiar, o trabalho não é compreendido como forma de opressão, mas sim de libertação, pois significa mais do que algo necessário para a subsistência ou enriquecimento material, o trabalho é, acima de tudo, um verdadeiro legado de amor à terra: "Um homem nascia com a herança de uma terra e cumpria-lhe deixar o legado, íntegro, aos que viessem depois. O legado não era a terra, choiso ou herdade, mas a capacidade de amor e tenacidade que seria capaz de lhe oferecer" (Tj, p. 47). A realização do sonho da terra cultivada depende da aquisição de uma burra, que passa a ser uma aspiração coletiva que já não pode mais ser adiada. A burra é um sonho não apenas de Loas, mas é também de Joana, Alice e agora de Barbaças que, pela primeira vez, desfruta do convívio familiar, experimentando de perto o que é o afeto. Porém, o fadista Vieirinha – sujeito falastrão e capaz 4 de muitas artimanhas para gozar de boa vida, regrada à bebida e a mulheres – frustrará os desejos da inusitada família: primeiro convence Barbaças a gastar com vinho e raparigas o dinheiro reservado para a compra da burra; depois, num acaso infeliz, provoca a morte do animal ao condená-lo levianamente a uma doença de que não poderia estar contaminado. Gostaríamos de defender, neste artigo, a ideia de que Barbaças, Loas e Vieirinha acabam por constituir uma tríade de pequenos heróis que encarnam figuras emblemáticas da literatura ocidental: o pícaro, o sonhador e o malandro. Estas figuras seriam como antepassados dos personagens de Fernando Namora, que habilmente convoca a tradição literária para contar a história de homens comuns, mostrando ser possível construir uma heroicidade em desvio através do poder de um sonho capaz de unir um solitário vagabundo, um delirante irremediável e um reles boa-vida.2 A ação do pícaro é impulsionada pela miséria, sua luta é em busca da própria sobrevivência. A figura do malandro – saída do folclore brasileiro e que ganhou feições literárias a partir do século XIX com o romance de Manuel Antônio de Almeida, Memórias de um Sargento de Milícias (1854) – distancia-se do herói da novela picaresca porque suas trapaças são praticadas sem um objetivo concreto. Este outro exemplo de heroicidade marginal “pratica a astúcia pela astúcia (mesmo quando ela tem por finalidade safá-lo de uma enrascada)” (CANDIDO, 1993, p. 26). O comentário3 do crítico refere-se ao herói do romance brasileiro, mas poderia referir-se aos heróis de O trigo e o joio. Loas, Barbaças e Vieirinha aproximam-se do pícaro porque lutam com os meios possíveis para sobreviver em um quotidiano opressor, porém também podemos notar semelhanças com o malandro nesses personagens, pois muitas vezes suas trapaças são fruto apenas do simples desejo do jogo, da sedução em mostrarem-se mais espertos do que os outros, sinais do apego à boa vida que rejeita qualquer forma de trabalho. O personagem Vieirinha, sujeito “vermelhaço e sorridente, maneirinho, barrigudo” (Tj, p. 78), é visto por alguns críticos como uma espécie de pícaro mau e irrecuperável; no entanto, entendemos que ele está mais para um malandro sem emenda. O fadista sempre soube aproveitar-se da intimidade e do manejo com as palavras para enredar os interlocutores mais ingênuos, pois “trazia em si, nos gestos e nos discursos, o cheiro do mundo, sugestões 2 Optamos, aqui, por observar apenas as características das figuras do malandro e do sonhador nos personagens do romance de Fernando Namora. Por ser o grande ancestral dos heróis marginais recriados pela forma romanesca, o pícaro saído da novela espanhola do século XVI exige um espaço de reflexão que não cabe neste artigo. 3 O comentário de Antonio Candido está inserto em seu ensaio “Dialética da Malandragem” (1993), no qual analisa o romance de Manuel Antônio de Almeida, Memórias de Um Sargento de Milícias. 5 perigosas e perturbáveis” (TJ, p 81), como a que levou Barbaças a lhe entregar todo o dinheiro de Loas. Vieirinha de fato ludibriou Barbaças em nome da necessidade de saciar o desejo de estar com uma mulher. Mas não se pode desprezar que sua atitude também demonstra certo prazer de ver o outro envolvido por suas manhas, mostrando assim suas habilidades diante de uma platéia ingênua. É este prazer que justifica, por exemplo, o fato de humilhar gratuitamente Barbaças diante de Rosa, a rapariga da barraca de tiro, mostrando-se mais habilidoso no manejo com a espingarda: (...) De testa afogueada, experimentou ainda mais duas vezes, enquanto o olhar volúvel da rapariga flutuava no balcão e o Vieirinha, bamboleando o ventre, esperava a sua vez de pegar na espingarda para dar ao Barbaças uma lição de pontaria. Toda a gente na vila sabia que ele matara dezenas de leões, de onças, de elefantes, e iria agora certificar-se se ele era homem para espatifar de olhos fechados toda a cacada da barraca. – Você parece uma velha a tremer com o gatilho! – disse a rapariga, ao receber a arma das mãos do Barbaças (...) (TJ, p. 85). Em outra passagem, depois de já ter consumido todo o dinheiro de Loas, Vieirinha usa de um discurso cínico com o apavorado Barbaças ao dizer que este poderia escolher entre passar algumas horas com Rosa ou comprar uma burra: – Então, meu velho!? – saudou o [Vieirinha], dando o braço à rapariga e à companheira. – Hem?! Que tal a surpresa? ’tás com uma cara de quem tem as tripas num novelo! – E a burra?... – É assim que recebes estas senhoras, ingrato! Duas senhoras excelentemente bem dispostas com o velho Vieira, simpáticas, fagueirinhas, duas senhoras que merecem dúzias de leques de Espanha, e tu não tens mais nada para lhes dizer do que esse negócio