DESENCONTROS ENTRE IMAGEM E TEXTO: ALGUNS ELEMENTOS PARA SE REFLETIR SOBRE O PROCESSO DE CRIAÇÃO DE HISTÓRIAS EM QUADRINHOS NA SALA DE AULA Dennys Dikson (UFAL)1 [email protected] Eduardo Calil Universidade Federal de Alagoas (UFAL) Pós-doutor pelo Institut des Textes et Manuscrits (ITEM/CNRS) [email protected] Resumo: Este trabalho pretende ser um ponto de partida2 para se buscar análises direcionadas à tentativa de apreender de que modo se estabelecem relações entre imagens e textos em processos de escritura em ato, quando uma díade de alunos do Ensino Fundamental escreve, juntos, uma mesma História em Quadrinhos. Para tal, o projeto didático Gibi na Sala (CALIL, 2008) ofereceu aos alunos propostas de produção de texto com HQ da Turma da Mônica, em que havia apenas as imagens, a partir das quais deveriam escrever o que achassem que seria necessário. Inicialmente objetivamos descrever os comentários dos alunos a partir de imagens e sua sequência e o modo como esses comentários orais serão materializados linguisticamente no texto escrito, mostrando os primeiros resultados obtidos. Dentre esses resultados, o destaque vai à opacidade dessa relação imagem/texto para esses alunos recém alfabetizados, contrariando alguma suposição de que a HQ é um gênero de mais “fácil” aprendizagem. Palavras-chave: Processo de Escritura em Ato. História em Quadrinhos. Relação Imagem/Texto. INTRODUÇÃO Trabalhar o processo de produção de texto em sala de aula, é adentrar num mundo que, conforme aponta Calil (2000, p. 29), já foi abarcado por diversas reflexões em distintas áreas “(Geraldi, 1993; Calil, 1998; Abaurre, Fiad & Mayrink-Sabinson 1991; Teberosky,1994; Teberosky & Tolchinsky, 1995; Ferreiro & Moreira, 1996; entre inúmeros outros)”. O mesmo pode ser dito, quanto o assunto é voltado às Histórias em Quadrinhos3, como é o caso dos trabalhos de Rama et. al. (2004), Ramos (2009), 1 Mestrando em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de Alagoas, orientado pelo Prof. Dr. Eduardo Calil de Oliveira. Auxiliado pecuniariamente pela FAPEAL (Fundação de Amaro à Pesquisa do Estado de Alagoas). 2 O trabalho principal acerca do tema em questão encontra-se em desenvolvimento no projeto de pesquisa de mestrado do autor, intitulado Articulações entre imagem e texto em Histórias em Quadrinhos: análise do processo de escritura em ato de dois alunos do 2º Ano do Ensino Fundamental. 3 Doravante HQ. 2 Vergeiro & Ramos (2009a e 2009b), Lins (2008), dentro outros. Porém, quando as perspectivas focam as HQ, produzidas na sala de aula, mas no processo de escritura em ato,4 praticamente quase nada se é estudado5. O interesse da academia pela questão ainda está aquém do destaque que o assunto deveria merecer. E é justamente nesse “mundo esquecido” que pisamos: na produção do texto em sala, com HQ, e no processo de escritura em ato. Nossa investigação pauta-se em não se fixar no produto, no texto, naquilo apenas que os discentes escreveram; mas, também, e principalmente, no como, no porquê, nas causas, nos motivos, de eles chegarem àquele texto-fim6 – o que ocorreu na fala, no processo, na interação, no “debate”, que resultou num determinado escrito e não em outro? Nossa busca recai no percurso, no processo de escritura, apropriados pelos scriptores7, com suas dúvidas, argumentos, concordâncias e tensões: momento este que se torna o célebre instante em que as complexas relações existentes entre sujeito, língua e sentido são evidenciadas. Essas relações são, certamente, o coração, a sustentação, de todas as investigações e discussões que traremos no decorrer do presente artigo. Antes de a elas nos atermos, é bem importante tecermos singelas anotações acerca do Projeto e sua metodologia, juntamente com alguns aportes teóricos que nos auxiliarão nessa não tão simples tarefa. UM RÁPIDO OLHAR: PROJETO, CORPUS E METODOLOGIA Nossa investigação é focada no que foi produzido pelo trabalho intitulado “Projeto Gibi na Sala”, pertencente ao Banco de Dados “Práticas de textualização na escola”8, em que foram utilizadas as HQ da Turma da Mônica de Maurício de Souza. Escolha esta que não se deu por acaso, pois, considerando que a pesquisa é composta 4 Termo este usado por Calil (2008) para designar o momento em que a dupla de crianças está escrevendo seu texto, na sala de aula, com todas as possibilidades pragmáticas de ocorrência verbo-interacionais 5 É importante ressaltar que a Universidade Federal de Alagoas/UFAL, mais precisamente no CEDU/PPGE, onde existe o Grupo de Pesquisa Escritura Texto & Criação (ET&C), coordenado pelo Professor Dr. Eduardo Calil de Oliveira, está tentando mudar essa realidade – prova disso são alguns bons trabalhos de Iniciação Científica e Mestrado que enveredam por esse caminho. 6 Frisamos que embora nosso olhar não seja ao produto, este não é descartado dos estudos/investigações, pois serve como um apoio, um subsídio, um resultado da interatividade da fala, para que as análises possam ser feitas com mais segurança e precisão. 7 Calil (2008, p.20), noutra nota de rodapé, explica que “O termo „scriptor‟ e não „escrevente‟, procurará, por um lado, evitar o sentido atestado no dicionário eletrônico Houaiss (2001): „diz-se de ou aquele que, por profissão, copia o que outro escreveu ou dita; escriturário, copista‟; por outro, manter o termo consagrado nos estudos sobre processos de escritura e criação, em que não se tem um escritor „senhor‟ de sua escritura, mas sim um sujeito dividido, cindido, muitas vezes refém daquilo que escreve.” 8 Desenvolvidos pelo Grupo de Pesquisa ET&C (vide nota 5). 3 por textos de alunos do 2º Ano do Ensino Fundamental9, foram selecionadas HQ que detivessem (a)o humor como atrativo central, (b). uma consistente identificação dos alunos com a faixa etária, bem como (c) uma popularidade marcante dos personagens. A partir do ambiente criado, repleto de contato e circulação de inúmeros gibis entre os alunos, além de leitura e conversa acerca das histórias neles contidas, o Grupo de Pesquisa ofereceu uma série de propostas de leitura, interpretação e produção de texto, previamente elaborada, a partir de diferentes histórias retiradas das revistas da turminha e do website10. Por se tratar de um gênero que não é trabalhado o tanto quanto deveria ser no ambiente escolar, principalmente nas séries iniciais, o Grupo intensificou a circulação dessas HQ, para que os discentes pudessem ficar mais familiarizados e não ocorresse tanta dificuldade no momento da execução das atividades. O método para captura do corpus consistiu em filmar díades de alunos no momento em que estavam produzindo o texto. O/A professor/a faz as explicações necessárias, deixando bem explícito o objetivo da atividade – no caso em tela, por exemplo, é entregue à dupla uma pequena história da turminha da Mônica, composta apenas pelas figuras/desenhos/personagens, sem qualquer tipo de escrita/diálogo, para que discutam entre si a produção do texto, com o fito de, a partir de todo contato anteriormente tido com esse gênero, construírem uma história coerente, relacionada com as imagens, denotando o humor característico –, dividindo a turma em suas respectivas duplas para que a proposta possa ser colocada em prática. As filmagens foram transcritas com o auxílio do programa ELAN11, software que oferece ferramentas interativas para o trabalho complexo dos registros audiovisuais, o que assegura uma maior sincronização das conversas – mesmo que ocorram simultaneamente, num mesmo momento12. O corpus que colocaremos em evidência será a filmagem realizada em 08/10/2008, com as alunas Maria Clarice e Ana Beatriz. A aula fora conduzida pelo prof. Eduardo Calil, o qual fez uma longa explanação sobre as HQ, explicando detalhadamente que todas as duplas deveriam produzir, após combinação/discussão, os 9 Crianças que pertenciam à rede pública de ensino, sendo os dados coletados durante os meses de outubro-dezembro de 2008, na Escola Municipal Cícero Dué da Silva, localizada no Tabuleiro do Martins, na cidade de Maceió – AL. 10 www.monica.com.br. 11 Eudico Linguistic Annotator; programa desenvolvido pelo Max Planck Institute for Psycholinguistics, podendo ser obtido gratuitamente em www.lat-mpi.eu. 12 É importante frisar que o ELAN não realiza as transcrições sozinho. É o pesquisador que, dispondo da filmagem, faz, passo a passo, fala por fala, gesto por gesto, ocorrência por ocorrência, as competentes transcrições. 