M A T T O S , P . ; UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO L I N C O L N , C . L . : CYNTHIA APARECIDA PEREIRA PATUSCO GOMES DA SILVA A e n t r e v i s t a n ã o e s t r u t u r a d a c o m o Distúrbios fonoarticulatórios na Síndrome de Down e implicações na lectoescrita Rio de Janeiro 2011 2 Distúrbios fonoarticulatórios na Síndrome de Down e implicações na lectoescrita CYNTHIA APARECIDA PEREIRA PATUSCO GOMES DA SILVA Tese de Doutorado apresentada ao programa de Pós-graduação em Linguística da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do título de doutor em Linguística. Orientadora: Profª Dra. Maria Cecília M. Mollica Rio de Janeiro Fevereiro de 2011 3 DISTÚRBIOS FONOARTICULATÓRIOS NA SÍNDROME DE DOWN E IMPLICAÇÕES NA LECTOESCRITA Cynthia Aparecida Pereira Patusco Gomes da Silva Orientadora: Maria Cecília M. Mollica Co-orientadora: Myrian Azevedo de Freitas Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Linguística da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de doutor em Linguística. Aprovada por: ….......................................................................................................... Presidente: Profª Dra. Maria Cecília M. Mollica ….............................................................................................................................. Profª. Dra. ….......................................................................................................................... Profª. Dra. …................................................................................................................................. Profª Dra. ….......................................................................................................................... Profª. Dra. Rio de Janeiro Fevereiro de 2011 4 SILVA, Cynthia Aparecida Pereira Patusco Gomes da. Distúrbios fonoarticulatórios na Sínddrome de Down e implicações na lectoescrita/ Cynthia Aparecida Pereira Patusco Gomes da Silva: UFRJ/FL, 2011. xii. 207 f.: il; 31cm Orientadora: Maria Cecília M. Mollica Tese (doutorado) – UFRJ / Faculdade de Letras / Programa de pós-graduação em Linguística, 2011. Referências Bibliográficas:f. 151-156. 1. Distúrbios fonoarticulatórios na Síndrome de Down 2. Implicações na lectoescrita. Mollica, Maria Cecília Magalhães. II Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de pós-graduação em Linguística. III. Distúrbios fonoarticulatórios na Síndrome de Down e implicações na lectoescrita. 5 DEDICATÓRIA Aos portadores de Síndrome de Down, pessoas especiais no melhor sentido da palavra. Aos meus dois amores, Olímpio, meu marido, e Henrique, meu filho, pelo carinho, pela paciência e, principalmente, pelo apoio incondicional. 6 AGRADECIMENTOS A Deus, meu muito obrigada, sempre. À Profª Drª Maria Cecília de Magalhães Mollica, minha orientadora, pela sua incansável e imensurável contribuição para a realização deste trabalho. À Profª Drª Myrian Azevedo de Freitas, co-orientadora da tese, pelas sugestões valiosas que redimensionaram a pesquisa e pelo apoio constante. Ao meu pai, prof. Carlos Henrique, maior incentivador para a realização deste trabalho. À minha mãe, Luzia, por me formar. Ao meu irmão, Carlos Alexandre, pela excelente ajuda técnica. À Luzia, minha cunhada, pelo empenho em me ajudar com os testes de aferição de capacidade cognitiva. À Profª Drª Jacqueline Varela Brasil Ramos, minha prima, pelas observações relevantes feitas na fase incipiente da pesquisa. À direção da escola onde se realizou a coleta de dados, bem como a todos os colaboradores envolvidos (alfabetizadores, coordenadores), pela permissão à minha entrada e, principalmente, pela crença na importância do trabalho. Às famílias dos informantes, pela autorização concedida para a realização da pesquisa. Aos professores do programa de pós-graduação em Linguística da UFRJ, pelo ótimo padrão dos cursos oferecidos. 7 Aos membros da banca examinadora, titulares e suplentes, pelo aceite e avaliação criteriosa do trabalho. Ao CNPq, pela bolsa de estudos concedida. 8 RESUMO A presente pesquisa tem como proposta investigar déficits fonético-fonológicos em portadores de Síndrome de Down (SD) e implicações na apropriação da leitura e da escrita durante o processo de alfabetização. A discussão emerge da hipótese central de que transtornos de natureza fonoarticulatória, motivados por aspectos neurológicos e anatômicos, repercutem negativamente na lectoescrita. Parte-se do princípio que o retardo mental afeta o desenvolvimento cognitivo, responsável pela abstração, discriminação e memorização das unidades fonológicas (fonemas). Agregam-se a esse aspecto problemas de ordem periférica: a hipotonia orofacial generalizada dificulta o movimento harmonioso dos articuladores no que tange à programação e produção de cadeias sonoras. A despeito da deficiência de habilidade de correspondência grafo-fonológica em alguns casos, o estudo coloca em foco a capacidade em potencial da população investigada para o processo de alfabetização. Todavia, a análise dos dados aponta que o portador de SD pode levar mais tempo para ser alfabetizado quando comparado ao seu par de desenvolvimento típico, haja vista a falta de equivalência entre idade cronológica e idade mental. A pesquisa também ilustra que aspectos como estimulação verbal precoce, terapia fonoaudiológica e diferentes níveis de cognição conduzem a amostras idiossincráticas como observadas nos estudos de caso. O corpus foi coletado em dois estágios: primeiramente, conduziu-se a gravação em áudio das habilidades articulatórias (nomeação e leitura de itens lexicais listados através de gravuras) com posterior transcrição fonética.; na sequência, os informantes foram solicitados a escrever as palavras utilizadas nos testes de habilidade oral. Os resultados foram analisados à luz dos Modelos Baseados no Uso, bem como através de abordagens acerca do processo de alfabetização como é o caso da Consciência Fonológica. PALAVRAS-CHAVE: Síndrome de Down, transtornos fonético-fonológicos, apropriação da lectescrita. 9 ABSTRACT This research aims at investigating phonetic-phonological deficit in people with Down Syndrome as well as implications in writing and reading skills during literacy process. The discussion emerges from the central hypothesis that phonoarticulatory problems, motivated by neurological and anatomical features, have a negative repercussion on writing and reading. It is taken into account that mental handicap affects cognitive development which is responsable for the abstraction, discrimination and memorization of aspect, peripherical factors phonological units (phonemes). Along with this also play a role: orofacial hypotonia turns difficult the harmonious movement of the articulators in terms of combining and producing speech sounds. Central and peripherical deficits therefore have a negative repercussion in writing and reading acquisition. Although there is evidence of deficits concerning graph-phonological correspondence, in some of the cases studied, the research focus on the potential capacity of the population investigated to become literate. However, data analysis points out that literacy process may take longer in Down Syndrome individuals when compaired to their pairs with typical development, once there is lack of equivalence between mental and chronological age. The discussion also ilustrates that aspects such as early verbal stimulation, speech therapy and different levels of cognition lead to idiosyncratic samples as observed in the case studies. The corpus was collected in two stages: firstly, oral skills (naming and reading of lexical items ) were audio registered and phoneticaly transcribed. In sequence, informants were asked to write the words used to test oral ability. The results were examined in the light of Usage Based Models, as well as through approaches referring to literacy process such as Phonological Awareness. KEY WORDS: Down Syndrome, phonetic-phonological deficits, literacy. 10 SUMÁRIO Introdução ..........................................................................................................................12 1- A respeito da Síndrome de Down .....................................................................................16 1.1 Panorama clínico e linguístico da Síndrome de Down (SD) ..................................16 1.1.1 Considerações sobre o aspecto fonoarticulatório na SD ....................................... 22 1.2 O perfil do portador de SD: fatores cognitivos e psicossociais ..............................31 2. Modelos teóricos e conceitos linguísticos ......................................................................37 2.1 A segmentação dos sons da fala: o gesto articulatório ..............................................38 2.2 A Fonética e a Fonologia............................................................................................41 2.2.1A Fonologia de Uso: abordagem estocástica do conhecimento linguístico.............47 2.3 Considerações sobre a apropriação da lectoescrita ...................................................54 2.3.1 A alfabetização de portadores de SD .....................................................................65 2.3.2 O papel da Consciência Fonológica na apropriação da lectoescrita ......................70 3. Amostra e metodologia ...................................................................................................77 3.1 Constituição da amostra e contexto de pesquisa........................................................77 3.1.1 Os sujeitos de pesquisa ............................................................................................78 3.1.2 As etapas da amostra ...............................................................................................79 3.1.3 A elaboração dos testes e procedimentos de aplicação …........................................80 3.1.4 Questionário dirigido às alfabetizadoras..................................................................84 . 3.2 Metodologia …...........................................................................................................86 3.2.1 Estudo de caso ….....................................................................................................88 11 4. Descrição e análise de dados...........................................................................................90 4.1 Considerações sobre a fala espontânea .......................................................................90 4.2 Disartria, dispraxia e processos fonológicos associados ... ........................................99 4.2.1 Desempenho oral dos informantes: enunciação x leitura .........................................99 4.2.2 Desempenho na escrita …........................................................................................123 4.2.3 Leitura x escrita de palavras não familiares …........................................................134 4.2.4 Propostas pedagógicas ….........................................................................................145 Considerações finais ........................................................................................................... 149 Referência bibliográfica..................................................................................................... 154 Anexos ..................................................................................................................................159 12 INTRODUÇÃO A linguística, como ciência que investiga os fenômenos da linguagem, tem buscado fazer interface com áreas afins, tais como a educação, a fonoaudiologia, a psicologia e a sociologia, entre outras, abrindo um leque de possibilidades para a investigação de questões pertinentes ao sistema de comunicação humano. Dentre os campos de atuação, as patologias da linguagem têm chamado a atenção de estudiosos que se empenham em desvendar a natureza dos distúrbios da fala, bem como as implicações pedagógicas no âmbito da Linguística Aplicada. Pesquisas voltadas para déficits na oralidade e a relação com o processo de letramento trazem à tona questões relevantes, sobretudo, para professores das séries iniciais. O desafio de alfabetizar pessoas com algum tipo de desvio na fala é frequente não apenas nas salas de aula ditas especiais mas também nas regulares. Há que se considerar que transtornos fonético-fonológicos, à semelhança de variações de natureza sociolinguística, podem migrar para a lectoescrita. Esse trabalho se propõe a investigar a linguagem verbal oral de portadores de Síndrome de Down, ao mesmo tempo que se busca fazer interface com o processo de alfabetização desses indivíduos. A escolha da população ora em questão é motivada por dois fatores, basicamente. Em primeiro lugar, assume-se que problemas relativos à anatomia do aparelho fonador (uma das características da síndrome) comprometem o movimento harmonioso dos articuladores. A hipotonia orofacial na Síndrome de Down (doravante SD) é um aspecto, dentre outros, que dificulta a programação motora dos sons, levando a alterações de natureza fonética (cf. Crystal, 1993). Em segundo lugar, sabe-se que os transtornos articulatórios são agravados pelo retardo mental (cf. Pueschel, 1990), outro fator inerente à síndrome. A imaturidade neurológica, consequência do retardo mental acarreta, por exemplo, dificuldades de memorização e/ou programação motora de uma sequência sonora. 13 A partir de tais evidências, aventa-se a hipótese de que desvios fonético-fonológicos, resultantes de problemas anatômicos e neurológicos, conjuntamente, podem fornecer subsídios complexos acerca do processo de letramento. No entanto, o estudo coloca em foco que, a despeito do déficit mental, portadores de SD, ao contrário do que se supõe, conseguem ser alfabetizados. O processo, entretanto, pode demandar mais tempo quando comparado ao de seus pares com desenvolvimento típico, haja vista a defasagem da idade mental em relação à idade cronológica. Fatores como estimulação verbal, terapia fonoaudiológica e capacidade cognitiva operam em conjunto no processo de alfabetização, sendo responsáveis pelo melhor ou pior desempenho dos alfabetizandos. Com base nesses pressupostos vigoram, inevitavelmente, fenômenos de natureza idiossincrática no corpus do trabalho. Em suma, a pesquisa se propõe a revelar aspectos ainda pouco esclarecidos na literatura. Sob a ótica de cetos processos fonológicos testados, procuro traçar o percurso da de(codificação) grafofonológica de sujeitos cuja fala se apresenta, de alguma forma, alterada, não propriamente em função de variantes sociolinguísticas, mas por fatores fisiológicos (periféricos e centrais). Pretendese também abrir caminho para que trabalhos posteriores retomem a questão ora proposta replicando-a em outras populações com desenvolvimento atípico. A perspectiva norteadora do trabalho pode ser genericamente definida pelas seguintes indagações: – Que alterações fonético-fonológicas são mais recorrentes nos sujeitos de pesquisa? – Diferentes graus de imaturidade neurológica determinam diferentes graus de transtornos articulatórios? – Como o desvio do padrão articulatório repercute na apropriação da lectoescrita? – Alunos submetidos a terapias fonoaudiológicas sistemáticas atingem uma melhor performance? – Como os subsídios pedagógicos podem contribuir para minorar o problema? 14 A investigação se orienta ainda pelas seguintes hipóteses: – portadores de SD apresentam dificuldade para discriminar sons; – portadores de SD têm dificuldade para realizar foneticamente uma cadeia sonora; – vocábulos de maior extensão (polissílabos) são mais propensos à simplificação; – vocábulos de menor extensão (monossílabos e dissílabos) sofrem menos alterações fonêmicas; – há inconsistência na coarticulação de grupos consonantais; – os processos de codificação (rota fonema-grafema) e decodificação (rota grafema-fonema) ficam comprometidos na apropriação da letoescrita; Os dados são analisados à luz dos pressupostos teóricos da Fonologia de Uso (cf. Bybee, 2001), sendo as hipóteses ratificadas ou refutadas através de testes de acuidade articulatória em vocábulos polissílabos, dissílabos e monossílabos. As respectivas produções escritas são concomitantemente analisadas. O trabalho se estrutura da seguinte maneira: o capítulo 1 aborda a Síndrome de Down quanto à sua natureza clínica, focalizando, em especial, a linguagem, além dos aspectos cognitivo e psicossocial. Nesse capítulo procuro colocar em evidência que a relação cognição-linguagem numa população dita atípica envolve uma gama de variantes físicas e intelectuais As quais devem ser avaliadas holisticamente. O capítulo 2, remete aos modelos teóricos que alicerçam a pesquisa. Destaco questões relativas ao nível fonético-fonológico da linguagem, além de tecer considerações sobre a apropriação da lectoescrita. Já no capítulo 3, são apresentados a constituição da amostra e os procedimentos metodológicos adotados no tratamento dos dados. O capítulo 4 revela os principais resultados da pesquisa de campo. Finalmente, concluo tecendo comentários gerais sobre os resultados obtidos. À conclusão, seguem-se as referências bibliográficas e os anexos contendo 15 informações sobre os testes aplicados aos informantes. Acredito que o mérito desta pesquisa reside no fato de possibilitar entender como os transtornos articulatórios de etiologia orgânica (em alfabetizandos com desenvolvimento atípico) migram para a lectoescrita. É importante preencher algumas lacunas nessa área de estudo, explorando questões relevantes para o letramento de alunos com necessidades especiais. É fato que esse campo de investigação ainda está por merecer um tratamento mais abrangente e sistemático. 16 1. A RESPEITO DA SÍNDROME DE DOWN " ...sempre visando ao aprimoramento da espécie, o material genético do ser humano não pára de sofrer mutações, mesmo sob o risco de provocar anormalidades cromossômicas." (Werneck, 1993:57) Este item se divide em dois sub-itens. O primeiro versa inicialmente sobre o panorama clínico da síndrome para em seguida abordar os aspectos relativos à linguagem dos sujeitos pesquisados, em especial no que tange ao nível articulatório. No sub-item 1.2 discuto algumas questões de caráter cognitivo e psicossocial da SD. 1.1 Panorama clínico e linguístico da Síndrome de Down Em 1866 John Langdon Down, médico inglês, identificou numa população com retardo mental alguns aspectos físicos que a diferenciavam de outros grupos mentalmente retardados (cf. Werneck, 1993). Um traço observado, característico das raças mongólicas, quais sejam as pálpebras inclinadas semelhantes às dos asiáticos levou a SD a ser por muitos anos denominada mongolismo. Apesar da infeliz e equivocada associação com a raça mongólica, a descrição realizada por Down foi tão precisa que, além de servir de base para estudos posteriores, é válida até hoje. Mais apropriado, porém, é caracterizar a SD pela sua característica genética descoberta na década de 50 pelo cientista francês Jerome Lejeune. A Síndrome de Down (SD) é uma alteração cromossômica de origem acidental que se caracteriza pela existência de um cromossomo excedente nas células do portador. Indivíduos 17 considerados normais têm 46 cromossomos em cada célula, agrupados em 23 pares, ao passo que o portador de SD apresenta 47, estando o cromossomo extra localizado no par 21; daí a SD ser igualmente conhecida como trissomia do par 21 (cf. Pueschel, 1990). O excesso de material genético resultante da anomalia cromossômica está vinculado a vários distúrbios, entre eles, a hipotonia (flacidez) muscular, más formações congênitas e, principalmente, o retardo mental que, paralelamente à linguagem, constitui o foco de análise desse trabalho. De acordo com dados estatísticos, a Síndrome de Down é uma das mais frequentes, sendo sua incidência de 1:600 nascidos vivos, em torno de 8000 casos anualmente (cf. Ramirez t al, 2007). A causa do acidente genético não é conhecida. Do contrário, geneticistas já poderiam estar trabalhando para que um número cada vez menor de crianças nascesse com a anomalia. Alguns estudos, contudo, apontam que a idade dos pais tem relação direta com a maior probabilidade de nascimentos de bebês com SD (cf. Frota-Pessoa, 1983). Com relação à idade da mulher, especificamente, pesquisas sugerem que, após os 35 anos, há um aumento na frequência de óvulos portadores de anomalias cromossômicas. Já com relação ao homem, são encontradas mutações nas células germinais dos testículos no decorrer dos anos. É importante ressaltar, porém, que, independentemente da idade, qualquer casal tem aproximadamente 3% de chance de conceber uma criança com um tipo de anomalia (cf. Frota-Pessoa, 1983). A seguir, apresento uma tabela da frequência aproximada de nascimentos de bebês portadores de SD, tendo em vista a idade materna. Observe-se que, mesmo que a gestação ocorra numa idade mais avançada, o risco da SD é irrelevante se comparado à probabilidade de se conceber uma criança dita normal. 18 Tabela I – Percentual de nascimentos de portadores de SD Idade materna Percentual de nascimentos de bebês com SD Menos de 35 anos 0,1% De 35 a 39 anos 0,4% De 40 a 44 anos 1,5% De 45 a 49 anos 3,5% Com relação à linguagem na SD, como enfatizado anteriormente, sabe-se que o comprometimento do Aparelho Fonador, associado ao funcionamento deficiente do Sistema Nervoso Central (SNC), retardam sua aquisição. Segundo Scliar-Cabral (2003:25-27), “dentre as várias funções para as quais o SNC é programado, sobressai a capacidade de operar com signos, principalmente os signos verbais orais.” A autora afirma que a criança normal nasce programada para operar com signos verbais, no devido tempo, em virtude de como o SNC está estruturado e de como funciona. Acrescenta, ainda, que os circuitos que ligam os diversos centros do SNC não nascem prontos, mas passam por um processo conhecido por mielinização¹, para que se estabeleçam as ligações de modo adequado e no momento certo. Esses circuitos desempenham um papel fundamental no desenvolvimento da linguagem oral e escrita. …............................................ ¹ mielinização - 19 Os aspectos físico-químicos do SNC de portadores de SD, no entanto, não se enquadram nas médias gerais, haja vista as alterações na estrutura hipocampal (área responsável pela aprendizagem e memória) e no processo de mielinização neuronal, que é lento (cf. Souza, 1997). Sendo deficiente o funcionamento do SNC, a linguagem é passível de sofrer algum tipo de dano. De acordo com Crystal (1993), não é a estrutura anatômica anormal do Aparelho Fonador a principal responsável pelos distúrbios articulatórios: o autor acredita que um fator mais importante é a falta de coordenação fisiológica que pode estar imputada a causas neurológicas e que uma série de transtornos motores da fala surge como resultado de um dano no SNC e se manifesta por dificuldades neuromusculares. Para se articular bem um som, o articulador ativo deve mover-se na direção do articulador passivo a uma velocidade adequada, mantendo a forma conveniente, fazendo o contato superficial adequado e realizando a pressão exata (cf. Silva, 2002). Trata-se de um movimento harmonioso dos articuladores. Portanto, se qualquer uma das variáveis não for bem controlada, o resultado será, inevitavelmente, o desvio do padrão articulatório. Por ausência de harmonia dos articuladores ativos e passivos portadores de SD apresentam limitação para expressar todos os contrastes do sistema fonológico da língua. Há casos, por exemplo, em que oposições fonológicas deveriam ocorrer numa determinada zona de articulação, mas fundem-se resultando, por vezes, em fala ininteligível. Considerando-se os aspectos citados acima, pode-se prever que os sujeitos avaliados nesta pesquisa apresentem problemas para internalizar regras que governam a combinação de fonemas, havendo possibilidade de supressão de um grupo de sons na enunciação de um único vocábulo. Pesquisas acerca dos transtornos de natureza fonoarticulatória revelam que uma das principais características relativas a esse quadro é a perda da capacidade para discriminar sons (cf. Crystal, 1993). Assim, é previsível que a ausência de discriminação de certos sons afete o processo de 20 codificação, tendo em vista que em não se distinguindo um som do outro, o aluno terá problemas para fazer a correlação fonema/grafema. Nos casos em que o indivíduo suprime grupos de sons numa única palavra, é possível que o código ortográfico fique seriamente comprometido, pois há chance de supressão de grupos de grafemas no processo de codificação da palavra. É provável também que o portador de SD decodifique determinados grafemas a partir de fonemas não correspondentes, em função da incapacidade para articular algum som (ou grupos de sons). Dessa forma, pode-se esperar um processo análogo ao que ocorre com pessoas ditas normais que decodificam palavras de acordo com as variáveis sociolinguísticas assimiladas, por exemplo, bicicleta/bicicreta (alteração de fonema) ou ainda problema/p/ /oblema (omissão de fonema). A análise criteriosa dos dados é que apontará ou não para indícios de patologia na amostragem dos informantes. Tome-se, por exemplo, a enunciação da palavra “prato” produzida [´patu]. Como esse tipo de variação não é previsível na língua portuguesa, pode-se aventar a hipótese de que um problema de natureza orgânica seja responsável por esse resultado. Depreende-se, assim, que fatores de ordem fisiológica associados a aspectos de caráter social (falta de estimulação verbal, por exemplo) geram dificuldades crônicas no desenvolvimento da linguagem e, posteriormente, na apropriação da lectoescrita. Pesquisas revelam que o quadro evolutivo da fala na em portadores de SD é heterogêneo, considerando-se que num grupo com desenvolvimento cognitivo equivalente é possível encontrar um desempenho linguístico variável, seja no nível fonológico, sintático ou discursivo (cf. Crystal, 1993). De acordo com esses estudos, há indivíduos que falam de modo mais articulado e com mais fluência do que outros, tal como ocorre com pessoas ditas normais. Segundo Lefèvre (1981), o portador de SD começa a falar aos dois anos com um vocabulário muito reduzido e palavras mal articuladas. Aos cinco anos de idade observa-se o emprego de verbos e a formação de frases com uma média de três palavras. Dos sete aos doze anos verifica-se a construção de frases mais complexas, embora com dislalias de troca e supressão. 21 Entende-se por dislalia, nos termos de Issler (1996), o padrão articulatório da criança desviado foneticamente do padrão normalmente aceito pela comunidade linguística adulta daquela língua, persistindo além da idade esperada numa linguagem em aquisição. Com efeito, as dislalias ocorrem com frequência na SD, estando diretamente relacionadas com o comprometimento dos órgãos fonoarticulatórios (desvio de caráter estrutural). A hipotonia muscular gera desequilíbrio de forças entre os músculos orofaciais, projetando a língua para fora. Além disso, a respiração bucal incorreta provoca alterações no palato e dificulta a articulação dos sons. Assim, trocas sistemáticas de um som por outro advêm de dificuldades articulatórias. Segundo Stampe (1973:6), "apesar de a substituição fonológica ser uma operação mental, ela é claramente motivada pelo caráter físico da fala - suas propriedades neurofisiológicas, morfológicas, mecânicas e acústicas." Segundo o autor, um processo fonológico é uma operação mental que se aplica à fala para substituir, no lugar de uma classe de sons ou de uma seqüência de sons que apresentam uma dificuldade específica comum para a capacidade de fala do indivíduo, uma classe alternativa idêntica, porém desprovida da propriedade difícil. Fischer (1987) afirma haver atraso significativo na compreensão e na produção da linguagem dos indivíduos acometidos pela síndrome, mas ressalta que há uma tendência em se encontrar um nível de compreensão melhor que o de expressão. Daí a necessidade da estimulação precoce da fala. A estimulação verbal, ao ativar as células cerebrais, desenvolve o pensamento e a memória. Por sua vez, o aumento da capacidade cognitiva propicia um avanço considerável da linguagem, a começar pelo nível fonético-fonológico. Há modelos de estimulação verbal passíveis de ativar/maximizar a linguagem do portador de retardo mental. Lefèfre (1981) propõe que os primeiros contatos entre mãe e filho constituam de fato um evento comunicativo. Nesse estágio incipiente de interação, definido pela autora como "jogo verbal", a mãe deve imitar a vocalização da criança, reproduzindo os sons que ela já sabe emitir. A criança, por outro lado, tende a articular novos fonemas ao imitar a mãe. Scliar-Cabral 22 (2003), através de uma outra abordagem de interação, acredita que o simples fato de a criança ouvir narrativas ativa positivamente seus esquemas mentais favorecendo o desenvolvimento da linguagem. A relevância dos processos interacionais como propulsores do desenvolvimento linguístico (desde o nível fonológico até o pragmático) tem aberto espaço para um número superlativo de teorias. Para Marcuschi (2001:18), "a fala é adquirida em contextos informais do dia a dia e nas relações sociais dialógicas que se instauram desde o momento em que a mãe dá seu primeiro sorriso ao bebê. Mais do que uma disposição biogenética, o aprendizado e o uso de uma língua natural é uma forma de inserção social e de socialização." Através dos pressupostos comentados acima, não se nega que o comprometimento articulatório pressupõe prioritariamente uma condição orgânica. Porém, não se pode ignorar que certas variáveis psicossociais como a presença ou ausência de interação social, por exemplo, podem influenciar positiva ou negativamente o desenvolvimento do nível fonético-fonológico da linguagem sobre o qual discorro a seguir. 1.1.1 Considerações sobre o aspecto fonoarticulatório na SD Segundo Stampa (2009), após o nascimento, o bebê, com desenvolvimento típico, realiza atividades motoras concentradas na região oral, como sucção, respiração, mastigação e deglutição, que preparam a musculatura orofacial para a criança futuramente articular os sons da fala. O ato de mamar, por exemplo, envolve movimentos de sensibilização do palato, contração e relaxamento dos órgãos móveis da face, como língua, lábios, mandíbula e bochechas, conjugando equilibradamente as forças musculares dessa região. Na fase do balbucio, em não havendo problemas de ordem anatômica, os órgãos fonoarticulatórios (OFA) avançam na precisão dos movimentos, variando em ritmo e intensidade. 