da burra! /.../ – Vosmecê bem sabe que o seu compadre espera por mim. Tenho de lhe levar a burra ou o dinheiro – disse o Barbaças, numa voz que pretendia ser ríspida e resultava lamentosa. – É questão de escolheres. ’tás excelentemente fornecido de dinheiro para voltares à feira e comprar o que te apetecer (TJ, p. 106-107). Embora considerasse Vieirinha “homem para nos saltar ao caminho e armar-nos um laço” (Tj, pp. 196-197), Loas não ficava muito atrás dele em matéria de malandragem. Na maior parte da narrativa, o coureleiro usa do poder de persuasão de suas palavras para buscar meios de realizar seus objetivos: “descosia a língua, que era talvez uma maneira de se aproximar das coisas profundamente desejadas” (Tj, p. 28). Algumas vezes, tem atitudes absolutamente egoístas a fim de não colocar em risco o desejo de transformar seu pequeno pedaço de chão numa herdade, utilizando-se de uma esperteza malandra. Certa vez, manteve 6 Barbaças com uma aparência repugnante – cabeludo e sujo – com o propósito de que o vadio fosse rejeitado pelos moradores da vila e não tivesse mais vontade de deixar a courela, pois não queria perder a força de trabalho de seu pretenso “sócio”. O coureleiro apostava, assim, na indigência da figura de Barbaças para que este permanecesse no lugar da exclusão social. Mas Loas também gostava de usar de sua esperteza apenas para manter certo prestígio junto à família – como na passagem em que se reúnem para decidir sobre a melhor época para a compra da burra: “Loas recorreu à tabuada dos dedos, olhando para o tecto, no seu jeito de inspirado (...)” (Tj, p. 62). O pai de Alice era um malandro vaidoso, valia-se do que aprendera nos livros para alimentar a fama de adivinho do futuro. Neste sentido, além da atração pelo jogo e pela vaidade, percebe-se que Loas se utiliza de uma suposta sabedoria para tirar vantagem da realidade de ignorância que o cerca: (...) E o Loas sorria, vaidoso, gozando a ignorância dos parceiros. Ele não precisava de calendário para consultar o futuro. Marés, dias da semana, luas, vistos à distância de um século (se lhe desse na gana ir tão longe nas previsões), eram com ele. /.../ esses cálculos nada tinham de fantásticos: aprendera-os em livros, alfarrábios, enciclopédias de alquimias e mau olhado. Essa cultura de bruxedos servia-lhe para que algumas velhas o temessem e para ocasiões como esta, em que era preciso aliciar um qualquer para umas lérias (Tj, p. 29). Dos três pequenos heróis de O trigo e o joio, Barbaças era o menos astuto; no entanto, nos tempos de vadiagem na vila, não perdia a chance de pilhar “uma galinha ingênua” (Tj, p. 27) só para se divertir, para afastar a “azeda melancolia” (Tj, p. 27) dos dias. Com D. Quitéria mantinha um cômico jogo de interesses em que não se pode negar o seu lado patife, pois assim como a rica senhora aproveitava-se dele para mostrar à vila sua “caridosíssima” alma, tentando salvá-lo da vida de pecado, ele muitas vezes fora à sua casa só para conseguir algum alimento que lhe garantisse mais tempo entregue à preguiça e ao ócio. A malandragem também está inscrita na declarada falta de fé de Barbaças, aqui usada como forma de chocar e seduzir o “trabalho santo” da beata: – Deves uma promessa, Luís – dizia-lhe D. Quitéria, de tempos a tempos. – Que é lá isso?! – respondia ele, como quem arreda um insulto. – À Senhora de Fátima, que te salvou, meu renegado! Devias lá ir a pé, durante dois dias e três noites, agradecer-lhe a divina graça. – Graça tem vomecê com essas idéias. D. Quitéria benzia-se com pavor, espreitando o céu insondável, donde viria um dardo de fogo emudecer o sacrílego. – Tenho de rezar por ti, filho do pecado! – Ora, desse-me vomecê presuntos, em vez de rezas!... (Tj, p. 26). 7 Uma prova de que o comportamento de Barbaças com D. Quitéria não era consequência apenas de sua existência pícara é o comentário do narrador sobre a reação do ex-vadio ao conseguir arrancar daquela senhora que misturava “rezas com insultos às criadas” (Tj, p. 66) a quantia necessária para concretizar a compra da burra tão esperada por Loas e sua família: “Sentia-se perplexo. Noutros tempos, este vitorioso jogo com a velha ter-lhe-ia dado uma incomparável satisfação e iria dali, vaidoso, propalá-lo aos camaradas” (Tj, p. 217). É preciso dizer que a malandragem de Barbaças, no caso do dinheiro tirado da beata para a aquisição do animal de Loas, foi usada para a causa nobre do sonho coletivo e não pelo gosto da simples trapaça. A nosso ver, a naturalidade com que os personagens de O trigo e o joio transitam pelo mundo da ordem e pelo da desordem (escolhendo, muitas vezes, de maneira consciente o lugar da desordem, só pelo simples prazer da burla) cria “um universo que parece liberto do peso do erro e do pecado” (CANDIDO, 1993, p. 47). O leitor, também influenciado por um narrador bastante tolerante, não condena o comportamento dos personagens, ao contrário, chega a ver suas trapaças com certa simpatia. Talvez porque – a exemplo do que diz Antonio Candido (1993, p. 47) sobre os personagens do romance Memórias de um Sargento de Milícias – Loas, Barbaças e Vieirinha “fazem coisas que poderiam ser qualificadas como reprováveis, mas fazem também outras dignas de louvor, que as compensam. E como todos têm defeitos, ninguém merece censura”. O que também chama atenção, nas passagens em que a malandragem dos personagens se faz presente, é a atmosfera de humor, reeditando a característica cômica das narrativas de origem popular. O espírito aventureiro e lúdico que acompanha os personagens do romance, de alguma maneira, contribui para que eles