Revista da ISSN 0102-1788 VOL 28 n. 56 Jan./Jun. 2013 NESTA CASA ESTUDA-SE O DESTINO DO BRASIL REVISTA DA ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA (Editada desde 1983) v. 28 n. 56 1º Semestre 2013 Rio de Janeiro, 2013 Revista da Escola Superior de Guerra. — v. 28, n. 56 (jan./jun.) 2013 – Rio de Janeiro: ESG, 2013. Semestral ISSN 0102-1788 1. Ciência Militar - Periódicos. 2. Política - Periódicos. I. Escola Superior de Guerra (Brasil). II. Título. CDD 320.981 Revista da Escola Superior de Guerra A Revista é uma publicação semestral da ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA, do Rio de Janeiro. Com tiragem de 1.000 exemplares, circula em âmbito nacional e internacional. Comandante Almirante de Esquadra Eduardo Bacellar Leal Ferreira Subcomandante Major Brigadeiro do Ar Stefan Egon Grazca Diretor do Centro de Estudos Estratégicos General de Brigada R/1 José Eustáquio Nogueira Guimarães Membros do Conselho Professor Doutor Jorge Calvário dos Santos Doutorando José Cimar Rodrigues Pinto Professora Doutoranda Jaqueline Santos Barradas Professora Doutora Maria Celia Barbosa Reis da Silva Professor Doutor Fernando da Silva Rodrigues Editor Científico Professor Doutor Jorge Calvário dos Santos Editor Executivo Professora Doutoranda Jaqueline Santos Barradas Professora Doutora Maria Celia Barbosa Reis da Silva Revisão Editorial Professora Doutora Maria Celia Barbosa Reis da Silva Jornalista Maria da Glória Chaves de Melo Revisão de Língua Inglesa Professora Doutora Rejane Pinto Costa Revisão de Língua Espanhola Zulmira Basílio Costa de Araújo Diagramação e Arte Final Anério Ferreira Matos Projeto, Produção Gráfica e Impressão Gráfica da Escola Superior de Guerra Os artigos publicados pela revista são de exclusiva responsabilidade de seus autores, não expressam, portanto, o pensamento da Escola Superior de Guerra. SUMÁRIO Editorial 5 É Evitável o Incêndio da Biblioteca da Floresta? 7 Is The Fire in the Forest Library Avoidable? ¿Se Puede Evitar El Incendio En La Biblioteca Del Bosque? Ennio Candotti The State In Africa – Whose Is It? 19 Herbert Ekwe-Ekwe Perspectivas Futuras da Hegemonia Mundial em Função da Crise Econômica 34 World Hegemony Future Perspectives Depending On Economic Crisis Perspectivas Futuras del Hegemonía Mundial Dependiendo de la Crisis Económica Luiz Alfredo Salomão Ação, Exceção e Estado 60 Action, Exception and State Acción, Excepción y Estado Rachel Silva da Rocha Coutinho, Victor Leandro Chaves Gomes e Frederico Carlos De Sá Costa A Onu e A Privatização da Violência: A Utilização de Empresas Militares Privadas em Missões de Paz 72 Un And Privatization Of Violence: The Use Of Military Companies In Peace Missions La Onu Y La Privatización De La Violencia: La Utilización De Empresas Militares Privadas En Misiones De Paz Cristiano Mendes e Cristopher Mendonça Revista da Escola Superior de Guerra Rio de Janeiro V. 28 n. 56 p. 1-166 jan./jun. 2013 Tratamento de Crimes Ambientais pelo Tribunal Penal Internacional 89 Environmental Crimes Treatment by the International Criminal Court Tratamiento de los Crímenes Ambientales por la Corte Penal In-Ternacional Alexandre da Costa Pereira e Thiago Oliveira Moreira O Brasil e as Alternativas para o Incremento da Cooperação em Segurança e Defesa Na Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (Zopacas) 110 Brazil and Alternatives for Increasing Security and Defense Cooperation in the Peace and Cooperation Zone Within the South Atlantic (Zopacas) Brasil y las Alternativas para Aumentar la Cooperación en Seguridad y Defensa de Zona de Paz y Cooperación del Atlántico Sur (Zopacas) Carlos Alberto Moutinho Vaz e Eduardo Xavier Ferreira Glaser Migon Nelson Werneck Sodré e o Desenvolvimento Brasileiro 132 Nelson Werneck Sodré and The Brazilian Development Nelson Werneck Sodré y el Desarrollo Brasileño Alex Conceição Vasconcelos da Silva Vocação Modernizadora do Exército Brasileiro 148 The Modernizing Calling of the Brazilian Army Vocación Modernizadora del Ejército Brasileño Luiz Rogério Franco Goldoni Normas para Submissão de Artigos para as Revistas da Esg 164 Editorial Nove textos compõem o número 56 da Revista da Escola Superior de Guerra: um ensaio e oito artigos. Textos com perfis diferentes, mas que dialogam com a linha editorial deste periódico semestral. O ensaio É evitável o incêndio da biblioteca da floresta?, de Ennio Candotti, versa sobre a importância de que atores da Amazônia, como os ribeirinhos, participem tanto do monitoramento do clima quanto do movimento de pessoas e animais e do trânsito das mercadorias pelos rios. Como conhecedores da floresta, eles podem auxiliar na coleta de material para pesquisa (sementes, resinas e amostras de fauna e flora) e colaborar nas etapas na construção dos conhecimentos no campo e nos laboratórios dos centros de ciência e tecnologia. Ennio refere-se ao acervo natural da Amazônia como uma biblioteca da floresta em que estão registrados segredos e tesouros do conhecimento que aguardam ser decifrados. Cabe ao Estado e aos brasileiros a manutenção dos “livros” dessa floresta a salvo de qualquer ação depredadora. O segundo artigo The state in Africa – whose is it?, escrito em língua inglesa pelo nigeriano Herbert Ekwe-Ekwe, aborda a diversidade dos países que compõem o continente africano. O texto do cientista político e historiador apresenta uma realidade impressionante e instigante de uma África que ainda não descobriu o grande potencial natural existente – alvo de cobiça alheia. Ekwe-Ekwe enfatiza que o grande desafio da África é conseguir construir estados democráticos capazes de transformar as riquezas existentes em qualidade de vida para os africanos. Segundo o autor, armas e conflitos armados, patrocinados por estrangeiros, determinam o quadro contemporâneo desse território de seres sofridos, incapazes de reverter o trágico contexto atual. Seguem-se quatro artigos que versam acerca de assuntos variados pertinentes ao cenário internacional. Em Perspectivas futuras da hegemonia mundial em função da crise econômica, o autor, Luiz Alfredo Salomão, analisa a estagnação do poder científico-tecnológico e militar em função da crise econômica deflagrada na primeira década deste século. Salomão atesta que apesar de os países membros do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) emergirem no contexto mundial, essa ascensão não chega a alterar o equilíbrio vigente desde a Segunda Guerra Mundial. Segundo o articulista, os únicos abalos dessa ordem foram a queda da União Soviética e o surgimento da Federação Russa. O texto Ação, exceção e Estado, assinado por Rachel Silva da Rocha Coutinho, Victor Leandro Chaves Gomes e Frederico Carlos de Sá Costa, abre uma discussão, iluminada pelas reflexões dos pensadores Nicolau Maquiavel e Carl Schimtt, a respeito de questões ligadas ao Estado-Nação em um mundo de fronteiras cada vez mais fluidas. Os autores deixam ao leitor uma questão incômoda: ações de manutenção do Estado implicam a existência de um ator com poderes absolutos? A ONU e a privatização da violência: a utilização de empresas militares privadas em missões de paz, de Cristiano Mendes e Cristopher Mendonça, discorre sobre a 5 constante contratação de Empresas Militares Privadas (EMPs), após a Guerra Fria, para atuar em operações militares e humanitárias em qualquer parte do mundo. Destacam o papel, desempenhado pela ONU, na utilização e no monitoramento dessas EMPs em Missões de Paz desde a década de 1960. Os autores põem em pauta os pontos negativos e positivos observados na atuação dessas missões. Um tema urgente no mundo hodierno é tratado no artigo Tratamento de crimes ambientais pelo Tribunal Penal Ambiental, de Alexandre da Costa Pereira e Thiago Oliveira Moreira. Os autores propõem que os crimes ambientais sejam equiparados a crimes contra a humanidade e, portanto, passem para a competência do Tribunal Penal Internacional, já que se constituem em genocídio, tipificado no Tratado de Roma. Argumentos evidentes levantados por alguns estudiosos já cogitaram sobre a equiparação do “Ecocídio” aos crimes de guerra. Mais três artigos cujos temas enfocam o Brasil completam este fascículo. O Brasil e as alternativas para o incremento da cooperação em segurança e defesa na Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZOPACAS), rubricado por Carlos Alberto Moutinho Vaz e Eduardo Xavier Ferreira Glaser Migon, debate sobre a ação militar brasileira no âmbito da ZOPACAS, com vistas a vislumbrar atalhos para o estabelecimento e o aumento de iniciativas de cooperação em Segurança & Defesa entre os países-membros desse espaço geopolítico e geoestratégico. O horizonte de eixos de cooperação e pesquisa compreende o salvamento e o resgate no mar, a vigilância marítima e as operações de paz, conforme o relato dos autores em sintonia com o exposto pelo Ministro da Defesa brasileiro na VII Reunião Interministerial da Zona, em janeiro de 2013. O artigo intitulado Nelson Werneck Sodré e o desenvolvimento brasileiro, de Alex Conceição Vasconcelos da Silva, apresenta uma análise da obra do professor e escritor que advogou pela mudança nas estruturas políticas, sociais e econômicas do Brasil. Werneck defende, em sua produção literária, duas acepções dialéticas do encontro entre o “novo” e o “velho” – “a primeira indicava a ‘Revolução Brasileira’ e a segunda, as forças da tradição: o latifúndio e o imperialismo.” O último artigo Vocação modernizadora do Exército brasileiro, de Luiz Rogério Franco Goldoni, arrazoa sobre a trajetória do Exército brasileiro, desde a Primeira República, rumo à modernização. Menciona os obstáculos encontrados em decorrência ao atraso econômico, científico e industrial do país. Consoante Goldoni, “o ganho de autonomia defensiva estaria condicionado à importação de equipamentos militares e a contratação de uma missão de ensino estrangeira.” Já interessadas no mercado brasileiro, potências econômicas e bélicas tentavam atender aos anseios da corporação armada. A Missão Militar Francesa, após uma contenda de cerca de dez anos com outros países concorrentes, ganha a incumbência de estimular a modernização e o aperfeiçoamento profissional do Exército brasileiro. Os artigos aqui reunidos visam agregar conhecimentos, procedentes de fontes variadas, e ensejar pesquisadores a participarem do debate sobre Relações Internacionais, Ciência Política e outras disciplinas afinadas à Defesa. 6 É Evitável o Incêndio da Biblioteca da Floresta? É EVITÁVEL O INCÊNDIO DA BIBLIOTECA DA FLORESTA? Ennio Candotti* RESUMO A floresta Amazônica é uma imensa ‘biblioteca’ em que estão registrados segredos e tesouros da natureza. Devemos impedir que ela seja incendiada. Como? Os ribeirinhos, que habitam as margens de rios e igarapés, são parte do problema ou da solução dos desafios do desenvolvimento da região? Como defender o patrimônio genético registrados nos ‘livros’ da floresta sem antes decifrá-los? Estão previstos investimentos de cerca de 200 bilhões em mineração, hidrelétricas e obras de infra estrutura na região para os próximos anos. Com eles o baixo IDH da Amazônia melhorará? O grande desafio será articular a indústria o conhecimento e a defesa. Encontraremos o espírito público necessário para vencer esta batalha? Is the fire in the forest library avoidable? ABSTRACT The Amazon forest is a big ‘library’ where secrets and treasures of the nature are registered. We must prevent it from being burned. How? Are ribeirinhos, those who inhabit the banks of rivers and creeks, part of the problem or the solution to the challenges of the region development? How to defend the genetic heritage recorded in the ‘books’ of the forest without deciphering them before? Investments of about 200 billion in mining, hydropower and infrastructure works in the region are expected for the next years. Will the low Amazon HDI improve with them? The big challenge will be to articulate industry, knowledge and defense. Will we meet the need public spirit to win this battle? ¿Es prevenible fuego la biblioteca del bosque? RESUMEN La selva amazónica es un gran “biblioteca” en la que los secretos y tesoros de la naturaleza registrado. Debemos evitar que se queme. ¿Cómo? Ribereña, que habitan en las riberas de los ríos y quebradas son parte del problema o de la solución * Fisico, brasileiro naturalizado, formado pela USP em 1964, estudou e realizou estágios de pesquisa nas Universidades de Pisa, Muenchen e Nápoles (1965-1973). Professor da UFRJ (1974-96), UFES (19972008), Universidade do Estado do Amazonas UEA de 2009-2012, UFAM (2014- ). Diretor do Museu da Amazônia Musa (2008- ). Um dos editores da Revista Ciência Hoje (1982-1997), Presidente da SBPC (1989-1993 e 2003-2007). Premio Kalinga-Unesco de Divulgação Científica 1999. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 7-18, jan./jun. 2013 7 Ennio Candotti a los desafíos del desarrollo en la región? ¿Cómo defender el patrimonio genético registrado en los “libros” de la selva sin descifrar antes de ellos? Las inversiones de alrededor de 200 millones de dólares en minería, hidroeléctricas y obras de infraestructura en la región para los próximos años son. Con éstos, el bajo IDH Amazon mejorará? El gran desafío será el de articular el conocimiento de la industria y la promoción. ¿Vamos a cumplir con el espíritu público necesario para ganar esta batalla? 1 DE RIBEIRINHOS E HIDROAVIÕES Os ribeirinhos, que se encontram às margens de rios e igarapés em toda a Amazônia, são parte do problema ou da solução da questão da defesa, da produção de conhecimentos científicos de botânica e zoologia, da conservação ambiental e do desenvolvimento econômico e social da região? Se a resposta for que eles são parte do problema, deve-se pensar em removê-los para núcleos urbanos e oferecer a eles oportunidades de trabalho, educação, moradia e cuidados de saúde, direitos da cidadania. Se a resposta for que são parte da solução, uma vez que é dever do Estado estar presente em todo o território nacional, eles são muito importantes para monitorar o movimento de pessoas e animais e o trânsito das mercadorias pelos rios, apoiar como guias e conhecedores da floresta a coleta de material para pesquisa (sementes, resinas e amostras de fauna e flora) e colaborar nas diferentes etapas na construção dos conhecimentos no campo e nos laboratórios dos centros de ciência e tecnologia. Podem, também, colaborar com os trabalhos de monitoramento do clima, da fauna, da flora e do nível e velocidade das águas. Adequadamente treinados, poderiam participar, quando necessário, de ações de defesa do território. O Vietnam foi um exemplo de como os ribeirinhos dos rios e igarapés das florestas tropicais ofereceram decisivo apoio ao exército vietnamita que derrotou, em 1972, o exército de ocupação dos Estados Unidos. Neste caso, deve-se valorizar a presença dos nativos ao longo dos rios, reconhecer seus direitos de possse das terras tradicionalmente ocupadas (ALMEIDA, 2008), e observar com maior atenção as soluções técnicas e de organização social que eles encontraram para trabalhar, se alimentar, plantar, pescar, construir casas, fabricar barcos e canoas, cuidar mesmo que precariamente da saúde e da educação dos filhos, além de oferecer apoio a viajantes e embarcações que transitam pelos rios. É necessário pensar e contribuir para implementar uma política específica de apoio a essas comunidades. Os instrumentos e diretrizes usuais de assistência e serviços públicos não têm funcionado. Como aliás não têm funcionado também para as vilas e aglomerados urbanos do interior (um Sedex enviado de São Gabriel 8 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 7-18, jan./jun. 2013 É Evitável o Incêndio da Biblioteca da Floresta? da Cachoeira para Manaus leva de 8 a 15 dias para chegar, são raros, nas cidades do interior, os postos de gasolina certificados, os foros de justiça etc.). O meio mais eficiente para prover uma assistência regular para essas comunidades é por meio de hidroaviões. Há, porém, pouco mais de uma dezena os hidroaviões que operam na região. Seria interessante conhecer as razões que impedem seu amplo uso. Solução simples, adotada, por exemplo, em condições ambientais mais severas do que as Amazônicas para assitência às comunidades das áreas dos grandes lagos do Canadá. Enquanto aguardam a adoção de um sistema de transporte e comunicação rápido, centenas de milhares de ribeirinhos podem contar apenas com a visita irregular dos barcos de assistência e comércio, raros e lentos no percurso das tortuosas hidrovias. 2 O INCÊNDIO DA ‘BIBLIOTECA’ Nos últimos anos, na Amazônia, tem-se investido nos Institutos de Ciência e Tecnologia - C&T, renovaram-se os equipamentos dos laboratórios e acelerou-se a formação de recursos humanos. Falta, no entanto, definir um foco, uma prioridade na qual concentrar as forças científicas, de indústria e defesa para alcançar resultados em áreas estratégicas e criar competências do mais elevado nível, segundo padrões nacionais e internacionais, definindo tempos e modos para atingi-los. A floresta é uma imensa ‘biblioteca’ em que estão registrados segredos e tesouros do conhecimento que aguardam ser decifrados. A conservação dessa biblioteca, impedir que ela seja incendiada, depende da demonstração pública e reconhecida por todos, que o hectare de floresta com sua vida e segredos, com as árvores em pé, tem valor de mercado maior do que o hectare de terra desmatada, cultivada com soja, cana ou utilizada para o pasto de duas cabeças de gado. Isso é evidente para quem teve a oportunidade de aprender a ler e interpretar alguns dos códigos inscritos nos livros desta ‘biblioteca’, mas obviamente não é evidente para quem desmata e ocupa a terra com plantios e gado. No dia em que se demonstrar o valor científico e de mercado da ‘biblioteca’ ninguém mais a desmatará. A repressão aos desmatadores e o controle armado da integridade da floresta, por sua extensão e condições operacionais não conseguem protegê-la, o valor de mercado da terra desmatada (e os créditos bancários associados) comanda, é a ele que se deve combater. Surge, então, a pergunta: por onde começar, qual seria o foco, quais são os segredos da ‘biblioteca’ que mais interessam e poderiam interessar ao mercado? Acredita-se que os mais importantes estão nas plantas e no micromundo de microrganismos, fungos, toxinas, enzimas, que degradam folhas e árvores caídas e os transformam nos nutrientes que alimentam a exuberância da floresta. Uma floresta que em sua maior extensão ocupa solos pobres. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 7-18, jan./jun. 2013 9 Ennio Candotti Que microrganismos são esses? Quais são as toxinas, os fungos e as resinas que têm sólido valor de mercado e que poderiam ser estudados e extraídos da floresta, isolados e sintetizados nos laboratórios, sem comprometer os ciclos de sua reprodução? É motivo de preocupação que, após inúmeras tentativas de implantar na região institutos de microbiologia e biotecnologia, os resultados permanecem modestos (a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária-Embrapa possui na Amazônia apenas seis dos sessenta centros instalados no país e o Centro de Biotecnologia da Amazônia-CBA, passados dez anos de sua criação e despendidos recursos para o equipamento de seus laboratórios ainda não funciona regularmente por falta de um estatuto jurídico de consenso entre Brasilia (Ministério da Indústria e do Comércio e Ministério de Ciência Tecnologia e Inovação) e Manaus (Superintendência da Zona Franca de Manaus - Suframa). Curiosamente as atenções das organizações nacionais e internacionais de conservação da natureza (como, por exemplo, o WWF e o Fundo Amazônia)1 voltam-se para programas preocupados em evitar o desmatamento (e as emissões de CO2), mas não priorizam a formação de pesquisadores, microbiologistas, botânicos, entomólogos e o fomento de programas de pesquisa e interpretação do micro e macro mundo registrado na grande ‘biblioteca’. Surge nesse ponto a questão de como defender a soberania nacional e proteger a propriedade do patrimônio genético registrados nos ‘livros’ da floresta. Estudando, interpretando o que está escrito nos ‘livros’ que se encontram na biblioteca, antes que outros o façam. “Conhecer ainda que tarde” o “cognoscere quae sera tamen” deveria estar escrito nas bandeiras da batalha amazônica. Não há outro caminho para combater a biopirataria no micro ou no macromundo. Proibir, fiscalizar, controlar a coleta e o transporte de amostras do material genético são ações que não defendem os nossos interesses e nem oferecem proteção eficaz ao nosso patrimônio. Uma vez que é difícil distinguir nessas amostras as que têm de fato algum valor, de mercado ou científico e as que não se sabe se tem algum valor, por não terem sido ainda estudadas. Trata-se de um tesouro codificado através de bites de informação, que podem circular a ‘cavalo’ das ondas eletromagnéticas, nas redes internautas ou ser transportados, ‘in natura’, fisicamente em amostras microscópicas. Um universo de informações inscritas em amostras de dimensões micrométricas (10-6 m) dificilmente detectáveis por humanos atentos ou mesmo por instrumentos especia1 O World Wide Fund for Nature (WWF, em Português, “Fundo Mundial para a Natureza”) é uma Organização não governamental (ONG) internacional que atua nas áreas daconservação, investigação e recuperação ambiental, anteriormente chamada World Wildlife Fund, nome oficial ainda em uso nos Estados Unidos e Canadá. WWF e o Fundo Amazônia). Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/ wiki/World_Wide_Fund_for_Nature>. 10 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 7-18, jan./jun. 2013 É Evitável o Incêndio da Biblioteca da Floresta? lizados. A título de exemplo há mais de 100 mil microrganismos em uma gota de nossas salivas, todos eles portadores de informações significativas em seus códigos genéticos! Para estudar o micromundo da floresta são necessários laboratórios equipados e técnicos de alta especialização, além de financiamentos significativos. Sabe-se que o retorno pode ocorrer em um caso em dez dos compostos estudados, contudo compensa as despesas realizadas para estudar os dez. O extrativismo voluntário, desarmado de instrumentos, sem a assistência de laboratórios equipados, não é sustentável social e economicamente, pode prover sustento para as famílias que a ele se dedicam, mas dificilmente pode retirá-las da pobreza. 3 AS MARGENS IRREGULARES DA FLORESTA INUNDADA Há outros tesouros na floresta, outros alvos que clamam por nossa atenção, pesquisa e entendimento. Entre eles podem ser mencionados: as férteis terras pretas de índio que, ao que tudo indica, têm origem antrópica (10% das terras de floresta); o imenso aquífero que se extende no subsolo profundo das florestas e rios do Atlântico aos Andes; as jazidas de minerais; os ecossistemas da foz de água doce e salgada. Antes porém de examinar os pontos acima, destaque-se uma questão que revela o tratamento dado pelo Governo Federal e pelo Congresso Nacional à floresta amazônica na elaboração do Código Florestal. Em um dos primeiros Artigos (o de número três) do Código é introduzido um novo conceito, o de ‘margem média’ dos rios em substituição às margens altas (a média dos níveis máximos das últimas cinco cheias) que tradicionalmente (desde 1823) definiam os limites do território de propriedade (e proteção) da União às margens dos rios. Estima-se que a área ocupada na Amazônia pelas águas em época de cheia (MELACK; HESSS, 2010)) é de 500 mil km2. Com a nova definição das margens ‘médias’, a área de propriedade da União recuará para aproximadamente 350 mil km2. Isto é: a União cedeu (pelo novo Código) aos propietários de terras às margens dos rios cerca de 150 mil km2, 15 milhões de hectares periodicamente inundados! Esta extensão se deve em grande parte ao fato de que a diferença entre o nível mais alto e o nível mais baixo das águas dos rios é também muito grande, variando anualmente de 12 a 15 metros! O que significa também que deixará aos novos proprietários a responsabilidade pela proteção e monitoramento dessa extensas áreas (e seus ‘livros’ ainda indecifrados) submersos em boa parte do ano. Hoje, a ocupação urbana e/ou o plantio nessas áreas depende de autorizações e avaliações realizadas caso a caso pela União através da Superintendência do Patrimonio da União,- SPU. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 7-18, jan./jun. 2013 11 Ennio Candotti Figura: Áreas alagáveis em preto. Fonte: MELACK; HESS, 2010, p. 49. Imagem obtida por sensoreamento remoto na frequência de ondas radar. No Código, não há sequer uma menção à diferença entre as florestas alagadas e as florestas ‘secas’ planaltinas. É bom lembrar que a extensão das áreas das florestas alagadas amazônicas, mais as terras também alagadas do Pantanal, é da ordem de grandeza das demais florestas de todo o país. Do ponto de vista dos ecossistemas e do patrimônio genético é nessa área de floresta alagada que se concentram os segredos mais importantes da ‘biblioteca’ amazônica, uma vez que se trata de ecossistemas particulares, que, por serem periodicamente inundados, obrigaram os seres que lá vivem, plantas e animais, fungos e microrganismos a encontrar soluções engenhosas e bem-sucedidas de adaptação e sobrevivência (vale notar, por exemplo, que a floresta quando submersa suspende a sua respiração não absorvendo mais CO2). A questão das margens dos rios no Código Florestal revela que há uma significativa distância entre a prática política e o discurso emocionado dedicados pelas diferentes instâncias de Governo e do Congresso Nacional à Amazônia. Examinem-se, agora, os quatro pontos mencionados acima: terras pretas, aquíferos, minérios e os ecossitemas da foz onde a água doce dos rios encontra a salgada do oceano. 12 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 7-18, jan./jun. 2013 É Evitável o Incêndio da Biblioteca da Floresta? 3.1 AS TERRAS PRETAS DE ÍNDIO São terras muito férteis que se encontram espalhadas pelo território amazônico (em cerca de 10% do território) e que, segundo as mais recentes pesquisas, têm origem antrópica. O seu estudo procura revelar a sua composição e permitir, assim, a sua reprodução em laboratório ou em natura, o que propiciaria a produção deterras férteis para a agricultura. Por outro lado, os estudos ao revelarem a origem antrópica dessa terra, uma vez que é encontrada em locais ocupados também por sitios arqueológicos, demonstram que a ocupação indígena da floresta foi numerosa e intensa em extensas áreas, o que sugere que a floresta, pelo menos em parte, foi manejada pelos povos que a habitaram, e a habitam, desde tempos muito antigos. As terras pretas, junto com os fragmentos cerâmicos e líticos dos sítios arquológicos nelas encontrados, revelam uma história de mais de 9000 anos. Culturas de povos antigos adaptados aos ambientes florestinos, que encontraram técnicas próprias e eficientes de caça e pesca, navegação, agricultura e sistemas de convivência social. Fatos estes que justificam plenamente as políticas que buscam proteger os territórios e valorizar as culturas indígenas ainda presentes na região, testemunhas e registros vivos de sistemas sociais bem-sucedidos na convivência com a floresta e na defesa frente aos agressivos patógenos, ainda hoje não controlados como, por exemplo, a Malária. 3. 2 O IMENSO AQUÍFERO Com o segundo ponto, atente-se para outra dimensão submersa da Amazônia: a existência de um extenso aquífero de Manaus aos Andes, estimado em 2,5 milhões de km2 com uma profundidade de mil a três mil metros (foram destinados para seu mapeamento cerca de 5 milhões de reais no fim de 2010). Esse aquífero (4) se soma ao do Alter do Chão (que se estende do Atlântico ate Manaus) melhor conhecido e mapeado, e influencia a carga e escoamento dos rios amazônicos, interferindo portanto nos equilíbrios ambientais de superfície. Observo também que se trata de vasto campo de pesquisa hidrológica e geofísica, com influência no estudo do papel climático da bacia amazônica, além de ser potencial fonte de água potável para uma população (e uma indústria) que vive às margens de rios cuja água não é potável. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 7-18, jan./jun. 2013 13 Ennio Candotti Figura 2: Esboço geológico do subsolo que pode ser ocupado pelo aquifero Fonte: (CPRM DNPM, 2001 ). A dinâmica das águas e seus movimentos verticais (entre o subsolo e a superfície) e horizontais deveria ser melhor explorada. São raros ou inexistentes os centros de pesquisa voltados ao seu estudo. Não há, por exemplo, um instituto de hidráulica e recursos hídricos da Amazônia ocidental, equipado com tanques de provas – e equipes competentes - para estudo da dinâmica do movimento das águas e sedimentos, a exemplo do tanque oceânico instalado na Coordenação de Programas de Pós-Graduação em Engenharia-COPPE da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a UFRJ. 14 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 7-18, jan./jun. 2013 É Evitável o Incêndio da Biblioteca da Floresta? 3.3 AS RICAS JAZIDAS MINERAIS Quanto às ricas jazidas minerais, frequentemente mencionadas, pode se afirmar que não estão completamente localizadas e nem dimensionadas. Sabe-se, também, que não contribuíram para elevar os baixos índices de Índice de Desenvolvimento Humano -IDH ou propiciaram o desenvolvimento econômico, científico e tecnológico da região onde foram ou estão sendo exploradas (ver por exemplo a mineração de bauxita em Trombetas no município de Oriximiná). O que é agravado pelo fato de que a exploração mineral, em muitos casos, tem sido responsável por significativos e irrecuperáveis danos ambientais, como no caso dos garimpos de ouro em Serra Pelada e da exploração do manganês pela Industria de Comercio de Minerais, INCOMI (Indústria e Comércio de Minerais) no Amapá (BENCHIMOL, 1977, p. 562). Os grandes projetos de mineração não fixaram na região, em escala proporcional ao volume dos lucros auferidos, uma significativa competência técnica e gerencial dos sistemas de mineração. Nos investimentos programados pelo Programa de Aceleração do Crescimento - PAC para a próxima década em mineração, portos, hidroelétricas não ha notícias da previsão de que uma porcentagem dos recursos será destinada a promover a consolidação da competência local de gerenciamento, manutenção das instalações de engenharia de projetos e de consultoria para a preparação de novos empreendimentos. Também não se menciona no PAC a necessidade de uma revisão da legislação tributária para a mineração, muito defavorável para os estados da região. A criação e fixação na região de competências locais na área de engenharia teria influência na atração e fixação de quadros em outras áreas estratégicas para o desenvolvimento da Amazônia uma vez que dificilmente se consegue atrair e formar quadros de elevada especializacão em áreas restritas. O processo de fixação e desenvolvimento de competência local requer a formação na região e a atração de profissionais de múltiplas áreas, por vezes complementares e principalmente em áreas básicas (física, matemática, química, geologia) que permitem a reprodução da competência instalada (o que dificilmente ocorre nas áreas tipicamente aplicadas como as engenharias, importantes para a execução, mas lentas na reprodução). 3.4 ECOSSISTEMA FOZ DO AMAZONAS O ecossistema foz do Amazonas é único no planeta pelo volume de água doce que adentra por cerca de 300 km no oceano Atlântico e pelo volume de sedimentos transportados pelas águas e que se depositam na foz. Inúmeras espécies de plantas e animais encontraram-se nos ecossistemas da foz formas de sobrevivência em ambientes salgados e doces. O estudo dos fenômenos biológicos e do transporte Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 7-18, jan./jun. 2013 15 Ennio Candotti de sedimentos minerais e orgânicos poderá nos levar a desvendar importantes segredos da natureza (um dos grandes desafios da agricultura é descobrir plantas alimentares que possam ser irrigadas com água salgada). Não há, no entanto, um só Instituto da Foz, nacional, dedicado a estudar a fauna e a flora e os ambientes que ocorrem nesse canto inexplorado da ‘biblioteca’. Inexplorado em termos, uma vez que a prospecção do subsolo tem sido uma exceção, revelando que ele é rico em petróleo. Observe-se também que a França está construindo na Guiana Francesa um instituto de pesquisas biológicas, hídricas e de sedimentologia e destina a ele importantes quantias de recursos financeiros e humanos. 4 O PROGRAMA DE ACELERAÇÃO DO CRESCIMENTO NÃO CONHECE O PLANO AMAZÔNIA SUSTENTÁVEL Um exemplo das ambiguidades dos interesses que cercam os investimentos do PAC em infraestrutura na Amazônia foi descrito em recente seminário promovido pelo BNDES , contabilizado-o como investimento do PAC ( Programa de Aceleração do Crescimento) na Amazônia: o linhão Santo Antônio (Ro) – Araraquara (SP) (5). Cabe a pergunta: quem se beneficiará com este investimento? É a rede (nacional) de abastecimento elétrico que se ramifica a partir de Araraquara (ou proximidades). São Paulo, ou o Estado de Rondônia? O IDH de Rondônia melhorará com o linhão? Basta verificar se melhorou (em taxas acima do crescimento médio do país) nos últimos dez anos o IDH da região próxima a hidroelétrica de Tucuruí para obter a resposta. Considerando que o consumo de energia elétrica recolhe impostos nos estados onde ele ocorre, pouca riqueza restará para a região detentora da fonte energética (água e seu desnível) onde está instalada a ‘usina’ hidroelétrica. Pode-se também perguntar se as compensações ambientais pagas aos Estados de origem da eletricidade respondem por uma fração do valor da energia fornecida à rede de consumo, correspondente aos royalties do barril de petróleo (para equivalentes de energia produzida) atualmente pagos aos estados produtores. O próprio Governo deu resposta às ambiguidades das diretrizes que orientam o PAC ao preparar, na mesma época em que ele foi elaborado, o PAS, o Plano Amazônia Sustentável. No PAS se traçam diretrizes voltadas a promover um desenvolvimento da Amazônia, atento às três dimensões da sustentabilidade dos empreendimentos: social, econômica e ambiental, além da formação e fixação de recursos humanos especializados e a criação de uma infraestrutura que permita ao Estado Nacional estar presente nos povoados e pequenas cidades do interior. Não há notícias quanto à implementação das diretrizes e programas propostos pelo PAS, mas têm sido confirmados os investimentos de cerca de 200 bilhões de reais nos próximos dez anos em obras do PAC (principalmente hidroeletricas, portos, mineração e linhões). Questiona-se a efetiva contribuição destas obras para elevar o IDH da região e de seus povoados do interior ou mesmo para fomentar a pesquisa científica que 16 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 7-18, jan./jun. 2013 É Evitável o Incêndio da Biblioteca da Floresta? permita decifrar os códigos inscritos nos ‘livros’ da floresta ou promover a fixação no interior de empresas e recursos humanos especializados. Cabe aqui lembrar uma história que retrata a dificuldade de resolver o conflito entre o poder central, onde se decidem os projetos, e a periferia amazônica. Menciono uma célebre página do livro de Samuel Benchimol (1977, p. 562) “Amazônia um pouco Antes e além depois “ em que escreve: Como experiência pioneira a partir dos anos 60 os Bancos Oficiais dos Estados e suas Comissões de Desenvolvimento representam uma nova tendência de regionalizar e descentralizar o processo de desenvolvimento em resposta aos reclamos das unidades federadas que passaram a ter a oportunidade de construir o seu próprio núcleo de decisão política, econômica e financeira. É pena que o nosso projeto (de incentivos fiscais para capitalizar bancos dos Estados) apresentados na 1ª reunião dos investidores e empresários brasileiros, em 1966, foi torpedeado pelo segundo escalão hierárquico. Essa derrota atrasou a Amazônia Interior pelo menos vinte anos. A partir dessa denúncia os empresários usaram em seus projetos políticos o lema ‘não é importante quem decide, mas onde se decide’ e defenderam a ideia de criação de órgãos de financiamento regionais com poder de decisão local . 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Dos reclamos do grupo de pressão formado por empresários e professores da Universidade surgiu a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia - SUDAM, a Zona Franca e outros instrumentos de desenvolvimento da região, mas a questão do quem e onde se decide ainda não encontrou equilibrada resposta: o Fundo Amazônia tem sede no O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES, no Rio de Janeiro! Por outro lado, passados quarenta anos, o que se produz na Zona Franca ainda não responde a projetos de concepção e desenho local. Não há uma só indústria que explore os produtos naturais da floresta. Os executivos das empresas instaladas em Manaus respondem em sua maioria às matrizes no exterior ou em São Paulo. Nada se decide aqui. Pergunta-se o que fariam as empresas instaladas em Manaus se os incentivos da Zona Fraca fossem suspensos? Onde estão sendo projetados os portos que serão construídos na Amazônia? Portos capazes de resistir às severas condições ambientais causados pela variação de 15 metros no nível das águas! E a manutenção dos linhões das usinas hidroelétricas será efetuada e planejada por escritórios de engenharia instalados em Manaus, em Porto Velho ou Belém? Quem orienta e realiza a construção dos barcos que navegam pela maior rede de rios do planeta e hoje tranportam centenas de milhares de amazonenses? Os hidroaviões, tão necessários, quem os desenharia e fabricaria? Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 7-18, jan./jun. 2013 17 Ennio Candotti Os reclamos de 1966 ainda são atuais, desde então novos desafios e oportunidades abriram-se para a Amazônia. Passados cinquenta anos as decisões sobre o que importa para a Amazônia ainda são tomadas longe daqui. É um desafio promover um efetivo desenvolvimento social associado aos empreendimentos que exploram as riquezas minerais e energéticas. Acreditava-se naquela época que elevar os indices de IDH seria consequência natural dos investimentos produtivos. A previsão revelou-se equivocada. A indefinição das relações entre centro e periferia comprometeram a equilibrada distribuição dos benefícios. Por outro lado, um novo portal de oportunidades abriu-se com o papel climático e geopolítico da Amazônia no planeta e, sobretudo, com as novas técnicas de exploração das riquezas da biodiversidade, que, na época, ainda não se revelavam com todo seu potencial. A riqueza do ‘patrimônio’ genético da floresta amazônica multiplicou-se, mas a capacidade de explorá-la no interesse da ciência e para benefício do povo que aqui vive não se multiplicou com a mesma velocidade. Acelerar o crescimento é o desafio desta década. Recuperar o PAS e temperar o PAC acrescentando - lhe um A, de Amazônia são os desafios políticos que encontramos na mesa das negociações do papel da Amazônia no ainda inconcluso projeto de construção da Nação. Negociações locais e nacionais. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Berno de; WAGNER, Alfredo. Terras tradicionalmente ocupadas. Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia. PGSCA; UFAM: Manaus, 2008. BENCHIMOL, Samuel. Amazônia um pouco antes e além depois. Calderaro: Manaus, 1977. p. 562. CANDOTTI, Ennio. É sustentável o desenvolvimento da Amazônia? In: Um olhar territorial para o desenvolvimento: reflexões sobre a atuação do BNDES na Região Norte do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Helena Lastres e outros, BNDES, 2013. GALVÃO, Paulo Henrique Ferreira et alii. Hidrogeologia e geometria dos aquíferos das formações cretáceas Içá e Solimões, Bacia Paleozoica do Solimões, na região de Urucu, Amazonas. Revista Brasileira de Geociências 42 (Suppl 1): 142-153, dezembro de 2012. GOES NEVES, Eduardo. O lugar dos lugares: escala e intensidade das modificações paisagisticas na amazônia central pré-colonial em comparação com a amazônia contemporânea. Ciência e Ambiente, 31 jul./ dez. 2005, UFSM. MELACK, J.M; HESS, J. L. Remote sensing of the distribution and extent of wetlands in the Amazonian basin. In: JUNK, W. et alii. Amazonian floodplains, Ecological Studies, Springer, 2010. 18 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 7-18, jan./jun. 2013 The State In Africa – Whose Is It? THE STATE IN AFRICA – WHOSE IS IT? Herbert Ekwe-Ekwe* ABSTRACT Who owns the state in Africa? or whose interest does this state really serve? Despite incredible riches in human as well as agricultural and mineralogical resources, the state in Africa demonstrates an incapability to serve its peoples even at a time it performs exceptionally well in the wider global economy, year in, year out. Currently, the immense challenge for Africans is to construct new democratic and extensively decentralised states to utilise the vast wealth therein to transform the lives of millions of people Keywords: Cargo cult mentality. Restoration of independence. Failed-state. Post-Berlin-state of African freedom. Over-population fallacy. Father of African Literature. THE STATE IN AFRICA – WHOSE IS IT? RESUMO A quem pertence o Estado da África? A que interesse este Estado realmente serve? Apesar das inacreditáveis riquezas humanas, bem como dos recursos agrícolas e mineralógicos, o Estado em África demonstra incapacidade para servir seus povos, mesmo em um momento quando atua excepcionalmente bem na economia global mais abrangente, ano após ano. Atualmente, o grande desafio para os africanos é construir novos estados democráticos extensamente descentralizados para utilizar a grande riqueza lá existente para transformar a vida de milhões de pessoas. Palavras-chave: A mentalidade de cultuar produtos manufaturados importados. Restauração da independência. Estado falido. Liberdade do estado africano pósBerlim. Falácia do excesso de população. Pai da Literatura Africana. THE STATE IN AFRICA – WHOSE IS IT? RESUMEN ¿A quién pertenece el estado de África? El interés que este estado realmente sirve? A pesar de la riqueza humana increíble, así como los recursos agrícolas y mineralógicas, el estado en África demuestra incapacidad para servir a su pueblo, incluso en momentos en que los actos excepcionalmente bien en la economía mundial más amplio, año tras año. En la actualidad, el principal desafío para los países africanos es la construcción de nueva democracia ampliamente descentralizado para utilizar * Herbert Ekwe-Ekwe is a British professor who is a specialist on the state and genocide and wars in Africa. He is currently visiting professor at the Universidade de Fortaleza. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 19-33, jan./jun. 2013 19 Ekwe-Ekwe la gran riqueza que existe para transformar la vida de millones de personas. Palabras clave: La mentalidad de culto importado bienes manufacturados. La restauración de la independencia. Estado fallido. Libertad del Estado africano postBerlín. Falacia de hacinamiento. Padre de la literatura africana. 1 INTRODUCTION 1.1 CARGO CULT MENTALITY Chinua Achebe, the Father of Africa Literature, once described as the “cargo cult mentality” (ACHEBE, 1983, p. 9) the illusion, or rather the delusion of many leaders of so-called developing countries who feel that without sustained hard work, internally, their states could somehow achieve the status of socio-political transformation that they had envisaged in many a “development programme. This mentality manifests in the form of a perpetual gaze across the seas, across the horizon, hoping/awaiting a “fairy ship [to] dock in their harbour laden with every goody they have always dreamed of possessing” (ACHEBE, 1983, p. 9). This gaze, as can be imagined, is frustratingly a chore that triggers bewildering ranges of emotion: When, for instance, is this ship arriving? Where is it coming from? What will it contain that will transform our existence? More loans? More aid packages? A privatisation scheme? Oh! Is that the mast of the mysterious ship coming over the horizon – at last? Oh yeah! The ship is already here… Good news: the goodies are here, fellow countrymen (and women, presumably!). We are now developed, We are a world power… No, not yet… We need the arrival of 3, 4, or 5 more of these ships to achieve this target. Oh dear! How long will this now take? The time span for all these arrivals will be in the order of 10 years… No, twice as long; sorry, to be more precise, 21 years… Therefore, my administration needs another term, maybe two, perhaps three, to oversee these arrivals, the offloading of the goodies, and the sustainable implementation of this multisectoral development programme! To focus more specifically on the Africa example, and perhaps less humourlessly, the “cargo cult mentality” is pointedly a perverse case right from the outset. African regimes in the late 1950s/1960s (baseline decades for the “restoration of African independence” after centuries of the European conquest and occupation) uncritically keyed into the Fraudulent Developmentalism music of the age which was trumpeted noisily and widely by the Western World – led strategically by none other than Britain and France, the core conqueror states of Africa. Thanks to the nauseating naivety of these leaderships, Britain, France and other European World states and institutions that had committed heinous crimes of conquest and occupation in Africa for 500 years, were overnight “entrusted” with a role, the central role for that matter, to embark upon Africa’s seeming project of societal reconstruction in the wake of the holocaust. 20 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 19-33, jan./jun. 2013 The State In Africa – Whose Is It? South Korea, for instance, has demonstrated that if the country’s leaderships in the late 1940s/1950s (after the country’s liberation from Japanese conquest and occupation) had “allowed” Japan to play a similar role in their reconstruction project as the Africa example just cited, their society would not have been “endowed” with the scientific know-how in the very short 50 years time lag to co-stage the 2002 World Cup Football competition with Japan and with such comparable dazzling technological finesse as the latter. In Nigeria, in 1979, nearly a decade after it had murdered 3.1 million Igbo people in the most devastating genocide in Africa since the 19th century, few in the country were prepared for the extraordinary pronouncement of optimism on the country’s future from the regime in power. There was no semblance of any reconstructionary programme on the ground to support this claim. Olusegun Obasanjo, then head of the country’s military junta, had, in effect, gazed across the hallucinatory horizon of expectation embedded in the “cargo cult mentality” and made the following prediction with all the certitude at his disposal: “Nigeria will become one of the ten leading nations in the world by the end of the century” (ACHEBE, 1983, p. 9). Of course in 1999, 20 years later, Nigeria was anything but a world power. It had become a failed-state! 