23 De acordo com um estudo de Hamilton (1993), portadores de SD compartilham algumas características de ordem articulatória, a saber: mais contato com a zona palatal em comparação com um indivíduo de desenvolvimento típico, oclusões mais longas, dificuldade para executar movimentos rápidos com a língua, uso limitado de coarticulação consonantal, processos fonológicos nos quais se reduz o número de contrastes sonoros, além de assimetria e variabilidade na produção de fricativas. A autora acredita que esses resultados devem-se à dificuldade de movimentação de uma língua hipotônica nas diferentes zonas palatais. Diversos fatores, entre eles, o déficit cognitivo, a perda auditiva e a fisiologia deficiente do aparelho fonador (como citado anteriormente), dificultam a percepção e produção dos sons da fala. Apesar de apresentarem um desenvolvimento pré-linguístico considerado normal (ou quase normal), portadores de SD são atrasados em relação a seus pares ditos normais no que concerne ao uso da linguagem significativa (cf. Stoel-Gammon, 2001). Diferenças na anatomia e fisiologia do aparelho fonador, mais especificamente, no sistema esquelético e muscular contribuem para esse quadro: o primeiro, caracteriza-se por ausência ou deficiência do crescimento ósseo, aliado a uma menor cavidade oral. O sistema muscular, por sua vez, pode apresentar músculos extras (por exemplo, a língua maior ou macroglossia) ou ausentes na região facial. Essas diferenças estruturais influenciam diretamente a produção de consoantes linguais, segundo estudo de Leddy (1999). Movimentos faciais hipotônicos limitam o movimento dos lábios e da língua, afetando a produção de consoantes labiais e vogais redondas. A falta de tônus também é responsável pela diminuição da velocidade da fala (cf. Vianna, 2005:114). No que tange à articulação, Hamilton (1993) destaca três tipos principais de transtornos, a saber, a disartria, a dispraxia e o atraso fonológico. A disartria, consequência da hipotonia muscular, é a dificuldade de coordenação dos movimentos articulatórios da língua e dos lábios durante a fala. Essas dificuldades articulatórias podem levar à distorção de sons (um /s/ pode ser articulado como /t/, por exemplo), à omissão, como também à dificuldade de coarticulação de 24 encontros consonantais (['buza] para ['bluza], por exemplo). A dispraxia é um déficit de programação motora, um problema de planejamento e execução de uma sequência de movimentos necessários à fala. A dificuldade articulatória aumenta na mesma proporção que a cadeia sonora. Pode resultar em tentativas inconsistentes de sons (uma palavra é sempre dita de modo diferente, por exemplo, o que contribui para a ininteligibilidade da fala) e na dificuldade de fazer uma sequência de sons consonantais e vocálicos numa palavra. A produção arrítmica de sílabas do tipo CV caracteriza uma dificuldade dispráxica. De acordo com Rodrigues (1989:157), pesquisas têm corroborado a hipótese de que na dispraxia da fala “o que está alterado é a organização temporal dos gestos articulatórios, e não o processo de seleção dos fonemas.” Uma estudo conduzido por Ziegler e Cramon (1985), comentado na obra do autor, ilustra a afirmação acima. No experimento foram utilizadas técnicas acústicas para isolar segmentos fonéticos de diferentes extensões na emissão das palavras “gatita”, “gatyta” e “gatuta”. Observou-se um atraso no início dos gestos coarticulatórios (referência a esse aspecto será feita mais adiante) do paciente com dispraxia da fala em relação aos indivíduos ditos normais. Em outras palavras, os órgãos fonoarticulatórios (OFA) do sujeito dispráxico assumem tardiamente configurações que na fala normal antecipam as vogais. Os pesquisadores acreditam que a dessincronização de 20 a 30ms, que em relação às vogais, provoca apenas um retardo de identificação, pode levar a completa distorção de consoantes, como as fricativas. Os dados levaram os autores a concluir que em pacientes dispráxicos os distúrbios articulatórios decorrem de dificuldades na programação na sequência de gestos dos OFA. Evidências experimentais como a anteriormente citada revelam, portanto, que pacientes com diagnóstico de dispraxia da fala (aspecto vigente numa parcela de portadores de SD) apresentam dificuldades no nível de programação do ato motor da fala em função de perturbações de fatores periféricos (órgãos fonoarticulatórios – OFA), ao contrário das afasias que caracterizam 25 perturbações de ordem central (Sistema Nervoso Central – SNC) e implicam déficits nos processos linguísticos. Em outras palavras, os aspectos desviantes do sistema fonêmico não estão vinculados a um prejuízo no nível fonológico (linguístico), mas “decorrem de lesões em sítios anatômicos determinados, o que implica perda de funções adquiridas como, por exemplo, dificuldades de discriminação acústica dos segmentos fonéticos ou perda da habilidade para sequenciá-los.” (cf. Rodrigues, 1989:156). O autor chama a atenção, no entanto, para o fato de a dispraxia da fala ser alvo de uma polarização teórica. De um lado, como Rodrigues (1989), os autores que defendem o papel preponderante dos aspectos práxicos na produção articulatória, distinguindo-o do sistema linguístico como um todo (distúrbios no ato motor da fala ocorrem como fenômenos distintos de prejuízos nos processos linguísticos). Por outro lado, Rodrigues (1989) mostra haver uma corrente de pesquisadores como Dunlop e Marquardt (1977) e Martin e Rigrodsky (1974) que estabelecem uma correlação positiva entre os desvios articulatórios e o fator semântico. Para esse grupo de estudiosos, o peso do fator semântico é crucial na produção fonêmica, não havendo distinção entre os atos motores da fala e outros processos linguísticos. A regularidade dos desvios do padrão articulatório é um argumento que corrobora essa posição. Rodrigues (1989) cita Klitch et al (1979) para ilustrar um experimento em que se verificou que a produção articulatória de pacientes dispráxicos apresentava erros sistemáticos, nos quais as substituições geralmente diferiam de apenas um traço distintivo do fonema alvo. Contrariando tal perspectiva, os estudiosos que defendem que as dificuldades articulatórias se devem aos fatores periféricos, afirmam que as substituições consonantais ocorrem ao acaso e não são relacionadas com o alvo fonético. Como mencionado anteriormente, a literatura atribui os transtornos de ordem articulatória na SD à associação entre imaturidade neurológica (mecanismo deficiente do SNC) e problemas estruturais no aparelho fonador (OFA), ou seja, uma conjunção, nos termos de Rodrigues (1989), de fatores centrais e periféricos. Vale enfatizar que no caso da SD cada caso é um caso. Assim, a fala 26 dispráxica pode ter etiologia central e/ou periférica. Somente uma anamnese criteriosa pode indicar de modo mais preciso a etiologia do desvio. Não se pretende nesse trabalho adotar uma ou outra vertente teórica, mas partir do pressuposto que uma grande parcela de portadores da síndrome ora investigada apresenta indícios de fala dispráxica. Partindo dessa premissa, interessa saber como a fala dispráxica se manifesta nos sujeitos de pesquisa e se a produção desviante do sistema fonêmico acarreta dificuldades de apropriação da lectoescrita. Finalmente, o atraso fonológico, outro aspecto típico dos transtornos de natureza articulatória apontado por Hamilton (1993), caracteriza-se por um desenvolvimento desordenado do uso dos sons da fala, podendo deflagrar, tal como ocorre na dispraxia, o processo de simplificação fonológica (o número de contrastes dos segmentos fonêmicos é reduzido) através da omissão de sons (por exemplo, “amática” para “matemática”). Segundo Cristal (1993), essa é uma estratégia compensatória para a dificuldade de controle articulatório, aspecto que ratifica a interface de fatores de ordem fonética e fonológica. É importante ressaltar que a simplificação é um processo fonológico natural e previsível entre mais ou menos o segundo e o quarto ano de vida da criança. No entanto, passada a fase de aquisição das primeiras palavras, a manutenção desse padrão passa a assumir uma natureza desviante. Algumas regras fonológicas descrevem os processos de simplificação utilizados por crianças em sua produção fonêmica, os quais são similarmente encontrados na fala de portadores de SD que já passaram da fase de aquisição. Entre os processos de simplificação Rodrigues (1989) destaca os que afetam a estrutura silábica (palavras são reduzidas à estrutura básica da sílaba CV) através de omissão da consoante final (flor-fo), omissão de sílaba átona (estrela-tela), redução de grupo consonantal (planta-panta), duplicação (cinto, tinto), processos assimilatórios, isto é, um som é influenciado por outro (banana-manana), e, finalmente, processos de substituição, um som é substituído pelo outro sem qualquer referência aos sons vizinhos como, por exemplo, a transformação de fricativas em oclusivas (fogo-pogo). Esses processos permitem o 27 desenvolvimento da produção fonêmica da criança, mas ao ocorrerem numa faixa etária superior àquela esperada, denotam um mecanismo fonético-fonológico aquém do desejável. Com base no fato de que a população com SD apresenta problemas relacionados à habilidade motora oral, preconiza-se o uso de técnicas que possam reforçar a musculatura orofacial melhorando, assim, a qualidade da articulação. Dentre essa técnicas, Stoel-Gammon (2001) destaca a estimulação labial através de massagens, o uso de canudos para estimular a sucção e, para crianças menores, brincadeiras como soprar um apito ou bolhas de sabão são igualmente indicadas. Estes são procedimentos simples que podem atenuar o quadro de hipotonia e hipossensibilidade dos lábios. Da mesma forma, a população aqui investigada apresenta déficits na habilidade de processamento sequencial auditivo. Preconiza-se, assim, estimular a habilidade de processamento visual através dos sinais e da leitura. Alguns estudos afirmam que o uso de sistemas visuais facilita a apropriação da linguagem oral por portadores de SD, pois propiciam ao portador converter letras e grupos de letras em sons da fala (rota grafema-fonema). A prática da leitura pode, dessa maneira, conduzir a uma linguagem mais inteligível quando comparada à fala espontânea isoladamente, visto que a informação sobre a ordem sequencial de cada som é fornecida visualmente (cf. Ellis & Young 1988). A estrutura dos órgãos fonoarticulatórios associada ao déficit de processamento auditivo dificulta o desenvolvimento fonológico na SD, mas este último também está fortemente relacionado à qualidade do contexto de apropriação da língua. Teorias neo-vygotskianas sustentam que a aquisição da linguagem é o resultado de um processo de interação social envolvendo atividades compartilhadas (cf. Bruner, 1985). À luz de tal pressuposto teórico, levanta-se uma questão importante acerca da qualidade e intensidade da interação de portadores de SD com seus pais, responsáveis, professores, enfim, pessoas com as quais estabelecem contato verbal. Pesquisas relativas à interação de portadores de SD apontam para a pobreza de estímulos 28 verbais direcionados a esses indivíduos. Um estudo comparativo entre mães de crianças com desenvolvimento típico e mães de crianças com SD mostrou que estas últimas pouco estimulam foneticamente seu filhos. De modo geral, as respostas da mãe apenas reproduzem as características prosódicas ou do segmento da vocalização da criança (cf. Velleman et al, 1989). Apesar do déficit no domínio motor dos OFA aliado à questão interacional, estudos longitudinais documentam haver similaridades entre crianças com SD e seus pares com desenvolvimento típico no período de desenvolvimento pré-linguístico (cf. Stoel-Gammon, 2001), no que tange à quantidade de vocalizações produzidas. Particularmente, na fase inicial do balbucio canônico, observam-se as mesmas características na produção de consoantes e vogais. No entanto, o início do balbucio canônico acontece por volta dos nove meses de idade em portadores de SD (dois meses após o início do balbucio em bebês com desenvolvimento típico) e se estende por um período maior. Esse fato pode estar relacionado à hipotonia e ao atraso do desenvolvimento motor. O aparecimento das primeiras palavras em crianças com desenvolvimento típico ocorre por volta do final do primeiro ano e se sobrepõe ao balbucio por um período de seis a oito meses. As características fonéticas do balbucio assumem estreita relação com o desenvolvimento da fala. Stoel-Gammon (1998) observou que as consoantes mais frequentes durante a fase do balbucio (oclusivas, nasais e glides) predominam na produção das primeiras palavras, enquanto que as menos frequentes (líquidas, fricativas e africadas) ocorrem mais tarde na fala significativa. Basicamente, essas características fonológicas da primeiras palavras são as mesmas em crianças com SD. Além dos aspectos mencionados acima, a estrutura silábica CV, que é um padrão do período do balbucio canônico, é o tipo silábico que predomina na fase das primeiras palavras. Esse fato levou a autora a inferir que tanto o balbucio quanto a fala significativa compartilham propriedades fonéticas básicas em termos de tipos de som e estrutura silábica. O estudo sugere ainda que o balbucio serve de base para a aquisição da linguagem. Assim, bebês que balbuciam mais e com 29 maior variedade de sons vocálicos e consonantais apresentam um arsenal mais complexo de “blocos” que serão usados na produção de uma variedade de palavras. Em crianças com SD o surgimento das primeiras palavras é mais tardio, apesar de exibirem um padrão normal de balbucio em relação às crianças com desenvolvimento típico. Através de um estudo longitudinal, Smith (1994) observou que, enquanto crianças com desenvolvimento típico passam da fase do balbucio para a fala significativa por volta dos catorze meses de idade, crianças com SD o fazem em torno de vinte e um meses de idade. Além disso, o vocabulário aumenta num ritmo lento para estes últimos. Através de um estudo comparativo, Buckley (2000), constatou que aos vinte e quatro meses de idade crianças com desenvolvimento típico produziam uma média de duzentas e cinquenta palavras, ao passo que crianças com SD apresentavam um repertório de apenas vinte e oito palavras. A aquisição lexical de portadores de SD mostra evidências de atraso mesmo quando comparada à aquisição lexical de crianças ditas normais que tenham a mesma idade mental das crianças com a síndrome. Stoel-Gammon (2001) observa que uma forma de atenuar esse atraso é estimular na criança a consciência do uso do som como elemento significativo na comunicação, ou seja, pais e responsáveis, primordialmente, devem assumir o propósito de aumentar o repertório sonoro e a estrutura silábica de suas crianças. Segundo a autora, isso se faz através de estratégias simples, como por exemplo, produzir respostas foneticamente contingentes às vocalizações não significativas. Assim, se uma criança produz [bo], o adulto deve repetir essa vocalização, associando-a a uma palavra foneticamente similar como “bola”. Essa estratégia faz crescer a possibilidade de [bo] ser usada como palavra significativa. De modo geral, a fonologia das primeiras palavras produzidas por crianças Down e aquelas com desenvolvimento típico compartilham alguns aspectos, entre eles, destacam-se: encontros consonantais articulados como uma única consoante, consoantes finais omitidas, fricativas e 30 africadas articuladas como oclusivas, oclusivas surdas aspiradas em posição inicial não são aspiradas, líquidas em posição inicial produzidas como glide e em posição final omitidas ou articuladas como vogal e, finalmente, obstruintes sonoras em posição final são ensurdecidas (cf. Stoel-Gammon, 2001). Os aspectos citados acima declinam gradativamente em crianças com desenvolvimento típico, ao passo que tendem a persistir em portadores de SD na adolescência e mesmo na vida adulta. Além disso, observa-se em crianças com desenvolvimento típico que a passagem do fonema incorreto para o correto se dá de forma linear através de um pequeno repertório de substituições. Já para o grupo com SD, verifica-se um repertório maior de substituições que variam de uma palavra para outra. Terapias que focam no aumento do repertório fonético reduzem sensivelmente o número de erros. Tais terapias incluem a prática da audição e produção de fonemas particulares e processos fonológicos. Essa abordagem permite à criança reestruturar seu sistema sonoro e avançar no nível sintático da linguagem. Finalmente, no que diz respeito à inteligibilidade da fala, é notório que crianças ditas normais tem sua fala considerada inteligível, em média, aos quatro anos de idade. No entanto, a fala na SD tende a se manter ininteligível ao longo dos anos em decorrência de déficits no nível fonético-fonológico da linguagem. Segundo pesquisa conduzida por Kumin (1994), o déficit nas habilidades articulatórias (provavelmente associado à produção variável de fonemas) é responsável em grande parte pela ininteligibilidade da fala. Hamilton (1993) acrescenta que a dificuldade de movimentar a língua e os lábios para articular os sons corretamente, além de déficits para selecionar, planejar e agrupar sons contribuem para uma fala ininteligível. Levando-se em conta tudo o que foi exposto até o momento, preconiza-se que terapias fonoaudiológicas sejam sistematicamente praticadas por portadores de SD. A melhora do aspecto articulatório favorece a inteligibilidade da fala com repercussões positivas também no que se refere 31 às habilidades comunicativas do indivíduo, sobretudo, ao seu engajamento social. No item que se segue teço algumas considerações de ordem cognitiva e psicossocial na SD. 1.2 O perfil do portador de Síndrome de Down: aspectos cognitivos e psicossociais Para discorrer sobre o aspectos cognitivos e psicossociais da SD, é crucial entender, antes de mais nada, o conceito de deficiência mental. A Comissão Conjunta em Aspectos Internacionais da Deficiência Mental, autorizada pela Organização Mundial de Saúde, em 1979, define a deficiência mental da seguinte maneira: A deficiência mental envolve dois componentes essenciais: primeiro, o funcionamento intelectual, que é significativamente abaixo da média; segundo, a deficiência acentuada na capacidade de se adaptar às demandas da sociedade (cf. Antunha, 1983). Estudos recentes atribuem o comprometimento intelectual na SD à redução do número e volume das células neuronais. Acredita-se que alguns genes do cromossomo extra interfiram no desenvolvimento normal do Sistema Nervoso Central (SNC) e nas funções químicas do cérebro (cf. Pueschel, 1993). A despeito do retardo, de acordo com a literatura, o amadurecimento intelectual 32 desses indivíduos passa pelas mesmas etapas de pessoas ditas normais, havendo apenas defasagem da idade mental do portador de SD em relação a seu par considerado normal de mesma idade cronológica: em outras palavras, o desenvolvimento da cognição demanda mais tempo. Além disso, o “teto” cognitivo, em geral, é mais baixo. Segundo Antunha (1983), a deficiência mental envolve uma ampla gama de fatores, não apenas de natureza biológica, mas também psicológica e social. O autor explica que a combinação das condições supracitadas é determinante para o desenvolvimento integral do portador de deficiência mental, incluindo a capacidade cognitiva e o desempenho linguístico. É importante esclarecer que as variáveis psicossociais podem atuar positivamente ou limitar a capacidade linguística e intelectual do portador de SD, tal como ocorre com uma pessoa dita normal. Considerar tais variáveis como, por exemplo, a estimulação verbal precoce e o apoio psicopedagógico, é de grande valia no sentido de estabelecer metas ou diretrizes pedagógicas para atenuar as dificuldades impostas pela genética. Em virtude da função cognitiva retardada, indivíduos com SD têm um desenvolvimento intelectual bem abaixo do que é considerado normal, o que contribui em grande escala para a lentidão dos processos adaptativos. Esse aspecto está diretamente relacionado ao cromossomo excedente que se encontra presente em todas as células, inclusive nas cerebrais. Com menos células nervosas, as funções quimioneurológicas diferem-se daquelas de um indivíduo considerado normal. É necessário deixar claro que o portador de SD não é desprovido de inteligência, mas possui capacidade cognitiva mal-estruturada. As considerações sobre a cognição, sobre as quais teço a seguir, abrangem, em linhas gerais, aspectos como a memória, o pensamento e a aprendizagem. Genericamente falando, como atesta grande parte das pesquisas, os indivíduos aqui tratados apresentam problemas relacionados ao processamento auditivo e visual (cf. Bower & Hayes, 1994). No entanto, estudos referentes ao assunto revelam que o portador de SD pode apresentar boa 33 memória desde que receba estimulação contínua e bem elaborada. Para os autores, a memória visual é mais desenvolvida que a auditiva. Esses achados implicam a combinação de recursos educacionais que possam minorar as dificuldades de processamento de memória de curto-prazo. Segundo Werneck (1993), o material a ser utilizado na estimulação da memória deve ser graduado em ordem de dificuldade e ter por finalidade facilitar o desenvolvimento de uma memória sequencial. Outra função mental, o pensamento, ou seja, aquilo a que nos referimos mentalmente é passível de sofrer defasagem entre os portadores da síndrome, ainda que uma parcela considerável dessa população consiga ultrapassar as etapas dos processos de abstração, generalização e discriminação. Com relação à abstração, pode-se dizer que, enquanto crianças normais têm facilidade para abstrair, isto é, referirem-se mentalmente às coisas, a criança Down apresenta maior dificuldade para fazê-lo: a síndrome compromete a assimilação natural dos estímulos do meio externo ao contrário do que acontece com indivíduos ditos normais. Dessa forma, pessoas acometidas pela síndrome precisam ser massivamente estimuladas. Ainda que tal função mental seja limitada geneticamente, é possível que o portador abstraia conceitos perceptivos (forma, cor, tamanho, posição etc) e os aplique numa representação simbólica (cf. Werneck, 1993). No que tange à generalização, outra etapa do pensamento que se define por uma reação diante das diferenças, observa-se haver dificuldade de processamento da informação como consequência da dispersão, característica inerente ao grupo aqui tratado. No entanto, sujeitos Down podem desempenhar essa função mental, quando são estimulados de modo adequado. Inicialmente, sugere-se um trabalho de manipulação de objetos, o contato com diferentes cores e com pessoas conhecidas. Gradativamente, passa-se para níveis mais complexos. Novamente, há que se exaltar o valor da estimulação da fala como fator de desenvolvimento cognitivo em crianças com retardo mental. Luria (1973) defende ser o desenvolvimento da linguagem crucial para a estruturação mental. Segundo o autor, a criança estimulada na fala é capaz de abstrair e generalizar. Vygotsky 34 (1987), similarmente, sustenta que a função cognitiva está vinculada ao desenvolvimento da fala. Finalmente, a discriminação, nível do pensamento complementar à generalização, se estimulada correta e massivamente, leva o portador de SD a dominar conceitos como semelhança e diferença, fazendo-o discriminar forma, cor, posição etc. Os estímulos dirigidos ao indivíduo devem demandar resposta verbal, motora e, se possível, gráfica. Com o tempo, as respostas que, de início, podem parecer “pobres” em função da limitação cognitiva, transcendem o resultado esperado. Com relação à aprendizagem, sabe-se que os portadores da síndrome têm capacidade para tal, ainda que atinjam um teto cognitivo mais baixo em relação às pessoas ditas normais (cf. Telford, 1974). O grau de retardo mental é medido de acordo com o grau de comprometimento intelectual que, por sua vez, se afere por testes de inteligência (quociente de inteligência – QI). Vale lembrar que o Q.I. não é uma função constante, mas variável. Assim, qualquer indivíduo estimulado durante um certo tempo em uma determinada área de conhecimento pode ter seu QI aumentado naquela área. Por outro lado, crianças não estimuladas tendem a ter seus índices de capacidade cognitiva limitados. A Organização Mundial de Saúde divide em quatro grupos os portadores de deficiência mental, como se segue: Tabela II – Níveis de retardamento mental Níveis de retardo mental Quociente de inteligência (QI) profundos 0-20 severos 20-35 moderados 35-50 leves 50-70 Considerando-se que o QI de uma pessoa dita normal varia de 70-130 (cf. Ferreira, 1986) e que, segundo Pueschel (1993), a maior parte de portadores de SD apresenta deficiência mental entre leve e moderada, é possível afirmar que essa população constrói conhecimento, isto é, 35 aprende, se lhes forem dadas as oportunidades de desempenho de suas habilidades. Como citado anteriormente, o portador de SD evolui em termos de desenvolvimento intelectual através dos mesmos estágios de uma pessoa dita normal, só que em ritmo mais lento e com um “teto” cognitivo mais baixo. Nesse ponto, é válido destacar o papel das instituições educacionais que se constituem como pilares de apoio ao trabalho supostamente iniciado pela família. Werneck (1993) alerta para o fato de que, independentemente da opção dos pais ou responsáveis por uma escola regular ou especial, o que realmente importa nesse contexto é o foco na educação especial. Por essa última, entende-se uma educação que atua de maneira mais direcionada e intensificada no processo de aprendizagem de indivíduos com deficiência mental e/ou física, levando-se em conta fatores que demandam atendimento específico. Esse tipo de abordagem se aplica não só às chamadas escolas especiais, mas também às regulares inclusivas. O que se coloca em pauta não é propriamente o tipo de instituição escolhida, mas o intuito de acelerar um processo educacional retardado pela deficiência. Na educação especial, é imprescindível que uma equipe multidisciplinar incluindo professores, fonoaudiólogos, médicos, psicólogos, além de outros, trabalhe em sintonia a fim de atender aos anseios da população a que se destina. O fator psicossocial é, portanto, um aspecto crucial para o desenvolvimento mental. A criança ou adolescente que apresenta uma estrutura psicológica mais estável (levando-se em conta os padrões estabelecidos) tem mais chances de se desenvolver intelectualmente. A capacidade para apreender conhecimentos depende, em muito, da estimulação recebida, da interação social e da maturação de cada um. Não se pode tratar os portadores da síndrome como um grupo homogêneo; "cada um tem seu potencial, sua afetividade, suas emoções, seus interesses em medidas diferentes, enfim, cada pessoa portadora de deficiência é uma pessoa em particular."(cf. Machado, s.d.). Segundo Frota-Pessoa (1983), a inteligência é uma variável contínua que depende também de fatores ambientais como nutrição, estímulo psicológico e apoio familiar. Faz-se conveniente, 36 portanto, uma avaliação holística do indivíduo. Nas palavras de Costa (1993:161) "precisamos nos fixar na evolução dos processos e não só nos produtos ou resultados." Em seu estudo sobre o comportamento humano Buhler (1983:121) afirma que "não há dúvida de que ambos os fatores, hereditários e ambientais, em distintas proporções, sob diversas circunstâncias, decidem a vulnerabilidade do indivíduo." Infere-se, daí, a intrínseca ligação entre fatores biológicos e ambientais na formação da personalidade. A Síndrome de Down caracteriza-se, entre outros aspectos, pelo déficit no comportamento adaptativo: o portador apresenta dificuldade para lidar com situações novas, bem como para interagir socialmente, em alguns casos. A inclusão social faz-se, assim, imprescindível para que o déficit adaptativo causado, em parte, pela anomalia cromossômica, possa ser minorado através de estímulos ambientais. O convívio social pode atenuar os efeitos do retardo mental, uma vez que o indivíduo é levado a vivenciar diferentes experiências no seu grupo social. Esses estímulos são, sem dúvida, de grande valia não apenas no que tange ao avanço cognitivo, mas também ao desempenho na sociedade, à capacidade de agir, reagir, tomar decisões. Enfim, é fundamental dar ao portador de SD a oportunidade de atuar em eventos sociais como qualquer outro indivíduo. Para Cardoso (1997:227), a integração resulta em "maior socialização e autonomia, na escola e na comunidade em geral, como também grandes progressos nas áreas intelectiva e afetivo-social." Desse modo, o ambiente propicia uma mudança positiva, ainda que sutil, no déficit de comportamento adaptativo. Em suma, dependendo da combinação de fatores cognitivos e psicossociais, os indivíduos aqui tratados conseguem se adaptar de forma razoável às demandas sociais, de modo a se tornar autossuficientes na execução de várias tarefas. A seguir, são discutidos os pressupostos teóricos deste trabalho. 37 2. MODELOS TEÓRICOS E CONCEITOS LINGUÍSTICOS “A linguagem do homem varia porque se adapta sem cessar às necessidades cambiantes da humanidade.” (Martinet, 1971:14) A linguagem, como alguns linguistas a têm considerado, é o melhor espelho da mente humana (cf. Chomsky, 1995). Enquanto instrumento de comunicação é um meio de veicular pensamentos. Através da interação, mediada pela linguagem, o indivíduo interioriza suas funções psicológicas e desenvolve sua cognição dando início ao processo que Vygotsky (1987) denominou pensamento verbalizado e fala intelectualizada. Martinet (1971:18), ao refletir sobre a definição de linguagem, admite que “são conhecidas as dificuldades contra as quais esbarram os linguistas que procuram dar um estatuto científico aos termos tradicionais.” O autor opta, então, por definir a linguagem como a faculdade que possuem os homens de se entenderem por signos vocais. A linguagem, por assim dizer, designa uma faculdade humana estabelecida por um sistema finito de princípios e regras que permite ao falante codificar o significado em sons e ao ouvinte decodificar sons em significados (cf. Stampa, 2009). Ainda segundo Martinet (1971), a linguagem humana se distingue das produções vocais dos animais pelo fato de ser articulada ou, melhor dizendo, duplamente articulada, já que os enunciados se articulam em palavras e as palavras, por sua vez, se articulam em sons. Assim, assume-se que o que distingue a comunicação linguística de produções vocais não linguísticas são unidades que, pela sua natureza vocal, se apresentam uma após a outra numa ordem estritamente linear com a função primordial de permitir ao homem se comunicar. Destaco, a seguir, o desenvolvimento da linguagem a partir da intrínseca relação das funções 38 nervosas superiores (SNC) e os mecanismos de movimentação dos órgãos fonoarticulatórios (OFA). 2.1 A segmentação dos sons da fala: o gesto articulatório. Esta seção pretende abordar brevemente a questão do gesto articulatório e seu substrato neurofisiológico, a saber, os aspectos da atividade nervosa superior e sua relação com a produção da fala. De acordo com Rodrigues (1989:15), “todos os movimentos corpóreos ocorrem a partir de comandos motores enviados pelo SNC.” O gesto articulatório é toda movimentação de órgãos fonoarticulatórios (OFA) cujo objetivo seja produzir um som modulado com ou sem significado linguístico. Estudos citados em Rodrigues (1989) sugerem, equivocadamente, segundo o autor, que cada fonema seria produzido por um único conjunto de comandos motores invariantes com o qual manteria uma relação biunívoca. Dessa forma, a um conjunto de comandos corresponderia um e somente um fonema. O comando motor seria constituído pelo conjunto de sinais neurais correlacionados à produção de um dado fonema. Nesse modelo, portanto, os comandos seriam invariantes, não dependentes do contexto no qual o fonema é produzido. O autor supracitado faz objeção à proposta anterior argumentando que o modelo teria de dar conta da grande variação alofônica constatada nos vários contextos fonéticos e nas mudanças de ritmo e entonação da fala. Aponta ainda que estudos recentes pautados em técnica eletromiográfica (EMG) têm colocado em evidência que os comandos motores que atingem os OFA para um dado fonema são dependentes do contexto fonético, do ritmo e da entonação da fala. Rodrigues (1989:1718) defende seu ponto de vista através da seguinte declaração: 39 “... a variabilidade dos sons que representam um fonema não pode ser simplesmente atribuída a limitações mecânicas ou sobreposição temporal de comandos invariantes, mas sim a comandos motores diferentes, que dependem da posição prévia dos OFA. A posição dos OFA não pode ser zerada após cada gesto, de forma que gestos articulatórios adjacentes apresentam certo grau de sobreposição espaço-temporal.” Através do argumento acima, o autor atesta que se a cada fonema num determinado contexto corresponde um comando motor diferente, o número de comandos necessários torna-se demasiadamente elevado. A título de exemplo, Rodrigues (1989) cita um experimento realizado com 44 fonemas da língua inglesa. Tais fonemas foram combinados com aproximadamente 20 fonemas que poderiam precedê-los ou segui-los, chegando-se a um número de mais ou menos 17 mil padrões motores predeterminados, sem levar em conta variações de ritmo e entonação. Assim, de acordo com a proposta de comandos invariantes (não dependentes do contexto), o SNC teria que armazenar e selecionar um número altíssimo de comandos motores predeterminados. Em oposição ao modelo de comandos pré-programados (contexto-independentes), alguns estudos sugerem que a produção de um dado fonema se dá em muitos contextos diferentes. Além disso, ao se considerar as variações de ritmo e entonação (traços supra-segmentais), acaba-se por concluir que cada emissão fonêmica é fenômeno ímpar. Por fim, Rodrigues (1989:18) faz a seguinte observação: “..., para emitir corretamente um som, o indivíduo deve colocar os OFA em posições relativamente constantes a partir de diversas posições iniciais decorrentes de diferentes contextos fonéticos, ritmos e entonações. Assim, não é razoável supor estes comportamentos motores sendo realizados a partir de um conjunto finito de comandos motores preestabelecidos.” 