ID: 28482124
21-01-2010
Tiragem: 50531
Pág: 16
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Diária
Área: 29,18 x 35,22 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 1 de 2
Angola Lei fundamental do país está a causar muita polémica
Assembleia
angolana aprova
hoje a primeira
Constituição
O MPLA continua omnipresente em toda a vida de Angola
Presidente será o primeiro da lista
de candidatos do partido que vencer
as legislativas. Pode desempenhar
dois mandatos, de cinco anos cada
Jorge Heitor
a A Assembleia Nacional de Angola, onde o MPLA, do Presidente, José
Eduardo dos Santos, ocupa 191 dos
220 lugares, deverá aprovar hoje a
primeira Constituição do país, que
há 34 anos se tornou independente
e até agora tem sido regido apenas
por leis constitucionais.
Segundo foi sublinhado no oficioso Jornal de Angola pelo deputado e escritor João Melo, do partido
maioritário, o projecto final contém
“contribuições de todos os projectos
elaborados pelos cinco partidos com
assento no parlamento, assim como
um número considerável de sugestões resultantes do processo de consulta pública”.
No entanto, nas fileiras da oposição e em outros sectores da sociedade teme-se um retrocesso, por não
haver eleição directa do Presidente
da República, que irá ser o primeiro
nome da lista apresentada pelo partido que vencer as legislativas.
Os deputados eleitos em Setembro
de 2008 tinham poderes constituintes, pelo que lhes foi possível concluir
a “lei suprema e fundamental da República de Angola”, que aponta como objectivo “a construção de uma
sociedade livre, justa, democrática
e solidária, de paz, igualdade e progresso social”.
O território angolano, diz o texto,
“é indivisível, inviolável e inalienável, sendo energicamente combatida
qualquer acção de desmembramento
ou de separação das suas parcelas”.
Clausulado este que parece responder
especialmente às pulsações independentistas que de há muito se notam
na província de Cabinda, onde os movimentos autonomistas começaram
na década de 1960 e prosseguem até
hoje, apesar de uma forte repressão,
exercida por dezenas de milhares de
militares e de polícias.
“A República de Angola é um Estado unitário”, insiste o projecto
constitucional, que vira costas ao federalismo preconizado pelo Partido
de Renovação Social (PRS), terceira
formação política nacional, particularmente representada na região dia-
mantífera das Lundas, no Nordeste
do país.
A Constituição estipula que são
órgãos de soberania o Presidente da
República, a Assembleia Nacional e
os tribunais, ficando o primeiro com
o poder executivo, auxiliado por um
vice-presidente e por ministros e secretários de Estado, deixando portanto de haver a figura de um primeiroministro, cargo que desde Setembro
de 2008 pertence a António Paulo
Kassoma.
Mandatos de cinco anos
Os mandatos presidenciais terão a
duração de cinco anos, podendo cada
cidadão eleito para o cargo “exercer
até dois mandatos”; e competindolhe nomear e exonerar o vice-presidente de entre os deputados.
É ao Presidente que cabe “definir a
orientação política do país e dirigir a
política nacional”, não sendo responsável pelos actos praticados no exercício das suas funções, “salvo em caso
de suborno ou traição à pátria”. Pelos crimes estranhos ao exercício das
suas funções o Presidente de Angola
responde perante o Tribunal Supremo, “cinco anos depois de terminado
o seu mandato”.
Tanto o vice-presidente como o
É ao Presidente que cabe
“definir a orientação política
do país e dirigir a política
nacional”, não sendo
responsável pelos actos
praticados no exercício
das suas funções
Conselho de Ministros são considerados órgãos auxiliares do Presidente
da República, que, por outro lado,
terá um conselho da República, de
natureza consultiva. Neste último
terão assento o vice-presidente, o
presidente da Assembleia Nacional,
o presidente do Tribunal Constitucional, o presidente do Supremo, o
procurador-geral da República e os
presidentes dos partidos parlamentares, bem como dez outros cidadãos a
designar pelo chefe de Estado.
Quanto à “insígnia da República”,
é formada por uma secção de uma
roda dentada e por uma ramagem de
milho, café e algodão, representando
a produção industrial e a produção
agrícola. Na base do conjunto aparece um livro aberto, sobre o qual se
cruzam uma catana e uma enxada.
Por cima delas, a estrela da “solidariedade internacional”.
Quanto ao hino nacional preconizado, contém versos como “Angola,
Avante/Revolução pelo poder popular”, os quais parecem muito datados
e representativos do circunstancialismo histórico em que foi proclamada
a independência, a 11 de Novembro
de 1975, pelo então líder do MPLA,
António Agostinho Neto.
A opinião de um dirigente da UNITA
Presidente fica com “os podere
a Alcides Sakala, porta-voz e secretário da UNITA para os Negócios Estrangeiros, declarou ao PÚBLICO que
o seu partido tinha proposto que a
nova Constituição angolana incluísse
“uma autonomia ampla” para Cabinda, o que foi rejeitado pelo MPLA.