suportem as pressões do quotidiano. Segundo Eduardo Diatay B. de Menezes (1974, p. 13-14), o jogo e o cômico são recursos encontrados pelo ser humano para atenuar ou mesmo rejeitar a realidade que lhe oprime: (...) O cômico, como o jogo, é uma confrontação com os fatos em favor da fantasia, é uma maneira de negar o real pela ficção, e um meio de livrar-se de suas pressões e constrangimentos. O jogo, como o cômico, está associado à alegria, surpresa, arrebatamento, farsa, burla, divertimento, irrealidade... É possível dizer que o jogo, a burla e o humor presentes em O trigo e o joio rompem com certa tradição de severidade em torno das obras de cunho ortodoxamente neorealista; além disso, conferem ao romance o mérito de resgatar uma das funções do texto literário, que 8 é a do entretenimento através do trabalho estético e a de despertar no leitor o prazer da leitura. Função um tanto abafada numa época em que os escritores, imbuídos do desejo de serem porta-vozes daqueles que viviam uma realidade infeliz, pareciam recusar a alegria e a felicidade. O depoimento de Mário Dionísio, no prefácio do livro de Manuel da Fonseca, Poemas Completos, exprime bem o espírito predominante entre os escritores na fase inicial do movimento neo-realista: (...) um coração pulsando por todos os humilhados e ofendidos (líamos muito Dostoievski, apesar do que terá parecido), uma obstinada recusa a ser feliz num mundo agressivamente infeliz, uma ânsia de dádiva total e o grande sonho de criar uma literatura nova, radicada na convicção de que, na luta imensa pela libertação do homem, ela teria um papel inestimável a desempenhar contra o egoísmo, os interesses mesquinhos, a conivência, a indiferença perante o crime, a glorificação do mundo podre (...) (DIONÍSIO, apud TORRES, 1977, p. 81-82) A atmosfera de humor4 presente em O trigo e o joio leva-nos a abrir um parêntese para salientar um aspecto da narrativa de Fernando Namora muito pouco comum no universo de obras neo-realistas: a presença de uma criança que vive uma infância feliz. A menina Alice tem uma estrutura familiar que lhe permite brincar, sonhar, enfim, ser inocente. Suas conversas com Barbaças são capazes de provocar o riso espontâneo no mais sisudo dos leitores. Merece registro a pureza da cena em que a menina sugere a Barbaças que Vieirinha vai ter um bebê assim como a gata vai ter filhotes porque ambos estão com a barriga muito grande: (...) Alice chegara-se para junto dos três homens e parecia fascinada pelo Vieirinha. Esteve tanto tempo a observá-lo, de boca pasmada, que o Barbaças foi espreitar o homem de perto. – Que vês tu ali, rapariga? Ela corou, como se a tivessem surpreendido numa falta. Depois, aproximando a boca de um ouvido do Barbaças, segredou: – O Ti Vieirinha anda com a barriga gorda. Ele e a gata vão ter meninos. Barbaças preparava-se para engolir o último naco de pão e engasgou-se tão ruidosamente que acordou o Vieirinha. Loas acudiu-lhe aos murros nas costas. – O pão foi-te para o goto, rapaz. Come mais devagar... (Tj, p. 172). 4 Não fizemos aqui nenhuma distinção entre humor e cômico, porém os teóricos costumam considerar que o cômico se refere a ocorrências mais lúdicas, engraçadas ou mesmo absurdas, em que o contraste entre o real e o verossímil propicia ao leitor um alívio, uma descarga emocional que resulta em riso mais intenso. O cômico evidencia-se, principalmente, nas situações que envolvem personagens. O humor estaria nas tiradas irônicas que partem, sobretudo, da voz narrativa. O humor pode não ser percebido por todos os leitores, pois é mais subjetivo e ideológico. Ressaltamos que as duas formas estão presentes em O trigo e o joio. 9 Além de recorrer ao humor e a ironia, tornando a narrativa mais sedutora, Fernando Namora também inova ao revelar um mundo que, até então, parecia interditado ao homem comum, aos desclassificados, pois revela um mundo de desejos e de sonhos. Sem abandonar a problemática social do campo, a narrativa mostra os anseios, as indagações do camponês humilde que não abre mão de sonhar. Os pequenos heróis de O trigo e o joio têm necessidades que ultrapassam a questão da fome e, por isso, também possuem grandeza, pois, segundo Vergílio Ferreira (1969, p. 281), “não se altera o homem fundamental, quando ascende em humanidade, esse que sofre, ri, sonha; mas altera-se a qualidade humana disso, pelo que aí se sonha, ri ou sofre”. O romancista Fernando Namora “desanimaliza” o homem comum, dando-lhe o requinte de sujeito desejante. A necessidade do sonho permeia o caráter dos três heróis do romance e identifica-os com a figura do sonhador. Para sustentar esse argumento, baseamo-nos nas teorias de Erich Auerbach e Ian Watt, acerca do personagem criado por Miguel de Cervantes, Dom Quixote, que se fixou na tradição literária como a imagem do idealismo, da aventura, do sonho. A luta de Dom Quixote, para “manter sua idealização sob o fogo das implacáveis baterias da realidade cotidiana” (WATT, 1997, p. 64), custou-lhe a exposição ao ridículo e a fama de insensato ou destrambelhado, mas também lhe transformou num personagem apaixonante aos olhos dos leitores, já que vêem nessa luta uma “grandeza idealista, (...) incondicional e heróica” (AUERBACH, 2007, p. 307). É o procedimento quixotesco presente na composição da figura do sonhador que pretendemos atar ao comportamento de Loas, Barbaças e Vieirinha. Loas “precisava planear coisas novas e extraordinárias” (Tj, p. 232), mas seu grande sonho era transformar sua pequena courela numa herdade. Este sonho não significava o desejo do enriquecimento, pois o coureleiro era diferente de