2 “FAILED-STATE” DISCOURSES The concept “failed-state” carries an understandable melodramatic import! It refers to the inability or failure of a state to fulfil some of its key roles and responsibilities to its people(s) and others domiciled within its territory and consequently to its neighbour(s) and the wider global community of states. According to the latest Washington-based Fund for Peace think-tank’s annual research publication, “The Failed States Index 2013”, there are 12 indicators at which state failure materialises and these can be grouped into three broad spheres or categories with respect to the impact on the lives of the people(s): social, political and economic (FUND FOR PEACE, 2013a). African countries, unsurprisingly, fare most poorly at each and across these 12 crucial variables at the centre of the fund’s research, but particularly in the following, with the inescapable crushing consequences on the lives and wellbeing of the peoples: legitimacy of the state; rise of fractionalised elite; chronic and sustained human rights violation; 4. uneven economic development; poorly, sharp and severe economic decline; massive movement of refugees or internally displaced persons. Thus, the highlights for Africa in the fund’s current research make for depressing reading and are as follows (FUND FOR PEACE, 2013b): 16 out of the world’s “worst 20 states”; 20 out of the “worst 30 states”; 34 (well over one-half of all the continent’s so-called sovereign states) of the “worst 54 states”. It is not inconceivable, given this rate of state failure, that by the time this ENABED biennial assembly Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 19-33, jan./jun. 2013 21 Ekwe-Ekwe has its first conference of the next decade, in 2021, “54 out of the worst 54 states” in the world could be in Africa! For the purposes of this paper, the following two key empirical determinants of state failure are keenly explored: the state’s inability to provide security; and the state’s inability to provide essential social services. Let us elaborate on each of them: The state’s inability to provide security to its population – This situation may have arisen because the state no longer exercises control across part/parts or all of its territory. Factors such as catastrophic breakdowns in vital internal sociopolitical and economic relations, intra-regime fractionalism and rivalries, external invasion and occupation of territory, and unmanageable natural disasters would contribute to the failure. It could also be due to the state’s violation of the human rights of the people(s) including a deliberate state policy to embark on the destruction of one or more of its constituent nations/peoples/religious groups, and any others. The state’s inability to provide essential social services (communication infrastructure, health care, education, housing and recreation, development of culture) to its people(s) or the state’s deliberate policy to deny or partially offer such services to some of its constituent nations/peoples/religious groups… This failure could be the consequence of a state’s dwindling fiscal/material resources or just sheer incompetence in its management capacity. Alternatively, this inability points to the staggering nature of corruption and largely institutionalised norm of non-accountability in the access and control of public-owned finances by state officials and their agents. Christopher Clapham has argued that the concept “failed-state” is “one of those categories that is named after what it isn’t, rather than what it is” (CLAPHAM, 2000). This is vital in the discourse to the effect that a state, such as Nigeria or Sudan for instance, that embarks on the genocide of its population or does not provide basic services for its people or immanently churns out successive regimes that fleece the collective wealth of the country can hardly merit such a definition in social science. All we need do to highlight the obvious flaw in applying this concept in Africa is to reflect on the fact that crucial state functions such as the provision of security, rule of law, a rationalising but flexible structure of management, accountability and open and unfettered competition, especially with respect to regime change, have not been in operation in any African state since the conquest and occupation of most of the continent by a constellation of European countries in the 19th century. Tragically, in the 57 years since the concerted African drive towards the restoration of its independence resulted in the supposedly 1956 breakthrough in the Sudan, followed soon in 1957 by Ghana, the situation has not changed significantly in Africa for the realisation of these attributes of the state. Ultimately, the major limitation of the use of the “failed-state” concept to assess the catastrophic situation in contemporary Africa is that it confers an unjustifiable presumption of rationality to an enterprise in which a spectrum of outcomes ranging from perhaps “failure” to “outright failure” to “disaster” is pre22 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 19-33, jan./jun. 2013 The State In Africa – Whose Is It? determined; it is assumed that those who run the state in Africa (Obasanjo, Idi Amin, Taylor, Moi, Habre, Doe, Gowon, Mobutu, Ahidjo, Jonathan, Rawlings, Obote, Babangida, Mengistu, Abacha, Mugabe, Mohammed, Banda, Abubakar, Bokassa, Jammeh, Eyadema, Buhari, Toure, Museveni, Yar’Adua, Biya, Al-Bashier...) are aware of this test and its evaluative scruples and, like any rational participant, would want to succeed… If they do not do so well, at some instance, so goes the logic, they will try to improve on their previous score and, hopefully, do better… Success is always a possibility! It is on the basis of this possibility that Roland Oliver concludes his own controversial contribution to this debate. If one, for a moment, ignores the gratuitous racism and paternalism embedded in the premise of Oliver’s contribution as well as the highly contestable analytical category on which it is hinged, which I will be focussing on shortly, Oliver notes: “With its overriding population problem, Africa can hardly expect to achieve First World standards of economic development within the next century [i.e. 21st century] but with just a little more day-to-day accountability, it could at least recover the confidence to continue the uphill struggle with more success” (OLIVER, 1991, p. 9). On the contrary, there is limited indication on the ground that African state operatives currently or indeed in the past 57 years have approached statecraft as a challenge to succeed in transforming the lives of their peoples. “Success” is never a goal set along the trajectory of their mission. To that extent, Oliver’s conclusion is, ironically, quite optimistic. Furthermore, it should be noted that given the evidently limited concerns on just “measuring” the scoreboard of performance, “failed-states’s” discourses tend to overlook the much more expansive turbulence of underlying history – the kind of project that is being mounted here in this presentation. So, rather than relations that bring benefits to many of its people, the state in Africa has “evidently been a source of suffering”, to quote Clapham (2000), an imagery consistent with Basil Davidson’s description of the impact of this state on the African humanity as a “curse” (DAVIDSON, 1992). Richard Dowden also uses a health metaphor to capture the legacy of the African state when he notes, alluding to its genesis: “[this European]-scissors and paste job [has indeed caused Africa] much blood and tears” (DOWDEN, 1987). For her own observation, Lynn Innes is in no doubt that the African state has created what she describes as a “deeply diseased [outcome]” on the continent (INNES, 1990, p. 151). The health metaphor stretches even to the psychiatric as Thomas Pakenham observes: “One has only to think of the bloody… wars that followed decolonisation to see the craziness of these lines drawn on maps in Europe by men ignorant of African geography and history” (PAKENHAM, 1988). Chester Crocker points to the fundamental problem of the state in Africa. It is “not the absence of nations; it is the absence of states with the legitimacy and authority to manage their affairs… As such, they have always derived a major, if not domiRevista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 19-33, jan./jun. 2013 23 Ekwe-Ekwe nant, share of their legitimacy from the international system rather than from domestic society” (CROCKER, 2003, p. 37). It is this question of alienability that is at the crux of this grave crisis. These references help to underscore the lack of consensus among scholars studying the “failed states” of contemporary Africa on the terms of the evaluative parameters of this enterprise including the crucial constitutive timeframes of assessing and therefore concluding when this or that African state “began to fail” or/and when indeed it “failed”. There is a tendency by some experts, including the Fund for Peace, which we referred to earlier, to arbitrarily circumscribe the limit of the focus of interrogation to the so-called African post-conquest epoch (i.e., post-January 1956 – following the presumed restoration of independence in the Sudan from the British conquest and occupation) with the underlying presumption that the state, as formulated and constituted on the eve of the “restoration of independence”, has a definitive and enduring internal logic to its being. I would wish to question this presumption in this paper by arguing that, to the contrary, quite a number of African states were already “failed states” on the eve of the so-called restoration of independence. Furthermore, there is a surprising “missing link” in these studies. Fund for Peace and others do no interrogate the intrinsic capacity and performance of any of these African states on their pivotal role in the global economy all the while, essentially the primary reason for their existence – since their creation. An exploration and a restoration of this “missing link” is very important as we shall realise shortly, and is therefore the primary concern of this paper. It will enable us answer the question posed in the title of the presentation: The state in Africa – Whose state is it? Africa has uninterruptedly been a net-exporter of capital to the Western World since 1981. The thundering sum of US$400 billion is the total figure that Africa has transferred to the West in this manner to date (EKWE-EKWE, 2011, p. 41-42; p. 176-177). These are legitimate, accountable transfers, largely covering the everincreasing interest payments for the “debts” the West claims African regimes owe it, beginning from the 1970s. A 2010 study by Global Financial Integrity, another Washington-based research organisation, shows that Africa may have also transferred the additional sum of US$854 billion since the 1970s (“this figure might be more than double, at [US]$1.8 trillion”, the study cautions) through illegitimate exports by the “leaderships” of corrupt African regimes – with Nigeria, a state that I have argued severally failed in 1945 whilst still under British occupation (see, for instance, EKWE-EKWE, p. 136), topping this league at US$240.7 billion. In effect, the state, in Africa, no longer pretends that it exists to serve its peoples. Additionally, and this might appear paradoxical, trade figures and associated data readily obtainable indicate that these African states of seeming dysfunction have performed their utmost, year in, year out, in that key variable for which their European World creators established them in the first place: redoubts for export 24 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 19-33, jan./jun. 2013 The State In Africa – Whose Is It? services of designated mineralogical/agricultural products to the European World/ overseas. There are no indications, whatsoever, that any of these countries has found it difficult to fulfil its principal obligations on this accord – not genocidist and kakistocratic Nigeria, number 16 on the Fund for Peace’s current failed states index; not genocidist Democratic Republic of the Congo, number 2, which has 80 per cent of the world’s reserves of coltan1, refined columbite-tantalite, critical in the manufacture of a range of small electronic equipment including, particularly, laptop computers and mobile phones; not genocidist Sudan, number 3; not Chad, number 5; not even Somalia, the world’s number1 worst state. This is the context that that seemingly contradictory aphorism, “Africa works”, becomes hugely intelligible. Appositely, the raison d’être of the “state” in Africa is not really to serve its people(s), African peoples; it is, on the contrary, to respond, unfailingly, to the objective needs of its creators overseas. And to that extent, Africa, contrary to popular, predictable perception is a success, is working! For instance, thanks to the continuing inordinate leverage that Britain and France, the two foremost conqueror-states of Africa, exercise in these fundamentally anti-African principalities tagged “the state” in Africa, both European countries have a greater secured access to Africa’s critical resources today than at any time during decades of their formal occupation of the continent. France, right from the post-World War II leadership of Charles de Gaulle to the current François Hollande’s has such glaring contempt for the notion of “sovereignty” in the so-called francophonie Africa, ensuring that France has invaded most of these 22 African countries 51 times since 1960 (for an excellent study on French hegemonic control of the finances/economies of these countries, see BUSCH, 2013). As for Britain, sheer greed and opportunism appear to be the guiding principle to attaining its unenviable position as the leading arms-exporter to Africa, including Africa’s leading genocidestates (See, for instance, journalist Charles Onyango-Obbo’s candid insight on the subject in a BBC interview, 2013). Indeed, France and Britain have never had it so good in Africa. This is the background to which the brazenly racist epithet “subSahara Africa” is operationalised currently (EKWE-EKWE, 2013). Those crucial African capital exports referred to earlier, legitimate or/and illegitimate, are funds of gargantuan proportions produced by the same humanity that many a commentator or campaign project would be quick to categorise as “poor” and “needy” for “foreign aid”. In the past 30 years, these funds could and should easily have provided a comprehensive healthcare programme across Africa, the establishment of schools, colleges and skills’ training, the construction of an in1 Refined columbite-tantalite, coltan, is critical in the manufacture of a range of small electronic equipment including, particularly, laptop computers and mobile phones; 80 per cent of the world’s reserves of this mineral is in the Democratic Republic of the Congo which is being currently subjected to a genocidal conflict where 5 million people have been murdered since the 1990s Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 19-33, jan./jun. 2013 25 Ekwe-Ekwe tegrative communication network, the transformation of agriculture to abolish the scourge of malnutrition, hunger and starvation, and, finally, it would have stemmed the emigration of 12 million Africans, including crucial sectors of the continent’s middle classes and intellectuals to the Americas, Europe, Asia and elsewhere in the world since the 1980s. Yet, despite these grim times of pulverised economies and failed and collapsing states in Africa, we shouldn’t ever forget that those who still ensure that the situation on the ground is not much worse for the peoples than it is, are Africans – individuals, working alone, conscientiously, or working in concert with others or within a larger group to feed, clothe, house, educate and provide healthcare and some leisure to immediate and extended families, communities, neighbourhoods, villages and the like. For example, the surgeon who not only works tirelessly in a city hospital, with very limited resources, but uses his scarce savings to build a health centre and an access road in his village with subsidised treatment and prescription costs; the nurse who travels around her expansive health district, unfailingly, bringing care to the doorsteps of the people who neither can afford nor access it physically; the retired diplomat who has mobilised her community to set up a robust environmental care service that has involved the construction of public parks, regular refuse collection and some recycling, after-school free tuition for children with a planned community newspaper in the pipeline; the coach transport operator who lays out scores of his coaches to ferry survivors of a recently organised pogrom 350 miles away to safety; the civil rights activist and intellectual who rallies members of his internet discussion groups within the course of a month’s intense campaign to successfully apprehend a contractor who was about to abscond with millions of (US) dollars worth of public funds meant for a crucial upgrade of an international airport initially built by the community; a stretch of individuals’ programmes of scholarships for students at varying levels of school life, provision of staff salaries in schools and colleges, maintenance of libraries and laboratories in schools and colleges, construction and maintenance of vital infrastructure in villages and counties, etc., etc. These are the authors busily scripting the path of the renaissance Africa. To cap these phenomenal strides of Africans, the 12 million African émigrés mentioned earlier presently constitute the primary exporters of capital to Africa itself. Africans now dispatch more money to Africa than “Western aid” to the continent, year in, year out. In 2003, according to the World Bank, these African overseas residents sent to Africa the impressive sum of US$200 billion – invested directly in their communities (WORLD BANK, 2003, p. 12). This is 40 times the sum of “Western aid” in real terms in the same year – i.e. when the pervasive “overheads” attendant to the latter are accounted for (EL TOM, 2013). In a sentence: The African humanity currently generates, overwhelmingly, the capital resource that at once sustains its very existence and is intriguingly exported to the Western World. It is precisely the same humanity that those who benefit immeasurably from this conundrum (over 26 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 19-33, jan./jun. 2013 The State In Africa – Whose Is It? several decades and are guaranteed to benefit indefinitely from it, except this is stopped by Africans) have consistently portrayed, quite perversely, as a “charity case”. The notion that Africans are in any way dependent on a European World/Western World or any other overseas’s “handout” is at best a myth or at worst an all-out lie – perpetuated by a circle of academics and in the media who in fact in the not-toodistant-past would have been in the vanguard “justifying”/“rationalising” African enslavement or/and the conquest and occupation of Africa. Surely, this historic big lie of characterisation can no longer be sustained. Africa is endowed with the human resource and capital resource (in all its calibration and manifestation) to build advanced civilisations provided Africans abandon the prevailing “Berlin-states” of dysfunction that they have been forced into by the latter’s creators as we shall be elaborating soon. Thus, Africa’s pressing problem in the past 57 years of presumed restoration of independence has been how to husband incredible range of abundance of human and non-human resources for the express benefits of the peoples rather than it being fritted away so criminally. 3 FUTURE: POPULATION, FOOD, PROGRESS There has often been a “politically correct” rhetoric bandied about incessantly by some in academia, media and elsewhere who discuss this grave crisis of contemporary Africa in the context of population, as a useful background to this rhetoric, see, particularly Oliver (1991). Africa, it is concluded in these assertions, requires some “decrease” in its population and/or population-growth as an important measure towards achieving a “solution”. On the contrary, as we now demonstrate, Africa is, indeed, in no way overpopulated. The population argument is usually advanced on a number of fronts. First, there is a “theory” that the given landmass which presently defines Africa and its various so-called 54 nation-states cannot sustain the existing populations, but, more critically, the “projected populations” in years to come. We shall examine the degree to which this “theory” is able to stand up to serious scientific scrutiny first by comparing Africa’s landmass vis-àvis its population and those of some of the countries of the world. Africa’s population is currently one billion covering an incredible vast landmass of 30,221,533 sq km or about four times the landmass of Brazil, all the statistics here on countries’ population, landmass and the like are derived from The World Bank (2012) and United Nations Development Programme (2012). Ethiopia’s landmass is 1,221,892 sq km, five times the size of Britain’s at 244,044 sq km. Yet Britain’s population of 62 million is three-quarters that of Ethiopia’s 83 million. As for Somalia, it is 2.6 times the size of Britain but has a population of only 9 million. Sudan and South Sudan provide an even more fascinating comparison. Whilst both countries are 10 times the size of Britain, they support a population of 45 million – about 70 per cent the size of Britain. In fact the Sudans have a landmass equal Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 19-33, jan./jun. 2013 27 Ekwe-Ekwe to that of India which is populated by 1.22 billion people – i.e., more than the population of all of Africa! Britain is one-tenth the size of the Democratic Republic of the Congo (DRC) which has a landmass of 2,345,395 sq km, similar to the Sudans and India. In other words, the DRC is about ten times the size of Britain but with a population of 71 million, nine million more than the population of the latter. Even though the DRC landmass is about twice that of all of Britain, France and Germany (1,275,986 sq km), it has just about one-third of these three west European countries’ total population of 208 million. Inevitably, the evidence does beg the question as to where this population really is! Second, let us examine similarly sized countries. France has a landmass of 547,021 sq km close to Somalia’s. However, France’s population of 65 million is about seven times the population of Somalia. Similarly, Botswana is slightly larger than France at 660,364 sq km but with a population of 2 million, a minuscule proportion of France’s. Uganda’s landmass at 236,039 sq km is about the size of Britain’s 244,044 sq km. Yet with a population of only 33 million, Uganda is about half that of Britain’s. Similarly, Ghana’s landmass of 238,535 sq km makes it approximately equal to the size of Britain. Ghana is however populated by only 25 million people, far less than one-half Britain’s population. Southern World to Southern World comparisons can also prove useful in exposing the fallacy of either Africa’s “large population” or “potential explosive population”. Iran’s size of 1,647,989 sq km is about two-thirds that of Sudan and South Sudan combined. Yet its population, unlike the Sudans’ 45 million, is at least one and one-half times as large at 75 million. Mexico´s landmass is 1,943,950 sq km. This is approximately the same size as the Sudans but with a population of 115 million, Mexico is two and one-half times the former. Pakistan´s landmass of 803,937 sq km is just about Namibia’s 864,284 sq km but Pakistan’s population is 174 million while Namibia’s is 2 million! Even though Bangladesh’s 143,998 sq km-landmass makes it roughly one-eight the size of Angola (1,246,691 sq km) as well as that of South Africa’s (1,221,029 sq km), Bangladeshi population at 159 million outstrips Angola’s 13 million and South Africa’s 50 million. If we were to return to our earlier comparisons, Angola and South Africa are about 4-5 times the size of Britain but with onefifth and four-fifths respectively of the latter’s population. 4 POST-GENOCIDE STATE, POST-BERLIN STATE, RESTORATION OF AFRICAN FREEDOM Finally, we should turn to the question of resource, its availability or lack of it, and therefore its ability or inability to support the African population – another component of Africa’s “over-population” fallacy. Well over 50 per cent of Uganda’s arable land, some of the richest in Africa, remains uncultivated. Were Uganda to expand its current food production significantly, not only would it be completely self28 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 19-33, jan./jun. 2013 The State In Africa – Whose Is It? sufficient, but it would be able to feed all the countries contiguous to its territory without difficulty, and GM free too! The overall statistics of the African situation are even more revealing as with regards to the continent’s long-term possibilities. Just about a quarter of the potential arable land of Africa is being cultivated presently (FAO; IIED, 2008). Even here, an increasingly high proportion of the cultivated area is assigned to so-called cash-crops (cocoa, coffee, tea, groundnut, sisal, floral cultivation, etc.) for exports at a time when there has been a virtual collapse, across the board, of the price of these crops in international commodity markets. In the past 30 years, the average real price of these African products abroad has been about 20 per cent less than their worth during the 1960s-70s period which was soon after the “restoration of independence”. As for the remaining 75 per cent of Africa’s uncultivated land, this represents 60 per cent of the entire world’s potential (ENDRES, 2012, p. 1). The world is aware of the array of strategic minerals such as coltan, cobalt, copper, diamonds, gold, industrial diamonds, iron ore, manganese, phosphates, titanium, uranium, and of course petroleum oil found in virtually all regions across the continent. Africa remains one of the world’s most wealthy and potentially one of the world’s wealthiest continents. What is not always associated with the profiles of Africa is its vast acreage of rich farmlands with capacity to optimally support the food needs of generations of African peoples indefinitely. In addition, the famous fish industry in Sénégal, Angola, Côte d’Ivoire and Ghana for instance, Botswana’s rich cattle farms, west Africa’s yam and plantain belts extending from southern Cameroon to southern Sénégal, the continent’s rich rice production fields, etc., etc., all highlight the potential Africa has for fully providing for all its food needs. Thus, what the current African socioeconomic situation shows is extraordinarily reassuring, provided the acreage devoted to cultivation is expanded and expressly targeted to address Africa’s own internal consumption needs. Land-use directed at agriculture for food output must become the focus of agricultural policy in the new Africa, as opposed to the calamitous waste of “cash-crop” production for export and/or the more recently observed “land-grab” – parcelling away of land to foreign governments and organisations – occurring across the continent (AKAEZUWA, 2013). It is an inexplicable and inexcusable tragedy that any African child, woman, or man could go without food in the light of the staggering endowment of resources in Africa. Africa constitutes a spacious, rich and arable landmass that can support its population, which is still one of the world’s least densely populated and distributed, into the indefinite future. There is only one condition, though, for the realisation of this goal – Africa must utilise these immense resources for the benefit of its own peoples within newly negotiated, radically decentralised sociopolitical dispensations which must abandon the current murderous “states” or “Berlin-states” as they should be more appropriately categorised (EKWE-EKWE, 2011, p. 27, Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 19-33, jan./jun. 2013 29 Ekwe-Ekwe 41, 44, 69, 200). These principalities that dutifully go by the very fanged names of their creators (Nigeria, Niger, Chad, the Sudan, Central Africa Republic… whatever!) are an agglomeration of inchoate, inorganic and alienating emplacements that have been an asphyxiating trap for swathes of African constituent nations with evidently distinct histories, cultures and aspirations. 5 ALMOST CONCLUSION We now no longer require any reminders that the primary existence of these principalities is to destroy or disable as many enterprisingly resourceful and resource-based constituent peoples, nations and publics within the polity that are placed in their genocide march and sights. Here, the example of the Igbo people of west Africa cannot be overstressed. This is one of the most peaceful and industrious of peoples subjected to the longest-running genocide of the contemporary epoch by the Nigeria state. The Igbo genocide is the foundational genocide of post-(European) conquest Africa. It inaugurated Africa’s current age of pestilence. During the course of 44 months (29 May 1966-12 January 1970) of indescribable barbarity and carnage not seen in Africa since the German-perpetration of the genocide against the Herero people of Namibia in the early 1900s, the composite institutions of the Nigeria state, civilian and military, murdered 3.1 million Igbo people or one-quarter of this nation’s population. To understand the politics of the Igbo genocide and the politics of the “post”-Igbo genocide is to have an invaluable insight into the salient features and constitutive indices of politics across Africa in the past 50 years. Africans elsewhere remained largely silent on the gruesome events in Nigeria but did not foresee the grave consequences of such indifference as subsequent genocides in Rwanda, Darfur, Nuba Mountains, South Kordofan (all three in the Sudan) and Zaïre/Democratic Republic of the Congo, and in other wars in every geographical region of Africa during the period have demonstrated catastrophically. Just as the Nigerian operatives of mass murder appeared to have got away without censure from the rest of Africa, other genocidal and brutal African regimes soon followed in Nigeria’s footpath, murdering a horrifically additional tally of 12 million people in their countries considered “undesirables” or “opponents”. These 12 million murdered in the latter bloodbaths would probably have been saved if Africans had intervened robustly to stop the initial genocide against the Igbo people. It is abundantly clear that the factors which have contributed to determining the very poor quality of life of Africa’s population presently have to do with the nonuse, partial use, or the gross misuse of the continent’s resources year in, year out. This is thanks to an asphyxiating “Berlin-state” whose strategic resources are used largely to support the Western World and others and an overseer-grouping of local forces which exists solely to police the dire straits of existence that is the 30 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 19-33, jan./jun. 2013 The State In Africa – Whose Is It? lot of the average African. As a result, the broad sectors of African peoples are yet to lead, centrally, the entire process of societal reconstruction and transformation by themselves. Surely, an urgently restructured, culturally-supportive political framework that enhances the quality of life of Africans is really the pressing subject of focus for Africa. One immediate move that states across the world, especially Britain, the leading arms exporter to Africa, and the rest of the West, Russia and China and others can make to support the ongoing efforts by peoples across Africa to rid themselves of such frighteningly genocidal and dysfunctional states is to ban all arms sales to Africa. This ban must be total and comprehensive. A total and comprehensive arms ban on Africa will radically advance the current quest on the ground by Africans, across the continent, to construct democratic and extensively decentralised new state forms that guarantee and safeguard human rights, equality and freedom for individuals and peoples. Africans have both the vision and the capacity to create alternative states – for them it is an imperative upon which their survival is based. Forty-seven years and 15 million murders on, Africans finally realise that there cannot be any meaningful advancement without abandoning the post-conquest state, essentially a genocide-state. This state is the bane of African existence and progress. It is in the longer-term interest of the rest of the world, especially in the West, to support African transformations initiated by the peoples rather than the “h elmspersons”/“helmsconstituent nations” ostensibly entrenched in the hierarchical architecture that maps the typical continent’s genocide-state. Thus, the pressing point to reiterate here is that the immediate emergency that threatens the very survival of African peoples is the “Berlin-state” encased in African existence coupled with the pathetic bunch that masquerades here and there as African leaderships but whose mission is to oversee this enthralling edifice. African women and men will sooner, rather than later, abandon this fractured, fracturing, conflictive, alienating and terror contraption. Africans must now focus on real transformation – the revitalisation and consolidation of the institutions of Africa’s constituent nations and polities, or what Okwuonicha Nzegwu (2001, p. 41) has described, succinctly, as the “indigenous spaces of real Africa”. In these institutions and spaces of African civilisation lie the organic framework to ensure transparency, probity, accountability, investment in people, humanised wealth creation, respect for human rights and civil liberties, and a true commitment to radically transform African existence. REFERENCES ACHEBE, Chinua. The trouble with Nigeria. Enugu: Fourth Dimension, 1981. AKAEZUWA, Emeka. Stop Africa landgrab. Available at: <http://www.stopafricalandgrab.com/author/emeka-akaezuwa/>. Accessed on: 14 May 2013. 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Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 19-33, jan./jun. 2013 33 Luiz Alfredo Salomão PERSPECTIVAS FUTURAS DA HEGEMONIA MUNDIAL EM FUNÇÃO DA CRISE ECONÔMICA Luiz Alfredo Salomão* RESUMO A equação de poder científico-tecnológico e militar mundial não se alterou, parece que não vai se alterar nos próximos 30 anos, em função da evolução da crise econômico-financeira deflagrada em 2007/08, que se estende até o presente, e das políticas fiscais, monetárias e regulatórias adotadas pelos países centrais para enfrentá-la. Os chamados países emergentes adquiriram proeminência no cenário internacional, mas não o suficiente para alterar o equilíbrio vigente desde a II Grande Guerra, com ligeiras mudanças, tal como a queda da URSS e o surgimento da Federação Russa. O artigo procura mostrar que o equilíbrio atual tende a se manter no futuro a longo prazo, a menos que surjam novos fatos imprevisíveis no momento. Palavras-chave: Crise econômica. Regulação bancária. Desenvolvimento científico e tecnológico. Defesa e hegemonia mundial. World Hegemony Future Perspectives Depending On Economic Crisis ABSTRACT The world military and scientific-technological power equation has not changed and seems not to change in the following 30 years due to the increasing economic and financial crisis ignited in 2007/08, which has extended so far, as well as, regulatory, monetary and fiscal policies adopted by the central countries to face it. The emerging countries have become prominent in the international scenario, but not enough to change the actual balance which comes from the Second World War, with slight changes, such as the fall of the USSR and the emergence of the Russian Federation. This article seeks to show that the present balance tends to remain in a long-term future, unless new and unpredictable facts occur. Keywords: Economic Crisis. Bank regulation. Scientific and Technological Development. Defense and world hegemony. * Professor e pesquisador da Escola de Políticas Públicas e Gestão Governamental. Instituto Universitário de Pesquisas da Universidade Candido Mendes 34 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 35-59, jan./jun. 2013 Perspectivas Futuras da Hegemonia Mundial em Função da Crise Econômica Perspectivas Futuras del Hegemonía Mundial Dependiendo de la Crisis Económica RESUMEN La ecuación del poder militar científico-tecnológico no ha cambiado, y parece que no va a cambiar en los próximos 30 años a causa de la crisis económica y financiera en evolución iniciada en 2007/08, que se extiende hasta el presente, y políticas fiscales, monetarias y regulatorias adoptadas por los países centrales para hacer frente a ella. Los llamados países emergentes han ganado protagonismo en la escena internacional, pero no lo suficiente para cambiar el equilibrio actual desde la Segunda Guerra Mundial, con ligeros cambios, como la caída de la URSS y el surgimiento de la Federación Rusa. El artículo trata de mostrar que el saldo actual tiende a permanecer en el futuro a largo plazo, a menos que existan nuevos hechos imprevisibles en este momento. Palabras clave: Crisis económica. La regulación bancaria. El desarrollo científico y tecnológico. Defensa y la hegemonía mundial. 1 ORIGENS DA CRISE ECONÔMICA ATUAL E O PÓS-CRISE Há muito tempo, analistas de diferentes extrações acadêmicas vêm dedicando atenção para entender as diversas dimensões e propor soluções para a crise em curso, desencadeada em 2007/08, com o estouro do mercado de hipotecas subprime nos EUA, levando de roldão todo o mercado financeiro norte-americano, além de outras empresas não estritamente financeiras. Muitas comparações são feitas com a Crise de 1929 (GALBRAITH, 2010), mas, apesar de em ambas a especulação ter extrapolado os limites, as diferenças avultam mais que as semelhanças. O estopim da crise atual foi o fato de que agentes financeiros autorizados (bancos de crédito imobiliário) e não autorizados (bancos comerciais, de investimentos, seguradoras, gestores de recursos de terceiros, como os hedgefunds) operaram com hipotecas de alto risco1. Os agentes não autorizados disfarçaram suas operações com hipotecas através de artifícios financeiros, de modo a fraudar 1 As hipotecas subprime emitidas em troca de financiamentos imobiliários concedidos a tomadores sem capacidade comprovada de pagamento das prestações (negros, chicanos, sem emprego assalariado ou renda garantida, e pobres em geral, sem cartão de crédito e sem cadastro nas grandes cadeias de lojas, etc.), tendo como garantias os próprios imóveis adquiridos, com taxas de juro baixas e fixas, nos dois primeiros anos, e elevadas e variáveis, de acordo com as taxas básicas praticadas pelo Sistema de Reserva estadunidense (FED), nos 28 anos restantes do prazo de amortização. As hipotecas subprime foram assim denominadas em contraposição aos mesmos títulos de divida emitidos contra devedores de primeira qualidade, os prime, que tinham crédito para financiar seu consumo garantido por empresas de cartões ou nas instituições de comércio. Para uma discussão detalhada sobre o instituto da hipoteca e os mercados que negociam títulos nela baseados veja artigo citado na nota seis. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 34-59, jan./jun. 2013 35 Luiz Alfredo Salomão a regulação/supervisão bancária vigente (baseada nos acordos Basileia I e II e na Lei Glass-Steagall, de 1933), que os proibia de financiá-las, com a conivência das agências de rating (Standar&Poors, Ficht, Moodle e outras) e a desatenção da própria fiscalização do Sistema FED2. Como essas operações de crédito subprime eram altamente rentáveis, todos os agentes captaram recursos de terceiros o quanto puderam para reemprestar naquele mercado florescente e lucrativo (processo conhecido como “alavancagem” ou leverage, em inglês). Contaminados pelos riscos de crédito concedido irresponsavelmente e sem defesas suficientes — que deveriam constituir com reservas de capital próprio proporcionais, ao invés de altíssima alavancagem3 — os órgãos do sistema financeiro estadunidense sofreram verdadeira “septicemia”, com sequelas inclusive nos bancos estrangeiros que tinham filiais atuando naquele mercado (da Europa, especialmente da Espanha, mas também da China, Austrália, Nova Zelândia etc., mas, felizmente, não do Brasil, cujo Banco Central atuou com maior rigor, exigindo o cumprimento pelas instituições financeiras das regras de Basileia I e II e não as liberou para operar com ativos estrangeiros). Os marcos críticos da evolução da crise foram: (i) a falência do megabanco Lehman Brothers (após a quebra de uma série de bancos de poupança e empréstimos vinculados a crédito imobiliário, além de várias instituições gestoras de recursos de terceiros), em setembro de 2008; (ii) a partir daí e até 2009, a total estagnação das operações no mercado interbancário (no qual um banco com sobras de caixa empresta a outros que estão com falta de liquidez), paralisado pela desconfiança que cada banco tinha sobre a saúde financeira dos demais; (iii) ainda em 2009, o resgate de uma série de empresas produtivas (dentre as quais algumas que foram estatizadas: General Motors e a Chrysler (ao custo de US$ 25 bilhões), além da seguradora AIG (a quem foi concedida uma linha de crédito de US$ 85 bilhões de recursos públicos, tendo como garantia 80% de suas ações nas mãos do governo) e dos bancos de crédito imobiliário de segunda linha Fannie Mae e Freddie Mac, instituições privadas, mas patrocinadas pelo governo federal americano; (iv) na primavera de 2010, a eclosão da crise da dívida soberana de vários países europeus (Irlanda, Grécia, Islândia, Portugal, Itália, Espanha). O valor total dos resgates (em inglês, bail out) diretos de empresas, somente nos EUA, é estimado em US$ 180 bilhões4 de recursos públicos, sem contar o despendido para reforço de capital da Fannie Mae e Freddie Mac, estimado em US$ 2 FED é a abreviatura aqui empregada para significar Sistema de Reserva Federal dos EUA, instituição que exerce as funções de Banco Central naquele país. 3 Alavancagem financeira ou leverage é a relação entre recursos de terceiros (endividamento) e o patrimônio líquido (capital social+ reservas de capital) da empresa, ou instituição financeira. 4 “It Was Not a Free Lunch: The True Cost of the AIG Bailout” James Tilson and Robert E. Prasch, January 24, 2013. Publicado pelo blog The BIG Picture, em 28 de janeiro de 2013. 36 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 35-59, jan./jun. 2013 Perspectivas Futuras da Hegemonia Mundial em Função da Crise Econômica 200 bilhões5. A maior intervenção estatal em empresas privadas de que se têm notícias na história do mundo, com apenas uns poucos protestos daqueles defensores radicais do capitalismo “puro”, que preferiam ver aquelas empresas estadunidenses fracassadas irem à falência, a sobreviverem no mercado à custa da injeção de dinheiro público. O governo dos EUA argumenta que as ações de controle das empresas que ficaram em seu poder, em garantia, já foram revendidas aos acionistas privados, com lucro para os contribuintes, após essas devolverem o que haviam tomado emprestado. Se computados, porém, os subsídios embutidos na política monetária praticada após o estouro da crise, a chamada quantitative easing (ou highly accomodative monetary policy), que será discutido mais adiante, esse número certamente saltaria para a escala do trilhão de dólares. Para a Europa, não há cálculos precisos sobre o valor total dos bailouts concedidos pelos governos nacionais dos Estados-membros aos bancos e a outras empresas do setor produtivo. Porém, sabe-se que grande parte do aumento da dívida soberana dos Estados da União Europeia — notadamente os PIGS (Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha) e mais Itália e França — foi destinado às operações de resgate de seus bancos e empresas produtivas nacionais. Não foi à toa que todos estes países, junto com os EUA, desceram na escala de classificação de empresas de rating. Como ordem de grandeza, pode-se situar o dispêndio dos governos da zona do euro para socorrer suas empresas, financeiras e não financeiras, também na escala de trilhão de dólares. Todas essas mudanças – que encerraram o ciclo virtuoso de crescimento econômico mundial iniciado em 2003 e constituíram verdadeiras catástrofes para grande número de cidadãos que ficaram sem suas casas e/ou sem empregos, para muitos investidores que tiveram consideráveis perdas patrimoniais e para empresas produtivas que ficaram sem crédito e com mercados encolhidos – são decorrências da chamada globalização. Ou seja, do conjunto de processos de integração econômico-financeira e produtiva de quase todos os países, que exigiram a desregulação dos mercados nacionais, ou re-regulação em bases mais frouxas, visando à liberalização dos fluxos de capital e de comércio entre eles. Tais objetivos foram alcançados, em todas as nações, sem exceção, à custa do aumento das desigualdades sociais, da decomposição da democracia política e do enfraquecimento dos Estados, mediante o encolhimento da respectiva soberania nacional (HALAMI – 2013)6. 5 Flávia Barbosa, em O Globo de 7/08/2013, em reportagem sobre a visita do presidente Obama a Phoenix, faz menção a um dispêndio do Tesouro de US$ 141 bilhões para resgatar as duas gigantes do crédito imobiliário, em 2009. 6 Para mais detalhes factuais, fundamentação conceitual e análises contemporâneas à eclosão da crise do mercado de hipotecas subprime (ago. 2007) e a quebra do Lehman Brothers (set. 2008), recomenda-se a leitura de (SALOMÃO—2008) e (SALOMÃO— 2009). Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 34-59, jan./jun. 2013 37 Luiz Alfredo Salomão As ferramentas de política monetária postas em prática pelo governo Obama não são muito diferentes daquelas aplicadas durante o governo Bush, criando-se condições para fomentar o surgimento de novos fatores indesejáveis, capazes de criar distorções econômicas imprevisíveis. A esses riscos provenientes dos EUA somam-se outros que estão a eles interligados, como, por exemplo, os associados às políticas anunciadas pelo primeiroministro do Japão, Shinzo Abe, em dezembro de 2012, de expansão monetária para ajudar na recuperação da terceira economia do mundo; os riscos de aprofundamento da recessão inerentes às políticas de austeridade fiscal impostas aos países europeus pelo diktat do poder alemão, apesar dos protestos dos trabalhadores organizados da Europa do Sul e da França; e os riscos decorrentes das políticas de desenvolvimento que estão sendo postas em prática pelo novo governo da China (liderado por Li Keqiang), mais focadas no fortalecimento do mercado interno e na melhoria da qualidade de vida dos chineses, segundo o Plano Quinquenal, aprovado no apagar das luzes do governo anterior (liderado por Wen Jiabao). O que pode resultar de tudo isso no período 2015 a 2020, quando se espera, sem base em fatores objetivos de convicção, que a atual crise tenha sido superada? Qual será a nova arquitetura do poder econômico e militar mundial ao final deste período? O que ocorrerá com a Europa, se a situação econômica da Alemanha continuar se distanciando daquela dos países que estão enfrentando a estagnação e perda de competitividade? E o Brasil nesse cenário, cuja evolução provável ainda é pouco nítida, mas ao qual tem de estar atento? 2 COMO OS PRINCIPAIS PAÍSES ESTÃO REAGINDO A crise de 2007/08 teve suas raízes na política monetária posta em prática a partir de 2001, após o atentado às Torres Gêmeas, pelo Federal Reserve System, sob a presidência de Allan Greenspan. A política teve como objetivo evitar a recessão, provocada pela intimidação dos consumidores e empresários com o terrorismo, por meio do estabelecimento de juros reais negativos e grande expansão monetária. Como reflexo disto: a potencialização do boom imobiliário que vinha desde os anos 90, com 70% das famílias americanas transformando-se em proprietários de suas casas, e o surgimento de um segmento artificial (o das hipotecas subprime), paralelo ao pujante mercado de hipotecas dos EUA, para financiar habitações para pessoas de baixa renda ou sem renda regular, ou financiar o consumo em geral (viagens, estudo dos filhos, novos bens etc.) com a garantia hipotecária da própria casa. Como os preços das casas aumentavam continuamente, permitindo novos refinanciamentos, estabeleceu-se uma “corrente da felicidade”, só interrompida com a mudança da política monetária de Allan Greenspan, que, para enfrentar uma alta inflacionária, elevou as taxas de juros dos FED funds — custo dos recursos do 38 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 35-59, jan./jun. 2013 Perspectivas Futuras da Hegemonia Mundial em Função da Crise Econômica Sistema de Reserva Federal (equivalente a um Banco Central) emprestados aos bancos com necessidade de liquidez. Isso levou à inadimplência dos devedores hipotecários subprime, ao despejo deles em massa (foreclosure), à queda acentuada do preço das residências, à paralisação da construção de novas moradias e à falência dos bancos de crédito imobiliário e de outras instituições financeiras e não financeiras com eles envolvidas. Em essência, a política posta em prática durante o período Greenspan, apesar das mudanças de instrumentos, é a mesma adotada pelo FED, ao longo da presidência de Ben Bernanke e depois de Janet Yellen, ou seja, juros reais negativos e expansão monetária acentuada, sob a justificativa oficial de baixar o desemprego e manter a inflação no nível desejado de 2% ao ano para evitar o risco de deflação 7. O desemprego nos EUA, que chegou a atingir cerca de 10% da força de trabalho, no auge da crise, hoje está em 7,6% 8, inferior, portanto, à taxa de setembro de 2012, quando se tomaram novas medidas monetárias (QE 3), e que era de 8,1%. As empresas norte-americanas não rurais criaram cerca de 200.000 empregos/mês em 2013, o que indica razoável ritmo de recuperação econômica, porém os níveis de desemprego e subemprego ainda estão acima das taxas de longo prazo. A taxa de inflação anual até maio de 2013 estava em torno de 1%, aquém, por conseguinte, da meta de 2% ao ano (a.a.) estabelecida como objetivo de política monetária. É preciso elevar a inflação para ajudar na recuperação econômica, que vem ocorrendo em ritmo moderado, mas com sinais estimulantes pelo que se pode observar no mercado de residências, em que se observa elevação do preço das casas, aumento das vendas e o maior volume de construção de novas residências. Por conseguinte, o comitê de política monetária da Reserva Federal (FOMC, equivalente ao nosso COPOM) considera que não deverá alterar a taxa dos FED funds, mantida pouco acima de zero, nem a política de compra de títulos do Tesouro e de títulos privados baseados em hipotecas (MBS), apenas reduzindo gradualmente o valor das compras mensais destes papéis (que era de US$ 85 bilhões/mês no início de 2013 e já está em apenas US$ 55 bilhões em abril de 2014 9, com tendência de redução futura). Tal política monetária promove, simultaneamente, a desalavancagem dos bancos norte-americanos e desvaloriza o dólar estadunidense, outro objetivo implí7 Coerentemente, aliás, com o mandato legal do Sistema de Reserva Federal, que é o de buscar manter o pleno emprego e a estabilidade dos preços. Aliás, este deveria ser também o mandato do Banco Central do Brasil. 8 Dados fornecidos pelo Chairman do Sistema Federal de Reserva, Ben S. Bernanke, na sessão em que foi apresentada a prestação de contas sobre a política monetária do FED, perante o Comitê de Bancos, Habitação e Negócios Urbanos do Senado Americano, em 18 de julho de 2013. 9 Dados fornecidos pela Chairman do FRS, Janet Yellen, em conferência de imprensa do dia 19 de março de 2014 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 34-59, jan./jun. 2013 39 Luiz Alfredo Salomão cito, desejado para melhorar o desequilíbrio no balanço de pagamentos, mas com incalculáveis custos para o contribuinte estadunidense e com sérias consequências para a economia de outros países importadores de capital estrangeiro, como, por exemplo, o Brasil. Políticas monetárias expansionistas semelhantes a dos EUA estão sendo praticadas no Japão, na Europa e, talvez, na China (de onde as notícias são até certo ponto incertas), com o objetivo de evitar a depressão econômica, na Europa, ou a desaceleração brusca, no caso da China. O resultado disso, como se pode observar no Gráfico a seguir, é que a liquidez mundial foi multiplicada por três no último quinquênio. GRÁFICO I Tal inundação de meios de pagamento criará condições para novas e imprevisíveis transformações econômicas mundiais, as quais não necessariamente serão as desejáveis para países em desenvolvimento como o Brasil. Novas bolhas especulativas? Desnacionalização em massa de empresas nacionais em países importadores de capital? Mudanças dramáticas no ranking das maiores economias do mundo em função de uma possível estagnação prolongada europeia e japonesa? Grandes movimentos políticos de massa contra os atuais modelos econômicos praticados em diferentes nações? Graves consequências para o Brasil e outros exportadores de commodities com a desaceleração da locomotiva chinesa? Como ficará o emprego em escala mundial? E os fluxos migratórios mudarão de direção e sentido? O Brasil reagiu à crise internacional prontamente, em 2008, e da maneira correta. Estimulou o consumo doméstico com políticas anticíclicas, tais como a redução da carga tributária através de desonerações tributárias, especialmente 40 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 35-59, jan./jun. 2013 Perspectivas Futuras da Hegemonia Mundial em Função da Crise Econômica para os automóveis, cuja indústria montadora tem grande capacidade de transmissão dos incentivos à demanda a outras indústrias fornecedoras de insumos. Não obstante estarem alertas, as autoridades governamentais não tiveram a coragem de mudar a essência da política econômica brasileira no final do governo Lula, o chamado tripé: superávit primário-metas de inflação-câmbio flutuante, de modo que se manteve a prática de uma taxa de juros muito mais alta do que a dos demais mercados financeiros relevantes, único instrumento de combate à inflação que o Banco Central aplicava. A consequência maléfica desta inércia na política econômica foi: o intenso fluxo de capitais estrangeiros — propiciado pelo QE generalizado, acima comentado — para se aproveitar da taxa de juro real brasileira, bem maior do que zero, como vigia nos EUA e em outras praças; a apreciação do Real frente às outras moedas; a deterioração do balanço de pagamentos com a queda das exportações e o aumento das importações; o arrefecimento dos investimentos para expandir a capacidade produtiva que estava se recuperando e, após o superaquecimento econômico de 2010 (quando o PIB cresceu 7,5% em relação ao ano anterior), uma queda drástica no patamar de crescimento econômico, para cerca de 2% ao ano. Logo ao assumir, em 2011, governo Dilma tomou várias medidas restritivas à atividade econômica para desacelerar o crescimento do PIB (a taxa SELIC chegou a 12,5% em agosto daquele ano), mas seus efeitos foram muito além do esperado. A partir de outubro de 2011, começou a mudar a política econômica, praticamente abandonando — sem, no entanto, o reconhecer — o tripé monetário/fiscal/cambial, e reduzindo significativamente a taxa de juros para níveis mais próximos dos vigentes no mercado internacional (chegando a 7,25% em março de 2013). Cerceou, também, o ingresso de capitais especulativos, através de sua taxação, obtendo como consequência a desejada desvalorização do Real frente às moedas estrangeiras. Tal movimento, saudável para as contas externas de forma geral (cujo desequilíbrio tradicional na conta de serviços foi agravado pelo crescente déficit Comercial), refletiu-se de forma negativa sobre a inflação porquanto muitos insumos estão indexados ao câmbio (as commodities agrícolas, minerais e os combustíveis cuja importação cresceu assustadoramente). A deterioração de alguns indicadores (taxa de inflação crescente, recuos na produção industrial, déficit no balanço de pagamentos, formação do superávit primário aquém do desejado pelo mercado etc.), com intensa repercussão na mídia, provocou insegurança nos agentes econômicos e a inibição dos programas de investimentos das empresas, apesar da preservação dos altos índices de emprego e da manutenção do consumo em patamares altos. A expectativa de elevação da inflação levou o governo a novamente elevar a taxa de juro básica, cuja queda anterior (a 7,25%) não durou o suficiente para motivar as empresas a investir em expansão da capacidade produtiva. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 34-59, jan./jun. 2013 41 Luiz Alfredo Salomão Essa falta de firmeza nos objetivos e na condução da política econômica, associada a uma conjuntura política bastante complicada (protestos populares nas grandes cidades, queda de prestígio das instituições políticas, insatisfação em várias categorias profissionais, base parlamentar do governo negaceando apoio, etc.), projeta incertezas quanto à evolução futura da economia brasileira. Sabe-se de antemão que o crescimento econômico será modesto em 2014 e 2015, além do que, possivelmente, a excepcional situação do emprego poderá não ser mantida nos próximos meses. Não há, porém, qualquer sinal que indique uma opção do governo por restrições ao crédito e ao consumo, com consequências em médio prazo sobre o emprego. No longo prazo, porém, o Brasil precisa redefinir uma estratégia de desenvolvimento que priorize a Questão Urbana (transportes públicos, saneamento, crescimento desordenado das manchas urbanas, violência etc.), cujo descalabro atual finalmente entrou na agenda da sociedade e, por consequência na dos governos, da Energia (sua taxação, balanço entre fontes renováveis e não renováveis, investimentos públicos e privados, eficiência energética e outros temas), além da Educação (formação de recursos humanos adequados para viabilizá-lo o desenvolvimento, elevação dos gastos para 10% do PIB) e do Desenvolvimento Científico-Tecnológico e da Inovação. 3 REFORMAS FINANCEIRAS PARA EVITAR NOVAS CRISES DO GÊNERO Diminuem a cada dia as expectativas do impacto da entrada em vigor dos acordos10 de Basileia III para tornar mais seguras as operações dos bancos que atuam internacionalmente, no sentido de diminuir os riscos de contágio e sua propagação. Para facilitar o entendimento, podem ser simplificados os objetivos dos acordos de Basileia I e II, resumindo-os à regra de segurança de que, por exemplo, um banco não deveria ter operações ativas (aquelas em que o banco aplica os recursos próprios e de terceiros de que dispõe, em empréstimos, financiamentos, investimentos etc.) que montassem a mais de 10 ou 12 vezes seu patrimônio líquido. Isto limita a alavancagem, isto é, o endividamento excessivo do banco para emprestar cada vez mais. Nos EUA, algumas instituições financeiras mais aventureiras chegaram a aplicar até 65 vezes seu equity (patrimônio líquido), tornando-se fortes candidatas à 10 Os acordos de Basileia são estabelecidos sob a égide do BIS-Bank for International Settlements, através deles são instituídas regras operacionais para os bancos, visando a cobertura de riscos para cada tipo de modalidade operacional bancária (crédito de curto e longo prazo, operação de câmbio, participações em empresas, derivativos etc.), através da fixação de limites para o comprometimento do capital e reservas de lucros do banco com cada modalidade, entre outras regras. 