40 Depreende-se da afirmação acima que o mérito do modelo contexto-dependente está em dispensar um número muito extenso de informações a priori contidas no SNC. Outro fator que merece destaque, no que tange ao controle do gesto articulatório, é a informação auditiva fornecida pelos falantes de uma dada comunidade linguística. De acordo com o que postula Rodrigues (1989), o aspecto acústico é a fonte primordial de parâmetros que possibilitam a aquisição da fala pelo indivíduo. A primeira etapa para a realização de um gesto articulatório é a “captura auditiva” do som a ser reproduzido. Em seguida, passa-se à etapa do controle motor, ou seja, o falante prepara os OFA para articular o fonema-alvo. Finalmente, os OFA são projetados num movimento que leva à configuração final do trato vocal compatível com o som a ser produzido. Nesse processo, o SNC faz uso de duas formas de monitoramento, sendo a primeira, o alvo somestésico, e a segunda, o alvo acústico. Há de se considerar ainda o aspecto da coordenação dos gestos articulatórios. Fujimura (1981) sustenta que o fator tempo é intrínseco ao movimento. De acordo com a literatura, ritmos e tonicidades diferentes, ou seja, reorganizações temporais, implicam novas dinâmicas de configurações espaciais do trato vocal. Um aspecto relevante é que as limitações mecânicas dos OFA impedem que sua posição seja zerada após cada emissão (como citado anteriormente), fato que leva à sobreposição de gestos articulatórios sucessivos, isto é, à coarticulação.Rodrigues (1989) analisa esse mecanismo afirmando que de uma combinação de configurações espaciais dos OFA (contexto fonético) emerge uma organização temporal a ela intrinsecamente associada. Por fim, conclui serem a organização temporal e a organização espacial aspectos indissociáveis na coordenação dos gestos articulatórios. Assim, mudanças em uma das organizações conduzem à reorganização da outra e vice-versa. Experimentos conduzidos por Fujimura (1981) corroboram a questão discutida acima, quais sejam as transformações não lineares dos segmentos fonéticos. O autor registrou através de técnica 41 espectográfica duas sentenças praticamente homófonas, mas com diferentes estruturas frasais, sendo elas: “It was yellow ice-cream” e “It was yellow, I screamed”. As diferenças no trajeto e na velocidade dos articuladores envolvidos foram atribuídas às diferentes estruturas frasais. Esses dados conduzem à conclusão de que a concatenação de segmentos fonéticos depende de traços supra-segmentais, como ritmo e tonicidade, fornecidos por diferentes estruturas frasais (a organização da frase pode determinar comportamentos distintos nos articuladores envolvidos. Em consonância com esses preceitos, Rodrigues (1989) sustenta que o controle dos gestos articulatórios baseia-se em uma organização neural moldável, com fluxo circular das informações e que assume certo grau de indeterminismo. As características físicas e os aspectos linguísticos discutidos nesta seção constituem o domínio de duas disciplinas que, apesar de distintas (de acordo com vários modelos teóricos), interagem entre si: a Fonética e a Fonologia. 2.2 A Fonética e a Fonologia No que tange ao nível fonético-fonológico da linguagem, cabe assinalar algumas considerações a respeito dos dois campos de investigação, sublinhando, inicialmente, que, embora constituindo áreas de estudo independentes, a Fonética e a Fonologia se complementam. De acordo com Hernandorena (1999), o objeto de estudo da fonética é a realidade física dos sons produzidos pelos falantes de uma língua. Similarmente, para Rodrigues (1989:133), a fonética "trata da realização psicofísica concreta do som, de caráter particular, variável de indivíduo para indivíduo, e num mesmo indivíduo, de um ato para o outro." A Fonologia, por sua vez, admite o som como unidade mental abstrata ao tratar as funções e as relações que se estabelecem entre os sons da fala, combinando os critérios comunicativos aos 42 critérios psicofísicos da fonética. Na fala, os fonemas se manifestam como fones e estão aglutinados e integrados em uma corrente sonora contínua. Entende-se o fonema como “uma entidade abstrata que representa um grupo de sons com a mesma função na língua; manisfesta-se em realizações concretas (alófonos), não necessariamente iguais ao fonema, e são variáveis de indivíduo para indivíduo” (cf. Rodrigues, 1989:122). De acordo com essa definição de fonema, ao se pronunciar a palavra “tia”, por exemplo, o primeiro fonema pode se manifestar de duas formas diferentes (/t/ e /tʃ/). Apesar das diferentes possibilidades de manifestação trata-se de um único fonema, tendo em vista que a diferença acústico-articulatória entre /t/ e //ts/ não tem valor distintivo na língua portuguesa. Rodrigues (1989) estabelece o limite entre a Fonética e a Fonologia ao sustentar que a Fonética foca as habilidades articulatórias e perceptuais, as quais interagem com fatores relacionados à competência cognitiva, de modo a estabelecer a funcionalidade, a produção e recepção dos sons da fala no nível da Fonologia. Os modelos teóricos que se destacam nos estudos de natureza fonético-fonológica dividem-se em dois grandes grupos: modelos lineares e nãolineares. Os primeiros, também conhecidos como segmentais, analisam a fala como uma combinação linear de segmentos ou conjuntos de traços distintivos. Já os modelos não-lineares discutem a Fonologia de uma língua como uma organização em que os traços, dispostos hierarquicamente em camadas, podem estender-se aquém ou além de um segmento (cf. Hernandorena, 1999). Os modelos não lineares de análise fonológica, compreendem a Teoria Autossegmental, Teoria Métrica, Teoria Lexical, Teoria da Sílaba e Teoria Prosódica. Esses modelos têm em comum propostas teóricas que tentam dar conta das limitações do modelo de traços distintivos no tocante a muitos fenômenos fonológicos, tanto segmentais como prosódicos (cf. Hernandorena, 1999). A título de exemplo, a Fonologia Autossegmental apresenta uma proposta de segmentação independente das partes dos sons da fala. Concebe-se não haver relação de um para um entre o 43 segmento e o conjunto de traços que o caracteriza. Assim, os traços podem estender-se além ou aquém de um segmento; o apagamento de um segmento não implica necessariamente o desaparecimento de todos os traços que o compõem. Cristófaro Silva (2002:205) sumariza os princípios da Fonologia Autossegmental da seguinte maneira: – uma representação subjacente para cada forma a ser analisada; – níveis organizados hierarquicamente; princípios gerais que atuam autonomamente em cada nível e regras particulares, selecionadas e ativadas diferentemente em cada língua. De volta aos modelos lineares, a partir do Círculo de Praga, o fonema é definido como um feixe de traços distintivos, isto é, a soma das particularidades fonologicamente pertinentes que uma unidade comporta, aspecto que coloca em foco o papel funcional do elemento fônico na língua (cf. Callou & Leite, 2003). A unidade segmental, portanto, é o traço distintivo, uma característica acústico-articulatória que serve para distinguir um fonema do outro. Mais especificamente, nesse modelo de análise, os fonemas constituem-se de traços cujas características fonológicas se definem em termos binários ou valores opositivos: (+) ou (-). Assim, o fonema /b/ difere do /p/ por apenas um traço, qual seja, a sonoridade produzida pela vibração das cordas vocais. O mesmo fonema /b/ se distingue do fonema /m/ também por um único aspecto: o escape de ar pelas narinas confere ao último a natureza nasal. Em suma, considera-se o componente fonológico de cada fonema como uma sequência linear desses feixes de traços. Conceitos basilares da Fonologia Gerativa de Chomsky & Halle (1968) têm origem nos trabalhos de Jakobson, Fant & Halle (1952) e Jakobson & Halle (1956), porém com algumas alterações relativas ao sistema de traços, sendo estes orientados articulatoriamente. Segundo a perspectiva gerativa, as regras abstratas transformam uma sequência fonêmica subjacente resultando numa representação fonética ou, melhor dizendo, na forma fonética de fato enunciada. 44 Hernandorena (1999:16) observa que a modelo gerativo se diferenciou do modelo estruturalista que o antecedeu “por tornar a relação entre a representação fonológica e a produção fonética muito mais abstrata e por eliminar o nível fonêmico, que estabelece um nível separado para a relação entre fonema e suas variantes contextualmente especificadas.” Para o modelo de Chomsky e Halle (1968), o traço é a unidade mínima que tem realidade psicológica e valor operacional. Em contrapartida, o fonema era a unidade mínima de análise para o estruturalismo, cuja condição de linearidade postulava que uma sequência na representação fonêmica deveria ser a mesma da dos fones na representação fonética. É interessante, neste ponto, mencionar as ideias de Roman Jakobson no que tange à interação entre fato fonético e a regra fonológica. O linguista formulou uma teoria fonológica fazendo recair o foco sobre a capacidade cognitiva de contrastar e combinar os sons da língua. A vertente fonética (realização concreta do som por meio do gesto articulatório) fica, assim, relegada a segundo plano (cf. Rodrigues, 1989). Para Jakobson, a produção sonora das crianças durante a fase do balbucio é apenas uma manifestação de comportamentos inatos que, a exemplo de outros comportamentos, tendem a desaparecer ou serem transformados. Jackobson sustenta que o hiato que se verifica entre a fase do balbucio e o início da produção fonêmica se deve à incapacidade da criança de dar conta, cognitivamente, de suas primeiras produções sonoras. No entanto, como atesta Rodrigues (1989:136), estudos recentes realizados a partir de análise auditiva e espectrográfica da produção sonora de bebês têm colocado em xeque a supremacia da competência cognitiva (tema da Fonologia) sobre a capacidade articulatória (tema da Fonética). Os experimentos mostram que “as progressivas alterações morfológicas do trato vocal, as transformações e combinações sucessivas de comportamentos inicialmente reflexos e a experimentação voluntária de sua capacidade vocal resultam na produção sonora ampla e variada do bebê no primeiro ano de vida, quando são identificados sons vocálicos e consonantais encontrados 45 na maior parte das línguas do mundo.” Ao longo do segundo semestre de vida, a produção sonora do bebê se torna muito semelhante àquela que se verifica nas primeiras palavras das crianças, tanto em termos acústicos quanto no número de ocorrências do som. Essa característica conduz à tese de que os sons que compõem as primeiras palavras desenvolvem-se a partir daqueles verificados na fase anterior, qual seja, o período do balbucio (cf. Stoel-Gammon, 1998). Levando-se em conta esses achados, torna-se inviável dissociar os períodos do balbucio e da produção das primeiras palavras. Ao contrário, fica evidente que as complexas produções práxicas das crianças mais velhas estabelecem intrínseca relação com a atividade motora praticada e adquirida ao longo do primeiro ano de vida. Em consonância com autores como Rodrigues (1989) e Stoel-Gammon (1998), acredito que não há como desconsiderar que a capacidade articulatória estabeleça íntima relação com a competência cognitiva, responsável por situar os fonemas num sistema linguístico. A fragilidade da proposta teórica de Jacobson reside em dissociar esses dois aspectos. Inúmeros experimentos têm corroborado hipóteses de que as crianças dão evidências comportamentais de que dois fonemas diferem entre si, mesmo antes de estarem aptas a atingir o alvo fonético corretamente. Rodrigues (1989) cita como exemplo o fato de uma criança não aceitar que adultos se refiram ao objeto “prato” chamando-o de “pato”, embora a própria criança emita uma mesma produção sonora (“pato”) para designar o animal (pato) e o utensílio (prato). Em síntese, isso significa que a capacidade de realizar gestos articulatórios para atingir um alvo fonético interage continuamente com a capacidade cognitiva de criar contrastes, formulando regras fonológicas. O autor sintetiza sua teoria observando que: “...tal processo seria o resultado da interação contínua da competência fonética, dependente de fatores periféricos, como as praxias de OFA ou a capacidade perceptual auditiva e da competência fonológica, dependente de fatores centrais.” (cf. Rodrigues, 1989:139) 46 Por final, no que tange às infindáveis discussões sobre os limites de atuação da Fonética e da Fonologia, Martinet (1971:36) defende que "se uma distinção deve ser mantida entre as duas disciplinas, dir-se-á que a Fonética estuda os sons da linguagem sem se preocupar com a língua à qual pertencem enquanto que a Fonologia os considera em função dessa língua." Apesar de constituírem áreas de investigação independentes, a Fonética e a Fonologia se complementam, pois uma fornece subsídios para a outra. A Fonética provê algumas das explicações para os padrões sonoros descobertos por fonologistas. A Fonologia, por sua vez, ao investigar o comportamento dos sons da fala numa língua – as mudanças sonoras, os modelos de sequências sonoras nas palavras e morfemas, a variação alofônica, etc – pode ajudar a Fonética a focar os fatores articulatórios, acústicos e perceptuais que constituem, fundamentalmente, a função de comunicação (cf. Ohala, 1993). Teço, a seguir, considerações sobre a Fonologia de Uso, modelo de base interacionista que utilizo nesta pesquisa. 47 2.2.1 A Fonologia de Uso: abordagem estocástica do conhecimento linguístico A Fonologia de Uso, cujos princípios têm origem no Conexionismo¹, oferece uma proposta alternativa aos modelos tradicionais da ciência cognitiva. Discorro, inicialmente, sobre o paradigma tradicional (aqui representado pelo modelo formalista de Chomsky), estabelecendo um paralelo entre as visões da fonologia clássica e da proposta teórica da Fonologia de Uso. A partir da comparação entre os dois pressupostos teóricos discuto a viabilidade desta última para a análise dos dados. De acordo com a fonologia clássica, a linguagem é entendida como um domínio que comporta um léxico (informações fonéticas, semânticas e sintáticas) composto de traços semanticamente interpretáveis e um sistema computacional que opera sobre os traços fonológicosemânticos do léxico, a fim de gerar expressões linguísticas passíveis de articulação em som de fala e de interpretação semântica. Chomsky (1995) discute esse mecanismo através do que denominou condições de legibilidade. Admite-se haver um sistema linguístico (sistema de competência) que interage com um sistema não linguístico (sistema de desempenho). Nesse modelo as expressões linguísticas são o produto da representação de propriedades fonéticas dos traços fonológicos de elementos do léxico (combinados sintaticamente) somado à representação das propriedades de tais elementos. ------------------------------------¹ Connectionism: theories of the mind based on the interaction of large numbers of simple neuron-like processing units. what connectionist models seek to do is describe cognitive processing in computational terms, that is, in terms of data structures and the processes that operate on them, yielding outputs given inputs. With respect to the study of linguistic behavior, computational approaches differ from most generative models in not making a fundamental distinction between competence and performance (Gasser, 1990) 48 As representações funcionam como interfaces de som e significado (sistema de competência) com os sistemas articulatório-perceptual e conceptual-intencional (sistema de desempenho). O sistema articulatório-perceptual interage com o nível conhecido como forma fonológica, enquanto que o sistema conceptual “lê” (interage com) o nível conhecido como forma lógica. A informação na interface fonética serve, pois, de instrução para a produção de enunciados verbais. Já a informação na interface semântica é compartilhada por domínios conceptuais e intencionais. A sintaxe é, assim, um sistema computacional, isto é, um conjunto de operações que incide sobre o léxico gerando representações de som e significado. Tal pressuposto teórico entende que as representações linguísticas são categóricas e compartilhadas pelos falantes de uma dada língua. Portanto, segundo o modelo idealizado em “The sound pattern of English” (cf. Chomsky e Halle, 1968), à fonética resta apenas executar mecanicamente os sons representados pelo módulo fonológico. Gomes (2006:79) chama a atenção para o fato que, de acordo com tal proposta, “a distância entre representação abstrata e realização fonética é mapeada por regras ou restrições.” Por outro lado, para a Fonologia de Uso “as regras dos modelos tradicionais são substituídas por esquemas que se constituem em padrões organizacionais do léxico e não têm existência independente das unidades lexicais das quais emergem.” Cristófaro-Silva (2002) observa que, de acordo com os modelos clássicos, o mapeamento lingüístico é que relaciona a variabilidade atestada nas línguas naturais com as formas abstratas da Gramática. Desse modo, fica a cargo do linguista buscar explicações para a faceta concreta e variável da linguagem em oposição às abstrações que os falantes formulam sobre suas línguas. O argumento da autora suscita a reflexão quanto à fragilidade da fonologia formalista face aos pressupostos da abordagem probabilística. Port e Leary (2005) igualmente criticam o paradigma gerativista segundo o qual os segmentos fonéticos são símbolos que caracterizam a língua como um sistema formal discreto, ou 49 seja, uma forma está ou não em consonância com a configuração da regra. Essa tendência, segundo os autores, levou a fonologia gerativa a postular um espaço fonético fechado, contendo apenas objetos simbólicos estáticos. Os autores discutem que décadas de pesquisa têm levantado fortes argumentos contra a fonologia formal, deixando evidente que não há um inventário universal de segmentos fonéticos. Em consonância com os preceitos defendidos pelos autores acima, opto por analisar os dados segundo os pressupostos teóricos da Fonologia de Uso por acreditar que um modelo de natureza dinâmica, ao contrário dos modelos fonológicos de natureza estática, como o de traços distintivos, pode melhor dar conta dos fenômenos linguísticos que discuto na pesquisa. Os estudos de casos elencados no trabalho fornecem subsídios empíricos para os modelos ora propostos. A Fonologia de Uso (cf. Bybee, 2001), assim como a Fonologia Probabilística (cf. Pierrehumbert, 2003) e a Teoria de Exemplares (cf.Johnson, 1997) são modelos que se contrapõem à propostas tradicionais por entenderem que as representações linguísticas têm caráter gradiente e contínuo, em oposição à concepção de unidades discretas e categóricas postuladas nos modelos tradicionais. Essa proposta alternativa de estruturação do léxico origina-se da Teoria de Exemplares (cf. Pierrehumbert, 2001), cujos pressupostos teóricos tiveram, de início, aplicação na Psicologia em estudos de percepção e categorização. Johnson (1997), posteriormente, aplica o modelo de exemplares, que incorpora detalhe fonético à representação fonológica, ao estudo dos sons da fala. De acordo com tal concepção teórica, as categorias são representadas na memória por nuvens de exemplares (tokens) que se organizam num mapa cognitivo. Em outras palavras, pode-se dizer que nuvens de categorias semelhantes estão próximas entre si, ao passo que nuvens de memorizações diferentes distam entre si (cf. Gomes, 2006). Quando um item novo é encontrado, é classificado de acordo com suas semelhanças para com os exemplares armazenados, a partir de generalizações feitas pela experiência perceptiva do falante. A percepção que codifica o novo item o localiza no espaço fonético paramétrico pertinente. Assim, a gramática fonológica é abstraída das formas das 50 palavras estocadas no léxico. À luz dos Modelos Baseados no Uso, o papel da memória na estocagem e gerenciamento de informações é imprescindível na representação linguística, uma vez que se avalia a forma como o falante categoriza e armazena palavras em seu léxico mental. A experiência afeta a representação na memória: palavras mais frequentes têm representação mais robusta, sendo mais facilmente acessadas do que as menos frequentes (referência ao papel da frequência será feita adiante). Bybee (2001) admite que a palavra é o elemento básico da representação mental, já que, ao contrário do morfema, tem autonomia cognitiva. A relação morfológica emerge das similaridades semânticas e fonéticas entre os itens lexicais, portanto, a categorização se estabelece a partir da relação entre conteúdo sonoro e semântico. Em consonância com esse preceito, não há separação entre léxico e fonologia, tampouco entre fonologia e fonética (os níveis fonético e fonológico são analisados conjuntamente). Ao contrário do que postula a fonologia clássica, para a Fonologia de Uso, o detalhamento fonético é um fator relevante na categorização e estocagem de unidades lexicais. A organização fonológica e entendida como um nível emergente das formas fonéticas dos itens lexicais. Para Pierrehumbert (2001:143), “O modelo de exemplares presta-se a formalizar o conhecimento fonético detalhado que falantes nativos têm a respeito das categorias de sua língua.” A autora sublinhaa que a aquisição do conhecimento fonético implícito do falante pode ser compreendido em termos da aquisição de um vasto número de traços de memória de experiências. Cada palavra é codificada na memória que localiza as representações paramétricas detalhadas daquilo que e ouvido e dos padrões articulatórios experimentados em itens específicos do item lexical em questão. Sumarizando tal preceito, Cristófaro Silva (2002:224) explica que na Fonologia de Uso: “O foco de atenção é de como as representações fonológicas são mapeadas a partir do uso da linguagem, e da relação entre a produção e a percepção 51 na organização do sistema sonoro. O termo representações mentais é utilizado neste modelo para expressar os esquemas de generalizações depreendidos a partir do uso.” Assim, o conhecimento linguístico, à luz dessa teoria, é organizado em redes de conexões lexicais, isto é, a partir de representações múltiplas alinhavadas em redes interconectadas em diferentes níveis, a saber, o segmental, o silábico, o morfológico, o sintático e o discursivo. Em outras palavras, os itens lexicais formam esquemas de interconexões a partir de traços compartilhados (cf. Bybee, 2001). Desse modo, pode-se dizer que uma palavra é mais ou menos prototípica dentro do esquema ao se levar em conta sua frequência de ocorrência. Similarmente, a força de um esquema está relacionada à frequência de um padrão estrutural. Portanto, o papel da frequência é primordial na implementação de mudanças sonoras e na configuração do componente fonológico, enfim, na estruturação do léxico. O papel da frequência da palavra no dicionário mental teve origem na teoria da Difusão Lexical (cf. Wang, 1969), voltando a ser amplamente investigada pela Fonologia de Uso. Concebese dois níveis de frequência: frequência de tipo e frequência de ocorrência. A primeira (type frequency) diz respeito à frequência com que um padrão (estrutura) ocorre no léxico, isto é, à recorrência de estruturas abstratas. O plural em -s, por exemplo, é um padrão mais frequente que -es na língua portuguesa, como exemplifica Huback (2001). Quanto maior a frequência de tipo, maiores as chances de seu uso ocorrer em novos itens. A frequência de ocorrência (token frequency), por sua vez, como a própria designação sugere, é a frequência com que uma unidade lexical ocorre num corpus. Assim, se um falante opta sistematicamente por enunciar uma palavra em particular, em detrimento de outra, pode-se dizer que a palavra escolhida por esse falante tem alta frequência de ocorrência. As mudanças foneticamente motivadas afetam palavras mais frequentes (alta frequência 52 de token). As palavras mais usadas são, dessa maneira, mais fortes, isto é, apresentam maior robustez no armazenamento, preservando sua forma fonética, ao passo que mudanças sem motivação fonética afetam palavras menos frequentes, estando a frequência de tipo em competição (cf. Bybee, 2001). Como previamente mencionado, cada item lexical é codificado na memória que localiza as representações paramétricas detalhadas do que é ouvido, assim como padrões articulatórios experimentados em itens específicos das palavras. Portanto, a frequência de ocorrência de um item lexical, assim como a frequência de tipo afetam a representação, a produção e a percepção. Através dos princípios basilares da proposta teórica ora discutida admite-se o caráter inerentemente social da linguagem. De acordo com Crsitófaro Silva (2002:225-6), “...os padrões atestados nas línguas naturais são compreendidos como emergentes que se relacionam com capacidades cognitivas mais gerais – a capacidade de articular, perceber, armazenar e analisar o material linguístico – e estão diretamente relacionados à experiência linguística do falante.” Em outras palavras, a forma como falantes nativos categorizam e estocam as mais diferentes unidades lexicais em seu dicionário mental é gerenciada pelo uso da língua em eventos experienciados por esses falantes. Bybee (2001) sustenta que o léxico mental está em constante processo de adaptação e mudança, já que aspectos como variação linguística, frequência de uso das unidades lexicais, memória fonética, entre outros, interagem sistematicamente. Tal proposta incorpora a dimensão social que tem sido focada em diversos estudos. Para Vihman e Kunnari (2006), o desenvolvimento fonológico é gradual e dependente do desenvolvimento das habilidades articulatórias, isto é, do domínio dos gestos articulatórios necessários para produzir os sons da língua nativa do falante, além da sua intenção comunicativa. Em suma, o conhecimento implícito de detalhes quantitativos da pronúncia faz parte da competência e se desenvolve a partir de uma predisposição inata de observar a fala. Cristófaro Silva (2002:3) sintetiza essa visão ao declarar que a Gramática é dinâmica e 53 plástica. Portanto, falantes diferentes têm Gramáticas diferentes. A autora explica que “o que conjuga o conhecimento linguístico dos falantes são as generalizações inferidas pela grande quantidade de experiencias similares.” Resumidamente, a Fonologia de Uso (cf. Bybee, 2001), apoiada nos princípios gerais que regem os modelos multi-representacionais, postula o seguinte: – o conhecimento lingüístico é baseado em uso (experiência), isto é a frequência com que as palavras são usadas e a frequência com que os padrões estruturais ocorrem na língua afetam a representação mental; – – as palavras se organizam no léxico em função de similaridades fonéticas e semânticas; as sequências fonológicas são introjetadas pelo falante como partes de palavras e não como independente delas; – representações lingüísticas contêm informações redundantes que contribuem no processo de categorização de unidades graduais. Através dos aspectos relacionados acima, depreende-se que o mérito da fundamentação teórica dos Modelos Baseados no Uso reside na possibilidade de se avaliar a implementação de um fenômeno linguístico, levando-se em conta sua natureza gradiente (e nunca categórica) nos níveis articulatório e lexical. Considerando-se que portadores de SD, assim como indivíduos com desenvolvimento típico, apresentam experiências linguísticas diversas, cada qual com sua Gramática individual em permanente processo de mudança, creio que o corpus desta pesquisa ofereça evidências que corroborem a proposta teórica ora discutida. Enfim, concebe-se neste trabalho que o caráter dinâmico do léxico independe dos distúrbios de natureza física e mental característicos da população com SD. 54 A seguir, faço breve revisão sobre os modelos teóricos que discutem o processo de alfabetização, tendo em vista que este estudo pretende comparar dados de oralidade e escrita. 