4 textos/conversas/diálogos que estavam faltando nos quadrinhos, pois estes constavam apenas com as figuras/personagens. Dessa forma, e nessa perspectiva, foi repassada às díades a atividade constante do Anexo I13, a qual chamaremos de PT14. Esses quadrinhos foram a única “pista” que a dupla dispôs para que pudessem redigir o texto que mais se adequasse à proposta. A partir do resultado obtido, dispomos das transcrições relativas à realização do processo de escritura em ato. É exatamente com o que transcrevemos no ELAN, que pode ser posto em relevo todas as (im)possibilidades de produção textual, tanto no produto, quanto no momento em que realmente está ocorrendo a escritura, com as problematizações aí dispostas. CERTOS PONTOS TEÓRICOS Com o fito de enriquecer a investigação aqui trilhada, elegemos alguns estudiosos sobre os quais iremos tecer certas considerações, colhendo e assimilando alguns pontos importantes de suas teorias – ação que, espera-se, possa ser útil à sustentação da base de nossas análises. Todo trabalho voltado ao processo de escritura em ato procura estabelecer relações, como já dito, entre sujeito língua e sentido. Essa busca, com a metodologia e o corpus que aqui são postos em evidência, vai desembocar no estudo das rasuras – escritas e/ou orais. Diversas pesquisas que seguem essa perspectiva, normalmente adotam a escola como sendo o melhor ambiente para colher os dados que servirão às análises, como é o caso de Calil e Felipeto (2000), Calil (2004, 2008), Felipeto (2008), Fabre (1986, 1990, 2001), Abaurre, Fiad & Mayrink-Sabinson (1997), dentre muitos outros; sendo bem importante ressaltar que cada um desses trabalhos, possui procedimentos metodológicos e perspectivas teóricas diferentes. Como pensamos o presente trabalho também fazer parte desse direcionamento de estudo rasuro-processual, assumimos, assim, com Felipeto (2008, p. 13), que a “Rasura, oral ou escrita, é a possibilidade de reformulação, daí ela ser fundamental no processo de produção textual em sala de aula ou fora dela.” Essa ideia é muito valiosa na investigação que estamos a propor, pois é preciso compreender, nas relações de 13 Retirada do site oficial da turminha (vide nota 10). PT (Proposta de Trabalho), a qual é composta por cinco tiras (T) horizontais nas quais ocorrem as ações da história: T1 (com um quadrinho, não contendo imagem e exclusivamente reservada ao título), T2 (com um quadrinho), T3 (com três quadrinhos), T4 (com quatro quadrinhos) e T5 (com três quadrinhos). 14 5 processo e de discussão imagem/texto, que a díade “procurando aproximar-se da forma certa, correta, (...) acaba por dizer/escrever o „errado‟, produzindo um erro ou um equívoco” (FELIPETO. 2008, p.13): é justamente essas “falhas”, esses “equívocos”, esse “errado”, os pontos primordiais para que as relações entre o que se escreve e o que a imagem permite escrever, possam vir à tona. Calil e Felipeto (2000), por sua vez, expõem uma investigação calcada na tentativa de mostrar quais as possibilidades que ocorrem para que o discente cometa uma rasura, do ponto de vista linguístico-discursivo; suas discussões são direcionadas a um determinado caminho para que compreendamos quais as forças propulsoras e como ocorre o funcionamento das rasuras. Sumariamente, tentaremos explicar essas discussões dos autores: em primeiro lugar, a pessoa rasura aquilo que parece estar errado, que lhe aflore um sentido de estranheza15, e quando o familiar, o conhecido, é quebrado, nasce o estranhamento, ou seja, “o ponto de partida para que se