42 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 35-59, jan./jun. 2013 Perspectivas Futuras da Hegemonia Mundial em Função da Crise Econômica falência. O BIS-Bank for International Settlements oferece uma descrição detalhada do Acordo Basileia III (BIS-2010); outra apresentação, mais esquemática e resumida (ACCENTURE—2011).. Também ainda não se fizeram sentir mudanças no mercado financeiro dos EUA, em função da entrada em vigor, em 2010, da polêmica Lei Dodd-Frank (FERREIRA—2011). Aprovada depois de longa batalha parlamentar travada no Congresso, com o empenho do presidente Obama, seu texto11 estipulou novas regras para a regulação das empresas financeiras dos EUA — estendendo o poder de supervisão/ fiscalização do FED, antes restrito aos bancos comerciais, para instituições financeiras consideradas importantes em termos de risco sistêmico (dentre as quais corretoras, bancos de crédito imobiliário e de investimento, seguradoras, hedge funds etc.) — segundo critérios determinados na lei. Também foi criado, pela lei, um Conselho de Risco Sistêmico, que tem como missão monitorar os diferentes segmentos do mercado financeiro e outros mercados (como o de seguros, de leasing, de habitação etc.), em que operem empresas consideradas importantes por seu porte. Este Conselho tem ainda a obrigação de emitir avisos a respeito da formação de bolhas especulativas e de alterações indesejáveis na conjuntura daqueles mercados. Esse Conselho comunicou em julho de 2013 ao Comitê de Bancos, Habitação e Negócios Urbanos do Senado dos EUA, que foi concluída a norma para a implantação das regras acordadas em Basileia III, para aplicação às empresas financeiras e não financeiras estadunidenses que atuam em escala internacional e que representam risco sistêmico. A expectativa é que, em função do melhor monitoramento dos bancos e grandes empresas, se possa prevenir a ocorrência de crises sistêmicas semelhantes à de 2007/08, e que desapareça a figura de instituições “tão grandes que não possam ir à falência” e que, por isso, precisem ser socorridas com dinheiro dos contribuintes. Basileia III e a nova lei bancária dos EUA foram as medidas de reação regulatória à crise acertadas no âmbito do G-20, em 2008/2009. É claro que elas diminuem a probabilidade de surgimento de novas crises semelhantes a de 2008 e que se desdobra até o presente. Mas o capitalismo tem enorme capacidade criativa para, no futuro, inventar mecanismos que possam burlar as novas regras regulatórias e instituir novos espaços de especulação e geração de lucros extraordinários, aproveitando-se de falhas de regulação, até que haja uma nova explosão. O combustível para isso continua a ser propiciado pelas políticas monetárias de QE em vigor, conforme apresentado na seção 2. 11 A Lei Dood-Frank tem 1.500 artigos e 2.300 páginas, e trata de diversos assuntos, inclusive a proteção do consumidor. Um resumo muito curto da mesma, feito pelo prof. Lúcio Ferreira está disponível através do link apresentado na Referência (FERREIRA—2011) Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 34-59, jan./jun. 2013 43 Luiz Alfredo Salomão 4 O FANTASMA DO DESEMPREGO COMBINADO COM A SITUAÇÃO FISCAL E DO CRÉDITO PÚBLICO É completamente fora do contexto, a preocupação, no Brasil de hoje, com o desemprego. Mas essa não é a situação típica da maior parte das economias. Como se viu, nos EUA, à custa de uma política monetária altamente polêmica, o desemprego está no momento (abril de 2014) situado em 6,5%, avaliado como elevado, pois acima da taxa média de longo prazo (5,8%). Na Europa, porém, a situação é dramática em alguns países, conforme se depreende do Quadro I seguinte. Países ou regiões Taxa de Desemprego (%) União Europeia 11,3 Alemanha 5,6 Irlanda 14,6 Espanha 27,4 Itália 12,5 Reino Unido 20,3 Estados Unidos 7,6 Brasil 5,7 Quadro I: Situação do emprego em países selecionados (março de 2013). Fontes: Autor, dados de Eurostat, Bureau of Labor Statistics, IBGE. No sítio eletrônico do Departamento do Trabalho dos EUA (BUREAU OF LABOR STATISTICS-2012), pode-se acompanhar a evolução do desemprego em países europeus selecionados, nos EUA, na Austrália e no Japão, desde 2007. É interessante observar a explosão da taxa de desemprego dos EUA entre 2007 e 2009/10 (duplicou em três anos) e como os empregadores japoneses absorveram os efeitos da crise sem sacrificar o emprego. No caso dos países europeus, em que a persistência do desemprego é maior, a grande questão é que seus governos, já limitados em sua política monetária — especialmente os que adotaram o Euro como moeda e, por isso, estão submetidos aos ditames do Banco Central Europeu — também não têm espaço para fazer política fiscal, porque apresentam elevados déficits públicos e estão 44 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 35-59, jan./jun. 2013 Perspectivas Futuras da Hegemonia Mundial em Função da Crise Econômica fortemente endividados. É o que se depreende do Gráfico III, que será exibido posteriormente. Os países, que estão no primeiro quadrante do Gráfico III (rosa), situam-se “no pior dos mundos”, isto é, têm alto endividamento público e alto déficit público como proporção do PIB, superiores às médias europeias. Os que estão no segundo quadrante (branco) têm dívida pública como proporção do PIB elevada, porém déficit público menor do que a média dos países da União Europeia. As economias nacionais que habitam o terceiro quadrante (amarelo) são as mais equilibradas, no sentido de que suas relações Dívida Pública/PIB e Déficit Público/PIB são menores que os 85,3% e (-)4% médios da UE. Finalmente, no quarto quadrante (branco), estão os países com grandes déficits públicos e menos endividados que a média europeia. Como se pode observar, excetuando a Alemanha — que é superavitária e cuja dívida pública, da ordem de 80% do PIB, é escalonada a longo prazo —, as grandes economias da Europa que apresentam as maiores taxas de desemprego (França, Itália, Inglaterra e Espanha) são, coincidentemente, as mais comprometidas do ponto de vista fiscal e de crédito público. Esses países, não conseguem se endividar mais e para “rolar” suas dívidas têm de pagar altas taxas de juros. Portanto, com menor potencial para formular políticas públicas ativas que melhorem sua posição em termos de emprego. Já está comprovado que, em situação de desemprego elevado, em qualquer parte do mundo, dificilmente os governos conseguem reeleger-se ou fazer seu sucessor. O desemprego alto é sempre aliado da oposição política. Os conservadores propõem para esses países políticas de desregulamentação do trabalho, ou seja, a perda de direitos trabalhistas conquistados no passado, com vistas a flexibilizar as relações de emprego e aumentar a produtividade dos trabalhadores através de maior exploração da mão de obra. Evidentemente, a organização política dos trabalhadores vai resistir o quanto puder a estas reformas e não há perspectivas de mudanças nas relações de trabalho na Europa em curto prazo. Apesar dessa resistência, o fato é que está havendo um descolamento da situação da Alemanha em relação aos seus vizinhos, pois, enquanto estes estão estagnados e com alto desemprego, o PIB alemão se expande, suas exportações de produtos de alto valor agregado aumentam, há praticamente pleno emprego e seu desenvolvimento tecnológico evolui satisfatoriamente. Será possível manter tal desnível, ou o mesmo vai se ampliar? Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 34-59, jan./jun. 2013 45 Luiz Alfredo Salomão Gráfico III: Endividamento e déficit público na Europa. Fonte: El País - El mapa de las cuentas públicas europeas. Madrid., de 2 abr. 2013. 5 PANORAMA MUNDIAL DO DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO E INDUSTRIAL Após longa maturação conceitual, países de níveis de desenvolvimento intermediário, como o Brasil, finalmente compreenderam a importância da geração de inovações tecnológicas e gerenciais para aumentar a produtividade da economia e orientar os investimentos que levam ao crescimento econômico e à melhoria das condições de 46 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 35-59, jan./jun. 2013 Perspectivas Futuras da Hegemonia Mundial em Função da Crise Econômica vida de suas populações. Assim mesmo, no Brasil, foram quase 10 anos de intervalo entre a constatação da importância das inovações (governo FHC) e a emissão de políticas públicas de apoio (subsídios, financiamentos favorecidos, incentivos fiscais etc.) às empresas inovadoras (final do governo Lula). Os resultados ainda não apareceram na escala esperada, mas é preciso persistir nesse caminho por muito mais tempo. Sem qualquer dúvida, os países que mais investem em desenvolvimento científico-tecnológico e em inovação (C&T&I) são aqueles que têm melhores perspectivas de expansão industrial, da infraestrutura de serviços e de hegemonia no comércio internacional de bens de alto valor agregado, como os dos setores: eletroeletrônico, da tecnologia da informação, aeroespacial, da energia nuclear e energias alternativas, biotecnologia e material de defesa. São os países que gerarão maior número de empregos qualificados e alta remuneração, podendo oferecer à sua população os melhores padrões de vida. O Gráfico IV seguinte relaciona o volume de investimentos em C&T&I dos países do G-20, com o PIB respectivo (comprimento horizontal da faixa) e em termos absolutos (altura da faixa), bem como a composição de suas fontes de financiamento (recursos públicos em azul; privados em vermelho). Note-se que a Coreia do Sul se sobressai dos demais em função do grande esforço de investimento que faz em C&T&I (3,7% do PIB), juntamente com enormes gastos em educação, o que permite antecipar que este país continuará a aumentar sua importância em ramos industriais tais como: eletroeletrônica e tecnologias da informação e comunicação (TICs), automobilística, construção naval e off-shore, energia nuclear e biotecnologia (em que ainda não despontou, mas deverá despontar em breve). Da mesma forma, o Japão mantém elevado nível de investimentos nesse campo (3,4% do PIB), o que significa que não abdicará de sua condição de segunda potência tecnológica mundial, atrás apenas dos EUA, e com destaque nos mesmos segmentos acima mencionados para a Coreia. Os Estados Unidos, apesar de investirem pouco menos de 3% de seu PIB no setor é, de longe, o país que mais aplica recursos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) em termos absolutos, possuindo a melhor articulação institucional entre empresas-universidades/centros de pesquisa-governo/forças armadas para extrair os melhores resultados de cada dólar aplicado em C&T&I. Não se consegue visualizar qualquer setor em que a hegemonia científica, tecnológica e de inovação estadunidense esteja ameaçada, seja nos segmentos de ponta da indústria, como em TICs (em que japoneses, coreanos e taiwaneses são competitivos), em material de defesa (em que russos e alguns europeus são competitivos) ou em bioteconologia (em que europeus também competem acirradamente). A firme liderança americana no desenvolvimento C&T&I é talvez a principal garantia do argumento de que, se é verdade que a escala relativa de poder econômico e militar dos países tende a se alterar em intervalos de 20 a 50 anos, é altamente improvável que ocorra alguma mudança na primeira posição do ranking até 2050. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 34-59, jan./jun. 2013 47 Luiz Alfredo Salomão Da mesma forma, a Alemanha dificilmente perderá posição de relevo, ainda que seja apenas a quarta economia do mundo em termos de valor do PIB medido em PPP (sigla em inglês)-Paridade do Poder de Compra. Gráfico IV: Porcentagem do PIB investido em pesquisa científica Fonte: Andrew Steele, Tom Fuller, 29 de maio de 2013 – Scienceogram 48 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 35-59, jan./jun. 2013 Perspectivas Futuras da Hegemonia Mundial em Função da Crise Econômica Sua taxa de investimento em C&T&I como proporção do PIB (2,8%) é praticamente igual à norte-americana e sua articulação institucional entre indústria/ governo/universidade /centro de pesquisa também é excelente12. Note-se também que a Alemanha não dedica recursos para P&D para a indústria de material de defesa, tendo em vista as restrições que sobre ela pesam para gastar na área militar. Isto reforça a posição da indústria civil alemã que, em termos relativos, gasta proporcionalmente mais do que a estadunidense em C&T&I. A China — segunda economia do mundo em termos de PIB, medido em PPP — vem aumentando seu esforço de inversão em C&T&I, com resultados muito positivos em termos de aumento de sua produtividade média (que pode ser considerada muito baixa se comparada com a das economias avançadas). Apesar da presença de marcas chinesas no mercado mundial automobilístico e de produtos eletroeletrônicos, inclusive naqueles intensivos no emprego de TICs (como computadores e material de telecomunicações), a posição deste país ainda está bem aquém dos quatro primeiros colocados. Beneficiadas pela escala de um mercado interno imenso e de fortes exportações, os produtos chineses de maior valor agregado, ainda que mais baratos, não dispõem, em geral, de padrões de qualidade competitivos. Não obstante a posição desvantajosa, a China fez conquistas tecnológicas marcantes em setores tais como: aeroespacial, energia nuclear, defesa e guerra cibernética, indústria ferroviária, telecomunicações, entre outras. É impressionante, também, o investimento chinês feito na formação de engenheiros13 das várias especialidades, o que certamente resultará em futuros ganhos em matéria de desenvolvimento tecnológico. França, Canadá e Reino Unido estão em posição mais favorável que o Brasil, especialmente devido à participação mais intensa das empresas privadas daqueles países no investimento em C&T&I. A Itália também tem uma presença significativa de investimento privado em P&D, mas o volume das inversões como percentagem do PIB é bem próximo do índice alcançado pelo Brasil. Nesse ponto, merece destaque a contribuição maciça do investimento estatal brasileiro em C&T&I, de pouco mais de 50% dos quase 1,2% do PIB que o país gasta no setor. A meta do governo brasileiro é aumentar o investimento total em P&D para cerca de 2% do PIB, dos quais a metade (1%) corresponderia à iniciativa privada. Nos últimos três anos, porém, tal expectativa foi frustrada pela iniciativa privada, que reduziu o investimento em geral. Inclusive em ativos produtivos. A política 12 Tanto é excelente que o Brasil procurou usar o arranjo institucional alemão em matéria de geração de inovação como paradigma na constituição da EMBRAPI. O uso de um bom paradigma institucional, porém, está longe de ser garantia de sucesso na iniciativa brasileira. 13 Estima-se que a China forme 600.000 engenheiros/ano, o que se compara com o número destes profissionais no Brasil, da ordem de 40.000/ano. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 34-59, jan./jun. 2013 49 Luiz Alfredo Salomão governamental no governo Dilma para incentivar o investimento em C&T&I tem sido conceder subsídios para que grandes multinacionais venham criar centros de pesquisa no Brasil, a fim de promover uma espécie de substituição de importações de tecnologia por produção de inovações locais por parte de empresas multinacionais. Isto é mais nítido nos setores de óleo&gás, TICs, automobilística e produção de eletroeletrônicos (tablets, computadores etc.). De qualquer forma, apesar de a prioridade da C&T&I ter aumentado no âmbito das preocupações governamentais nos últimos dez anos, as políticas públicas em vigor não demonstram que o Brasil esteja na rota do catch up a longo prazo com os líderes tecnológicos do mundo. Isto é verdade, inclusive, em setores em que o Brasil tem vantagens comparativas na produção, tais como petróleo e gás, energias renováveis, biotecnologia, agropecuária etc. O Quadro III permite identificar quais são as dez principais empresas investidoras em C&T&I do mundo, numa lista composta basicamente por empresas automobilísticas, farmacêuticas e do segmento eletro-eletrônico ligado às TICs. No mesmo Quadro III, pode-se notar também que nos dez setores que mais atraem investimentos em P&D não se registra a presença de nenhuma grande empresa controlada por capitais brasileiros. Com efeito, se considerados os setores farmacêutico e biotecnologia, hardware e software, automobilístico e eletro-eletrônico, verifica-se que as grandes empresas que neles operam no Brasil são todas filiais de multinacionais. Quadro III: Os maiores investidores mundiais em P&D Fonte: Scoarebord, Departmente for Businesss. 2010. 50 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 35-59, jan./jun. 2013 Perspectivas Futuras da Hegemonia Mundial em Função da Crise Econômica A exemplo do que se observou no Gráfico IV anterior, o Mapa I a seguir demonstra que as empresas privadas têm papel preponderante na orientação e no financiamento da P&D (em vermelho no Gráfico IV e em cinza no Mapa I) em escala mundial. Particularmente, são as grandes empresas que impulsionam o investimento em C&T&I e, por conseguinte, são elas que podem, ou não, alterar o ranking mundial dos países mais inovadores e líderes na pesquisa. Conjugando esse raciocínio com o que se destacou no Quadro III sobre as corporações que mais investem em tecnologia, e os setores em que atuam, tornase nítido que é ilusório imaginar que o Brasil conseguirá alterar sua posição relativa no ranking dos países que mais investem em C&T&I com base apenas no investimento público e de suas empresas estatais em P&D. Esperar que as multinacionais, aqui instaladas ou em processo de montagem de seus laboratórios e de centros de pesquisa, graças a generosos incentivos governamentais, vão melhorar a situação da autonomia tecnológica do País também parece um pensamento equivocado. No máximo, consegue-se substituir importações de tecnologia e formar pesquisadores brasileiros empregados nos laboratórios de empresas estrangeiras. Logo, não parece haver alternativa à estratégia de necessariamente estimular as empresas brasileiras de capital nacional a investirem massivamente em P&D como requisito fundamental para reduzir a dependência tecnológica do Brasil, bem como para criar condições consistentes e sustentáveis para galgar posições no ranking internacional de países-líderes em geração de inovações tecnológicas específicas. A PETROBRAS e a EMBRAPA constituem paradigmas que servem de referência para estruturar uma política realmente consequente neste campo. Mapa I: Panorama mundial do investimento em P&D Fonte: TEIXEIRA, Seminários para Inovação, s/d. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 34-59, jan./jun. 2013 51 Luiz Alfredo Salomão Finalmente, cabe assinalar que a crise internacional afetou profundamente o investimento em capacidade produtiva da maioria das empresas, as quais também foram induzidas a moderar suas metas de expansão das vendas. Entretanto, ao que tudo indica, os investimentos estratégicos em inovação não foram refreados em função da crise, pois as empresas-líderes sabem que, se não mantiverem sua capacidade de inovar, correm o risco de perder fatias de mercado para os concorrentes atuais ou potenciais. Como conclusão, pode-se considerar que são pouco prováveis mudanças radicais nas posições relativas hoje ocupadas pelos países-líderes em matéria de desenvolvimento científico e tecnológico. Não será surpresa, porém, se a Coreia do Sul subir no ranking internacional nos próximos dez anos, caso mantenha a intensidade de seus investimentos em inovação. A China também poderá encurtar significativamente a distância que a separa das nações-líderes, caso mantenha a trajetória de evolução dos últimos 30 anos, o que não parece fácil de acontecer. As sólidas posições de EUA e Alemanha, no entanto, não parecem ameaçadas. 6 PODER MILITAR E TECNOLOGIA Da mesma forma que a distribuição do poder tecnológico entre as nações não deverá experimentar grandes alterações nos próximos 20-30 anos, deve-se esperar certa estabilidade em relação à hegemonia em termos de poder militar. Em primeiro lugar, as potências nucleares que têm, efetivamente, capacidade de projetar seu poder em qualquer região do mundo — a chamada pentarquia nuclear (EUA, Rússia, China, Reino Unido e França) — não alteraram suas posições relativas. Em segundo lugar, os orçamentos militares dos países mantêm há muitos anos tal assimetria que não deixa margem a dúvidas: os EUA são, e continuarão a ser por muitos anos, a potência militar incontrastável, conforme se depreende do Quadro IV e do Gráfico IV seguintes. 52 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 35-59, jan./jun. 2013 Perspectivas Futuras da Hegemonia Mundial em Função da Crise Econômica Quadro IV: Maiores gastos militares por país - 2008 Fonte: Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI). Os Estados Unidos possuem 1,4 milhões de homens e mulheres em armas, dos quais cerca de 170 mil soldados sediados em bases militares instaladas em cerca de 50 países, ou em missões no exterior, cobrindo 150 nações. Os contingentes mais significativos estavam estacionados, em fins de 2013: no Afeganistão (68.000 militares), no Japão (53.000), na Alemanha (46.000), na Coreia do Sul (29.000), no Kuwait (15.000), na Itália (11.000) e no Reino Unido (9.000). Tais números podem ser considerados modestos em relação ao que já foram válidos em anos da Guerra Fria e de guerras localizadas (a Coreia e o Japão já tiveram mais de 200.000 guerreiros americanos em seus respectivos territórios). Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 34-59, jan./jun. 2013 53 Luiz Alfredo Salomão As associações civis formadas para ajudar os muitos milhares de veteranos que participaram das guerras envolvendo forças dos EUA fornecem em sítio eletrônico (VETFRIENDS) um mapa digital e interativo que permite acompanhar quais foram, ano a ano, os contingentes de tropas estadunidenses localizadas em cada teatro de operações. Gráfico V: Comparações entre os gastos militares das principais potências Fonte: SIPRI Um banco de dados sobre as bases militares norte-americanas, bastante detalhado e atualizado até dezembro/2012, com base em informações do Departamento de Defesa dos EUA, é fornecido pelo sítio eletrônico de uma entidade associativa dos veteranos de guerra daquele país (VETFRIENDS—2013) e vale a pena ser visitado para se ter uma noção mais precisa do que é o poder projetado em bases fixas por aquele país e de quanto isso deve custar. A única forma imaginável de ver reduzir-se este imenso aparato de guerra, que custa bilhões aos contribuintes norte-americanos, seria em função de cortes orçamentários determinados pelo Congresso nos gastos de Defesa daquele país, colimando reduzir o déficit fiscal e o endividamento público (o chamado abismo fiscal, ou fiscal cliff, em inglês), objeto da Lei de Alívio do Contribuinte de 2012 (U.S.CONGRESS-2012). Ocorre que a aplicação do sequestro de verbas do orçamento, tarefa de um Super Comitê bipartidário no Congresso, resulta numa batalha interminável, com os Republicanos querendo limitar os cortes na Defesa e ampliá-los 54 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 35-59, jan./jun. 2013 Perspectivas Futuras da Hegemonia Mundial em Função da Crise Econômica nos Programas Sociais, enquanto os Democratas querem fazer exatamente o inverso. O impasse vigente em junho de 2013 estava em quanto seria cortado do teto de gastos em cada uma daquelas rubricas. Em princípio, seriam cortados US$ 54 bilhões nos gastos em Defesa (9,8% do total) e igual valor absoluto dos gastos em Programas Sociais (correspondendo a 7,2% do total). O desentendimento estabeleceu-se entre Democratas e Republicanos e os tetos de gastos serão rebaixados, em 2014, até os valores de US$ 469 bilhões para os Programas Sociais e US$ 498 para os gastos com Defesa, totalizando economias de US$ 967 bilhões. A acirrada luta parlamentar no sentido de preservar os gastos em Defesa torna claro que a sociedade norte-americana — ou pelo menos seus setores politicamente mais organizados — não está disposta a abrir mão da indiscutível supremacia militar estadunidense no planeta, no futuro. A importância destes gastos em Defesa para os orçamentos dos centros de pesquisas, das universidades e para a indústria fornecedora de bens e serviços para as forças armadas do país justifica o empenho de tantos congressistas na manutenção daqueles limites em patamares os mais altos possíveis. A China também mantém elevados orçamentos para a Defesa, apesar de os discursos oficiais do Governo Central e do Partido Comunista enfatizarem com insistência a busca incessante do povo chinês pela paz universal. De fato, porém, desde os tempos da revolução liderada pelo Exército Vermelho, a China sempre se sentiu ameaçada por seus vizinhos ao norte (União Soviética e agora Rússia), a Leste (Japão), ao Sul (Índia) e pelo Mar da China (EUA). Com uma força terrestre de 2,3 milhões de soldados, o Exército da China é o maior do mundo, mas pode-se dizer que o foco das forças armadas chinesas é a defesa de seu território, do espaço aéreo e de seu mar jurisdicional. As forças armadas chinesas são desprovidas de sistemas de armas que permitam a projeção de poder em outras regiões, tais como porta-aviões. Sua primeira embarcação desse tipo foi lançada ao mar em setembro de 2012, e o segundo está em construção. Rússia, França e Reino Unido possuem forças armadas adestradas e com razoável poderio em termos de sistemas de armas, inclusive nucleares, com alguma capacidade de projeção de poder (maior que a chinesa, mas muito inferior à norteamericana). Todos estes países mantêm programas de desenvolvimento científico e tecnológico de interesse das respectivas bases industriais de defesa, mas seus resultados seriam incapazes de superar a já mencionada supremacia dos EUA. O Brasil patina na área da Defesa, apesar de dispor de documentos razoavelmente bons, nos quais se estabelece corretamente que a estratégia de Defesa é inseparável da estratégia de desenvolvimento econômico social. O Ministério da Defesa e as Forças Armadas que estão sob sua supervisão, não têm clareza na definição de suas prioridades, de modo que a Estratégia Nacional de Defesa, elaborada em 2008 e revisada em 2012, não se desdobra numa política pública consistente, Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 34-59, jan./jun. 2013 55 Luiz Alfredo Salomão composta de programas e projetos bem desenhados e com recursos firmes alocados para o seu desenvolvimento. Além disso, os orçamentos da Defesa, no Brasil — diferentemente do que ocorre nos EUA —, são objetos de corte sem a menor cerimônia por parte das autoridades econômicas, como se deu recentemente. Por outro lado, como a sociedade brasileira não nutre projetos de conquista territorial, não vislumbra qualquer ameaça externa e como nosso último envolvimento em guerra se deu há sete décadas, assim mesmo num conflito que não nos dizia respeito, é compreensível que gastos com Defesa sejam tratados no Brasil como de baixa prioridade. Prevalecem, então, os projetos melhor estruturados, como os da Força mais organizada, a Marinha do Brasil, que está expandindo sua frota de submarinos convencional, em parceria tecnológica com a França, visando à construção futura de um submarino com propulsão nuclear. Da mesma forma, finalmente foi decidida pelo Governo a aquisição de 36 caças suecos SAAB-Gripen, atendendo assim à inclinação da Aeronáutica por este avião, em detrimento das aeronaves francesa e norte-americana. A escolha teve como fatores decisivos o compromisso da SAAB de transferir para empresas brasileiras as tecnologias já dominadas, desenvolver outras em conjunto e de fabricar boa parte dos componentes aqui no Brasil De qualquer forma, apesar dos discursos enaltecendo projetos ambiciosos e estratégicos das três Forças (um carro de combate totalmente fabricado no Brasil, o Guarani; um sistema de monitoramento e vigilância das fronteiras SISFRON; um cargueiro aéreo de fabricação nacional, o KC-390; a retomada do projeto do VLSVeículo Lançador de Satélites nacional, com a reconstrução da Base de Alcântara; os novos submarinos convencionais de tecnologia francesa e o de propulsão nuclear), com ênfase na fabricação nacional, os programas brasileiros de renovação do material de Defesa, por falta de recursos financeiros, não representam impulso significativo na estratégia industrial do país, ou na geração de emprego. Em consequência, num horizonte visível, o Brasil não reduzirá o gap que o separa das nações que contam com sólidas infraestruturas de Defesa. 7 PROPOSTAS À GUISA DE CONCLUSÃO A longa argumentação até aqui desenvolvida, fruto de reflexões mais ou menos acabadas acerca de políticas públicas econômicas, de desenvolvimento C&T&I e de Defesa, visou justificar o seguinte conjunto de propostas para discussão. No horizonte dos próximos 20 anos, dificilmente haverá mudanças drásticas de posição nas posições-chaves do ranking das grandes potências econômicas, científico-tecnológicas e militares. Nos últimos 20 anos, o Brasil avançou significativamente na escala de classificação mundial, situando-se novamente entre os seis ou oito maiores mercados nacionais, dependendo de quanto nossa moeda este56 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 35-59, jan./jun. 2013 Perspectivas Futuras da Hegemonia Mundial em Função da Crise Econômica ja apreciada, ou depreciada. Para melhorar sua posição relativa, o Brasil teria de equacionar de uma vez por todas seu sistema educacional de modo a que possa produzir capital humano de níveis de qualidade compatíveis com os requerimentos científico-tecnológicos da sociedade do conhecimento. O caso da Coreia do Sul deveria servir de inspiração, não para cópia de instituições, mas como benchmark de resultados que precisam ser alcançados pelo Brasil em prazos urgentes. Apesar das reformas para aplicação aos bancos que operam em escala internacional (Basileia III) e para monitorar, nos EUA, as grandes empresas financeiras e não financeiras que representem risco sistêmico e supervisioná-las através de agências reguladoras próprias (Lei Dodd-Frank), não pode ser descartado o risco de surgirem distorções de mercado propiciadas pelas políticas monetárias aplicadas nas grandes economias (EUA, Europa e Japão). É quase trivial imaginar que até 2030 grandes choques externos deverão surgir por conta de bolhas especulativas, crises monetárias (do euro? do dólar?), quebra de países irresgatáveis etc. Neste futuro próximo, curto do ponto de vista histórico, o Brasil precisa manter suas reservas cambiais em níveis suficientes para enfrentar eventuais choques externos, mas não necessariamente tão altos quanto agora, em função da entrada vultosa de capitais especulativos, ávidos pelas nossas gordas taxas de juro e financiados pelas políticas monetárias de outros países, de inundação de liquidez (QE) para salvar seus bancos da insolvência e suas indústrias da recessão. Reservas cambiais elevadas custam caro ao contribuinte. Não se colima, nas duas próximas décadas, fatores nítidos que justifiquem a previsão de grandes alterações relativas no ranking de países mais poderosos do ponto de vista econômico-financeiro, cientítico-tecnológico e militar. A Coreia do Sul pode galgar várias posições, porém, sua pequena dimensão demográfica não lhe garante entrar no primeiro time dos grandes mercados. Continuará, no entanto, a ser uma potência comercial, com exportações crescentes de produtos de alta tecnologia. Apesar das reações às vezes desanimadoras dos empresários brasileiros, é preciso insistir em políticas de desenvolvimento C&T&I pelas empresas domésticas a qualquer custo. Importação de tecnologia e inovação e sua produção local por filiais de empresas estrangeiras tem de ser objeto de uma política específica. A liberdade dos empresários brasileiros para importá-las indiscriminadamente inviabiliza qualquer esforço para conectar empresas nacionais e laboratórios de universidades e centros de pesquisa locais. A vulnerabilidade externa tecnológica é, do ponto de vista estratégico, a mais grave “no mundo que vem aí”. A política econômica brasileira tem de perseguir objetivos definidos com perseverança, o que evidentemente exige capital político para enfrentar a campanha sistemática dos meios de comunicação e dos “grandes analistas” a serviço dos rentistas por mais juros e mais austeridade fiscal. Taxas de juro real alinhadas com as vigentes no mercado internacional devem ser um componente permanente desta política e não uma variável para agradar, ou não, ao mercado. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 34-59, jan./jun. 2013 57 Luiz Alfredo Salomão Responsabilidade fiscal é outra componente da política econômica que precisa ser respeitada, principalmente pelo Congresso Nacional e pelos entes federados. Não apenas a responsabilidade fiscal em termos conservadores, prevista na Lei Complementar nº101/2000, mas a que busque obter o melhor resultado na aplicação dos recursos públicos. Não é possível que o Brasil dê tantos vexames na execução de obras públicas, não porque sua Engenharia tenha regredido, mas porque as licitações são feitas a partir de projetos básicos, e não de projetos executivos, conduzindo a erros de orçamento e de implementação catastróficos. Ou seja, é preciso melhorar muito a gestão pública, especialmente em matéria de infraestrutura. As previsões de que o Brasil alcançaria a 5ª (quinta) posição no ranking dos maiores PIBs do mundo parecem, hoje — após reduzir-se um pouco a elevada apreciação do Real em relação a outras moedas, observada nos últimos anos —, demasiado otimistas. A hipótese não está afastada, sobretudo em vista da perspectiva de estagnação de algumas nações europeias a nossa frente (Reino Unido e França). Mas para tanto será preciso uma mudança significativa na política econômica brasileira, visando um projeto claro de desenvolvimento para o País e não apenas confiar que o mercado mundial terá o condão de produzir os milagres que esperamos. REFERÊNCIAS ACCENTURE, Basel III and Its Consequences: Confronting a New Regulatory Environment [S l], 2011>. Disponível em: <http://www.accenture.com/SiteCollectionDocuments/PDF/Accenture_Basel_III_and_its_Consequences.pdf>. Acesso em: jun. de 2013. BIS-BANK OF INTERNATIONAL SETTLEMENTS, Basel III: A global regulatory framework for more resilient banks and banking systems, Basileia, 2010. (ver. Jun 2011) Disponível em: <http://www.bis.org/publ/bcbs189.pdf>. Acesso em: jun. 2013. BUREAU OF LABOR STATISTICIS, U.S.DEPARTMENT OF LABOR , International unemployment rates, July 2012. Washington, 2012. Disponível em: <http://www.bls.gov/opub/ted/2012/ted_20121003.htm>. Acesso em maio de 2013. BOLAÑOS, Alejandro. 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A identificação de uma ameaça à ordem (referenciada na relação amigo-inimigo) proporciona ao soberano, segundo Schmitt, a capacidade de suspensão da lei e do direito em prol das ações necessárias à manutenção do Estado. Mediante este processo (re)fundador, propõe-se que a “virtù cidadã” pode ser renovada a partir de uma lógica do fortalecimento da estrutura da comunidade política nascida do acordo fundador e da intimidade que esse acordo inaugura entre seus constituintes e o poder soberano. Tal proposta pretende lançar luz sobre uma inquietação: considerar as ações de manutenção do Estado implica necessariamente a instituição de uma personagem com poderes absolutos? Palavras-chave: Estado. Exceção. Soberania. Cidadão. Action, Exception and State ABSTRACT The present article aims to establish a study regarding sovereignty through the lens of the exception through a comparative analysis between the reflections of Niccolo Machiavelli and Carl Schmitt. To this end, the institution of the order and the establishment of a civic awareness within the Nation-State logic will be analyzed. The Schmittian statesman is conceived as a possible type of Machiavellian Prince. The identification of a threat to order (referenced in the friend-enemy relationship) offers the sovereign, according to Schmitt, the ability to suspend the law and the right in favor of the actions necessary to maintain the State. Through this (re)foundational process, it is proposed that the “virtù of the citizen” may be renewed from the logic of the strengthening political community structure born * É graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal Fluminense-UFF. ** É Professor do Instituto de Estudos Estratégicos (INEST), Universidade Federal Fluminense (UFF). ***É Professor do Instituto de Estudos Estratégicos (INEST), Universidade Federal Fluminense (UFF). 60 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 27, n. 56, p. 60-71, jan./jun. 2013 Ação, Exceção e Estado with the original agreement and with the intimacy that this agreement brings about between their constituents and the sovereign power. This proposal seeks to shed light on a special concern: does the consideration of the maintenance actions of the State necessarily imply an institution of a character with absolute power? Keywords: State. Exception. Sovereignty. Citizen. Acción, Excepción y Estado RESUMEN El objetivo de este trabajo es establecer, a través de un análisis comparativo entre las reflexiones de Nicolás Maquiavelo y Carl Schmitt, un estudio sobre la soberanía a través de la óptica de la excepción. Para eso, se analizará la cuestión de institución del orden y el establecimiento de una conciencia cívica dentro de la lógica de Estado-Nación. Se concibe el hombre de Estado schmittiano como un posible tipo de príncipe maquiavélico. La identificación de una amenaza al orden, que se referencia en la relación amigo-enemigo, proporciona al soberano, según Schmitt, la capacidad de suspender de la ley y del derecho a favor de las acciones necesarias al mantenimiento del Estado. Mediante este proceso (re)fundador, se propone que la “virtù ciudadana” puede renovarse a partir de una lógica de fortalecimiento de la estructura de la comunidad política que nació del acuerdo fundador y de la intimidad que este acuerdo inaugura entre sus constituyentes y el poder soberano. Tal propuesta pretende iluminar una inquietud: ¿considerar las acciones de mantenimiento del Estado implican necesariamente la institución de un personaje con poderes absolutos? Palabras clave: Estado. Excepción. Soberanía. Ciudadano. 1 Introdução Embora separados por cinco séculos, percebe-se, em Nicolau Maquiavel e Carl Schmitt, a mesma preocupação com a criação e a pretensão de eternidade da ordem política: comunidades políticas se desgastam com o tempo, perdem força e, por vezes, entram em colapso. Se assim é, urge que se estabeleçam medidas de salvaguarda ou ainda janelas para ações excepcionais de restabelecimento do ordenamento em desintegração. Precisamente nesse momento – a emergência da fortuna e seu enfrentamento – apresenta-se a preocupação primordial deste artigo. Os poderes necessários à fundação ou refundação do ordenamento político são de grande alcance e profundidade: isso implica a imediata associação entre o detentor desse poder e o tirano? O mergulho do homem excepcional (soberano, príncipe ou fundador) nas entranhas da fortuna promove sua dissociação da multidão de homens que origiRevista da Escola Superior de Guerra, v. 27, n. 56, p. 60-71, jan./jun. 2013 61 Rachel Silva da Rocha Coutinho, Victor Leandro Chaves Gomes e Frederico Carlos De Sá Costa nalmente instituiu a comunidade política, certamente. Entretanto, contextos políticos densos nascem de algum tipo de acordo, contrato ou momento fundacional que, em sua radicalidade, produz uma entidade artificial, o Estado, e igualmente produz a figura do ruler. A pergunta que orienta a presente discussão aponta para dois momentos de excepcionalidade: aquele imediatamente posterior à fixação do acordo, contrato ou fundação, em que o homem excepcional se vê às voltas com uma situação que não mais exige sua extraordinariedade; e o momento em que a comunidade política entra em crise e precipita-se para a desintegração. O momento excepcional, bem entendido, é aquele em que não há norma, quer seja pela tibieza política existente, quer seja pela ruptura causada por algum evento dramático (guerra civil, catástrofe natural etc.). O momento excepcional schmittiano é aqui interpretado como um tipo de (re)fundação, em outras palavras, a ação por excelência do príncipe maquiaveliano: neste ponto, encontra-se a convergência entre os autores os quais interessam a este artigo. No cerne deste argumento, observa-se a instauração do Estado como estrutura perpetuadora da lógica cívica imposta pelo fundador. A convergência entre os autores avança para a concepção de ordem em uma conjuntura de caos, o papel da virtù na vida do príncipe e/ou do soberano, além do momento de fortuna entendido como janela de oportunidade para a consolidação da ação política. Não se desconsidera, certamente, a separação entre os autores quanto à visão do poder soberano frente à instituição do Estado. Em Maquiavel, percebemos a gênese da discussão moderna a respeito da amplitude e profundidade do poder soberano, comandado em um primeiro momento pelo príncipe, mas, em condições de plena virtù, passada às mãos do Estado após o momento da fortuna. As ações do príncipe ou fundador dão azo à formação daquilo que Maquiavel considera como sendo a suprema realização humana, a criação de uma nova realidade, com boas leis e boas armas, o galgar do altar cívico e da glória mundana. A cidade surge plena de liberdade, independência, soberania (termos, aliás, sinônimos em Maquiavel). Em Schmitt, a concepção do poder soberano adquire outra nuança, uma vez que, além de ser considerado ilimitado (o que não é uma novidade em termos de teoria política), contém em si a capacidade autônoma de decidir quando agir com toda a radicalidade da soberania, de decidir, enfim, quando surge o espaço e o momento em que uma ameaça efetivamente coloca em risco a normatividade e o modo de vida existente. Se em Maquiavel o príncipe age na fortuna, com Schmitt, o detentor do poder soberano tem a capacidade de determiná-la. 2 O ESTADO E A ORDEM: MAQUIAVEL E O PRÍNCIPE Um novo paradigma teórico foi inaugurado por Maquiavel, calcado na valorização do homem e na capacidade deste de guiar concreta e efetivamente a sua ação na polis. Há um rompimento não só com a tradição medievalista, mas também 62 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 27, n. 56, p. 60-71, jan./jun. 2013 Ação, Exceção e Estado com o humanismo clássico que, mesmo trazendo para a esfera humana a capacidade de agir (em contraposição às doutrinas da predestinação), não consegue romper com a associação entre bom governante e bom cristão, o homem prisioneiro da fortuna e o homem que controla seu destino. Até o humanismo, ainda se considerava a fortuna com plenos poderes de deusa caprichosa, controladora dos destinos humanos. Maquiavel, porém, é claro ao afirmar que ao menos metade das ações humanas são controláveis pelos agentes, pelo homem, enfim. Tal controle vem pela atitude frente à fortuna. Dois trechos do capítulo XXV d’O príncipe (1996) bem esclarecem esse ponto: Comparo-a [fortuna] a um desses rios impetuosos que, quando se encolerizam, alagam as planícies, destroem as árvores [...], tudo foge diante dele, tudo cede ao seu ímpeto, sem poder obstar-lhe, e, se bem que as coisas se passem assim, não é menos verdade que os homens, quando volta a calma, podem fazer reparos e barragens, de modo que, em outra cheia, aqueles rios correrão por um canal e o seu ímpeto não será tão livre nem tão danoso. [...] Estou convencido de que é melhor ser impetuoso do que circunspecto, porque a sorte [fortuna] é mulher e, para dominá-la, é preciso bater-lhe e contrariá-la. E é geralmente reconhecido que ela se deixa dominar mais por estes do que por aqueles que procedem friamente. (MAQUIAVEL, 1996, p. 75). A capacidade do homem em controlar a fortuna pode operar de duas formas, a prevenção e a antecipação. O agente é capaz de antever alguns caminhos possíveis pelos quais a turbulência política pode passar, bem como se antecipar a essas turbulências, criando fatos consumados, situações que forcem os outros membros da cena política a agir conforme os termos daquele que toma a dianteira dos processos políticos. Maquiavel estabelece a distinção definitiva entre a virtude cristã – valorizada e incentivada em seu espaço próprio, a intimidade – e a virtude do governante, a virtù, a capacidade de agir civicamente e segundo o interesse do Estado, mesmo que para isso seja necessário saber ser um mau cristão, raposa ou leão. A distinção maquiaveliana, se bem que duramente combatida nos séculos seguintes, não perde força na identificação das peculiaridades do exercício do poder político. O poder político é o poder supremo da mundanidade. É, na tradição de Carl Schmitt, o poder divino laicizado, ou, na tradição hobbesiana, o “deus mortal a quem se deve obediência, abaixo do Deus imortal”. A perspectiva maquiaveliana, forjada na verità effettuale,1 o leva a compreender e analisar profundamente a real situação italiana e sua urgente necessidade de imposição de ordem e unificação política. Somente através da visão dos fatos como eles são (num abandono da especulação filosófica), seria possível transfor1 Prefere-se o uso do termo no original por considerar que a tradução não consegue abranger toda a sua complexidade. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 27, n. 56, p. 60-71, jan./jun. 2013 63 Rachel Silva da Rocha Coutinho, Victor Leandro Chaves Gomes e Frederico Carlos De Sá Costa mar a conjuntura política vigente. Nesse contexto, surge a análise do profeta armado. Moisés teria sido o profeta cujas ações, direcionadas a este mundo, teriam sido coroadas de sucesso mundano, já que foram impostas com todo o rigor possível e necessário, mesmo e apesar dessa imposição implicar a morte de vários hebreus. Por outro lado, Jesus é abordado como aquele que, direcionando suas ações para o mundo divino, não tomou ações direcionadas à modificação da realidade efetiva, tendo, em termos políticos e mundanos, fracassado. Não obstante os termos “Estado” e “ordem” estarem semanticamente ligados, é por meio de Maquiavel que ambos adquirem uma relação política mais profunda. A visão maquiaveliana da natureza humana, entregue a constantes dissenções e incapaz de coexistir pacificamente na ausência de ordenamento, traz à tona a necessidade da estruturação das comunidades políticas em instituições cujo perfil de poder não apresente fissuras que permitam a ação desintegradora de elementos alienígenas à cidade ou suas instituições. Assim, surge, verificável historicamente e, desse modo, constatado já no primeiro capítulo d’O príncipe, o Estado em suas duas formas clássicas, a república e o principado, ambos funcionando ao redor de um poder centrípeto. É dentro deste contexto que emerge a figura do príncipe ou do fundador. Um mesmo homem pode encarnar as duas personalidades (príncipe e fundador, se bem que isso não seja simples nem usual), desde que este homem perceba o espaço próprio de ação da fundação e o da manutenção. Na fundação, exige-se a virtù direcionada à erradicação da anomia; na manutenção da ordem, contudo, as qualidades a exercer dirigem-se à construção e ao fortalecimento das instituições e da virtù popular. Assim, além de instaurar a ordem, cabe ao homem de virtù garantir a sobrevivência da civitas e o seu respectivo modo de vida em liberdade vis a vis as condições de excepcionalidade que vigiam nos momentos de desintegração política, interpretada como vazio de poder e ausência da maior obra humana: a comunidade dotada de novos costumes e novas leis. O momento em que há falência de um ordenamento ou a ascensão de algum adversário da ordem cria o espaço em que o soberano age tendo como limite único as razões de Estado. A virtù maquiaveliana vai muito além de um simples conjunto de qualidades que tornariam uma pessoa comum valorosa e admirada. Ela dá sentido às ações perpetradas em função do Estado, servem aos propósitos cívicos vislumbrados nos momentos de fortuna. O príncipe não se constitui como um tirano, mas como demiurgo e servidor do Estado, aquele que tem concentrada em suas mãos toda a responsabilidade de buscar e impor a ordem. Para tal, é preciso que ele disponha de grande discricionariedade de poderes para que exerça plenamente a Razão de Estado. O príncipe maquiaveliano precisa ter licença para estar, quando preciso, isento das noções íntimas e religiosas de bem e mal, certo ou errado. Compreender a política sob a perspectiva da verità effettuale exige que se compreenda a dualidade de domínios pelos quais o homem da civitas, o cidadão, trafega. Ambos os domí64 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 27, n. 56, p. 60-71, jan./jun. 2013 Ação, Exceção e Estado nios se tocam e, simultaneamente, se repelem; o mesmo indivíduo singular cumpre deveres comezinhos e deveres políticos, persegue a ética do Sermão da Montanha e a ética de poder da competição política. A civitas representa mais do que a soma exata de seus indivíduos constituintes, ainda que se admita o valor insuperável de cada vida, bem exposto pelo cristianismo. O dilema do homem de virtù mostra que, para garantir a ordem na comunidade política, os meios a utilizar são justificáveis em função da permanência de um bem que excede o eu pessoal e cristão. Se bem que o foco mais evidente d’O Príncipe seja a perpetuação de principados, um olhar mais atento permite o vislumbre de algo maior, daquilo que Rousseau, séculos depois, descobriu: Maquiavel finge dar conselhos aos príncipes quando, na verdade, dá conselhos aos povos. A ênfase constante no adágio de que o melhor amigo do príncipe é seu próprio povo é o caminho para a compreensão do elogio republicano da obra do secretário florentino. O homem de virtù, o fundador, não prescinde da virtù popular, pelo contrário, necessita de seu concurso para que a obra de manutenção da civitas escape ao máximo da corrupção do tempo. A finalidade precípua é a consciência cívica viva em cada um e no conjunto de cidadãos, simultaneamente: somente assim a fortuna se torna oportunidade para refundação permanente do Estado. 3 CARL SCHMITT E A EXCEÇÃO Ao abordar a questão do Estado, Schmitt infere a sua noção de um conceito que lhe é anterior: o conceito do político (SCHMITT, 1996). De acordo com o autor, toda relação cuja máxima distensão possa levar ao conflito é considerada como política, ou seja, todo elemento político contém em seu interior o germe da guerra. A força-motriz do político é a relação amigo-inimigo, um processo de identificação de um adversário que representa uma ameaça ao modo de vida de uma dada comunidade e, igualmente à identidade de seus seres privados e públicos. É vital que se perceba a radicalidade desta formulação. A distinção da ação política é o conflito e, por consequência direta, a morte. Somente a percepção clara da proximidade sempiterna da morte permite a correta apreensão do quão ameaçador é o inimigo: ao sobressaltar o modo de vida vigente. O inimigo ameaça destruir a comunidade política (coletivamente) e todos os seus componentes (um a um). Nada daquilo que existia persiste; instituições, costumes e hábitos, festas populares, a noção do certo ou do errado, do amor ou do ódio, tudo morre. Para que não se confundam Schmitt e Maquiavel, é preciso estabelecer que o foco de Schmitt não é tanto a república, mas uma querela com o romantismo político, compreendido como a doutrina do indivíduo isolado e autônomo, que não reconhece conexões entre nada e ninguém, já que está concentrado exclusivamente nele mesmo. Mesmo que formulações jurídicas, políticas e econômicas tenham sua importância reconhecida pelos românticos, elas servem como instrumentos para Revista da Escola Superior de Guerra, v. 27, n. 56, p. 60-71, jan./jun. 2013 65 Rachel Silva da Rocha Coutinho, Victor Leandro Chaves Gomes e Frederico Carlos De Sá Costa algo mais importante, a saber, o desenvolvimento de cada personalidade. Salta aos olhos a diferença com o liberalismo, visto este se concentrar na assertiva de que o social depende do consentimento do individual, ao passo que para o romântico, o social é anterior ao indivíduo, possibilitando-lhe meios para alcançar seu aperfeiçoamento (CESA, In: BOBBIO, et alli, 2000). O tempo vivido por Schmitt exige seu preço e mostra sua influência em seus escritos. A Alemanha, devastada pela Grande Guerra e pela Depressão, oferecia à Europa e ao mundo a oportunidade para a crítica severa do romantismo político e do liberalismo. A crítica ao liberalismo indica a apostasia da capacidade decisória do político – em prol da esterilidade do debate parlamentar ‑, o afastamento de sua característica mais decisiva, a percepção da tensão que cerca as ações direcionadas à preservação do modo de vida vigente. Quando Schmitt diz que soberano é aquele que decide em momentos de exceção, afirma que há uma qualidade específica no agir político, aquela que oferece a compreensão de um agente que não foge da ação política (idem). Muito embora todo indivíduo tenha a capacidade de realizar a distinção amigo-inimigo, Schmitt reserva ao Estado, mais especificamente ao elemento soberano nele existente, o poder de determinar o status ou a saúde da relação amigo-inimigo em um espectro multidimensionado. A relação amigo-inimigo determinada pelo Estado constitui-se como elemento mantenedor da lógica de uma estrutura pública que se reconhece como exclusiva de um dado ordenamento político e consuetudinário. Aos olhos schmittianos, enquanto existir tal distinção, ou seja, enquanto as relações humanas forem coordenadas pelo político, haverá a potencialidade da existência do conflito, da guerra, da dissolução da rede de solidariedade que faz de uma comunidade algo singular. Sendo assim, a possibilidade real da guerra demarcada pela clara percepção de um elemento potencialmente ameaçador do status vigente leva ao estabelecimento, por parte do soberano, de uma decisão que concerne à perpetuação da ordem. Cabe ao Estado, enquanto estrutura que sustenta a ordem, tal poder decisório. Segundo Schmitt, o direito deve ser suspenso para que a política permaneça; a ordem política, precisamente por ser instituinte de todo o corpo social, institui o próprio direito e sobre ele tem precedência. A fim de preservar-se enquanto unidade política, repousará nos ombros do agente soberano o poder de suspender todo ordenamento jurídico para que o Estado permaneça, estabelecendo, portanto, um regime de exceção. A exceção, como o nome indica, não é (e nem pode ser) prevista pela norma jurídica ordinária. A norma trata do previsível e não pode, sob pena de absurdo, antever o imprevisível. A exceção é o momento de exercício da soberania precisamente nesse ponto: o poder supremo e absoluto é capaz de suspender a ordem jurídica por considerá-la incapaz de lidar com algo absolutamente novo. Àquilo que é novo e excepcional, dá-se-lhe o tratamento exigido, também novo, também excepcional, logo, extra-norma. 