Cortes e Maldonado. Desejava, sim, mais conforto para sua família, bem como queria reaver a parelha de mulas que lhe traria de volta o respeito dos vizinhos. A relação de Loas com a terra era principalmente de amor, um amor que misturava contemplação e erotismo. A propósito, Urbano Tavares Rodrigues (1981, pp. 90-91) afirma que “se há texto na literatura portuguesa onde a mulher e a terra (sexualizada) se identificam como objecto de desejo (...) esse texto é bem O trigo e o joio”. A terra significava para Loas o corpo da mulher amada que ele deseja fecundar, tocar; porém, mais do que um desejo erótico, sentia um desejo quase sublime de contemplar o espetáculo solene que era, para ele, o momento do cultivo e da procriação do solo. A courela era para Loas a sua Dulcinéia encantada, “a ideal e incomparável senhora do seu coração” (AUERBACH, 2007, p. 303): 10 (...) A campina, de tão lânguida, amolengava os músculos dos homens, e o Loas, amando a terra, desejando-a como se deseja fecundar um corpo de mulher, era no entanto impotente para traduzir tudo isso em acção. Erguia a enxada meia dúzia de vezes e parava, embevecido, esperando que a gleba, sob esse breve estímulo, se multiplicasse em alvoroço e fertilidade. Como se o esforço físico o impedisse de assistir à solenidade dessa procriação. No seu apelo à terra havia o desejo fanático de nela deixar uma cicatriz, mas uma cicatriz de amor e não de suor (Tj, p. 34). O desejo de ver sua terra fecundada fazia de Loas um homem ousado. O que muitos viam como insensatez era para ele uma possibilidade de ter sua herdade, de poder quebrar com a condição submissa e arcaica dos outros lavradores. Por isso, não hesitou em hipotecar a courela a fim de conseguir recursos que lhe permitissem comprar um motor para irrigar a sua pequena lavoura. A “insensatez” de Loas pode ser relacionada com a imoderação, com a ideia fixa que leva Dom Quixote a deixar sua casa em busca de fantasiosas aventuras. Segundo Erich Auerbach (2007, p. 312), “é nas asas da loucura que a sabedoria alça voo, atravessa o mundo e se enriquece nele”. O engenho comprado por Loas não funcionou e ainda lhe custou a chacota dos outros lavradores, mas os fracassos não eram motivo para o desânimo, pois havia grandeza em seu sonho, uma grandeza que faltava aos ricos latifundiários, que no fundo invejavam seu desprendimento: (...) Os grandes lavradores, que até aí tinham murchado as orelhas ao anúncio de um pobretanas como o Loas lhes dar lições de lavoura, espremeram o fracasso impiedosamente; meses depois, ainda mordiam a paciência do Loas: – Eh, vizinho, tenho uma horta nas baixas da herdade; se tu fosses lá montar um engenho... O Loas ria. Talvez lhe apetecesse muito mais responder-lhes com certo gesto, mas, no seu riso, havia uma divertida piedade pela bruteza daqueles ricaços, estupidificados em egoísmo e rotina, riso que os enxovalharia muito mais do que um palavrão a propósito (Tj, p. 36). Essa passagem reafirma o argumento de que O trigo e o joio, assim como outros romances neorealistas, denuncia a estrutura ultrapassada do sistema agrário português em meados do século XX; uma estrutura mantida pelos interesses de latifundiários que se firmavam no poder à custa da exploração do trabalhador assalariado e de uma política arraigada aos valores de uma velha aristocracia feudal. A propósito, parece interessante observar que o romance de Cervantes (como as novelas picarescas) testemunhou o declínio da sociedade feudal e o surgimento da sociedade burguesa; conseqüentemente, assistiu à perda de prestígio do cavaleiro feudal, substituído por homens pagos a soldo. A figura do pícaro e a do cavaleiro de Cervantes colocavam em xeque as novelas de cavalaria que, embora 11 deslocadas da realidade histórica em grande parte da Europa, permaneciam como forte tradição ibérica. Segundo Felix Brun, as novelas de cavalaria espanholas do século XVI tinham como funções: fazer acreditar em um mundo sem dinheiro, porque o fidalgo estava falido e oferecer a este fidalgo desocupado a ilusão de uma importância que já não tinha: (...) En efecto, la novela de caballería reúne paradójicamente estas dos funciones: crea un mundo de sueño, un mundo, sin dinero, porque el hidalgo no lo tenía (Don Quijote y el mesonero), y ofrece al hidalgo desocupado la ilusión de una función social que, por su carácter abstracto, refleja al mismo tiempo esta desocupación (BRUN, 1969, p. 139). Loas precisava de ajuda para lavrar a terra e Barbaças seria o “sócio” ideal. Não foi difícil fazer com que ele ficasse na courela por algum tempo, mas o pequeno lavrador sabia que o vadio logo se cansaria da vida longe da vila. Não bastava a garantia de boa comida e a falsa promessa de sociedade para manter Barbaças preso ao trabalho com a terra, era preciso envolvê-lo no sonho de fazer daquele pequeno pedaço de chão uma herdade. As investidas de Loas para seduzir Barbaças foram muitas. Ele criou histórias tão fora da realidade, que acabaram, elas mesmas, pondo em risco os seus objetivos. Valendo-se da fama de ter “prestígio junto das forças sobrenaturais” (Tj, p. 45), tentou impressionar o “sócio” com a história de que ele, Loas, fora chamado por sua mãe já morta para viver junto dela. Sendo assim, como não poderia contrariar os mortos, precisava de que Barbaças ficasse na courela para cuidar de Joana e Alice. À maneira bem quixotesca, o coureleiro prometeu inclusive fazer um testamento em que passaria todos os seus bens para o companheiro em troca da ajuda, tal qual, no romance de Cervantes, Dom Quixote promete uma ilha a Sancho “em recompensa pelos seus