produza um efeito de retorno, sem o qual não há rasura, naquilo que o equívoco já se fez presente ou poderá, a partir da rasura, se instalar” (CALIL E FELIPETO, 2000, p. 3); e dessa forma, tem-se um sujeito afetado, marcado, pelo seu falar no próprio escrito, escutando16 isso como não satisfatório, fazendo uma reformulação do “erro”, retomando e retificando sua fala/escrita, formulando rasuras no que foi, através destas, evidenciado. Estes pesquisadores formulam três noções para se entender o que está por trás do ato de rasurar: (a) o equívoco, que pode ocasionar um (b) estranhamento, “estranhamento este que pode levar o sujeito a uma (c) escuta, a qual efetiva um retorno sobre o dito/escrito, condição de toda forma de rasura, seja oral ou escrita” (CALIL e FELIPETO, 2000, p.06). E é no “manuscrito oral” ou “memória do processo de escritura”, como diz Calil (2008), que essas noções teóricas ganham força, exatamente no momento das análises das transcrições. Partindo para outro foco teórico, tenhamos agora os estudos de Claudine Fabre, pesquisadora que procura descrever as atividades metalinguísticas, de alunos do Ensino Fundamental, através das rasuras deixadas nos textos (FABRE. 1990, 2001), levando 15 O estranho, a partir de Freud (1969), é aquilo tido como categoria do assustador que remete o sujeito ao que é conhecido, de velho, e compõe o que há de familiar. 16 A ideia de “escuta”, proposta por Lemos (1999, 2000), a partir da psicanálise lacaniana, não é o mesmo que “ouvir”; trata-se da possibilidade da criança: “como sujeito falante se dividir entre aquele que fala e aquele que escuta sua própria fala, sendo capaz de retomá-la, reformulá-la e reconhecer a diferença entre sua fala e a fala do outro, entre a instância subjetiva que fala e a instância subjetiva que escuta de um lugar outro” (LEMOS, 2000, p.35). 6 em consideração que as rasuras são as marcas de um “retorno sobre” o que está escrito, sendo, portanto, processos que fazem uso de certo tipo de grau de reflexão sobre a linguagem. Fabre defende que as rasuras são “marcas da função metalinguística em atividade” (1990, p.39), dividindo em quatro as operações metalinguísticas: (1) a supressão: ato do autor retirar, suprimir algo do texto que já foi escrito, diante de alguma dificuldade, descartando-o; (2) a substituição: momento em que um termo é trocado por outro, ou por ele mesmo – quando ocorre o primeiro caso, isso demonstra a dificuldade do aluno em escolher outro “melhor”, e quando o segundo, é um indicativo de “criatividade” do escritor; (3) o deslocamento: é quando ocorre uma repetição ou antecipação de sílabas, grafemas ou de palavras inteiras; e (4) a adição: são índices de um procedimento de correção que conserta, arruma, um omissão anterior. As pesquisas da estudiosa a permitem descrever e quantificar as rasuras, todavia, é importante frisar, que seu trabalho se dirige apenas ao texto-pronto, à folha de papel no produto final, análises que não “permitem avançar na reflexão sobre os processos criativos em curso na escritura desses textos” (CALIL 2008, p.41). Outro aspecto teórico que aqui podemos por em evidência, é a questão tratada por Abaurre, Fiad & Mayrink-Sabinson, estudiosas que expõem a singularidade e a heterogeneidade das reformulações que ocorrem em textos escritos por crianças do Ensino Fundamental brasileiro. Elas definem o singular como “aquelas ocorrências únicas que, em sua singularidade, talvez não voltem a repetir-se jamais” (1997, p.23), tentando mostrar que as rasuras deixam refletir um “trabalho de modificação de algo anteriormente escrito sob forma diversa, [no qual] escondem-se freqüentemente limitações, as mais variadas, reveladoras das singularidades dos sujeitos e da relação por eles estabelecida com a linguagem” (1997, p.24). As autoras afirmam que as operações metalingüísticas, emergidas a partir das rasuras, são focadas em “erros” ortográficos ou morfossintáticos, os quais são percebidos pelos alunos através das “saliências” e “motivações”, coisa que faz os discentes refletirem sobre a linguagem, havendo, inclusive, a possibilidade de manipulála conscientemente. 