“Só a autonomia pode resolver o
problema de Cabinda, enquanto solução global, em que participem os
países vizinhos de Cabinda, como a
República Democrática do Congo, o
Gabão e a República do Congo (Brazzaville)”, afirmou aquele diplomata
de 56 anos, antigo representante do
Galo Negro em Portugal.
Quanto ao facto de o novo texto
constitucional ser aprovado um pouco mais cedo do que se tinha previsto,
disse que “a metodologia e o calendário do processo constituinte foram
tempestivamente alterados. As opiniões recolhidas durante a consulta
pública para o enriquecimento das
três matrizes de Constituição foram
manipuladas ou ignoradas. Foram
apenas acolhidas as opiniões emitidas
pelos militantes do MPLA em relação
à sua matriz”.
Interrogado sobre se houve ou não
consenso, contou que, “nas últimas
sessões da Comissão Constitucional,
todos os partidos presentes votaram
contra as propostas atípicas do MPLA.
O MPLA aprovou, assim, sozinho o
seu sistema de governo, que consagra
no Presidente da República os poderes de um ditador africano”.
Catana e roda dentada
O MPLA, no seu entender, “aprovou
sozinho os símbolos nacionais; quer
continuar a utilizar os símbolos da
República Popular de Angola. Quer
que a bandeira seja a bandeira de um
só partido. Quer que a ideologia de
Angola seja simbolizada pelos símbolos e chavões marxistas-leninistas.
Quer que a classe operária e a classe camponesa, as mais excluídas e
discriminadas pelo próprio Estado,
sejam destacadas na bandeira nacio-
ID: 28482124
21-01-2010
Tiragem: 50531
Pág: 17
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Diária
Área: 28,95 x 32,81 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 2 de 2
GIANLUIGI GUERCIA/AFP
Só o TC pode impedir esta barbaridade
Comentário
Marcolino Moco
a Com a anunciada aprovação,
hoje, duma Constituição
absurda, que o Presidente José
Eduardo dos Santos quer impor
ao país, contrariando mesmo
a filosofia e os programas do
seu partido, sufragados pelas
eleições legislativos de 5 e 6 de
Setembro de 2008, vai dar-se
um passo irreversível para se
terminar de forma aviltada o
processo constituinte que se
vive presentemente em Angola.
A História da humanidade é
prenhe em exemplos de como
os maus precedentes podem ser
fatais para a vida dos Estados.
A questão das normas
constitucionais vigentes que vão
ser violadas com este acto da
Assembleia Nacional, nas vestes
de Assembleia Constituinte,
não pode ser tão despicienda
como se pretende fazer passar,
com o pretexto de que a maioria
esmagadora do MPLA o justifica.
Esta não é apenas uma
questão de ordem teórica
defendida pelos grandes
mestres do Direito. É algo que
o Direito foi retirar das lições
da História. Veja-se o caso do
nazismo hitleriano. Para o caso
concreto do constitucionalismo
angolano, o artigo 159 surgira,
exactamente, para acautelar
que uma eventual maioria
esmagadora pudesse alterar
conquistas específicas no
processo da construção de
uma democracia pluralista,
bem como a preservação dos
princípios basilares de um
Estado democrático e de direito,
entre os quais a questão da
separação material e formal dos
Marcolino Moco
foi secretáriogeral do MPLA
em 1991-1992
e primeiroministro
angolano de 1992
a 1996
órgãos nacionais de soberania.
Ora, será justamente a
destruição deste mecanismo
acautelatório a que vamos
assistir, para além da
consagração constitucional
de outras práticas irregulares
a que os angolanos foram
submetidos, ao arrepio da lei
constitucional em vigor durante
o longo consulado do Presidente
José Eduardo dos Santos, cuja
necessidade de chegar ao fim ele
próprio preconizara há cerca
de cinco anos.
Eu, pessoalmente, alimento
ainda a esperança de que,
pela idoneidade dos juízes
do Tribunal Constitucional,
cuja actuação em relação ao
assunto foi anunciada pelo
presidente da Assembleia
Nacional, Fernando da Piedade
Dias dos Santos, “Nandó”,
e que, na minha óptica, se
impõe ex officio, nos termos
do artigo 135, número três, da
lei constitucional, conjugado
com a alínea “O” do artigo 16
da sua lei orgânica, sejamos
poupados a assistir à anunciada
barbaridade.
Marcolino Moco foi secretáriogeral do MPLA em 1991-1992,
primeiro-ministro angolano de
1992 a 1996 e secretário executivo
da Comunidade dos Países de
Língua Portuguesa (CPLP) de 1996
a 2000. Actualmente é doutorando
em Direito na Faculdade de Direito
da Universidade de Lisboa.
No fim do ano passado, numa
carta ao actual secretáriogeral, Dino Matross, e de que
deu conhecimento ao PÚBLICO,
reiterou que continua “ligado
sentimentalmente” ao partido,
“mas sem temor”.