serviços” (WATT, 1997, p. 73). Diferentemente de Sancho, Barbaças não se empolgou com a proposta de Loas, que se viu obrigado a lançar mão de algo mais persuasivo; porém acabou exagerando no irrealismo da nova história e, assim, despertou a fúria de Barbaças que compreendeu as verdadeiras intenções do “sócio” de enredá-lo só para que continuasse trabalhando em sua terra. Ao perceber que Barbaças havia se afeiçoado a um pequeno ratinho aparecido na courela, Loas resolve dizer que aquele bichinho roedor poderia ser a reencarnação do avô do vadio, que teria voltado por estar satisfeito com a sociedade entre o neto e o antigo amigo coureleiro. A falta de escrúpulo de Loas para manter Barbaças a seu lado, assim como a reação zangada do vadio, mostra que o relacionamento dos dois, pelo menos no início, não era de amizade incondicional e que predominavam os interesses de cada um (o comportamento mais 12 egoísta pertencia a Loas). Embora aqui o que de fato nos interesse seja atar o comportamento dos personagens de O trigo e o joio ao procedimento idealista e sonhador de Quixote, não podemos deixar de notar a semelhança entre a relação de Loas com Barbaças e a relação de Dom Quixote com Sancho Pança. Para Erich Auerbach (2007, p. 314-315), os personagens do romance espanhol também “não estão sempre e ininterruptamente unidos em amor e fidelidade”; o que reflete o “caráter vacilante e mesclado das relações humanas”, relações estas sujeitas aos interesses individuais. A cômica passagem sobre a história do ratinho e do avô reencarnado de Barbaças demonstra também o quanto Loas era capaz de qualquer invencionice para convencer as pessoas de se envolverem com o seu sonho, aproximando-se ainda mais do comportamento quixotesco, pois “quando as pessoas não se transformam voluntariamente, é Dom Quixote quem as transforma com sua doidice” (AUERBACH, 2007, p. 314): – Poças, Ti Loas! – protestou o Barbaças, revoltado com a impudica imaginação do lavrador. – Juro-te. Por isso eu te digo que esse [ratinho] que aí tens pode muito bem ser o teu avô, que foi um homem de honra e meu amigo. Talvez ele esteja consolado com a nossa sociedade e goste de nos ver juntos e queira viver na courela ao pé de nós. Se eu tivesse a certeza disso, Barbaças, um raio me parta: nunca mais te deixaria sair daqui. Com mortos já te disse que não se brinca. Barbaças deixou descair as pálpebras. Percebera, enfim, as intenções do patife do Loas. – Eh, avô de uma figa! Isso tem um piadão! (...) – Fique sabendo que me vou embora. Estou farto de enxada e de mentiras! (Tj, p. 55). A atitude de Loas também nos parece em conformidade com a observação de que o idealismo de Dom Quixote leva-o a um comportamento “tão carente de sentido e tão inconciliável com o mundo existente que a única coisa que resulta disso é uma cômica confusão. Não só tem possibilidade de êxito, mas não encontra nenhum ponto de apoio na realidade; atinge o vazio” (AUERBACH, 2007, p. 307). Ainda segundo o autor de Mimeses, “a ideia fixa preserva Dom Quixote de sentir [-se] responsável pelo que apronta, de modo que mesmo para sua consciência não há possibilidade de existir qualquer conflito trágico” (AUERBACH, 2007, p. 309-310). O comentário é muito apropriado no tocante ao pai de Alice, pois, ao mesmo tempo em que se mostrava um homem incapaz de guardar rancor – haja vista ter perdoado Barbaças e Vieirinha por terem gastado o dinheiro da compra da burra com orgia da feira –, sua determinação ao perseguir seu sonho resguardava-o de qualquer sentimento de culpa. Assim aconteceu todas as vezes em que enganou Barbaças para mantê-lo 13 na courela, ou quando escondeu do sócio que a burra poderia ter lepra, deixando-o exposto a um possível contágio. Neste caso específico, até se sentiu um pouco culpado, mas, como “estoirava se não tivesse uma besta na courela” (Tj, p. 278), preferiu sacrificar Barbaças. De todas as características de Loas que o ligam à figura do sonhador, a mais marcante é sua rejeição a uma saída trágica. Diante de todos os infortúnios na tentativa de concretizar seu sonho, o coureleiro permanece otimista, continua acreditando, como se encontrasse na impossibilidade o alimento para manter o sonho vivo. A exemplo do que afirma Ian Watt (1997, p. 64) sobre o personagem de Cervantes, também em Loas “qualquer derrota pode ser racionalizada de modo a fortalecer sua ilusão original”. O trecho transcrito a seguir parecenos resumir a personalidade do pequeno lavrador. Mas, antes, é preciso registrar o lirismo que envolve a comovente obstinação do pequeno lavrador e, também, o cuidado estético de Fernando Namora ao lançar mão frequentemente de recursos linguísticos que “poetizam” sua narrativa. Neste trecho, o romancista utiliza o recurso da personificação para opor a courela – que aparece humanizada com um coração – à ferrugem, ao comerciante, às estradas e aos motores, enfim, aos elementos opressores do quotidiano de Loas – que aparecem como agentes de ações de valores semânticos destrutivos: (...) A ferrugem viera corroer o engenho, o comerciante da cidade hipotecara-lhe o coração da courela, os anos ruins, as estradas e os motores tinham vindo roubar-lhe a parelha de mulas – mas o sonho continuava de pé. Ele se levantaria dos destroços, ele iria recomeçar em cada dia (TJ, p. 47-48). Como podemos notar, a oposição entre o que Loas deseja e a realidade que o cerca põe em evidência as dificuldades enfrentadas por ele, mostrando assim a intenção narrativa de problematizar o contexto sócio-econômico rural. Isso leva-nos também a recuperar as palavras de Erich Auerbach (2007, p. 314) sobre o fato