7 As manipulações e as re-escritas, esclareçamos, que os alunos agem no texto, por conta de ser adotada uma metodologia que não caminha na análises do processo de escritura em ato, fazem Abaurre, Fiad & Mayrink-Sabinson reconhecerem que “a partir da análise do produto final, apenas, é impossível afirmar com segurança quando e como a criança operou as modificações indicadas” (1997, p.65); ou seja, apenas observando a situação pragmático-linguística contextualizada, assim entendemos, através do visualsonoro, é que, realmente, as operações de escrita/fala podem ganhar mais expressividade nos estudos das relações processuais da produção textual das crianças, principalmente quando uma díade é quem discute/produz. DESENCONTROS ENTRE IMAGEM E TEXTO: ALGUMA REFLEXÃO Tentaremos, nesta parte, por em evidências algumas relações de (des)encontros entre imagem e texto nascidas do processo de escritura em ato das crianças, primeiramente focando o produto-fim dos alunos, o texto produzido a partir da PT, depois construindo singelas análises desta vez com o olhar não no texto final, mas nas falas/discussões/conversas que fizeram aquela produção textual ser escrita de tal modo e não de outro. A PT ganhou de Maria Clarice e Ana Beatriz o título “O CEBOLINHA TRAPALHADO”, ficando escrito da forma do Anexo II, a qual nomearemos de PTF17. Abaixo, seguem as transcrições da PTF, sabendo-se que estão organizadas, excetuando-se o quadrinho relativo ao título, em 1ºQ, 2ºQ ... (primeiro quadrinho, segundo quadrinho...)18: TÍTULO: O CEBOLINHA ATRAPALHADO 1ºQ: ELE VAI PEGAR O BALDE DE TINTA. 2ºQ: ELE VAI COMEÇAR A PINTAR A PAREDE. 3ºQ: ELE ESTÁ TERMINANDO DE PINTAR A PAREDE. 4ºQ: A MÔNICA ESTÁ MANDANDO O CEBOLINHA PARAR. 5ºQ: A MÔNICA BATEU A CABEÇA NA PAREDE. 6ºQ: E CAIU NO CHÃO. 7ºQ: ELA PEGOU A TINTA PARA PINTAR A PAREDE. 8ºQ: A MÔNICA ESTÁ TERMINANDO DE PINTAR A PAREDE. 9ºQ: ELA TERMINOU DE PINTAR A PAREDE. 10ºQ: O CEBOLINHA FICOU SORRINDO DA MÔNICA. 11ºQ: E O CEBOLINHA BATEU A CABEÇA NA PAREDE. Tomando, em primeiro plano, o texto escrito, percebemos, de pronto, uma certa fuga – uma “escapada” – que há na construção dos textos da PTF, especificamente por 17 O produto, texto-fim da díade, PTF (Proposta de Trabalho Finalizada), continuando as tiras da forma como consta na nota de rodapé 14. 18 Sempre que for necessário remeter o leitor às transcrições, o faremos colocando o respectivo referente 1ºQ, 2ºQ..., entre parênteses, logo após o texto correspondente. 8 se tratar de HQ. Há falta de diálogos, de balões, das onomatopeias, da recursos visuais, e o mais estranho é não existe qualquer diálogo da díade nesse sentido. A dupla parece não estar focada, embora tanto contato anterior tenha ocorrido, no objetivo de escrever conforme o gênero HQ é produzido. O texto fica edificado numa estrutura narrativodescritiva, trazendo as cenas descritas separadamente. A dupla escreve como narradorobservador, situação vista no uso constante da 3ª pessoa. Como os diálogos e os balões são “esquecidos”, as crianças enveredam pelo caminho de contar, descrever, narrar os fatos, levando em consideração o que as imagens assim as deixam assimilar. Na T2, é fácil notar que há um “apressamento” no sentido de antecipar o que só vai aparecer no 1º quadrinho da T3, pois não há qualquer indício, pista, na T2, que leve a díade a, primeiro, saber se o conteúdo do balde é tinta com pincel e, depois, se o Cebolinha vai pegar o balde/pintar. Exatamente da mesma forma ocorre no 1º quadrinho da T3, momento em que o escrito da dupla expõe o futuro, antes do fato acontecer, narrando a ação que será executada por Cebolinha no 2º quadrinho da mesma tira, “Ele vai conmeça a pinta a parede” (2ºQ). Outro aspecto bem interessante que é notado: trata-se da não percepção, da falta de retornar sobre, que ocorre no terceiro quadrinho da T3. Nele, embora