2.3 Considerações sobre a apropriação da lectoescrita A leitura, como postulada por alguns autores, é a espinha dorsal para a integração numa sociedade letrada (Scliar-Cabral, 2003). Segundo declara Lopes (2006:15), “...vivemos numa sociedade em que a escrita penetrou com muito vigor e se estabeleceu como um recurso que permeia uma parte considerável das interações sociais.” Tais pressupostos convergem para a tese de que os indivíduos estão inevitavelmente expostos às mais diversificadas práticas que se processam por intermédio de textos. A apropriação da leitura e da escrita, de acordo com Mollica (2005), envolve etapas graduais e contínuas que implicam o aprendizado de inúmeras estratégias cognitivas numa língua em particular. Para Stampa (2009), não sendo a escrita uma representação linear da fala, o sistema torna-se bastante complexo para a criança dominar. As dificuldades com o princípio alfabético, segundo a autora, estão relacionadas aos mecanismos para se lidar com os sons da fala: se a criança tem dificuldade para identificar os componentes sonoros das palavras, enfrentará, inevitavelmente, problemas para estabelecer a relação som-letra. Fisiologicamente falando, a escrita é um processo que envolve diferentes áreas cerebrais. A autora anteriormente citada explica que, à medida em que os neurônios frontais “aprendem a escrever” as letras, a grafia das palavras passa a ser organizada pelos neurônios parietais de memorização visual dessas palavras e de controle visual de movimentação da mão. Esse fenômeno ocorre através da potenciação das conexões entre todas essas células. Scliar-Cabral (2002b), acredita que os processos de produção (escrita) são de natureza mais complicada que os envolvidos nos de recepção (leitura): aprender a escrever é posterior e encerra maior complexidade do que o de 55 aprender a ler. Em função dos fatores mencionados acima, a fase incipiente da lectoescrita tem se mostrado um campo fecundo de investigação. Diferentes concepções teóricas têm buscado explicar o ato de ler e escrever. De acordo com a visão estruturalista, por exemplo, sendo a linguagem concebida como um sistema passível de ser fragmentado em partes menores, não se leva em consideração como ocorre a inter-relação dos constituintes na comunicação oral (cf. Aquino, 2011). A leitura é entendida como um processo de decodificação de letras em sons: o foco se estabelece na relação fonema-grafema (capacidade de decifrar o código escrito e captar seu significado). Considera-se, dessa maneira, o significado como diretamente dependente da forma e, portanto, erros no processo de decodificação podem interferir na compreensão e fluência da leitura. Na direção contrária à proposta estruturalista, surge o interesse pelos processos psicolinguísticos que embasam o desenvolvimento da lectoescritura. Os estudiosos que se alinham com os pressupostos da visão psicolinguística entendem haver estágios cognitivos subjacentes às habilidades de ler e escrever. Tais habilidades são complexas e envolvem múltiplos processos interdependentes (cf. Kato, 1995), entre os quais, a decodificação, a busca de informações, a reconstrução de sentido, a compreensão. Segundo Marec-Breton e Gombert (2004: 107) “a leitura é uma atividade complexa de tratamento de informações gráficas, a fim de delas extrair significação.” Sob esse ângulo, o leitor não apenas decodifica, mas dialoga com o texto. No que tange ao processamento da leitura, há duas posições intrinsecamente relacionadas às concepções discutidas acima: uma hipótese ascendente (bottom-up), de um lado, defende um processo indutivo, linear, em que o significado do que está escrito é definido pela análise e síntese dos significados das partes. Na direção oposta, o processamento descendente (top-down) da leitura, dedutivo, não-linear, parte da macro para a microestrutura, do significado para a forma, portanto, dependente do conhecimento de mundo (background) do leitor. Vale sublinhar que leitores ditos 56 típicos ou atípicos (como no caso de portadores de SD) projetam no texto diferentes conhecimentos de mundo. Segundo Kato (1995), a possibilidade de leitura descendente está ligada à familiaridade da palavra no léxico mental. Os posicionamentos são radicais no que concerne a um ou a outro tipo de processamento. No entanto, estudos mais recentes tendem a assumir uma postura mais flexível ao defender que os dois processos atuam em conjunto para garantir a rapidez e a precisão do ato de ler. Segundo Kato (1995), por exemplo, o leitor maduro se utiliza das duas formas de processamento de modo complementar. Essa concepção bilateral da leitura se fortaleceu, em parte, por uma linha de discussão que coloca em foco a necessidade do controle consciente dos processos linguísticos na apropriação da lectoescrita: a consciência fonológica (cf. seção 2.3.2). À luz de tal perspectiva teórica, concebe-se a leitura como um processo envolvendo duas atividades cognitivas interdependentes: a decodificação e a compreensão (habilidade de interpretação). A decodificação necessariamente interfere no processo de compreensão. A leitura em voz alta, de modo particular, é um procedimento que permite ao professor identificar no alfabetizando dificuldades em ambos os níveis. De acordo com a psicologia cognitiva, em se tratando de compreensão, a memória novamente assume um papel de relevância, já que dela se evoca o conhecimento adquirido e estocado, fato que, linguisticamente falando, remete aos preceitos da Fonologia de Uso (cf. seção2.2.1). Fala-se em dois tipos de memória: a de curto e a de longo prazo. A primeira armazena temporariamente a informação codificada. Uma vez codificada, a informação é estocada na memória de longo prazo. No decorrer da leitura, o leitor acessa a memória de longo prazo, trazendo para a memória de curto prazo informações pertinentes para construir significado no texto (cf. Aquino, 2011). Essas diferentes visões remetem ao embate teórico-metodológico entre os dois métodos mais 57 comumente utilizados: os métodos sintéticos e os métodos analíticos. Os primeiros, partem das unidades menores da palavra, focando a relação som-letra. Os métodos analíticos seguem na direção oposta, tendo como foco as unidades maiores, as palavras. Os defensores do método sintético julgam que, inicialmente, a leitura e a escrita constituem um ato mecânico: a criança adquire uma técnica para decifrar o texto, ou seja, ler significa decodificar o que está escrito em som. Somente após essa etapa mecânica de correspondência fonema-grafema é que se chega à compreensão do texto. Tal método se alinha com a concepção estruturalista de leitura. Os adeptos do método analítico, ao contrário, entendem a leitura como um ato global: a palavra é reconhecida como um todo. Em se tratando de uma tarefa basicamente visual (a criança faz o reconhecimento gráfico da palavra), essa abordagem não leva em conta as dificuldades auditivas que a criança possa vir a ter. Apresenta-se à criança um vocabulário significativo para depois se focar a análise das unidades que compõem a palavra. Carvalho (2005) observa que os métodos analíticos ou globais fundamentaram-se na psicologia da Gestalt para gerar inovações na prática educacional. Tais métodos preconizam que a criança seja exposta a histórias, poesias, parlendas e canções que explorem a compreensão do significado já na etapa inicial da alfabetização para, posteriormente, se alcançar o nível de decodificação do texto. Kato (1986:19), de modo similar, acredita que “a capacidade de simbolização do homem começa por uma representação de primeira ordem, isto é, figuras representando coisas, para só mais tarde atingir uma etapa em que representa a fala, já em uma simbolização de segunda ordem. No trajeto entre a primeira fase até a escrita alfabética, o homem vai tomando consciência das várias unidades linguísticas: palavras, sílabas e sons.” Tais considerações trazem à tona a discussão sobre dois termos intimamente relacionados à apropriação da lectoescrita: alfabetização e letramento. Apesar dos dois termos designarem fenômenos específicos do processo de ler e escrever, Soares (2003) chama atenção para o fato de que, no Brasil, eles se mesclam sendo muitas vezes mencionados, equivocadamente, como 58 sinônimos. Por alfabetização se entende as etapas pelas quais a criança (ou o adulto) passa para adquirir o sistema convencional de uma escrita alfabética e ortográfica, ou seja, aprender a fazer a decodificação grafo-fonêmica. A alfabetização implica, portanto, o conhecimento estrito do código linguístico. O letramento, por sua vez, é um termo utilizado para designar o uso social da escrita. Sob tal perspectiva, não se assume a escrita como uma tecnologia neutra, mas fundamentada em um conjunto de práticas sociais culturalmente constituídas e socialmente situadas (cf. Lopes, 2006). Tão importante quanto se apropriar da tecnologia da decodificação grafo-fonológica é se engajar em práticas sociais por meio da escrita, em se tratando de uma cultura grafocêntrica. Ao discutir sobre a dicotomia alfabetização-letramento, Kleiman (1995:81) define letramento como “um conjunto de práticas sociais que usam a escrita enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos.” A autora ressalta, no entanto, que “a escola, a mais importante das agências de letramento, preocupa-se, não com o letramento, prática social, mas com apenas um tipo de letramento, a alfabetização, o processo de aquisição de códigos (alfabético, numérico).” Desse modo, outras orientações de letramento tendem a ficar a cargo de instituições como a família ou o meio profissional, por exemplo. Essa nova terminologia (letramento), que veio se agregar ao conceito de alfabetização, projeta-se a partir da observação, nos países desenvolvidos, de que a população, embora alfabetizada (capacitada a codificar e decodificar), não domina as habilidades de leitura e escrita para a participação efetiva em práticas sociais e profissionais. O termo Letramento surge, então, com a proposta da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) de ampliar o termo em inglês literate (alfabetizado) para functionally literate (funcionalmente alfabetizado). Com essa nova terminologia, a língua escrita é avaliada holisticamente, isto é, não se mede apenas a capacidade de ler e escrever do indivíduo, mas também 59 sua competência para fazer uso social da lectoescrita. Em seu livro, Psicogênese da Língua Escrita, publicado em 1979, Emília Ferreiro e Ana Teberosky, através de uma perspectiva psicolinguística, alinham-se com a perspectiva de letramento social (antes mesmo de o termo ter sido incorporado ao meio educacional), ao discutirem que a aprendizagem da leitura é anterior à educação formal que a criança recebe na escola. Apoiadas na concepção teórica piagetina do desenvolvimento, as autoras postulam que o processo de alfabetização implica a interação do sujeito com o meio, nesse caso, o envolvimento da criança com as práticas sociais de leitura e escrita. Descartam as autoras qualquer tipo de proposta didática que não esteja vinculada ao uso social da palavra. À luz do paradigma Construtivista, não há razão para o estudo sistemático da correspondência som-letra, já que este seria consequência da evolução conceitual da criança face à aprendizagem reflexiva da lectoescritura. Com a proposta psicogenética de Ferreiro e Teberosky (1979), a questão metodológica perdeu foco. Observa-se na década de 80 uma mudança de visão de psicólogos e linguistas, no que concerne ao papel da criança no processo de ler e escrever. Tal concepção teórica não propõe um método, mas uma teoria sobre como as crianças aprendem, isto é, como constroem conhecimento. Antes concebida como um ser passivo que apenas imita o adulto, agora assume-se a criança como um sujeito cognoscente que, a partir de um vocabulário estável, formula hipóteses, seleciona informações, busca regularidades e coerência na sua língua, enfim, constrói conhecimento linguístico a partir da interação com o meio social. Assim, o que, a princípio se entende como erro, pode ser um indicador de apropriação de uma regra do idioma. Ao falar, “eu fazi” (fase de regularização paradigmática), por exemplo, a criança associa um verbo irregular (“fazer”) com um verbo regular como “comer” (“eu comi”). À luz da teoria psicogenética, esses são erros construtivos que permitem ao indivíduo formular suas próprias hipóteses sobre a língua. Posteriormente, estimulado pelo meio (pais e professores, fundamentalmente) os conflitos cognitivos o levarão a assimilar e a produzir a forma gramaticalmente aceita (“eu fiz”). 60 De acordo com tal paradigma, o alfabetizando percorre um longo caminho explorando as várias hipóteses do processo de codificação. O percurso envolve conflitos cognitivos entre a concepção original de escrita vivenciada pela criança e a escrita convencional. No decorrer dessa evolução intelectual, a grafia das palavras passa de mera reprodução do que outra pessoa escreveu para uma escrita espontânea na qual se verifica não apenas a capacidade da criança para desenhar letras, mas, sobretudo, para compreender seu objeto de conhecimento de modo a atingir um nível de conceitualização (cf. Ferreiro e Teberosky,1999). Como defendem as autoras, os estágios da escrita são os que se seguem: – Escrita pictográfica: o desenho do objeto representa a palavra que se quer enunciar; – Escrita ideográfica: um sinal representa uma palavra ou conceito; – Escrita logográfica: o desenho representa o nome do objeto e não o objeto em si. Se, por um lado, o paradigma psicogenético se caracterizou como uma corrente teórica instigante e geradora de mudanças pedagógicas no campo da alfabetização, por outro lado, foi alvo de inúmeras críticas que imprimem argumentos relevantes e dignos de reflexão. Em primeiro lugar, discutem alguns estudiosos da área que, com o advento do modelo construtivista, a ortografia passou a ocupar um lugar secundário na alfabetização. Para Cagliari (2002) esse aspecto revela um retrocesso na educação. O autor argumenta que uma questão séria como a ortografia deixou de ser um dos centros de atenção do processo de alfabetização para se tornar uma “hipótese na cabeça dos alunos.” Os professores, por sua vez, encontraram-se diante do dilema: é erro ou hipótese? Alinho-me com Cagliari (2002:12) em sua tese de que “a ortografia deve ser preservada, pois é a grande ideia subjacente a qualquer sistema de escrita.” O autor defende que a importância da ortografia está em neutralizar parte do universo variável da língua. “Se não fosse a força conservadora da ortografia, as palavras seriam escritas de muitas maneiras, dificultando a leitura nos diversos dialetos.” Em consonância com tal visão, Oliveira (2005:4) propõe que “o grau de 61 correção ortográfica deve ser graduado ao longo dos primeiros anos de escolaridade. Na língua portuguesa, a maioria das convenções ortográficas é muito regular e pode ser aprendida ao final do processo de alfabetização.” De acordo com o autor, aprender a ler e a escrever envolve três níveis de competência, como se observa pela tabela a seguir: Tabela III – Níveis de competência da lectoescrita Competências de Leitura Competências de Escrita 1 Decodificar, isto é, produzir o som da palavra indicado pelas letras 2 Identificar automaticamente a palavra 3 Ler com fluência Caligrafia: escrever de forma legível e com fluência Ortografia: escrever respeitando regras ortográficas Sintaxe: escrever frases com sentido e ordenação adequada Níveis de desenvolvimento do processo de alfabetização Oliveira (2005:4) acrescenta ainda que “ensinar essas competências em níveis progressivamente mais elaborados constitui o cerne do programa de ensino e do processo de alfabetização de praticamente todos os países do mundo que possuem um sistema alfabético de escrita.” Soares (2003:8), similarmente, assinala que, apesar da inegável contribuição do Construtivismo para a compreensão da trajetória da criança em direção à descoberta do sistema alfabético, essa mudança paradigmática gerou alguns equívocos no campo da alfabetização. A autora faz duas observações importantes: 62 “Em primeiro lugar, dirigindo-se o foco para o processo de construção do sistema de escrita pela criança, passou-se a subestimar a natureza do objeto de conhecimento em construção, que é, fundamentalmente, um objeto lingüístico constituído, quer se considere o sistema alfabético quer o sistema ortográfico, de relações convencionais e freqüentemente arbitrárias entre fonemas e grafemas. Em outras palavras, privilegiando a faceta psicológica da alfabetização, obscureceu-se sua faceta lingüística – fonética e fonológica. Em segundo lugar, derivou-se da concepção construtivista da alfabetização uma falsa inferência, a de que seria incompatível com o paradigma conceitual psicogenético a proposta de métodos de alfabetização.” Se o paradigma construtivista concebe a apropriação da leitura e da escrita tão somente como um fenômeno decorrente da interação do sujeito cognoscente com seu objeto de conhecimento, nesse caso, o material escrito que circula nas práticas sociais, a faceta linguística da alfabetização (relação fonema-grafema) perde sua especificidade. Esse aspecto, como se nota, faz interseção com o uso dos dos termos alfabetização e letramento. Soares (2003) observa que ambos são processos diferentes, mas interdependentes. Um não antecede o outro mas co-ocorrem. Em seu artigo “Letramento e alfabetização: as muitas facetas.”, a autora ressalta a importância de se focar novamente a faceta linguística (relação fonema-grafema) no processo de apropriação da língua escrita. Tal faceta foi obscurecida nos anos 70 e 80 com a difusão de propostas teóricas holísticas como o Whole Language, nos Estados Unidos, e o Construtivismo, no Brasil. O embate entre alfabetização e letramento levou, no final dos anos 90, o Ministério da Educação Nacional, na França, a publicar um documento que, apoiado em pesquisas sobre aquisição da lectoescrita, afirma a necessidade de se conhecer o código grafofônico e de se dominar os processos de codificação e decodificação, como etapas fundamentais para o acesso à língua escrita. A seguir, um segmento do documento citado em Soares (2003), em parte motivado pela constatação de dificuldades de leitura e escrita nos franceses em fase de escolarização: 63 [...] sans une instruction explicite, visant d’une part la prise de conscience du fait que la parole peut être décrite comme une séquence linéaire de phonèmes, d’autre part, que les caractères (ou groupes de caractères) alphabétiques représentent les phonèmes. (p. 93) Julgo pertinente a posição tomada por Soares (2003) no que se refere à recuperação da faceta linguística como objeto de ensino direto, explícito e sistemático no processo de aprendizagem da língua escrita. Não se pode negligenciar que os fenômenos de codificação e decodificação em línguas alfabéticas, como o Português, são facilitadores da alfabetização e, portanto, etapas fundamentais e integrantes do processo de apropriação da lectoescrita em crianças ou adultos, como também em indivíduos com desenvolvimento típico ou atípico. Para Bortoni-Ricardo (2006), por meio da decodificação fonológica, o aprendiz traduz sons em letras, quando lê, e faz o inverso quando escreve. No entanto, autora pondera que os dois processos abrangem muito mais que a compreensão do principio alfabético que estabelece a correspondência entre grafemas e fonemas. Ler e escrever são sistemas que exigem conhecimentos de natureza sintática, semântica e pragmático-discursiva, o que reforça a importância da perspectiva social do letramento. Assim, o ensino criativo da fônica deve estar firmemente enraizado numa experiência significativa de aprendizagem da leitura, através de diferentes gêneros textuais que despertem o interesse do aluno e que ilustrem palavras do seu universo cultural. A autora destaca também que a ênfase no desenvolvimento da consciência fonológica (cf. Seção 2.3.2) dos alfabetizandos permite-lhes compreender o princípio alfabético e segmentar sequências fonológicas e ortográficas, levando-os à identificação das palavras e, em consequência, à compreensão do sentido do enunciado escrito. Essas premissas estão na base de métodos de alfabetização denominadas “phonics” em inglês (em oposição ao Whole language) ou modelos fônicos em português (em oposição ao paradigma construtivista). No caso da Síndrome de Down, creio ser imprescindível que o alfabetizador focalize a 64 relação fonema-grafema, haja vista a dificuldade articulatória e o déficit auditivo por parte dessa população. A estimulação, portanto, não pode ter caráter unicamente visual (preconizada no modelo construtivista), mas igualmente articulatório e auditivo. Ressaltar o valor da relação fonemagrafema não significa obscurecer a importância do letramento (práticas sociais de leitura) que, como mencionado anteriormente, de acordo com a visão de alguns autores, ocorre simultaneamente ao processo de alfabetização. Concebe-se dessa forma que a alfabetização e o letramento são indissociáveis e interdependentes. Nas palavras de Soares (2003): a alfabetização desenvolve-se no contexto de e por meio de práticas sociais de leitura e de escrita, isto é, através de atividades de letramento, e este, por sua vez, só se pode desenvolver no contexto da e por meio da aprendizagem das relações fonema–grafema, isto é, em dependência da alfabetização. A partir desta concepção, a autora sublinha que não se pode eleger um método específico para o ensino das múltiplas facetas da alfabetização (como consciência fonológica e fonêmica, habilidades de codificação e decodificação, etc) e do letramento (como a exposição a diversos gêneros textuais, por exemplo). Os métodos nascem em função da natureza de cada faceta e das características do aprendiz. Em se tratando de alfabetizandos com necessidades especiais, como é o caso de portadores da SD, os professores, de um modo geral, podem sentir a necessidade de adaptar certos procedimentos de ensino ao perfil linguístico, social e psicológico do aluno. Tal fato pode levar à implementação de propostas pedagógicas diversificadas. Apesar de conceber a interdependência entre alfabetização e letramento reitero que o foco dessa pesquisa é a investigação específica sobre o processo de decodificação grafofonêmica sem a preocupação com a análise da prática social da leitura. Esta investigação volta-se exclusivamente para o processo de leitura enquanto alfabetização, já que se pretende clarificar como certos processos fonológicos desviantes repercutem em atividades de de(codificação). Pesquisas voltadas para a leitura, de modo geral, concentram-se em dois polos: a leitura de 65 palavras isoladas (proposta aqui adotada) e a leitura de palavras contextualizadas. As do primeiro tipo, que se inserem nesse trabalho, deram origem a dois modelos teóricos: o conexionista e o nãoconexionista. Para o modelo conexionista, o reconhecimento da palavra ocorre por ativação no sistema de tratamento das letras e das informações fonológicas e semânticas associadas a essas letras. O modelo não conexionista, por sua vez, entende que o reconhecimento da palavra se dá por meio de duas vias: uma lexical e outra fonológica. De acordo com tal perspectiva, as palavras desconhecidas (não familiares) são decodificadas (rota grafema-fonema), mas as palavras familiares são lidas de forma global, isto é, por via lexical. A decodificação não é necessária, já que as palavras foram previamente armazenadas no léxico mental e podem ter sua apresentação visual ativadas (a pronúncia é determinada por informação armazenada na memória). No caso de palavras não familiares para o leitor a leitura via rota fonológica é a única alternativa possível, já que as palavras não se encontram estocadas no léxico. Aventa-se a hipótese de que no caso de leitores atípicos, como portadores de SD, mesmo em se tratando de vocábulos familiares, por questões relativas à imaturidade neurológica, a leitura aconteça ora via fonológica, ora via lexical, dependendo da complexidade estrutural da palavra. 2.3.1 A Alfabetização de portadores de SD Levando-se em consideração as questões discutidas no segmento anterior, parece-me razoável postular que se o processo que abrange a apropriação da lectoescrita em crianças ditas normais é cognitivamente complexo, tal fenômeno, em crianças com desenvolvimento atípico, pode assumir uma dimensão ainda maior, em função do retardo mental. Na SD, o processo de ler e escrever pode ser retardado por aspectos relativos à imaturidade neurológica, bem como em função de anomalias fisiológicas decorrentes da síndrome (por exemplo, a visão e o desenvolvimento motor deficientes). Um estudo de Siegel (1989), porém, aponta não 66 haver evidências de que graus de quociente de inteligência (QI) mais baixos estejam relacionados a um desempenho pobre de leitura. Educadores e pesquisadores divergem quanto à abordagem mais eficiente para a alfabetização de crianças com desenvolvimento atípico. Com relação à SD, por muito tempo se preconizou o método analítico que, sendo fundamentalmente visual, poderia dar melhores resultados, levando-se em conta que essa população apresenta habilidade de processamento visual relativamente boa. No entanto, pesquisas mais atuais ressaltam a eficácia da consciência fonológica (cf. seção 2.3.2) na aquisição da lectoescrita, sugerindo que o equilíbrio entre as abordagens visual e sonora seria o procedimento mais acertado (cf. Morgan et al., 2004). Rondal (2006) explica que indivíduos com SD atingem níveis variáveis de lectoescrita, alguns alcançando graus funcionais de alfabetização (não apenas decodificam letras, mas usam a leitura como prática social), e outros, conseguindo ler apenas com o suporte do professor. O autor afirma também que os portadores da síndrome passam mais tempo fazendo uso da estratégia logográfica que seus pares com desenvolvimento típico. No entanto, o período de alfabetização, tanto para portadores de SD quanto para seus pares considerados normais, obedece a uma sequência evolutiva relacionada às hipóteses que a criança faz sobre o que é escrever. De acordo com Trenholm & Mirenda (2006), a habilidade de escrita em indivíduos Down parece progredir com a idade cronológica. Uma pesquisa conduzida por esses autores indicou os seguintes resultados: crianças entre 5:1 a 9:0 anos conseguiam escrever seus nomes ou palavras familiares (46.4%) ou ainda fazer atividades em livros de exercícios (25%), mas poucas conseguiam se engajar em outras atividades de escrita. O estudo apontou que entre 6:0 e 12:0 anos de idade a criança começa a ler (55.8%) e escrever (48%). Crianças entre 9:1 e 13:0 apresentaram maior habilidade de escrita. 69.6% desse grupo conseguiam escrever seus nomes e palavras familiares e 52.2% faziam atividades em livros de exercícios. O grupo entre 13:1 e 19:0 apresentou resultados ainda melhores. 67 No grupo de adultos foram registradas habilidades funcionais, tais como fazer listas (65.9%) e escrever recados (68.3%). Os adultos apresentaram igualmente bom desempenho em atividades escolares que envolviam uma resposta por escrito para uma pergunta simples (39%). No entanto, os autores avaliaram que os resultados da pesquisa forneceram evidências de que os portadores de SD obtiveram um desenvolvimento de leitura em vários níveis aquém de seus pares com desenvolvimento típico. Segundo Boudreau (2002), estudos recentes indicam que a adolescência e o início da fase adulta podem ser o momento mais apropriado para indivíduos com SD aprenderem a ler e escrever. Dentre os aspectos mais salientes na escrita de portadores de SD encontram-se alguns apontados por Mollica (2003) e Avila et al (2009), os quais não necessariamente sugerem quadro de patologia. Esses erros, segundo os autores, fazem parte do processo de aprendizagem da lectoescritura e tendem a se reduzir com o avanço da escolaridade. Entre eles, destacam-se: – confusão entre letras que representam o mesmo som; – mesma letra representando mais de um som; – inversão de letras; – influência da fala na escrita; – inversões de sequências; – generalização de regras; – omissão e adição de letras; – troca de letras; – soletração (nomeação de letras); – simplificação de agrupamento consonantal; – erro quanto ao emprego da tonicidade; – erros complexos (ocorrência de vários erros numa mesma palavra). 68 Alguns dos aspectos elencados acima são evidentes na lectoescritura de portadores de SD, mesmo em sujeitos que já passaram da fase incipiente da alfabetização. Erros que persistem além das séries iniciais (e que diminuem com o aumento da escolaridade em alunos com desenvolvimento típico) e que ocorrem com maior sistematicidade apontam para problemas associados aos déficits mental e/ou articulatório. Na escrita, a troca de letras, por exemplo, pode estar diretamente relacionada à ausência de discriminação de fonemas homorgânicos em virtude de déficit auditivo e/ou articulatório. Há também a possibilidade de o desvio ter relação com déficits de visão, como mencionado anteriormente. Esse quadro leva à confusão de grafemas na representação de fonemas auditivamente semelhantes: por exemplo, o aluno grafa facer ao invés de faze). Tal fenômeno ocorre pela não distinção do traço fonético num par mínimo (/s/-/z/) e sua respectiva codificação grafêmica. Esse exemplo dá indícios de que a não discriminação de certos sons pode afetar o processo de codificação e resultar em alterações na correlação fonema/grafema. A omissão de letras ou a simplificação de grupos consonantais podem acontecer em função da não enunciação de determinado fonema (ou grupo de fonemas) em decorrência de déficit de atenção e/ou memória auditiva, além de transtornos relativos à programação motora da cadeia sonora. A generalização de regras como, por exemplo, a confusão entre letras que representam o mesmo som é outra característica observada com frequência. Em alguns casos o alfabetizando não assimila a regra pela qual deve escolher uma letra em função de seu contexto fonológico. Suponhase a grafia da palavra "conta", por exemplo. Caso, num exercício de ditado, o aluno escreva “comta”, estará fazendo alteração gráfica de fonemas auditivamente semelhantes (o linguodental /n/ pelo bilabial /m/). Outro aspecto notório, a influência da fala na escrita, ocorre, de modo geral, como o que se evidencia em alfabetizandos com desenvolvimento típico. Assim, grafias do tipo 69 “meninu”/”mininu”, ao invés de “menino”, seriam formas possíveis na escrita dos sujeitos de pesquisa. Bortoni-Ricardo (2005) explica que esses erros são decorrentes da transposição de hábitos da fala para a escrita, seja pela interferência de regras fonológicas variáveis ou pela falta de familiaridade com as convenções da língua escrita. Um critério plausível para discriminar itens lexicais que dão indícios de escrita desviante de itens lexicais nos quais se verifiquem erros “normais” é avaliar se o erro ortográfico é previsível ou não para um determinado vocábulo. Por esse critério, as alterações da palavra “menino” poderiam ser consideradas como erros previsíveis no processo de alfabetização, já que a criança tende tende a transferir a oralidade para a escrita. No entanto, o cancelamento de grafemas na estrutura “mno” representando a grafia de “menino” (fenômeno observado na escrita de um sujeito de pesquisa) não é considerado um erro previsível, apontando, assim, para um problema a ser diagnosticado e reparado. Como propõe a autora citada acima, é conveniente, nesses casos, uma atenção diferenciada quanto à abordagem do erro e a forma de correção. Em outras palavras, BortoniRicardo (2005) sugere a organização de um trabalho pedagógico que respeite as especificidades de cada aluno. Os distúrbios da escrita, assim como os de leitura, estão associados a diversos fatores, desde os orgânicos até os de ordem psicossocial. Assim, alterações no código ortográfico devem-se não somente aos aspectos relativos ao comprometimento anátomo-funcional do aparelho fonador, da motricidade, da audição e da percepção visual, como também às condições intelectuais, afetivoemocionais e sociais do indivíduo (cf. seção1.2). Esses fatores combinados e analisados conjuntamente é que vão delinear o perfil do alfabetizando dito atípico. Os dados coletados nesta tese (cf. anexos) deixam em evidência que o processo de aquisição do código ortográfico mostra-se mais lento em portadores de SD, ao se levar em consideração a idade cronológica dos informantes. Dessa forma, supõe-se que os conflitos cognitivos naturais da fase de apropriação da lectoescrita sejam agravados pelo retardo mental. Fato curioso, por 70 exemplo, é que há amostras nas quais ocorre a leitura de determinado vocábulo, sem que o informante consiga escrevê-la. Ao ser solicitado a grafar a palavra anteriormente enunciada, o sujeito faz uma combinação aleatória de grafemas, corroborando a visão de Scliar-Cabral (2003), segundo a qual escrever envolve maior complexidade que ler. Essa pesquisa mostra que aspectos relativos à apropriação da lectoescrita são mais passíveis de alterações em alfabetizandos Down do que em seus pares com desenvolvimento típico, uma vez que os desvios observados decorrem de déficits neurológicos e nos OFA. No entanto, as dificuldades de aquisição do código ortográfico podem ser minoradas com a inserção de recursos pedagógicos, como é o caso da Consciência Fonológica, que discuto a seguir. Para tanto, faz-se imprescindível a atuação de uma equipe interdisciplinar (professor, fonoaudiólogo, psicólogo, psicopedagogo etc) que tenha como propósito diagnosticar e tratar os distúrbios de natureza fonoarticulatória, procurando atenuar sua repercussão na lectoescrita. 