66 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 27, n. 56, p. 60-71, jan./jun. 2013 Ação, Exceção e Estado A excepcionalidade é proposta por Schmitt como único método efetivo de resgate da ordem e do momento político. Primeiramente pelo revigoramento da imagem do poder soberano enquanto detentor de todo o poder político, e, após isso, como restaurador da unidade presente do lado “amigo” da relação amigo x inimigo. Schmitt compreende o ser humano como um ser essencialmente político, e, a fim de estabelecer um ambiente ordenado internamente, o Estado, através do elemento soberano nele existente, deve promover a unificação política através do fomento de uma consciência cívica. Portanto, em nome da ordem, a maximização desta relação é concentrada na figura do Estado, que deverá eliminar todo elemento contrário ao modo de vida na sociedade em questão. A designação do Estado, então, como instituição conservadora da ordem se manifesta quando este – por meio da capacidade perceptiva puramente aprimorada para reconhecer todo e qualquer inimigo – tem o poder efetivo de aniquilamento do objeto que ameaça a sua existência. Como detentor do jus belli, ele tem autonomia para mobilizar e concentrar suas forças na destruição daquilo que põe em risco a estabilidade: To the state as an essentially political entity belongs the jus belli, i.e., the real possibility of deciding in a concrete situation upon the enemy and the ability to fight him with the power emanating from the entity. As long as a politically united people is prepare to fight for its existence, independence, and freedom on the basis of a decision emanating from the political entity, this specifically political question has primacy over the technical means by which the battle will be waged, the nature of the army’s organization, and what the prospects are for winning the war. (Schmitt, 1996: 45/46)2. Deve-se ressaltar que, em todo momento, está presente a afirmação da decisão: o poder soberano decide o que ou quem é amigo e inimigo, determina o espaço, instante e duração da exceção e quais os meios para dar-lhe fim. 4 MAQUIAVEL E SCHMITT: APROXIMAÇÕES As capacidades do príncipe compreendidas por Maquiavel como essenciais à constituição do poder soberano na civitas parecem encontrar eco em Schmitt através da categoria do político. As virtudes do governante, portanto, revelam-se 2 Ao Estado como uma entidade essencialmente política pertence o jus belli, a possibilidade real de decidir numa situação concreta a respeito do inimigo e a capacidade de lutar com ele com o poder que emana da totalidade. Conquanto um povo politicamente unido esteja preparado para lutar por sua existência, independência e liberdade a partir de uma decisão que emana da entidade política, as questões especificamente políticas têm precedência sobre os meios técnicos pelos quais a batalha será travada, a natureza da organização do exército e as expectativas são pela vitória na guerra. (Tradução nossa). Revista da Escola Superior de Guerra, v. 27, n. 56, p. 60-71, jan./jun. 2013 67 Rachel Silva da Rocha Coutinho, Victor Leandro Chaves Gomes e Frederico Carlos De Sá Costa em sua capacidade de determinar as relações amigo-inimigo pautadas na Razão de Estado. O elogio da ação é veemente. É dever do soberano não só identificar o perigo ao Estado, mas dispor de todos os meios para eliminá-lo. É sob estes moldes que a “virtù schmittiana” se forma. Em Schmitt, a lógica do Estado é a mesma do soberano. Em favor da manutenção da ordem, é seu dever cívico eliminar todo e qualquer movimento contrário à sua continuidade, mesmo sujeito às armadilhas apresentadas pela tirania, já que os poderes extraordinários do soberano não são, no momento de exceção, limitados por nada que não seja a própria percepção do soberano do certo ou errado para a civitas. A apologia da ação é seguida de perto pela exigência da capacidade de decidir. A valorização da história como componente orientador (mas não mimético) da ação política do presente é fortemente marcada nos escritos de Maquiavel e Schmitt. Contudo, a interpretação da visão schmittiana da virtù nos leva a perceber a absolutização da relação amigo-inimigo como aproximação do momento de fortuna a ser constituído como janela de oportunidade à refundação da lógica do soberano vis a vis a contingência da anomia. Percebe-se que a anomia, momento de exceção, é debelada não pelo direito, suspenso, mas pela política. O detentor do poder soberano age, decide e suprime a exceção. A preocupação de Maquiavel e de Schmitt com o perigo iminente do caos leva-nos a estabelecer diferentes concepções concernentes à manutenção de um ambiente político estável. Retornando à questão da (re)fundação da ordem, Schmitt e Maquiavel dialogam a respeito da relevância da autoridade política neste processo, em que o Estado, enquanto locus do político, conserva a capacidade de demarcar o inimigo do público, bem como de eliminá-lo. Maquiavel trabalha a questão do príncipe como garantidor da ordem e fundador de uma estrutura que a mantenha: o Estado dotado de boas leis e boas armas. A necessidade de um poder total e absoluto se faria necessária como meio (re)fundador da ordem. Logo, uma vez retomada a estabilidade, esvair-se-ia o imperativo de sustentação de tal poder nas mãos de um só homem, uma vez que a consciência cívica (a chamada “virtù cidadã”), institucionalizada, possibilitaria a manutenção da República e a transferência do poder soberano para o corpo de cidadãos. O poder soberano não perde seu caráter absoluto; o que perde sentido de ser é a posse desse poder nas mãos de um só homem agindo na excepcionalidade. Sob o aspecto da (re)fundação da ordem, Schmitt apresenta uma perspectiva semelhante, em alguns aspectos, à de Maquiavel. A identificação do elemento de ameaça iminente e a respectiva decisão referente à suspensão do ordenamento jurídico são permeadas pela profundidade e extensão do poder soberano. Em Maquiavel, o momento de exceção permite ao soberano fundar a comunidade politica a partir da inexistência de uma estrutura ordenada. Assim, a necessidade da figura do príncipe/fundador impõe-se como exigência histórica que permitirá a criação de um ordenamento capaz de exercer, por si, a plena au68 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 27, n. 56, p. 60-71, jan./jun. 2013 Ação, Exceção e Estado toridade política. Ou seja, uma vez criadas as condições para o estabelecimento de uma unidade política sólida, o auctoritasé transmitido ao Estado, que o exerce em função de suas necessidades de preservação e perpetuação. Em Schmitt, a figura de autoridade consiste em um dos pilares – senão o mais importante – de sustentação da estrutura estatal. Este reconhecimento – enquanto unidade política detentora da decisão a respeito do público – se constitui como base de compreensão do poder soberano. Sendo assim, a figura do Estado em Schmitt visa garantir a um espaço político para plena capacidade do poder soberano determinar o inimigo do público. É por tal motivo que o poder soberano é compreendido mediante os olhos da excepcionalidade, já que apenas nesse momento de radicalidade ele se manifesta plenamente. De acordo com William Hooker (2009, p. 19), a autoridade do Estado Soberano seria exercida de forma dual, internamente o Estado teria o poder de reger as relações amigo-inimigo e, externamente, teria o poder de estabelecer o inimigo; além de referenciar-se enquanto autoridade incapaz de ser sobreposta: The authority of the sovereign state is therefore Janus-faced. Internally, the state confers to itself the right to determine all matters of public truth and so denies the potential for internecine struggles over questions of universal truth and justice. Externally, there can be no higher authority than the state, since it must be the state itself that determines the public enemy.3 Por se tratar de uma decisão máxima, que necessariamente sobrepõe-se a todas as outras, a decisão política só pode ser plenamente exercida dentro de um contexto excepcional, onde não são impostas limitações legais à sua fundamentação. Logo, ao compreender o conceito de soberania, sob a via da exceção, Schmitt (1996) depreende a este conceito um caráter supremo e inquestionável, que revela a essência da autoridade estatal: The sovereign produces and guarantees the situation in its totality. He has the monopoly over this last decision. Therein resides the essence of the state’s sovereignty, which must be juristically defined correctly, not as the monopoly to coerce or to rule, but as the monopoly to decide. The exception reveals most dearly the essence of the state’s authority.4 3 A autoridade do Estado soberano é portanto Janus facetada. Internamente, o Estado confere a si mesmo o direito de determinar todos os assuntos de fé pública e assim nega a possibilidade de lutas sangrentas sobre questões universais de verdade e justiça. Externamente, não pode existir autoridade maior que o Estado desde que o próprio Estado determina o inimigo do público. 4 O soberano produz e garante a situação em sua totalidade. Ele tem o monopólio sobre a decisão final. Aí reside a essência da soberania do Estado, que precisa ser definida juridicamente de forma correta, não como o monopólio da coerção ou do mando, mas como o monopólio da decisão. A exceção revela claramente a essência da autoridade estatal. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 27, n. 56, p. 60-71, jan./jun. 2013 69 Rachel Silva da Rocha Coutinho, Victor Leandro Chaves Gomes e Frederico Carlos De Sá Costa 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Três elementos são decisivos para a conclusão do presente artigo: ação, decisão e exceção. Esses elementos conduzem à afirmação de que a cidade (civitas, Estado) é dona de seu próprio destino; ela mesma, a cidade, é absoluta, e não aquele que eventualmente a governa. A decisão aproxima Carl Schmitt de Maquiavel. A proposta deste artigo sugere que processos de (re)fundação podem renovar e fortalecer a estrutura de uma dada comunidade política, superando os riscos autoritários presentes na ameaça da permanência do fundador após seu momento de ação ou da perversão do poder soberano que transforma o momento de exceção num Estado de exceção. A ideia é: comunidades políticas nascem na história. A história proporciona aos membros da comunidade ocasiões de organização e fortalecimento institucional. As ocasiões são enfrentadas com a ação: a ação fundadora na presença da fortuna e a ação de suspensão da ordem nos momentos de exceção. O que se deve levar em consideração, e é frequentemente esquecido, é que os momentos instituintes são compostos por duas etapas. Na primeira delas, a ação ocorre de forma privilegiada pela condução de uma personagem extraordinária; essa personagem funda ou recupera ou suspende uma dada ordem para que, ao fim deste processo, a comunidade política seja inaugurada, restaurada ou reconstituída. A segunda parte é tão importante quanto à primeira, embora nem sempre enfatizada. Nesta etapa, a comunidade de homens que pretende se organizar politicamente abraça, assume, incorpora para si a ação do fundador ou do ente soberano. Assim, ocorre uma transformação ontológica na ação política: a ação de um torna-se a ação de todos. Sem essa transformação não é possível a constituição de nenhuma comunidade política legítima. Sem essa transformação os Estados são arremedos de instituições, golens: seres feitos de material inanimado, inerte, degenerado, estéril. REFERÊNCIAS ARAÚJO, Gisele; SANTOS, Rogério. O Constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt: democracia substantiva e exceção versus liberalismo kelseniano. In: FERREIRA, L.; JORGE, W. Curso de Ciência Política. Rio de Janeiro: Campus, 2008. BIGNOTTO, Newton. Maquiavel Republicano. São Paulo: Edições Loyola, 2005. CASSIRER, Ernst. O Mito do Estado. São Paulo: Codex, 2003. CESA, Claudio. Romantismo Político. In: BOBBIO, PASQUINO, MATTEUCCI. Dicionário de Política. Brasília, Editora UnB, 2000. 70 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 27, n. 56, p. 60-71, jan./jun. 2013 Ação, Exceção e Estado GUANABARA, Ricardo. Há vícios que são virtudes: Maquiavel, teórico do realismo político. In: FERREIRA, L.; JORGE, W. Curso de Ciência Política. Rio de Janeiro: Campus, 2008. HOOKER, William. Carl Schmitt’s International Thought: Order and Orientation. Nova York: Cambridge University Press, 2009. MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 1996. SADEK, Maria Tereza. Maquiavel: o cidadão sem fortuna, o intelectual de virtù. In: WEFFORT, Francisco (Org.). Os Clássicos da Política – Volume 1. São Paulo: Ática, 2001. SCHMITT, Carl. The concept of the political. Chicago and London: The University of Chicago Press, 1996. ______. Political Theology: four chapters on the concept of sovereignty. Chicago: University of Chicago Press, 2005. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 27, n. 56, p. 60-71, jan./jun. 2013 71 Cristiano Mendes e Cristopher Mendonça A ONU E A PRIVATIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA: A UTILIZAÇÃO DE EMPRESAS MILITARES PRIVADAS EM MISSÕES DE PAZ 1 Cristiano Mendes* Christopher Mendonça** RESUMO Contratar Empresas Militares Privadas (EMPs) passou a ser rotina após o fim da Guerra Fria. A diversidade de serviços tornou essas empresas, importantes agentes em operações militares e humanitárias por todo o globo. A ONU monitora e utiliza os serviços das EMPs em Missões de Paz desde a década de 60 do século XX. De forma variada, as EMPs sempre estiveram envolvidas, ora de maneira direta, ora indiretamente, na maior parte das missões administradas pelas Nações Unidas. O presente trabalho baseia-se em dois objetivos básicos: o primeiro deles busca descrever e analisar a utilização de Empresas Militares Privadas nas diversas operações de paz espalhadas pelo globo; o segundo objetivo busca vislumbrar os principais pontos positivos e negativos observados na ocorrência de tais fenômenos. A apresentação de um trabalho mais descritivo busca contribuir para a concepção e o desenvolvimento de estudos futuros, que visem construir inferências explicativas capazes de adensar a ainda incipiente literatura sobre o tema. Palavras-chave: Empresas Militares Privadas. Missões de Paz. Un And Privatization Of Violence: The Use Of Military Companies In Peace Missions ABSTRACT Hiring Private Military Companies (PMCs) has become routine after the end of the Cold War. The diversity of services has made these companies important agents in military and humanitarian operations around the globe. The UN monitors and has used the services of PMCs in Peace Missions since the 60’s of the twentieth * Professor do Departamento de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PÙC Minas); Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB). E-mail: [email protected]. ** Doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Mestre em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas); Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: [email protected]. 1 Uma versão prévia desse artigo foi apresentada no III Encontro Nacional da Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI), ocorrido na Universidade de São Paulo (USP) em julho de 2011. 72 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 72-88, jan./jun. 2013 A Onu e A Privatização da Violência: A Utilização de Empresas Militares Privadas em Missões de Paz century. Variously, PMCs have always been involved directly or indirectly in most of the missions managed by the United Nations. The present work is based upon two basic objectives: the first seeks to describe and analyze the use of Private Military Companies in various peacekeeping operations around the globe; the second objective aims to envisage the main strengths and weaknesses observed in the occurrence of such phenomena. The presentation of a more descriptive work seeks to contribute to the design and development of future studies that aim to build explanatory inferences able to thicken the still incipient literature on the subject. Keywords: Private Military Companies. Peacekeeping Operations. La Onu Y La Privatización De La Violencia: La Utilización De Empresas Militares Privadas En Misiones De Paz RESUMEN La contratación de Compañías Militares Privadas (CMPs) se convirtió en rutina después del final de la Guerra Fría. La diversidad de servicios las transformó en agentes importantes en las operaciones militares y humanitarias en todo el mundo. La ONU monitora y utiliza los servicios de las CMP en Misiones de Paz desde los años 60 del siglo XX. De diversas maneras, las CMP siempre participaron, directamente o indirectamente, en la mayoría de las misiones administradas por las Naciones Unidas. Este trabajo se basa en dos objetivos básicos: el primero es describir y analizar el uso de Compañías Militares Privadas en diversas operaciones de mantenimiento de la paz en todo el mundo; El segundo objetivo pretende vislumbrar los principales puntos positivos y negativos observados cuando ocurren estos fenómenos. La presentación de un trabajo más descriptivo busca contribuir para la concepción y desarrollo de futuros estudios que tienen como objetivo construir inferencias explicativas capaces de densificar la incipiente literatura sobre el tema. Palabras-clave: Compañías Militares Privadas. Misiones de Paz. 1 INTRODUÇÃO O contexto internacional após o fim da Guerra Fria trouxe uma série de oportunidades e de problemas a serem resolvidos pela Comunidade Internacional. O crescimento e a maior utilização de Empresas Militares Privadas2 (EMPs) 2 Alguns autores preferem separar Empresas Militares Privadas de Empresas de Segurança Privadas (SINGER, 2008; UESSELER, 2008; AVANT, 2008). As primeiras forneceriam serviços mais voltados para o combate direto, enquanto as demais teriam um foco maior na garantia da segurança pessoal e fornecimento de informações relativas à missão. Como ambos os tipos de empresas são utilizados pela ONU em PKOs, opta-se por denominar todas, pelo nome de Empresas Militares Privadas. Ao serem descritos os pontos positivos e negativos da participação destas empresas em Missões de Paz, nota-se que o tipo de atividade específica que cada EMPs desempenha não muda em praticamente nada as conclusões apresentadas por este trabalho. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 72-88, jan./jun. 2013 73 Cristiano Mendes e Cristopher Mendonça são frutos desta época. Apesar de o termo “militar” relacionar-se comumente às instâncias de manutenção da ordem e do uso da violência estatal – e, portanto, de caráter público – será empregado o termo Empresas Militares Privadas para designar essas organizações por se tratar de uso já comum na literatura relacionada ao assunto. O presente artigo pretende descrever e analisar a utilização de EMPs nas Missões de Paz realizadas, ou autorizadas pela ONU a partir do início da década de 90 do século passado. O caráter mais descritivo deste trabalho justifica-se, principalmente, pela incipiência de fontes que busquem explicar tal fenômeno. Tal escassez se evidencia ainda mais quando se refere à literatura produzida no Brasil. Há de se esclarecer, todavia, que o trabalho não se isentou da utilização de critérios metodológicos que lhe garantissem certos níveis de cientificidade. O rigor utilizado na construção de tal descritiva se apresenta, nesse sentido, como condição necessária para que haja uma posterior construção de inferências explicativas sobre o assunto. A expectativa é de que, a partir daqui, instigue-se a sistematização de uma agenda de pesquisa consistente e capaz de produzir tais inferências. Apesar de haver dificuldade no levantamento de números exatos sobre a participação destas empresas em Operações de paz (doravante Peacekeeping Operations ou simplesmente PKOs, como na língua inglesa) é possível vislumbrar os principais pontos positivos e negativos desta prática. Como as exatas funções desempenhadas pelas EMPs em PKOs não são claras, nem mesmo para a própria ONU, torna-se praticamente impossível avaliar em termos objetivos o quanto a presença de EMPs em Missões de Paz contribui, ou não, para o sucesso dessas. Também se torna inviável produzir análises que cruzem variáveis sobre o perfil das empresas contratadas e o tipo de operação em que atuam. Como seus contratos especificam pouco sobre suas reais funções e como, também, uma diferenciação objetiva entre o que é resultado do trabalho das EMPs e o que é resultado das tropas regulares da ONU seja impossível, o presente trabalho focou apenas na discussão mais ampla dos aspectos positivos e negativos deste tipo de parceria, independente do tipo de PKO. Procura-se mostrar que a atuação de EMPs nas Missões de Paz, a partir do início da década de 90, é uma realidade, independe das ressalvas feitas a este tipo arranjo. Descrevem-se os pontos fracos encontrados pelas Nações Unidas no provimento de PKOs nos últimos tempos. Sugere-se, nesse sentido, a observação de como Empresas Militares Privadas poderiam complementar os funcionários regulares daquela organização. Sem esquecer os perigos intrínsecos à privatização dos setores ligados à segurança, buscar-se-á demonstrar como o bom uso de EMPs em PKOs pode ser considerado uma solução para problemas mais imediatos enfrentados pelas Nações Unidas em missões desta natureza. 74 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 72-88, jan./jun. 2013 A Onu e A Privatização da Violência: A Utilização de Empresas Militares Privadas em Missões de Paz 2 O FIM DA GUERRA FRIA E O CRESCIMENTO DAS EMPRESAS MILITARES PRIVADAS O fim da Guerra Fria criou um terreno fértil para o aparecimento de Empresas Militares Privadas. O fim do equilíbrio bipolar trouxe a presença de um grande número de militares dispensados de suas funções originais e uma oferta de armamentos nunca antes vista – espólio da corrida armamentista das décadas anteriores. Neste contexto, as EMPs tiveram a oportunidade de se organizar oferecendo serviços de especialistas, com arsenais de última geração e capacidade de mobilização para atuação em qualquer parte do mundo. O aumento de conflitos regionais encarregou-se de aquecer a demanda pelos serviços das EMPs tornando-as empreendimentos promissores nas décadas seguintes ao término da Guerra Fria. Sem um contingente militar fixo, grande parte destas empresas trabalha com bancos de dados de soldados e ex-soldados de todo o mundo, dispostos a colocar suas experiências militares a serviço de recompensas financeiras. Oferecendo serviços que vão desde a mera confecção de uniformes à atuação direta nos campos de batalhas, essas empresas representam, hoje, uma alternativa eficiente para Estados e demais atores internacionais interessados em suporte para suas ações, principalmente em locais de conflito. O aparecimento das EMPs, entretanto, não se deu de forma pacífica. O aumento do número e da atuação dessas empresas ocorreu concomitante a diversas críticas feitas a elas, principalmente no que se refere à soberania dos Estados. Partindo da definição weberiana de Estado, diversos críticos apontaram ser a utilização dos serviços destas empresas contrária à soberania dos Estados que as contratam3. As EMPs estariam quebrando o monopólio estatal sobre o uso da violência e gerariam situações em que os objetivos das nações contratantes ficariam à mercê de objetivos financeiros, uma vez que a ação de soldados privados não se daria em bases ideológicas e/ou nacionalistas. Acadêmicos e políticos contrários à utilização das EMPs sugerem soluções que vão desde a necessidade de regulação destas empresas pelos Estados, até a proibição total da contratação delas. 3 Apesar de Weber, em princípio, prever o monopólio da violência pelo Estado apenas dentro do território deste, alguns autores apontam para a possibilidade de as EMPs colocarem interesses privados como prioritários aos interesses públicos e para a falta de controle das ações destas empresas pela população dos Estados os quais as contratam, principalmente em países democráticos. Devemos lembrar, também, que concomitante ao processo de expropriação do direito de usar a violência que o Estado aplicou sobre atores privados, ocorreu uma responsabilização do Estado por ações praticadas por seus cidadãos no ambiente internacional. De acordo com Thomson (1996): “A soberania foi redefinida de tal forma que o Estado não apenas tomou para a autoridade máxima dentro de sua jurisdição definidas em termos geográficos, mas responsabilizou-se pela violência transfronteiriça proveniente de seu território (p.19, tradução livre). Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 72-88, jan./jun. 2013 75 Cristiano Mendes e Cristopher Mendonça Sem uma política de regulamentação sobre a contratação de EMPs claramente definida na maior parte do mundo, estas empresas se aproveitaram da falta de constrangimentos jurídicos que as cercam para estender a oferta de seus serviços, aumentando assim sua presença em grande parte dos conflitos existentes na atualidade. 3 A UTILIZAÇÃO DAS EMPRESAS MILITARES PRIVADAS EM MISSÕES DE PAZ O número de Missões de Paz sofreu significativo aumento após o fim da Guerra Fria. De acordo com informações disponibilizadas pela própria ONU, durante o período da Guerra Fria, foram concretizadas apenas 13 missões. Após a Guerra Fria, o número foi para 50 sendo que, atualmente, 15 delas estão ativas, além de uma Missão de Assistência no Afeganistão. Conflitos até então adormecidos pela lógica bipolar do período anterior voltaram a aparecer, causando instabilidade no Sistema Internacional e gerando a necessidade de um número maior de políticas de intervenção por parte de atores internacionais. Este aumento no número de Operações de Paz ampliou a necessidade de investimentos por parte dos responsáveis por estas missões. Organizações como as Nações Unidas, precisaram administrar este aumento da demanda por PKOs. Entretanto, ao mesmo tempo em que a necessidade de investimentos em Missões de Paz cresceu, um significativo número de limitações relativo aos procedimentos e à estrutura interna da ONU, começou a ser revelado. Uma das soluções encontradas pela ONU para remediar estas carências que dificultam a concretização de PKOs foi a contratação de Empresas Militares Privadas para atuar em parceria com os capacetes azuis e outros atores envolvidos nessas Missões de Paz. 4 A UTILIZAÇÃO DE EMPRESAS MILITARES PRIVADAS PELA ORGANIZAÇÃO NAÇÕES UNIDAS A relação da ONU com as EMPs pode ser considerada dúbia e cautelosa por um simples motivo: ao mesmo tempo em que a contratação de tais empresas faz parte da história dessa organização, ela se preocupa com o monitoramento e controle da utilização de atores privados no uso da violência no ambiente internacional4. Entretanto, ao observar os documentos da ONU relativos à regulamentação das EMPs, nota-se que a maioria se refere a preocupações relativas à apro4 O debate sobre a pertinência das EMPs pode ser acompanhado dentro da própria ONU. A Comissão de Direitos Humanos e a Assembléia Geral têm debatido sobre o tema desde a década de 80 (PERCY apud CHESTERMAN e LEHNARDT, 2009). 76 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 72-88, jan./jun. 2013 A Onu e A Privatização da Violência: A Utilização de Empresas Militares Privadas em Missões de Paz ximação do status dessas empresas com as atividades dos antigos mercenários5. À medida que as Empresas Militares Privadas são vistas como atores diferentes daqueles mercenários de outrora, aumenta o caráter de legitimidade com que são descritas. A diferenciação entre estes dois atores (EMPs e mercenários) afasta a possibilidade de proibição radical da contratação dessas empresas e institui um debate apenas sobre os necessários limites de regulação e controle do uso das EMPs. Já a prática de contratação de EMPs pode ser encontrada em diversos órgãos das Nações Unidas. Quase a totalidade destas instâncias da ONU refere-se a atividades de segurança, assistência humanitária e Missões de Paz. As unidades mais relevantes da ONU aplicáveis a este estudo são: o Secretariado, e especialmente o Departamento de Operações de Paz (DPKO), o Gabinete de Coordenação dos Assuntos Humanitários (OCHA) e o Gabinete de Segurança da ONU (UNSECOORD) [...] Esta atividade é menos observada em alguns organismos, tais como o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e o Alto Comissariado para Refugiados (ACNUR), bem como o Programa Mundial pela Alimentação (WFP) (OSTENSEN, 2009, p.18, tradução livre) 6. A maioria desses órgãos, apesar de utilizar os serviços das EMPs, não possui uma posição formal sobre esta prática. A contratação dessas empresas acompanha as necessidades de cada instância sem que reflexões formais sejam produzidas sobre este tipo de parceria. A impressão que fica é de que o caráter idôneo dos objetivos perseguidos pelas diversas instâncias da ONU justifica a utilização de EMPs, quando necessário. Dessa forma, a atuação das Empresas Militares Privadas em Missões de Paz, segurança de pessoal e apoio logístico, dentre outros, seria tacitamente inquestionável, uma vez que não existem dúvidas sobre a necessidade do alcance de resultados eficientes na busca pela paz e pela estabilidade internacional, via ação das Nações Unidas. 5 Como exemplo da relação feita pelas Nações Unidas entre mercenarismo e EMPs, ver lista de documentos levantados pela Organização sobre legislações nacionais relativos ao controle e proibição de atividades militares privadas. No levantamento feito pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, EMPs e atividades mercenárias são elencadas como segmentos de um fenômeno com a mesma natureza. Ver United Nations Human Rights/National Legislation Survey. 6 The most relevant units of the UN organization to this study hence constitutes the Secretariat and especially the Department of Peacekeeping Operations (DPKO), Office for the Coordination of Humanitarian Affairs (OCHA), and Office of the United Nations Security Officer (UNSECOORD) [...] Less specific attention will be paid to some of the Programmes and Funds such as United Nations Development Program (UNDP), United Nations High-Commissioner for Refugees (UNHCR), and World Food Program (WFP)” (OSTENSEN, 2009. p.18). Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 72-88, jan./jun. 2013 77 Cristiano Mendes e Cristopher Mendonça 5 EMPRESAS MILITARES PRIVADAS EM OPERAÇÕES DE PAZ A utilização de Empresas Militares Privadas por atores internacionais remonta o período da Guerra Fria7. Nas Missões de Paz, são consideradas as participações diretas, ou indiretas, dessas empresas, pode-se afirmar que todas as missões já realizadas até hoje, após o fim da Guerra Fria, contaram com a participação de alguma EMP. Como o escopo de serviços oferecidos pelas Empresas Militares Privadas é vasto, também são abrangentes as atividades desenvolvidas em cada uma das PKOs. Realizando tarefas que vão deste o simples fornecimento de material rotineiro para as tropas regulares, até a ação direta no combate para proteger funcionários da organização, as EMPs sempre desempenharam um papel significativo no apoio às forças da ONU8. Os motivos que levam as Nações Unidas à contratação de Empresas Militares Privadas são vários. Alguns desses motivos se localizam no ambiente externo às Nações Unidas, mais especificamente, no contexto internacional surgido no período Pós-Guerra Fria. Outras razões podem ser encontradas dentro da própria estrutura institucional da ONU na qual debilidades organizacionais reforçam a necessidade de contratação de atores privados. A natureza multilateral das Operações de Paz da ONU implica uma série de fraquezas inerentes a estas, tais como as dificuldades referentes ao idioma, às incoerências nos treinamentos, à diferenças em equipamentos etc. Estas deficiências são, em certo sentido, consequências naturais dos princípios que regem o trabalho das Nações Unidas, a exemplo do princípio da “distribuição geográfica”, que considera preferível que uma missão de paz da ONU tenha pessoal de uma variedade de regiões do globo, na tentativa de evitar missões que representem apenas uma pequena esfera de países, podendo nesse aspecto, parecerem parciais. No entanto, alguns outros pontos fracos parecem ser menos genéricos (OSTENSEN, 2009, p.34, tradução livre)9. As causas externas que levam a ONU a contratar EMPs já foram apontadas no início deste artigo e podem ser resumidas às características do ambiente inter7 Antes do fim da Guerra Fria, algumas EMPs já atuavam no cenário internacional como a participação da Dyncorp nas Guerras da Coréia e do Vietnã; a atuação da Vinnell, nos anos 70, treinando forças sauditas e a participação da Southern Air Transport no caso Irã-Contras (ISENBERG, 2009). 8 Segundo estudo realizado por Ostensen (2009), a maior parte dos serviços prestados pelas EMPs, em Missões de Paz da ONU, refere-se à logística e suporte, sendo seguida por segurança e trabalho de especialistas em diversas áreas. 9 The multilateral nature of UN peacekeeping implies a range of inherent weaknesses such as language difficulties, incoherent training, differences in equipment etc. These weaknesses are to a certain degree natural consequences of the principles under which the UN works, e.g. the principle of ´geographic distribution´, meaning preferably a UN peacekeeping force should contain personnel from a variety of regions of the world to avoid missions from representing only a small and hence biased sphere of countries. However, other weaknesses appear less generic (OSTENSEN, 2009, p. 34). 78 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 72-88, jan./jun. 2013 A Onu e A Privatização da Violência: A Utilização de Empresas Militares Privadas em Missões de Paz nacional, encontrado logo após o fim da Guerra Fria10. Em relação às deficiências estruturais das Nações Unidas, podem ser apontados três fatores que induzem à contratação de EMPs: dificuldade de se encontrar soldados treinados militarmente para agir em PKOs; ausência de vontade política por parte dos Estados e dificuldade em garantir mobilizações rápidas. Cada um destes itens pode ser destrinchado em vários outros desafios. Em relação à dificuldade de se encontrar soldados treinados para ação em PKOs, podem ser assinalados três desafios relativos a esse tópico: falta de preparo militar das tropas fornecidas pelos principais países que compõem as forças internacionais da ONU em PKOs, ausência de uma cultura cosmopolita por parte destas tropas de capacetes azuis e dificuldade de comunicação destas tropas, uma vez que a língua oficial das Missões de Paz é o inglês. Em relação ao primeiro item, deve-se notar que os principais Estados que fornecem soldados para PKOs são países ainda em desenvolvimento, com restrições financeiras para suas forças armadas e uma lógica de cooptação para o serviço militar que não privilegia os mais preparados para assumir os cargos disponíveis. O baixo nível de treinamento sistemático, a ausência de um contato com armas que utilizam tecnologia de ponta e a deficiência de preparo estratégico e de processamento de informações militares levam a maior parte dos capacetes azuis a terem um desempenho aquém daquele necessário para o pleno exercício de suas funções. O próprio fato de os países que fornecem quadros para as PKOs não possuírem o inglês como língua corrente dificulta a comunicação entre os soldados fazendo com que comandos simples entre os militares sejam carentes da devida compreensão. A ausência de vontade política dos Estados é outro fator que deve ser levado em consideração na análise do provimento de capacetes azuis por parte de potenciais Estados colaboradores de PKOs. Desde os fracassos das Missões na Somália, Ruanda e Bósnia, na primeira metade da década de 90, foi sendo construída uma resistência política por parte dos Estados em fornecer nacionais para ação em conflitos aparentemente sem relação com o Estado provedor. A decisão de enviar pessoal para compor as forças da ONU passa, necessariamente, pelo cálculo político dos governos dos países fornecedores de tropas. A falta de apoio da população pode ser, portanto, variável crucial para que países potencialmente aptos a formarem o contingente das PKOs desistam da empreitada, receosos de que os custos políticos da participação não sejam compensatórios. 10 Outros fatores externos podem ser ainda levantados como, por exemplo, o esforço que as grandes empresas têm feito nos últimos anos para melhorar a própria imagem através de códigos de conduta padronizados e propaganda institucional. Exemplo disto é a criação do site International Stability Operations Association (ISOA). Disponível em: <www.stability-operations.org/>.(OSTENSEN, 2009). Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 72-88, jan./jun. 2013 79 Cristiano Mendes e Cristopher Mendonça Por fim, a dificuldade em se mobilizar, treinar, organizar e transportar contingentes militares prontos para a ação em regiões de conflitos, ou de catástrofes humanitárias, faz com que entre a decisão de envio de uma PKO e seu pronto estabelecimento na região em questão, passem-se meses até que a mesma tenha início. Em casos de maior gravidade como, por exemplo, na iminência de um genocídio, esta demora pode significar a perda de milhares de vidas da população do local. Estes três fatores, em conjunto, representam um contexto no qual deficiências internas à estrutura e logística da ONU contribuem para o fracasso ou limitação da eficiência da ONU na instauração e administração de PKOs. 6 OS SERVIÇOS PRESTADOS PELAS EMPRESAS MILITARES PRIVADAS E OS OBJETIVOS DAS OPERAÇÕES DE PAZ (PEACEKEEPING OPERATIONS) Ao levar em consideração as atividades propostas pelas PKOs, administradas pela ONU, e os serviços oferecidos pelas EMPs, nota-se uma coincidência de funções na maioria das atividades descritas em cada uma das instâncias. Dentre as possíveis tarefas desenvolvidas pelas EMPs destacam-se algumas, presentes na maior parte das Missões de Paz dos últimos anos como, por exemplo, treinamento de pessoal, segurança das pessoas envolvidas na operação e suporte logístico. A despeito dos princípios tradicionais das Operações de Paz da ONU, que estipulam que os capacetes azuis não devem realizar qualquer tipo de ação relacionada ao combate ou ao apoio dos mesmos, desde o fim da Guerra Fria tais missões têm sido utilizadas com objetivo de treinar e/ou reciclar unidades militares dos contingentes nacionais; garantir a segurança de infraestruturas vitais; proteger comboios de ajuda, bem como fornecer segurança dos agentes responsáveis pela entrega de auxílio humanitário; ajudar na desmontagem de minas terrestres e evitar infiltrações de vários tipos. Todas essas funções parecem ser semelhantes a uma série de atividades realizadas por EMPs na última década, incluindo o desenvolvimento de forças de treinamento, segurança de instalações e de agentes-chave, bem como na prevenção de infiltrações diversas. Isto sugere que EMPs têm capacidade para realizar pelo menos algumas das funções desempenhadas nas operações de paz no contexto do Pós-Guerra Fria (BURES, 2008, p.7, tradução livre). É claro, porém, que somente o fato de haver coincidência de atividades entre EMPs e PKOs não permite concluir que a contratação das Empresas Militares Privadas seja a melhor opção para as Nações Unidas. Devem ser levados, também, em consideração os custos que cada uma dessas alternativas representa, bem como o grau de eficiência que supostamente cada uma destas duas 80 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 72-88, jan./jun. 2013 A Onu e A Privatização da Violência: A Utilização de Empresas Militares Privadas em Missões de Paz opções parece oferecer. Somente o fato de haver semelhanças entre as atividades de PKOs e serviços oferecidos por EMPs não é suficiente para justificar o emprego dessas pelas Nações Unidas. Outra questão que deve ser levantada é sobre a possibilidade de complementaridade entre ambas as opções. Uma hipótese a ser trabalhada é se o afazer conjunto entre capacetes azuis e funcionários de Empresas Militares Privadas resultaria na melhor combinação possível no cálculo do custo e eficiência das PKOs. Para que esta possibilidade seja verificada, porém, deve-se fazer um levantamento dos prós e contras da utilização de EMPs em PKOs em relação a cada uma das dificuldades apontadas na concretização destas missões. 7 VIABILIDADE DA PRESENÇA DE DAS EMPRESAS MILITARES PRIVADAS EM OPERAÇÕES DE PAZ (PEACEKEEPING OPERATIONS) O aumento do número de Empresas Militares Privadas após o fim da Guerra Fria provocou uma série de debates sobre a pertinência da contratação de atores privados por parte de Estados. Várias correntes surgiram acompanhando o crescimento deste fenômeno. Alguns críticos pregam a extinção total das EMPs ou, pelo menos, a proibição radical de contratação das mesmas pelos Estados. Outros, menos radicais, defendem apenas um maior controle das EMPs pelos Estados que as contratam. Independente da posição dos autores que analisam o papel das Empresas Militares Privadas, um ponto tornou-se consensual: é possível listar tanto aspectos positivos, quanto negativos, na utilização destas empresas. Em relação à contratação das mesmas para atuação em Missões de Paz, a lógica não é diferente. Ao mesmo tempo em que EMPs ajudam em uma melhor performance por parte da ONU, e essas podem ser consideradas uma ameaça ao sucesso das PKOs. 8 PONTOS POSITIVOS NA UTILIZAÇÃO DE EMPRESAS MILITARES PRIVADAS EM OPERAÇÕES DE PAZ (PEACEKEEPING OPERATIONS) A contratação de EMPs para atuação em Missões de Paz da ONU envolve vantagens e desvantagens. Dentre os pontos positivos apontados para a contratação destas empresas estão: bom treinamento dos funcionários das EMPs; capacidade das EMPs em fazer operações cirúrgicas; visão cosmopolita do contingente oferecido; baixo custo político das contratações; capacidade de mobilização rápida; imagem de imparcialidade perante conflitos e menor custo financeiro se comparado à utilização de exércitos regulares. Como descrito anteriormente, as EMPs não trabalham com quadros fixos de pessoal. Os funcionários destas empresas são cooptados em diversas partes do Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 72-88, jan./jun. 2013 81 Cristiano Mendes e Cristopher Mendonça mundo de acordo com a disponibilidade e a necessidade do momento. A maior parte desses funcionários é oriunda das Forças Armadas dos seus países de origem, o que permite durante a seleção dos mesmos por parte das empresas, escolher entre aqueles com melhor treinamento e maior tempo de experiência. A estrutura das EMPs prima pelo fornecimento de profissionais em número reduzido, mas com um bom grau de conhecimento das suas atividades. Possuindo uma organização limitada em número de pessoas passível de serem mobilizadas, mas com bom domínio das suas respectivas áreas, as EMPs podem e devem ser utilizadas para operações de caráter cirúrgico. Neste caso, a EMP deveria ser contratada para prover o tão necessário fôlego para Operações de Paz. Apesar de menores em número que o resto da operação, elas ofereceriam para as sempre pouco equipadas e pouco motivadas forças de peacekeeping o suporte de seu sofisticado talento militar (SINGER, 2008, p. 184-185, tradução livre)11. Sem capacidade suficiente para assumir por completo missões de grandes dimensões, estas empresas tem historicamente mostrado ser uma boa opção no suporte às tropas regulares. Agindo apenas em contextos específicos e com objetivos bem delimitados, as EMPs mostram possuir um alto grau de eficiência no alcance de metas bem definidas e localizadas no tempo. Outro fator que se deve levar em consideração refere-se à visão cosmopolita dos funcionários das EMPs. Como assinalado anteriormente, uma das dificuldades encontradas pela ONU em Missões de Paz está na ausência de uma formação mais cosmopolita dos capacetes azuis. Essa falta de abertura a culturas diferentes acaba gerando problemas na relação entre as tropas da ONU e a população local em regiões de conflito. Como os funcionários das EMPs são cooptados em toda parte do mundo, o grau de visão cosmopolita desses empregados se situa acima da média encontrada nas tropas a serviço da ONU. O impacto político da perda de nacionais em Missões de Paz também pode ser relativizado através da utilização de EMPs. Desde o fracasso de missões ocorridas no início da década de 90, a população de países com atividades em PKOs tem sido mais relutante e cuidadosa no apoio a esse tipo de empreitada. A contratação de EMPs representa, também, uma relativização desse custo político. A morte de funcionários de EMPs (geralmente de cidadanias não coincidentes com o país que as contrata) gera um custo político para os governos bem menor se comparado à morte de cidadãos nacionais12. Uma vez que os funcionários de EMPs estão em 11 In this case, the PMF would be hired to provide the much needed “teeth” for peace operations. Although smaller in number than the rest of the operation, they would offer often underequipped and poorly motivated peacekeeping forces the backing of their sophisticated military talent (SINGER, 2008, pp. 184/185). 12 De acordo com Ostensen (2009), tem havido, nos últimos anos, um aumento no número de mortes de indivíduos a serviço da ONU se comparado à década de 90. 82 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 72-88, jan./jun. 2013 A Onu e A Privatização da Violência: A Utilização de Empresas Militares Privadas em Missões de Paz locais de conflito por vontade própria, motivados mais por ganhos financeiros que por ideais, o risco a que se submetem costuma ser contemporizado, uma vez que a decisão final de servir aos Estados foi tomada por livre e espontânea vontade dos mesmos. Outro problema enfrentado pelas PKOs é a incapacidade da ONU em mobilizar tropas de forma rápida e eficiente. A própria estrutura da organização impede que capacetes azuis sejam treinados e cooptados de forma rápida mesmo em situações em que o tempo é crucial para evitar a escalada de conflitos ou garantir a sobrevivência dos indivíduos. Como já discutido, o tempo entre a aprovação de uma PKO e seu completo estabelecimento na região em questão costuma se arrastar por meses até que o processo se inicie de forma concreta. A opção por EMPs pode ser uma alternativa ao problema. Logo após a aprovação de uma Missão de Paz por parte do Conselho de Segurança, a ONU poderia enviar funcionários de Empresas Militares Privadas para o local do conflito até que capacetes azuis tenham tempo suficiente para assumirem a missão. O caráter emergencial de algumas situações pode ser contemplado se as EMPs forem contratadas no momento certo, para atividades condizentes com suas estruturas. Uma das exigências descritas na Terceira Geração13 de PKOs refere-se à necessidade de imparcialidade dos países encarregados de participarem destas Missões. Uma vez que EMPs estão a serviço das Nações Unidas e não de um país em específico, fica fácil concluir que a legitimidade dos funcionários dessas empresas aumenta quando se pensa em posicionamentos não interessados. Se as EMPs são contratadas e pagas pelas Nações Unidas, a possibilidade das mesmas agirem em nome de um ator nacional específico cai consideravelmente. Por fim, deve-se, também, levar em consideração que o emprego de EMPs é uma alternativa relativamente mais barata, em termos estritamente financeiros, se comparada à utilização de tropas regulares. Apesar de os salários dos funcionários de Empresas Militares Privadas serem quase três vezes maiores que os de soldados regulares, a ausência de obrigações indiretas e benefícios sociais para estes empregados acabam por compensar a diferença de remuneração. Como funcionários de EMPs recebem apenas durante o tempo em que estão em atividade e prescindem de ajudas relativas ao seguro saúde, moradia, soldo regular (mesmo em épocas de 13 De acordo com Ramsbotham, Woodhouse e Miall (2005), a Primeira Geração de PKOs (1948- 1987) esteve sobre forte influência da Guerra Fria, atuou principalmente em contextos de conflitos interestatais e foi composta predominantemente por militares. A Segunda Geração de PKOs (1988-1994), iniciada principalmente em detrimento do conflito bipolar, caracterizou-se pela inclusão de novos temas – desenvolvimento econômico, direitos humanos e democracia, por exemplo – e de novos atores – agentes civis, policiais, etc. – na execução das Missões de Paz. A Terceira Geração de PKOs é característica do período pós-1994 e diferencia-se das demais pela robustez dos mandatos referentes ao uso da força e ao consenso entre as partes para a execução da intervenção, buscando a imparcialidade e a observação dos termos definidos pelo Capítulo VII da Carta da ONU. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 72-88, jan./jun. 2013 83 Cristiano Mendes e Cristopher Mendonça paz) e aposentadoria, os recursos despendidos com a contratação desses apresentam-se como uma boa opção no cálculo custo/benefício14. PONTOS NEGATIVOS NA UTILIZAÇÃO DE EMPRESAS MILITARES PRIVADAS EM OPERAÇÕES DE PAZ (PEACEKEEPING OPERATIONS) Alguns pontos negativos devem também ser apontados no processo de contratação de EMPs pela ONU. Entre eles: a dificuldade em se punir funcionários de EMPs por mau comportamento, como a violação dos Direitos Humanos; o perigo de EMPs agirem apenas pelo dinheiro, não priorizando os objetivos das PKOs; a ausência de hierarquia formal entre funcionários de EMPs e entre estes funcionários e os capacetes azuis; a possibilidade de insatisfação das tropas regulares em relação à diferença salarial entre funcionários de EMPs e soldados regulares a serviço das missões; a possibilidade de se criar dependência em relação aos serviços prestados por essas empresas e perigo de vazamento de informações confidenciais para atores não estatais. A situação jurídica de funcionários de EMPs é sempre dúbia fazendo com que instâncias internacionais tenham dificuldade em julgar e punir os mesmos quando ocorrem denúncias de má conduta no decorrer das suas atividades. Em primeiro lugar, esses funcionários não podem ser considerados cidadãos comuns em atividades cotidianas. O fato de operarem em um cenário de guerra faz com que os mesmos não possam ser julgados pelas leis civis ordinárias dos Estados, uma vez que seus status de combatente (ou de suporte a soldados em ação) os diferenciam de um cidadão qualquer. Por outro lado, eles também não podem ser punidos pelos códigos militares, pois são civis que não se encaixam na definição de soldado regular. Isso acaba criando um limbo jurídico no qual qualquer tentativa de punição de funcionários de EMPs seja fadada ao fracasso devido a esta indefinição formal15. Outro aspecto negativo se refere à possibilidade de os funcionários de Empresas Militares Privadas agirem tendo em vista apenas o ganho financeiro, deixando de lado os objetivos principais da missão em que atuam. As regiões onde se estabelecem PKOs são notoriamente zonas de alta periculosidade o que coloca em risco a segurança dos indivíduos que trabalham para a ONU. O medo em torno des14 Segundo estudos recentes, um funcionário de EMP ganha, em média, três vezes mais que um soldado regular. Entretanto, se for levado em consideração os benefícios indiretos recebidos pelos soldados regulares, o salário de ambos se equivalem chegando a cerca de 100.000 dólares por ano. Para ver trabalhos completos sobre o assunto: ISENBERG, 2009. 15 Funcionários de EMPs não se encaixam nem na categoria de soldados regulares – portanto, não podem ser processados e punidos pelos códigos militares tradicionais -, nem na definição de mercenários feita pela Convenção de Genebra. Alguns Estados, como a África do Sul, já tentaram criar limitações jurídicas internas à ação destas empresas, mas sem muito sucesso. Quando novas leis restritivas de suas atividades são criadas no país onde estas empresas têm sede, geralmente, as mesmas se mudam para outros países com maior tolerância em relação às ações das mesmas (SINGER, 2008). 84 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 72-88, jan./jun. 2013 A Onu e A Privatização da Violência: A Utilização de Empresas Militares Privadas em Missões de Paz ta situação se refere à possibilidade dos funcionários de EMPs deixarem de cumprir com suas obrigações quando o risco às suas vidas aumentar de forma significativa. Se o lucro é o objetivo principal dos contratados pelas Empresas Militares Privadas, não haveria garantias suficientes de que os esses se comportem da forma prevista pela ONU em situações de perigo iminente16. Deve-se levar em consideração, também, a ausência de hierarquia formal entre os funcionários de EMPs e entre estes e os capacetes azuis. Como a cooptação e contratação desses funcionários acontece de maneira esporádica e em diversas partes do mundo, é comum que, em algumas situações, haja grupos de funcionários trabalhando em conjunto, mas com diferentes patentes em seus exércitos de origem. Assim, a obediência a comandos e disciplina ficaria ameaçada, uma vez que a hierarquia de patentes entre os funcionários de EMPs não é mantida quando os mesmos ingressam na iniciativa privada. Não somente há o perigo de falta de comando eficiente entre os empregados das EMPs como, também, entre estes e os capacetes azuis. Justamente por não se inserirem na hierarquia de comando das tropas em ação em momento anterior à sua contratação, nada garante que o funcionário de uma EMP irá obedecer as ordens dadas pelo comando oficial da operação. Apesar do investimento em EMPs significar, na maioria das vezes, uma economia indireta de gastos, não se pode ignorar que, no curto prazo, a diferença salarial entre os empregados de EMPs e capacetes azuis possa gerar insatisfação por parte desses últimos. A convivência diária com civis que realizam trabalhos semelhantes ao desempenhado pelos capacetes azuis e o fato de os riscos serem os mesmos para ambas as partes podem gerar um sentimento de injustiça no soldado regular, uma vez que a percepção imediata é a de que todos trabalham da mesma forma e se expõem a perigos na mesma intensidade17. A possibilidade de dependência da ONU em relação às EMPs também deve ser levada em consideração. O cálculo a ser feito ao se pensar na contratação de EMPs não pode ser restringido ao gasto imediato e eficiência das ações. Mesmo 16 Vários autores, entretanto, discordam desta afirmação. Se analisarmos os motivos que levam soldados regulares a se candidatarem para trabalhar em Operações de Paz, veremos que um dos motivos para o mesmo é a possibilidade de aumentar seus ganhos durante o tempo em que estiver servindo a ONU. O contrário também acontece. Nem sempre os funcionários contratados pelas EMPs aceitam o trabalho somente por questões econômicas. O gosto pela atividade e desejo de continuar trabalhando na área, fazem parte dos motivos que levam estas pessoas procurarem a iniciativa privada (SINGER, 2008; AVANT, 2008). 