a figura demonstre a animação e o faz-de-conta que o mundo da imaginação permite aos personagens animados, a dupla, mas uma vez, escapa algo interessante e dotado de um humor que dá força à cena: de notar que a passagem pela qual o Cebolinha entra, foi criada naquele momento, através de tinta na parede, pelo próprio personagem que tinha a intenção de “pregar algo” contra a Mônica. Os textos que remetem a esse episódio, “a Mônica esta mandando o Cebolinha para;”(4ºQ), “A Mônica bateu a cabeça na parede”(5ºQ) e “E caiu no chau”(6ºQ) (respectivamente no 3ª quadrinho da T3 e 1º da T4), nada deixam transparecer que houve a assimilação da díade para essa ocorrência, pois a narração-descritiva restringese a expor especificamente o que aquela imagem estática produz; é bem provável que as crianças estejam tentando “copiar”, “fixar”, “fotografar” as figuras no texto, e, quando tentam assim fazer, quebram a sequência semântico-narrativa, pois perdem a contextualização da história, não conseguindo fazer as “amarras” dos acontecimentos quadrinhais. É interessante que, sequer, lembraram que escrever, pelo menos, algumas onomatopeias que tão bem cairiam nos quadrinhos 3º, da T3, e nos 1º e 2º da T4. O mesma falta de captura ocorrem nos 3º e 4º quadrinhos da T4, e nos 1º e 2º da T5: as crianças não percebem que agora é a Monica que procura revidar a situação, e 9 também se utiliza do mesmo recurso que o Cebolinha havia colocado em prática: a “pintura na parede”. É evidente que a dupla se concentrou em pôr no papel “a foto” das próprias figuras, sua descrição, narrando-as. Passemos agora ao processo de escritura em ato. As crianças encontram-se em dupla, combinando e conversando sobre a história, apenas com a PT, sem lápis ou caneta, para só depois colocar no papel o que concordaram: Fragmento19: 1. Ana Beatriz FALA: Aqui ele vai começar a pintar (apontando para a T1 e T2) 2. Maria Clarice FALA: E aqui... (apontando para o 2º quadrinho da T3) 3. Ana Beatriz FALA: E aqui... ele tá... terminado de pintar (apontando para o 2º quadrinho da T3) 4. Maria Clarice FALA: E aqui ele já pintô. Ele já terminou de pintar (apontando para o 3º quadrinho da T3).... aí... 5. Ana Beatriz FALA: Aqui (apontando para o 3º quadrinho da T3), a Mônica gritando para ele não ir. Isso é uma parede (Diz isso explicando que trata-se de uma parede). 6. Maria Clarice FALA: Aí... “- Não vá Cebolinha!” (apontando para o 3º quadrinho da T3, e falando como se fosse a Mônica.) (Neste momento a díade diz que a história já terminou, inclusive pedindo a caneta para escrevê-la, mas o Professor diz que só quando acabar de combinar completamente) 7. Maria Clarice FALA: Aqui... e ela aqui bateu o rosto, caiu. (apontando para o 1º e 2º quadrinhos da T4) 8. Ana Beatriz FALA: Aqui. 9. Maria Clarice FALA: E aqui... (apontando para o 3º quadrinho da T4) 10. Ana Beatriz FALA: E aqui ela vai pegar a tinta para pintar... (apontando para o 3º quadrinho da T4) 11. Maria Clarice FALA: Pra pintar a parede. E aqui ela quase terminô, e aqui ela já terminô (apontando para o 4º quadrinho da T4) 12. Ana Beatriz FALA: Ela já terminô, daí saiu. Aqui o Cebolinha tá mangando dela. (apontando para o 2º quadrinho da T5) 13. Maria Clarice FALA: E aqui? (apontando para os 2º e 3º quadrinhos da T5) 14. Ana Beatriz FALA: Aqui o Cebolinha vai...... bater a cabeça no balde e cair. Terminamos. (Daqui em diante é o trabalho de escritura que é feito por Maria Clarice, com a ajuda de Ana Beatriz.) Logo no turno 1, notamos que já existe um certa desarmonia imagem-texto: Ana Beatriz já se antecipa à ação que vai ocorrer apenas no quadrinho seguinte da PT, indicando que o Cebolinha vai dar início ao ato de pintar, conforme acima, na análise do texto-fim. O desencontro se dá por conta que a aluna já visualizou completamente a HQ e, desta forma, consegue fazer a “previsão”, quebrando o “ritmo natural” que ocorreria se não houvesse contato dos alunos com os quadrinhos posteriores. Da forma como aconteceu na análise do texto pronto, percebemos na conversa das crianças, que elas estão muito preocupadas em expor exatamente o que as figuras/personagens transparecem. As descrições – desta vez oral – vão aparecendo e tomando conta do processo de escritura; todavia, algo ocorre, no turno 6, que quebra, rasura, a descrição-narrativa que a dupla vem trilhando e que aparece tão forte nos textos escrito/oral: é o momento em que Maria Clarice usa o recurso do discurso direto, quando ela “fala” a fala da personagem Mônica, usando a entonação adequada como se ela estivesse falando diretamente ao Cebolinha. 