2.3.2 O papel da Consciência Fonológica na apropriação da lectoescrita Discutir a relação oralidade-escrita de uma população dita atípica, como é o caso da SD, envolve algumas considerações de natureza pedagógica que podem ajudar e até mesmo acelerar o processo de alfabetização. Pesquisas têm sublinhado a influência da fala na escrita na fase de ensino-aprendizagem de língua materna. O português, cuja representação gráfica é alfabética, ou seja, as unidades gráficas (letras) representam as unidades sonoras, requer do aprendiz a percepção consciente desse sistema para fazer a correspondência correta entre grafemas e fonemas. Como declara Mollica (2003:7), “...a consciência explícita por parte do falante acerca da influência da relação fala/escrita concorre para melhorar o desempenho no letramento.” A literatura tem discutido a importância de se estimular habilidades de Consciência 71 Fonológica durante o processo de alfabetização. Diversos autores têm defendido que certas habilidades de reflexão fonológica são necessárias para o aprendizado da escrita alfabética, isto é, a percepção da dimensão sonora das palavras e o entendimento de que estas são formadas de segmentos menores (cf. Adams et al, 2006). Morais (1989) define Consciência Fonológica ou Metafonologia como uma habilidade metalinguística de representação consciente das propriedades fonológicas e das unidades constituintes da fala: consiste no conhecimento consciente dos sons (fonemas) que compõem as palavras que ouvimos e enunciamos A priori, essa habilidade leva o alfabetizando à segmentação de sequências fonológicas e ortográficas para, posteriormente, compreender o enunciado escrito. Capovilla e Capovilla (2002) asseguram que crianças com dificuldades de Consciência Fonológica tendem a apresentar atraso no processo de alfabetização. Por outro lado, os estágios iniciais da Consciência Fonológica (CF) repercutem positivamente nos graus iniciais do processo de leitura. Além disso, as habilidades desenvolvidas inicialmente na leitura vão contribuir para habilidades mais complexas de metafonologia, tais como a manipulação e a transposição fonêmicas. Parece-me razoável, dessa maneira, apontar a prática da CF como recurso plausível para minorar transtornos de leitura e escrita numa população com déficit mental, articulatório e auditivo. A tomada de consciência de que a língua falada pode ser segmentada em unidades distintas é relevante na fase incipiente da alfabetização: a frase é composta por palavras e estas últimas são formadas por sílabas que, por sua vez, se constituem de unidades menores categorizadas como fonemas. A Consciência Fonológica é, portanto, um conjunto de habilidades heterogêneas com uma estrutura hierárquica que se inicia com a consciência de unidades mais globais até a percepção dos segmentos fonêmicos da fala. Esse recurso pedagógico, quando adotado nas salas de aula especiais, pode facilitar o processo de decodificação grafofonológica, suscitando fluência na leitura e minimizando erros de escrita (referências a propostas pedagógicas envolvendo a prática da CF serão feitas na seção 4.3). 72 Segundo Adams et al (1998:22), o conhecimento consciente dos fonemas é diferente da sensibilidade inata que sustenta a produção e recepção da fala, haja vista que a CF não surge de forma natural. As pessoas não prestam atenção aos sons da fala que produzem ou escutam, mas processam esses sons automaticamente. Além disso, a fala se apresenta como um contínuo, com fones coarticulados, o que dificulta a percepção e segmentação das unidades sonoras que compõem as palavras. Ao se pensar em Consciência Fonológica, depreende-se um conhecimento explícito e reflexivo: o indivíduo aprende a separar e categorizar os sons de maneira que o permita entender como as palavras são codificadas. Operações como contar, segmentar, unir, adicionar, suprimir, substituir e transpor sons, possibilitam às crianças ou jovens (no caso da SD) em fase de alfabetização a trabalhar as diferenças, semelhanças, quantidade e ordem dos sons da fala. Face a essa função mental, Stampa (2009) chama a atenção para o fato de que a falta de consciência fonológica pode estar relacionada às exigências cognitivas da tarefa, aspecto que se aplica à populações ditas atípicas, como é o caso da SD. A metafonologia se desenvolve através de diferentes formas linguísticas. Atividades lúdicas de Consciência Fonológica incluem músicas, cantigas de roda, poesias e jogos orais que promovem a atenção para a estrutura sonora da palavra. A percepção consciente dos sons, por sua vez, leva o alfabetizando a fazer conexões entre grafemas e os fonemas que eles representam, suscitando a generalização e memorização destas relações (som-letra). Entre os níveis de CF destacam-se as rimas e aliterações, a consciência sintática, a consciência silábica e a consciência fonêmica. A rima é uma correspondência fonêmica entre duas palavras a partir da vogal da sílaba tônica. A semelhança é sonora e não necessariamente gráfica. É interessante frisar que, em certas brincadeiras espontâneas, mesmo sem tomar conhecimento da rima, a criança atesta sua capacidade metafonológica, como no exemplo “Fabiana, cara de banana.” . 73 A aliteração, um recurso poético como a rima, é a repetição de um fonema na posição inicial das palavras. Essa abordagem permite à criança estabelecer uma correspondência entre som e letra. O “trava-língua” é uma forma de aliteração, como no exemplo “o rato roeu a roupa do rei de Roma.” A Consciência Sintática refere-se à capacidade da criança para segmentar a frase em unidades menores (as palavras) e, ao mesmo tempo, estabelecer uma relação entre essas unidades numa sequência lógica, como no exemplo “a/menina/gosta/de/comer/fruta.” Alguns erros comumente verificados nas fases iniciais da escrita, como aglutinações e separações indevidas podem estar associadas à dificuldade de consciência sintática. De acordo com a literatura, isso implica a capacidade de análise e síntese auditiva da frase. A Consciência Silábica, por sua vez, é a habilidade de segmentar as palavras nas unidades que as compõem, ou seja, as sílabas. Tal como ocorre com a Consciência Sintática, na fase de Consciência Silábica, a criança realiza análise e síntese vocabular. Atividades de Consciência Silábica envolvem operações de contar, adicionar, subtrair e substituir sílabas, a fim de formar novas palavras, por exemplo, “ga/to”- “pa/to” ou “ca/sa”- “ca/sa/do”. Finalmente, a Consciência fonêmica, que consiste na capacidade de análise e segmentação dos fonemas que constituem a palavra, é a mais refinada habilidade de Consciência Fonológica, mas também a última a ser adquirida. É interessante observar, portanto, que a Consciência fonológica é um conjunto de habilidades metalinguísticas que partem do nível sintático para o fonológico. Primeiramente, a criança desenvolve a consciência no nível das palavras, seguida do nível da sílabas que, por sua vez, antecede o nível da consciência fonêmica. Esta última tem relação direta e coincide com o desenvolvimento da escrita nas línguas de sistema alfabético, uma vez que possibilita ao indivíduo tomar consciência das estruturas mínimas da língua, ou seja, os fonemas, e estabelecer a relação entre os sons e os símbolos que os representam, os grafemas. Atividades de 74 Consciência Fonêmica envolvem quais e quantos fonemas formam uma palavra como, por exemplo, “p/a/t/o”. A partir daí, a criança pode usar sua criatividade adicionando, suprimindo e trocando fonemas numa única palavra para formar novos itens lexicais. Como apontado anteriormente, pesquisas revelam haver correlação entre níveis de Consciência Fonológica e habilidades de leitura e escrita (cf. Pinto & Lamprecht, 2008). Segundo o estudo das autoras, a capacidade de reflexão envolvendo consciência fonêmica parece emergir concomitantemente à capacidade da criança em começar a atribuir valores sonoros aos grafemas utilizados para escrever. No entanto, um trabalho conduzido por Cossu et al (1993) demonstrou que embora crianças portadoras de SD apresentem o mesmo nível de habilidade de leitura que seus pares considerados normais, verifica-se nos primeiros um desempenho significativamente inferior nas atividades de Consciência Fonológica. O resultado, porém, não descarta a relevância da percepção consciente do som. A pesquisa tem base em tarefas de análise e síntese de segmentos fonêmicos (indivíduos com SD que já leem têm dificuldade nas tarefas de subtração de fonema, por exemplo). Em contrapartida o estudo não levou em consideração as atividades de detecção de rima e aliteração, por exemplo, que têm como foco o julgamento de semelhança fonológica. Em uma investigação conduzida por Cardoso-Martins (1999), constatou-se que indivíduos com SD que já leem apresentam a habilidade de prestar atenção consciente aos sons da fala. Conclui-se, portanto, que a sensibilidade à identidade fonológica pode servir de base para o desenvolvimento das habilidades alfabéticas de leitura em populações com déficits intelectuais. Apesar de portadores de SD apresentarem um desempenho metafonológico inferior em comparação aos seus pares considerados normais, há evidências de relação entre Consciência Fonológica e alfabetização nesses indivíduos. Uma pesquisa realizada por Kennedy & Flynn (2002) indicou que níveis de consciência fonêmica mais avançados têm relação com a capacidade da criança para estabelecer relações entre fonemas e grafemas. Por outro lado, estudos mais recentes apontam para o fato de que as dificuldades de leitura de pseudopalavras estão relacionadas a um baixo nível de 75 Consciência Fonológica (Pinto & Lamprechet, 2008). É importante frisar que o programa de habilidade metafonológica adotado numa sala de aula especial (ou regular inclusiva) deve ser iniciado a partir do nível de dificuldade identificado para cada criança ou jovem alfabetizando. Há de se levar em conta que, no caso da SD, problemas de ordem neurológica, déficits de memória e processamento auditivo dificultam a percepção consciente dos sons. Além disso, as habilidades motoras orais contribuem para a ininteligibilidade da fala. Adams et al (2006:103) propõem que “os fonemas são melhor distinguidos pela forma como os fones são articulados do que pela forma como soam. Por esta razão, deve-se estimular as crianças a sentir a forma como sua boca e a posição de sua língua mudam em cada som.” Essa declaração é particularmente apropriada para portadores de SD, haja vista a dificuldade de natureza articulatória enfrentada por esses indivíduos. Preconiza-se, dessa forma, que os jogos de linguagem sejam retomados com frequência, até que tenham sido dominados e possam ser ampliados. A cada etapa novos desafios fonológicos podem ser apresentados numa progressão gradual, juntamente com aqueles praticados previamente. Como atestam Capovilla e Capovilla (2002:64): [...]o texto deve ser introduzido de modo gradual, com complexidade crescente, e à medida que a criança for adquirindo uma boa habilidade de fazer decodificação grafofonêmica fluente, ou seja, depois que ela tiver recebido instruções explícitas e sistemáticas de consciência fonológica e de correspondências entre grafemas e fonemas. Como se verifica pela citação, os autores acreditam haver reciprocidade entre os processos de conscientização fonológica e apropriação da lectoescrita. Mais especificamente, a ocorrência de um facilita e fortalece o desenvolvimento do outro. No entanto, não existe um consenso entre os estudiosos da área no que tange a relação que se estabelece entre CF e alfabetização. Enquanto para 76 alguns, esta habilidade é pré-requisito para a apropriação da lectoescrita (relação causal), para outros a metafonologia é consequência dela. De acordo com a última perspectiva, só após ter se apropriado do código ortográfico é que a criança teria habilidade para segmentar palavras. Diante desse impasse, parece-me mais coerente um modelo interativo proposto por Ferreiro (2003) em que, como mencionado anteriormente, pressupõe-se uma relação de reciprocidade entre metafonologia e alfabetização. Assim, certas habilidades de Consciência Fonológica estimulariam o desenvolvimento da lectoescrita e vice-versa. Uma observação interessante é que o alfabetizando frequentemente agrupa as palavras em bases semânticas, o que pode perturbar a prática da Consciência Fonológica. Moura (2009:86) declara que a maneira como a memória organiza as palavras a partir de sua natureza semântica torna complexa e árdua a tarefa de conceber a palavra falada como uma sequência sonora, já que o foco vai da forma para o significado. Em sua tese de doutoramento, a autora constatou que uma parcela dos alunos da EJA (Educação para Jovens e Adultos) forneceram respostas equivocadas durante o teste de rima por estabelecerem uma relação semântica entre itens lexicais testados. Algumas associações do tipo arco-flecha, urso-bicho e perfume-cheiro confirmam a hipótese de que informações de natureza semântica são acessadas antes de a atenção se focar na estrutura sonora da palavra (cf. Moura, 2009:134). Nesse caso, o professor e/ou o fonoaudiólogo, devem redirecionar o foco do aluno para o som do vocábulo. Embora esta tese não tenha como objetivo testar processos metafonológicos em portadores de SD, parece-me razoável afirmar que essa habilidade metalinguística constitua uma prática pedagógica relevante no âmbito da educação especial pelo fato de conduzir a melhores resultados no processo de alfabetização. Sublinho, portanto, a necessidade de apresentar a linguagem como objeto de análise e reflexão, principalmente, em se tratando de alunos cuja percepção e discriminação sonora é obscurecida por fatores neurológicos e periféricos. 77 3. AMOSTRA E METODOLOGIA “Dialogar com a realidade talvez seja a definição mais apropriada de pesquisa, porque a apanha como princípio científico e educativo.” (Demo, 2002:44) 3.1 Constituição da amostra e contexto de pesquisa Para a verificação das hipóteses levantadas nesta tese de doutoramento, procedo à análise da linguagem oral e de conteúdo escrito de seis (6) informantes (três do sexo masculino e três do sexo feminino), alunos de uma escola particular inclusiva na cidade do Rio de Janeiro. Os informantes são filhos de pais escolarizados, com nível superior, pertencentes à classe média. A referida instituição educacional tem como filosofia a realização de um trabalho que se baseia na idade cronológica e no grau de desenvolvimento do portador de retardo mental, tomandose como critério de avaliação a defasagem entre seu nível de desenvolvimento cognitivo real e o que seria esperado para a sua faixa etária. Todos os aspectos relativos ao desenvolvimento geral do indivíduo como cuidados próprios, desempenho motor, linguagem e sociabilização são estimulados paralelamente. Além das disciplinas do currículo básico, a escola oferece atividades em oficinas de arte, dança teatro, e informática. Equipes interdisciplinares realizam um trabalho integrado de fisioterapia, fonoaudiologia e psicologia. Paralelamente ao exame do desempenho linguístico (oral e escrito) dos informantes, são controladas nesta pesquisa as variáveis gênero, idade, terapia fonoaudiológica e tempo de escolarização. Através da variável gênero, procuro verificar se os distúrbios de natureza fonoarticulatória e sua migração para a lectoescrita (quando e se houver) são mais recorrentes em 78 indivíduos do sexo masculino ou feminino. A partir da variável idade, investigo se o avanço cronológico tem relevância nos processos de leitura e escrita. Assim, os informantes mais velhos apresentariam melhor desempenho oral e escrito em relação aos mais novos. As idades variam de 17 a 26 anos. Considero igualmente importante investigar se o melhor desempenho na oralidade e na escrita de determinados alunos tem relação com a terapia fonoaudiológica. É válido reiterar a importância da fonoaudiologia para essa população. Exercícios miofuncionais objetivam otimizar o movimento dos músculos orais. Consequentemente, a fala e a escrita atingem um avanço considerável em termos de inteligibilidade. Por fim, outra variável controlada é o tempo de escolarização. Esta última pode responder se os alunos que frequentam a escola há mais tempo apresentam uma melhor performance na lectoescrita. 3.1.1 Os sujeitos de pesquisa Na primeira fase da pesquisa, foi feita uma coleta de dados a partir da fala espontânea de dois sujeitos (S3-sexo masculino, 17 anos e S5-sexo masculino, 19 anos). Essa etapa teve por objetivo detectar que tipos de desvios articulatórios são mais recorrentes nos informantes. Os alunos selecionados para essa fase, doravante S3 e S5, são naturais do Rio de Janeiro. Para a avaliação dos aspectos articulatórios da segunda etapa da pesquisa (nomeação de gravuras seguida de leitura e escrita da palavra enunciada) foram selecionados, além de S3 e S5, mais quatro alunos de ambos os sexos, igualmente naturais do Rio de Janeiro. Esses alunos são oriundos de salas de aula distintas, cada qual sob a supervisão de uma professora. Entre eles, há os que se submetem a terapia fonoaudiológica e os que já o fizeram em algum momento, mas não o fazem atualmente. Todos os informantes (doravante denominados S1, S2, S3, S4, S5 e S6) participam diariamente de uma série de atividades que envolvem as disciplinas básicas do currículo, além de aulas de dança, música, culinária e informática. Após terem sido autorizados pelos pais ou 79 responsáveis a participar da pesquisa, os alunos foram contatados através de suas professoras e convidados a colaborar na coleta de dados. A escola assinou o termo de consentimento livre e esclarecido. Durante a realização dos testes os informantes foram avaliados individualmente numa sala silenciosa, tanto na primeira etapa da pesquisa, quanto na segunda. Abaixo, o perfil dos informantes segundo as variáveis estabelecidas para uma melhor avaliação da população pesquisada. Quadro I – Perfil dos Informantes Informantes Gênero Idade Terapia Tempo de Fonoaudiológi escolarização ca S1 F 23 anos não 5 anos S2 M 19 anos não 14 anos S3 M 17anos sim 4 anos S4 F 22 anos sim 2 anos S5 M 19 anos sim 4 anos S6 F 24 anos sim 9 anos 3.1.2 As etapas da amostra A constituição da amostra foi realizada em duas etapas, como mencionado anteriormente. Num primeiro momento, utilizo a gravação de entrevista semi-estruturada realizada com dois alunos (S3 e S5, ambos do sexo masculino), escalados aleatoriamente. Essa primeira etapa teve por objetivo procurar evidências de desvio do padrão articulatório na fala espontânea, além de verificar que alterações são mais recorrentes. Os segmentos da entrevista foram gravados, editados e transcritos para análise. Os itens lexicais nos quais ficaram evidentes desvios do padrão articulatório foram transcritos foneticamente. A transcrição desses itens serviram de base para o “diagnóstico” de desvios de ordem articulatória, posteriormente avaliados com maior acuidade através dos testes 80 aplicados na segunda etapa (relação oralidade-escrita). A gravação da fala espontânea foi realizada num único episódio com aproximadamente 15 minutos de duração para cada informante. A coleta de dados da segunda fase aconteceu ao longo de três meses, com frequência de duas vezes por semana. Foram totalizadas mais ou menos 6 (seis) horas de gravação em áudio, de setembro a novembro de 2009. A segunda fase da pesquisa teve como meta investigar mais detalhadamente a ocorrência de dois fenômenos, a disartria e a dispraxia (cf. Seção 1.1.1), observados nas falas espontâneas dos sujeitos S3 e S5 (informantes da primeira fase). Participaram dessa etapa todos os informantes. No que tange à disartria, os testes têm como objetivo investigar dois aspectos: primeiramente, se o informante faz troca/omissão de som (ns) na enunciação dos itens lexicais apresentados através das gravuras. Em segundo lugar, se há ocorrência (ou não) de coarticulação de encontros consonantais (EC), tomando-se por base um estudo de Hamilton (1993). Na pesquisa, a autora verificou haver um alto índice de ausência de coarticulação de EC na fala de portadores de SD que falam Inglês como língua nativa. Com relação à fala dispráxica, os testes procuraram verificar se há relação direta entre esse tipo de distúrbio (dificuldade programação motora de cadeias sonoras) e a ocorrência de processos fonológicos de simplificação de palavras polissílabas. 3.1.3 A elaboração dos testes e procedimentos de aplicação Para a testagem dos aspectos verificados na segunda etapa da pesquisa, procedeu-se da seguinte maneira. Com o objetivo de investigar a ocorrência de processos fonológicos de simplificação (característicos das falas de indivíduos com dispraxia verbal) foram mostradas aos informantes um total de 20 gravuras de palavras polissílabas com diversos fonemas da língua em diferentes posições. A escolha de vocábulos polissílabos foi motivada pelo fato de a dificuldade de programação motora de sequências sonoras mais longas por uma parcela de portadores de SD 81 (aspecto já discutido na literatura) levá-los a simplificar padrões silábicos. Na sequência foram avaliados aspectos relativos à fala disártrica que se caracteriza pela omissão ou distorção de um ou mais sons, além de inconsistência na coarticulação de EC. Para verificar a ocorrência ou não de coarticulação de encontros consonantais (EC) foram apresentadas mais 20 figuras que designavam palavras com os seguintes encontros consonantais em diferentes posições: /pr/, /pl/, /vr/, /dr/, /tr/, /tl/ /kl/ /kr/, /bl/, /br/, /fl, /fr/,/gr/ e /gl/. Para a verificação de troca e/ou omissão de fonemas foi utilizada nova lista contendo outras 20 palavras monossílabas ou dissílabas. Nesse caso, a opção por vocábulos de menor extensão e com estruturas silábicas simples (V e CV), se deve à intenção de verificar se esse grupo de itens lexicais suscitavam melhor desempenho oral e escrito em relação às palavras polissílabas. Durante a realização dos testes com palavras familiares os informantes nomeavam cada figura apresentada. A palavra enunciada era gravada em áudio e depois transcrita foneticamente. Em seguida, os sujeitos de pesquisa eram solicitados a escrever o nome das figuras que haviam enunciado para que se pudesse traçar um paralelo entre oralidade e escrita. Finalmente, os alunos liam fichas contendo os nomes das figuras. Essa etapa, também registrada em áudio e posteriormente transcrita, teve por objetivo avaliar a relação da escrita com a leitura, ou seja, a relação entre os processos de codificação e decodificação dos itens lexicais testados. O critério adotado para identificar itens lexicais (familiares) com indícios de escrita desviante foi o de ponderar se o erro de ortografia era previsível ou não para determinado vocábulo. Por exemplo, mostra-se a figura de um prato para o alfabetizando, solicitando que ele escreva o nome daquele objeto. Pode-se até esperar que crianças com desenvolvimento típico grafem “pratu”, tomando-se como critério de previsibilidade a influência da fala na escrita. Ou ainda “pato”, já que há uma tendência, nas fases iniciais da alfabetização, à simplificação do padrão CCV para CV. Porém, não é previsível que se grafe “patora”, como o fez S4. A palavra “prato” grafada “patora” 82 pode indicar um desvio de natureza fonético-fonológica que se reflete na escrita, por exemplo, a dificuldade de percepção e memorização dos sons ou ainda de programação motora da unidades sonoras que compõem a palavra. Assim, torna-se necessária uma avaliação criteriosa de cada caso para que se possa separar o que se considera fala e/ou escrita desviante daquilo que se concebe como erro ortográfico previsível para alunos ditos normais em fase de alfabetização, ou seja, processos não exclusivos de grupos atípicos. Por fim, foi elaborada uma lista contendo 10 palavras não familiares (selecionadas do dicionário Aurélio) aos sujeitos de pesquisa. O objetivo desse teste era avaliar se o informante iria apresentar melhores resultados de leitura e escrita nos testes anteriores, ou seja, com palavras com as quais estava familiarizado. A intimidade com o item lexical favorece a leitura visual, não havendo necessidade de decodificação. Desse modo, o foco do teste com palavras não usuais é avaliar a real habilidade de correspondência grafofonológica do informante, já que ele não poderá fazer a leitura via rota lexical (visual). O teste com palavras não familiares realizou-se da seguinte maneira: em primeiro lugar, a pesquisadora lia pausadamente a palavra e solicitava ao informante que escrevesse o que ouvia. Ao término da etapa de escritura de todas as palavras, pedia-se que o aluno lesse as fichas com os nomes dos vocábulos não familiares. A leitura era, então, gravada e transcrita. No total, os informantes foram submetidos a uma bateria de testes com 60 palavras que fazem parte do seu repertório lexical e 10 palavras não familiares. O critério para a escolha das palavras testadas, em todos os casos, à exceção do grupo de palavras não familiares, foi o grau de familiaridade com os vocábulos, os quais deveriam suscitar a enunciação espontânea a partir da visão das gravuras. A elaboração das listas teve como base uma bateria de testes aplicada por Rodrigues (1989) para avaliar o papel da dispraxia motora dos OFA (órgãos fonoarticulatórios) na aquisição desviante do sistema fonêmico de crianças com desenvolvimento típico. Não foram consideradas variações de natureza dialetal, tendo em vista que todos os informantes são naturais da 83 cidade do Rio de Janeiro. A seguir, as listas de palavras (familiares e não familiares) utilizadas nos testes. Quadro II – Lista de vocábulos familiares I. Processos fonológicos de simplificação (PFS) II. Coarticulação de EC (CEC) III. Alteração fonêmica em palavras monossílabas e dissílabas (AFMN) 1. liquidificador 1. prato 1. chapéu 2. hipopótamo 2. livro 2. pão 3. margarina 3. cruz 3. bolsa 4.geladeira 4. cobra 4. azul 5. maracanã 5. quadro 5. cinto 6. esqueleto 6. travesseiro 6. nuvem 7. melancia 7. gravata 7. pé 8. Botafogo 8. bicicleta 8. leite 9. elefante 9. Flamengo 9. carro 10. lagartixa 10. Drácula 10. mala 11. computador 11. brinco 11. unha 12. televisão 12. biblioteca 12. faca 13. sanduíche 13. planta 13. garfo 14. matemática 14. atlântico 14. queijo 15. chocolate 15. trem 15. ovo 16. papagaio 16. grávida 16. rato 17. ventilador 17. globo 17. dedo 18. helicóptero 18. blusa 18. mesa 19. passarinho 19. criança 19. peixe 20. abóbora 20. frio 20. milho 84 Quadro III – Lista de vocábulos não familiares 1. paleontologia 6. sazonal 2. fugacidade 7. turaniano 3. arinque 8. imaculatismo 4. marroada 9. jeribazeiro 5. enantiose 10. ranfoteca A segunda etapa que, complementa a fase anterior (análise de fala espontânea) através da análise mais criteriosa dos itens lexicais testados, fornece subsídios adicionais para se chegar a generalizações mais consistentes acerca de como os distúrbios da fala de portadores de SD repercutem na lectoescrita. 3.1.4 Questionário dirigido às alfabetizadoras As alfabetizadoras (doravante A1 e A2) foram solicitadas a responder um questionário confeccionado a partir de um roteiro estruturado com 12 (doze) perguntas relativas ao desempenho linguístico (oral e escrito) de seus respectivos alunos em sala de aula. A1 respondeu as perguntas relativas a S1, S4 e S6. A2 respondeu as questões sobre S2 e S3 e S5. A avaliação do educador, conjuntamente com aquela feita pelo pesquisador, é fundamental na medida em que enriquece o processo de análise ao fornecer subsídios extras para um tratamento mais rigoroso dos dados. A seguir, o modelo de questionário cujas respostas se encontram nos anexos. 85 Questionário dirigido às alfabetizadoras 1- Que tipos de atividades exploram a linguagem em sala de aula? 2- Você considera a fala de X inteligível? 3- X interage espontaneamente ou precisa ser estimulado? 4- X apresenta dificuldade para articular algum (ns) som (ns)? 5- Que tipos de erros X comete ao ler/escrever? Troca e/ou omite fonemas/grafemas? 6- X tem maior facilidade para ler/escrever palavras mais usuais? 7- X tem maior dificuldade para ler/escrever palavras com mais de duas sílabas? 8- X exibe dificuldade para localizar a sílaba tônica? E com relação ao uso do sinal gráfico que marca a sílaba tônica? 9- X tem alguma dificuldade específica? Auditiva? Visual? Motora? Outra? 10- Tempo aproximado do processo de alfabetização? 11- X faz ou fez terapia fonoaudiológica? Por quanto tempo? 12- A idade mental é compatível com a idade cronológica? 86 3.2 Metodologia Opto por conjugar dois dos métodos de pesquisa comumente utilizados em investigações de natureza linguística: o qualitativo e o quantitativo. A priori, uma análise de caráter descritivo, que se insere no paradigma interpretativista (método qualitativo), será adotada para o tratamento dos dados. Moita Lopes (1996:21-22) declara que tem havido um interesse pela utilização do paradigma interpretativista, enquanto metodologia de pesquisa mais adequada à natureza subjetiva do objeto de estudo das Ciências Sociais. Como aponta Fairclough (1989:5) “é fato largamente admitido que as pessoas, ao pesquisar e escrever sobre questões sociais, são inescapavelmente influenciadas pelo seu modo de perceber essas questões.” Em se tratando de um estudo voltado para o contexto educacional em que variáveis sociais operam delineando os diferentes perfis de professores e alunos, a visão subjetiva do pesquisador é fundamental na análise dos processos observados. Nessa tradição metodológica, preconiza-se que todos os fenômenos emergentes da realidade social sejam investigados holisticamente. Os aspectos linguísticos, no caso dessa pesquisa, são analisados em conjunto com a natureza subjetiva dos fenômenos sociais envolvidos. Para Van Lier (1988) é extremamente importante a relação entre as várias interpretações relacionadas ao objeto de estudo (pesquisa descritiva-analítica). O interesse está, não no número de vezes que uma variável aparece, mas nas qualidades que ela apresenta. Para tanto, a pesquisa interpretativista se utiliza de dados biográficos, qualitativos e introspectivos dos sujeitos observados. Esse tipo de pesquisa não busca uma conclusão final, mas promove um processo contínuo de investigação, levantando questões referentes ao problema observado. Coloca-se em foco o processo, pois, dependendo deste último, podem ocorrer modificações no produto final (resultado), decorrentes de uma série de fatores. À luz desse preceito, o pesquisador abre espaço para que estudos posteriores retomem a questão proposta. 87 Além da análise qualitativa procedo à quantificação dos dados descritos através de índices de frequência com o objetivo de clarificar os resultados e ilustrar a heterogeneidade peculiar à produção oral e escrita dos informantes. Assim, agrupo neste trabalho aspectos de ambas as perspectivas metodológicas: a qualitativa, para entender, explicar e descrever os usos linguísticos e a quantitativa, para levantar e quantificar os dados. Os dados quantitativos servem de base para as reflexões qualitativas. Portanto, ambas as metodologias são complementares. Para subsidiar a coleta e análise dos dados, duas tendências são mais utilizadas em pesquisas de natureza qualitativa, quais sejam, a pesquisa de base introspectiva e a de base etnográfica, esta última utilizada neste trabalho. A etnografia faz uma descrição narrativa dos padrões usuais de um determinado grupo, descrevendo seu comportamento, seus hábitos, enfim, as dimensões que cercam a situação investigada (cf. Erickson, 1984). A inserção do pesquisador no contexto onde ocorre o fenômeno a ser investigado (trabalho de campo) é tarefa indispensável em pesquisas de cunho etnográfico (cf. Anderson, 1989). Dessa forma, a etnografia se apresenta como a vertente mais apropriada para se investigar um fenômeno linguístico numa população em particular e num contexto específico, qual seja, o processo de alfabetização de alunos ditos atípicos. A pesquisa de base etnográfica considera que os dados devam ser coletados e analisados a partir de pelo menos três perspectivas teóricas (triangulação de dados), a fim de que os resultados sejam provenientes de diferentes fontes (cf. Van Lier, 1988). A primeira etapa da análise aconteceu através de entrevista semi-estruturada com os informantes. Nesse tipo de entrevista o pesquisador faz uso de uma lista de questões ou tópicos a serem respondidos, como um guia. A entrevista, no entanto, tem relativa flexibilidade, pois as perguntas não precisam seguir a ordem prevista e novas questões podem ser formuladas (cf. Mattos, 2005). Além das entrevistas da primeira fase, no presente trabalho, são elencados como instrumentos de coleta de dados as gravações em áudio, as transcrições fonéticas e um questionário contendo perguntas sobre o desempenho oral e escrito dos sujeitos de pesquisa (as questões respondidas pelas professoras acrescentarão informações 88 relevantes para uma análise mais verossímil do objeto de pesquisa). Através de tais instrumentos é possível coletar, descrever e interpretar os dados sobre o aspecto fonoarticulatório de portadores de SD e sua repercussão na lectoescrita. A triangulação dos dados permite ao pesquisador entrar em campo com rigor científico, tendo que estabelecer previamente a questão a estudar, bem como desenhar sua pesquisa em função das técnicas pré-estabelecidas que utilizará na análise dos resultados obtidos. 