17 Na verdade, funcionários de EMPs em zonas de conflito costumam correr mais perigos que os soldados regulares. Como as empresas contratadas não têm obrigação de seguir as normas de segurança estabelecidas pelas Forças Armadas do local, é comum que os automóveis utilizados pelas EMPs, bem como a exigência de procedimentos para aumentar a segurança dos funcionários, estejam aquém do padrão de segurança exigido pelas forças regulares locais. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 72-88, jan./jun. 2013 85 Cristiano Mendes e Cristopher Mendonça que a ação de Empresas Militares Privadas consiga solucionar o problema de imediato, a necessidade de manutenção das mesmas na zona de atuação pode encarecer o custo inicial do investimento. Dependendo do contexto, Empresas Militares Privadas conseguem garantir a paz e a segurança local, mas sua presença torna-se imprescindível após o conflito, uma vez que a manutenção da ordem necessite da presença constante de funcionários destas EMPs18. Por fim, deve-se deter na possibilidade de vazamento de informações confidenciais para a iniciativa privada. Como visto no início deste artigo, alguns dos serviços prestados pelas EMPs referem-se ao levantamento e processamento de informações. Considere-se que parte destas informações é confidencial, tem-se de admitir que existe a possibilidade de dados sigilosos pararem nas mãos de agentes não estatais. A contratação de funcionários de EMPs para lidar com levantamento e análise de informações, deve, portanto, ser acompanhada de cuidados redobrados, uma vez que a garantia de sigilo de determinados dados pode ser crucial para o sucesso das PKOs. CONSIDERAÇÕES FINAIS A utilização de Empresas Militares Privadas em Missões de Paz, pelas Nações Unidas, é uma realidade desde o fim da Guerra Fria. Apesar das diversas críticas feitas à contratação destas empresas pela ONU, não se pode negar que as EMPs são responsáveis por boa parte das atividades desenvolvidas em PKOs sendo, inclusive, já consideradas como parceiras de praxe neste tipo de operação. Mesmo não possuindo uma posição formal sobre a contratação das EMPs, as Nações Unidas utilizam cada vez mais deste recurso como forma de garantir a segurança e efetividade das PKOs. Vários aspectos positivos podem ser apontados na contratação destas empresas. O fato das mesmas possuírem funcionários cosmopolitas e bem treinados eleva o nível das tropas e a facilidade das EMPs fazerem operações cirúrgicas e de mobilizarem-se de forma rápida. O baixo custo financeiro (se contado despesas indiretas com exércitos regulares), a maior complacência com perdas quando se trata da morte de funcionários de EMPs e a imagem de imparcialidade passada por estas empresas fecham a série de vantagens da contratação das mesmas. Também podem ser apontados aspectos negativos nesse tipo de prática. A dificuldade de se punir funcionários de EMPs devido ao vácuo jurídico dos seus 18 Exemplo desta situação pode ser vista no envolvimento da Executive Outcomes em Serra Leoa. Em 1997, o então presidente Kabbah encerrou prematuramente um contrato existente com a empresa citada. Isto gerou, logo em seguida, desordem no país com tentativas de golpes de Estado e caos social. Sem conseguir contar com forças da ONU, o presidente Kabbah precisou contratar outra EMP (Sandline International) para conseguir se reestabelecer no poder (SINGER, 2008, pp. 114/115). 86 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 72-88, jan./jun. 2013 A Onu e A Privatização da Violência: A Utilização de Empresas Militares Privadas em Missões de Paz status; a falta de hierarquia formal entre os funcionários e entre estes e os capacetes azuis; o fato dos funcionários de EMPs ganharem, em média, três vezes mais que os capacetes azuis; a possibilidade de se gerar dependência em relação a estas empresas; o risco dos seus funcionários trabalharem apenas por recompensa financeira e a possibilidade de vazamento de informações confidenciais depõem contra a contratação de EMPs. Entretanto, ao se levar tudo em consideração, fica claro que a solução para esse tipo de prática não está na proibição radical da participação das EMPs em PKOs, e, sim, em uma maior regulação sobre elas, aumentando o controle da ONU sobre as mesmas. O maior controle da contratação de EMPs nas Missões de Paz seria suficiente, portanto, para amenizar os pontos negativos de tais contratações aqui apresentados. A sistematização das informações relativas às EMPs, contratadas pelas Nações Unidas, e uma maior clareza dos critérios empregados para a utilização dessas empresas seriam bem-vindos no cenário atual. Se a presença de EMPs em PKOs, hoje, é inevitável, deve-se, pelo menos, possuir maior clareza sobre suas atividades para que o debate sobre a utilização dessas seja pautado por informações mais precisas e transparentes. REFERÊNCIAS AVANT, D. The market for force: the consequences of privatizing security. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. BERDAL, M.; ECONOMIDES. 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Também é abordada no trabalho a temática da intenção de crime contra a humanidade em crimes ambientais, bem como sobre a nova figura penal do “Ecocídio” proposta por alguns autores que estudam o tema em tela. Comenta-se, como considerações finais, que, para o tratamento pleno dos crimes contra o meio ambiente no Estatuto de Roma, se faz necessário, diante da exigência de estrita tipificação das figuras delituosas que vigora, no campo penal, a inclusão do delito na jurisdição do Tribunal, juntamente com o tipo penal dos crimes de agressão, conforme previsto por Levandovski (2002), visando possibilitar a aplicação da pena, com a devida caracterização do tipo no Estatuto por ocasião da eventual reforma do diploma. Palavras-chave: Tribunal Penal Internacional. Crimes Ambientais. Direitos Humanos. Environmental Crimes Treatment by the International Criminal Court ABSTRACT The present paper deals with the possibility of expanding the scope of the International Criminal Court in order to enable environmental crimes to be treated as crimes against humanity, according to the analogy with the crime of Genocide, classified in the Treaty of Rome. The argumentation includes questions related to the themes of crimes against humanity, the classification of crimes under the scope * Bacharel em Engenharia Civil e em Administração e bacharelando em Direito, pela UFRN. Mestre e Doutor em Engenharia Civil. Professor do IFRN e Especialista em Infraestrutura Sênior vinculado ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Contato: [email protected]. ** Professor de Direito Processual Penal II da UFRN, D.Sc. Contato: [email protected]. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 89-109, jan./jun. 2013 89 Alexandre da Costa Pereira e Thiago Oliveira Moreira of the Treaty of Rome and the theme of contextualization of the analogy between war and environmental crimes. The work also presents the theme of the intended crimes against humanity in environmental crimes as well as the new criminal term of “Ecocide” proposed by some authors who study this topic. In the end, it is pointed out that for the fully treatment of crimes against the environment in the Rome Statute it is necessary, due to the requirement of the strict type of delicts in the penal jurisdiction, the inclusion of the delict within the jurisdiction of the Court, together with the penal type for crimes of aggression according to Levandovski (2002), seeking to allow the imposition of sentences with proper characterization of the type in the Statute on the occasion of an eventual legislation reform. Keywords: International Criminal Court. Environmental Crimes. Human Rights. Tratamiento de los Crímenes Ambientales por la Corte Penal InTernacional RESUMEN Este trabajo trata de la posibilidad de ampliar el alcance de la Corte Penal Internacional para que los crímenes ambientales sean tratados como crímenes de contra la humanidad, conforme analogía con el crimen de genocidio, tipificado por el Tratado de Roma. En la argumentación se abordan cuestiones relativas al tema de los crímenes contra la humanidad, la tipificación de los crímenes segundo el objetivo del Tratado de Roma y el tema de la contextualización de la analogía entre los crímenes de guerra y crímenes ambientales. También se aborda en el trabajo la temática de la intención de crimen contra la humanidad en los crímenes ambientales, así como sobre la nueva figura penal de “ecocidio” propuesto por algunos autores que estudian el tema en discusión. Se dice, como una consideración final, que, para el tratamiento completo de los crímenes contra el medio ambiente en el Estatuto de Roma, es necesario, dada la exigencia de estricta tipificación de figuras penales en vigor, en el ámbito penal, la inclusión del delito en la competencia de la Corte, junto con el tipo penal de crímenes de agresión, conforme previsto por Levandovski (2002), con ele objetivo de posibilitar la aplicación de la pena, con la caracterización adecuada del tipo en el Estatuto por ocasión de una posible reforma del diploma. Palabras clave: Corte Penal Internacional. Crímenes Ambientales. Derechos Humanos. 1 INTRODUÇÃO É fato amplamente reconhecido que as questões ambientais constituem um componente importante dos direitos básicos do ser humano. A Declaração de Estocolmo, de 1972, estabelece: “O ser humano tem o direito fundamental a um ambiente de uma qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna, gozar de bem90 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 89-109, jan./jun. 2013 Tratamento de Crimes Ambientais pelo Tribunal Penal Internacional estar (...).” 1 O Protocolo Adicional à Convenção Americana dos Direitos Humanos no Campo dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, dezesseis anos após a Declaração de Estocolmo, afirmou o “direito a viver em um ambiente saudável” (ONU, 1972), direito que foi inscrito nas constituições nacionais de muitos países. Embora ainda haja alguma discussão em torno de uma definição jurídica precisa para os conceitos vigentes que aparecem acerca dos “direitos ambientais”, não restam dúvidas acerca do estreito relacionamento entre direitos humanos e meio ambiente (FREELAND, 2005). São recorrentes os atos destinados à destruição deliberada do ambiente natural em contextos bélicos, tendo em vista metas estratégicas dos exércitos beligerantes, com o aniquilamento intencional do ambiente como método para ameaçar a segurança humana, método que infelizmente tem sido utilizado de forma crescente como tática empregada em conflitos, conforme citado no documento Human Security Now, publicado pela Comissão de Segurança Humana da ONU (2003). Nesse contexto, conforme proposto por Freeland (2005), sob determinadas circunstâncias, ações concebidas deliberadamente para destruir o meio ambiente podem ser enquadradas na jurisdição do Tribunal Penal Internacional (TPI), nos termos do Estatuto de Roma, de 1998, comentando que embora sejam mínimas as referências à questão ambiental no Estatuto de Roma, considera que existam várias opções potenciais para classificar os crimes ambientais nas tipologias de crimes consignadas no referido instrumento, ensejando a utilização de método teleológico para a aplicação dos dispositivos penais do referido Estatuto para o caso em questão. Convém que se destaque que o TPI, embora seja considerado como carente de instrumentos eficazes no âmbito dos crimes ambientais potencialmente danosos à humanidade, mediante a analogia e abordagem funcionalista pode vir a tornar-se importante fórum com o objetivo de coibir crimes ambientais, passíveis de serem tratados como ameaças à sobrevivência em condições dignas, de etnias e coletivos humanos, equiparando-se a crimes contra a humanidade, enquanto atos inumanos que provocam privações e graves sofrimentos a grandes massas de pessoas, notadamente quando afetadas por conflitos bélicos. Portanto, considera-se relevante a discussão sobre a questão da possibilidade de o TPI ampliar seu escopo no sentido de possibilitar que crimes ambientais sejam equiparados a crimes contra a humanidade, conforme analogia com o crime de Genocídio, tipificado no Tratado de Roma, tendo em vista que são recorrentes os efeitos danosos ao meio ambiente, causados por conflitos armados, implicando destruição do ambiente, conduzindo ao sofrimento e ameaçando a sobrevivência. São trabalhados no artigo temas relacionados com a qualificação de crimes 1 Primeiro Princípio da Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano (Declaração de Estocolmo), de 1972. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 89-109, jan./jun. 2013 91 Alexandre da Costa Pereira e Thiago Oliveira Moreira contra a humanidade e sua tipificação segundo o escopo do Tratado de Roma, sendo abordados, conforme a analogia entre crimes de guerra e crimes ambientais, tópicos relacionados ao TPI e a ocorrência de crimes ambientais em contexto de guerra, também sobre a intenção do Genocídio em crimes ambientais, em função da natureza e da extensão dos direitos ambientais, que passaram a ser mais amplamente reconhecidas em virtude da devastação deliberada do ambiente como parte dos objetivos estratégicos e militares, principalmente após o desenvolvimento de armas capazes de causar danos ecológicos graves e duradouros em vastas áreas. Este artigo busca reforçar a tese de que, em determinadas circunstâncias, a destruição deliberada do ambiente durante uma guerra deve ser vista como Crime contra o Meio Ambiente, passível de responsabilização penal internacional, de acordo com renomados autores2 que pesquisam sobre o tema em questão, fundamentalmente em relação à questão da possibilidade de classificação dos crimes ambientais nas tipologias de crimes consignadas no Estatuto de Roma, mesmo que sejam mínimas as referências à questão ambiental no referido instrumento. 2 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Conforme dispõem os princípios enunciados na Carta das Nações Unidas, o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no Mundo, sendo reconhecidos esses direitos como decorrentes da dignidade inerente à pessoa humana e, em conformidade com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, o ideal do ser humano livre, usufruindo das liberdades civis e políticas e liberto do medo e da miséria, não pode ser realizado, a menos que sejam propiciadas condições que permitam a cada um gozar dos seus direitos civis e políticos, bem como dos seus direitos econômicos, sociais e culturais, dentre eles os relativos ao meio ambiente, sendo imposta como obrigação dos Estados a promoção do respeito universal e efetivo dos direitos e das liberdades do homem. O conceito de dignidade humana traz, em seu conteúdo, conforme prevê o Art. 1º da Carta das Nações Unidas, o pressuposto de que todos os povos possuem o direito a dispor deles mesmos, o que implica livre determinação do seu estatuto político, bem como à livre dedicação ao seu desenvolvimento econômico, social e cultural, dispondo todos os povos, livremente, para atingir os seus fins, das suas riquezas e dos seus recursos naturais, sem prejuízo de quaisquer obrigações que decorrem da cooperação econômica internacional, fundada sobre o princípio do interesse mútuo e do direito internacional, não sendo admissível, em nenhum caso, a privação a um povo dos seus meios de subsistência. 2 Principalmente os autores FREELAND (2004); BASSIOUNI (1999); PÉREZ ESQUIVEL (2009); BERAT (1993); CHO (2001) e LEVANDOVSKY (2002), utilizados no artigo como referências sobre o tema trabalhado na pesquisa bibliográfica. 92 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 89-109, jan./jun. 2013 Tratamento de Crimes Ambientais pelo Tribunal Penal Internacional Consideram-se, portanto, como crimes contra a humanidade, conforme dispõe o Acordo de Londres3, que funcionou como o propulsor do movimento de internacionalização dos direitos humanos, os crimes de assassinato, extermínio, escravidão, deportação ou de outro ato desumano contra qualquer membro da população civil, antes ou durante a guerra, ou perseguições baseadas em critérios raciais, políticos e religiosos, na execução ou em conexão com qualquer crime de competência do Tribunal, independentemente se, em violação ou não do direito doméstico do país em que foi perpetrado. Pérez Esquivel (2009, p. 21) tornou-se um importante defensor de um projeto audacioso, propondo que seus responsáveis sejam julgados pelo Tribunal Penal Internacional, encarregado pelo tratamento aos crimes de guerra e contra a humanidade, apresentando como justificativa que a destruição do meio ambiente constitui um delito tão grave quanto os genocídios ou os assassinatos cometidos em contexto de guerra e por mandatários de regimes ditatoriais. A tese de Pérez Esquivel (2009)7 nasce da questão “qual a diferença entre o assassinato de milhares de civis em um ataque no Afeganistão e a matança de milhares de pessoas por contaminação da água?”, ou “qual a diferença entre a fome causada pelos conflitos tribais na África e a fome causada pela destruição do solo e uso indevido da terra?”, tendo em vista os danos decorrentes das catástrofes ambientais ao planeta e às pessoas que o habitam, principalmente devidos à contaminação da água e do solo e a destruição da biodiversidade, acarretando doenças, pobreza e falta de comida. Assim, conforme Pérez Esquivel (2009), a proposta consistiria em buscar penalizar crimes ambientais mediante o tratamento desses pelo Tribunal Penal Internacional, mediante a introdução do crime ambiental como passível de tratamento na Corte Penal de Haia, por meio da criação de uma câmara especial para esse tipo de delito, ou instituindo uma corte própria para os crimes ambientais. Reconhece, entretanto, que para ser possível a implementação da proposta, é preciso modificar o Estatuto de Roma, que legitima a Corte Penal. Comenta, ainda, que para caracterizar os grandes crimes ambientais, seria necessário, primeiro, a aprovação de dois terços dos países signatários do Estatuto, para possibilitar o julgamento das catástrofes ambientais provocadas pelo homem e os atentados contra o planeta da mesma forma que julgamos os crimes contra a humanidade, passando os mesmos a pertencer a uma mesma categoria. Em relação à questão da soberania, comenta Pérez Esquivel (2009)7que o conceito esteja associado a valores e qualidade de vida, argumentando que a soberania alimentar ou a soberania dos estados possuem o mesmo nível de valoração, sob o prisma da visão humanitária, tendo em vista que as Nações Unidas já alertaram quanto à urgência em relação à questão da fome e da soberania alimentar 3 Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, instituído em 8 de agosto de 1945. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 89-109, jan./jun. 2013 93 Alexandre da Costa Pereira e Thiago Oliveira Moreira em muitos países, considerando que quando a questão é o ambiente, as fronteiras passam a ter importância secundária, consistindo o pensamento no ser humano em questão de primeiro plano. Admite, entretanto, que a campanha pela caracterização dos crimes ambientais de modo a julgar os culpados na Corte de Haia está ainda no início, fazendo parte de planos da Corte fomentar discussões acerca da necessidade da adaptação da legislação internacional a esse tipo de delito, com o apoio de juristas internacionais para o tratamento do tema, sinalizando uma mudança de mentalidade das sociedades com relação aos direitos humanos, tendo em vista que atualmente os direitos humanos incluem direitos econômicos, sociais e ambientais, sendo necessário pensar no assunto em todas as suas dimensões, pois quando os primeiros tribunais para julgar crimes contra a humanidade foram estabelecidos, a destruição da natureza não havia chegado ao ponto em que está hoje, sendo vários os sinais de que a sociedade contemporânea está à beira de um colapso ambiental. Interessante comentar que Pérez Esquivel (2009), em relação à questão “o julgamento de crimes ambientais em um tribunal internacional seria uma forma mais eficiente de combater o aquecimento global do que os protocolos e metas de emissão de poluentes?”, comenta que, de fato, existam muitas promessas e boas intenções nos protocolos e nas metas de redução nas emissões de carbono dos países, mas não há sanções para o descumprimento do que foi estabelecido, citando como uma das únicas formas efetivas de combater o aquecimento global é ter um marco jurídico para ajudar a controlar a poluição. 3 TIPIFICAÇÃO DE CRIMES SEGUNDO O ESCOPO DO TRATADO DE ROMA O Tribunal Penal Internacional foi criado para enfrentar “crimes de maior gravidade, que afetam a comunidade internacional em seu conjunto” e, de acordo com os termos do art. 5º do Estatuto de Roma, tem competência para julgar os crimes mais graves que lesam a comunidade internacional como um todo. Os crimes acima enunciados são: o crime de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e o crime de agressão. Cada um desses crimes serão objeto de análise sendo abordados a evolução e os princípios que lhes são concernentes, bem como o entendimento doutrinário atual dos seus elementos constitutivos. 4 CRIME DE GENOCÍDIO Mediante a Convenção sobre a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, publicada em 1948, considerando que a Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas4, declarou-se que “O genocídio é um crime de direito dos povos, que 4 Resolução n.º 96 (I), de 11 de Dezembro de 1946. 94 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 89-109, jan./jun. 2013 Tratamento de Crimes Ambientais pelo Tribunal Penal Internacional está em contradição com o espírito e os fins das Nações Unidas e é condenado por todo o mundo civilizado”, reconhecendo que em todos os períodos da história o genocídio causou grandes perdas á humanidade. Convencidas de que, para libertar a humanidade de um flagelo tão odioso, é necessária a cooperação internacional. Conforme estatui o art. 2º da Convenção5 supracitada, configura-se como genocídio os atos cometidos com o objetivo de destruir, total ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tais como: assassinato de membros do grupo; atentado grave á integridade física e mental de membros do grupo; submissão deliberada do grupo a condições de existência que acarretarão a sua destruição física, total ou parcial; medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo, e transferência forçada das crianças do grupo para outro grupo. O Estatuto define o crime de genocídio como qualquer ato praticado “com intenção de destruir total ou parcialmente grupo nacional, étnico, racial ou religioso”, compreendendo: matar membros do grupo; causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capaz de ocasionar-lhes a destruição física, total ou parcial; adotar medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo; e efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo (LEVANDOVSKI, 2002). 5 CRIMES CONTRA A HUMANIDADE O art. 7º, §1º do Estatuto de Roma, preceitua como “crime contra a humanidade” qualquer um dos seguintes procedimentos, quando praticado no cenário de um ataque, generalizado ou ordenado, contra qualquer população civil havendo conhecimento desse ataque: homicídio; extermínio; escravidão; deportação ou transferência forçada de uma população; prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave, em violação das normas fundamentais de direito internacional; tortura; agressão sexual, escravatura sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização forçada ou qualquer outra forma de violência no campo sexual de gravidade comparável; perseguição de um grupo ou coletividade que possa ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de gênero, tal como definido no parágrafo 3º, ou em função de outros critérios universalmente reconhecidos como inaceitáveis no direito internacional, relacionados com qualquer ato referido neste parágrafo ou com qualquer crime da competência do 5 O art. 3º desta Convenção estabelece punição para os seguintes atos: a) O genocídio; b) O acordo com vista a cometer genocídio; c) O incitamento, direto e público, ao genocídio; d) A tentativa de genocídio; e) A cumplicidade no genocídio. Faz-se importante salientar que tais punições serão efetuadas independentemente das funções e imunidades que o criminoso possua, quer sejam governantes, funcionários ou particulares. Nesse sentido, as partes contratantes assumem a responsabilidade de criar dispositivos penais eficazes empregáveis ás pessoas culpadas de genocídio ou de qualquer dos atos enumerados no art. 3º da Convenção. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 89-109, jan./jun. 2013 95 Alexandre da Costa Pereira e Thiago Oliveira Moreira Tribunal, que causem intencionalmente grande sofrimento ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental. Assim, os crimes contra a humanidade, previstos no art. 7 do Estatuto, são aqueles que fazem parte de um ataque generalizado e sistemático contra determinada população civil e com ciência de tal ataque, diferenciando-se do genocídio por não se mostrar, em tal ato, a presença do dolo de aniquilar determinado grupo humano, ou parte dele. Sobre os crimes contra humanidade, Levandovski (2002, p. 192) comenta que se consideram qualificados como “qualquer ato praticado como parte de um ataque generalizado ou sistemático contra uma população civil e com conhecimento de tal ataque”, incluindo: homicídio; extermínio; escravidão; deportação ou transferência forçada de populações; encarceramento ou privação grave da liberdade física em violação a normas fundamentais de direito internacional; tortura; estupro; escravidão sexual, prostituição compulsória, gravidez imposta, esterilização forçada ou outros abusos sexuais graves; perseguição de um grupo ou coletividade com identidade própria, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais ou religiosos; desaparecimento de pessoas; apartheid; e outras práticas que causem grande sofrimento ou atentem contra a integridade física ou saúde mental das pessoas. 6 CRIMES DE GUERRA Os crimes de guerra são disciplinados pelo art. 8º do Estatuto de Roma do TPI, que preceitua que o Tribunal terá competência para julgar os crimes de guerra, em particular quando cometidos como parte integrante de um plano ou de uma política ou como parte de uma prática em larga escala desse tipo de crimes. Depreendem-se como “crimes de guerra”, para efeitos do Estatuto de Roma, as violações graves às Convenções de Genebra, de 12 de agosto de 1949, tais como qualquer dos seguintes atos, dirigidos contra pessoas ou bens protegidos nos termos da Convenção de Genebra que for pertinente (in verbis): homicídio doloso; tortura ou outros tratamentos desumanos, incluindo as experiências biológicas; o ato de causar intencionalmente grande sofrimento ou ofensas graves à integridade física ou à saúde; a destruição ou a apropriação de bens em larga escala, quando não justificadas por quaisquer necessidades militares e executadas de forma ilegal e arbitrária; o ato de compelir um prisioneiro de guerra ou outra pessoa sob proteção a servir nas forças armadas de uma potência inimiga; privação intencional de um prisioneiro de guerra ou de outra pessoa sob proteção do seu direito a um julgamento justo e imparcial; deportação ou transferência ilegais, ou a privação ilegal de liberdade; tomada de reféns. Os crimes de guerra, previstos no art. 8º do Estatuto são, portanto, aqueles praticados como parte de um plano ou estratégia, ou como parte de uma perpetração em larga escala. Apesar de sua previsão no Estatuto em comento, vê-se que 96 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 89-109, jan./jun. 2013 Tratamento de Crimes Ambientais pelo Tribunal Penal Internacional esses crimes já foram objeto de tratados internacionais anteriores, como é o caso da vetusta Convenção de Genebra, de 12 de agosto de 1949, da Cruz Vermelha Internacional e de outras fontes do direito internacional. A esse respeito, Márcio Medeiros Furtado explica: [...] os crimes de guerra são arrolados de modo quadripartido: primeiro, os que consistem em graves violações à Convenção de Genebra de 12 de agosto de 1949; segundo, os que consistem em sérias violações de leis e costumes aplicáveis em conflitos aramados internacionais, consoante o parâmetro estabelecido pelo direito internacional; terceiro, os que consistem em graves violações ocorridas em conflitos de caráter não internacional, previstas no art. 3º das quatro Convenções de Genebra, de 12.08.1949; quarto, os que consistem em sérias violações de leis e costumes aplicáveis em conflitos aramados de caráter não internacional, consoante o parâmetro estabelecido pelo direito internacional (art. 8ª). (MEDEIROS FURTADO, 2001, p. 490). Quanto aos crimes de guerra Levandovski (2002) trata-os como os praticados em conflitos armados de índole internacional ou não, em particular quando cometidos como parte de um plano ou política para cometê-los em grande escala, abrangendo violações graves das Convenções de Genebra de 1949 e demais leis e costumes aplicáveis aos conflitos armados, especialmente: homicídio doloso; tortura e outros tratamentos desumanos; ataque a civis e destruição injustificada de seus bens; tomada de reféns; guerra sem quartel; saques; morte ou ferimento de adversários que se renderam; utilização de veneno e de armas envenenadas; manejo de gases asfixiantes ou armas tóxicas; uso de armas, projéteis, materiais ou métodos que causem danos supérfluos ou sofrimentos desnecessários; emprego de escudos humanos; (morte de civis por inanição; organização de tribunais de exceção; e recrutamento de crianças menores de 15 anos. Nesse sentido, infere-se que tal lista de exemplos de crimes de guerra é plenamente suficiente para legitimar a formação de um tribunal penal internacional para fins de proteção aos direitos humanos os quais foram veementemente transgredidos durante um longo período. 7 CRIME DE AGRESSÃO O art. 2º, § 4º da Carta das Nações Unidas enuncia que “os membros deverão abster-se nas suas relações internacionais de recorrer à ameaça ou ao uso da força, quer seja contra a integridade territorial ou a independência política de um Estado, quer seja de qualquer outro modo incompatível com os objetivos das Nações Unidas”, evidenciando-se, pois, que o emprego da força e ameaça a fim de dirimir convulsões internacionais não é o meio apropriado, configurando-se em uma ilicitude. Em razão da ausência de tipificação do crime de agressão, a conceituação dessa Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 89-109, jan./jun. 2013 97 Alexandre da Costa Pereira e Thiago Oliveira Moreira natureza de crime foi posta em segundo plano6. Sobre os crimes de agressão, depois de muita discussão, o tipo acabou sendo inserido no Estatuto, mas não foi definido, pelo que não pode ser aplicado, diante da exigência de estrita tipificação das figuras delituosas que vigora no campo penal. Esse delito poderá ser mais tarde incluído na jurisdição do Tribunal, se for devidamente caracterizado por ocasião da reforma do Estatuto, que ocorrerá dentro de sete anos depois de sua entrada em vigor. Deverá, no entanto, amoldar-se à Carta das Nações Unidas, a qual prevê algumas hipóteses de guerra justa, a exemplo da intervenção para prevenir ou reprimir ameaças à paz (LEVANDOVSKI, 2002). Quanto à responsabilidade pelos crimes previstos no Tratado de Roma, considerando-se que o TPI tem o poder de exercer jurisdição sobre pessoas físicas, não sobre Estados, a posição que não há, atualmente, a possibilidade de o Tribunal iniciar um processo penal contra um Estado por um crime internacional, tal como o de atos planejados para produzir significativa degradação ambiental. Os Estados, por sua vez, podem ter algum grau de responsabilidade jurídica pela prática de crimes internacionais, nos termos dos princípios da Responsabilidade dos Estados; um Estado pode também ser culpabilizado em consequência de um crime internacional cometido por um de seus representantes7. Interessante considerar que apesar das inovações trazidas no bojo desta corte de justiça internacional, algumas críticas lhe são direcionadas, relacionadas, principalmente, à insuficiência do Estatuto de Roma quanto à previsão de crimes que, semelhante àqueles supra mencionados, também poderiam ser considerados como passíveis de uma maior repressão na seara internacional como, por exemplo, a inexistência de previsão do julgamento de crimes ambientais internacionais, considerados como coerentes com o escopo do TPI, de prevenir e reprimir ações atentatórias aos bens jurídicos mais elementares para a existência digna da espécie humana, especialmente no que tange à vida e a liberdade (BERAT, 1993; BASSIOUNI, 1999) . Quanto à questão referente à criminalização da conduta ambientalmente prejudicial em convenções interna6 O crime de agressão não possui uma conceituação precisa, de modo que sua inserção como espécie de crime no Estatuto de Roma apresentou consideráveis dificuldades. Conforme entendimento do art. 5º, § 2º do Estatuto de Roma, o qual afirma que “o Tribunal poderá exercer a sua competência em relação ao crime de agressão desde que seja provada uma disposição em que se defina o crime e se enunciem as condições em que o Tribunal terá competência relativamente a tal crime”. 7 Trata-se, portanto, de um nível de culpabilidade bem diverso de outro que pudesse atribuir ao próprio Estado uma responsabilidade penal, distinção que contém em si a mensagem de que, independentemente do grau de envolvimento de um Estado, seu grau de culpabilidade por atos que gerem consequências gravíssimas para os seres humanos e para o ambiente é inferior aos padrões pelos quais julgamos os indivíduos. 98 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 89-109, jan./jun. 2013 Tratamento de Crimes Ambientais pelo Tribunal Penal Internacional cionais de meio ambiente em geral, segundo Cho (2001), uma das principais razões estaria relacionada com o objetivo de impedir a conduta especialmente prejudicial para o ambiente, compartilhado nos níveis nacional e internacional, implicando a necessidade de tratamento do tema mediante convenções internacionais com competência ampla. Convém reforçar a relevância do tema da existência de um Direito Ambiental Penal supranacional, embora se constate que não houve consenso em relação ao tema da criação de convenções ambientais com a competência necessária no Congresso da Terra de 1992, pois a proteção ambiental através do direito penal em nível supranacional ainda encontra oposição8. Relata ainda Cho (2001), em relação à questão do esforço no sentido do reconhecimento e codificação de crimes ambientais internacionais, que o Código de Direito Internacional da Comissão de Projeto de Crimes contra a Paz e Segurança da Humanidade9 é produto de dez anos de discussão e marca a segunda tentativa importante pelas Nações Unidas nos últimos quarenta anos da introdução de um quadro normativo abrangente e universal de regulamentação penal internacional. Os componentes centrais de tal regime são um Tribunal Penal Internacional e um código criminal internacional. 8 ANALOGIA ENTRE CRIMES DE GUERRA E CRIMES AMBIENTAIS Conforme trata Freeland (2005),10 a Declaração de Estocolmo, de 1972, estabelece: “O ser humano tem o direito fundamental a um ambiente de uma qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna, gozar de bem-estar (...)”. Comenta, ainda, que dezesseis anos depois, o Protocolo Adicional à Convenção Americana dos Direitos Humanos no Campo dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais 8 Em outras palavras, não há nenhuma convenção internacional para estabelecer leis penais no âmbito ambiental internacional, bem como nenhum mecanismo internacional eficaz com a autoridade de execução, com a exceção em relação ao tema em questão dos julgamentos por crimes de guerra internacionais, em que a prática de tribunais internacionais e os tribunais não podem ser apresentadas como prova do reconhecimento internacional na forma de um direito consuetudinário, muito longe ainda um direito penal internacional stricto sensu. 9 Draft Code of Crimes against the Peace and Security of Mankind, in Report of the International Law Commission on Its Forty-third Session, U.N. GAOR, 46th Sess., Supp. No. 10, at 198, U.N. Doc. A/46/10 (1991); McCormack & Simpson, supra note 70 (discussing at length the prospects for the Draft Code). 10 Artigo derivado de documento denominado “Human Security and the Environment – Prosecuting Environmental Crimes in the International Criminal Court”, apresentado na 12th Annual Conference of the Australian and New Zealand Society of International Law – International Law and Security in the Post-Iraq Era: Where to for International Law?, realizada em Camberra, Austrália, de 18 a 20 de junho de 2004. Disponível em <http://www.law.usyd.edu.au/scigl/ anzsil/>. Acesso em 05 set. 2012. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 89-109, jan./jun. 2013 99 Alexandre da Costa Pereira e Thiago Oliveira Moreira afirmou o “direito a viver em um ambiente saudável”, direito que foi inscrito nas constituições nacionais de muitos países. Embora ainda haja alguma discussão em torno de uma definição jurídica precisa para os conceitos vigentes que aparecem acerca dos “direitos ambientais”, não restam dúvidas a propósito do estreito relacionamento entre direitos humanos e meio ambiente. Convém ressaltar, em relação ao tema dos impactos ambientais em contexto de guerra, o aspecto levantado por Freeland (2005) referente à questão do mais relevante instrumento para a proteção ao meio ambiente no quadro das normas que regulamentam a condução da guerra, tendo sido assinalado o Protocolo Adicional I às Convenções de Genebra de 1949, tendo em vista que o parágrafo 3o do Artigo 35 institui, como “norma básica”, a proibição de uma conduta concebida “para causar, ou que se presuma que vá causar, danos extensos, duráveis e graves ao meio ambiente natural”, comentando-se que o Protocolo Adicional I faz referência expressa à necessidade de proteger o meio ambiente, e reitera a proibição no 1o parágrafo do Artigo 55, vinculando-a à “saúde ou à sobrevivência da população”. Segundo Freeland (2005) o instrumento institui, ainda, sanções penais no caso de “infrações graves” às quatro Convenções de Genebra ou ao próprio Protocolo Adicional I, declarando que tal conduta deve ser observada como crime de guerra, sendo considerado pelo autor como um avanço considerável para a proteção do meio ambiente em tempos de guerra, mas, em termos práticos, pode ser quase impossível demonstrar qual patamar de danos implicaria uma condenação por infração grave. Conforme comenta FREELAND (2005), citando o caso do incêndio de 736 poços de petróleo no Kuwait (Figura 01), provocado pelas forças em retirada, no final da primeira invasão iraquiana, sobre o tema dos crimes ambientais em contexto de guerra: De forma similar, está claro que a depredação deliberada do meio ambiente pode gerar efeitos catastróficos não apenas em termos ecológicos, mas também sobre as populações humanas. Ações estrategicamente planejadas para destruir uma parte importante do meio ambiente representam uma infração aos direitos humanos básicos das pessoas afetadas. A relação entre a segurança humana e um ambiente seguro e habitável é fundamental, em particular no que tange ao acesso aos recursos naturais. No entanto – especialmente em contextos bélicos –, temos testemunhado inúmeros atos destinados à destruição deliberada do ambiente natural, tendo em vista metas estratégicas. O aniquilamento intencional do ambiente como método para ameaçar a segurança humana vem se tornando de forma crescente uma tática 100 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 89-109, jan./jun. 2013 Tratamento de Crimes Ambientais pelo Tribunal Penal Internacional empregada em conflitos, dando origem a termos como “Ecocídio” ou “geocídio” 11. (FREELAND, 2005, p. 120). Figura 01: Caças USAF sobrevoando área com poço de petróleo incendiados, na Guerra do Golfo12. Convém destacar que, além das situações envolvendo danos ao meio ambiente em contexto de guerra, Freeland ressalta, conforme dispõe o texto transcrito abaixo, que questões ambientais relacionadas com a falta ou restrições ao acesso aos recursos naturais por nações e populações possuem implicações diretas em crises de sustentabilidade de níveis adequados de qualidade de vida para coletivos humanos agrupados conforme características sociais e étnicas particulares, induzindo a conflitos bélicos, inclusive. Outra ligação significativa entre o ambiente e os conflitos humanos nem sempre é levada em conta: o acesso aos recursos naturais – ou a falta de acesso –, às vezes basta, por si só, para disparar o gatilho de um conflito. Uma das tensões latentes entre Israel e a Síria é o acesso à água. O Programa Ambiental das Nações Unidas relatou que 11 Comenta FREELAND que uma das consequências trágicas dos conflitos reside no fato de que o ambiente natural é quase sempre vulnerável aos objetivos bélicos ou às armas de guerra. É difícil esquecer as imagens fantasmagóricas do incêndio de 736 poços de petróleo no Kuwait, provocado pelas forças em retirada, no final da primeira invasão iraquiana; ou a drenagem sistemática dos pântanos de al-Hawizeh e al-Hammar, no sul do Iraque, pelo regime de Saddam Hussein, destruindo de fato a base de subsistência de 500 mil árabes dos pântanos, que habitavam esse ecossistema único. 12 Fonte: Imagem disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:USAF_F-16A_F-15C_F-15E_Desert_Storm_edit2.jpg>. Acesso em: 10 set. 2012. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 89-109, jan./jun. 2013 101 Alexandre da Costa Pereira e Thiago Oliveira Moreira os danos ambientais têm sido uma causa importante dos distúrbios políticos e dos conflitos na República Democrática do Congo e no Haiti. [...] Ações intencionais para causar ampla destruição ambiental e que afetam de modo expressivo determinados grupos de pessoas representam não apenas um aspecto estratégico dos conflitos, mas também um fator de intensificação do próprio conflito. Por isso, é importante dispor de medidas apropriadas de intervenção que respondam à destruição ambiental deliberada, em situações de guerra. Em uma época em que a moral, a ética e o direito internacional passaram a reconhecer os direitos dos indivíduos, e em que os conceitos de direitos ambientais e ecológicos vêm ganhando aceitação geral, é natural que a destruição deliberada do ambiente durante conflitos armados seja enquadrada por rigorosas normas jurídicas internacionais. Além disso, em determinadas circunstâncias, tal destruição deveria resultar em responsabilização penal individual, no plano internacional. Se a destruição ambiental for conduzida de modo a causar danos graves e implicar sofrimento humano, tal ação deveria constituir crime contra a comunidade internacional como um todo e, portanto, crime internacional – apropriadamente chamado “Crime contra o Meio Ambiente”. (FREELAND, 2005, p. 121). Mais adiante, destaca: Um regime legal que permitisse a responsabilização criminal individual no plano internacional, em caso de destruição significativa e deliberada do meio ambiente, levaria os dirigentes militares e políticos a avaliar com mais cuidado as consequências de seus atos. Promoveria a importância da proteção do ambiente e dos direitos ambientais, mesmo em tempos de guerra, estigmatizando publicamente ações que desprezam tais direitos. Desse modo, a destruição ambiental não seria mais uma mera consequência colateral dos conflitos. (FREELAND, 2005, p. 121). Importante destacar que o Estatuto inclui crimes de violência sexual tais como a violação e escravidão sexual, a prostituição forçada e a gravidez à força como crimes contra a humanidade, quando cometidos como parte de um ataque amplo e sistemático contra uma povoação civil. Também são crimes de guerra quando ocorrem em conflitos armados internos ou internacionais. 9 SOBRE A INTENÇÃO DE CRIME CONTRA A HUMANIDADE EM CRIMES AMBIENTAIS Interessante destacar, em relação ao elemento volitivo no Direito Penal, relacionado ao contexto abordado no presente trabalho, que a culpa deriva do latim, significando uma falta cometida contra o dever, seja por ação ou omissão, normal102 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 89-109, jan./jun. 2013 Tratamento de Crimes Ambientais pelo Tribunal Penal Internacional mente procedida por negligência, imprudência ou imperícia, dividindo-se em culpa consciente ou inconsciente. Ressalte-se que na culpa não há a ação positiva de causar o dano e, tãosomente a falta do dever de cuidado objetivo que a pessoa deveria ter. O dolo, por sua vez, consiste na prática de ato ou omissão de fato, cujo resultado resulta em crime, sendo necessário que o agente tenha desejado o resultado ou assumido o risco de produzi-lo, dividindo-se, essencialmente, em dolo eventual e dolo direto. Entre o dolo eventual e a culpa consciente existe um elo, visto que, na culpa consciente, o resultado é previsto pelo agente. Ele confia que o mesmo não ocorrerá, e no dolo eventual, ele, o agente, assume o risco de produzir o resultado. Para que um indivíduo seja sancionado penalmente, é necessário que a conduta praticada esteja previamente tipificada no Código Penal, em conformidade com a Doutrina do Direito Penal do Fato, adotada atualmente pela maioria das legislações. Quanto à questão correspondente ao elemento volitivo em crimes contra a humanidade em crimes ambientais, a interpretação tradicional da intenção de destruir para a caracterização do genocídio está relacionada com a concepção do conceito de intenção, o que requer um tratamento diferenciado em conformidade com o Estatuto, pois a concepção tradicional baseada na intenção de destruir é requisito a ser considerado em conformidade com o nível de atuação dos sujeitos envolvidos (AMBOS, 2009). Consequentemente, um sujeito não precisa agir com uma intenção “especial” (propósito ou desejo) para destruir um grupo, mas somente com o conhecimento de que seus atos são parte de um contexto global de genocídio ou de campanha. Como para a destruição final do grupo, o autor pode não ter conhecimento do risco do genocídio, mas pode desejar esse resultado, uma vez que é um evento futuro, sua atitude em relação a esta última consequência (genocídio propriamente dito) não é determinante para configurar a intenção de destruir. A principal razão para criminalizar condutas prejudiciais ao meio ambiente em convenções internacionais de meio ambiente em geral é o de impedir a conduta que é particularmente prejudicial ao meio ambiente compartilhado nos níveis nacional e internacional. Quanto aos tipos e características de disposições penais, em nível de acordos internacionais, as disposições penais das convenções internacionais ambientais parecem ser uma abordagem na busca de uma solução para um problema. Agora, a maioria das convenções ambientais tem disposições penais, e muitas convenções internacionais obrigam os Estados, parte da Convenção, a desenvolverem legislações nacionais adequadas, com a previsão expressa em relação à punição dos atos proibidos. O primeiro tipo de abordagem das disposições penais das convenções internacionais ambientais exige que as partes contratantes tomem medidas adequadas para assegurar a aplicação do acordo. O segundo tipo de abordagem inclui a exigência para as partes de promulgar e fazer cumprir a legislação, como pode ser necesRevista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 89-109, jan./jun. 2013 103 Alexandre da Costa Pereira e Thiago Oliveira Moreira sário para tornar efetivas as disposições. O terceiro advoga que as violações devem ser um crime punível sob a lei do território onde o navio (caso de poluição dos oceanos – águas internacionais) esteja registrado, ou “deve ser feita uma ofensa punível por cada Estado-Parte por sua legislação nacional. O quarto tipo dispõe que as partes devem promulgar e aplicar leis e outras medidas que possam ser necessárias para a finalidade de dar efeito ao acordo, e inclui várias proibições. Estes tipos de provisões são encontrados em cerca de quinze acordos multilaterais relativos a matérias relativas ao ambiente. Eles também são encontrados em um número limitado de acordos bilaterais e de instrumentos multilaterais. Alguns acordos expressamente reconhecem a sua função dissuasiva no sentido de que “as penas fixadas na lei de um partido devem ser suficientemente severas para desencorajar as violações da presente Convenção (1982)” 13. Uma boa parte das convenções acima mencionadas contém o que poderia ser referido como “disposições de policiamento”, para permitir às partes tomarem medidas no local para fazer cumprir as regras do acordo. Isso é verdade, por exemplo, da Convenção de 191114, para a Preservação de mamíferos marinhos da família Otaridae, altamente valorizado pela sua pele. Da mesma forma, o Acordo Internacional de 1937 para a Regulamentação da Caça à Baleia, prevê, no artigo 1, que as partes “deverão manter pelo menos um inspetor de caça em cada navio-fábrica sob sua jurisdição”. 10 ECOCÍDIO: CRIME CONTRA A HUMANIDADE A citação referente ao “Ecocídio” apareceu no topo de um ensaio apresentado no verão de 1997, no periódico Earth Island Journal, que levantou a questão: “Como lidar com o Mal Industrial?”, tendo sido solicitado mediante demandas provenientes do Congresso, que revelou como a indústria do tabaco, apesar de décadas de negação, há muito tempo sabia que o cigarro causava câncer. Para impedir desastres semelhantes e exigir justiça em nível mundial, a advogada e ativista Polly Higgins, radicada em Londres, apresentou, em abril de 2010, uma proposta legal à Organização das Nações Unidas (ONU) para considerar os danos ambientais graves como crime contra a paz, chamando-os de “ecocídios”. O Tribunal Penal Internacional (TPI) foi criado em 2002 para julgar casos contra quatro 13 Por exemplo, a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar Para o Direito Marítimo, em geral. A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), também chamada de Lei da Convenção do Mar e da Lei do Tratado do Mar (Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar) afirma: “As sanções prevista pelas leis e regulamentos dos Estados para os navios que arvorem a sua bandeira devem ser suficientemente severas para desencorajar as violações onde quer que ocorram”. 14 A convenção, no artigo 7º, prevê que “cada país irá manter um guarda ou patrulha nas águas frequentadas pela manada de focas na proteção do que é especialmente interessado, tanto quanto pode ser necessário para o cumprimento da Convenção”. 104 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 89-109, jan./jun. 2013 Tratamento de Crimes Ambientais pelo Tribunal Penal Internacional tipos de crime contra a paz: genocídio, crimes de guerra, de agressão e contra a humanidade. “As legislações nacionais ambientais não são suficientes”, disse Higgins. “Temos um enorme dano e destruição ocorrendo diariamente, e se agrava, não diminui”, acrescentou15. Higgins (2010)16, portanto, define Ecocídio como: “a extensa destruição, dano ou perda de ecossistema(s) ou de um determinado território, seja por ação humana ou por outras causas, a tal ponto que o gozo pacífico dos habitantes desse território foi severamente diminuído” (um relatório da ONU reforça a preocupação de Higgins, estimando que 3.000 das maiores empresas do mundo já causaram US$ 2,2 trilhões em danos ambientais)17. Comenta, ainda, que um verdadeiro desafio para definir Ecocídio vem sendo descobrir qual o nível de destruição do meio ambiente que constituiria um “crime contra a paz”, tendo em conta que o genocídio envolve o pressuposto da intenção criminosa, enquanto ação dolosa, enquanto Ecocídio é tipicamente um subproduto da ganância e negligência, sendo, portando, qualificado a priori como ação culposa. Comenta a ativista que a destruição dos ecossistemas da floresta tropical da Amazônia e da Indonésia, a desestabilização do sistema do mundo, clima e poluição maciça da BP18 do Golfo do México deve claramente passar no teste do “Ecocídio” 19, argumentado que outras das incontáveis árvores cortadas na Amazônia (Figura 2) ou das areias de alcatrão do Canadá, não tiveram tanta repercussão, mas também atestam o preço que tem a ambição humana. 15 Sua proposta define “ecocídio” como “a vasta destruição, dano ou perda de ecossistemas de um determinado território, seja por causa humana ou outras, em tal nível que o gozo pacífico de seus habitantes seja severamente reduzido”. A advogada também explicou que existe um círculo vicioso nas relações da humanidade com a natureza: a exploração intensiva dos recursos esgota e degrada os ecossistemas, o que gera conflitos entre as pessoas, às vezes armados. A guerra, por sua vez, provoca danos em grande escala no meio ambiente. A deterioração ambiental maciça durante tempos de guerra já é proibida. 