19 Considerando que estamos, neste trabalho, apenas com este fragmento de diálogo em foco, não iremos fazer referência ao mesmo diretamente. Sempre que houver, no corpo do texto, com por exemplo turno 1, turno 2 ..., estamos nos referindo aos turnos relativos a este único fragmento. 10 Embora esse diálogo tenha nascido e a possibilidade de uma inclusão de um balão na figura (quadrinho 3º, da T3) estivesse prestes a poder acontecer, formando uma relação mais consistente imagem-texto, a díade simplesmente apaga esse instante, não é tomada por esse momento que encontrava-se em latência e surgiu, fazendo a supressão do que foi dito por Maria Clarice, interrompendo esse dizer, transformando-o em uma fala que não foi escutada, pois não há, pela dupla, o retorno sobre ela, para fazer do texto escrito algo que foi aflorado nesta hora, no oral. Parece que as crianças estão envoltas por várias impercepções. Elas não expõem qualquer tipo de operação metalinguística que possa pôr em relevo esse “problema” de impercepção. O mesmo ocorre quando a Mônica faz o papel do Cebolinha, usando também esses recurso imaginário da “pintura” para criar uma arma tão poderosa quanto a do colega personagem, conforme pode ser verificado nos turnos 10, 11 e 12. Mesmo as alunas tendo consciência de que a pintura é feita na parede, não conseguem mostrar que essa pintura também vira personagem, ganha vida e participa da ação. Talvez a singularidade que já destacamos no campo teórico, possa dar sustentação a esse tipo de comportamento. A ação delas, naquele momento, era única, e jamais iria se repetir, demonstrando um olhar direcionado não para esse aspecto pontual da atividade, mas para as descrições-narrativas, já acima comentadas. Já no turno 12, ocorre um fato que só vai ser entendido com a devida contextualização: Ana Beatriz diz que o Cebolinha “tá mangando” da Mônica e isso não consta na PTF, no escrito; o fato é que no momento de colocar a palavra escrita no papel – situação que não faz parte do Fragmento, pois fora ocorrido em momento distinto –, Maria Clarice rasura a fala de Ana Beatriz e diz “sorrindo” (no lugar de “mangando”), sugestão aceita por esta, ocasião em que utiliza a substituição na própria oralidade e também sugere “sorrindo”. Provavelmente alguns discursos do ambiente da sala de aula, como a normatividade da língua, a gramática prescritiva, ou até mesmo o “não se diz X, mas Y”, tenha sido primordial nesse momento de reformulação e rasura, e tenha tido um forte impacto em ambas ao decidirem por substituir o “errado” pelo “certo”, pois, no texto formal, a palavra “sorrido” certamente – e esse preconceito já paira a escola desde o maternal – tem mais prestígio do que “mangando”. Nos turnos 13 e 14 também acontece algo semelhante – note-se que Ana Beatriz diz que o Cebolinha bate a cabeça no “balde” (último quadrinho da história), e isso não está lá no texto escrito, o que ali existe é a impressão de que cabeça dele “bateu na parede”: isso é também explicado na hora que colocam o texto escrito no papel, posto 11 que, neste momento, simplesmente há um apagamento da palavra “balde”. Nenhuma das crianças percebe essa não-retomada desse termo e esquecem totalmente dele, suprimindo-o e executando a devida substituição. Ao final da história, vemos outro ponto de não percepção/relação texto-imagem da dupla. A díade termina a escrita, a discussão, e não se