O BEIJO NO ASFALTO Nelson Rodrigues http://www.colegioguarulhos.com.br/obras/O_Beijo_no_Asfalto__Nelson_Rodrigues.pdf CARACTERÍSTICAS LITERÁRIAS DO AUTOR Nelson Rodrigues nasceu em Pernambuco (1912), mudando- se com cinco anos para o Estado do Rio de Janeiro, onde o pai fundou um jornal. Aos 13 anos, já trabalhava na redação, encarregado das páginas policiais. Algumas tragédias pessoais marcariam sua vida, contribuindo para o gosto pelo gênero: Perdeu um irmão, assassinado dentro da própria redação do jornal; o pai morreu pouco depois, de desgosto. Em virtude da posição política, o jornal foi invadido e suas máquinas, todas destruídas. De repente, na miséria, Nelson e um irmão contraíram tuberculose e tiveram de refugiar-se em Campos do Jordão, onde morreu o segundo irmão. De volta ao Rio, então capital federal, Nelson passou a escrever para teatro e jornais, conseguindo, aos poucos, firmarse e viver com dignidade do trabalho de escritor. DADOS BIOGRÁFICOS DO AUTOR O autor é um marco divisório na dramaturgia brasileira. Sua produção estende-se de 1939 (A Mulher sem Pecado) até 1979 (A Serpente). Como a dramaturgia segue caminho próprio, mais ou menos independente da poesia e da prosa, não se pode, simplesmente, enquadrá-la nos tempos do Modernismo brasileiro. Os anos dourados (anos 50 do século XX) foram cenário para a sua obra. A burguesia brasileira, principalmente nos dois grandes centros, Rio e São Paulo, vivia uma grande festa, com as naturais picuinhas políticas. Havia grande valorização para a fachada: aparente tranquilidade, religiosidade, segurança e falsa estrutura familiar sólida. Basicamente contra isso o autor se levantou, querendo desmascarar a sociedade, uma espécie de anjo vingador. DADOS BIOGRÁFICOS DO AUTOR Nelson Rodrigues classificou seu livro como tragédia carioca em três atos. Tragédia é um gênero dramático antigo, que tem como característica um final doloroso. Inicia-se, em geral, com a prática de um ato vil por parte do herói; seguem-se dor, sofrimento e busca da causa para isso; para haver recomposição da vida anterior, vem o castigo, a morte. O teatro moderno não segue esses aspectos na íntegra, mas assemelha-se à antiga forma. Em O Beijo no Asfalto, o herói é Arandir (Mau Tempo). Ele comete um ato vergonhoso ao quebrar um tabu da sociedade burguesa: beija, na boca, um homem que fora atropelado, não se esclarecendo por quê. O oportunismo de um repórter inescrupuloso faz o DADOS BIOGRÁFICOS DO AUTOR Finalmente, ele é assassinado pelo sogro, por ciúmes — motivo que os outros, provavelmente, jamais saberão. Nelson Rodrigues trabalha mais as revelações decorrentes do ato vergonhoso do seu herói. As atitudes da mulher (Selminha) denunciam não ser tão profundo seu amor pelo marido quanto ela proclamava. A cunhada (Dália)é apaixonada por Arandir . O sogro (Aprígio) é homossexual e também nutre uma paixão por Arandir. Isso reforça a ideia de que a família toda, direta ou indiretamente, participa do ato delituoso. O leitor está diante de uma peça dramática, destinada, portanto, à representação. Só assim pode compreender a forma como é apresentada. Deve lembrar-se que ela se destina a público mediano em termos de conhecimento e cultura, para acatar a miniloquência do texto. Precisa estar, também, previamente instruído sobre o gosto pelo grotesco da parte do autor, que desenvolve situações e personagens que beiram ao surrealismo e não pode ser ingênuo a ponto de não os considerar possíveis. ANÁLISE DA OBRA O BEIJO NO ASFALTO Rudimentos de psicologia — pelo menos as concepções freudianas — podem ser úteis ao leitor / espectador para melhor entender a obra de Nelson Rodrigues. Alie-se a tudo isso a conturbada biografia do Anjo Pornográfico e entende-se melhor sua obra. Como tragédia, pretende, se não mudar as atitudes, ao menos chamar a atenção para falhas profundas, chagas horrendas que a sociedade hipócrita prefere não ver. CARACTERÍSTICAS DA OBRA Busca de novas formas para o teatro nacional pobre, que se limitava a copiar e representar obras europeias. Levantamento de temas desagradáveis que, em geral, chocavam a sociedade burguesa. Crítica às instituições e aos valores burgueses. Fixação pela sexualidade, numa visão bastante freudiana do tema. Obsessão pela morte, que o perseguiu sempre e se manifesta como solução em muitas de suas obras. Imagens “caricaturas” dos