de que a loucura não tira o personagem de Cervantes de sua existência quotidiana: “os personagens e os acontecimentos da vida quotidiana estão continuamente em contraste com aquela loucura, e aparecem salientadas com ainda maior rigor graças àquele contraste”. Dom Quixote “supera o choque” com a realidade buscando “na sua própria ideia fixa (...) uma saída que o livra tanto do desespero quanto da cura” (AUERBACH, 2007, p. 304). Em Loas, a necessidade de buscar soluções ou desculpas que pudessem proteger o sonho do fim iminente se torna mais frequente depois da revelação sobre a origem da burra. Apesar de todo o pavor trazido pela palavra infeliz de Vieirinha, o lavrador não deixa de acreditar; mesmo depois de longos períodos soterrado por pensamentos terríveis que quase o 14 enlouquecem e que deixam o sonho “impregnado de nojo” (Tj, p. 267), ainda assim ele encontra a cada amanhecer uma luz que lhe renova as esperanças5: “Era durante as horas da noite que Loas ampliava, até ao desespero, estes conflitos e pesadelos. Ao romper do dia, a luz límpida da manhã aliviava a paisagem dos seus terrores, dos seus espectros, do seu nojo – e as pessoas e as coisas surgiam purificadas” (Tj, p. 277). O sonho da terra permanece vivo em Loas de forma comovente até o fim da narrativa, pois até o último momento ele tenta de todas as maneiras evitar o desfecho trágico, precipitado pelo ato extremo de Joana que faz escorrer o sonho junto com o sangue da burra: – Joana! Joana não é preciso matar a burra! (...) – Não faças essa cara de parva! Já não é preciso, digo-te eu. O Vieirinha sabe que a morféia não se pega às burras, mas só agora é que eu o percebi. Alice poderá brincar com a burra todas as vezes que lhe apetecer! (...) – Já não é preciso, Joana. Tu vais ver o que faremos desta courela. É agora que havemos de plantar a tua vinha, os pinheiros, tudo o que quiseres (Tj, p. 330-331). Para Cleonice Berardinelli (1982, p. 342), “só à Joana (...) caberia, na lógica da narrativa, a execução efectiva da burra”, pois, diferentemente dos outros personagens, não tinha identificação com a charneca, com o seu clima abafado, pois viera do Norte e sentia falta do clima verde e úmido de sua região. Acostumou-se a viver à sombra do marido, a sufocar os próprios desejos em favor dos desejos dele; mas, aos poucos, Joana foi emergindo da condição submissa e tornando-se atuante. Foi ela quem teve a iniciativa de entregar para Barbaças a missão de comprar a burra, assim como foi ela quem obteve as primeiras informações sobre o animal que seria depois comprado da “gente das Malhadas” (Tj, p. 194). O gesto da mulher de Loas, ao matar a burra, não refletia apenas a vontade cega de livrar a filha do perigo da lepra. Havia neste gesto uma insubordinação que refletia todo seu cansaço da instabilidade e dos delírios do marido. Mais ainda, a morte da burra significava para Joana, mesmo que não tivesse consciência disto, a sua chance de voltar ao Norte, a sua chance de tentar impor o seu sonho ao sonho do marido: Ela ouviu falar em pinheiros e voltou-se, sonâmbula, para a colina. Mesmo daquela distância, ela sentia as agulhas dos pinheiros penteando o vento. Loas seguiu-lhe o olhar e as ideias. 5 Segundo Roxana Eminescu (1983, p. 27), no artigo “O tempo disfarçado: a estrutura temporal no romance de Fernando Namora”, é frequente na obra do autor de O trigo e o joio a oposição entre dia e noite, “a alvorada, como instante da revelação”. 15 – Se um dia a seara ardesse e o monte ardesse também, Joana, a gente fugia para ali. Mas nada disso acontece. Hei de ter tanta água no engenho que a courela será uma lezíria. Mas, num ímpeto, ela puxou-lhe a espingarda das mãos. E, antes que ele pudesse tomar consciência do que se passava, um estampido vermelho reboou na serenidade da manhã e a burra oscilou sobre o piso orvalhado (...) (Tj, p. 331). Barbaças começa essa história como um grande vadio, “de cérebro deliciosamente vazio” (Tj, p. 27), como uma criatura que não poderia desejar nada além de uns pedaços de chouriço, umas galinhas ou leitões surrupiados de algum vizinho mais distraído e uns copos de vinho. Ele só começa a conhecer o sentido de palavras como afeto e lealdade quando se une à família de Loas. É através do pequeno coureleiro que a palavra sonho passa a fazer parte da existência miserável do vadio: “Barbaças estava longe da complexidade desses sentimentos, mas, naquele instante, sentia-se conduzido a um mundo sedutor e ignorado” (Tj, p. 34). O convívio com um homem que lhe revela ser “possível dar gosto e grandeza a uma tarefa quando ela se funde numa razão para a vida” (Tj, p. 42) desperta algo novo em Barbaças. Ele começa a entender que pode fazer parte de um sonho, que pode contribuir de fato para a sua concretização. No entanto, o sonho da terra ainda não era dele, não compreendia muito bem o que significava a aquisição de uma burra para Loas. Isto só acontece ao descobrir que até um pária como ele poderia ter o próprio sonho, poderia descobrir sensações e desejos que ultrapassavam em muito a simples vontade de comer alguns nacos de presunto. A revelação de que também teria o direito de desfrutar outros prazeres veio do encontro com Rosa, a rapariga da barraca de tiro. Seu encantamento por Rosa e o desejo que ela lhe despertara – o desejo num homem virgem, ou num homem que possivelmente só conhecia a sofreguidão do sexo e não o seu prazer – fizeram-no render-se a Vieirinha e concordar em gastar o dinheiro de Loas: “Barbaças fechou os olhos, como quem se prepara para um mergulho suicida, e entregou-lhe a carteira” (Tj, p. 104). O grande