16 Ex-advogada britânica Polly Higgins, que reavivou o debate sobre o mal corporativo com uma proposta que pede às Nações Unidas que reconheçam “ecocídio” como um “crime contra a paz” - o quinto - que poderia ser processado pelo Tribunal Penal Internacional ao lado de “genocídio”, “crimes de guerra”, “limpeza étnica” e “crimes contra a humanidade”. 17 A definição de Higgins é ainda mais ampla do que parece à primeira vista, uma vez que sua definição de “habitantes” inclui plantas e animais, bem como populações humanas. A revista The Ecologist a chamou de “Um dos Dez Melhores Visionários para Salvar o Planeta”, e, em 2008, ela foi convidada para apresentar a sua proposta de uma Declaração Universal dos Direitos Planetários junto às Nações Unidas. Até agora, apenas a Bolívia aprovou formalmente a Declaração, enquanto o vizinho Equador consagrou o “direito da natureza” em sua Constituição. 18 Empresa petroleira inglesa (British Petroleum). 19 As imagens da imensa mancha negra de petróleo que cobriu o Golfo do México percorreram o mundo como testemunho de um dos maiores desastres ambientais da história, em que milhões de litros de petróleo ainda se espalham pelo Golfo do México após a explosão de uma plataforma, ocorrida em 20 de abril de 2010, quando uma enorme mancha de petróleo se espalhou pelo Golfo do México, resultado da explosão da plataforma petrolífera Deepwater Horizon. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 89-109, jan./jun. 2013 105 Alexandre da Costa Pereira e Thiago Oliveira Moreira Convém destacar que o artigo sobre “crimes de guerra” no Estatuto de Roma, que deu origem ao TPI (1998), proíbe “o dano de longo prazo e severo do meio ambiente” em certas condições, dispondo a convenção sobre a proibição de utilizar técnicas de modificação ambiental com fins militares ou outros fins hostis proíbe o uso do meio ambiente como arma nos conflitos armados, consistindo a proposta de Higgins na busca pela extensão dessas proibições para tempos de paz, de forma dissociada a contextos bélicos. Figura 2: Explosão da plataforma petrolífera Deepwater Horizon, no Golfo do México, em 20/04/201020 e imagem de área de desmatamento na região Amazônica no Brasil.21 Embora haja diferentes caminhos para um caso ser levado ao TPI, acredita a ativista que os “ecocídios” provavelmente se basearão em informação apresentada por organizações não governamentais e comunidades locais. A proposta, segundo a ativista, se fundamenta na tese da possibilidade de punição, pelo TPI, dos responsáveis por “ecocídios”, bem como a competência do tribunal em fazer cumprir a ordem da restauração do dano em lugar do pagamento de multas, pena comum e inócua em legislações ambientais de muitos países, tendo em vista que muitas corporações conscientes das sanções financeiras não argumentam, simplesmente incluem as multas em seu orçamento de despesa, não se comprometendo na reparação dos danos causados. 11 CONSIDERAÇÕES FINAIS Desse modo, o presente artigo, possuindo como objetivo o estudo das condições para a caracterização de crimes ambientais como passíveis de tratamento pelo Tribunal Penal Internacional, à luz da teoria funcionalista, apresenta considerações 20 Fonte: Imagem disponível em: <http://saibahistoria.blogspot.com.br/2010/05/um-crime-ambientalque-entrou-para.html>. Acesso em: 12 set. 2012. 21 Fonte: Imagem disponível em: <http://www.infoescola.com/ecologia/crime-ambiental/>. Acesso em: 12 set. 2012). 106 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 89-109, jan./jun. 2013 Tratamento de Crimes Ambientais pelo Tribunal Penal Internacional sobre as condições para a caracterização de crimes ambientais como ameaças à sobrevivência, em condições dignas, de etnias e coletivos humanos. Aborda a questão ao comparar o crime contra a humanidade, tipificado no Tratado de Roma, a crimes ambientais em contextos de guerra, mediante metodologia baseada na analogia e comenta sobre a possibilidade para o tratamento, pelo Tribunal Penal Internacional, de crimes ambientais considerados como danosos contra a humanidade. Os direitos ambientais representam um componente importante dos direitos humanos fundamentais. Sem acesso a um ambiente seguro, as populações humanas podem não subsistir, nem sequer a um nível mínimo. O direito de viver em um ambiente seguro requer a proteção por meio de mecanismos jurídicos adequados e factíveis. A relevância desses direitos significa que a destruição deliberada do ambiente, direito incluso durante um conflito, está restrita pelos princípios da legislação ambiental e pode implicar a responsabilidade do Estado. Sem dúvida, o requisito básico da segurança ambiental significa que os atos praticados com a intenção de comprometer gravemente os direitos ambientais durante um conflito também geram responsabilidade penal. Fazer cumprir – a legislação que protege a segurança ambiental em amplitude internacional – deve caber às instituições internacionais cridas como resultado de processos diplomáticos, jurídicos e políticos. A integridade dos direitos ambientais significa que sua proteção deve ser assegurada por órgãos criados com a aceitação geral (idealizada, universal) da comunidade internacional. O TPI é o primeiro e único tribunal penal internacional permanente (pelo menos atualmente) e, como tal, representa o foro judicial apropriado para ajuizar tais atos, apesar da resistência que ainda sofre por parte dos Estados Unidos e de outros países. Um dos principais objetivos que levaram a constituir o Tribunal Penal Internacional foi coibir e castigar os mais graves crimes internacionais, que também “ameaçam a paz, a segurança e o bem-estar da humanidade” (Estatuto de Roma, 1998). A destruição deliberada do ambiente para fins estratégicos e militares, com suas sequelas desastrosas para as populações humanas, se enquadra claramente em esta descrição. A jurisdição do TPI limita-se aos crimes específicos definidos no Estatuto de Roma (1998)22. É importante que o Tribunal, atue de forma a evitar acusações de que suas competências estão sendo indevidamente ampliadas, dada a natureza altamente política da oposição ao Tribunal. Isto significa que, mesmo que surjam novos exemplos de ações inaceitáveis praticadas por seres humanos contra outros seres humanos, não se pode esperar que o Tribunal desempenhe seu papel até que tais ações possam ser claramente enquadradas entre os crimes já definidos da competência do TPI. Apesar destas limitações, a instituição de processos contra crimes ambientais, nos termos da atual jurisdição do Tribunal é possível e apropriada, congruente 22 Estatuto de Roma: Tratado que estabeleceu o Tribunal Penal Internacional, adotado em 1998, Ato Internacional que entrou em vigor internacional em 1o de julho de 2002, e passou a vigorar, para o Brasil, em 1o de setembro de 2002, tendo sido Promulgado mediante o Decreto no. 4.388, de 25 de setembro de 2002. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 89-109, jan./jun. 2013 107 Alexandre da Costa Pereira e Thiago Oliveira Moreira com os dispositivos do Estatuto de Roma, sempre que as circunstâncias assim o justifiquem. Não existe uma razão jurídica impeditiva, sendo conveniente destacar que quando doutrinadores excluem taxativamente a possibilidade de que o TPI desempenhe um papel em relação aos crimes ambientais, estão avaliando o tema de forma precipitada e incorreta, tendo em vista a gravidade dos efeitos que o dano ambiental imporia ao grupo afetado. Assim, os militares e outras pessoas envolvidas em conflitos armados não podem atuar sem ter em conta o impacto dos seus atos sobre o meio ambiente, sendo justificável, principalmente nos casos em que o próprio meio ambiente (ainda que indiretamente) seja o objeto das ações, considerando-se que os crimes poderiam ser ajuizados conforme os termos do Estatuto de Roma, importando no processo tanto fatores de ordem política como aspectos eminentemente jurídicos. Sem dúvida, a condenação por tais crimes constituiria um importante passo no sentido de inibir atos relacionados a sérias violações de direitos humanos atentando contra a segurança de coletivos e sustentabilidade do desenvolvimento e autodeterminação dos povos. Considera-se que para o tratamento pleno dos crimes contra o meio ambiente no Estatuto de Roma, faz-se necessário, diante da exigência de estrita tipificação das figuras delituosas que vigora no campo penal, a inclusão do delito na jurisdição do Tribunal, juntamente com o tipo penal dos crimes de agressão, conforme previsto por Levandovski (2002), visando possibilitar a aplicação da pena, com a devida caracterização do tipo no Estatuto por ocasião da eventual reforma do diploma. Associada à evolução dogmática na área da legislação ambiental internacional, o tema do direito ambiental internacional penal é considerado como um campo emergente, tendo em vista a sua complexidade e as expectativas de resultados positivos advindos da transnacionalização do direito penal ambiental, bem como consiste, em tese, a necessidade de um direito penal associado a sistema ambiental internacional, ao invés de simplesmente mais princípios internacionais de direito penal aplicados sobre o meio ambiente. Referências AMBOS, Kai. Current Issues in International Criminal Law. Criminal Law Forum 225, 2003. _______. General Principles of Criminal Law in the Rome Statute. Kluwer Academic Publishers: Netherlands, 1999. BASSIOUNI, M. Cherif. crimes against humanity in international criminal law. 2. ed. Haia: Kluwer Law, 1999. BERAT, Lynn. Defending the right to a healthy environment: toward a crime of geocide in international Law. 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Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 89-109, jan./jun. 2013 109 Carlos Alberto Moutinho Vaz e Eduardo Xavier Ferreira Glaser Migon O BRASIL E AS ALTERNATIVAS PARA O INCREMENTO DA COOPERAÇÃO EM SEGURANÇA & DEFESA NA ZONA DE PAZ E COOPERAÇÃO DO ATLÂNTICO SUL (ZOPACAS) Carlos Alberto Moutinho Vaz* Eduardo Xavier Ferreira Glaser Migon** RESUMO Trata-se de ensaio teórico acerca da ação da diplomacia militar brasileira no âmbito da Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZOPACAS), com o objetivo de indicar caminhos para o estabelecimento e a ampliação de iniciativas de cooperação em Segurança & Defesa (S&D) entre o Brasil e os demais países-membros desse espaço geopolítico e geoestratégico. A inspiração inicial foi a presença dos ministros da defesa na VII Reunião Ministerial da Zona, em janeiro de 2013, quando a preocupação crescente com a influência de potências extrarregionais no Atlântico Sul trouxe à tona a questão da segurança regional. Quanto aos eixos de cooperação, o ensaio apresenta uma investigação sobre o salvamento e resgate no mar, a vigilância marítima e as operações de paz, por terem sido estes eixos os propostos pelo Ministro da Defesa brasileiro naquela Reunião. Para tanto, foi realizada inicialmente uma revisão acerca da evolução dos mecanismos de segurança do Atlântico Sul, a partir do pós-Segunda Guerra Mundial. Na sequência, foram investigadas as abordagens constantes dos documentos os quais materializam a política de defesa do Brasil, no tocante à segurança do Atlântico Sul e às potencialidades de incremento da cooperação em S&D na região. A seguir, passou-se à particularização de cada um dos eixos de cooperação propostos. Por fim, procurou-se demonstrar que a ampliação das iniciativas de cooperação existentes e o estabelecimento de novas ações encontram espaço no arcabouço institucional da ZOPACAS e que vão ao encontro da atual agenda internacional brasileira. Palavras-chave: Cooperação. Segurança & Defesa. ZOPACAS. Atlântico Sul. Brasil. * Doutor em Ciências Militares. Pesquisador do Programa de Pós-graduação em Ciências Militares, Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME). Contato: [email protected]. ** Doutor em Ciências Militares. Pesquisador do Programa de Pós-graduação em Ciências Militares, Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME). Departamento de Pesquisa e Pós-graduação / Instituto Meira Mattos. Contato: [email protected]. 110 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 110-131, jan./jun. 2013 O Brasil e as Altern. para o Incremento da Coop. em Segu. e Def. Na Zona de Paz e Coop. do Atlântico Sul (Zopacas) Brazil and Alternatives for Increasing Security and Defense Cooperation in the Peace and Cooperation Zone Within the South Atlantic (Zopacas) ABSTRACT This essay is about the action of Brazilian military diplomacy within the South Atlantic Peace and Cooperation Zone (ZOPACAS) and aims to indicate ways for the establishment and enlargement of cooperation initiatives in defense & security between Brazil and the other member states of this geopolitical and geostrategic area. The initial inspiration was the presence of the ministers of defense in the Seventh Ministerial Meeting of the Zone in January 2013, when the increasing concern with the influence of extra-regional powers in the South Atlantic raised the question on the regional security. Regarding the areas of cooperation, the essay presents an investigation about the search and rescue (SAR) at sea, maritime surveillance and peacekeeping operations, since those were the fields suggested by the Brazilian Minister of Defense at that meeting. Therefore, it was initially performed a review about the evolution of the security arrangements of the South Atlantic from the post-Second World War. Subsequently, investigations were conducted to the approaches set out in the documents, which substantiated the Brazilian defense policy concerning the safety of the South Atlantic and the potential of increasing cooperation in defense and security with countries in the region. Next, it was set the particularization of each of the proposed areas of cooperation. Finally, it sought to demonstrate that the extension of existing cooperation initiatives and the establishment of new enterprises find room in the ZOPACAS institutional framework and are aligned with the current Brazilian international agenda. Keywords: Cooperation. Security & Defense. ZOPACAS. South Atlantic. Brazil. Brasil y las Alternativas para Aumentar la Cooperación en Seguridad y Defensa de Zona de Paz y Cooperación del Atlántico Sur (Zopacas) RESUMEN Este es un artículo sobre la acción de la diplomacia militar brasileña dentro de la Zona de Paz y Cooperación del Atlántico Sur (ZOPACAS), con el objetivo de indicar caminos y la ampliación de las iniciativas de cooperación de Seguridad y Defensa (S&D) entre Brasil y otros países miembros del espacio geopolítico y geoestratégico. La inspiración inicial fue la presencia de los ministros de Defensa en la Séptima Reunión Ministerial de la Zona, en enero de 2013, cuando la creciente preocupación con la influencia de las potencias extraregionales en el Atlántico Sur se hizo conocer al tema de la seguridad Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 110-131, jan./jun. 2013 111 Carlos Alberto Moutinho Vaz e Eduardo Xavier Ferreira Glaser Migon regional. Sobre los ejes de la cooperación, el trabajo presenta una investigación sobre la búsqueda y rescate en el mar, la vigilancia marítima y las operaciones de paz, ya que aunque los ejes propuestos por el Ministro de Defensa de Brasil en aquella reunión. Para eso, inicialmente se realizó una revisión de la evolución de los mecanismos de seguridad del Atlántico Sur, desde el fin de la Segunda Guerra Mundial. Enseguida se investigó los abordajes contenidos en los documentos que materializan la política de defensa de Brasil, en cuanto a la seguridad del Atlántico Sur y el potencial para una mayor cooperación en el S&D en la región. Después se pasó a cada uno de los ejes de cooperación propuestos. Por último, se intentó demostrar que la ampliación de las iniciativas de cooperación existentes y el establecimiento de nuevas acciones tienen espacio en la estructura institucional de las ZOPACAS y que están de acuerdo con la actual agenda internacional de Brasil. Palabras clave: Cooperación. Seguridad & Defensa. ZOPACAS. Atlántico Sur. Brasil. 1 INTRODUÇÃO O objetivo deste ensaio é o de investigar as possibilidades de cooperação entre o Brasil e os Estados-membros da Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZOPACAS) em assuntos de segurança & defesa (S&D). A motivação inicial para sua elaboração foi a proposta apresentada pelo Ministro da Defesa brasileiro aos seus pares, durante a VII Reunião Ministerial daquele Fórum, em janeiro de 2013. Quanto aos eixos de cooperação, o ensaio apresenta investigações sobre o salvamento e resgate no mar, a vigilância marítima e as operações de paz, por terem sido estes os propostos pelo Ministro naquela Reunião (BRASIL, 2013a). Muito embora a ZOPACAS tenha sido estabelecida a partir de uma perspectiva de não militarização do Atlântico Sul, a recente preocupação dos Estados-membros com a possibilidade de ingerências de potências extrarregionais naquela porção oceânica tem ensejado a inserção dos temas de S&D na agenda do Organismo. Cabe lembrar que a presença militar de potências “externas” no Atlântico Sul é uma realidade de longa data e que sua intensidade varia conforme os interesses de cada Estado na região (PENHA, 2012). Atualmente, a constatação sobre o incremento de atividades ilícitas em países banhados pelo Atlântico Sul – ou no próprio oceano –, bem como o aumento da importância geopolítica da região são fatores que aumentam a probabilidade de ingerências externas. Quanto às atividades ilícitas, podem ser mencionadas as ações de pirataria, tráficos de drogas e de pessoas, além do terrorismo internacional (FELLET; KAWAGUTI, 2013). Já o aumento da importância geopolítica é decorrente de fatores como a descoberta de grandes reservas de petróleo na costa brasileira e no Golfo da Guiné e a relevância da Rota do Cabo para o comércio internacional (LIMA, 2011). A análise focou inicialmente na evolução recente dos mecanismos de segurança do Atlântico Sul, priorizando a perspectiva brasileira, mas levando também 112 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 110-131, jan./jun. 2013 O Brasil e as Altern. para o Incremento da Coop. em Segu. e Def. Na Zona de Paz e Coop. do Atlântico Sul (Zopacas) em conta os interesses e ações de países e organismos externos ao espaço sulatlântico. Neste sentido, foi revisado o contexto no qual a ZOPACAS foi estabelecida, seu processo de maturação e, mais especificamente, a emergência das temáticas de S&D em seus foros de debates. Na sequência, foram estudados os documentos que estabelecem e desenvolvem a atual política brasileira de defesa – a Política Nacional de Defesa (PND), a Estratégia Nacional de Defesa (END) e o Livro Branco de Defesa Nacional (LBDN) –, com o intuito de identificar o espaço ocupado pelas nações sul-atlânticas naquela política, bem como de identificar as potencialidades de incremento da cooperação em S&D com países da região. Concluída uma moldura conceitual inicial, passou-se a investigar os eixos de cooperação sugeridos pelo Ministro da Defesa. Inicialmente, foi abordada a questão da cooperação naval, englobando as atividades de salvamento e resgate no mar e de vigilância marítima. Para tanto, optou-se por uma multiplicidade de perspectivas, contemplando fontes como compromissos internacionais, documentos nacionais de defesa e a observação direta da ação da diplomacia militar1 2 brasileira no tocante àquelas atividades. Neste contexto, convém destacar o vibrante intercâmbio atual entre a Marinha do Brasil e as forças navais dos países sul-atlânticos africanos, particularmente na formação de pessoal, na cooperação técnica e na realização de exercícios conjuntos (BRASIL, 2013d). Posteriormente, foram abordadas as operações de manutenção de paz como indutoras da cooperação em S&D. Esta abordagem foi realizada por meio da descrição de iniciativas atuais de integração entre o Brasil e outros países e organismos, bem como parcerias externas à Zona que denotavam potencial em fornecer subsídios conceituais aplicáveis à realidade institucional da ZOPACAS e de seus estados membros. 1 Sem desconhecer a existência de vozes discordantes quanto ao conceito de “diplomacia militar”, entende-se que o assunto vem sendo progressivamente inserido (e pacificado) no debate institucional e acadêmico. Em consequência, tanto oportuna quanto relevante à adoção do termo, que no âmbito deste trabalho é entendido como “o conjunto de ações de cooperação na Área de Defesa, levadas a efeito entre países amigos, incluindo estabelecimento de aditâncias militares, realização de conferências bilaterais, ações militares combinadas, intercâmbios entre estabelecimentos de ensino, entre outras”, sendo útil a “[…] promover intercâmbios e cooperações, construindo relações de confiança mútua, com a finalidade de colaborar com a segurança, o desenvolvimento, a estabilidade regional e a paz mundial” (BRASIL, 2013c, p. 19). 2 Em termos acadêmicos, são úteis à compreensão do conceito de diplomacia militar os esforços de Cottey&Forster (2004), Koerner (2006), Otálvora (2008) e Muthanna (2011). Soares (2009) sintetiza ações que caracterizam a ocorrência da diplomacia militar no contexto brasileiro. Santos & Migon (2012) e Pacheco & Migon (2013) desenvolvem a perspectiva de forma contextualizada para as relações Brasil-África e Brasil-Mercosul, respectivamente. Sabendo-se que o conceito foi formulado no Reino Unido ao final do século passado (HILLS, 2000), sugere-se a leitura do Ministry of Defence Policy Paper (MOD, 2001). Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 110-131, jan./jun. 2013 113 Carlos Alberto Moutinho Vaz e Eduardo Xavier Ferreira Glaser Migon 2 O BRASIL E A AGENDA DE SEGURANÇA DO ATLÂNTICO SUL Ao abordar a evolução dos sistemas de segurança regional no Atlântico Sul, Penha (2010, 2012) menciona o caráter relativamente marginal daquela porção oceânica no contexto geoestratégico das superpotências durante a Guerra Fria, sendo considerada apenas como rota marítima secundária para a circulação de mercadorias, notadamente o petróleo. Mesmo assim, a fim de garantir a livre circulação no Atlântico Sul, os Estados Unidos da América (EUA) e a Inglaterra lideraram as iniciativas que resultaram nos mecanismos militares de maior relevância no período – o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR) (1947) e o Acordo de Simonstown (1955). Na mesma época, ocorreu outra iniciativa liderada pela Argentina e pela África do Sul para o estabelecimento de um sistema de segurança regional – a Organização do Tratado do Atlântico Sul (OTAS) –, que, mesmo recebendo apoio formal dos EUA, acabou por não prosperar, por falta de apoio de alguns países da região (PENHA, 2010). Segundo Lima (2011), o Brasil foi contrário à criação da aliança sul-atlântica, pois havia o risco de o resultado ser o oposto da proposição inicial, uma vez que a reação da União Soviética poderia gerar uma militarização indesejada da região. Ademais, o Estado brasileiro considerava que o TIAR já proporcionava a salvaguarda dos interesses nacionais no tocante à segurança e que a proposta da OTAS refletia uma visão das potências centrais envolvidas na Guerra Fria, desconsiderando as perspectivas e os interesses dos países da região. A Guerra das Malvinas-Falklands (1982) pode ser considerada um ponto de inflexão no processo de estabelecimento de um mecanismo de segurança regional efetivo no Atlântico Sul. A utilização da base naval sul-africana de Simonstown pela marinha britânica e o apoio norte-americano à Grã-Bretanha ratificaram a inexistência de um pacto de defesa formal na região. Desde então, passou a preponderar um projeto de evolução das relações regionais em um quadro de paz e cooperação, por iniciativas do Brasil e da Nigéria (PENHA, 2010). Segundo Penha (2012), a observação brasileira sobre os acontecimentos da Guerra das Malvinas-Falklands, a constatação das dificuldades das marinhas regionais em projetar poder sobre o Atlântico Sul e o avanço do programa nuclear da África do Sul foram fatores que contribuíram para que o Brasil passasse a liderar o esforço no sentido de converter aquela porção oceânica em zona de paz e cooperação. O autor acrescenta que naquele momento se fazia também presente a preocupação com possíveis ingerências militares externas na região. Assim, o Itamaraty passou a buscar aliados para a concretização da iniciativa, o que acabou por acontecer em outubro de 19863. Cabe ressaltar que os EUA votaram contra a criação da ZOPACAS e que alguns 3 A Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZOPACAS) foi estabelecida pela Resolução de nº 41/11 da AGNU, de 27 de outubro de 1986. 114 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 110-131, jan./jun. 2013 O Brasil e as Altern. para o Incremento da Coop. em Segu. e Def. Na Zona de Paz e Coop. do Atlântico Sul (Zopacas) países europeus se abstiveram na votação da Resolução da ONU, o que, para alguns autores, introduziu um componente de instabilidade na região (CORRÊA, 2013). Da análise da Resolução de criação da ZOPACAS, dois pontos merecem considerações especiais. O primeiro é que se trata de um acordo político entre países, não se constituindo a Zona em um organismo internacional com personalidade jurídica, o que pode tender a fragilizar os arranjos estabelecidos. O segundo é que a Resolução não estabelece mecanismos claros na área da defesa, limitando-se a exortar os estados externos à região a reduzirem ou até eliminarem suas presenças militares no Atlântico Sul e a não permitirem a extensão ao Atlântico Sul de conflitos extrarregionais. Embora a ZOPACAS seja considerada por alguns analistas como um instrumento pouco consistente, estudiosos brasileiros veem com grande otimismo sua criação, conforme assevera Saraiva: A Otan do Atlântico Sul existe e funciona. É fraca, discreta, mas funciona como uma asa da paz. Refiro-me àquela instituição que, criada por brasileiros e africanos nos anos 1980 e que possui o peso histórico de ter impedida, como contraponto, a iniciativa sul-africana da OTAS (uma OTAN do sul). A Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul é a nossa pax atlântica. E segue uma conquista histórica da cooperação africanobrasileira. (SARAIVA, 2013, p. 2). Com o fim da Guerra Fria, houve uma redução das atividades da ZOPACAS. “A falta de uma estrutura institucional, também, contribuiu para uma perda de interesse com o projeto, por parte dos Estados-membros, muitos dos quais confrontados com sérios problemas internos” (PENHA, 2010, p. 5). No entanto, cabe aqui a menção ao aumento da importância geopolítica do Atlântico Sul a partir dos anos 2000, particularmente pelas novas descobertas de petróleo na costa brasileira e no Golfo da Guiné, além da grande relevância da Rota do Cabo para o comércio internacional. Esta nova situação geopolítica intensificou a presença de potências externas no Atlântico Sul. Em 2007, os EUA criaram o United States Africa Command, (US AFRICOM), que conta com os meios navais da VI Frota para eventual emprego na costa atlântica africana. No ano seguinte, a marinha norte-americana relançou a IV Frota no Atlântico Sul, na área de responsabilidade do United States Southern Command (US SOUTHCOM). Lima (2011) ressalta ainda a existência de um cordão de ilhas oceânicas pertencentes ao Reino Unido. Dentre elas, merecem destaque a ilha de Ascensão, que abriga uma base militar compartilhada entre a Grã-Bretanha e os EUA, e as Malvinas-Falklands, que possuem uma significativa base aérea e naval. O autor Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 110-131, jan./jun. 2013 115 Carlos Alberto Moutinho Vaz e Eduardo Xavier Ferreira Glaser Migon destaca também a presença francesa no Atlântico Sul, por meio da existência de meios navais no Departamento Ultramarino da Guiana e junto a alguns países francófonos da costa ocidental africana. Ainda quanto à presença de potências extrarregionais, convém mencionar que a China tem intensificado sua presença em países do continente africano, buscando oportunidades, sobretudo, na exploração petrolífera (BRAECKMAN, 2009). Em junho de 2007, ocorreu a VI Reunião Ministerial da ZOPACAS, em Luanda, da qual resultou a promulgação de uma Resolução da AGNU4 que continha como anexos o “Plano de Ação de Luanda” e a “Declaração Final de Luanda”, documentos que incluíam as perspectivas de Segurança & Defesa na agenda da ZOPACAS. O “Plano de Ação” possuía dois compromissos firmados entre os Estados-membros, referentes à temática da segurança regional. O primeiro tratava da prevenção de crimes transnacionais e o segundo dizia respeito à paz, à estabilidade e à prevenção de conflitos. Quanto a este segundo compromisso, ele estabelecia uma série de iniciativas relacionadas ao objeto do presente trabalho. O documento identificava a necessidade de ampliação da capacidade dos Estados-membros em participar de operações de paz, e, para isso, eles deveriam se comprometer, dentre outras coisas, a intensificar a cooperação com outros organismos regionais e sub-regionais, ao abrigo de uma Resolução do Conselho de Segurança da ONU5 que incentiva esta cooperação. A “Declaração Final de Luanda” ratificou os compromissos do “Plano de Ação” e incluiu observações dos ministros relacionadas às temáticas de Segurança & Defesa. Dentre elas, podem ser destacadas a ratificação da importância das peacekeeping operations e o reconhecimento do potencial de tais operações em fomentar a cooperação regional, além da relevância das missões de paz estabelecidas por organismos regionais e sub-regionais. Em 2009, um grupo de instituições de pesquisa europeias se juntou aos idealizadores norte-americanos do documento intitulado Alliance Reborn: An Atlantic Compact for the 21st Century – The Washington NATO Project e publicou o estudo denominado Shoulder to Shoulder: Forging a Strategic U.S. - EU Partnership, com a finalidade de reestudar os papéis dos Estados Unidos e da Europa face às evoluções do Sistema Internacional. O estudo apresentava um conjunto de dez iniciativas a serem implementadas, dentre as quais merece destaque a de: Explore an Atlantic Basin Initiative. Essa chamada Iniciativa da Bacia do Atlântico (IBA) destacava a importância crescente do comércio no Oceano Atlântico e sugeria que 4 UNITED NATIONS.GENERAL ASSEMBLY.Resolution A/61/1019 (2007) - Zone of peace and cooperation of the South Atlantic. Nova York: 07 ago. 2007. 5 UNITED NATIONS.SECURITY COUNCIL. Resolution 1631 (2005). Nova York: 17 out. 2005. 116 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 110-131, jan./jun. 2013 O Brasil e as Altern. para o Incremento da Coop. em Segu. e Def. Na Zona de Paz e Coop. do Atlântico Sul (Zopacas) os líderes deveriam ser incentivados a apagar a linha entre o Atlântico Norte e o Atlântico Sul, passando a trabalhar em conjunto (HAMILTON et. al., 2009; HAMILTON & BURWELL, 2009). Neste sentido, Lima (2011) destaca o posicionamento do então Ministro da Defesa, Nelson Jobim, quando convidado para uma mesa redonda sobre a IBA na Universidade Johns Hopkins, nos EUA. O Ministro fez questão de destacar os problemas estruturais existentes na proposta, na medida em que o Atlântico Norte e o Atlântico Sul possuíam realidades distintas e que a IBA poderia trazer em seu bojo o conceito de “atlantização” da OTAN, abrindo-se precedente para a intervenção da Aliança do Norte no Atlântico Sul. Em maio de 2010, um grupo de especialistas publicou o documento NATO 2020: Assured Security; Dynamic Engagement, como resultado de um estudo que lhes havia sido encomendado pela OTAN, a fim de subsidiar a formulação do novo conceito estratégico do Organismo. Quanto à possibilidade de atuação da OTAN fora de sua área geográfica, o documento reitera que “NATO is a regional, not a global organisation; its authority and resources are limited and it has no desire to take on missions that other institutions and countries can handle successfully”6 (OTAN, 2010a, p. 9). No entanto, na parte conclusiva do capítulo sobre o ambiente de segurança internacional, o estudo estabelece que as ameaças mais prováveis aos membros da Aliança são não convencionais. Ao elencar as naturezas de tais ameaças, existe a referência às disruptions to energy and maritime supply lines7 (OTAN, 2010a, p. 17). Assim, embora não haja nenhuma referência expressa ao Atlântico Sul, não parece plausível descartar esta porção oceânica da área de preocupação dos estadosmembros da OTAN, em decorrência de sua atual relevância como rota de comércio internacional. Em novembro de 2010, após a realização da Cúpula de Lisboa da OTAN, foi divulgado o Strategic Concept for the Defence and Security of the Members of the North Atlantic Treaty Organization8. O Conceito estabelece que, a fim de resguardar suas seguranças, os estados-membros continuarão desempenhando três tarefas essenciais, em conformidade com o direito internacional: a defesa coletiva, o gerenciamento de crises e a segurança cooperativa (OTAN, 2010b). Ao abordar a questão da segurança cooperativa, o conceito estratégico estabelece que “The Alliance is affected by, and can affect, political and security developments beyond its borders. The Alliance will engage actively to enhance 6 A OTAN é uma organização regional e não global; sua autoridade e seus recursos são limitados e não há a intenção de assumir tarefas as quais outras instituições e países podem realizar satisfatoriamente. Tradução livre. 7 Interrupções das linhas de suprimento marítimas, inclusive de recursos energéticos. Tradução livre. 8 Conceito Estratégico para a Defesa e a Segurança dos Membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte. Tradução livre. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 110-131, jan./jun. 2013 117 Carlos Alberto Moutinho Vaz e Eduardo Xavier Ferreira Glaser Migon international security, through partnership with relevant countries and other international organizations”9 (OTAN, 2010b, p. 8). Assim, não se observa nenhuma menção à possível atuação isolada da Aliança fora de sua área geográfica, salvo em cumprimento a acordos e determinações de organismos multilaterais, sempre ao abrigo da norma internacional. Retornando à ZOPACAS, em dezembro de 2010, ocorreu em Brasília uma Mesa Redonda, em que as temáticas de S&D foram novamente discutidas. Na agenda, constavam as seguranças marítima e portuária, o combate aos crimes transnacionais e a cooperação geral em matéria de defesa10. Em janeiro de 2013, conforme já mencionado anteriormente, o Ministro Celso Amorim, propôs a operacionalização de uma série de iniciativas que permitirão tornar mais concreta a parceria em matéria de Segurança & Defesa e na ZOPACAS, a fim de combater a ocorrência de atividades ilícitas na região e, sobretudo, de impedir que tais atividades ensejem a intervenção de potências extrarregionais no Atlântico Sul. O Ministro sugeriu a inclusão de seminários temáticos sobre Segurança & Defesa no Plano de Ação do Organismo para 2013, o que deve conservar estes assuntos na pauta de discussão. Assim, pôde-se observar que, mesmo tendo sido estabelecida como uma zona de paz – portanto, sem a intenção de militarizar o Atlântico Sul – e não possuindo um arcabouço institucional consistente sobre a cooperação em Segurança & Defesa, a análise da evolução recente da agenda de debates da ZOPACAS demonstra a viabilidade, ou a necessidade, de se intensificar esta cooperação. 3 A POLÍTICA DE DEFESA BRASILEIRA E O ATLÂNTICO SUL Passa-se, agora, à análise da atual Política de Defesa do País, a fim de buscar nos documentos que materializam essa política o amparo para as possíveis iniciativas de integração em Segurança & Defesa, reunindo o Brasil e os demais países membros da ZOPACAS. Do estudo da Política Nacional de Defesa (PND)11, observa-se que, no item referente ao ambiente internacional, o documento destaca a imprevisibilidade das relações internacionais atuais e menciona o aumento da probabilidade dos 9 A Aliança é afetada por – e pode afetar – eventos políticos e de segurança além de suas fronteiras. A Aliança irá engajar-se ativamente na melhoria da segurança internacional, por intermédio de parcerias com países relevantes e com outras organizações internacionais. Tradução livre. 10 BRASIL. MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Nota no 716 - Mesa Redonda da Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZOPACAS) - Brasília, 6 e 7 de dezembro de 2010. Disponível em: <http:// www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/notas-a-imprensa/mesa-redonda-da-zona-de-paz-e-cooperacao-do-atlantico-sul-zopacas-brasilia-6-e-7-de-dezembro-de-2010> Acesso em: 15 mar. 2013. 11 A Política Nacional de Defesa (PND), a Estratégia Nacional de Defesa (END) e o Livro Branco de Defesa Nacional (LBDN) foram aprovados pelo Decreto Legislativo Nº 373, de 25 de setembro de 2013. 118 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 110-131, jan./jun. 2013 O Brasil e as Altern. para o Incremento da Coop. em Segu. e Def. Na Zona de Paz e Coop. do Atlântico Sul (Zopacas) conflitos intraestatais e dos conflitos pelo controle de áreas marítimas, pelo domínio aeroespacial e por fontes de água doce, de alimentos e de energia. Menciona, ainda, que tais questões poderão levar a ingerências em assuntos internos ou a disputas por espaços não sujeitos à soberania dos Estados (BRASIL, 2013b). Ao passar a abordar o ambiente regional e o entorno estratégico brasileiro, a PND destaca que, embora a América do Sul seja o ambiente regional natural do Brasil, o país visualiza um entorno estratégico que inclui o Atlântico Sul e os países lindeiros da costa oeste africana, além da Antártica e do Caribe. Na sequência, o documento estabelece entre as prioridades para o planejamento brasileiro de defesa a Amazônia e o Atlântico Sul. Ao desenvolver esta última área, enfatiza a importância do mar para o progresso do Brasil desde o descobrimento, menciona a questão do reconhecimento das águas jurisdicionais brasileiras e a importância das rotas atlânticas para o comércio exterior brasileiro (BRASIL, 2013b). Quanto à questão das águas jurisdicionais, a PND reforça que a Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar (CNUDM) abre a possibilidade de o Brasil estender os limites da sua Plataforma Continental e exercer o direito de jurisdição sobre os recursos econômicos em uma área de cerca de 4,5 milhões de quilômetros quadrados, na área que passa a ser denominada de “Amazônia Azul”. Lima (2011) ressalta que todos os países integrantes da ZOPACAS ratificaram a CNUDM. A PND destaca ainda a atuação brasileira no cenário internacional respeitando os princípios constitucionais da autodeterminação, da não intervenção, da igualdade entre os Estados e da solução pacífica de conflitos. Neste sentido, o país participa de operações de paz sob a égide da ONU, sempre de acordo com os interesses nacionais. Para tanto, o documento estabelece que o Brasil deva dispor de capacidade de projeção de poder, o que lhe permitirá uma pronta resposta a um chamado das Nações Unidas (BRASIL, 2013b). Finalizando a análise da PND, cabe abordar os objetivos nacionais de defesa ali elencados, bem como duas das orientações existentes. Quanto aos objetivos, destacam-se os seguintes: contribuir para a estabilidade regional, contribuir para a manutenção da paz e da segurança internacionais e intensificar a projeção do Brasil no concerto das nações e sua maior inserção em processos decisórios internacionais. Quanto às orientações, vale mencionar inicialmente a que estabelece que o Brasil deva buscar parcerias estratégicas, visando ampliar o leque de opções de cooperação na área de defesa e as oportunidades de intercâmbio. A segunda orientação relevante para este estudo é a de que o Brasil deve dispor de meios com capacidade de exercer vigilância, controle e defesa das águas jurisdicionais brasileiras, do seu território e do seu espaço aéreo, incluídas as áreas continental e marítima. Deve, ainda, manter a segurança das linhas de comunicações marítimas e das linhas de navegação aérea, especialmente no Atlântico Sul (BRASIL, 2013b). Considerando-se a Estratégia Nacional de Defesa (END) como o instrumento Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 110-131, jan./jun. 2013 119 Carlos Alberto Moutinho Vaz e Eduardo Xavier Ferreira Glaser Migon que operacionaliza os objetivos constantes da PND, vale observar algumas das diretrizes dela constantes. A primeira é a de estimular a integração da América do Sul. Ao desenvolver esta diretriz, a END estabelece que a integração não somente contribui para a defesa do Brasil – já que afasta a possibilidade de conflitos na região –, como também possibilita fomentar a cooperação militar regional e a integração das bases industriais de defesa (BRASIL, 2013a). A próxima diretriz pertinente é a de preparar as Forças Armadas para desempenharem responsabilidades crescentes em operações internacionais de apoio à Política Externa Brasileira (PEB). Ela estabelece que as Forças ajam sob a orientação das Nações Unidas ou em apoio a iniciativas de órgãos multilaterais da região, já que o fortalecimento do sistema de segurança coletiva é benéfico à paz mundial e à defesa nacional. Assim, percebe-se que, ao mencionar as “iniciativas de órgãos multilaterais da região” (BRASIL, 2013a, p. 7), a END visualiza a participação brasileira não somente nas missões de paz estabelecidas pela ONU. Na sequência, observa-se que outras diretrizes estão alinhadas com a proposta deste estudo, a saber: dissuadir a concentração de forças hostis nas fronteiras terrestres e nos limites das águas jurisdicionais brasileiras, e impedir-lhes o uso do espaço aéreo nacional; desenvolver as capacidades de monitorar e controlar o espaço aéreo, o território e as águas jurisdicionais brasileiras; e ampliar a capacidade de atender aos compromissos internacionais de busca e salvamento. Quanto a esta última, a END estabelece que é tarefa prioritária para o país o aprimoramento dos meios existentes e a capacitação do pessoal envolvido com as atividades de busca e salvamento no território nacional, nas águas jurisdicionais brasileiras e nas áreas pelas quais o Brasil é responsável, em decorrência de compromissos internacionais (BRASIL, 2013a). Ao estabelecer os Objetivos Estratégicos das Forças Armadas, a END estabelece como tarefas estratégicas da Marinha do Brasil a negação do uso do mar, o controle de áreas marítimas e a projeção de poder. Dentre elas, a tarefa prioritária é a negação do uso do mar a qualquer concentração de forças inimigas que se aproxime do Brasil por via marítima. Para tanto, deverá manter a capacidade focada de projeção de poder e criar condições para controlar, no grau necessário à defesa e dentro dos limites do direito internacional, as áreas marítimas e águas interiores de importância político-estratégica, econômica e militar, e também as suas linhas de comunicação marítimas (BRASIL, 2013a). Ao operacionalizar as tarefas estratégicas da Marinha, a END estabelece que devam ser focadas, conforme as circunstâncias: a defesa proativa das plataformas petrolíferas; a defesa proativa das instalações navais e portuárias, dos arquipélagos e das ilhas oceânicas nas águas jurisdicionais brasileiras; a prontidão para responder a qualquer ameaça, por Estado ou por forças não convencionais ou criminosas, às vias marítimas de comércio; e a capacidade de participar de operações internacionais de paz, fora do território e das águas jurisdicionais brasileiras, sob a égide das Nações 120 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 110-131, jan./jun. 2013 O Brasil e as Altern. para o Incremento da Coop. em Segu. e Def. Na Zona de Paz e Coop. do Atlântico Sul (Zopacas) Unidas ou de organismos multilaterais da região (BRASIL, 2013a). Quanto ao Exército Brasileiro, consta da END que deverá ter capacidade de projeção de poder, constituindo uma Força, quer expedicionária, quer para operações de paz, ou de ajuda humanitária, para atender a compromissos assumidos sob a égide de organismos internacionais ou para salvaguardar interesses brasileiros no exterior. No tocante à Força Aérea Brasileira, convém ressaltar o objetivo estratégico que estabelece a prioridade da vigilância aérea, que deve ser exercida sobre todo o território nacional e sobre as águas jurisdicionais brasileiras. O texto reitera a questão da interoperabilidade entre as Forças Armadas, determinando o desenvolvimento do repertório de tecnologias e de capacitações que permitam à Força Aérea operar em rede, não só entre seus próprios componentes, mas, também, com a Marinha e o Exército (BRASIL, 2013a). Como documento final referente à Política de Defesa do Brasil, o Livro Branco de Defesa Nacional (LBDN) mereceu também a análise no escopo deste trabalho. De maneira geral, o LBDN desenvolve muitos dos assuntos abordados pela PND e pela END, que não necessitam ser aqui reestudados. Entretanto, vale mencionar o reforço à importância do Atlântico Sul, e, particularmente, da ZOPACAS, para o planejamento brasileiro de defesa. Quanto ao Atlântico Sul, o LBDN ressalta que o fato de o Brasil possuir a maior costa atlântica do mundo ratifica a importância vital daquela porção oceânica para o comércio internacional, não somente do Brasil como de diversos países. Analisando o caso específico do comércio brasileiro, estabelece que proteção das linhas de comunicação e das rotas de comércio com a África tem significado estratégico. No que tange à ZOPACAS, o LBDN assevera que a importância comum do Atlântico Sul reforça a necessidade do trabalho conjunto entre o Brasil e seus parceiros da África Ocidental para a afirmação daquela Zona como área pacífica, possibilitando o aproveitamento de seu potencial de desenvolvimento socioeconômico (BRASIL, 2013d). Assim, observa-se que a ZOPACAS compreende espaços marítimos, terrestres e aéreos de grande relevância para a política brasileira de defesa e que os eixos de cooperação investigados no presente estudo encontram-se alinhados com as diretrizes constantes dos documentos que a estabelecem. 4 A COOPERAÇÃO NAVAL A possibilidade de cooperação internacional em atividades de salvamento e resgate (search and rescue - SAR) no mar encontra amparo inicial com a celebração da Convenção sobre o Alto Mar (Convention on the High Seas)12, de 1958, cujo Artigo 12 UNITED NATIONS. Final Act of the United Nations Conference on the Law of the Sea. Disponível em: <http://treaties.un.org/doc/Publication/UNTS/Volume%20450/volume-450-I-6465-English.pdf> Acesso em 25 abr. 2013. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 110-131, jan./jun. 2013 121 Carlos Alberto Moutinho Vaz e Eduardo Xavier Ferreira Glaser Migon 12 estabelece que todos os Estados ribeirinhos estimularão a criação e manutenção de um Serviço de Busca e Salvamento adequado e eficaz para garantir a segurança no mar e assinarão, quando as circunstâncias assim o exijam, acordos regionais de cooperação mútua com os vizinhos. Cabe aqui ressaltar que a Convenção sobre o Alto Mar foi o marco inicial para a concepção e a criação do Serviço de Busca e Salvamento da Marinha (SALVAMAR)13, que permanece ativo até os dias atuais, com a missão de “prestar socorro ao navegante em apuros, atendendo as emergências relacionadas à salvaguarda da vida humana no mar”. Além do SALVAMAR, a Marinha do Brasil contribui com as atividades de SAR por meio de fornecimento de previsões meteorológicas especiais, pelo Centro de Hidrografia da Marinha (CHM). Outro instrumento de grande relevância é a Convenção Internacional para a Salvaguarda da Vida Humana no Mar (International Convention for the Safety of Life at Sea – SOLAS)14, consolidada em 1974 por evolução de mecanismos anteriores de natureza semelhante. Seu texto já sofreu diversas atualizações, mas ainda persiste a Regra 15 do Capítulo V, que especifica que os signatários devem garantir a vigilância em suas costas e o salvamento das pessoas em perigo no mar ao longo dessas costas, devendo estabelecer e manter de todas as instalações de segurança marítima necessárias a este fim. Assim, constata-se a interdependência entre os países costeiros e os países possuidores de embarcações que transitam em determinada rota marítima. Em 1979, a fim de estabelecer um sistema internacional de SAR, a Organização Marítima Internacional (IMO) convocou uma Conferência na cidade de Hamburgo, cuja realização deu origem à Convenção Internacional de Busca e Salvamento Marítimo15 (International Convention on Maritime Search and Rescue – SAR Convention), que ficou conhecida como Convenção de Hamburgo. O documento entrou em vigor em 1985 e em seu preâmbulo já consta a intenção de promover a cooperação entre as organizações internacionais e locais de busca e salvamento. A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), de 198216, 13 Para maiores informações, ver página eletrônica do SALVAMAR, em: <https://www.mar.mil.br /salvamarbrasil/> Acesso em: 26 abr. 2013. 14 INTERNATIONAL MARITIME ORGANIZATION.International Convention for the Safety of Life at Sea (SOLAS).Disponível em: <http://www.imo.org/blast/blastDataHelper.asp?data_id=11806&filename= SafetyofLifeatSeaConvention1914.pdf> Acesso em: 26 abr. 2013. 15 INTERNATIONAL MARITIME ORGANIZATION. International Convention on Maritime Search and Rescue. Disponível em: <http://www.imo.org/About/Conventions/ListOfConventions/Pages/International-Convention-on-Maritime-Search-and-Rescue-%28SAR%29.aspx> Acesso em: 26 abr. 2013. 16 UNITED NATIONS. United Nations Convention on the Law of the Sea. Disponível em: < http://www.un.org/depts/los/convention_agreements/texts/unclos/unclos_e.pdf>. Acesso em 20 abr. 2013. 122 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 110-131, jan./jun. 2013 O Brasil e as Altern. para o Incremento da Coop. em Segu. e Def. Na Zona de Paz e Coop. do Atlântico Sul (Zopacas) ratificou o estabelecido na Convenção sobre o Alto Mar de 1958, ao manter em seu Artigo 98 a previsão dos acordos regionais de cooperação em busca e salvamento. No caso brasileiro, além de o país ser signatário das convenções aqui mencionadas, cabe relembrar a diretriz constante da END de ampliar a capacidade de atender aos compromissos internacionais de busca e salvamento. Assim, o eventual estabelecimento de iniciativas voltadas à cooperação internacional em atividades de SAR iria ao encontro da atual Política de Defesa do Brasil. Passando a tratar da vigilância marítima, convém ressaltar desde já que a questão da segurança da navegação tem sido tema recorrente nas agendas do Brasil e de diversos países membros da ZOPACAS, no debate atual sobre Segurança & Defesa. Como prova disso, foi realizado no Rio de Janeiro, em maio de 2013, o III Congresso dos Mares da Lusofonia17. O evento foi promovido pelo Instituto dos Mares da Lusofonia e pôde-se observar na programação e nos debates a recorrência dos temas de S&D. O Comandante da Marinha do Brasil se fez presente e o evento enfatizou a segurança da navegação no Atlântico Sul, incluindo a conferência de encerramento, intitulada “Da Segurança do Atlântico e da Maturidade dos Países da CPLP”. Uma questão pontual que chama a atenção para a questão da segurança no Atlântico Sul é o aumento significativo nos casos de pirataria e assaltos armados18 na costa atlântica africana, particularmente nas águas da Nigéria, país que possui as maiores reservas petrolíferas da África Subsaariana e que atualmente é o principal exportador de petróleo ao Brasil. Segundo o último relatório do International Maritime Bureau (IMB), ao passo que houve uma redução expressiva nas ocorrências totais, e, particularmente, no chamado chifre da África – em especial na costa da Somália – foi registrado um aumento substancial na costa nigeriana nos últimos dois anos (IMB, 2013). Cabe ressaltar que, segundo o Ministro da Defesa brasileiro Celso Amorim, não há a intenção de que a Marinha do Brasil venha a combater as ações criminosas na costa africana, mas sim que possa cooperar na capacitação das forças navais dos países daquele continente para este fim, sempre que houver acordos firmados neste sentido19. Ao abordar a questão dos sistemas de monitoramento e controle, o LBDN aborda o Sistema Brasileiro de Vigilância (SISBRAV), que se encontra em fase de planejamento e que integrará os diversos sistemas nacionais de monitoramento e controle, dentre os quais o Sistema de Gerenciamento da Amazônia Azul (SisGAAz), 17 Para maiores informações ver página eletrônica do evento. Disponível em: <http://www.maresdalusofonia.com.br/> Acesso em: 29 mai. 2013. 18 Os crimes de pirataria e de assalto armado são definidos, respectivamente, pelo Artigo 101 da CNUDM e pela resolução 1025 (26), da sessão da 26a Assembleia da mesma Convenção. 19 MINISTÉRIO DA DEFESA. Brasil e Libéria discutem possibilidades de cooperação em defesa. Disponível em: <https://www.defesa.gov.br/index.php/ultimas-noticias/8716-25-06-201...> Acesso em: 25 jun. 2013. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 110-131, jan./jun. 2013 123 Carlos Alberto Moutinho Vaz e Eduardo Xavier Ferreira Glaser Migon que tem sua implantação total prevista para até 2024 e foi concebido para ser um sistema de monitoramento e controle relacionado ao conceito internacional de segurança marítima e para a proteção do litoral brasileiro (BRASIL, 2012c). Ao tratar do processo de transformação da defesa, o LBDN destaca que, além de ampliar a capacitação das Forças Armadas, criará uma gama de oportunidades para o crescimento econômico, por meio de três vertentes: o Plano de Articulação e Equipamento de Defesa (PAED), a modernização da gestão e a reorganização da Base Industrial de Defesa (BID). Quanto ao PAED, dentre os projetos prioritários estabelecidos pela Marinha no escopo do Plano, constam o já abordado SisGAAz e a Recuperação da Capacidade Operacional, que consiste na revitalização e modernização das estruturas logísticas e operativas da Marinha. Assim, parece plausível que ambos os projetos devem ser fomentados em caso de ampliação da capacidade brasileira de vigilância marítima, decorrente de iniciativas de cooperação multinacional (BRASIL, 2012c). Quanto à BID, a observação das iniciativas recentes de aproximação de países membros da ZOPACAS para com o Brasil, no sentido da aquisição de meios navais de defesa, sugere a possibilidade de incremento da atividade da indústria brasileira de defesa, em decorrência do estreitamento de laços derivado das possíveis iniciativas de cooperação em vigilância marítima. Neste sentido, vale registrar as tratativas para a venda de uma corveta brasileira da classe “Barroso” para a Guiné-Equatorial em 2010 e a recente sondagem do Ministro da Defesa da Libéria sobre as possibilidades de aquisição de equipamentos militares brasileiros por aquele País20. A recente priorização brasileira da vigilância marítima e da cooperação nesse sentido com os países atlânticos africanos pode ser observada pelas passagens dos navios-patrulha oceânicos “Amazonas”, “Apa” e “Araguari” por países como Senegal, Gana, Angola e Namíbia, em seus trajetos em direção ao Brasil. Trata-se das embarcações recentemente adquiridas pela Marinha do Brasil junto à empresa britânica BAE Systems. Durante as passagens, foram realizados exercícios militares em conjunto com as marinhas locais, inclusive ações direcionadas ao combate a atividades ilícitas21. 5 A COOPERAÇÃO EM OPERAÇÕES DE PAZ Inicialmente, quanto à relevância das operações de paz para a Política de Defesa do Brasil, vale observar o que prescreve o Livro Branco de Defesa Nacional (LBDN): 20 MINISTÉRIO DA DEFESA. Brasil e Libéria discutem possibilidades de cooperação em defesa. Disponível em: <https://www.defesa.gov.br/index.php/ultimas-noticias/8716-25-06-201...>Acesso em: 25 jun. 2013. 21 DEFESANET. Após jornada na África, Navio-patrulha da Marinha chega ao Rio. Disponível em: <http:// www.defesanet.com.br/naval/noticia/10977/Apos-jornada-na-Afr...>Acesso em: 25 mai. 2013. 124 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 110-131, jan./jun. 2013 O Brasil e as Altern. para o Incremento da Coop. em Segu. e Def. Na Zona de Paz e Coop. do Atlântico Sul (Zopacas) A par de iniciativas diplomáticas de que o Brasil tem participado ativamente para a solução pacífica dos conflitos e diminuição de tensões, no continente americano ou fora dele, a expressão mais evidente da crescente importância do Brasil na área da paz e da segurança tem sido sua participação em operações de manutenção da paz. Tais operações são um dos principais instrumentos à disposição da comunidade internacional para lidar com ameaças de conflito, bem como evitar que países em situações de pós-conflito vejam ressurgir a violência armada. (BRASIL, 2013d, p. 31-32). A fim de indicar possíveis caminhos para a operacionalização da cooperação em operações de paz, que venha a resultar na participação conjunta, optou-se por apresentar algumas iniciativas já propostas ou implementadas neste sentido, cada uma das quais com características peculiares. Inicialmente, quanto à possibilidade de composição de forças multinacionais, cabe estudar a evolução da cooperação militar no âmbito da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), no que tange às operações de peacekeeping. Este organismo mereceu atenção especial por congregar o Brasil e mais quatro Estadosmembros da ZOPACAS. A iniciativa pioneira a ser abordada não surgiu propriamente no âmbito da CPLP, mas consistiu em uma proposta de Portugal aos países africanos de língua oficial portuguesa (PALOPS). A Força Lusófona de Paz foi proposta em 1997 e englobaria tropas multinacionais que permaneceriam à disposição da ONU, sob a coordenação de Portugal. A Força acabou por não prosperar, em parte pela resistência em alguns dos PALOPS em atuar permanentemente sob a coordenação de uma ex-metrópole (FONTOURA, 1999). Durante a II Reunião Ministerial dos países de Língua Portuguesa, na cidade de Praia, Cabo Verde, os ministros acordaram dois pontos importantes para a evolução da cooperação em defesa, particularmente no que tange às operações de paz: a constituição de um secretariado para assuntos de defesa, com sede em Portugal, e a globalização da cooperação no domínio da defesa para o âmbito da CPLP, o que, de fato, estendeu ao Brasil a participação nas iniciativas relacionadas ao peacekeeping. Foi durante a III Reunião Ministerial, em Luanda, que surgiu pela primeira vez a ideia da realização de um exercício combinado de operações de paz, o Exercício Felino, que seria realizado no final de 2000, em Portugal, e cuja coordenação caberia a todos os participantes de maneira compartilhada. Na oportunidade, o Brasil declarou participante permanente daquele foro e foi, ainda, ratificada a proposta de globalização da cooperação em defesa, acordada na reunião anterior. Por fim, os ministros decidiram propor aos chefes de estado a atualização dos estatutos da CPLP, acolhendo a componente de defesa. Na IV Reunião Ministerial, em Brasília, os participantes manifestaram a satisfação com o processo de atualização estatutária da Comunidade – no sentido Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 110-131, jan./jun. 2013 125 Carlos Alberto Moutinho Vaz e Eduardo Xavier Ferreira Glaser Migon de incluir a temática da defesa – e aprovaram por unanimidade a “Política de Intercâmbio no Domínio da Formação Militar no Conjunto dos Sete Países de Língua Portuguesa”, documento que, dentre outros arranjos, previa a formação e o treinamento de pequenas unidades para participação em operações de manutenção de paz. Ademais, congratularam-se pelo sucesso do Exercício Felino 2000, o que contribuiu para a perpetuação daquela iniciativa. Foi, neste quadro, que o Conselho de Ministros dos Países de Língua Portuguesa, em sua VI Reunião Ordinária, decidiu aprovar as alterações propostas aos Estatutos originais da CPLP22, passando a incorporar aos objetivos gerais da Comunidade a cooperação nos domínios da Defesa e da Segurança Pública. Segundo Bernardino e Leal (2011), este teria sido o passo institucional necessário para a incorporação da vertente de Defesa à agenda oficial da Comunidade. A Reunião Ministerial de Lisboa, ocorrida em 2002, sistematizou a execução do Programa Integrado de Exercícios Militares Combinados, que previa que os exercícios da série Felino seriam anuais, com sedes itinerantes entre os Estadosmembros e alternariam entre os formatos de postos de comando (CPX) e de tropas no terreno (FTX). Os ministros ressaltaram a importância da interoperabilidade entre as tropas para torná-las aptas ao emprego combinado real em operações de paz ou humanitárias da ONU. Durante a VII Reunião Ministerial, em Bissau, no ano de 2004, foi discutida a necessidade do estabelecimento de um Protocolo de Cooperação no Domínio da Defesa (PCDD), em decorrência da multiplicidade de assuntos daquela natureza que vinham sendo incluídos na agenda da Comunidade. O documento prosseguiu em elaboração até setembro de 2006, quando foi finalmente assinado23 durante a IX Reunião Ministerial. Segundo Bernardino e Leal (2011), apesar do decurso de quase três anos para a elaboração do Protocolo e de alguns avanços e recuos nas propostas, o PCDD teve grande relevância ao promover a cooperação em defesa, contribuindo para o desenvolvimento das capacidades das Forças Armadas dos países da CPLP e funcionando como um instrumento para a manutenção da paz e da segurança regional. Após o impulso conferido pelo PCDD, os exercícios Felino continuaram a acontecer com periodicidade anual, ainda alternando os formatos CPX e FTX. A maturidade do exercício, após mais de uma década de realização, tem permitido um ganho significativo em termos de interoperabilidade e de intercâmbio de experiências entre as Forças participantes. 22 CPLP. Conselho de Ministros. Resolução sobre a Revisão dos Estatutos da CPLP. São Tomé, 2001. 23 O PCDD foi ratificado no Brasil em 2009, por meio do Decreto Legislativo nº 502, de 2009 - Aprova o texto do Protocolo de Cooperação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa no Domínio da Defesa, assinado em Praia, em 15 de setembro de 2006. Disponível em: < http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decleg/2009/decretolegislativo-502-10-agosto-2009-590384publicacaooriginal-115519-pl.html> Acesso em: 20 jun. 2013. 126 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 110-131, jan./jun. 2013 O Brasil e as Altern. para o Incremento da Coop. em Segu. e Def. Na Zona de Paz e Coop. do Atlântico Sul (Zopacas) Prosseguindo na análise das iniciativas conjuntas relacionadas à participação em operações de paz, passa-se a abordar a Fuerza de Paz Combinada (FPC) Cruz del Sur, iniciativa dos governos do Chile e da Argentina, que já se encontra em estágio avançado de coordenação e que tem atraído a atenção do Brasil. Segundo o Ministro da Defesa brasileiro, “O Brasil está estudando uma maneira de participar, pelo menos em um primeiro momento, como observador nesse esforço” (AMORIM, 2012). O primeiro passo para o estabelecimento da força combinada foi um acordo entre os ministros da defesa de ambos os países em 2005. Em dezembro do ano seguinte, foi firmado o primeiro Memorando de Entendimento, complementado por documento de mesma natureza em 2010. Em linhas gerais, a Fuerza seria composta por cerca de mil e quatrocentos homens, abrangendo componentes terrestre, naval e aéreo, mobiliados por tropas de ambos os países24. Até o ano de 2010, os países passaram a adotar medidas concretas para a organização da Força, tratando de assuntos como o equipamento a ser empregado e a sistemática de treinamento das diferentes componentes da FPC. Em 2011, foi firmado o Memorandum of Understanding (MOU)25 entre os dois países e as Nações Unidas, integrando formalmente a Cruz Del Sur ao United Nations Stand-by Arrangements System (UNSAS). O tempo de reposta previsto no documento para o caso de acionamento da Cruz del Sur é de noventa dias. Em novembro de 2012, a FPC Cruz Del Sur realizou o primeiro grande exercício de adestramento na região de Bahía Blanca, na Argentina. A intenção era simular situações possíveis de ocorrência em operações de paz em que a Força possa estar envolvida. O Brasil foi convidado a enviar observadores e se fez representar por uma comitiva composta de oficiais-generais das três Forças Armadas, ocupantes de altos cargos no Ministério da Defesa. Segundo o Subchefe de Logística Operacional do Ministério da Defesa, integrante da comitiva, o convite para que o governo brasileiro enviasse observadores representava o primeiro passo para estabelecer a entrada do Brasil como membro da força de paz26. Em se tratando da possibilidade de constituição de uma força combinada no âmbito da ZOPACAS, faz-se importante mencionar a possibilidade do estabelecimento de missões de paz híbridas entre organismos regionais e as Nações Unidas. Desta 24 Para maiores informações sobre a Fuerza de Paz Cruz del Sur, ver página eletrônica do Estado Mayor Conjunto de Chile. Disponível em: <http://www.emc.mil.cl/?page_id=115> Acesso em : 8 fev. 2013. 25 ONU.Memorandum of Understanding Between the Argentine Republic and the Republic of Chile and the United Nations Concerning Contributions to the United Nations Stand-by Arrangements System. Buenos Aires: 14 jun. 2011. Disponível em: < http://legal.un.org/UNJuridicalYearbook/html/volumes/2011/dtSearch/Search_Forms/frontpage. html> Acesso em: 22 mar. 2013. 26 DEFESANET. Brasil envia observadores à Argentina para acompanhar exercício combinado com o Chile. Disponível em: <http://www.defesanet.com.br/geopolitica/noticia/8503/Brasil-envia-ob> Acesso em: 08 nov. 2012. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 110-131, jan./jun. 2013 127 Carlos Alberto Moutinho Vaz e Eduardo Xavier Ferreira Glaser Migon forma, uma eventual crise regional que ensejasse o desdobramento de uma força de paz poderia contar inicialmente com a resposta da ZOPACAS. Caso as dimensões da crise ultrapassassem a capacidade de resposta deste Organismo poder-se-ia penar no desdobramento de uma missão híbrida, o que, de certa forma, manteria a regionalização da solução do problema. Como exemplo ilustrativo desta situação, merece atenção a African Union/ UN Hybrid Operation in Darfur (UNAMID)27, uma das maiores operações de paz da ONU em andamento. A UNAMID foi estabelecida em 1998, em substituição à African Union Mission in the Sudan (AMIS), desdobrada pela União Africana em 2006, a fim de lidar com a crise humanitária instalada na região de Darfur. Um fato que merece menção é a existência de uma cláusula na Resolução que deu origem à UNAMID28 que determinava que ela deveria ter “um caráter predominantemente africano”, devendo contar, prioritariamente, com tropas de países africanos. Esta cláusula vem sendo observada até os dias atuais, e vinte e seis países africanos encontramse representados na operação. Desta forma, percebe-se uma vez mais como o estabelecimento da missão híbrida favorece a regionalização da solução de crises. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS A proposta do presente ensaio foi a de investigar as possibilidades de cooperação entre o Brasil e os demais Estados-membros da ZOPACAS em Segurança & Defesa, sob a inspiração da proposição do Ministro da Defesa brasileiro na VII Reunião Ministerial daquele Fórum. Quanto aos eixos de cooperação, foram enfocados o salvamento e resgate no mar, a vigilância marítima e as operações de paz, a fim de desenvolver uma operacionalização inicial daquela proposição. O objeto inicial de análise foi a evolução dos mecanismos de segurança do Atlântico Sul no pós-Segunda Guerra Mundial. O que se observou foi que a presença de potências extrarregionais no Atlântico Sul, com vistas à manutenção de seus interesses na região e o crescimento da importância geopolítica daquela porção oceânica e das atividades criminosas ali existentes ensejam o aumento da preocupação dos países lindeiros com a segurança regional. A evolução institucional da ZOPACAS nos últimos seis anos parece abrir espaço para que aquele Fórum passe a abrigar as novas iniciativas de cooperação em S&D, decorrentes da preocupação emergente. A seguir, foi realizado um estudo sobre a atual Política de Defesa brasileira, particularmente por meio da revisão dos documentos que a estabelecem e a desenvolvem. Os resultados demonstraram que o Atlântico Sul e os Estados27 Para maiores informações ver o sítio da UNAMID na página eletrônica da ONU, em <http://www. un.org/en/peacekeeping/missions/unamid/background.shtml> Acesso em 28. fev 2013. 28 ONU. CONSELHO DE SEGURANÇA. Resolução 1769 (2007), de 31 jul. 2007. Disponível em: < http://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=S/RES/1769%282007%29> Acesso em: 28. Fev. 2013. 128 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 110-131, jan./jun. 2013 O Brasil e as Altern. para o Incremento da Coop. em Segu. e Def. Na Zona de Paz e Coop. do Atlântico Sul (Zopacas) membros da ZOPACAS são áreas prioritárias para a agenda brasileira de S&D e que os eixos de cooperação propostos estão perfeitamente alinhados com o previsto naqueles documentos. Quanto aos eixos de cooperação propriamente ditos, foi abordada inicialmente a questão da cooperação naval, englobando as atividades de salvamento e resgate no mar e de vigilância marítima. O que se observou foi que a cooperação proposta está em consonância com compromissos internacionais ratificados pelo Brasil e que a concretização de iniciativas de aproximação para com os demais países sulatlânticos demonstra grande potencial de fomentar a almejada transformação da defesa e o robustecimento de sua base industrial. A seguir, foram abordadas as operações de manutenção de paz como indutoras da cooperação em S&D, por meio da descrição de algumas iniciativas bem-sucedidas neste sentido. As ações selecionadas demonstram que há um leque de oportunidades disponíveis, tais como a formação de forças multinacionais, o estabelecimento de operações de paz por organismos regionais e a criação ou de operações híbridas entre estes e as Nações Unidas, a fim de regionalizar a solução de eventuais crises. O Brasil apresenta uma maturidade considerável no tema e possui plenas condições de participar como protagonista em interações destas naturezas. A análise integrada das partes que compõem este ensaio demonstrou serem amplas as possibilidades de cooperação em Segurança & Defesa no âmbito da ZOPACAS, sendo os eixos aqui estudados excelentes balizadores para este fim. A relevância crescente da S&D na agenda daquele Fórum, a importância geopolítica do Atlântico Sul – com os desafios daí decorrentes –, e o processo de transformação da defesa brasileira parecem convergir em direção à cooperação proposta. Entretanto, restou evidente que a complexidade do tema e que a quantidade de atores envolvidos no processo ensejam o aprofundamento nas pesquisas nesta área. REFERÊNCIAS AMORIM, C. Por uma identidade sul-americana em matéria de defesa. Aula Magna do Ministro de Estado da Defesa no Curso Avançado de Defesa Sul-americano. Rio de Janeiro: 29 ago. 2012. BERNARDINO, L.; LEAL, J. A arquitetura de segurança e defesa da comunidade dos países de língua portuguesa (1996-2011). Instituto de Defesa Nacional. IDN Cadernos n.6. Lisboa: IDN, 2011. 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Adotando como parâmetro a concepção dialética do choque entre os opostos, no caso, o “novo” e o “velho”, o autor desenvolveu uma tese que compreendia duas vertentes: a primeira indicava a “Revolução Brasileira” e a sua antítese, e a segunda, as forças da tradição: o latifúndio e o imperialismo. Palavras-Chave: Nelson Werneck Sodré. Modernidade. Desenvolvimento. Nelson Werneck Sodré and The Brazilian Development ABSTRACT The objective of this paper is to analyze the importance of the work of Nelson Werneck Sodré regarding modernity in Brazil, which is notorious for the need to change the political, social and economic structures of the country, built along its historical formation, marked by the alignment of the ruling classes with the hegemonic center, an intense relation with the foreign market and its mutuality with the international capital. His extensive literary production was theoretically grounded in the marxismleninism, aiming to overcome the traditional forces which in his view did not allow the development of the country towards the constitution of a nation, running an independent industrialization policy into difficulty, opposed to progressive sectors of the Brazilian society. Adopting the parameter of the dialectic concept of the clash between the opposite sides, in this case, the “new” and “old”, the author developed a thesis that included two ways: the first indicted the “Brazilian Revolution” and its antithesis and the second, the traditional forces: landownership and imperialism. Keywords: Nelson Werneck Sodré. Modernity. Development. * Mestre em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Pesquisador do Núcleo de Identidade Brasileira e História Contemporânea (NIBRAHC-UERJ). Contato: [email protected] 132 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 132-147, jan./jun. 2013 Nelson Werneck Sodré e o Desenvolvimento Brasileiro Nelson Werneck Sodré y el Desarrollo Brasileño RESUMEN El objetivo de este trabajo es analizar la importancia de la obra de Nelson Werneck Sodré en relación con la modernidad en Brasil, que se caracteriza por la necesidad de cambiar las estructuras políticas, sociales y económicas del país, construidas a lo largo de su formación histórica, marcada por la alineamiento de las clases dominantes con el centro hegemónico, la intensa relación con el mercado externo y de su mutualismo con el capital internacional. Su extensa producción literaria se basa teóricamente en el marxismo-leninismo, en el deseo de superar las fuerzas tradicionales, que, a su juicio, impedían el avance del país en la constitución de una nación, dificultando una política de industrialización independiente, en contraposición a los sectores progresistas de la sociedad brasileña. Adoptando como parámetro la concepción dialéctica del choque entre los opuestos, en este caso, el “nuevo” y el “viejo”, el autor desarrolló una tesis que incluía dos partes: la primera indicaba la “Revolución Brasileña” y su antítesis, y la segunda, la fuerzas de la tradición: el latifundio y el imperialismo. Palabras clave: Nelson Werneck Sodré. Modernidad. Desarrollo. 1 INTRODUÇÃO Neste artigo, discorre-se sobre a dimensão da obra de Nelson Werneck Sodré, expoente da expressão castrense na formulação de um projeto para o Brasil. De formação militar desde os treze anos de idade (nasceu no Rio de Janeiro, em 27 de abril de 1911, e entrou no colégio militar em 1924), atuou, enquanto oficial, como um elo entre as Forças Armadas, ou melhor, o Exército e os diferentes vieses teóricos, lócus civil de elaboração de conhecimento. Na função de professor, tanto da Escola de Comando e Estado Maior do Exército (ECEME), quanto do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), estabeleceu, por meio da imprensa e de extensa obra de Crítica Literária, História, Memória, Economia e arguta análise política, um debate intelectual que versou sobre os problemas que atingem a sociedade brasileira. Militar de carreira, Werneck Sodré ultrapassou os limites corporativos ocupando no Brasil o mesmo lugar que os denominados “intelectuais progressistas”, defendendo conceitos de nação e cultura brasileira. A questão central de sua extensa obra está consagrada naquilo que o autor nomeou de Revolução Brasileira – processo histórico que perdurou no país, em sua ótica, de 1930 a 1964. Para desenvolver sua teoria, valeu-se do materialismo dialético para analisar a longa duração da formação histórica do país, cujo objetivo consistia em elaborar uma relação entre o presente e o passado, sendo necessário entender o passado para compreender o presente. No caso brasileiro, um processo Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 132-147, jan./jun. 2013 133 Alex Conceição Vasconcelos da Silva iniciado nos tempos coloniais, transpassando o Império, com consequências que se refletiram na República. Werneck Sodré observa que a história política brasileira compreende três grandes fases: Colônia, Império e República. Porém, analisando-a com profundidade, percebem-se apenas duas: a do Brasil Velho (Colônia, Império e República Oligárquica) e a do Brasil Novo (A Revolução Brasileira). Para chegar à classificação mencionada, adotou o marxismo como fundamentação teórica, tanto para justificar essa divisão, quanto para teorizar sobre o choque dialético entre o “velho” e o “novo”. No início do século XX, o marxismo já estava bem consolidado na Europa, disseminando-se cada vez mais para regiões periféricas do continente, como a Rússia czarista, que veio a ser o grande palco da primeira revolução da história baseada na ideologia, servindo de inspiração não somente para os socialistas europeus, como para sua disseminação para fora da Europa, ganhando novos contornos na América Latina, em especial no Brasil, por meio do advento da III Internacional. Pode-se afirmar, em princípio, que a obra de Sodré é baseada principalmente na vertente leninista. Segundo José Carlos Reis, N. W. Sodré desenvolve uma análise do Brasil estreitamente ligada à análise do PCB, que estava ligado à III Internacional, ao comunismo soviético. (…) A III Internacional esteve dominada pelas questões nacional e colonial. A luta era contra o imperialismo e pela integração capitalista nacional, que abriria o horizonte socialista. (REIS, 2007, p. 152). A III Internacional representou uma grande guinada no marxismo, pois desenvolveu novas diretrizes teóricas, guiadas pela obra de Lenin1, que passou a abranger a luta nacionalista contra o imperialismo, obtendo uma enorme perenidade nos países ditos atrasados, entre os quais o Brasil, pois atendia a demanda dos movimentos sociais desses locais, diferentemente daquilo que fora desenvolvido por Marx, que compreendia o nacionalismo como um conceito alienador, utilizado pela burguesia contra o proletariado. Para analisar os ecos da III Internacional na América Latina, há que demonstrar a perenidade da obra de um dos principais expoentes do marxismo latino-americano, José Carlos Mariátegui, que marcaria o pensamento de Werneck Sodré. A teoria exposta pelo autor entrava em conflito com as diretrizes da Internacional, 1 O pensamento de Lenin (s/d)é marcado pela estratégia de como se deve fazer a revolução retratando a conjuntura russa, servindo de modelo para os movimentos socialistas do século XX, além de ter sido basilar na organização dos PCs ao redor do mundo, devido às diretrizes elaboradas no livro O que fazer? A sua obra é fundamental no tocante à questão da aliança entre os socialistas e a burguesia na luta contra a grande propriedade agrária, no livro intitulado Duas táticas da social democracia na revolução democrática. 134 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 132-147, jan./jun. 2013 Nelson Werneck Sodré e o Desenvolvimento Brasileiro polarizada pela União Soviética (URSS), já que fora contrário às orientações assumidas pelo Partido Comunista Soviético (que já estava tomando uma nova direção, posteriormente denominada de “stalinismo”), em consequência dessa postura dele foi expulso. Em seu pensamento, a grande marca da colonização espanhola se encontrava na introdução das relações ‘feudais’ no Peru, pois: A aristocracia latifundiária da colônia, dona do poder, conservou intactos seus direitos feudais sobre a terra e, por conseqüência, sobre o índio. Todas as disposições aparentemente dirigidas para protegê-lo nada puderam contra o feudalismo subsistente até hoje. O feudalismo criollo se comportou, a esse respeito, de forma mais ávida e dura que o feudalismo espanhol. No geral, o encomiendero criollo tem todos os defeitos do plebeu e nenhuma das virtudes do fidalgo (MARIÁTEGUI, 2012, p. 62-63). Mariátegui, em seus textos, deixa claro que o principal obstáculo para o desenvolvimento peruano era o feudalismo, e sua superação fundamental para que o país alcançasse a modernidade e, principalmente, a inclusão social do índio local. Pode-se elucidar que a sua maior contribuição teórica foi a de ter identificado a questão da grande propriedade rural como principal herança da colonização, denominando-a de feudalismo, conferindo, assim, um significativo suporte às reflexões marxistas latino-americanas, como no caso de Werneck Sodré em sua narrativa historiográfica. O marxismo chegou ao Brasil nos primeiros decênios do século XX, encontrando grande vigor nas greves da década de 1920, que inspirou a fundação do Partido Comunista do Brasil (PCB), em 1922, inicialmente sob liderança de nomes como Octávio Brandão e Astrogildo Pereira, que juntamente com uma pequena missão, foram enviados a recém-fundada União Soviética para um curso de marxismo-leninismo. Em seus primórdios, o PCB esteve bastante ligado ao Partido Comunista Soviético, que influenciara a grande maioria dos partidos comunistas que estavam surgindo ao redor do mundo, dando-lhes uma faceta extremamente burocratizada e autocrática. Porém, o marxismo fora utilizada por intelectuais, na América Latina, como ferramenta teórica para denunciar as consequências da formação histórica marcada pela persistência colonial, cujo grande símbolo era o predomínio do latifúndio, além da condição dos países latino-americanos no que tange ao papel que ocupavam na Divisão Internacional do Trabalho, assim como também a contradição social existente na sociedade desses países. Caio Prado Júnior (2011) foi o grande introdutor da perspectiva marxista na historiografia nacional, em duas publicações: Evolução Política do Brasil e a Formação do Brasil Contemporâneo, nas quais analisou o Brasil colonial. Utilizando-se da concepção materialista da história, demonstrou a dialética entre a colônia e a metrópole, fundamentando, assim, o “sistema colonial” mercantilista, cuja empreRevista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 132-147, jan./jun. 2013 135 Alex Conceição Vasconcelos da Silva sa foi essencial para a formação da Divisão Internacional do Trabalho, baseada na exploração e objeto de enriquecimento da metrópole. Werneck Sodré, que fora contemporâneo de Caio Prado Junior (2011), apoiou no marxismo para estudar o Brasil, notabilizando-se pela utilização da concepção de viés ortodoxo. Sua produção acadêmica resulta em uma pesquisa profunda da história social, política e econômica do país, ressaltando o protagonismo das forças internas, no período colonial e na feitura da independência; essa elite latifundiária, que, geralmente, tem o seu papel ofuscado pelo seu sócio internacional, seja a antiga metrópole, ou então a nação hegemônica. Para o autor, a força motriz da história social, política e econômica do Brasil sempre foram as classes dominantes, associadas a forças externas, e se beneficiando delas. A diferença é que na época colonial, a elites estavam ligadas a Portugal, já no Império, à Inglaterra, e na República Velha, estão unidas não somente ao Reino Unido, como também aos Estados Unidos (EUA), que, desde o último decênio dos oitocentos, se tornou o maior mercado consumidor do café brasileiro, além de se constituir como um fornecedor alternativo de crédito, em oposição à Inglaterra que já entrava em decadência. Com o término da Primeira Guerra Mundial em 1918, os Estados Unidos substituíram a Inglaterra como principal parceiro comercial do Brasil, evidenciado no estreitamento das relações EUA-Brasil, como, por exemplo, a vinda da Ford em 1917, além de outras empresas daquele país. A crise de 1929 privou o café brasileiro do seu principal mercado, enfraquecendo consideravelmente as elites que detinham o poder, impedindo-as de evitarem a série de acontecimentos no ano de 1930, que acabou conflagrando na queda da República Velha. 2 A DIALÉTICA DE WERNECK SODRÉ No tópico anterior, analisam-se, brevemente, as elites provenientes da formação do Brasil, baseadas no latifúndio, que, na concepção de Werneck Sodré, foi a grande responsável pelos rumos tomados pelo país ao longo de sua história, como a edificação do Estado brasileiro, em 18222, e consequentemente, apoiando a frente que proclamara a República em 18893, assumindo a hegemonia da mesma em 1894, quando se instaurou a República Velha. A economia do café suportou o fim da escravidão, porém a elite que sustentava o Império, no caso, a cafeeira do decadente Vale do Paraíba, ao contrário 2 Para Sodré, “na época da Independência, qualquer transformação dependia do apoio da classe dominante de senhores e terras de escravos. A composição social e os interesses eram outros – mas a classe dominante permanecia a mesma”. In: SODRÉ, N. W. As raízes históricas do nacionalismo brasileiro. Rio de Janeiro: ISEB. p. 26. 3 Segundo Sodré, “a República decorre justamente da composição de forcas entre uma classe média que disputava a participação no poder e de uma fração da classe dominante cindida, aquela que se emancipara do que o Império era a representação característica, a lavoura nova do café”. In: SODRÉ, N. W. Idem. p. 26. 136 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 132-147, jan./jun. 2013 Nelson Werneck Sodré e o Desenvolvimento Brasileiro daquela do Oeste Paulista, não acompanhou a expansão da lavoura, tendo que se apoiar, cada vez mais, na mão de obra escrava, que estava em franca decadência. Em contraposição aos decadentes barões do Vale do Paraíba, os cafeicultores do Oeste Paulista foram os principais beneficiários da expansão cafeeira, com a promulgação da Lei Eusébio de Queiroz, em 1850, que proibia o tráfico de escravos no Brasil. Investiram o capital excedente nas cidades, especialmente na capital do estado de São Paulo, incentivando assim o inicio do processo de urbanização, fortalecendo a atividade comercial, de pequenas empresas que viviam dos excedentes do café, dando condições para o fortalecimento de uma classe tipicamente urbana: a classe média. Com a Abolição da Escravatura em 1888, o Império ficou isolado no poder, sendo ferido mortalmente, em 15 de novembro de 1889, pela Proclamação da República, encerrando-se assim a fase monárquica da História do Brasil. Nos anos iniciais da República, o país foi governado pelos militares, que, segundo Werneck Sodré, representavam a classe média, havendo choque com as elites durante os anos da República da Espada, pois a elite cafeeira não precisava mais deste segmento social, despejando-o do poder. O choque foi finalizado com a ascensão de Prudente de Morais à presidência, denotando o advento da República “Café com leite”, que foi consolidada pela Política dos Governadores em 1898, já no governo de Campos Sales. Para o historiador, a Proclamação da República foi fruto da união de duas classes sociais, porém, ela só foi possível graças ao apoio da elite paulista. Essa assertiva de Sodré tem a intenção de demonstrar a inviabilidade de grandes mudanças no país sem o aval do segmento dominante. E, na sequência, o autor relata que os dois estratos sociais cindiram, mostrando que a classe média urbana ficou encurralada até ceder às elites rurais, que governaram até 1930. Os acontecimentos de 1930, para Sodré, significaram muito mais do que uma simples troca de governo, revelou a queda de uma velha estrutura, ascendendo uma nova, ou seja, indicou a emergência da classe média urbana ao poder, representando outro paradigma, a ascensão de uma nova perspectiva, comprometida com o fortalecimento do Estado e do mercado interno. Os intelectuais oriundos da conjuntura erigida sob a Revolução de 1930, como Werneck Sodré, foram em sua maioria reconhecidos como membros do Pensamento Social Brasileiro, por defenderem a ruptura com o longo processo de construção do Brasil, que, desde a época colonial, foi baseado no predomínio do ruralismo, da escravidão, da monocultura, da economia voltada essencialmente para a exportação, em outras palavras, da plantation4, cujo resultado deriva a edificação de uma 4 Plantation é a designação proporcionada a sistemas econômicos baseados na grande propriedade rural, no caso, latifúndios, cuja produção se baseia na monocultura, voltada exclusivamente para a exportação. A plantation é, geralmente, utilizada para definir as economias coloniais da época moderna, assim como a de países cuja base econômica se concentra na exportação de um produto agrícola, por exemplo: a economia de Costa Rica se baseia, em grande parte, na exportação de bananas. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 132-147, jan./jun. 2013 137 Alex Conceição Vasconcelos da Silva sociedade autoritária e escravocrata. Segundo o autor, a essência da Revolução Brasileira estava na emergência da concepção nacionalista, que evidenciava a superação da condição colonial, da velha ordem, edificando assim outro sistema, no caso, a edificação da nação brasileira, marcada pela fraternidade, pela cidadania, pela independência política, cultural e econômica, através da concepção dialética, compreendida, nesta conjuntura, pelo confronto entre a tese, no caso, o novo, a brasilidade, e pela antítese, reproduzida no velho, pela ordem colonial (o latifúndio e sua aliança à potência estrangeira metropolitana), cuja síntese seria o surgimento da nação brasileira, conforme se pode observar ao longo da conferência intitulada Raízes Históricas do Nacionalismo Brasileiro, especificamente na seguinte passagem: Ora, o que é velho e que é novo nesta fase? E velho, sem dúvida, o quadro do campo, em que as relações semifeudais impedem a ampliação do mercado interno; e velha a política de socializar os prejuízos, reduzindo o poder aquisitivo da massa demográfica ascendente; e velha a orientação de relegar o Estado à inércia; e velho o mercantilismo que se traduz numa curva ascensional em volume e decrescente em valor; e velha uma norma que nos aprisiona nos moldes da fazenda tropical produtora de matérias-primas para industrialização externa; e velho que nos subordina a razoes externas, por legitima que sejam no exterior; e velha, particularmente, a ideia de que o Brasil só se pode desenvolver com ajuda alheia e, principalmente, com capitais estrangeiros. E que é novo? Nova é a composição social que inclui uma burguesia capaz de realizar-se como classe e começa a compreender que a sua oportunidade é agora ou nunca, e que apresenta a classe média atenta e ideologicamente receptiva, pela maior parte de seus elementos, ao clamor que se levanta do fundo da história no sentido de que nos organizemos para a tarefa que nos cabe realizar, e uma classe trabalhadora que adquiriu consciência política e se mobiliza, a fim de partilhar do empreendimento nacional, vendo nele a abertura de perspectivas ao seu papel histórico. Novo é, pois, o povo. Nada ocorrera mais sem a sua participação. Nova é a indústria nacional, superada a etapa de bens de consumo e iniciada a de bens de produção, limitada embora pelo atraso na capacidade aquisitiva do mercado interno e onerada por uma política de obstáculos e de dúvidas. Volta Redonda é o novo que altera a paisagem brasileira e a Petrobras é o novo que afirma a nossa capacidade de realização sem interferências. Novo, em suma, é o Nacionalismo, que corresponde ao que nos impulsiona para frente e rompe com que nos entrava e entorpece. (SODRÉ, 1959, p. 48-49). E, na defesa do nacionalismo, Werneck Sodré dedicou a sua militância intelectual orgânica, que correspondeu dialeticamente às tensões experimentadas na prática de um homem que viveu eticamente dois mundos, o civil e o militar, sem transição. O Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) foi, para Sodré, um lócus de 138 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 132-147, jan./jun. 2013 Nelson Werneck Sodré e o Desenvolvimento Brasileiro intensa discussão sobre a conjuntura brasileira, juntamente com intelectuais progressistas, cujo objetivo era assegurar o desenvolvimento político, social e econômico brasileiro, porém de forma independente do capital internacional, reconhecido pela maioria dessa intelligentsia como imperialista, drenando assim as reservas financeiras do país sob forma de remessas de lucros. Portanto, para edificar esse projeto de nação, Sodré, assim como os intelectuais isebianos adotaram a ótica nacional-desenvolvimentista, em outras palavras, o conceito de desenvolvimento como forma de representar o “sentido de mudança, refletindo os interesses da burguesia nacional e da pequena burguesia urbana” (SODRÉ, 1967, p. 532). Em suma, após esta breve descrição do contexto histórico brasileiro, sobretudo daquela época, torna-se compreensível sua influência na obra de Werneck Sodré, profundamente marcada pelos conflitos políticos do período, em que se confrontaram as forças progressistas com as forças conservadoras5 na luta pelo poder, demonstrando assim que o período foi caracterizado por um intenso choque dialético entre o ‘velho’ e o ‘novo’, acerca do destino do país. 3 O PANORAMA BRASILEIRO Este artigo trata de dois conceitos fundamentais contidos na obra de Werneck Sodré, são eles: desenvolvimento e nacionalismo. Primeiro, no tocante ao livro “Revolução Brasileira”, tem-se, por meta, compreender o pensamento do autor, cuja ideia central versa em torno de um projeto para o Brasil, estando esta intrinsecamente interligado ao nacionalismo. Segundo, no que concerne à crise, objetiva-se compreender o período a ser investigado, marcado pelo choque de vertentes no Brasil daquela época: de um lado, os nacionalistas, que priorizavam o desenvolvimento independente do estado brasileiro, baseado na liderança de uma fração da burguesia, na semântica de Sodré, a burguesia nacional, aliada com a classe média e as classes populares; de outro lado, os desenvolvimentistas, que focavam apenas no crescimento econômico nacional, porém associado ao capital internacional. Ambas vertentes tinham um objetivo em comum: o desenvolvimento brasileiro. Porém, o que as diferenciava era o nacionalismo econômico dos primeiros e o cosmopolitismo dos segundos. O conceito de desenvolvimento tão utilizado no léxico dos economistas, mais especificamente na macroeconomia, designa o processo de crescimento, no caso de uma economia, através do aumento de superávit, fruto do aumento das expor5 Nos decênios de 1950-60, o país assistiu a uma intensa polarização política e ideológica entre elementos progressistas e conservadores que ocasionaram uma intensa disputa pelo poder, conferindo instabilidade aos governos de Vargas (1950-54) e JK (1956-60), e, principalmente, ao governo Goulart (1961-64). Esta disputa se refletiu na polarização da imprensa e conferiu enorme instabilidade aos governos daquele período, contribuindo para o suicídio de Vargas em 1954 e para o colapso do governo Goulart em 1964. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 132-147, jan./jun. 2013 139 Alex Conceição Vasconcelos da Silva tações, cuja arrecadação consiga superar os gastos das importações, ocasionando uma balança comercial favorável. Quando essa balança comercial se torna favorável nos anos seguintes, conferindo mais riquezas ao país superavitário, costuma-se afirmar que sua economia está em desenvolvimento, ou crescimento. Porém, a utilização desse conceito extrapola os limites da ciência econômica, pois é adotado em vários contextos, mas sempre possuindo mesmo significado ou ideia: a de crescer. Na historiografia, sobretudo a econômica, tem-se usado esse termo para analisar o processo de crescimento econômico de países num determinado período, cujo resultado é o seu enriquecimento. Logo, a tendência é que se trate desenvolvimento como enriquecimento de um país. Durante a década de 1950, Celso Furtado (1980), em Formação Econômica do Brasil, lançava as diretrizes para o desenvolvimento brasileiro, na esfera econômica, tendo como eixo a crise da lavoura cafeeira e, consequentemente, a mudança do centro dinâmico da economia interna: do café para a indústria; a decadência da primeira estava ligada à sua dependência ao mercado externo, em retraimento, devido à grande depressão; enquanto que a segunda era voltada estritamente ao mercado interno, com a expansão relacionada ao seu desenvolvimento. Em 1949, ano da publicação do livro de Furtado, acima citado, e da sua nomeação para a Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL), o autor concentrou-se na tentativa de demonstrar as novas diretrizes do desenvolvimento, baseado na “ruptura de formas arcaicas de aproveitamento de recursos em certas regiões, por outro requererá uma visão de conjunto do aproveitamento de recursos e fatores no país” (FURTADO, 1980, p. 242). A antiga concepção de que desenvolvimento ocorreria em estrita associação do Brasil “aos países mais avançados, trocando de hegemonia, quando o país para o qual se vinha orientando se deixa retardar da vanguarda” (FURTADO, 1980, p. 130). Sabe-se que não existe apenas uma fórmula para desenvolvimento. Sem caracterizá-lo, não se pode prosseguir em nossa análise histórica. No Brasil do tempo retratado, foram consideradas diferentes vertentes acerca do modelo de desenvolvimento que o país deveria adotar. Desenvolvimentistas, naquela época, eram todos aqueles que propunham industrializar o Brasil. O conceito de desenvolvimento, aplicado na fase investigada em nosso artigo, ganha uma significação muito ampla – cabe, portanto, neste estudo, a tarefa de delimitar a principal característica do tipo “advogado” pelos intelectuais progressistas, entre os quais Nelson Werneck Sodré (1964). Mesmo com as diferenças entre as vertentes, ambos tinham plena compreensão que o grande protagonista do desenvolvimento econômico brasileiro era a alta burguesia, uma classe nova, cuja ascensão ocorreu logo após a Primeira Guerra Mundial, quando apareceram as primeiras indústrias no Brasil, porém ela só iria despontar no cenário político depois da Revolução de 1930, quando alcançou o poder, representada pelo novo presidente que, para Werneck Sodré, “Vargas afir140 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 132-147, jan./jun. 2013 Nelson Werneck Sodré e o Desenvolvimento Brasileiro mava-se, assim, o dirigente político da burguesia brasileira e definia, com absoluta clareza, a orientação do estado que presidia e que se colocava, agora, a serviço daquela classe” (SODRÉ, 1964, p. 296). Essa transformação – ocorrida na década de 1930, quando a burguesia assumiu o poder e impôs as suas diretrizes, que se baseavam em “adaptar o aparelho de Estado, provadamente obsoleto, às necessidades da expansão burguesa” (SODRÉ, 1964, p. 264), intensificando o crescimento econômico brasileiro – marcou, para Sodré, um novo processo histórico, denominado por ele de “Revolução Brasileira”. Para que se possa compreender a dinâmica desse novo processo histórico, torna-se necessário entender as tensões que marcaram o desenvolvimento brasileiro. Portanto, é o momento, de abordar, de maneira bem cuidadosa, a conjuntura nacional daqueles tempos. A emergência da burguesia como classe hegemônica do Estado não significou a queda da classe latifundiária. Com o ocaso da República Oligárquica, as elites agrárias perderam o total poder do Estado, porém, a burguesia não conseguiu assumir o controle sozinha, pois a classe latifundiária, mesmo em decadência, tinha para si o fato de ser a grande conquistadora de divisas para o Brasil junto ao mercado internacional, conseguindo dessa forma garantir a sua influência. Com o término da Segunda Guerra Mundial, a economia mundial se recuperou, com a normatização das exportações brasileiras, além da elevação dos Estados Unidos à condição de superpotência mundial, ávida por mercado consumidor de seus produtos industrializados. O reordenamento do sistema global determinou a reconstituição da velha aliança entre o latifúndio e o novo centro hegemônico mundial que, segundo Werneck Sodré: O restabelecimento da normalidade das exportações e, em consequência, a retomada da ascendência da economia exportadora, obrigava a burguesia a considerar, sob novo ângulo a sua luta, conciliando com o imperialismo, que retornava mais virulento, e com o latifúndio, que voltava a levantar a cabeça (SODRÉ, 1964, p. 303). O fim da Segunda Guerra Mundial, na obra de Werneck Sodré, representou a recomposição das forças conservadoras na luta pelo poder, no entanto a burguesia saia do Estado Novo fortalecida, devido à consolidação da indústria brasileira e, principalmente, do mercado interno, atraindo a iniciativa internacional a participar do processo de industrialização nacional, porém, como sócia majoritária, provocando reações dos intelectuais compromissados com o desenvolvimento autônomo do Brasil, além de um choque de vertentes, que marcaram o período democrático (1945-64), influindo sensivelmente nos governos daquela época. Para que se possa compreender essa repulsa à penetração do capital internacional na economia brasileira, tem-se que analisar uma das principais características dos progressistas: o nacionalismo. Nacionalismo: “Em seu sentido mais abrangente o termo nacionalismo desigRevista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 132-147, jan./jun. 2013 141 Alex Conceição Vasconcelos da Silva na a ideologia de determinado grupo político, o Estado nacional que se sobrepõe as ideologias dos partidos, absorvendo-as em perspectivas” (BOBBIO, 2010, p. 799). A significação desse conceito se torna fundamental para que se possa traçar o quadro da “Revolução Brasileira”, porque, como foi dito, a geração de intelectuais que emerge após a Revolução de 1930 será entusiasta da industrialização, do desenvolvimento brasileiro, na sua transformação em país industrializado. Durante o longo governo Vargas (1930-45), desenvolve-se uma política aparentemente ambígua: da mesma forma que o governo promove a industrialização, através do fenômeno conhecido como substituição de importações, além de construir um parque industrial ancorado na indústria de base, também incentiva a classe cafeeira, comprando a produção excedente, buscando influir na cotação internacional do café, estimulando a exportação, em suma, promove um pacto de compromisso com o latifúndio, que será o principal sustentáculo do Estado Novo. Porém, em 1945, Vargas encontra-se desgastado na Presidência da República, sendo pressionado para fazer a reabertura política, no caso, a redemocratização. O presidente em seus atos buscou se aproximar da classe trabalhadora por meio de seu enorme carisma, causando inquietação perante a classe dominante, que, segundo Werneck Sodré, era desejosa de manter a estrutura estadonovista, porém sem Vargas. Os seus atos políticos visaram à consolidação de uma base política progressista que influenciasse a feitura da nova Constituição, mas: O fim da segunda guerra mundial, com a correlação externa de forças, impunha a liquidação da solução de emergência que fora o Estado Novo. (…) Vargas tentou recompor a situação, buscando reencontrar as bases populares em que poderia assentar uma nova política. Mas era tarde. Aos primeiros prenúncios de sua atitude, latifúndio e imperialismo decretaram sua liquidação. Foi deposto, em outubro de 1945, por golpe militar branco, abrindo novo período da história brasileira (SODRÉ, 1964, p. 308). Ou seja, A verdadeira razão, entretanto, [da queda de Vargas] estava na sua política de aproximação com as forças populares, iniciativas como a lei antitrustes e de uma política externa independente. Tratava-se, em suma, de mais uma política da guerra fria (SODRÉ, 1967b, p. 255). O objeto de análise aqui são as circunstâncias com que os progressistas se depararam naquele período, marcado pelo choque entre as vertentes do desenvolvimento, polarizando a sociedade. O endurecimento do governo Dutra (1946-50), com a cassação do Partido Comunista, o alinhamento irrestrito as posições norteamericanas e o clima de perseguição ideológica a políticos e sindicatos, fizeram com que, entre os militares, os embates fossem mais reprimidos, explicitando-se, no campo das práticas, posições de neutralidade, combate ou adesão à potência hege142 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 132-147, jan./jun. 2013 Nelson Werneck Sodré e o Desenvolvimento Brasileiro mônica: os Estados Unidos. Frequentando o Clube Militar e as reuniões de cúpula intelectual do exército, Werneck Sodré se aliou ao oficialato orgânico progressista, como o episódio da campanha “O Petróleo é Nosso”. Opondo-se ao oficialato orgânico conservador das Forças Armadas, que combatia o monopólio estatal do petróleo e defendia a participação de capital estrangeiro na empresa petrolífera, Nelson Werneck Sodré recebeu, à época, a classificação de comunista, a qual ele sempre acrescentou a expressão nacionalista. Os grupos progressistas que lutaram pela autonomia econômica, política e militar do Brasil se proclamam nacionalistas, em oposição ao que foi qualificado no período como “entreguistas”. A ideia de nacionalismo, derivada de nação, não é a mesma entre todos os nacionalistas. Identificando-se como marxista-nacionalista, Sodré procura explicar a categoria: Partimos desde logo, de definição do que é nacional, para que não haja dúvidas: só é nacional o que é popular. A nação para nós é o povo e não apenas o território. Ela foi construída, em processo histórico, isto é, pela acumulação, ano a ano, século a século, de tudo aquilo que, em nós, representou trabalho e sacrifício, tudo aquilo que foi resultado do esforço coletivo, tudo aquilo que, depois de quatro séculos, aproximando-se do quinto, chegou a moldar a fisionomia atual do país: a sua grandeza geográfica, as suas tradições, o seu povo (SODRÉ, 1998, p. 88). No Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), por sua vez, houve nítidas diferenças de concepção sobre o desenvolvimento brasileiro, sendo Werneck Sodré considerado, pela chamada esquerda radical, um moderado. O Instituto teve duas fases: a primeira conhecida como desenvolvimentista (1956-60), quando se distinguia o nacionalismo progressista do liberalismo, agregando desde Sodré até Roberto Campos; e a segunda fase, a do período das reformas sociais (1961-64), em que se destacou a militância política do ISEB em defesa das reformas de base e da legalidade democrática, apoiando abertamente o governo Goulart. Esse período foi caracterizado pela politização e “esquerdização” da instituição, como também pela crítica ao nacional-desenvolvimentismo. E, no período Goulart, se destacou empunhando a bandeira do nacionalismo como ideologia. 