3.2.1 Estudo de Caso A amostra desta tese é proveniente de Estudos de Caso, um tipo de pesquisa qualitativa que vem ganhando crescente aceitação no campo da educação. A opção por esse modelo deve-se a dois fatores, primordialmente. Em primeiro lugar, o fato de investigar uma população dita atípica gera algumas dificuldades no que tange à obtenção de informantes, pois, é raro encontrar escolas especializadas ou inclusivas que permitam a entrada do pesquisador em campo, bem como famílias que estejam dispostas a autorizar a pesquisa. A obtenção de uma quantidade maior de informantes é, portanto, um aspecto que dificulta traçar generalizações de tipo estatístico. Em segundo lugar, a proposta central da pesquisa é fornecer subsídios a novos trabalhos no âmbito da interface linguagem verbal oral-alfabetização de alunos com desenvolvimento atípico. O Estudo de Caso permite ao pesquisador ir além dos dados numéricos, pois pressupõe a interpretação dos fenômenos linguísticos através de pesquisa qualitativa. De fato, ao buscar informações além dos resultados estatísticos, o pesquisador obtém um panorama mais completo do fenômeno investigado. Yin (1993) classifica os estudos de caso em: exploratórios, aqueles que se atêm em obter informação preliminar sobre o objeto que se deseja investigar; descritivos, apenas descrevem o fenômeno estudado; analíticos, problematizam o objeto de investigação a partir do 89 desenvolvimento de uma nova teoria ou confrontando uma nova teoria com outra já existente. Acredito ser pertinente, lançar mão de um modelo exploratório-analítico para este trabalho. Entendo que a conjugação desses modelos pode propiciar ao estudo as condições necessárias para uma investigação mais profunda acerca do objeto de estudo. Há pelo menos três tipos de Estudo de Caso. Esta pesquisa se insere na categoria denominada por Stake (2000) de Estudo de Caso Coletivo. Nesse modelo, o pesquisador investiga um dado fenômeno, a partir de alguns casos. O autor argumenta que casos individuais analisados sob uma ótica de conjunto podem colocar em evidência um aspecto em comum. Outros dois tipos de Estudo de Caso, não aplicáveis a esta pesquisa, são o intrínseco (estudo de um caso em particular) e o instrumental (visa apenas fornecer insights sobre determinado assunto). Uma das críticas a que esse modelo de pesquisa é alvo é a de que fornece pouquíssima base para generalizações. Contudo, a meta a que se propõe o pesquisador que opta por fazer um Estudo de Caso não é generalizar os resultados obtidos para uma dada população (generalização estatística), mas sim tomar um conjunto particular de resultados para gerar proposições teóricas aplicáveis a outros contextos, situação que Yin (1984) chama de Generalização Analítica. Assim, estudos de casos múltiplos e replicações de um estudo de caso com outras amostras podem indicar o grau de generalização das proposições (cf. Martins, 2009). Outro argumento contra o Estudo de Caso é a falta de rigor. No entanto, a validade e confiabilidade do estudo estão diretamente relacionadas à precisão dos resultados. Esse tipo de pesquisa exige a fundamentação de conceitos essenciais, a definição do objeto de estudo, bem como os processos e instrumentos utilizados na coleta e análise dos dados. Enfim, o Estudo de Caso consegue ter um alcance analítico profundo (não precisa ser meramente descritivo), confronta a situação investigada com outras já estudadas e com teorias existentes, promovendo a geração de novas teorias e questões para investigação futura. 90 4. DESCRIÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS 4.1 Considerações sobre a fala espontânea Para análise de fala espontânea foram utilizados segmentos de diálogos da pesquisadora com dois alunos do sexo masculino (S3 - 17 anos e S5 - 19 anos). Os diálogos tiveram como objetivo promover um primeiro “diagnóstico” do nível fonético-fonológico da fala dos informantes, a fim de traçar os aspectos desviantes mais recorrentes. O critério de escolha dos sujeitos envolvidos foi o de disponibilidade do alfabetizando para a realização da entrevista. Em primeiro lugar foi gravada em áudio a fala de S3. Posteriormente, a fala de S5. Cada registro teve duração de quinze (15) minutos, em média. Os alunos foram solicitados a discorrer sobre sua rotina em casa, na escola, além das atividades extra-curriculares. A entrevista, semiestruturada (cf. seção 3.2), se realizou numa sala silenciosa. Os segmentos foram editados para facilitar a análise, sendo os itens considerados desviantes, selecionados e transcritos foneticamente. Os sujeitos interagentes são designados pelas letras P (pesquisadora) e S (sujeitos 3 e 5). Sequência 1 (entrevista com S3) 1.P: Então, hoje você vai me contar um pouquinho da sua vida... 2.S3: tá... 3.P: Eu quero saber o que você faz durante o dia. Quer começar ? 4. S3: Ah, eu quero. Eu ['kɔdʊ] (acordo) assim, ó, nove e meia. Aí, eu faço assim, ó … 5. (gesticula simulando espreguiçar-se). 6.P: Ah, se espreguiçando, né? 7.S3: Me [prɪgɪ'sãnʊ] (espreguiçando). Aí depois tomo banho, aí depois de tomar banho eu 91 8.tomo café. 9. P: E o que você come no café da manhã? 10. S3: Hum...pão, ovo, nescau... 11.P: Que horas você vem pra escola? 12.S3: Na hora que eu venho é de tarde. 13.P: E você gosta de vir pra escola? 14.S3: Eu adoro vir aqui pra escola. 15.P: O que que você faz na escola? 16.S3: Eu faço estudar, aprender a ler e fazer [fo'matʃɪka] (informática). 17. P: Você prefere aprender a ler ou fazer informática? 18.S3: Ah, eu gosto de aprender [fo'matʃɪka], é bacana. 19.P: E no fim de semana, você faz o quê? 20. S3: No fim de semana, eu faço assim: ou fico no sítio ou fico aqui no Rio. Porque minha 21.mãe tem um [tro'drεsʊ] (congresso) pra fazer. 22.P: Não entendi. Sua mãe tem o quê pra fazer? 23.S3: [tro'drεsʊ] 24.P: Congresso? 26.S3: É.[tro'drεsʊ] do “Eletroclear” (?) que é a usina do Brasil que minha mãe trabalha e o 27.meu pai também. 28. S3: Cynthia, meu irmão deslocou o braço. 29. P: Como? 30.S3: No carro da minha mãe. Aí ele colocou (…) é... 31. P: Gesso? 32. S3: Não, aquele negócio assim, ó (gesticulando com o braço). 33. P: Pra imobilizar? 92 34. S3: (repetindo o enunciado da pesquisadora) Pra [bolɪ'za] (imobilizar) o braço. Aí colocou 35. gelo. 36. P: Certo. E nas férias, você vai fazer o quê? 37. S3: E vou num passeio da escola, na fazenda. Lá tem tirolesa, eu vou [kavo'ga] (cavalgar)... 38. P: Você vai o quê? 39. S3: Vou [kavo'ga] o cavalo. 40. P: Ah, você vai cavalgar. 41. S3: É. Eu acho que meu pai vai deixar, ele vai [ɪʃtre've] (inscrever) e pagar. A análise do corpus de fala espontânea apoia-se no princípio postulado pela Fonologia de Uso de que a gramática (independentemente de se tratar de portadores de deficiência mental ou de indivíduos com desenvolvimento típico) é a organização cognitiva da experiência do falante com a língua e que aspectos dessa experiência têm impacto na representação, produção e percepção da linguagem (cf. Bybee, 2001). No entanto, não se desconsidera que problemas de natureza articulatória (que acometem alguns portadores de SD) podem deflagrar alterações no nível fonológico, eventualmente afetando a percepção da palavra, sua representação mental e, por fim, sua produção. Note-se que a fala de S3 é inteligível, à exceção de certos itens (cf. Linhas 4, 7, 16, 21, 34, 41) que, num primeiro momento, são de difícil compreensão. O informante parece apresentar um inventário fonético completo, entretanto, há vocábulos que, apesar de muito familiares para o aluno, são articulados com maior dificuldade. Esse fato sugere haver, ainda que esporadicamente, problemas relacionados à discriminação e à programação motora dos sons constitutivos da palavra. Dentre as alterações em evidência, verifica-se em três itens lexicais (acordo, espreguiçando e informática) o apagamento da primeira sílaba. No entanto, esses vocábulos, ainda que considerados 93 desviantes, em se tratando de um falante de 17 anos, mantêm relação com a palavra-alvo em termos de estrutura silábica e relação morfológica (acordo-codo ['kɔdʊ], informática-fomática [fo'matʃɪka], espreguiçando-priguiçano [prɪgɪ'sãnʊ] etc). Esse fato corrobora a ideia de exemplares armazenados na memória (tokens) para categorizar, identificar e perceber semelhanças e diferenças no processo de aquisição de língua (cf. Bybee, 2001). As palavras com maior índice de desvio apresentam uma estrutura silábica mais complexa e provavelmente menos recorrente (menor frequência de tokens) na experiência linguística do informante (cf. linhas 21: congresso – [tro'drεsʊ], 34: imobilizar – [bolɪ'za], e 41: inscrever [ɪʃtre've]). Como discutido na seção 2.2.1, a percepção de segmentos sonoros é, sobremaneira, moldada pela experiência linguística do falante. Em não havendo frequência de ocorrência, pode-se aventar a hipótese de o falante, como explica Stampe (1978), optar por uma forma fonética menos complexa. Outra hipótese plausível para esse resultado é a de que o fenômeno pode ser motivado pela dificuldade de programação motora, sobretudo em vocábulos estruturalmente mais complexos. É relevante colocar em foco que a fala de S3, em linhas gerais, não caracteriza desvio de natureza fonoarticulatória, fato que, pelo menos em parte, pode estar relacionado à terapia fonoaudiológica e à estimulação verbal. Os vocábulos, na sua maioria bem articulados, estão relacionados a itens lexicais recorrentes na experiência do informante com sua língua. Corroborase, assim, o postulado da Fonologia de Uso de que palavras de alta frequência de ocorrência no universo linguístico do falante (com desenvolvimento típico ou atípico) tornam-se exemplares robustos e facilmente recuperáveis na memória, facilitando a comunicação (cf Bybee, 2001). Isso pode explicar a articulação apropriada do verbo “aprender” (cf. linha 16). Entretanto, a não frequência de uso do verbo “inscrever”, apesar da semelhança em termos de estrutura sonora com “aprender”, pode motivar a alteração observada (inscrever – [ɪʃtre've]). Note-se, por um lado, que os dados demonstram que, mesmo nos itens considerados desviantes, as alterações consistem de tipos silábicos possíveis, o que corrobora a importância do 94 detalhamento fonético na aquisição lexical. Por outro, abstrações de certos tipos estruturais fonológicos dependem de uma armazenagem maior de itens. Essa questão mantém íntima relação com o quadro da deficiência mental, já que o processo de estocagem de itens lexicais pode ser mais lento. Para ilustrar esse aspecto, na coarticulação de EC, por exemplo, a relação entre grupos consonantais e léxico pode ser uma evidência de que estruturas abstratas mais complexas vão se formando gradativamente à medida que o léxico aumenta. Não se trata, no entanto, de um problema de natureza fonológica, pois o portador de SD, assim como os falantes ditos normais, armazena em seu léxico mental exemplares de diferentes padrões sonoros, ainda que o processo demande mais tempo. Sequência 2 (entrevista com S5) 42. P: Conta como é o seu dia... 43. S5: Eu acordo, tomo banho, tomo café da manhã... 44. P: E você come o quê no café da manhã? 45. S5: [bɪʃ'kotʊ] (biscoito), [...] [pã'tega] (manteiga). 46. P: E bebe o quê? 47. S5: Bebo [ʃʊ'kiɲʊ] (suquinho). 48. P: No almoço você gosta de comer o quê? 49. S5: ['kanɪ] (carne), purê, arroz. 50. P: E depois do almoço, o que você faz? 51. S5: Depois eu vou para o [kʊ'jεʒɪw] (colégio). 52. P: Como é seu dia no colégio? 53. S5: Eu estudo. 54. P: O que que você estuda? 55. S5: Eu estudo o Saci [fow'kɔj] (folclore). 95 56. P: Folclore? 57. S5: É! 58. P: O Saci mora onde? 59. S5: na [fʊ'jεʃta] (floresta). 60. P:Você gosta de escrever? 61. S5: Eu gosto. Eu escrevi: “O Saci é menino levado”. 62. P: Você prefere estudar português ou matemática? 63. S5: [tʊ'gejʃ] (português). 64. P: Quando você chega em casa, depois do colégio, você faz o quê? 65. S5: Eu vejo [teevɪ'zãw] (televisão). À noite eu vejo [kaʃ'tεʊ] (castelo) Ra-tim66. bum. Eu vou [taba'a] (trabalhar) na TV. 67. P: Você quer trabalhar na TV? Quer ser ator? 68. S5: ['kεʊ] (quero) ser ator, sim. À primeira vista, os segmentos em foco estampam alterações envolvendo trocas e omissões de fonemas e/ou cadeias sonoras, fenômenos indicativos de fala disártrica e dispráxica (cf. linhas, 45, 47, 51, 55, 63, 65 etc) que, como se vê, resulta na produção de palavras com características infantilizadas. Stampe (1973) define esse tipo de fala como um recurso utilizado pelo falante para evitar estruturas sonoras mais complexas. O fenômeno pode estar relacionado a desvios de natureza fonológica, como a ausência de discriminação de sons num determinado contexto fonológico. Notese que o informante, em vários exemplos, cancelou ou substituiu os fonemas lateral /l/ (“colégio”, “televisão”, “castelo”, “trabalhar”) e vibrante /r/ (“floresta”, “quero”). Considerando-se que a idade cronológica do informante (19 anos) não é compatível com sua idade mental, pode-se, por outro lado, aventar a hipótese de que S5 esteja em processo de aquisição das estruturas sonoras da língua, tal como uma criança de 4 ou 5 anos de idade estaria. 96 Similarmente a crianças com desenvolvimento típico em idade de aquisição, a fala de S5 denota itens lexicais articulados com perfeição, ao passo que há vários exemplos de palavras mal articuladas. O cancelamento da vibrante /R/ medial em “carne” (cf. linha, 49), assim como em “garfo”, no teste de nomeação (cf. anexos), é um aspecto que chama a atenção por não ocorrer sistematicamente com falantes ditos normais e com a mesma idade cronológica de S5. De acordo com Mollica (2003:33-34), “o cancelamento da vibrante na língua oral incide principalmente na posição final das palavras; em posição medial, a não realização do segmento diminui na fala à medida que se processa a aquisição do português, permanecendo variável apenas em alguns itens lexicais.” Por outro lado, pesquisas apontam que esse tipo de cancelamento é passível de ocorrer em pessoas com desenvolvimento típico de baixa escolaridade, aspecto que recorrentemente se reflete na escrita (cf. Moura, 2009). À luz dos Modelos Baseados no Uso (cf. seção 2.2.1), à proporção que os itens são categorizados e estocados pode haver redução de segmentos em um dos exemplares. Essa pode ser uma possível explicação para o apagamento do /R/ medial nas palavras citadas. O cancelamento em um dos itens lexicais pode se estender para os demais membros da rede (“carne”, “garfo” etc). Huback (2001) chama a atenção, no entanto, de que nem todos os itens lexicais são necessariamente afetados ao mesmo tempo. Algumas palavras (ou expressões) são cristalizadas no léxico, sendo acomodadas como unidades fonológicas inteiras (por exemplo, a expressão “tudo bem?”). Esse fenômeno se relaciona ao fato de as palavras (ou expressões) serem automatizadas pela frequência de uso (ocorrência) e, portanto, sujeitas à mecanização, como qualquer outra atividade neuromotora que se pratique sistematicamente. Outro dado relevante na amostra de S5 é o apagamento da primeira sílaba da palavra, como no caso de “português” (cf. linha 63). O cancelamento da sílaba inicial também ficou em evidência nos dados de S3. Segundo pesquisa conduzida por Rechia et al (2009), na programação motora de 97 uma palavra do português, a primeira porção identificada são as duas sílabas dentro do pé métrico (as duas sílabas mais à direita da palavra). A preservação do pé métrico possivelmente tem relação com o maior peso na identificação da palavra pelo ouvinte. Na palavra “sapato”, por exemplo, as sílabas “pa” e “to”seriam primeiramente identificadas e articuladas com maior acuidade por exercerem maior peso na identificação da palavra. Assim, produções como “papato” (assimilação), “tapato” (substituição) ou mesmo “pato” (apagamento silábico) seriam formas previsíveis. Note-se que S5, cuja idade mental não é compatível com a cronológica, tal como sujeitos ditos normais em idade de aquisição, evita apagar sílabas ou segmentos consonantais no pé métrico. Ao contrário, prefere substituí-los ou esforça-se para articulá-los com acuidade. Os apagamentos ocorrem, primordialmente, em estruturas silábicas mais complexas. Em casos de dispraxia severa, como se constata na fala de alguns portadores de SD (cf. anexos), a produção [ejʃ] para “português”, por exemplo, seria possivelmente a estrutura preservada no apagamento total de consoantes. A alteração da estrutura silábica (ruptura do padrão silábico) é um fenômeno recorrente da fala de sujeitos com dispraxia verbal. Cancelamentos e/ou substituições consonantais e vocálicas podem tornar a fala ininteligível para o locutor. Algumas produções verbais na fala de S5 corroboram tal aspecto (cf. linhas 55, 59, 66, entre outras). A fala dispráxica se caracteriza pela dificuldade de alternar pontos articulatórios, isto é, sequenciar movimentos orofaciais, fato que leva à variabilidade articulatória gerando alterações idiossincráticas e até produções inconsistentes de uma mesma palavra. Os dados demonstram também que o aumento da dificuldade de realização fonética da palavra é proporcional à extensão do vocábulo. Rechia et al (2009) argumentam que essas alterações decorrem, a priori, de déficits na transição entre o fenômeno fonológico (input) e o padrão articulatório (output). As alterações de natureza articulatória estão fortemente relacionadas à ocorrência contextual de um determinado fonema. Desse modo, podem ocorrer produções distintas de um mesmo fonema-alvo em diferentes momentos. 98 Os aspectos articulatórios ilustrados nesta primeira fase da análise são uma pequena amostra do universo de alterações passíveis de ocorrer na fala de portadores de SD. Os dados de S3 e S5 serviram de base para o prosseguimento de análise com mais quatro sujeitos de pesquisa, totalizando seis informantes na segunda etapa do estudo. É importante ressaltar que as alterações de ordem fonético-fonológicas em foco nessa primeira etapa de análise, constituem o aspecto prototípico deste estudo, já que são menos prováveis de ocorrer com alunos de desenvolvimento típico em processo de alfabetização. Independentemente da idade cronológica do alfabetizando (uma criança em torno de seis ou sete anos, um adolescente ou um adulto), desvios articulatórios envolvendo vários segmentos da estrutura da palavra ou ainda omissões de padrões silábicos são incomuns em alunos com desenvolvimento típico. Assim, o ponto que se faz relevante na pesquisa é que os desvios registrados apresentam caráter estrutural e/ou funcional, sendo possivelmente agravados por questões neurológicas (“teto” cognitivo mais baixo) relacionadas à dificuldade de discriminação, memorização e organização de sons. O comprometimento nos níveis mencionados conduz à fala ininteligível e infantilizada, considerando-se que a pesquisa foi realizada com adolescentes e jovens adultos. O desvio fonoarticulatório é uma condição orgânica (dificuldade de realização do gesto articulatório e retardo mental) associada a fatores de natureza psicossocial. Assim, o menor ou maior comprometimento do aparelho fonador agregado a diferentes níveis de maturação neurológica é que determinam diferentes graus de transtornos articulatórios. Somam-se aos diferentes perfis variáveis psicossociais, por exemplo, a interação verbal e a frequência de terapia fonoaudiológica, como ilustram os dados da segunda fase da pesquisa. 99 4.2 Disartria, dispraxia e processos fonológicos associados Nesta seção discuto os principais resultados da segunda etapa do trabalho de campo. É pertinente lembrar que essa fase teve como meta analisar com maior acuidade os fenômenos observados na fala dos informantes da primeira etapa, a saber, a disartria e a dispraxia verbal refletidas em fenômenos de alterações de sons e/ou cadeias sonoras. Como mencionado no capítulo de metodologia, todas as palavras (enunciadas e lidas) utilizadas nos testes foram gravadas em áudio e transcritas foneticamente. A produção escrita, por sua vez, foi fielmente reproduzida (cf. Anexos) para que fosse possível compará-la com os dados de enunciação e leitura. 4.2.1 Desempenho oral dos informantes: enunciação x leitura Inicialmente apresento a tabela contendo a pontuação geral dos testes orais (enunciação e leitura) relativos à produção de palavras familiares. Para facilitar a análise, a classificação numérica dos informantes (S1, S2 etc) corresponde à classificação da tabela que ilustra as características dos alunos apresentadas no capítulo de metodologia (cf. Seção 3.1.1). Para a testagem do desempenho oral (nomeação de gravuras e leitura), levou-se em consideração o número de palavras corretamente articuladas, nos três grupos de itens lexicais testados. Cada palavra corretamente articulada tanto na enunciação espontânea quanto na leitura equivale a um (1,0) ponto, chegando-se a um total de sessenta (60) pontos para a etapa de nomeação mais sessenta (60) pontos para a etapa de leitura (20 pontos para cada um dos três grupos testados: (1) processo fonológico de simplificação em vocábulos polissílabos – PFS; (2) coarticulação de encontros consonantais – CEC; (3) alteração fonêmica em vocábulos monossílabos e dissílabos -AFMD). 100 Tabela I - nomeação de vocábulos familiares: índice de acuidade articulatória Informante Nº de acertos na Nº de acertos na Nº de acertos na Total de acertos testagem de PFS testagem de CEC testagem de por aluno – o em palavras AFMD acerto de todos os polissílabas vocábulos testados = 60 pontos S1 12/20 = 60% 10/20= 50% 19/20= 95% 41/60= 68,3% S2 zero 1/20= 0,5% 11/20= 55% 12/60= 20% S3 15/20= 75% 13/20= 65% 19/20= 95% 47/60= 78,3% S4 16/20= 80% 15/20= 75% 19/20= 95% 50/60= 83,3% S5 4/20= 20% 6/20= 30% 15/20= 75% 25/60= 41,6% S6 17/20= 85% 17/20= 85% 20/20= 100% 54/60= 90% Tabela II - leitura de vocábulos familiares: índice de habilidade de correspondência grafo-fonêmica. Informante Nº de acertos na Nº de acertos na Nº de acertos na Total de acertos testagem de PFS testagem de CEC testagem de por aluno= em palavras AFMD 60 pontos polissílabas S1 15/20= 75% 14/20= 70% 19/20= 95% 48/60= 80% S2 zero zero 7/20= 35% 7/60= 11,6% S3 1/20= 0,5% 4/20= 20% 7/20= 35% 12/60= 20% S4 7/20= 35% 8/20= 40% 15/20= 75% 30/60= 50% S5 Zero Zero 3/20= 15% 3/60= 0,5% S6 17/20= 85% 17/20= 85% 20/20= 100% 54/60= 90% 101 Para discutir os resultados dos testes de natureza oral, retomo as hipóteses e questões (relacionadas às hipóteses) que nortearam o planejamento das investigações empíricas relativas a esta pesquisa, a saber: – portadores de SD apresentam dificuldade para discriminar sons e realizar foneticamente uma cadeia sonora; – que alterações fonético-fonológicas são mais recorrentes nos sujeitos de pesquisa? – a extensão do vocábulo é proporcional à dificuldade articulatória; – a realização de coarticulação de EC é inconsistente; – o processo de decodificação (rota grafema-fonema) fica comprometido na fase de apropriação da lectoescrita; – diferentes graus de imaturidade neurológica determinam diferentes graus de transtornos articulatórios? – alunos submetidos a terapias fonoaudiológicas atingem melhor performance? Uma análise preliminar da tabela I ratifica a hipótese de que pelo menos uma parcela da população com SD apresenta dificuldade de discriminação de sons e realização fonética de cadeias sonoras. De modo geral, os testes de enunciação indicam desvios articulatórios (em maior ou menor grau) para todos os informantes (nenhum deles atingiu o índice de 100% de acuidade articulatória), principalmente nas produções de S2 e S5 cujas pontuações ficaram aquém do esperado em se tratando de palavras usuais. A tabela I ilustra ainda que o maior índice de acuidade articulatória se deu nos vocábulos monossílabos e dissílabos, confirmando a hipótese de que palavras de menor extensão são menos propensas a alterações fonêmicas; as palavras mais extensas, estruturalmente mais complexas, são 102 mais passíveis de sofrer mudanças. Os números observados na tabela indicam ainda haver inconsistência na coarticulação de grupos consonantais. Note-se que, novamente, os informantes S2 e S5 exibem pontuação muito baixa. Mesmo os outros informantes, cujos escores vão de 50% a 75% de acuidade, cometem desvios de ausência de coarticulação e/ou coarticulação com substituição de sons. Os índices corroboram também que alunos submetidos à terapia fonoaudiológica exibem melhor performance (cf. amostra de S6) em relação aos demais. Cruzando-se os dados das tabelas I e II, nota-se que, comparativamente, os índices de desvios na decodificação são proporcionais aos de enunciação, confirmando, como previsto na hipótese, que déficits na oralidade se refletem na leitura. Desse modo, as palavras polissílabas, as mais afetadas na oralidade, foram também as mais alteradas quando lidas, ao passo que palavras monossílabas e dissílabas tiveram melhor desempenho. Vale chamar atenção para o fato de que, no que tange à pontuação geral das duas tabelas, a de enunciação ilustra escores mais altos em relação à de leitura, fato que indica haver, entre os informantes, problemas relacionados à habilidade de correspondência grafo-fonológica (salvo amostra de S1 que, curiosamente, pontuou melhor no teste de leitura e de S6, que demonstrou equidade nas duas tabelas). Em linhas gerais, os desvios de ordem articulatória em evidência na oralidade, não necessariamente implicam distúrbios de natureza fonológica. Os dados da informante S1, por exemplo, denotam habilidade para discriminar sons (ex: /l/ x /r/) num mesmo contexto fonético, aspecto indicativo de capacidade fonológica intacta. No entanto, um fenômeno recorrente na amostra de S1 são as trocas envolvendo os fonemas vibrante [r] e lateral [l] ([gra'vata] x [gla'vata], ['grobo] x ['globo], [ʒera'dera] x [ʒela'dera]). Uma possível hipótese para a ocorrência desse fenômeno é que esses sons são muito semelhantes do ponto de vista articulatório, sendo ambos soantes, coronais e sonoros, o que favorece as substituições de um pelo outro e vice-versa. Portanto, os dados dão indícios de alteração de natureza articulatória mas não fonológica. 103 Outra explicação para o rotacismo de [l] por [r] é a de que, na língua portuguesa, algumas variantes da forma padrão envolvendo a substituição desses segmentos são amplamente difundidas. Um exemplo disso é que para a palavra “Flamengo” S1 enunciou e leu [fra'mẽgʊ]. Similarmente, a palavra “globo” foi enunciada ['grobʊ]. Tal fenômeno é explicado pela Sociolinguística Variacionista, liderada por William Labov. Mollica (2006) explica que a variação observada acima é entendida como um princípio geral e universal (inclua-se aqui falantes ditos atípicos), passível de ser descrita e analisada cientificamente. A coexistência dessas formas variantes é motivada principalmente por fatores de ordem linguística (contexto fonológico propício, por exemplo) e/ou social (escolaridade, classe social etc). De acordo com Bortoni-Ricardo (2006), casos de variação como os citados acima levam a Sociolinguística a contribuir para o ensino da leitura e da escrita, ao fixar como foco de investigação a covariação sistemática das variantes linguísticas e sociais. Tal aspecto chama a atenção do professor para o fato de que é preciso distinguir se a leitura do alfabetizando revela problemas de decodificação ou apenas reflete a transferência de regras fonológicas da oralidade. Os dados anteriores não sugerem, portanto, que a informante apresenta desvio de natureza fonológica, mas que provavelmente se apropriou de variantes orais, a propósito, não migradas para a escrita (a aluna redigiu “flamengo”). O fenômeno citado também estabelece relação intrínseca com os pressupostos teóricos dos Modelos Baseados no Uso (cf. seção 2.2.1). Segundo o que postula a teoria, o conhecimento linguístico decorre de experiência e índices probabilísticos gerenciam a estabilidade e maleabilidade de sistemas. O que conjuga o conhecimento linguístico dos falantes são as generalizações inferidas pela grande quantidade de experiências similares. Assim, pode-se postular que S1 estocou em seu léxico mental dois exemplares para a palavra “globo” (['globʊ] e ['grobʊ]), ou seja, sua gramática acomoda as duas formas sonoras produzidas, podendo a aluna enunciar ora uma, ora outra forma. Da mesma maneira que se verifica a ocorrência de ['globʊ] e ['grobʊ], S1 agrega em seu 104 léxico mental duas formas possíveis para a palavra “Flamengo” ([fla'mẽgʊ] e [fra'mẽgʊ]). Ainda de acordo com a Fonologia de Uso, esse dado ajuda a corroborar a ideia de que as palavras são agrupadas segundo sua similaridade fonológica ou semântica. Essas palavras constituem, assim, esquemas de interconexões a partir de traços compartilhados, sendo um item mais ou menos prototípico dentro do esquema de acordo com sua frequência de ocorrência. Assim, o rotacismo de /l/ para /r/, sendo um fenômeno fonológico amplamente difundido na língua portuguesa, constitui um esquema altamente produtivo e cada vez mais forte. Daí ocorrerem termos potencialmente possíveis como, além dos anteriormente mencionados, [bɪsɪ'krεta] para “bicicleta” e [po'brema] para “problema”. Essa é uma concepção de léxico baseada no uso concreto da língua, independentemente de se considerar um falante com desenvolvimento típico ou com retardo mental, como é o caso do portador de SD. Exemplos como [bɪsɪ'krεta], [fra'mẽgʊ] e ['grobʊ] demonstram que a variação sociofonética mantém relação com a abstração de padrões fonológicos. As variantes observadas constituem formas fonéticas (da mesma palavra) em competição e, portanto, podem refletir variação entre padrões fonológicos. Os dados ilustram que o uso linguístico real é altamente variável, gradiente, rico em fenômenos contínuos. Trata-se de um processo decorrente da variação do input. A amostra de S2, porém, aponta para distúrbios de ordem articulatória (dificuldade de realizar foneticamente uma sequência sonora) que se refletem em desvios de natureza fonológica (dificuldade de discriminar e concatenar sons). Tal aspecto, vinculado primordialmente à imaturidade neurológica (cf. capítulo 1), torna complexo o processo de memorização de sequências sonoras, fator que desencadeia alguns processos fonológicos, dentre eles, a simplificação. Afora os aspectos neurológicos, a hipotonia orofacial generalizada, sendo um fator complicador para a realização do gesto articulatório (cf. capítulo 2), também induz cadeias soras simplificadas. Mesmo S1, cuja maioria de dados não denota grupos consonantais simplificados, realizou esse processo fonológico nos vocábulos “liquidificador”, “computador”e “helicóptero”. 