atém de que não houve batida da cabeça do Cebolinha na parede (ou no balde como propõem na oralidade), não consegue absorver que a tinta na parede transformou-se em algo que deixou de ser tinta para ganhar impulso imaginativo. Acerca do título, “O CEBOLINHA TRAPALHADO”, é bem certo que, outra vez, as autoras levaram em consideração apenas o último quadrinho da história juntamente com as peripécias criadas pelo Cebolinha que culminou em toda confusão da PT. Embora não apareça no Fragmento supra, pois ocorrera em outro momento da filmagem, a “discussão” sobre como elaborar o melhor título foi bem tranqüila: Maria Clarice fala “O... O Cebolinha” e Ana Beatriz completa: “trapalhado!”. Como notamos na PT, não há “atrapalho” algum do personagem que pudesse vir a fomentar o título escolhido, o que nos leva a crer que, provavelmente, considerando que a dupla já lera outras QH da turminha, esse termo já tenha sido cunhado a esse personagem ou ele tenha “atrapalhado” ou “se atrapalhado” nas aventuras, o que fez um retorno à cadeia sintagmática em latência, vindo à tona o título em questão. O trabalho é concluído, as crianças põem o lápis a funcionar e constroem o que imaginaram e conversaram. Talvez se houvesse mais discordância do que concordância entre Maria Clarice e Ana Beatriz, as características dos diálogos, sons, onomatopeias, balões, humor, específicos das HQ ganhassem mais força e evidência, transformando as descrições-narrativas feitas pelas alunas em verdadeiro contexto interativo de personagem, com as mais (des)harmoniosas relações que há entre aquele que escreve, a língua e o sentido. CONSIDERAÇÕES FINAIS Estabelecer essa complexa relação em que figura sujeito, língua e sentido, especificamente nas análises de produtos de produção de HQ, especialmente quando se trata de processo de escritura em ato, e o que está em jogo não é apenas o que os alunos escreveram, mas como, por quê, quais motivos, de que forma as discussões foram 12 usadas, para que o escrito fosse concluído daquela forma, como percebemos, não se trata de algo simples, tampouco fácil. Os aparatos teóricos, muitas vezes, andam por metodologias divergentes das que aqui propomos, e isso faz com que nosso caminhar siga, em alguns momentos, por lugares “desconhecidos”, pelos quais é preciso adentrar e destrinchar as barreiras que o processo faz nascer – talvez essa seja a parte mais angustiante da tarefa. Vimos que a relação imagem/texto buscada pelas crianças, atravessa uma perspectiva que, em certos momentos, demonstra um não-encontro da conversa/fala/diálogo, da díade, com o texto que foi produzido a partir dos quadrinhos. Isso prova que, embora sejam conhecidas como um gênero “fácil”, as HQ são dotadas de uma complexidade tamanha, pois os gibis, por si só, não formulam uma “pedagogia de simplicidade” para a produção textual, ao contrário, é um gênero altamente complicado de conseguir um desenvolvimento adequado na sala de aula. O certo é que, em inúmeros ambientes de Ensino Fundamental de nosso país, circula o discurso do “leva quadrinhos que é fácil”, porém, além do despreparo de alguns docentes para trabalhar esse tipo de texto, notamos, como aqui ficou demonstrado, que os próprios alunos, mesmo com uma boa orientação, enveredam por lugares que se tornam imprevisíveis e, quando essa produção é em díade, a complexidade é mais consistente ainda. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABAURRE, Maria Bernadete, FIAD, Raquel, MAYRINK-SABINSON, Maria Laura (Orgs.). Cenas de aquisição da escrita: o sujeito e o trabalho com o texto. Campinas: Associação de Leitura do Brasil (ALB), Mercado de Letras, 1997. CALIL, Eduardo.” Os efeitos da intervenção do professor no texto do aluno”. In: MOURA, Denilda (org). Língua e Ensino: dimensões heterogêneas. Maceió: EDUFAL, 2000. CALIL, Eduardo & FELIPETO, Sonia C. Sobre os mecanismos lingüísticos subjacentes ao gesto de rasurar. In. Gelne. 2000. _________. 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