Sem uma oposição livre não há democracia
Comentário
Ana Gomes
s de um ditador africano”
nal. Este destaque, mesmo absurdo e
irónico, representado pela catana e
pela roda dentada, viola o princípio
da igualdade subjacente ao princípio
democrático”.
Sakala observou que “o MPLA continua a negar aos angolanos a consagração constitucional do direito de
resistência; a consagração constitucional do direito a assistência médica gratuita; o direito à consagração
constitucional dos instrumentos de
garantia da efectiva liberdade de imprensa; continua a negar aos angolanos o direito a eleições livres e democráticas, organizadas por órgãos
independentes, sem a interferência
da administração pública”.
Tendo-lhe sido colocada a questão
das reservas vindas a público sobre
“a lei suprema e fundamental”, o
porta-voz da principal força da oposição considerou que “esta não é
ainda a Constituição de Angola. É a
Constituição do MPLA, ilegal, porque
viola dois princípios que a lei impõe
ao poder constituinte como limites
materiais, nomeadamente o princípio da eleição directa e o princípio
da separação de poderes. Com efeito,
a eleição do Presidente da República deve ser formal e materialmente
diferente da eleição dos deputados.
As eleições presidenciais e legislativas
podem ocorrer no mesmo dia, mas
devem ser separadas; quer dizer, deve haver dois boletins de voto e duas
urnas para estas duas eleições”.
Sobre se a Constituição a aprovar
encarna o espírito da reconciliação
nacional Sakala observou: “Esse processo fica adiado e vamos continuar
a ter uma Angola a marchar a duas
velocidades, com os ricos a ficarem
cada vez mais ricos e os pobres, que
são a maioria, a ficarem cada vez mais
pobres.”
Por último, interrogado sobre se
o Presidente que Angola tem há 30
anos irá continuar a sê-lo, respondeu
que “é intenção de José Eduardo dos
Santos eternizar-se no poder”. J.H.
a Não é só nas fileiras da
oposição que se teme um
retrocesso em Angola com
o projecto de Constituição a
ser aprovado pela Assembleia
Nacional. Também nas fileiras
do MPLA, o partido do Governo
desde a independência,
há quem critique esta
Constituição como impeditiva
do funcionamento democrático
do país, ao não submeter o
Presidente da República – este
Presidente da República, José
Eduardo do Santos, no poder há
30 anos – a escrutínio universal.
Ouvi essas queixas em
Luanda, em Dezembro passado,
quando ali reuniu a Assembleia
Parlamentar Paritária ACP-UE.
Os críticos antecipavam que o
modelo sul-africano copiado de
eleição indirecta do Presidente
mataria no ovo a democracia.
Mas eram poucos os quadros do
MPLA que falavam alto e claro,
além do ex-primeiro-ministro
Marcolino Moco.
Quem criticava, em geral
pedia reserva – o que, só por si,
diz tudo. Diz sobretudo o que
eu pensei (e escrevi) quando,
nas eleições legislativas, em
Setembro de 2008, o MPLA
obteve um resultado esmagador,
“à la Golkar” de Suharto, graças
a um zelo eleitoralista escusado
(pois, com limpeza, o MPLA
ganharia sempre folgadamente).
O resultado de mais de 80%
dos votos para o MPLA foi,
obviamente, desencorajador das
presidenciais no ano seguinte,
como então se previa. Iria o
Presidente sujeitar-se a ter
menor votação do que o seu
partido, mesmo com esmero na
engenharia eleiçoeira? E ainda
se ficasse só com umas décimas
a mais, o ganho de credibilidade
Ana Gomes é
eurodeputada
pelo Partido
Socialista,
dedicando
especial atenção
aos direitos
humanos
seria nulo – já ninguém no
mundo acredita em resultados
suhartistas.
José Eduardo dos Santos
preferiu continuar a arcar
com o questionamento da
sua legitimidade, mas reter o
poder nas suas mãos. E passou
a assumi-lo, deixando de lado
disfarces como a partilha de
responsabilidades com um
primeiro-ministro que nunca
contou.
Claro que o Presidente
sabe que terá de reinar com
extrema sabedoria e continuar
um cada vez mais difícil
exercício de composição de
interesses. Se um mínimo de
distribuição social da riqueza
é condição, Cabinda não deixa
de colocar um teste crucial (e o
revanchismo cego das prisões
destes últimos dias não augura
grande discernimento). Tratase de impedir que em sua vida
(e a Constituição concede-lhe
mais 15 anos de imunidade)
lhe venham pedir contas, não
apenas sobre como governou,
mas sobre como se governou
e deixou muitos governaremse com base nos recursos
que pertencem a todo o povo
angolano.
Mas, realmente, não é por
não haver eleição directa do
Presidente que em Angola
não há democracia. Não há
democracia onde não existe
oposição livre e organizada – e
a UNITA não é oposição, está há
muito também no... “business”.
Fortalecer uma oposição
democrática em Angola passa,
antes de mais, pela operação
de media que informem sem
constrangimentos. Na era
da globalização, eles podem
funcionar a partir de qualquer
ponto do planeta...
Download

Assembleia angolana aprova hoje a primeira Constituição