105 No entanto, os dados que melhor ilustraram o processo fonológico de simplificação foram os produzidos por S2. Note-se que, na etapa de nomeação das figuras, todas as palavras (à exceção de uma) sofreram simplificação, estando, algumas vezes, a estrutura sonora aproximada da palavraalvo (“manteiga” x [mã'deda]; “chocolate” x [ko'latʃɪ]) e outras, bem diferente (“ventilador” x [mama'dãw]; “papagaio” x [mama'dadʊ]). Esse aspecto se repete na amostra de S5 que, de modo similar à S2, obteve uma das piores pontuações na oralidade (“hipopótamo” x [ɪpo'pɔtʊ]; “matemática” x ['matʃɪka]). Um aspecto recorrente na simplificação é a apagamento de padrões silábicos, como já discutido na primeira etapa da análise de dados. A omissão de cadeias sonoras conduz quase sempre à ininteligibilidade da fala (por exemplo, “liquidificador” enunciado “[mo'do]” e lido /fi/ por S2; “ventilador” enunciado [tʃɪla'dor] por S5), caso não se considere o contexto em que a palavra foi produzida. A comunicabilidade fica, desse modo, comprometida. Soma-se à inconsistência dos dados de enunciação (nomeação da figura) a ausência de correlação com a leitura. Há dois aspectos vigentes: um deles é que cadeias sonoras podem ser simplificadas na enunciação, mas não na leitura ou vice-versa. S1, por exemplo, apesar de ter simplificado o vocábulo “computador” ([pʊkʊta'do]) no teste de nomeação, não o fez na etapa de leitura, articulando o vocábulo apropriadamente ([kõpʊta'do]). Esse fato, em particular, chama atenção para um ponto importante. Pela análise das duas tabelas, vê-se que S1, curiosamente, obteve melhor desempenho na leitura do que na enunciação das palavras em dois dos processos fonológicos testados (PFS e CEC). A visualização do item lexical parece ajudar no processo de categorização sonora, facilitando a percepção da relação som-letra. Esse fato indica que, embora não tenha obtido escores mais altos na etapa de nomeação, S1 apresenta um nível de consciência fonológica mais elevado comparativamente aos demais informantes (à exceção de S6), já que recupera a acuidade articulatória na leitura da palavra. O segundo aspecto patente no que tange à interface enunciação-leitura é que, tanto numa fase quanto na outra, as palavras são simplificadas, mas com estruturas sonoras completamente 106 divergentes. S2, por exemplo, enuncia [mã'dãtʃɪ] e lê [ele'atʃɪ] para “elefante”. O fenômeno se repete na amostra de S3 que, mesmo tendo pontuado melhor que S2 nos testes de enunciação, não obteve pontuação satisfatória no que tange à leitura (“chocolate” x ['komo]; “abóbora” [pa'pãno]. Ambos os aspectos apontam para a incongruência nos dados de oralidade, tendo em vista que nem sempre a leitura corresponde ao que foi previamente enunciado. Um fato instigante no que concerne à (ausência de) correlação enunciação-leitura fica em evidência no teste de S5. Ao ser solicitado a ler determinada palavra, o informante não produzia padrões silábicos, como ocorrera com os outros sujeitos, apenas soletrava. Indagado a respeito de que palavra se tratava (após a soletração), respondia de modo aleatório, pronunciando algo que não estabelecia qualquer relação com o que fora previamente soletrado (“elefante” é enunciado [ee'fãtʃɪ] e lido [mɪ'nina]; “manteiga” enuncia-se [pã'tega] e lê-se [tatʃɪ'ãna]; “lagartixa” é enunciado [lata'tʃiʃa] e lido [zaka'riaʃ] etc). Tal aspecto ocorreu igualmente nas testagens de coarticulação de EC e alteração fonêmica em palavras monossílabas e dissílabas. Desse modo, parece razoável postular que a não compatibilidade entre enunciação e leitura, ou seja, produções orais distintas como demonstram os dados (melhores pontuações para S1 e S6), ocorre na medida em que os desvios de natureza fonético-fonológica se refletem na dificuldade para estabelecer a relação grafo-fonêmica. Não são raros os episódios em que os informantes decodificam uma palavra não obedecendo a uma sequência lógica na relação grafema-fonema, mesmo quando obtêm bom desempenho na enunciação, como é o caso de S4 (discutido mais a diante). O resultado, em geral, é a combinação aleatória dos fonemas que integram a palavra (cf. Anexos) favorecendo a produção de uma cadeia sonora distinta da que se produziu na fase de enunciação. Um aspecto igualmente relevante, ainda no que tange ao processo fonológico de simplificação, é a extensão do vocábulo como fator motivador da alteração estrutural da palavra. Note-se que os vocábulos “liquidificador” e “helicóptero” tiveram suas estruturas sonoras mais 107 desviadas, foneticamente falando. O tamanho da palavra parece induzir o processo de simplificação: quanto maior o item lexical, maior a chance de se realizar cadeias sonoras simplificadas, já que é mais difícil memorizar a sequência sonora e realizá-la foneticamente. Decorrem daí os diferentes resultados das enunciações de S1 ([lɪtʃɪka'do] e [ele'kɔterʊ]), S2 ([mo'do] e ['kɔbɪlɪ]), S3 ([filiʃika'do]) e S5 ([lɪlʊa'doR] e [elɪ'kɔpɪdʊ]) para as palavras “liquidificador” e “helicóptero”. Chama atenção o fato de que, a despeito da simplificação de padrões silábicos, os informantes não demonstraram dificuldade com relação à percepção e à produção da sílaba tônica, o que novamente remete aos preceitos da Fonologia de Uso no que tange à importância do detalhamento fonético na aquisição e armazenamento do item lexical (cf. seção 2.2.1). Ainda com relação ao teste para verificar a ocorrência de processos fonológicos de simplificação dois pontos merecem destaque em relação à informante S4. Em primeiro lugar, a etapa de nomeação das palavras foi desenvolvida satisfatoriamente, tal como o fez S1, também do sexo feminino. S4 apenas exibiu raras substituições de fonemas, sobretudo os vocálicos (“geladeira” é enunciada [ʒala'dera] e “abóbora” é enunciada [a'bɔbara]). A fala, absolutamente inteligível, pode estar associada à terapia fonoaudiológica, além da estimulação verbal nos diversos contextos sociais aos quais a informante está inserida. Como ocorreu com os outros três informantes, S4 apresentou dificuldade para articular as palavras “liquidificador” ([vẽtʃɪka'do]) e “helicóptero” ([ele'kɔpɪrɪto]). No entanto, não se pode afirmar que esses dados indiquem déficit fonético-fonológico, uma vez que em todos os outros itens testados os resultados foram considerados satisfatórios. Uma das hipóteses levantadas é que a extensão das palavras contribui para a confusão mental no processo de combinação de fonemas, fenômeno passível de ocorrer também com falantes ditos normais. Note-se, porém, que uma palavra de grande extensão, mas usual para os informantes, como “matemática”, foi apropriadamente enunciada pela aluna. O outro ponto que merece reflexão, ainda no que concerne à oralidade, é relativo aos testes 108 de leitura de S4. Curiosamente, ao contrário de S2, cuja fala ininteligível reflete déficits de ordem fonético-fonológico, S4 teve uma performance excelente nos testes de enunciação. Supunha-se, dessa maneira, que a informante apresentaria um desempenho superior ao de S2 nos testes de leitura, considerando-se que a melhor performance no nível articulatório conduziria a uma maior habilidade no conhecimento das regras de correspondência grafo-fonológicas. Entretanto, os testes de leitura de S4 se equipararam aos de S2 em termos de dificuldade para estabelecer a relação grafema-fonema. Esse fato sugere que apesar da inteligibilidade da fala (articulação apropriada) de S4, há um baixo nível de consciência fonológica (cf. seção 2.3.2) necessário, em termos pedagógicos, para a fluência da leitura. Tal aspecto leva S4 a fazer tentativas constantes de adivinhações (“Maracanã” lê-se [mate'matʃɪka], “abóbora” lê-se ['boka]), característica recorrente também na amostra de S3, afora exemplos de decodificação de apenas parte da cadeia sonora (“liquidificador” é lido [li]), o que contribui para a ausência de percepção em relação à sílaba tônica da palavra (“hipopótamo” é lido [pota'mo]). Ocorrem ainda nos dados de S4 a decodificação apropriada de padrões silábicos constitutivos da palavra, porém com inserção de fonemas que não constam do vocábulo (“melancia” é lida me'lada]), além de soletração que resulta em enunciação de pseudopalavra (“quadro” é lido [ka:d:εxe:o]) e assim por diante. É provável que os vocábulos lidos apropriadamente (passarinho, chocolate, matemática, televisão, computador, Botafogo etc) não tenham relação com o processo de decodificação em si (rota grafema-fonema) mas com a memória visual da palavra (leitura ortográfica-rota lexical). As tabelas I e II indicam que S6 foi a informante que melhor desempenhou os testes orais (nomeação e leitura). A articulação de palavras polissílabas, realizada com fluência e nitidez, teve como característica principal a relação biunívoca entre enunciação e leitura, o que sugere habilidade de correspondência grafo-fonológica. Esse fato, provavelmente tem relação com a estimulação verbal precoce, além de suporte fonoaudiológico (a informante, atualmente com 24 anos de idade, 109 tem feito fonoaudiologia ininterruptamente, desde criança, segundo informação fornecida pela escola). Dos vinte vocábulos polissílabos testados, apenas três sofreram alterações de natureza fonética (“margarina”, “lagartixa” e “computador”). As características vigentes na simplificação desses vocábulos constam de apagamento do segmento travador da sílaba ([maga'lina], [laga'tiʃa]) e desnasalização ([kopʊta'dor]). Essas alterações não parecem configurar um problema de ordem fonológica, já que a aluna demonstra habilidade para discriminar e concatenar fonemas em vocábulos estruturalmente mais complexos, como “liquidificador” e “helicóptero” (palavras fielmente articuladas). Possivelmente, esses desvios de natureza articulatória, em se tratando de exemplos isolados, são motivados pela configuração, propositalmente mais simplificada, do trato vocal que acabam por se impor como as formas de referência que emergem no momento da enunciação. Comparativamente aos dados dos demais informantes, pode-se afirmar que as alterações observadas nesse grupo de palavras são menos complexas e irrelevantes (não dão indícios de distúrbio de linguagem) e, portanto, menos passíveis de afetar a comunicabilidade, como ocorre, por exemplo, com os dados de S2 e S5. No que tange aos testes de coarticulação de encontros consonantais, é possível afirmar que a amostragem corrobora a hipótese de inconsistência na coarticulação de grupos consonantais. Em linhas gerais, os dados mostraram-se bastante heterogêneos, estando alguns aspectos em evidência. Os informantes, quando realizam o processo de coarticulação de EC, podem fazê-lo apropriadamente (S1, S4 e S6 obtiveram os escores mais altos), no entanto também o fazem com substituição de sons (S3 e S5). Além disso, há casos de grupos consonantais que não são coarticulados (mesmo nas amostras de S1, S4 e S6), resultando em padrões silábicos CV. À semelhança do que ocorrera no teste com vocábulos polissílabos, chama a atenção o fato de a leitura de certos itens não corresponder à enunciação espontânea da palavra. A título de 110 exemplo, “quadro” enunciado ['kwarʊ], sem coarticulação de EC, foi lido ['kwadrʊ] por S1. Esse é um aspecto instigante, já que a coarticulação da sequência [dr] no processo de decodificação indica que a aluna apresenta o padrão sonoro em seu repertório fonológico e consegue realizá-lo foneticamente. Inversamente, a palavra “Drácula” é enunciada ['dlakʊla] e lida ['rakʊla]. Assim, torna-se difícil alcançar uma resposta plausível para a ausência de coarticulação de EC, ora na etapa de nomeação das gravuras, ora na etapa de leitura. No entanto, se em determinado momento (enunciação e/ou leitura) a informante realiza a sequência sonora solicitada, o fenômeno não parece configurar um déficit fonológico, porém uma limitação para articular, mais por razões neurológicas (déficit de memória ou atenção, por exemplo) do que propriamente por incapacidade de realizar o gesto articulatório. O “teto” cognitivo mais baixo parece motivar diferentes realizações fonéticas para uma mesma palavra, daí as amostras conflitantes nos testes de enunciação e leitura. Esse aspecto corrobora ainda que a idade mental não é compatível com a idade cronológica dos informantes. Os dados remetem à fala de crianças com desenvolvimento típico em fase de aquisição da língua. Um fato já esperado é que S2, cuja fala se apresenta ininteligível na maioria dos itens lexicais testados, não realizou a coarticulação de EC, à exceção de uma palavra (“globo”, enunciada ['globʊ]). Os dados do informante ratificam o estudo conduzido por Hamilton (1993) sobre a dificuldade de portadores de SD, falantes nativos de língua inglesa, para fazer coarticulação de EC. Uma característica reincidente na amostra de S2 é que, além de o informante não realizar coarticulação de EC nem no teste de enunciação tampouco no de leitura, a decodificação dos itens lexicais testados se mostra, quando não totalmente, em vários aspectos conflitante com a fala espontânea (ex. ['globʊ] - enunciação x [ʃelo'po] - leitura). O aluno ora combina aleatoriamente fonemas que integram a palavra que foi solicitado a ler, ora articula unidades sonoras que não estabelecem qualquer relação com as letras do item lexical testado, chegando-se a um quadro de pseudopalavras em que enunciação e leitura divergem totalmente. 111 No caso da leitura da palavra “globo” ([ʃelo'po]) note-se que, apesar de, à primeira vista, parecer que o informante combinou fonemas aleatoriamente, existe certa lógica na enunciação feita, ainda que tenha resultado em pseudopalavra. Na tentativa de decodificar a letra “g”, isoladamente, o aluno se equivoca duplamente ao substituir o fonema /g/ por /ʒ/. Note-se que no sistema fonológico do PB, esses fonemas divergem apenas pelo traço contínuo (cf. Callou & Leite, 1990). Ao decodificar a letra “g” como /ʒ/, S2 o faz através de um fonema homorgânico surdo (/ʃ/). Em seguida, o informante decodifica a sequência /lo/ apropriadamente. Por final, ocorre outro equívoco na etapa de enunciação da última sílaba, quando S2 novamente substitui sons homorgânicos (/b/ por /p/), demonstrando, assim, tendência ao ensurdecimento. Nesse caso específico, além da confusão entre som surdo e sonoro, verifica-se claramente um problema de segmentação visual em relação aos padrões silábicos da palavra (o aluno parece não visualizar o padrão CCV - “glo”, segmentando o item lexical da seguinte maneira: g-lo-bo). Por conseguinte, a decodificação fica comprometida. Tal aspecto muito provavelmente encontra-se vinculado a déficits cognitivos. S5, à semelhança de S2, obteve desempenho pobre no teste de coarticulação de EC. Apenas metade das palavras foram coarticuladas, havendo ocorrência de rotacismo /l/ x /r/ (['prãta] e ['kluʃ]), além de ausência de correlação entre nomeação e leitura em cem por cento das palavras, tal como verificado no teste de simplificação. Novamente, ao ser solicitado a ler, o informante soletrava e enunciava uma palavra qualquer. Esse aspecto pode ser explicado pela avaliação da professora ao responder sobre o processo de alfabetização do aluno: “S5 tem dificuldade na escrita de algumas palavras. Quanto à leitura, demonstra insegurança em alguns momentos, aparentando não querer revelar o que realmente sabe, até mesmo com palavras de seu vocabulário.” Acrescenta também: “Ainda está no processo inicial da alfabetização, iniciando os fonemas simples.” Assim, estima-se que a variável tempo de escolarização pode ser considerada relevante ao se levar em conta a diferença de desempenho dos alunos em relação à leitura (e escrita, discutida adiante). S6, por exemplo, que começou a ser alfabetizada ainda criança (atualmente com 24 anos 112 de idade), apresentou os melhores escores, chegando a quase 100% de acuidade na relação letrasom. Os dados de S3 demonstram haver coarticulação de EC em vários itens testados. No entanto, em alguns dos vocábulos, ocorrem trocas de fonemas envolvendo sonoridade e/ou zona de articulação, como na substituição de /k/ por /t/ e vice-versa (ex: o vocábulo “criança” é enunciado [trɪ'ãsa], ao passo que a palavra “atlântico” é articulada [a'klãtʃɪkʊ]), ou seja, o informante faz coarticulação de EC, porém com substituição de fonemas. É recorrente a troca dos sons homorgânicos, como /k/ e /g/, por exemplo, por /t/ (“cruz”, enunciada ['truʃ] e “gravata”, enunciada [tra'vata]). Os pressupostos da Fonologia de Uso podem subsidiar o fenômeno supracitado. De acordo com o modelo teórico, o conhecimento fonológico emerge das formas fonéticas das palavras armazenadas no léxico, havendo dois níveis de representação da informação sobre a forma sonora: um nível fonético fino (memórias detalhadas da experiência de produzir e perceber itens são estocadas) e um nível de categorias abstratas (estrutura da palavra no nível de número de segmentos, tipos silábicos etc) que emerge da representação fonética fina. À medida que o léxico aumenta, cresce a acuidade no desempenho, já que o maior número de itens demanda o refinamento da informação fonética e permite a abstração de mais padrões estruturais que são usados na incorporação de novos itens lexicais. Assim, quanto maior o número de itens armazenados pelo léxico, mais abstrações de estruturas fonológicas. As alterações de sons, como demonstram os dados de alguns informantes, podem indicar problema de acesso à forma da palavra no léxico. De modo similar ao que se observa na amostra de S2, o processo de decodificação de S3, no teste de coarticulação de EC, não obedece a uma sequência lógica (relação grafema-fonema). Dessa maneira, chegou-se a um resultado em que apenas uma pequena parcela dos itens lexicais testados na etapa de leitura (“prato”, “livro”, “Drácula' e “Flamengo”) estabeleceu correspondência (ou pelo menos uma aproximação sonora) com o que havia sido previamente enunciado. Uma possível 113 explicação para a leitura acertada desses itens é que o aluno pode ter “fotografado” a forma escrita dessas palavras em seu léxico metal, facilitando o ato de ler. Por outro lado, como dito anteriormente, em vários dos vocábulos testados, obteve-se uma amostra conflitante entre enunciação e decodificação como, por exemplo, em “gravata”, enunciada [tra'vata] e lida [ka'vato]. Além disso, o aluno faz tentativas sistemáticas de adivinhação nos testes de leitura, de uma maneira geral. Por exemplo, decodifica apenas o primeiro grafema da palavra “quadro” e lê ['kejʒ ʊ]. Similarmente, decodifica a primeira sequência sonora da palavra “brinco” ([brɪ]) e lê [brɪga'dejrʊ]. Contrariando a pesquisa de Hamilton (1993), segundo a qual portadores de SD apresentam dificuldade para coarticular EC, S4 realizou foneticamente os encontros consonantais, tal como falantes com desenvolvimento típico. Não raro, porém, ocorrem trocas de fonemas (como verificado em S3), por exemplo, o rotacismo /l/ x /r/ e vice-versa ([fra'mẽgʊ], [bɪbrɪo'tεka], ['prãta], [klɪ'ãsa]) que não caracterizam patologia, mas apenas a acomodação de variantes da forma padrão. O único item que apresentou desvio foi o vocábulo “atlântico”, dado que a informante não soube responder o nome do oceano ao ser indagada sobre a figura. Na tentativa de repetir a resposta dada pela pesquisadora, o resultado foi a enunciação de uma pseudopalavra ['trãʃɪtʊ]. Os dados de S6, tal como ocorrera com a testagem de vocábulos polissílabos, ilustram alterações em três itens lexicais (“gravata”, travesseiro” e “frio”). Nesses itens, a informante não coarticulou os encontros consonantais, substituindo o padrão silábico de CCV para CV ([gara'vata], [tarave'serʊ] e [fɪ'riʊ]). À despeito dessas exceções, S6 demonstrou acuidade articulatória no que tange à articulação dos grupos [gr] e [tr] em outras palavras (['gravɪda] e ['trẽ]), fato sugestivo de que novamente trata-se de exemplos isolados e, portanto, não indicativos de desvio fonológico. Uma característica que chama atenção nos dados de S6 é que, nos três grupos de palavras testados, há sempre uma relação biunívoca entre nomeação e leitura. Nos vocábulos foneticamente alterados esse fato indica ausência de correspondência grafo-fonológica. Caso contrário, a aluna deveria recuperar, na etapa de leitura, a articulação apropriada da palavra. 114 Com respeito à testagem de alteração fonêmica em palavras monossílabas e dissílabas, nota-se que os informantes, em linhas gerais, obtiveram melhor desempenho nesse teste, tanto no tocante à enunciação quanto com relação à leitura, provavelmente em função de padrões silábicos mais simples (V e CV) em grande parte das palavras. Alguns aspectos merecem destaque. Primeiramente, à semelhança de falantes sem qualquer desvio de natureza fonoarticulatória, verifica-se a ocorrência de monotongação, como em “peixe”(['peʃɪ]) e “queijo”(['kejʊ]). Essa variação é fortemente controlada por fatores estruturais cujas tendências se instalam desde o início disciplinadamente, de modo que em alguns vocábulos há variação e, em outros, não (cf. Mollica, 2003:20). Observa-se, portanto, que fenômenos fonológicos recorrentes em indivíduos com desenvolvimento típico acontecem igualmente nos sujeitos de pesquisa. De acordo com os pressupostos teóricos da Fonologia de Uso, como explica Huback (2001), as mudanças que envolvem redução de segmentos ocorrem mais nas palavras mais frequentes, o que pode ser justificado pelo fato de que a articulação de palavras e frases, como uma atividade neuromotora qualquer, se torna mais automática ao ser constantemente repetida. Assim, palavras articuladas com maior frequência tendem a ser mais propensas ao apagamento de segmentos. As palavras mudam gradualmente e de acordo com o modo como o falante experiencia cada item lexical. Curiosamente, S2 faz monotongação na enunciação de “leite” (['letʃɪ]), palavra que geralmente não sofre esse fenômeno fonológico, mas recupera a ditongação na etapa de leitura. O informante S2, que não desempenhou bem os testes anteriores, obteve melhores resultados (ainda que inexpressivos) no grupo de palavras monossílabas e dissílabas. O teste de enunciação mostra-se sutilmente melhor que o de leitura, estando sete dos vocábulos testados na etapa de decodificação compatíveis com a da enunciação. Talvez a extensão das palavras (monossílabas e dissílabas), além dos padrões silábicos menos complexos, seja um aspecto facilitador para o melhor desempenho do informante em relação aos outros testes. Vocábulos menores e menos complexos, foneticamente falando, parecem ter relação intrínseca com a melhor performance articulatória. Por 115 outro lado, a amostra de S2, no que tange à enunciação das palavras monossílabas e dissílabas, é a que mais deixa em evidência as trocas sistemáticas de fonemas (['kako] para “carro”, ['tʃidʊ] para “cinto”, ['nudʒi] para “nuvem, além de inserção e omissão indevidas de sons (['faxka] para “faca”, ['kaʊ] para “carro”). Merece destaque a pontuação da informante S1 que, apenas atrás de S6 (que obteve cem por cento de acuidade articulatória), desempenhou muito bem o teste. Em todos os itens, à exceção de apenas uma palavra (“garfo”, enunciada e lida sem a articulação do fonema /x/), a aluna enunciou e leu apropriadamente, além de exibir decodificação condizente com a enunciação na maioria dos casos. Quanto à amostra de S3, pode-se dizer que, nos testes de enunciação, o informante exibiu desempenho plausível, estando todas as palavras adequadamente articuladas, à exceção de “garfo” enunciada com o cancelamento do fonema /x/. Fato curioso é que S1 e S2 também omitiram tal som na enunciação da mesma palavra. Nesse caso específico, uma análise análoga à que Mollica (2003) propõe em relação ao período de aquisição da fala de crianças com desenvolvimento típico parece satisfatória. A autora atribui o fenômeno de cancelamento do /R/ medial à falta de percepção da criança em relação ao padrão CVC. Vale lembrar que a idade mental dos sujeitos investigados não é compatível com sua idade cronológica. Isso pode explicar, pelo menos em parte, essas modificações estruturais na direção de um padrão mais simples (CVC para CV), como fazem crianças ditas normais em idade de aquisição. À medida que o indivíduo se apropria do padrão mais complexo, esses casos tendem a desaparecer, inicialmente na fala, depois na escrita. Com relação aos testes de leitura de palavras monossílabas e dissílabas, S3 exibiu performance um pouco melhor, quando comparada aos testes anteriores (sete das vinte palavras foram lidas corretamente). Parece que a menor extensão da palavra, nesse caso, constitui um fator que colabora para a organização mental do aluno no processo de decodificação dos grafemas. No entanto, verificam-se na amostra acréscimo indevido de som, muito provavelmente motivado por 116 assimilação (“ovo” é lido ['vovo]), omissão (“cinto” é lido ['sino]) e substituição de fonemas (“milho” é lido ['milʊ]). Quanto à adição de fonemas, tal como verificado em ['vovo], Rechia et al (2009) afirmam que palavras dissílabas com acento paroxítono e estrutura silábica simples (onset simples) são as mais propícias para a inserção de novos fonemas. Já que a amostra de S3 no teste de enunciação não dá indícios de desvio do padrão articulatório, é possível postular que os dados de leitura não configuram um problema de natureza linguística (fala disártrica, por exemplo, que se caracteriza por alterações de sons), mas podem ser reflexo de aspectos vinculados ao processo de alfabetização, como déficit de atenção ou visão deficitária. Segundo a professora, “ em determinados momentos, S3 demonstra insegurança para ler até mesmo palavras de seu vocabulário.” A dispersão, outra característica inerente ao informante, o leva a tentar adivinhar a palavra que deveria ser decodificada (fato verificado anteriormente). Assim, “garfo” é lido ['gatʊ] e mala é lida ['lagʊ]. No entanto, esse tipo de resultado não parece completamente aleatório, pois o aluno decodifica parte da palavra (nos exemplos acima S3 decodificou a primeira e a última sílaba das palavras “garfo” e “mala”, respectivamente). S4, no teste com palavras monossílabas e dissílabas, nomeou perfeitamente todos os itens lexicais listados. Além disso, tal como ocorreu com S1, apresentou pontuação satisfatória na etapa de leitura dos vocábulos apresentados. Como mencionado anteriormente, os dados indicam que palavras de menor extensão, associadas à estrutura silábica mais simples, podem facilitar o processo de decodificação. No entanto, na direção oposta, como se verá mais adiante, a escrita das palavras ficou muito aquém quando comparada à leitura. Esse fato remete ao que postula ScliarCabral (2002) quanto à maior dificuldade que determinados alfabetizandos desenvolvem em relação à escrita que, por sua vez, nem sempre “anda” lado a lado com a leitura. De acordo com as observações feitas pela alfabetizadora de S4, a informante troca e omite fonemas e grafemas. Esse fato, associado à visão deficitária da aluna, explica, em parte, as alterações verificadas na escrita. Com relação à amostra de S5, um aspecto em relevo é a monotongação de palavras que 117 usualmente não sofrem esses fenômeno por falantes de desenvolvimento típico (“bolsa” x ['bosa] e “azul” x [a'zu]). Uma provável hipótese para explicar esses dados é que, como afirma Bisol (1999), a coda é a posição mais débil na estrutura silábica o que a torna propensa à variação com um nível acentuado de apagamento, nesse caso, das glides. Curiosamente, S2 que, como S5, apresentou uma das piores pontuações na oralidade, realizou as mesmas alterações. Além disso, há ocorrência de substituição do fonema lateral /l/ pela semivogal /j/ (“mala” x ['maja]), resultando em ditongação, fenômeno igualmente observado nos dados de fala espontânea de S5 (“colégio” x [kʊ'iεjɪw], “floresta” x [fʊ'jεʃta]). Vale ressaltar que em dialetos de pouco prestígio também registra-se a realização da semivogal palatal [j] em detrimento da lateral palatal. No que tange à correlação enunciação-leitura, “Peixe”, “pé” e “rato” foram as únicas palavras lidas adequadamente. Tal fato mais uma vez corrobora que os informantes tiveram maior facilidade nesse teste (nos testes anteriores o aluno não conseguiu ler sequer uma palavra). Ainda assim, o desempenho de leitura ficou muito aquém do previsto. Em geral, como já mencionado, o aluno soletrava adequadamente, mas enunciava qualquer palavra que lhe ocorresse (lê ['kaza] para as palavras “faca” e “mesa”; lê ['gatʊ] para as palavras “milho” e “cinto”). Retomando as hipóteses e questões que nortearam a pesquisa é possível postular o seguinte: uma parcela da população com SD apresenta distúrbios de ordem fonético-fonológica, os quais ficam patentes na dificuldade de discriminar sons e realizar foneticamente uma cadeia sonora como demonstram os dados de S2 e S5. A amostra reflete desvios de natureza disártrica e dispráxica, estando ambos associados a alterações articulatórias. A dificuldade para articular deflagra a capacidade limitada para abstrair, discriminar e combinar fonemas, quadro agravado pela imaturidade neurológica que atinge indivíduos com retardo mental. O distúrbio de natureza fonético-fonológica pode resultar na fala ininteligível que se fez notória nos testes realizados por S2. No entanto, dados como os de S1 e S3 fornecem pistas de que outra parcela da população 118 Down em estudo apresenta alterações apenas de natureza fonética. A amostra desses informantes ilustra habilidade para discriminar sons, embora tenha se verificado uma tendência à ocorrência de trocas sistemáticas de um fonema pelo outro, como é o caso da substituição de /t/ por /k/ e viceversa ([trɪ'ãsa] x “criança” e [a'klãtʃɪko] x “atlântico”). Há, no entanto, exemplos de vocábulos nos quais a troca de um som pelo outro não configura quadro de desvio articulatório mas simplesmente acomodação de um segundo exemplar pelo léxico mental, daí as variantes, amplamente difundidas entre indivíduos com desenvolvimento típico, ['grobʊ] e [fra'mẽgʊ], produzidas por S1. As alterações fonético-fonológicas mais recorrentes abarcam substituições envolvendo modo e zona de articulação (['nudʒɪ] ao invés de ['nuvẽ] - troca de /v/ por /d/), sonoridade e zona de articulação (['truʃ] ao invés de ['kruʃ]), omissão do segmento[x] em travamento silábico (['gaf ʊ] para “garfo”), troca de fonemas homorgânicos com tendência ao ensurdecimento (['trakʊla] para ['drakʊla]) e adição/omissão de fonemas (['vovʊ] para “ovo” - adição de /v/ e [sãw'iʃɪ] para “sanduíche” - cancelamento de /d/), ausência de nasalização ([kopʊta'do], [televɪ'zaw]) no processo de decodificação. Verifica-se também uma tendência ao destravamento silábico, tal como ocorre com falantes sem evidência de desvio fonológico, principalmente no que tange à (des) nasalização [vɪtʃɪla'do] para “ventilador” e ['nudɪ] para “nuvem”), à vibrante ([pʊkʊta'do] para “computador”) e às semivogais anterior e posterior ([ʒera'dera] para “geladeira” ). Os fenômenos de travamento silábico tornam as sílabas configuracionalmente mais complexas (cf. Mollica, 2003). Se o destravamento é previsível na fala de indivíduos ditos normais, é de se esperar também sua ocorrência numa população que tende a simplificar cadeias sonoras. Indubitavelmente, diferentes graus de maturidade neurológica associados a problemas nos OFA resultam em produções linguísticas bastante diversificadas como indicam os dados. Informantes como S1, S3, S4 e S6, que apresentaram melhor desempenho nas etapas de enunciação e/ou leitura, provavelmente têm sua função cognitiva e psicossocial mais desenvolvida e estimulada 119 que a dos informantes S2 e S5, por exemplo, que obtiveram as piores pontuações. A estimulação verbal favorece o melhor desempenho de informantes como S1 e S3 e S6 que, notoriamente, interagem de forma mais espontânea que S2 e S5, levando a crer que são mais estimulados na fala. De fato, a alfabetizadora 1, que respondeu o questionário sobre o desempenho linguístico de S1, ressalta que a aluna é muito falante, adora interagir, narrar suas experiências de final de semana etc. Informalmente, a professora relatou que S1 não só adora conversar com os colegas de classe mas “fala com toda a escola”. Da mesma forma, S3 e S6 interagem espontaneamente sem necessidade de estimulação. A terapia fonoaudiológica mostra-se também um aspecto imprescindível para a obtenção de melhores resultados no nível fonético-fonológico da linguagem. S6, a título de exemplo, informante que melhor pontuou os testes, faz acompanhamento fonoaudiológico desde a infância. Similarmente, a boa performance articulatória de S4 é, pelo menos em parte, devida às sessões de fonoaudiologia frequentadas pela aluna há vários anos. O papel do fonoaudiólogo, em conjunto com o trabalho de estimulação verbal desenvolvido pelo professor em sala de aula, é o de incitar o conhecimento consciente dos sons, a metafonologia (cf. seção 2.3.2), através de atividades linguísticas e exercícios orofaciais sistemáticos, facilitando, assim, o gesto articulatório e otimizando a discriminação e a combinação de segmentos fônicos. No caso de S2, por exemplo, exercícios fonoaudiológicos são altamente recomendáveis para se tentar minorar os déficits na fala, leitura e escrita. Por fim, vale ressaltar que um aspecto prototípico da oralidade de portadores da SD parece ser as alterações (omissão, substituição, adição) de segmentos ou cadeias sonoras verificadas na enunciação e/ou leitura. Tais processos produzem uma fala por vezes infantilizada e/ou ininteligível (“liquidificador”[lɪtʃɪka'do], “chocolate” [ko'latʃɪ], “frio” ['fiʊ], “criança” [kɪ'ãsa], “carro” ['kaʊ], etc), não previsível para indivíduos com desenvolvimento típico de mesma idade cronológica dos informantes aqui estudados. 