momento de Barbaças com a mulher da flor vermelha foi interrompido violentamente pela guarda justo quando “ia participar de todos os sabores da vida” (Tj, p. 124), talvez porque para um maltês como ele esse momento ainda fosse um excesso para sua vida de privações. A própria paisagem, um bosque de eucaliptos, parecia anunciar que aquele seria um mundo estranho, proibido: “Barbaças, homem de paisagens livres e nuas, sentia-se ali como perante um mundo interdito (...)” (Tj, p. 104). Mas nem a violência desta interdição ou a traição ao companheiro Loas eram capazes de tirar daquele homem a extraordinária sensação de saber o que é ter um desejo só seu. Esta sensação libertava-o “da crosta de 16 primarismo biológico” (Tj, p. 124) a que estivera preso até então, levando-o a descobrir uma sexualidade erótica, algo que estava para muito além da “mera sexualidade animal” (PAZ, 1995, p. 12). Na sua condição de pária, “reconhecia que valia a pena o remorso de uma vida só para que os seus sentidos estivessem perto de alguma coisa que não era preciso ser violada para encher um tremendo vazio da sua existência” (Tj, p. 109). Este sentimento de Barbaças em relação à rapariga estava muito próximo do misto de contemplação e desejo erótico que Loas nutria pela terra. O vadio agora já podia compreender o sonho do lavrador e a partir de então sua maior aspiração seria contribuir para sua realização. A compra da burra passou a ser sua ideia fixa não só por saber o que isso significava para Loas, mas por ser também um sonho dele próprio, Barbaças: “(...) já era tão interessado na burra como o Loas e a Alice, pois a burra ia ligá-lo a um mundo que ele levara tempo a descobrir” (Tj, p. 209). Já conhecemos o caminho percorrido por Barbaças até a realização de seu objetivo e, por isso, é possível relacioná-lo ao comentário de Ian Watt (1997, p. 72) sobre Dom Quixote: “o protagonista segue um curso de ação, conduzindo na cabeça a mais simples das ideias, que antes de ser efetivada poderá, no entanto, levá-lo a um número infinito de aventuras”. Vieirinha não tinha o sentimento de Loas e de Barbaças pela terra, embora nutrisse carinho pelo meloal cultivado na choupana herdada de um tio-avô cônego: “Vieirinha voltava-se muitas vezes para trás, apreciando o seu periódico refúgio de eremita” (Tj, p. 308). Era um falastrão e não se melindrava por passar uma alma ingênua para trás sempre que vislumbrava a chance de poder saciar sua “desesperada libertinagem” (Tj, p. 121); mas, no fundo, vivia a opressão de dias solitários, sonhava “com mundos que os outros escarneciam” (TJ, p. 123). Neste sentido, Vieirinha era muito parecido com Loas, pois também não se adaptava à realidade mesquinha e rotineira daqueles que não conseguiam sair dos limites da vila nem mesmo através da imaginação. A fama de devasso escondia um drama que o consumia, não havia sequer uma mulher na vila que quisesse ser sua companheira: – Vejo bem que tu gostas de mulheres, compadre. Um raio me parta se tu não gostarias mais de ter uma mulher do que uma boa herdade com parelhas, bois, porcos e tudo! Porque não te casas? – Casar, eu?! Toda a gente fala em casar. “Casa-te, Vieirinha; Casa-te, Vieirinha!” Mas eu já disse que não queria casar? E onde arranjo eu a mulher? Loas sentiu-se impressionado com a lógica terrível dessa pergunta. O compadre Vieirinha tinha um drama a consumi-lo e entristecia reconhecer que não era possível encontrar-lhe imediatamente uma solução. (Tj, p. 166-167) O drama de Vieirinha era o mesmo drama de todo libertino, porque este “necessita sempre do outro e nisso consiste sua condenação: depende de seu objeto e é escravo de sua 17 vítima” (PAZ, 1995, p. 24-25). O devasso não possuía o seu objeto de desejo a tempo e à hora, precisava esperar pelas prostitutas, que só vinham com a feira uma vez por ano. Esta longa temporada longe de uma companhia feminina transformava o desejo de Vieirinha em uma obsessão, justificando qualquer enleio para satisfazê-lo. Assim como Loas, ele possuía uma ideia fixa que o preservava de qualquer sentimento de culpa, de qualquer espécie de remorso por ter prejudicado ou burlado alguém (é o mundo sem pecados de que fala Antonio Candido). A falta de conflitos em Vieirinha fica clara nesta passagem, em que tenta impressionar o grupo formado pelos homens mais importantes da vila; uma plateia por sinal que não lhe deixava muito à vontade, pois falava com mais imponência para os homens simples: – Ele passou-me o dinheiro para se comprar uma burra, é certo. E se o meu compadre Loas precisa da burra, mais cedo ou mais tarde terá a burra em casa. O Vieirinha nunca falta à sua palavra. Porém, naquele momento, o dinheiro pertencia-me, porque era eu que precisava dele, mais do qualquer outra pessoa. O Loas podia esperar. Mas ele terá o dinheiro da burra porque, agora, é ele a precisar desse dinheiro mais do que qualquer outra pessoa do mundo. (Tj, p. 138). Vieirinha não estava diretamente envolvido com a construção do sonho de Loas, mas acaba, ainda que involuntariamente, contribuindo para a não realização deste sonho. A revelação do personagem sobre a procedência da burra foi necessária para o desenrolar da trama e para seu desfecho trágico. O tempo ficcional coincide com o tempo referencialmente histórico e aquele ainda não era o tempo da vitória do sonho da terra. Naquele momento, não era possível a um pequeno lavrador, por mais determinação pessoal que tivesse, superar a opressão de um contexto econômico-social que favorecia os latifundiários e aumentava a injustiça e a desigualdade no campo. Havia uma grande “distância entre os