4 A BURGUESIA NACIONAL Nelson Werneck Sodré em sua obra historiográfica teorizou acerca da burguesia nacional como força motriz para o desenvolvimento brasileiro independente, livre do imperialismo. Para compreender essa tese, tem-se que retomar as diretrizes da teoria da “Revolução Brasileira”. Segundo Sodré, nessa época iniciada com a Revolução de 1930, com o advento de Vargas, estabelece-se uma política Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 132-147, jan./jun. 2013 143 Alex Conceição Vasconcelos da Silva econômica visando à industrialização do país, tendo como base o modelo de “Substituição de Importações”, além do investimento em indústrias de base. Durante a era Vargas, o mercado interno desenvolveu-se graças ao incentivo dado à atividade industrial, proporcionando o crescimento de uma nova classe social: a alta burguesia, que, de acordo com Sodré, era inexistente em épocas anteriores da História do Brasil, porque a nossa sociedade sempre fora dividida em três segmentos sociais: os grandes proprietários rurais, a classe média e o povo. Em muitos momentos de crise, ao longo da história do país, a classe média ocupou o lugar que seria protagonizado pela alta burguesia, como a Proclamação da República e a Revolução de 1930. Porém, na década de 1940, com a ascensão da alta burguesia na conjuntura nacional, a deposição de Vargas da Presidência da República em 1945, além do término da Segunda Guerra Mundial e, consequentemente, do advento da Guerra Fria, surge no contexto internacional um novo cenário, contrário ao da década de 1930, em que o mundo, principalmente a economia norte-americana estava sob a atmosfera da Grande Depressão - os Estados Unidos emergem como a grande superpotência do mundo capitalista, ávidos por mercado externo, impelindo os países que estavam em sua órbita para abrirem os seus mercados, entre os quais o Brasil. A burguesia brasileira formou-se tardiamente, assim como a industrialização do país, enquanto que a economia internacional estava em sua fase imperialista, recuperada dos impactos da crise de 1929, pressionando diversas economias em desenvolvimento, como a brasileira e, consequentemente, a burguesia recém-consolidada. Para Werneck Sodré, a necessidade da defesa do mercado interno compeliria a burguesia a se aliar com as demais forças progressistas. Em sua perspectiva, o capitalismo e a burguesia nascem do desenvolvimento mercantil, em uma fase determinada desta fase. Quando, ocorre, principalmente, a retirada dos meios de produção de seus antigos proprietários, fazendo com que passem a vender a sua força de trabalho, tornando-se estes uma mercadoria, ou seja, da soma dos valores gerados por esta força de trabalho é que surge o capital. Segundo Werneck Sodré, a burguesia brasileira, diferente da francesa, da inglesa e da norteamericana, desponta na fase imperialista. Em seu nascimento, a burguesia brasileira enfrentou obstáculos, assim como a estrutura colonial de produção traduzida no latifúndio, que se agravou ainda mais com a queda da renda, com efeitos projetados no tempo e nas condições consequentes da etapa imperialista do capitalismo. Para o autor, há uma contradição entre a burguesia e o imperialismo, já que há uma disputa por parte de ambos pelo mercado interno, e se tornam, cada vez mais, acirradas em meados do século XX. Sendo assim, a posição da burguesia depende das classes que enfrentam o imperialismo, já que só tem a perder com esse sistema, ao mesmo tempo em que se coloca em risco como classe. O problema democrático, segundo Sodré, estaria no centro das ações políticas da burguesia, que, no caso brasileiro especificamente, necessita do apoio de outros segmentos e 144 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 132-147, jan./jun. 2013 Nelson Werneck Sodré e o Desenvolvimento Brasileiro camadas sociais para alcançar objetivos pendentes, porém, na contramão disso, deseja que essas classes (em especial o proletário) se mantenham sempre subordinadas a ela, seguindo seus rumos e desígnios. Sendo assim, para o historiador, o curso revolucionário dependia da burguesia, pois estava em jogo como classe constituída e decidia o seu destino e o do país. 5 CONCLUSÃO A ascensão do Regime Militar, em 1964, demonstrou que, ao invés do desenvolvimento democrático-burguês, com a burguesia aliada ao proletariado e ao campesinato contra o imperialismo e o latifúndio, conforme orientação do PCB, prevaleceu a perspectiva do desenvolvimento associado entre a burguesia local e a burguesia internacional, sobretudo a norte-americana e a europeia, desencadeando num regime autoritário, sustentado pela aliança entre as novas e velhas elites, ou seja, pela aliança entre a burguesia e o latifúndio, demonstrando que a realidade fora diversa daquilo que havia teorizado Nelson Werneck Sodré, já que, durante o período democrático (1945-64), a burguesia vivera num dilema: ou convivia com o latifúndio, livrando-se da ameaça socialista; ou enfrentava essa ameaça, livrando-se do latifúndio. Werneck Sodré concluiu, sob a euforia do momento (no calor de suas atividades como intelectual engajado no ISEB e quadro orgânico do PCB), que a burguesia tinha menos medo do proletariado do que do latifúndio. Porém, verificou-se justamente o contrário: a burguesia agiu racionalmente e, não, moralmente – a presença do latifúndio não é incompatível com sua ascensão, enquanto que a vitória do proletariado-campesinato significaria o seu fim. A burguesia nacional, ou melhor, o empresariado brasileiro, pode ser mais bem compreendido se observar a perspectiva de Fernando Henrique Cardoso (1964), em seu livro intitulado Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil, em que analisa o comportamento da burguesia industrial brasileira, apontando para o seu caráter “acanhado”, no caso, tímido, sem espírito empreendedor, sendo totalmente submisso ao Estado, que, em sua ótica, é o grande empreendedor no Brasil, não possuindo uma característica primordial da burguesia norteamericana: a cultura self-made-man, relegando-se à política clientelista do Estado: “pois, na situação brasileira, qualquer empreendimento de certo vulto depende efetivamente do amparo do Estado” (CARDOSO, 1964, p. 173). Portanto, a burguesia brasileira “acanhada”, ou melhor, vacilante só avançaria tendo o pleno controle do aparelho estatal, o que não fora possível durante a República Democrática e, sobretudo, com as diretrizes propostas por Werneck Sodré, que culminaria na transferência do controle do Estado para os setores sindicalistas, notadamente o PCB, configurando-se o pesadelo dessa nova classe dominante representada pelo empresariado. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 132-147, jan./jun. 2013 145 Alex Conceição Vasconcelos da Silva REFERÊNCIAS BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. 13. ed. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2010. CARDOSO, Fernando Henrique. Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1964. CUNHA, P. R.; CABRAL, F. Nelson Werneck Sodré entre o sabre e a pena. São Paulo: UNESP, 2011. FALCON, F. J. C. Estudos de história e historiografia, volume I: teoria da história. São Paulo: Hucitec, 2011. 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Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 132-147, jan./jun. 2013 147 Luiz Rogério Franco Goldoni VOCAÇÃO MODERNIZADORA DO EXÉRCITO BRASILEIRO Luiz Rogério Franco Goldoni* RESUMO Ao longo da Primeira República, o Exército brasileiro perseguia sua modernização. Esta era dificultada pelo atraso econômico, científico e industrial do país. O ganho de autonomia defensiva estaria condicionado à importação de equipamentos militares e a contratação de uma missão de ensino estrangeira. Potências econômicas e bélicas europias percebiam que o atendimento às demandas da corporação armada poderia abrir o crescente mercado brasileiro para outros produtos industriais. A disputa em torno do envio da missão estrangeira duraria cerca de dez anos. Em 1919, a contratação da Missão Militar Francesa daria de forma permanente o estímulo para a modernização e aperfeiçoamento profissional do Exército brasileiro. Palavras-chave: Exército Brasileiro. Modernização. Missão Militar Francesa. The Modernizing Calling of the Brazilian Army ABSTRACT During the First Republic, the Brazilian army looked for its modernization. It was restricted by the country’s economic, scientific and industrial backwardness. The achievement of a defensive autonomy was subordinate to the import of military equipment and the hiring of a foreign teaching mission. European economic and military powers realized that the accomplishment of the armed corporation demands could open the emerging Brazilian market to other industrial products. The dispute around the dispatch of a foreign mission had lasted for about ten years. In 1919, the hiring of the French Military Mission would permanently stimulate the modernization and the professional specialization of the Brazilian army. Keywords: Brazilian Army. Modernization. French Military Mission. Vocación Modernizadora del Ejército Brasileño RESUMEN A lo largo de la Primera República, el Ejército Brasileño perseguían su modernización. El retraso económico, científico e industrial dificultaba que alcanzara esta * Doutor em Ciência Política; pesquisador do Observatório das Nacionalidades; editor de Tensões Mundiais. Contato: [email protected] 148 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 148-163, jan./jun. 2013 Vocação Modernizadora do Exército Brasileiro meta. La ganancia de autonomía defensiva estaría condicionada a la importación de equipos militares y la contratación de una misión de enseñanza extranjera. Poderes económicos y bélicas europeas se dieron cuenta que cumplimiento de las demandas de la corporación armada podría abrir el creciente mercado brasileño y otros productos industriales. La disputa sobre el envío de la misión extranjera duraría unos diez años. En 1919, la contratación de la Misión Militar Francesa estimularía, de modo permanente, la modernización y perfeccionamiento profesional del Ejército Brasileño. Palabras clave: Ejército Brasileño. Modernización. Misión Militar Francesa. 1 INTRODUÇÃO Informadas, através da literatura especializada, sobre os avanços tecnológicos e industriais, bem como sobre as novas configurações das organizações militares e da guerra, partes da elite brasileira, durante a Primeira República, firmavam a convicção de que a construção de um Estado soberano exigia a modernização de suas corporações e a implantação de um parque industrial capaz de atenuar a dependência das importações e reduzir a grande diferença entre a capacidade militar do país em relação a das potencias industriais. No que diz respeito aos oficiais do Exército, alguns deles de grande erudição e vivacidade intelectual, certamente, não alcançavam a complexidade requerida pela montagem do aparelho militar longamente forjado pelas potências industriais. Tratava-se de um saber técnico cujo domínio teórico teria que ser obrigatoriamente desenvolvido a partir de experiências práticas, ou seja, deveria ser concretizado no trabalho do dia a dia com o corpo da tropa e com o manuseio de equipamentos que o país não produzia. Os desafios eram consideráveis e o seu enfrentamento repercutiria na vida brasileira ao longo de todo o século XX. 2 ÍMPETO MODERNIZADOR DO VELHO EXÉRCITO Na literatura referente ao período imperial, há abundantes registros de que oficiais do Exército brasileiro manifestaram apoio a propostas avançadas para a época, como a abolição da escravatura, a extinção do regime monárquico e a defesa do Estado laico. Oficiais do Exército estimulavam a educação e as atividades industriais. John Schulz sublinharia o fato de a Escola Militar cumprir papel de destaque na formação de quadros intelectuais num ambiente em que predominava o analfabetismo e em que o ensino superior era rarefeito. Entretanto, os trabalhos disponíveis sobre a participação dos militares na vida brasileira ao longo do século XIX ainda não oferecem lastro suficiente para Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 148-163, jan./jun. 2013 149 Luiz Rogério Franco Goldoni conclusões mais sólidas. A pesquisa acadêmica especializada, efetivamente, pouco se debruçou sobre a organização militar nesse período, em que pese a exploração de temas relevantes como a Guerra do Paraguai (DORATIOTO, 1991) e a figura do Duque de Caxias (SOUZA, 2008). O que não comporta dúvidas é o alto desenvolvimento do espírito corporativo após o retorno das tropas do Paraguai – manifestado com eloquência na “Questão Militar” que precedeu a Proclamação da República – e a disposição de determinados comandantes no que diz respeito às reformas na corporação, refletidas sobretudo nas numerosas tentativas de mudança nos programas de ensino da Escola Militar, mencionadas por Shulz e analisadas pormenorizadamente pelo general Jeovah Motta.1 A vontade reformista, não obstante, tinha alcance limitado e pouco repercutiu efetivamente sobre a organização corporativa, que persistia com fortes traços milicianos. O recrutamento era baseado no “laço” (trabalhadores, sobretudo rurais, eram presos arbitrariamente e enviados para os quartéis) e a disciplina era pautada por castigos corporais. As unidades do exército distribuídas no vasto território brasileiro mantinham inclusive fortes vínculos com as oligarquias provinciais. A mais conhecida tentativa de reforma do ensino militar no século XIX foi proposta por Benjamim Constant, no início do regime republicano, quando a pregação positivista atingiu o seu auge. Constant estava mais preocupado em formar um organismo militar para conduzir o destino do país do que em prepará-lo para enfrentar batalhas. A reação ao “bacharelismo” contido nas ideias desse líder positivista ocorreu quando o general João Nepomuceno Medeiros Mallet foi nomeado Ministro da Guerra (1898-1902). Artilheiro experimentado na Guerra do Paraguai e republicano decido, Mallet buscou garantir mais profissionalismo ao ensino militar. Além disso, tentou alterar as bases do regime disciplinar e das normas de promoção; reformar o estado-maior; criar grandes unidades; introduzir exercícios práticos; remodelar os quartéis; e adquirir novas armas. Segundo Frank McCann (2007, p. 106-110), as ideias de Mallet teriam fornecido “a base intelectual para as iniciativas de reforma [do Exército] até a Primeira Guerra Mundial”. McCann acredita que a maior contribuição de Mallet para o pensamento militar brasileiro tenha sido sua insistência na necessidade de constantes manobras de treinamento. Ao assumir a pasta da Guerra, Mallet solicitara ao Estado-Maior do Exército (EME) que: 1 Manuel Domingos Neto (1979), em sua tese de doutorado, procurou demonstrar o esforço dos oficiais do Exército para modernizar a corporação na segunda metade do século XIX. A pesquisa do general Jeovah Motta sobre a formação dos oficiais do Exército transcreve e comenta detalhadamente as iniciativas de reforma dos programas da Escola Militar. Esse autor assinala que, apesar do alcance limitado das reformas, a Escola Militar formou quadros que, bem ou mal, deram organicidade ao numeroso exército mobilizado para combater Solano Lopez. 150 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 148-163, jan./jun. 2013 Vocação Modernizadora do Exército Brasileiro [...] elaborasse um plano de reorganização, “adaptando às nossas condições os preceitos e aperfeiçoamentos sancionados pela experiência das nações mais adiantadas”, mas advertiu que “a situação geográfica e política em que nos achamos, a falta de pessoal para o desenvolvimento das indústrias e da agricultura, impediam moldar completamente o nosso exército pelos das potências europeias” (...) não tendo condições para possuir um exército numeroso, o Brasil deveria desenvolver um exército pequeno capaz de ser facilmente mobilizado e posto em ação. Um exército qualificado, limitado, eficiente e passível de rápida expansão foi o objetivo dessa reforma e de quase todas as outras posteriores. (MCCANN, 2007, p. 108). Como veterano combatente, o ministro da Guerra não via com bons olhos o fato de oficiais terem contato com as manobras de guerra apenas através de textos teóricos, tratados ou relatos de experiências estrangeiras. McCann atribui o fracasso das propostas de Mallet, entre outros fatores, ao delicado momento econômico que o país atravessava, assumindo assim um argumento habitualmente utilizado pelos militares para o insucesso de suas iniciativas. O que deve ser levado objetivamente em conta é a capacidade real do corpo de oficiais de implementar o programa reformista: como materializar, num país agroexportador, mal integrado e recém-saído do escravismo um aparelho militar desenvolvido pelas potências industriais? Nesta época, inclusive, a oficialidade estava profundamente dividida, fenômeno alimentado pelo exercício do poder nos primeiros anos do regime republicano. Todavia, os propósitos de Mallet revelam inequivocamente o desejo de se criar no Brasil um aparelho militar moderno e com capacidade de autoabastecimento. Realista, o Ministro alertava que, devido à “falta de pessoal para o desenvolvimento das indústrias e da agricultura” não seria possível se espelhar completamente nos exércitos europeus e que a reforma do Exército deveria ser condizente com a realidade econômica do país. A vocação modernizadora volta a se manifestar claramente quando o Ministério da Guerra passa a ser conduzido por Francisco de Paula Argolo (1902-1906) e Hermes da Fonseca (1906-1909). As ideias de Mallet são retomadas e ampliadas, agora de forma mais objetiva: Argolo e Hermes estavam convictos de que o país deveria contar com a colaboração de especialistas estrangeiros. Enquanto as negociações diplomáticas se desenvolviam, o Comando do Exército organizou, em 1905, as manobras da Corporação, prática que quebrava a rotina de longos anos sem treinamento. Os exercícios duraram 18 dias. A guarnição do Rio de Janeiro marchou até o Campo dos Cajueiros, em Santa Cruz (subúrbio do Rio), e ensaiou ataques simulados tentando se aproximar do ambiente de uma campanha. Para observadores estrangeiros, esta experiência se aproximou mais de um desfile festivo com a finalidade de impressionar a sociedade carioca do que de uma manobra militar (DOMINGOS NETO, 1979, p. 83). No relatório em que prestou conta de sua iniciativa, Hermes destacou Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 148-163, jan./jun. 2013 151 Luiz Rogério Franco Goldoni que a má qualidade dos artigos nacionais colocava a defesa da nação em xeque. As botas novas distribuídas antes da marcha eram tão ruins que a maioria dos soldados chegou descalça a Santa Cruz. As botas não resistiram a uma marcha de cerca de 50 quilômetros. As mochilas eram pesadas e suas alças impediam a circulação do braço. O peso das munições arrebentava as cartucheiras de couro e os cintos não paravam fechados. Numa situação de guerra, o soldado fatalmente teria que lutar descalço e literalmente com os braços e as mãos atadas, por causa das mochilas. Caso conseguisse a mobilidade necessária para disparar sua arma, correria o risco de perder a munição ao longo do caminho. Havia ainda a possibilidade de a calça do soldado cair no meio do combate. Essa realidade não condizia com as características do aparelho militar moderno que se pretendia implementar. Dez anos após a famosa manobra comandada pelo general Hermes, o general Setembrino de Carvalho discorreria minuciosamente sobre a expedição ao Contestado assinalando a “necessidade de fardamento de campanha adequado, calçados, barracas e carroções mais fortes e melhor uso do telégrafo e de telefones de campanha”. (MCCANN, 2007, p. 210). A tropa descalça, que mal sabia atirar, era comandada por “doutores tenentes” e “doutores coronéis”, que teriam um vasto conhecimento sobre filosofia, direito e política e pouquíssimo domínio de assuntos militares. A educação oferecida em Praia Vermelha era manifestamente teórica, pobre em conteúdo militar. Das dezoito matérias do currículo, cinco poderiam ser classificadas como militares: arte militar (isto é, história militar), fortificações, artilharia, administração militar e higiene militar. Não se ensinava coisa alguma sobre balística. O curso de fortificações concentrava-se em velhos estilos, e os alunos de artilharia aprendiam as minúcias da pólvora negra, quando outros exércitos já a tinham substituído pela pólvora sem fumo. Assim, em uma escola destinada a preparar oficiais, os candidatos nada aprendiam sobre armas ou seu uso. (MCCANN, 2007, p. 134). José Murilo de Carvalho (2005, p. 25) definiu sucintamente o tipo de formação oferecida em Praia Vermelha: “O que na verdade produzia a escola eram bacharéis fardados, a competir com os bacharéis sem farda das escolas de Direito”. Estevão Leitão de Carvalho, que esteve na Escola entre 1901 e 1904, observaria que o ambiente quase nada tinha de militar e que nem a formatura da tropa era observada. O então jovem oficial se identificava mais como um intelectual “diletante”, dividido entre a literatura e as ciências exatas, do que exatamente como um profissional das armas. 152 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 148-163, jan./jun. 2013 Vocação Modernizadora do Exército Brasileiro Em 1905, após o fechamento da escola da Praia Vermelha e da Escola Preparatória e Tática,2 o Ministério da Guerra, sob comando do general Argollo criou a Escola de Guerra em Porto Alegre, que tinha entre seus objetivos pôr fim à formação de “oficiais doutores”. O ensino oferecido pela nova escola deveria privilegiar a experiência prática com o objetivo de preparar os oficiais para o combate. Dessa forma, os estudos teóricos e as disciplinas não especificamente militares teriam menor espaço. A nova linha de ensino exigiria um novo tipo de instrutor, que substituiria os professores de teoria acostumados a dar aulas baseadas no quadro-negro. O propósito de Argolo sofria com a falta de profissionais tecnicamente capacitados a lidar com a tropa. Em 1906, Argollo enviaria seis oficiais de baixa patente para realizar estágio de dois anos no Exército alemão, iniciando um processo de vastas repercussões na vida da corporação. Esses oficiais, conhecidos como “jovens turcos”, estariam fadados a dar posteriormente os primeiros passos rumo a uma revolucão no ensino e na organização do Exército brasileiro.3 Em 1908, Hermes da Fonseca e Luís Mendes de Morais, então comandante do 4º Distrito Militar, Rio de Janeiro, foram convidados pelo Kaiser Guilherme II para assistir às manobras do Exército alemão.4 Os generais brasileiros foram recepcionados pelo capitão Constantino Deschamps Cavalcante, um dos oficiais que Argollo designara em 1906 para estagiar na Alemanha. Durante a visita, “Hermes negociou com a Alemanha o envio de uma missão para supervisionar a reorganização do Exército” (MCCANN, 2007, p. 145). Começaria então a disputa entre Alemanha e França para ver qual país enviaria ao Brasil uma missão de instrução militar. Estava em jogo não só o prestígio de suas forças 2 Por ordem do governo federal, a Escola Militar do Brasil que estava localizada na Praia Vermelha foi fechada em 1904 conforme publicação no Boletim do Estado-Maior do Exército. Ordem do Exército nº. 386, de 16 de novembro de 1904. A Escola Preparatória e Tática funcionou de 1898 a 1905 (Fonte: Revista do Clube Militar. Número especial dedicado ao sesquicentenário da AMAN. Rio de Janeiro, jan - mar de 1961, nº. 158). Agradeço a um dos pareceristas do presente artigo por essas informações. 3 Há divergência sobre quem enviou a primeira turma de oficiais para estagiar na Alemanha em 1906. Murilo de Carvalho e Edmundo Campos Coelho apontam Hermes da Fonseca como responsável, enquanto Frank McCann diz que foi o general Argollo. Em favor de McCann, há o fato de Argollo ter conduzido o Ministério da Guerra até 15 de novembro de 1906, quando foi então substituído por Hermes. As obras consultadas não indicam a data de embarque dos oficiais para a Alemanha. Mesmo que tenham embarcado após a posse de Hermes no Ministério da Guerra, as negociações foram realizadas quando Argollo ainda era ministro. Manuel Domingos Neto (1979) disserta sobre a participação do Barão do Rio Branco nas negociações então desenvolvidas. Cristina Luna detalha as negociações que resultaram no envio dos oficias a Alemanha. 4 Há, mais uma vez, divergências na literatura sobre a data da visita de Hermes à Alemanha. McCann (MCCANN, 2007, p. 145) afirma que foi em 1908; Murilo de Carvalho (2005, p. 27), em 1910. Essa diferença de datas é muito importante e implica diferentes interpretações sobre a visita. Segundo McCann, quem visitou o Exército alemão foi o Ministro da Guerra (Hermes ficou no comando do Ministério da Guerra de 15 de novembro de 1906 a 27 de maio de 1909). Para Carvalho, a visita teria sido feita pelo Presidente da República (Hermes foi empossado em 15 de novembro de 1910). Como será visto mais adiante, de acordo com McCann, Hermes visitou em 1910 o Exército francês e não o alemão. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 148-163, jan./jun. 2013 153 Luiz Rogério Franco Goldoni armadas e contratos comerciais de venda de armas e petrechos bélicos; os dois países pretendiam assegurar mercado para suas crescentes indústrias.5 Em 1908, o ministro francês dos Negócios Estrangeiros, fazendo uma sondagem junto ao Ministro da Guerra sobre as possibilidades de admitir no corpo de tropa francês estagiários brasileiros, sublinhava: Com efeito, não preciso vos assinalar todas as vantagens que a Alemanha retira, para a manutenção do seu prestígio militar no Brasil, da presença desses oficiais (os estagiários brasileiros) em seus regimentos. Quando eles voltam à pátria, retornam totalmente imbuídos de uma admiração exclusiva pelos chefes do Exército imperial, pelos seus métodos estratégicos, pelo material militar empregado na Alemanha e também totalmente penetrados pela cultura germânica, da qual se farão daí em diante, e às vezes, mesmo inconscientemente, propagandistas entre seus compatriotas. Por outro lado, relações de amizade se estabelecem entre os estudantes e os antigos instrutores, relações que estes últimos sabem usar maravilhosamente em favor da indústria alemã. (DOMINGOS NETO, 1980, p. 51-52). A disputa envolvia não só a utilização de armamentos diferentes, mas também a adoção de diferentes doutrinas e estratégias de guerra. Segundo Fuller, no início do século XX, a doutrina do Exército francês baseava-se no princípio da “ofensiva a qualquer preço”; os alemães adotavam a doutrina defensiva-ofensiva proposta pelo general Helmuth von Moltke, ex-chefe do Estado-Maior do Exército prussiano (1857-1888). As diferenças entre os dois exércitos ficariam mais claras durante a Primeira Guerra Mundial. Apesar de possuir uma poderosa indústria, os alemães deram pouca importância à fabricação e utilização do veículo blindado militar, ao contrário dos seus adversários.6 A contratação de uma ou outra missão poderia dar feições bem distintas ao Exército brasileiro, porém, sem risco para a perda dos traços caracterizadores do aparelho militar moderno, já que tanto a Alemanha como a França haviam consolidado as reformas em seus exércitos. 3 MILITÂNCIA DOS JOVENS TURCOS Entre 1906 e 1912, um total de trinta e seis oficiais brasileiros realizaram estágios de dois anos no Exército alemão. A trajetória de modernização do Exército brasileiro ganharia impulso considerável com o retorno desses jovens oficiais ao pa5 De acordo com Domingos Neto, “A perda de projeção da Inglaterra não ensejara automaticamente a supremacia dos Estados Unidos na América Latina, que persistia como espaço relativamente aberto à disputa entre as grandes potências europeias. Assim, o período entre as duas guerras mundiais seria movimentado pelo esforço permanente dessas potências em defesa de seus parques industriais e de suas alianças estratégicas” (DOMINGOS NETO, 2007, p. 223). 6 Durante a Grande Guerra, os ingleses fabricaram 2.636 tanques e os franceses 3.870; os alemães produziram apenas 20 (PHILBIN, 2006. p. 341). 154 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 148-163, jan./jun. 2013 Vocação Modernizadora do Exército Brasileiro ís.7 Os “jovens turcos” fundaram, em 1913, a revista A Defesa Nacional e influenciaram a Missão Indígena,8 que instruiu os alunos da Escola Militar entre 1919 e 1923. Inspiraram boa parte da oficialidade, principalmente os mais novos, como os então tenentes Góes Monteiro e Eurico Dutra. Esses oficiais ficaram profissionalmente marcados pela influência dos “jovens turcos”, manifestando fortes simpatias pelas técnicas e pelos processos de combate peculiares aos prussianos (FREIXINHO, 1997, p. 134). A Defesa Nacional foi uma grande entusiasta da contratação da missão alemã.9 Os jovens turcos promoveram uma intensa campanha de aperfeiçoamento profissional. Seu programa de reformas objetivava a: [...] constituição do Exército em grandes unidades (divisão) desde os tempos de paz; recrutamento mediante obrigatoriedade do serviço militar; instrução orientada para o combate; campos de instrução em todas as guarnições; armamento moderno; munição para os exercícios de tiro; fardamento e calçamento adequados; contratação de uma missão militar estrangeira para colaborar na remodelação e aperfeiçoamento profissional do Exército. (COELHO, 2000, p. 93). Apesar da pressão de A Defesa Nacional, a missão alemã nunca sairia do papel. As negociações foram atrapalhadas pela influência francesa sobre a elite brasileira, pela hábil diplomacia daquele país e por pressões paulistas, que haviam contratado uma missão militar francesa para transformar a Força Pública do Estado em um pequeno exército, capaz de resistir a qualquer intervenção federal (DOMINGOS NETO, 1979). Quando eleito presidente, Hermes da Fonseca, favorável à assinatura do contrato com a Alemanha em 1908, por motivos políticos, foi obrigado a rever sua postura.10 Os paulistas desejavam renovar o contrato com os franceses, que venceria em 1910. Os franceses indicavam que qualquer acordo do governo brasileiro com o Exército alemão impossibilitaria a renovação com os paulistas. Como aponta Manuel Domingos Neto, os franceses se valeriam de variados artifícios para 7 Os 36 oficiais foram divididos em três turmas. A primeira foi enviada para a Alemanha em 1906; a segunda, em 1908; a última, em 1910. 8 Dos 38 oficiais nomeados por concurso para serem instrutores da escola militar no Realengo – 13 na primeira turma e 25 na segunda – somente dois ex-estagiários do exército alemão integraram a missão indígena, os capitães Euclides de Oliveira Figueiredo e Epaminondas de Lima e Silva. Agradeço a um dos pareceristas do presente artigo por estas informações. 9 Segundo José Murilo de Carvalho (2005, p. 27), “A revista [A Defesa Nacional] era exclusivamente técnica e dedicou-se a traduzir regulamentos do Exército alemão, a difundir seu sistema de treinamento, suas práticas e costumes, e a lutar por medidas como o sorteio, a educação militar, o afastamento [militar] da política, a defesa nacional”. 10 “As providências para a missão alemã estavam tão adiantadas que o tenente Amaro de Azambuja Vilanova, que concluíra seu treinamento com o grupo de [oficiais, enviado em] 1909, recebeu ordem para permanecer na Alemanha como ajudante do chefe designado para a missão” (MCCANN, 2007, p. 145). Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 148-163, jan./jun. 2013 155 Luiz Rogério Franco Goldoni vencer a “disputa pela missão que mudaria o Exército brasileiro”: Os admiradores do modelo francês nunca constituíram uma tendência tão articulada e ativa como a dos “jovens turcos”. Raros foram os brasileiros que estiveram nas casernas e escolas militares francesas. Os “francófilos” eram numerosos, mas com atuação dispersa. Utilizando o grande prestígio intelectual da França no Brasil, os agentes franceses conseguiram organizar uma rede de amigos influentes. Parlamentares, ministros, donos de jornal eram acionados pelos franceses na defesa da ideia da contratação de uma Missão Militar. Os agentes do Exército francês no Brasil privilegiavam as relações com os oficiais brasileiros que tinham acesso às esferas oficiais. Os informes secretos enviados a Paris davam conta de pelo menos dois jovens oficiais brasileiros que atuavam articuladamente sob a orientação francesa: um certo tenente Guimarães, da família do Marechal Hermes da Fonseca, e o tenente Clementino de Carvalho, membro do Comitê de Redação da Revista do Estado-Maior. O primeiro informava pormenorizadamente sobre todas as conversas reservadas que presenciava no círculo íntimo do Marechal; o segundo era encarregado de publicar na revista oficial do Exército brasileiro as matérias de interesse dos franceses (DOMINGOS NETO, 1980, p. 59). São Paulo seria a ponta de lança dos interesses franceses. Ainda em 1910, Hermes recebeu convite para comprovar pessoalmente as qualidades do Exército francês; visitou unidades militares, escolas, fábricas de armas e foi recepcionado pelo Presidente da França (MCCANN, 2007, p. 146-147). Através de artigos em jornais, os agentes do Estado-Maior francês buscaram inflar o ego do Marechal. Essas manobras surtiram efeito pois, ainda em território francês, o Presidente brasileiro negaria qualquer preferência pelo Exército alemão. Todavia, para evitar embaraços com a Alemanha, Hermes não podia transferir subitamente sua preferência por uma missão francesa. O discurso adotado foi de que “o Brasil não receberia missão militar alguma, uma vez que seus oficiais eram bons o bastante para treinar suas forças”. Restrições orçamentárias e a Primeira Guerra Mundial, que mobilizou toda a capacidade militar europeia, adiariam a contratação da missão militar. Como Ministro da Guerra, o Marechal Hermes da Fonseca reativara, em 1906, a Confederação Brasileira de Tiro, criada em 1896 com o objetivo de aproximar os jovens das classes média e alta do serviço militar.11 Em 1908, conseguiu, também, a aprovação da Lei do Sorteio e tornou obrigatória a instrução militar em colégios secundários.12 Hermes, efetivando o Estado-Maior, objetivava que o EME finalmente 11 Em 1909, já existiam 50 sociedades de tiro organizadas, com um total de 13.511 membros (CARVALHO, 2005, p. 22). 12 A lei do sorteio militar entrou em vigor apenas em 1916. Contudo, já em 1925, dos 23.069 convocados pela 1a Região Militar (Rio de Janeiro), apenas 3.947 (17%) se apresentaram. Destes somente 1.396 homens passaram nos exames físicos e médicos e puderam ser incorporados ao Exército (MCCANN, 2007, p. 235). 156 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 148-163, jan./jun. 2013 Vocação Modernizadora do Exército Brasileiro assumisse suas funções. O Ministro entendia que os oficiais do Estado-Maior, até então burocratas incapazes de planejar exercícios de treinamento e mobilização, deveriam deixar as tarefas administrativas de seus gabinetes de lado para passar a ter um contato direto com as unidades. Contudo, a organização do Estado-Maior do Exército só ocorreria anos mais tarde, com a vinda da missão de instrução francesa. Os velhos oficiais que frequentaram a Praia Vermelha não davam espaço e comando aos jovens que possuíam uma instrução mais técnica, inspirada no modelo europeu. José Caetano de Faria, chefe do EME de 1910 a 1914 e Ministro da Guerra de 1914 a 1918, daria continuidade ao processo iniciado por Hermes da Fonseca. Faria e o general Bento Manuel Ribeiro Carneiro Monteiro, chefe do Estado-Maior de 1915 a 1921, de acordo com McCann (2007, p. 249), “foram os responsáveis por todo o desenvolvimento nativo do órgão antes da chegada dos franceses em 1919”. Os generais, contudo, divergiam quanto ao formato da reforma do sistema de ensino. 4 CONTRATO DA MISSÃO FRANCESA Faria, apesar de simpático à campanha de renovação das práticas militares promovida pelos jovens turcos, era contrário à contratação de uma missão estrangeira para treinar o Exército como um todo; defendia apenas a contratação de especialistas em estratégia, jogos de guerra, mapeamento e aviação. Apesar de aprovar o envio de oficiais para estágio no exterior, Faria acreditava que caberia aos brasileiros filtrar e adaptar à realidade nacional os ensinamentos adquiridos. Bento Ribeiro era favorável à contratação de uma missão militar estrangeira, aos moldes das que modernizaram a Força Pública Paulista e o Exército argentino (que contratara os alemães); entendia que somente assim seria possível incorporar o espírito militar na organização do EME, que até então era composto por oficiais sem espírito prático, mais voltados para a filosofia e estudos matemáticos, reflexo do bacharelismo de Praia Vermelha: Como complemento às ideias que vêm de ser expostas, como remete indispensável à reforma do ensino militar e do Estado-Maior do Exército, dever-se-ia aplicar em toda sua extensão a ideia corrente, dominante e vencedora de uma Grande Missão que venha integrar os Altos Estudos militares professados no nosso primeiro estabelecimento de ensino como nos iniciar nos segredos dos serviços do Estado-Maior. Não resta dúvida que aos atuais professores faltam, em geral, o espírito militar, o tirocínio prático, o conhecimento exato do mecanismo dos exércitos em seus menores detalhes. Há não só no professorado militar como nos que labutam no EstadoMaior do Exército talentos brilhantes e inteligências esclarecidas de funda e elevada cultura científica, mas poucos possuem o necessário coeficiente prático, embora todos se achem em magníficas condições de assimilarem os mais difíceis problemas, desde que mestres provecRevista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 148-163, jan./jun. 2013 157 Luiz Rogério Franco Goldoni tos na Arte os guiem convenientemente. Saídos, em sua totalidade, das antigas escolas militares onde o ensino de matemática e de filosofia sobrepujava a tudo, onde por uma falsa e errônea orientação, os conhecimentos militares eram ministrados sob forma mais literária que real, e, portanto relegados para um plano terciário, todos esses professores e membros do Estado-Maior do Exército se ressentem do mesmo vício de origem. [...] Haja vista a modelar organização da Força Pública de São Paulo, em que a Missão francesa a transformou numa força militar de valor altamente eficiente, que honra os créditos da intelectualidade do exército francês, para vermos que tal medida, extensiva ao Exército não virá melindrar o nosso patriotismo nem atentar contra as nossas instituições políticas. Os oficiais, que constituirão essa Missão, não virão exercitar comandos, nem arrancar, dilacerar direitos e regalias de quem quer que seja, virão apenas ensinar-nos, guiar-nos na solução dos grandes e difíceis problemas da Arte da Guerra. Não podemos nem devemos sob o ponto de vista de instrução militar teórica, prática e profissional ficarmos aquém das demais nações do continente sul-americano. [...] Pouco importa a nacionalidade da Grande Missão, o que devemos é conciliar o útil e agradável, buscá-la entre as Nações europeias, cujos costumes, hábitos, língua e tradições se aproximam da nossa e sejam de fácil assimilação ao nosso meio. (ESTADO-MAIOR DO EXÉRCITO, 1996, p. 69- 70). Apesar de manifestar predileção pela contratação de uma Missão francesa, Bento Ribeiro afirmava que pouco importava a nacionalidade da “Grande Missão”, desde que esta preservasse os direitos e a autonomia do Exército brasileiro. Contudo, em 1917, data do relatório apresentado, a Alemanha estava perdendo a guerra, o que justificava a contratação dos franceses. Os ataques de submarinos alemães a navios comerciais brasileiros e a subsequente adesão do Brasil à guerra ao lado dos Aliados excluía qualquer possibilidade de acordo com a Alemanha.13 Além disso, Ribeiro encerra sua fala manifestando que seria “útil e agradável” buscar a missão em nações europeias que se aproximassem linguisticamente, culturalmente e tradicionalmente do Brasil; certamente o General não se referia à contratação de uma missão portuguesa, espanhola ou italiana. Enquanto as discussões acerca da missão prosseguiam, Bento Ribeiro iniciou a revitalização da Escola Militar, os jovens turcos integrariam a chamada Missão Indígena.14 13 Com a entrada do Brasil na guerra, o Exército brasileiro aumentou seu efetivo para 52 mil homens. “O Exército tinha grande dificuldade até para alojar, vestir e alimentar tantos homens, quanto mais para treiná-los e armá-los” (MCCANN, 2007, p. 236). 14 Os oficiais formados pela “Missão indígena” enfrentavam obstáculos para colocar seus ensinamentos em prática. O choque entre a mentalidade dos “tenentes” e a “bacharelesca” e “acomodada” dos velhos oficiais cresceria e no começo da década de 1920 seria exacerbada. O depoimento de Cordeiro de Farias ilustra a situação: “O choque de gerações em determinadas regiões foi inevitável. Os tenentes que iam para o Rio Grande do Sul ou Mato Grosso eram mal recebidos em várias unidades por seus comandantes, que lhes diziam: ‘não me venham com estas ideias de instrução para não perturbar a vida do quartel. Somos uma família. Não queremos problemas” (FARIAS; CAMARGO; GÓES, 1981. p. 66-67). 158 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 148-163, jan./jun. 2013 Vocação Modernizadora do Exército Brasileiro Finalmente, no dia 28 de maio de 1919, o presidente em exercício Delfim Moreira assinaria o decreto que autorizava a contratação da Missão Militar Francesa (MMF), que deu “de forma permanente, o estímulo para a modernização e aperfeiçoamento profissional” do Exército brasileiro (COELHO, 2000, p. 97).15 A Missão Militar Francesa [...] inicia seus trabalhos em 1919 e permanece cerca de vinte anos no Brasil. Acompanhada passo a passo pelo comando francês, essa Missão transfigura o Exército brasileiro. A corporação ganha novas armas, inclusive o avião, marco da modernidade guerreira, e o seu ensino é reformulado, tornando-se mais técnico. [...] Os oficiais adotam uma “doutrina de guerra”, aprendem como se constitui e opera um Estado-Maior; tornam-se capazes de planejar e conduzir “grandes manobras”, exercícios de emprego combinado de tropas simulando operações de guerra. Ademais, os grandes problemas do desenvolvimento nacional entram na pauta de discussão dos que se preparam para exercer maiores responsabilidades corporativas. (DOMINGOS NETO, 2007, p. 220- 221). Domingos Neto aponta que, antes da chegada da MMF, os oficiais brasileiros não sabiam como operar o Estado-Maior do Exército e não estavam habilitados para o planejamento sistemático da vida corporativa. O resultado dos exercícios de manobra de 1905 não foi dos mais animadores; a Guerra do Contestado mostrou as debilidades e os desafios que o Exército brasileiro deveria enfrentar. O Chefe do EME, Bento Ribeiro, além de ardoroso defensor da contratação de uma Missão Militar estrangeira era também um visionário. Em 1915, quando o mundo assistia estarrecido ao desenrolar dos conflitos da Grande Guerra, encomendou uma série de estudos que tratavam da aquisição de aviões e a organização do serviço aéreo dentro do Exército brasileiro (ESTADO-MAIOR DO EXÉRCITO, 1996, p. 59-62). Talvez, a maior prova do espírito esclarecido desse general tenha sido a defesa da autonomia do aparelho militar brasileiro. Por outro lado, o general Maurice Gamelin, principal chefe da MMF, defenderia agressivamente os interesses franceses. De acordo com Domingos Neto (2007, p. 231-237), Gamelin muitas vezes agia como um empenhado agente comercial francês, interessado em vender e divulgar as “maravilhas industriais” de seu país.16 15 As negociações ocorreram em Paris, entre maio e setembro de 1919. A Missão Militar Francesa teria como tarefas: “criar os alicerces de um exército moderno, organizando escolas para treinar oficiais profissionais, melhorando a capacidade do Estado-Maior para dirigir o Exército, reformulando os regulamentos sobre treinamentos e táticas, elaborando um sistema de promoções que assegurasse a ascensão dos oficiais mais capazes aos postos de liderança importantes e criando verdadeiras unidades táticas” (McCANN, 2007, p. 269- 270). 16 “Naquela época, as vendas que mais interessavam os franceses eram de aviões e de material de artilharia. Nesses domínios, a concorrência era bem mais acirrada e Gamelin mostraria seu especial talento como estrategista de negócios comerciais: já em suas primeiras proposições para a reforma do ensino e para a remodelação do Exército, o comandante da MMF prescrevia em detalhes grandes aquisições” (DOMINGOS NETO, 2007, p. 234). Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 148-163, jan./jun. 2013 159 Luiz Rogério Franco Goldoni Além de interceder diretamente na compra de aviões e peças de artilharia, Gamelin influenciou na aquisição de cozinhas de campanha, aparelhos telegráficos, viaturas a tração animal e tecidos para uniformes. O General pretendia tornar o Brasil dependente das instruções e das fábricas francesas, não admitindo que o Ministério da Guerra ou o Exército brasileiro comprassem equipamentos dos concorrentes franceses ou contratassem qualquer profissional estrangeiro para serviços técnicos, como o de cartografia. A defesa intransigente dos interesses de seu país faria com que Gamelin atacasse rudemente oficiais brasileiros que advogavam a favor de uma maior autonomia para compra e contratação de instrutores e técnicos de outras nações. O próprio Bento Ribeiro, que intercedeu favoravelmente para a contratação da MMF, por ter tentado evitar a estrita dependência de fabricantes franceses, foi tachado de “germanófilo” pelo General francês. As pressões exercidas por Gamelin forçaram o pedido de demissão do Chefe do Estado-Maior, gerando grandes insatisfações na guarnição do Rio de Janeiro (DOMINGOS NETO, 2007, p. 241-244). 5 CONSEQUÊNCIAS DO NOVO ENSINO MILITAR João Pandiá Calógeras, Ministro da Guerra entre 1919 e 1922, daria continuidade ao processo modernizador apoiando decididamente a Missão Francesa. Em abril de 1920, sob supervisão e organização francesa, foram abertos os novos cursos de Estado-Maior, que preparariam os majores e tenentes-coronéis que futuramente comandariam o Exército. Naquele ano, foi inaugurada a Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (EsAO), destinada à formação dos capitães que comandariam as companhias, esquadrões e baterias. A Missão Militar Francesa também ofereceu um curso de Revisão de Estado-Maior, para os oficiais de geração intermediária: Foi na formação de bons oficiais de Estado-Maior que a missão [militar francesa] exerceu seu maior impacto. [...] Foi a Missão Francesa que tornou possível o início da implementação da nova doutrina [de defesa] graças à formação de oficiais de estado-maior e da reestruturação do órgão. (CARVALHO, 2005, p. 28-29). O ministro Calógeras destacou-se também pela busca da resolução de dois graves problemas pertinentes à administração do Exército: “a renovação dos aquartelamentos e os fundamentos da indústria bélica do País” (FREIXINHO, 1997, p. 152). Durante a Primeira República, o Exército passou por uma série de reformas que tinham como objetivo aumentar sua eficiência como instrumento bélico. A corporação armada buscou a melhora da organização do ensino de formação e do aperfeiçoamento dos quadros permanentes. Aprimorou o recrutamento de contingentes; perseguiu a modernização do equipamento, a melhoria dos aquartelados e o adestramento das grandes unidades. 160 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 148-163, jan./jun. 2013 Vocação Modernizadora do Exército Brasileiro A tendência modernizadora teria continuidade ao longo da década de 1920. Contudo, as cisões políticas no interior das Forças Armadas, provocadas pelo próprio processo modernizador, acabariam por frear esse processo. Por suas grandes repercussões na vida nacional, a modernização do Exército conduzida pelos militares franceses merece atenção. De fato, o principal instrumento de força do Estado brasileiro amplia sua dependência em relação aos fornecedores estrangeiros e, sobretudo, entra em descompasso com a realidade: seria impossível, num país “atrasado”, o uso adequado de equipamentos e técnicas desenvolvidas em países industrializados. A mudança no Exército gera profundas clivagens entre os oficiais: os mais jovens passam a desafiar abertamente a hierarquia e a envolver-se em rebeliões posteriormente conhecidas como tenentistas. Compreendendo a relação estreita entre a eficiência militar, as condições socioeconômicas, o desenvolvimento técnicocientífico, os serviços públicos e a formação do sentimento patriótico necessário para legitimar o serviço militar universal e obrigatório, os oficiais mais jovens se preparam para intervenções de longo alcance na vida nacional. Sem dúvida, a França foi fundamental na preparação do Exército que interferiu decisivamente na vida brasileira ao longo do século XX. (DOMINGOS NETO, 2007, p. 221). As clivagens mencionadas alimentariam os movimentos tenentistas de 1922 e 1924. A vida da corporação foi, então, completamente tumultuada, registrandose inclusive o fechamento da Escola Militar de Aviação. Todos os aparelhos recémadquiridos da França foram inutilizados. O debate político tomou conta do corpo de oficiais, sem qualquer respeito pelos princípios hierárquicos. A atenção do comando da Corporação ficou voltada para o combate aos oficiais rebelados que, em 1924, iniciaram uma longa marcha pelo território brasileiro, que ficaria conhecida como a “Coluna Prestes”. Após 1930, rebeldes e legalistas, “germanófilos” e “francófilos”, quase todos cerrariam fileiras sob a bandeira da modernização conduzida por um civil, Getúlio Vargas. Góes Monteiro, representante indiscutível da tendência militar modernizador, por ter se destacado como aluno do general Gamelin, se tornou instrutor da Missão no início de sua carreira.17 A maioria dos generais que instauraram o Estado Novo e estiveram à frente do golpe de 1964 foram formados ou influenciados pela Missão Francesa. Os tenentes rebeldes dos anos 1920 passaram a integrar a corrente hegemônica de uma corporação que lograra adquirir um dos traços caracterizadores do aparelho militar moderno: a coesão doutrinária no que diz respeito aos assuntos militares. 17 Góes Monteiro apesar de ter sido instrutor da Missão Militar Francesa era estigmatizado de “germanófilo” e “simpatizante do regime totalitário alemão”. Tal fato pode estar relacionado à admiração que o jovem Góes nutria pelos “jovens turcos” e pelo modelo profissional alemão, esta última relatada no livro “O general Góes depõe...”, de Lourival Coutinho. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 148-163, jan./jun. 2013 161 Luiz Rogério Franco Goldoni REFERÊNCIAS CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e Política no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. COELHO, Edmundo Campos. Em busca de identidade: O Exército e a política na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Record, 2000. DORATIOTO, Francisco. A guerra do Paraguai: 2ª. visão. 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Como parte do processo de submissão, os autores devem verificar o cumprimento de todos os itens listados a seguir. Os textos que não estiverem de acordo com as normas serão devolvidas aos autores. Os artigos devem ser originais, inéditos e não devem estar, concomitantemente, sendo avaliados por outra publicação; caso esteja, os autores deverão justificar a dupla submissão. Recomenda-se que se observem as normas da ABNT: • referências bibliográficas (NBR 6023/2000); • apresentação de artigos em publicações periódicas (NBR 6022); • apresentação de citações em documentos (NBR 10520); • apresentação de originais (NBR 12256); • norma para datar (NBR 5892); • numeração progressiva das seções de um documento (6024); e • resumos (NBR 6028) • norma de apresentação tabular do IBGE, no caso de gráficos, figuras, tabelas, fotos e outras ilustrações. Os arquivos para submissão devem obedecer aos seguintes critérios: • formato Microsoft Word.DOC ou RTF; • ter entre 10 e 20 páginas; • espaçamento: entre linhas: simples; entre parágrafos: 6 pontos depois; do título para o começo do texto: 12 pontos depois; espaço antes e depois da citação: 8 pontos; • fonte 12 , Times New Roman; • margem superior e esquerda – 3 cm; margem inferior e direita – 2 cm; • empregar itálico ao invés de sublinhar (exceto em endereços URL); 164 Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 164-165, jan./jun. 2013 Normas para Submissão de Artigos para as Revistas da Esg • figuras e tabelas devem ser inseridas no texto, e não em seu final (e não devem passar de duas). O texto deve ser precedido do título, nome e titulação principal do(s) autor(es), atividade que exerce e filiação institucional e do e-mail, seguido do resumo, das palavras-chave (até 5), do abstract e das keywords. Os artigos deverão vir acompanhados de uma <autorização para publicação> contendo o nome, titulo do artigo, endereço, telefone, endereço eletrônico e um currículo resumido do(s) autor(es). Nos artigos devem constar, no final, as referências que deverão ser proporcionais ao número de páginas; portanto entre 10 e, no máximo, 20 autores. O canal de diálogo entre os autores e a editoração é <[email protected] e [email protected]>. O ISSN da Revista da ESG é 0102-1788 e o do Caderno de Estudos Estratégicos 1808-947X. A ESG reserva-se o direito de efetuar, nos originais, alterações de ordem normativa, ortográfica e gramatical, com vistas a manter o padrão culto da língua, respeitando, porém, o estilo dos autores. As provas finais não serão enviadas aos autores. A ESG cumpre todos os direitos dos autores reservados e protegidos pela Lei n.º 9610, de 19 de fevereiro de 1998. Condiciona-se a sua reprodução parcial ou integral à autorização expressa e as citações eventuais à obrigatoriedade de referência da autoria e da revista. As opiniões emitidas pelos autores dos artigos são de sua exclusiva responsabilidade. Cada autor receberá dez exemplares da revista. A revista é distribuída gratuitamente. As regras de uniformização dos artigos encontram-se disponível em: <www. esg.br/uploads/2012/12/regras_uniform_artigos.pdf> Revista da Escola Superior de Guerra, v. 28, n. 56, p. 164-165, jan./jun. 2013 165 Esta revista foi impressa na gráfica da ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA Fortaleza de São João - Av. João Luís Alves, s/n - Urca - Rio de Janeiro - RJ CEP 22291-090 - www.esg.br ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA A Escola Superior de Guerra - ESG - criada pela Lei nº. 785, de 20 de agosto de 1949, é um instituto de altos estudos, subordinado diretamente ao Ministro de Estado da Defesa, e destina-se a desenvolver e consolidar os conhecimentos necessários para o exercício das funções de direção e para o planejamento da segurança e defesa nacionais. A ESG desenvolve estudos sobre política e estratégia, destinados ao desenvolvimento do conhecimento e de metodologia de planejamento político-estratégico, em especial nas áreas da segurança e da defesa. Atuando como centro permanente de estudos e pesquisas, competelhe, ainda, ministrar os cursos que forem instituídos pelo Ministério da Defesa. A ESG está localizada na área da Fortaleza de São João, no bairro da Urca, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 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