personagens, tornando-os, muitas vezes, grotescos. Frases curtas, reticentes, incompletas por epresentarem diálogos. Elas são feitas para serem ouvidas e não lidas. PERSONAGENS Arandir — jovem funcionário de repartição, recém-casado, ingênuo e aparentemente bondoso. Aprígio — sogro de Arandir e viúvo. Amado Ribeiro — jornalista inescrupuloso e oportunista, ávido por manchetes retumbantes, ainda que forjadas. Cunha — delegado violento e estúpido, dominado pelo repórter. Selminha — mulher de Arandir, ingênua e insegura. Dália — irmã mais jovem de Selminha, apaixonada pelo cunhado. ENREDO Tudo começa quando Amado Ribeiro assiste a uma cena inusitada na rua: um rapaz (Arandir) corre até um homem caído junto ao meio-fio e beija-o na boca. Amado vê aí a oportunidade de um artigo sensacionalista para o seu jornal. Dirige-se à delegacia e convence o delegado a interrogar o autor do beijo. Ele pretende transformar o episódio em algo que venda seu jornal. Aliado ao chefe de polícia, força o rapaz a um interrogatório e publica foto e noticiário escandaloso sobre ele. Arandir é humilhado no serviço. Sua mulher, sequestrada pelo delegado, que a interroga e a deixa nua. Os vizinhos se voltam contra Arandir. ENREDO Apavorado, ele foge e esconde-se num hotel. Paralelamente, ocorre a desestruturação da família. Diante das notícias e dos boatos, até os familiares de Arandir começam a acreditar na versão da imprensa. Forçado por Selminha, seu pai, Aprígio, procura o repórter e o encontra bêbado. A filha acusa o pai de não gostar do genro. Arandir revela seu paradeiro à mulher e quer que ela vá ao seu encontro. Esta, envergonhada dele, nega-se a ir. Sua irmã, Dália, no entanto, vai até onde está o cunhado, declara seu amor e decide ficar com ele. Surge o sogro, Aprígio, que expulsa a filha e também se declara apaixonado pelo genro, confessando ter ficado morto de ciúmes por vê-lo beijar outro homem. (Arandir alegara desde o início que só fizera aquilo porque o moribundo lhe pedira e se sentira na obrigação de atender ao seu último pedido...) Desvairado, Aprígio atira no genro e o mata. ESPAÇO A identificação do espaço não tem qualquer importância na história. As ações se passam no Rio de Janeiro, cenário comum das suas obras. Nomes de locais são citados (Praça da Bandeira), mas sem qualquer ênfase à cor local. O que importa são os espaços da peça colocados no palco: a delegacia, a casa de Arandir, a casa da Boca do Mato, que são iluminados sucessivamente, criando a sensação de deslocamento, técnica revolucionária para a época. AÇÃO Um dos pontos altos do teatro de Nelson é a ação movimentada, às vezes, até exagerada. Os diálogos são tensos, entrecortados e os personagens agitados, atingindo quase o histerismo. Nas recomendações aos atores — colocadas entre parênteses no texto — são comuns termos como urrando, agarrando, ofegante, sôfrego, que bem demonstram a intensidade da ação. Predomina a ação linear, sequencial dos fatos. TEMPO Numa história de ação linear, o tempo é cronológico. Diante do espectador desenrolam-se as ações decorrentes do gesto de Arandir, que se vão tornando cada vez mais tensas, até culminar com seu assassinato. LINGUAGEM O leitor, como já se afirmou, choca-se com a linguagem destinada à representação — que ele, quando lê, às vezes, esquece. Os diálogos são curtos, reticentes. Proliferam as frases incompletas, próprias da comunicação coloquial. O discurso é direto, como convém à obra dramática moderna. Apesar de, às vezes, violenta, mais pela ação do que pelos termos empregados, não é escatológica, não há palavrões. O máximo que se encontra vem do delegado Cunha, quando diz: “ Ai, meu cacete! ou Gilete! Barca da Cantareira!” Já as frases curtas, entrecortadas, emprestam velocidade e ação ao texto. Uma ou outra vez, algum clichê, ao que parece usado de forma irônica e consciente. TEMAS O tema principal do livro é o poder da imprensa, quando um repórter forja uma história que leva a consequências trágicas. Poderia ser, também, uma acusação contra a leviandade humana, mostrando que o homem (Aprígio, Selminha, os colegas de serviço) se deixa levar pelas aparências. Mesmo sem provas, passa a duvidar dos outros e condená-los. Existe, ainda, um alerta contra o preconceito, especialmente de ordem sexual: o burguês não aceita a homossexualidade, mesmo quando, no íntimo, deseja-a (Aprígio). Pode