desejos do indivíduo (...) e a realidade” (WATT, 1997, p. 76). Para uma literatura que se propunha a testemunhar os problemas sociais, seria estética e ideologicamente contraditória a concretização do sonho no âmbito do universo ficcional. Por mais que Fernando Namora tenha defendido a escrita ficcional como o ato de reinventar, sua narrativa não poderia negar ou ignorar os litígios do homem português com o seu tempo. Talvez por isso a impossibilidade de um final feliz para a história do pequeno lavrador já se anunciasse na epígrafe do romance: “O mundo da literatura é, porém, um triste mundo”. Contudo, se o final de O trigo e o joio não é feliz, também não instaura a desesperança. Fica a sensação de que a história não acaba com a morte da burra; o final parece não concluso, à espera de um recomeço, não apenas pela necessidade de manter a verossimilhança, mas 18 principalmente porque a trajetória dos personagens é marcada pela persistência, pela capacidade de acreditar na possibilidade de vencer a luta contra um quotidiano que insiste em lhes soterrar os desejos. Na luta para driblar os desafios do quotidiano opressor, Loas Barbaças e Vieirinha tendem a percorrer caminhos fora da ordem e do lícito. A aceitação de uma existência em desvio aproxima estes pequenos heróis das figuras do pícaro, do malandro e do sonhador, todos saídos de uma tradição de personagens que lutaram contra realidades hostis. Não é fácil divisar as características de cada uma destas formas de heroicidade em desvio porque há entre elas uma forte identificação. Estão unidas por uma promessa de libertação, de fuga de um espaço social que lhes oprime. A coragem de colocarem-se para fora da norma, a fim de realizarem seus sonhos, faz com que sejam figuras extremamente sedutoras e vistas com simpatia pelos leitores. Sentimo-nos seduzidos pelos heróis marginais porque eles realizam no espaço da ficção o que gostaríamos de realizar no espaço real. A submissão às normas sociais afasta-nos dos sonhos que acalentamos e acabamos de alguma forma compensando nossas frustrações com as vitórias desses heróis, como explica Ian Watt (1997, p. 84): Identificamo-nos com Dom Quixote, esperamos que ele triunfe sobre a realidade, e nos sentimos ao mesmo tempo aliviados e invejosos quando ele consegue, uma e várias outras vezes, fazer com que todos joguem o seu jogo, graças unicamente à sua obstinada recusa de jogar qualquer outro. Ao mesmo tempo, gratificamo-nos com as zombarias do narrador ao herói, porque elas nos ajudam a reconhecer o quanto é fraca a base das nossas próprias e vacilantes tentativas de viver a vida dos nossos sonhos. Entendemos que a narrativa de Fernando Namora demonstra uma intencionalidade, que foi a mesma de Cervantes, de responder “à necessidade de mostrar que a associação de valores há muito abandonados” – a grandeza de espírito, a alegria, o afeto, a esperança, a humanidade – “com a união de seres humanos movidos por um só objetivo pode sobreviver até mesmo em face das contradições insolúveis e em muito à brutalidade do mundo que os rodeia” (WATT, 1997, p. 99). Os pequenos heróis de O trigo e o joio também são sedutores porque, assim como as figuras do pícaro, do malandro e do sonhador, apostam no jogo que lhes garanta a concretização de seus sonhos e, em nome deles, colocam seus desejos acima de qualquer ordem. A luta é comovente porque é contrária a situações sociais injustas e desumanas e porque não duvida de que a liberdade é a maior de todas as riquezas. Loas, Barbaças e Vieirinha fazem-nos acreditar que ao menos na ficção esta luta pode ser vencida pelo pequeno. 19 Referências bibliográficas: AUERBACH, Erich. Mimesis. São Paulo: Perspectiva, 2007. BERARDINELLI, Cleonice. O trigo e o joio, de Fernando Namora. In: - - -. Estudos de literatura portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1982, p. 317-355. BRUN, Felix. Hacia una interpretación sociológica de la novela picaresca. In: Literatura y sociedad: problemas de metodología en sociología de la literatura. Barcelona: Martinez Roca, 1969, p. 133-142. CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem. In: - - -. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993, p. 19-54. DAVID-PEYRE, Yvonne. O elemento picaresco em três romances de Fernando Namora. I Colóquio/Letras. Lisboa, n. 40, nov. 1977, p. 48-56. EMINESCU, Roxana. Novas coordenadas no romance português. Lisboa: ICPL, 1983. FERREIRA, Vergílio. Invocação ao meu corpo. Lisboa: Portugália Editora, 1969. 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Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. 20 The wheat and the weed: roguery, dream, survival Ana Carla Pacheco Lourenço Ferri Mestra em Literatura Portuguesa / UFRJ Abstract: The aim of this assignment is a critical reading of Fernando Namora’s novel, published in 1954, The Wheat and the Weed. Considering that the literary word has the unique capacity to escape from the authoritarism of the ordinary use of the language, this reading finds its own way by giving privilege to elements that prove there is an esthetic appeal on Fernando Namora’s novel that overcomes to the ideological speech mainly present in the traditional standard of the Portuguese neo-realistic novel. Therefore, the study cuts the shape of heroism diversion represented by the pictures of a scoundrel and of a dreamer, suggesting that the little heroes constructed by the narrative The Wheat and the Weed – for also being survivors of a hostility and oppressive reality – may be seen as allegories of these cunning pictures. Key-words: Fernando Namora. Roguery. Dreamer.