ser visto também como um libelo contra as arbitrariedades cometidas pelas autoridades — arrogantes, prepotentes, amorais e imorais. Não seria demasiado afirmar que um dos temas centrais é o sexo ou a sexualidade conduzindo as ações humanas, pois o comportamento de todos os personagens está ligado a ele: do repórter, do delegado, de Aprígio, de Dália... FRAGMENTO DA OBRA O BEIJO NO ASFALTO Primeiro ato (Distrito Policial, corresponde à praça da Bandeira. Sala do delegado Cunha. Este, em mangas de camisa, os suspensórios arriados, com um escandaloso revólver na cintura. Entra o detetive Aruba.) ARUBA (sôfrego e exultante) — O Amado Ribeiro está lá embaixo! (Cunha, que estava sentado, dá um pulo. Faz a volta da mesa.) CUNHA— Lá embaixo? ARUBA— Com o comissário. Disse que. CUNHA (agarrando o detetive) — Arubinha, olha. Você vai dizer a esse moleque! ARUBA — Está com fotógrafo e tudo! CUNHA — Diz a ele, ouviu? Que se ele. Porque ele não me conhece, esse cachorro! (Amado Ribeiro aparece. Chapéu na cabeça. Tem toda a aparência de um cafajeste dionisíaco.) FRAGMENTO DA OBRA AMADO (abrindo o gesto) — O famoso Cunha! CUNHA (quase chorando de ódio, e, ainda assim, deslumbrado com o descaro do outro) — Você? AMADO — Eu. CUNHA (furioso) — Retire-se! AMADO — Cunha, um momento! Escuta! CUNHA (apoplético) — Saia! AMADO — Tenho uma bomba pra ti! Uma bomba! ARUBA (quer puxar Amado pelo braço) — Vem, Amado! AMADO (desprendendo-se num repelão) — Tira a mão! CUNHA (arquejante de indignação) — Escuta aqui. Ou será que você. (fala aos arrancos) Então, você me espinafra! AMADO (com cínico bom humor) — Ouve, Cunha! CUNHA — Me espinafra pelo jornal. E ainda tem a coragem! FRAGMENTO DA OBRA AMADO — Com licença! CUNHA (num berro) — Não dou licença nenhuma! (muda de tom) Estou besta, besta! Com o teu caradurismo! Tem a coragem de pôr os pés no meu gabinete! Eu devia, escuta. Devia, bom! (quase chorando) Por tua causa, o chefe me chamou! AMADO — Cunha, deixe eu falar! CUNHA — O chefe me disse o que não se diz a um cachorro! Na mesa dele, na mesa, estava a tua reportagem. O recorte da tua reportagem! AMADO — Cunha, tenho uma bomba! CUNHA (sem ouvi-lo) — De mais a mais, você sabe, Amado. O Aruba também sabe. Aquilo que você escreveu é mentira! AMADO — Ó Cunha, sossega! O que é que há? CUNHA (num crescendo) — Mentira,sim, senhor! mentira! Eu não dei um chute na barriga da mulher! Mentira! É mentira! Dei um tapa! Um tabefe! Assim. O Aruba viu. Não foi um tapa? ARUBA (gravemente) — Um tapa! FRAGMENTO DA OBRA CUNHA (triunfante) — Um tapa. Ela abortou, não sei por quê. Azar. Agora o que eu não admito. Não admito, fica sabendo. Que eu seja esculachado, que receba um esculacho por causa de um moleque, de um patife como você! Patife! AMADO (com triunfal descaso) — Eu não me ofendo! CUNHA (desesperado com o cinismo) — Pois se ofenda! AMADO — Acabou? CUNHA (num derradeiro espasmo) — Amado Ribeiro, escuta. Eu tenho uma filha. Uma filha noiva. Agradeça à minha filha, eu não te dar um tiro na cara. FRAGMENTO DA OBRA AMADO (pela primeira vez violento) — Deixa de ser burro, Cunha! (Cunha desmorona-se em cima da cadeira. Passa o lenço no suor abundante. Arqueja.) CUNHA (ofegante, quase sem voz) — Suma! AMADO (subitamente dono da situação) — Quem vai sair é o Aruba! ARUBA (pulando) — Você é besta! CUNHA (resmungando) — Não admito... AMADO (para o Cunha) — Manda ele cair fora! (para o detetive) Vai,vai! Desinfeta! ARUBA (para o cara) — Quem é você, seu! CUNHA (incoerente, berrando) — Desinfeta! ARUBA (desorientado) — Mas doutor! CUNHA (histérico) — Fora, daqui! (Aruba sai.) AMADO (exultante, puxando a cadeira) — Vamos nós. CUNHA — Não quero conversa. FRAGMENTO DA OBRA AMADO — Senta... (Cunha obedece, sem consciência da própria docilidade.) AMADO (na sua euforia profissional) — Cunha, escuta. Vi um caso agora. AIi, na Bandeira. Um caso que. Cunha, ouve. Esse caso pode ser a tua salvação! CUNHA (num lamento) — Estou mais sujo do que pau de galinheiro! AMADO (incisivo e jocundo) — Porque você é uma besta, Cunha. Você é o delegado mais burro do Rio de Janeiro. (Cunha ergue-se.) CUNHA (entre ameaçador e suplicante) — Não pense que. Você não se ofende, mas eu me ofendo. AMADO (jocundo) — Senta! (Cunha obedece novamente.) CUNHA (com um esgar de choro) — Te dou um tiro! AMADO — Você não é de nada. Então, dá. Dá! Quedê? CUNHA — Qual é o caso?