120 A seguir, discuto os resultados de acuidade articulatória (teste de nomeação) e habilidade de correspondência grafo-fonológica (teste de leitura) através dos gráficos indicando o índice de acertos em relação às variáveis gênero, idade e terapia fonoaudiológica. Gráfico I - Gênero Percentual de Acerto Pe r ce ntu al de Ace r tos p or Gê n e r o 100% 90% 80% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0% Masculino Feminino Média da Acuidade Articulatória Média da Correspondência Grafofonêmica Te s te O gráfico acima indica a média de acertos de ambos os gêneros nos testes de nomeação (acuidade articulatória) e de decodificação (habilidade de correspondência grafo-fonológica). A partir da variável gênero procurou-se verificar se haveria diferenças relevantes entre os dois grupos. Coulthard (1991:25), mencionando um estudo de Labov, dá a entender que o gênero feminino é mais sensível ao significado social da pronúncia em relação ao gênero masculino. Ratificando o estudo, como mostra o gráfico, tanto no teste de acuidade articulatória como no de correspondência grafo-fonêmica, as mulheres demostraram maior habilidade oral. Tal fato indica que a maior tendência à sensibilidade oral nas mulheres independe de se tratar de falantes com desenvolvimento típico ou atípico. Os índices mostram-se ainda mais discrepantes no teste de leitura. O gráfico é sugestivo de que o gênero feminino tende a apresentar um nível mais elevado de consciência fonológica, o que facilita a prática da leitura. Portanto, apesar da amostragem restrita, conclui-se que a variável gênero se mostrou relevante neste estudo. 121 A discussão sociolinguística em relação ao melhor desempenho linguístico das mulheres é fortalecida por pesquisas neurobiológicas. Imagens de ressonância magnética medem o volume de massa cinzenta e mostram as partes do cérebro que são funcionalmente ativadas quando determinada tarefa é executada. Segundo Relvas (2009), diferenças morfológicas nos cérebros de homens e mulheres são responsáveis pela melhor performance do sexo feminino em relação à linguagem. As áreas de Broca e Wernicke, com volumes 23% e 13% maiores nas mulheres, respectivamente, tornam esse gênero mais habilitado para a fala e para a leitura. A autora, contudo, não descarta o fator sociocultural como influência para o fator biológico. Gráfico II -Idade Percentual de Acertos por Idade 100% 90% Percentual de Acertos 80% 70% 60% Acuidade Articulatória 50% Correspondência Grafofonêmica 40% 30% 20% 10% 0% S3 - 17 S2 - 19 S5 - 19 S4 - 22 S1 - 23 S6 - 24 Idade Dentre as variáveis sociais investigadas, o efeito idade (cronológica) refutou a hipótese de que o avanço da idade cronológica pudesse influenciar positivamente a melhora do desempenho na oralidade. A idade cronológica não deve ser tomada como medida de avaliação em virtude da não compatibilidade com a idade mental nessa população. Informantes cronologicamente mais jovens, por exemplo, podem apresentar um desenvolvimento cognitivo mais avançado em relação aos informantes cronologicamente mais velhos, aspecto que dá mais vantagem aos primeiros. 122 Excepcionalmente, S6, a mais velha entre os informantes, obteve os melhores escores, tanto no teste de nomeação (acuidade articulatória) quanto no de leitura (correspondência grafofonêmica). Porém, a análise mais criteriosa dos índices de acerto dos demais sujeitos leva à crença de que a terapia fonoaudiológica tenha exercido um peso maior que a idade cronológica em relação aos bons resultados observados em S6. Note-se que S3 (17 anos), o informante mais jovem, obteve melhores resultados que S2 (19 anos), S5 (19 anos) e S1 (23 anos). Esse aspecto coloca em foco que o melhor desempenho articulatório não estabelece relação direta com o aumento da idade cronológica. É notório também que S2 e S5, ambos com 19 anos, apresentaram índices que distam entre si nos dois testes. Tal fenômeno remete ao aspecto idiossincrático, não homogêneo, do nível fonético-fonológico da população em estudo. Quanto ao teste de leitura, dois aspectos merecem destaque: veja-se que no grupo de 17 a 19 anos, o fator idade cronológica é inversamente proporcional à melhora do desempenho do exercício (o sujeito mais jovem novamente apresentou os melhores escores). Já no grupo de 22 a 24 anos, ao contrário, os índices de correspondência grafo-fonêmica são diretamente proporcionais ao aumento da idade cronológica (a informante mais velha obteve os escores mais altos). Esse fato, no entanto, não caracteriza a idade cronológica como uma variável relevante, já que os resultados são bastante inconsistentes. 123 Gráfico III – Terapia Fonoaudiológica Percentual de Acertos em Função de Terapia Fonoaudiológica 100% 90% Percentual de Acertos 80% 70% 60% Com Terapia 50% Sem Terapia 40% 30% 20% 10% 0% Média da Acuidade Articulatória Média da Correspondência Grafofonêmica T e s te A variável terapia fonoaudiológica foi significativa no que concerne ao teste de acuidade articulatória (teste de nomeação). O gráfico acima indica a média dos sujeitos que fazem terapia (S3, S4, S5 e S6) e dos que não fazem (S1 e S2). No entanto, os números muito aproximados no teste de habilidade de decodificação grafo-fonêmica indicam que a prática fonoaudiológica não foi suficiente para S3, S4 e S5 lerem apropriadamente (somente S6 apresentou bons resultados). Tal fato sugere que a acuidade articulatória na fala espontânea não estabelece relação direta com a habilidade de decodificação que requer consciência fonológica. 4.2.2 Desempenho na escrita Pesquisas têm demonstrado que traços da fala coloquial aparecem na escrita de alunos em estágios iniciais de letramento (cf. Mollica, 2003). De modo análogo, uma das hipóteses deste trabalho prevê que desvios de natureza fonoarticulatória podem migrar para a escrita. Verificou-se nos testes uma série de aspectos peculiares a cada informante e que, portanto, devem ser considerados de forma particularizada. Por outro lado, há fenômenos que se mostram 124 comuns a todos os sujeitos pesquisados e que se apresentam, sobretudo, no domínio restrito do código ortográfico. Há informantes que, apesar de estar sendo alfabetizados há alguns anos, ainda se encontram fixando normas ortográficas. Como mencionado anteriormente, as estruturas cognitivas de portadores de SD, em função do retardamento mental, apresentam déficit em relação às etapas de amadurecimento intelectual de indivíduos ditos normais (cf. seção 1.2). Desse modo, a apropriação do código escrito é geralmente retardada, cronologicamente falando, e passível de ser afetada pela imaturidade neurológica. Nesse ponto da análise vale retomar a hipótese inicial de que o processo de codificação (rota fonema-grafema) é afetado por transtornos de natureza articulatória e neurológica. As questões que se agregam à hipótese anterior são as que se seguem: - como o desvio do padrão articulatório repercute na apropriação do código ortográfico? - diferentes graus de maturidade neurológica conduzem a diferentes desempenhos na ortografia? - alunos com acompanhamento fonoaudiológico apresentam melhor performance na escrita? A tabela, a seguir, apresenta o desempenho dos informantes nos testes de escrita de palavras familiares. Objetivou-se verificar como cada fenômeno testado na oralidade (processo fonológico de simplificação em vocábulos polissílabos; coarticulação de encontro consonantal; alteração fonêmica em vocábulos monossílabos e dissílabos) se refletiu na escrita. A cada palavra corretamente grafada foi atribuído um (1,0) ponto, portanto, vinte (20) pontos em cada grupo, chegando-se a um total de sessenta (60) pontos. 125 Tabela III– Índice de acerto na escrita de palavras familiares Informante PFS – 20 pontos CEC - 20 pontos AFMD- 20 pontos Total de acertos – 60 pontos S1 5/20 = 25% 5/20 = 25% 17/20 = 85% 27/60 = 45% S2 zero zero zero zero S3 zero zero 2/20 = 10% 2/60 = 3% S4 zero zero 3/20 = 15% 3/60 = 5% S5 zero zero 1/20= 0,5% 1/60= 1,16% S6 17/20= 85% 19/20= 95% 20/20= 100% 56/60= 93,3% O baixo índice de acertos observado na tabela III ratifica a hipótese de que transtornos orais tendem a migrar para a escrita. À semelhança dos testes de leitura, constata-se novamente a dificuldade no que tange à habilidade de correspondência grafo-fonológica entre os informantes, à exceção de S1 e S6 que melhor pontuaram os testes. Tal como ocorreu com a amostra de oralidade, os escores mais altos são observados nas palavras de menor extensão, ao passo que o pior desempenho é verificado na escrita de vocábulos polissílabos (quanto mais complexa a cadeia sonora, maior a dificuldade de grafá-la corretamente). Um fato curioso é que, como mostra a tabela, os informantes (à exceção de S1 e S6) não registraram graficamente a coarticulação de EC. A começar pela análise da escrita de S1, os dados ilustram que os fenômenos fonológicos observados na fala encontram-se registrados na escrita. Os dados ratificam a hipótese de que desvios de natureza fonoarticulatória podem deflagrar alterações no código ortográfico. No caso da palavra “liquidificador”, por exemplo, a aluna enuncia e lê [lɪtʃɪka'do], reproduzindo fielmente a oralidade na grafia (“liticado”). É interessante, no entanto, como citado na seção anterior, que há situações em que a informante realiza processo fonológico de simplificação na etapa de enunciação e não o faz na leitura da palavra. Note-se que o vocábulo “computador” foi enunciado [pʊkʊta'do] e decodificado quase que perfeitamente [kõpʊta'do], omitindo-se apenas o segmento [x] em posição 126 final. Nesse exemplo, é patente a relação que a aluna estabelece entre os processos de decodificação e codificação, sendo o cancelamento do grafema “r” (“coputado”) um dado que novamente ratifica o fato de a oralidade se refletir na escrita. Um aspecto observado nas testagens de “computador” e “ventilador” é o de que, na grafia das palavras (“coputado” e vetilado”), a nasalidade não foi representada pelo grafema “n”, embora enunciado e decodificado [kõpʊta'do] e [vẽtʃɪla'do]). Mollica (2003) explica que esse fenômeno é previsível durante o letramento (entre alfabetizandos com desenvolvimento típico), mas, à proporção que a escola atua, a tendência é que o problema diminua e, na maioria dos casos, desapareça. De modo semelhante, em “Maracanã” e “melancia”, a nasalização é produzida oralmente, mas cancelada na grafia (“maracana” e “melacia”). O registro de nasalidade na grafia de “elefante” (elefante) talvez possa ser explicado pela memória visual da escrita da palavra. Nesse caso, pode-se aventar a hipótese de que a “intimidade” com certos vocábulos em relação a outros induzem ao acionamento da memória visual da palavra. Como se observa por essa análise preliminar, assim como os processos fonológicos, na fala, não são categóricos nos sujeitos investigados, tampouco na escrita o serão. De maneira geral, ainda com relação à escrita de S1, verificam-se alterações previsíveis para alunos ditos normais em estágio de letramento e que, portanto, não dão indícios de patologia. Ao se considerar que a idade mental dos sujeitos de pesquisa equivale à idade mental de crianças em fase de alfabetização, é de se esperar que, nesse estágio incipiente do letramento, algumas dificuldades relativas a questões ortográficas ocorram com certa sistematicidade. Por exemplo, a inversão e cancelamento de segmentos como se vê em “hipopótamo” (ihpotamo), a omissão de grafemas e confusão entre letras que representam o mesmo som em “lagartixa” (laticha), o cancelamento de grafemas em “televisão” (tlevesa) e “matemática” (matetica), estão entre as alterações mais recorrentes. Vale ressaltar que S1 decodificou apropriadamente todos os itens anteriores, corroborando o preceito postulado por Scliar-Cabral (2003) segundo o qual o processo de produção 127 é mais difícil que o de recepção. Nos testes de coarticulação de EC realizados por S1, vê-se que na grande maioria dos vocábulos testados os encontros consonantais foram apropriadamente registrados (prato, livro, cobra, brinco, etc). Há, porém, dados de trocas de letras não relacionados à discriminação auditiva de fonemas, já que no exemplo a seguir a informante enunciou e leu adequadamente o fonema /g/ em “grávida” (enunciada e lida ['gravida]), mas escreveu “bravida”. Um aspecto evidente na escrita de S1, assim como dos demais informantes (à exceção de S6), é a falta do sinal gráfico para marcar a sílaba tônica (a professora confirma essa característica ao responder o questionário). Além dos casos já mencionados, outros são visivelmente mais complexos em relação às alterações ortográficas. Serve de exemplo a palavra “Drácula” escrita “bracora”, em que houve troca de consoante, (dra x bra), abaixamento vocálico (cu x co), fenômeno não previsível em sílabas pós-tônicas (usualmente falantes do português fazem alteamento vocálico) e a troca de “l” por “r” (la x ra), apesar da articulação apropriada dos fonemas na oralidade. Um aspecto igualmente curioso é o de que o rotacismo /l/ x /r/, observado em certos itens, foi registrado na escrita de “planta” (pranta) e “bluza” (bruza), por exemplo, mas não na escrita de “Flamengo” (Flamengo), o que mais uma vez, ilustra a inconsistência dos dados. No teste com palavras monossílabas e dissílabas, S1 apresentou a melhor pontuação, estando dezoito das vinte palavras corretamente grafadas. Apenas “cinto” e “azul” sofreram alterações. Tal como S1, S3 desenvolveu melhor o teste de escrita de vocábulos monossílabos e dissílabos. Uma hipótese de melhor performance dos alunos em relação a esses testes pode estar na menor extensão da palavra, o que facilita a organização mental dos grafemas, assim como dos fonemas na oralidade. Além disso, outra possibilidade de melhor desempenho, tal como ocorreu na amostra de enunciação e leitura deve-se ao fato de que as palavras, em sua maioria, são constituídas de padrões silábicos simples do tipo V e CV. Os testes de escrita de S2 resultaram em amostra ilegível. Em todos os itens testados, nas três 128 listas de palavras, o informante rabiscava quando era solicitado a escrever o vocábulo que enunciara previamente. É curioso que a forma do rabisco era sempre a mesma para todas as palavras testadas. Como o aluno registrou as piores pontuações nos testes de oralidade, aventou-se a hipótese de que, embora conseguisse ler com dificuldade, S2 não estava apto a escrever. A hipótese, no entanto, foi refutada no momento em que a professora apresentou o caderno de português de S2 com várias atividades de escrita realizadas. A alfabetizadora (A2) foi, então, questionada sobre uma possível razão para a ausência de escrita nos testes do aluno. A resposta obtida foi a seguinte: “Acho que ele queria acabar logo o exercício e fez esses rabiscos, porque você tá vendo que ele consegue escrever.” De fato, as atividades desenvolvidas em sala de aula corroboram, como atesta a professora, que o informante consegue realizar, ainda que com limitações, exercícios de cópia, ditados, compreensão textual entre outros. Em resposta ao questionário, a professora afirma que “sua motricidade fina, mais precisamente a escrita de palavras, sai de forma errônea por conta da necessidade de realizar as atividades de modo rápido.” Acrescenta ainda que S2 “apresenta erros na escrita e leitura, devido à falta de concentração, pois não gosta muito de ter que pensar. Isso o leva a tentar adivinhar as palavras sem ler e, ao escrever, mesmo conhecendo as letras, não quer se dar ao trabalho de pensar e escrever corretamente.” A avaliação da professora explica, pelo menos em parte, os resultados obtidos na amostra de S2. Parece ter ficado clara a falta de interesse do aluno para organizar mentalmente os grafemas que compõem uma palavra anteriormente enunciada (o teste de enunciação sempre anteceda o teste de escrita). Encontra-se aí uma possível explicação para o mesmo desenho (rabisco) representando a escrita de diferentes palavras nos testes de S2. Com relação à ausência de dados nos testes de escrita de S2, é importante reiterar um ponto. A falta de concentração gera problemas notórios na motricidade fina. Como mencionado na seção 2.3, a aquisição do código ortográfico, sendo um processo extremamente complexo, envolve a 129 potenciação de conexões neuronais para a memorização visual das palavras, como de controle visual de movimentação da mão. Desse modo, o processo de apropriação da escrita implica o acionamento de inúmeras estratégias cognitivas que podem sofrer alterações em indivíduos portadores de retardo mental. No tocante à escrita de S3, verifica-se, a partir de uma análise preliminar, que os itens aparecem estruturalmente simplificados, ou seja, o informante omite grafemas (principalmente os vocálicos) numa dada sílaba e/ou cancela grupos silábicos inteiros. Alguns exemplos no teste do informante com palavras para verificar processos fonológicos de simplificação ratificam o padrão citado anteriormente. Logo na primeira palavra, “liquidificador”, que, acredita-se, pela extensão, tenha gerado mais problemas entre os informantes, tanto na oralidade (enunciação e leitura), quanto na escrita, S3 cancela uma cadeia de grafemas ao escrever “fidodo”. A esse exemplo seguem-se vocábulos que, tal como ocorre em “liquidificador”, seriam dificilmente decifrados fora do contexto. São eles: “Maracanã” (“acna”), “televisão” (“tlvsa”), “sanduíche” (“suis”), “melancia” (“amcia”), etc. Alguns pontos merecem destaque. Para começar, os itens exemplificados acima dão indícios de que o informante, em geral, estabelece uma sequência hierárquica entre os segmentos sonoros, buscando fazer uma relação direta com sua respectiva codificação (embora cancele ora consoantes, ora vogais). Vê-se, por exemplo, que na grafia da palavra “televisão” os grafemas não estão dispostos aleatoriamente. A amostra “tlvsa” exibe o grafema inicial de todas as sílabas da palavra. Embora haja cancelamento de quase todos os grafemas vocálicos, tal fenômeno sugere que a enunciação prévia da palavra (o informante era solicitado a enunciar o nome da figura antes de escrevê-la) facilita o processo de escrita, isto é, leva S3 a estabelecer, ainda que parcialmente, a relação fonema-grafema. No caso da palavra “televisão”, a impressão que se tem é que S3 “embutiu” os fonemas vocálicos nos fonemas consonantais, não os registrando graficamente. Assim, as cadeias sonoras [te], bem como [le] ou [vi] são representados graficamente sem as vogais 130 (“tlv”). Da mesma forma, em “passarinho” (“pro”), os grafemas estão dispostos hierarquicamente. A escrita da palavra “elefante” (“elefte”), com apenas o cancelamento do segmento vocálico nasal, sugere que o melhor desempenho na grafia dessa palavra (tal como ocorreu com a informante S1) se deve provavelmente ao acionamento da memória visual do vocábulo que provavelmente aparece de modo recorrente em sala de aula. Outro aspecto em destaque na escrita de S3 é a troca de grafemas que representam sons auditivamente semelhantes, fenômeno previsível também em alunos com desenvolvimento típico. Em“Botafogo” (“dfgo”) há alteração (“d” ao invés de “t”). Similarmente, em “ventilador” (“vilto”) há substituição de “d” por “t”, assim como em “abóbora” (“apra”) S3 substitui “b” por “p”. Curiosamente, não há relação entre a troca de letras representando fonemas auditivamente semelhantes com a troca de fonemas auditivamente semelhantes na oralidade, já que, no teste de enunciação, S3 articulou as palavras apropriadamente. Embora raros, há exemplos nos quais as letras estão dispostas sem qualquer critério como em “manteiga” (“ath”) e “computador” (“aatd”). Apesar de ter enunciado sem qualquer dificuldade os encontros consonantais, S3 não os representou graficamente em nenhum dos itens testados. Os melhores resultados, tal como na amostra de S1, foram observados na escrita de palavras monossílabas e dissílabas. O padrão silábico (CV) menos complexo nesse grupo de palavras parece propiciar o melhor desempenho nos testes. No entanto, uma característica em relevo nos dados do informante é o de que, nos três grupos testados, há exemplos de cancelamento de letra (s) e/ou letras dispostas aleatoriamente sem qualquer relação com a amostra de oralidade. Segundo a avaliação da alfabetizadora, “S3 inverte posições das letras na escrita espontânea, até quando faz cópia do quadro. O processo da cópia entre o visualizar e a reprodução se perde muitas vezes porque S3 se dispersa por qualquer motivo. Até mesmo o movimento de ajeitar os óculos faz com que ele “perca o rumo” do trabalho.” Além disso, um agravante, de acordo com A1, é que “S3 tem dificuldade visual e apresenta rigidez na motricidade fina.” 131 S4 foi a informante que obteve o pior desempenho nos testes de escrita de palavras usuais, mesmo nos testes com palavras de menor extensão (monossílabas e dissílabas), nos quais, de modo geral, os informantes S1 e S3 obtiveram melhores resultados. A aluna, que já havia demonstrado um baixo nível de consciência fonológica nos testes de leitura, cuja amostra, em grande parte, não teve relação com a enunciação, desenvolveu de modo muito confuso a etapa de escritura. Há vários exemplos em que os grafemas são combinados sem critério (alguns deles não fazendo parte da composição da palavra), chegando-se a um resultado de pseudopalavras como, por exemplo, “vlito” (livro), “cato” (quadro), “aboa” (blusa), “consa” (criança), “salro” (sanduíche), “tilico” (televisão), assim por diante. Note-se que a aluna não registrou encontro consonantal em nenhum dos itens lexicais testados, apesar de tê-lo feito esporadicamente nas etapas de nomeação e leitura. As palavras “prato”, “livro” e “blusa”, por exemplo, enunciadas e lidas apropriadamente, tiveram a escrita muito aquém da oralidade, representadas por “patora”, “vilito” e “aboa”, respectivamente. Fato curioso, como já mencionado, é que nos testes com palavras de menor extensão e com sílabas menos complexas (V e CV, primordialmente) S4 apresentou uma pontuação muito baixa. Apesar de os grafemas aparecerem dispostos de forma mais organizada, hierarquicamente falando, há confusões entre letras que representam sons auditivamente semelhantes como em “dedo”, escrito “dito” (“e” x “i”, “d” x “t”) omissão de grafemas (“queijo” x “qijo” e “leite” x “lite”), além de acréscimos indevidos (“pé” x “pera” e “ovo” x “vovo”). Dos vinte vocábulos testados nesse grupo, apenas três foram corretamente grafadas (pão, mala e faca). S5, dentre todos os informantes, foi o que apresentou os dados mais peculiares. A amostra ilustrou uma escrita que, à exceção de raras palavras, se constituía de padrões silábicos que pouco se aproximavam da palavra-alvo. A título de exemplo, no teste com palavras polissílabas, tem-se o seguinte resultado: “melancia” (“saba”), “computador” (“ferba), “papagaio” (“pach”). Em “chocolate” (stete”), “Botafogo” (“crdtfgo”), “geladeira” (“tgela”) é possível observar a grafia de 132 apenas algumas letras que compõem a palavra-alvo. No teste de coarticulação de EC não houve sequer uma amostra de registro do fenômeno, mesmo nos vocábulos como “prato” (“petu”) e “grávida” (“stipidoe”) que foram corretamente articulados. Note-se que, na escrita de “grávida”, assim como “globo” (“pelira”), “livro” (“austio”), entre outras, as letras são organizadas aleatoriamente, sem qualquer critério. É curioso ainda o fato de o informante dispor sucessivamente várias consoantes anulando, portanto, um padrão silábico possível para o português (“mala” e escrito “aapprreelloo”, “televisão” escreve-se “tfsmão”, “botafogo” é escrito “crdtfgo”). Considerando-se que S5 soletrava perfeitamente, sempre que solicitado a ler, supunha-se haver habilidade, ainda que mínima, de correspondência grafo-fonêmica que o possibilitasse combinar segmentos sonoros em sílabas. Portanto, não se chegou a uma resposta plausível para o fato de o aluno não ter conseguido ler (à exceção de “pé e “peixe”) nem escrever (à exceção de “pé”, sem o acento tônico), mesmo no teste com palavras monossílabas e dissílabas, no qual foram observados os melhores desempenhos entre os demais informantes, tendo em vista os padrões silábicos mais simples e a menor extensão das palavras. S6, como já era esperado, foi a informante que melhor pontuou os testes de escrita, tal como o fez nos testes de enunciação e leitura. A amostra da aluna é um caso à parte, pois supera todas as expectativas com relação à escrita de portadores de retardo mental. Pode-se afirmar que a informante está alfabetizada. De acordo com Threnholm & Mirenda (2006), a habilidade de escrita parece progredir com a idade cronológica (S6 coincidentemente é a mais velha dos sujeitos investigados). O melhor desempenho na escrita, indubitavelmente, apresenta relação direta com o melhor desempenho na oralidade. Quanto maior o índice de acuidade articulatória, maiores as probabilidades de o aluno estabelecer correspondência grafo-fonológica numa língua de escrita alfabética como é o caso do português. Alguns pontos merecem destaque na escrita de S6. Em primeiro lugar, a aluna registrou graficamente o acento tônico das palavras (“hipopótamo”, “maracanã”, sanduíche”, “abóbora”, 133 matemática”, atlântico”), fato inédito, já que os demais informantes não o fizeram. Além disso, registra a nasalização através dos segmentos que representam graficamente (“n” e “m”) a consoante nasal travadora da sílaba. Assim, ao contrário do que ocorrera nos testes dos demais informantes, encontra-se na amostra de S6 a escrita correta das seguintes palavras: “sanduíche”, “ventilador”, “cinto”, “criança”, “computador”, “nuvem”, “trem” e, assim por diante. As palavras “liquidificador” (escrita “licodificador”) e “helicóptero” (escrita “helocptero”) apresentaram alterações gráficas à semelhança das escritas dos outros informantes. À exceção dessas duas, pode-se afirmar que não houve alterações relevantes nos teste com vocábulos polissílabos, o que sugere que aluna conseguiu se apropriar de convenções ortográficas (que passam despercebidas entre os demais informantes) como, por exemplo, o dígrafo (ss) em “passarinho” e travesseiro”, o uso da letra “h” em “hipopótamo” e “helocptero” (helicóptero), o uso do “ç” em “criança”, as diferenças de uso de “l” e “u” (“bolsa” x “chapéu”) e de “ch” e “x” (“chocolate” e “lagartixa”) etc. No que concerne ao teste de coarticulação de EC, todas as palavras tiveram os encontros consonantais devidamente grafados. Similarmente, cem por cento das palavras monossílabas e dissílabas foram escritas sem erro. Em suma, em relação ao desempenho escrito dos sujeitos investigados, pode-se dizer que há dois aspectos vigentes. As alterações verificadas são, em alguns pontos, similares às de alunos ditos normais em processo de alfabetização (cf. seção 2.3), como a troca de letras referentes a fonemas auditivamente semelhantes (“milho” x “milo”), a influência da fala na escrita (['prãta] x “pranta”), o cancelamento de segmentos travadores da sílaba (“azul” x “azu”; “nuvem” x “nuve”). Prevalecem, no entanto, alguns aspectos prototípicos. Um deles, a combinação aleatória de letras que dificilmente se encontra em amostras de alfabetizandos com desenvolvimento dito normal. Desse modo, ocorre a forma “pelira” referindo-se à escrita de “grávida”, “austio” para “livro”, “ferba” para “computador”, ath” para “manteiga”, “suis” para “matemática”. Outra característica em foco é a combinação de grupos de grafemas que constituem a palavra, portanto, uma 134 combinação não aleatória, mas com omissão de grupos de cadeias sonoras, como em “Maracanã” (“acna), “passarinho” (“pro”), “Atlântico” (“ltoc”), dentre outros. A questão que por ora se faz pertinente comentar é que o portador de SD, assim como ocorre em outras populações com retardo mental, leva muito mais tempo para se apropriar de regras ortográficas, quando comparado ao seu par dito normal. O processo é agravado pelo fato de regras de correspondência grafo-fonológica demandarem mais tempo para ser acomodadas. Em outras palavras, enquanto um aluno com desenvolvimento típico tende a resolver mais facilmente problemas decorrentes de alterações ortográficas, o portador da síndrome precisa ser massivamente estimulado para se chegar a resultados mais satisfatórios. Como discutido anteriormente, a ortografia deve ser preservada por ser a grande ideia subjacente a qualquer sistema de escrita (cf. seção 2.3). Soares (2003) chama a atenção para a importância de se focar a relação fonema-grafema nesse processo. Faz-se imprescindível, portanto, um trabalho interdisciplinar envolvendo escola, estímulo familiar para a prática da leitura, além de terapia fonoaudiológica, na tentativa de otimizar a escrita de alunos portadores de SD, tornado-a gradativamente mais inteligível e próxima da forma padrão. 4.2.3 Leitura x escrita de palavras não familiares O teste de leitura e escrita de palavras não usuais teve como meta verificar se os informantes encontrariam dificuldade no processamento lexical (codificação e decodificação) de itens com os 135 quais não estavam familiarizados. Nas línguas alfabéticas como o português, o domínio das convenções de leitura/escrita pressupõe o desenvolvimento de habilidades para identificar a relação som/letra e atribuir-lhes valor relacional (estágio alfabético da escrita). O conhecimento dos princípios alfabéticos supõe a capacidade de análise e síntese e propicia ao alfabetizando a oportunidade de estabelecer novas relações entre fonemas e grafemas, possibilitando-o a ler e a escrever qualquer palavra, mesmo as que não constam do seu vocabulário (cf. Morais, 1996). No entanto, distúrbios de leitura de natureza fonológica levam à dificuldade de transformar a letra em som. Nesse caso, há possibilidade de ocorrer problemas relacionados à leitura de palavras desconhecidas, ao passo que se preserva a leitura de vocábulos usuais em função da memória visual. Dito de outra forma, itens lexicais familiares podem ser facilmente reconhecidos por estratégia ortográfica (rota lexical), ou seja, pelo reconhecimento visual direto (sem necessidade de decodificação), enquanto que palavras que não constam do vocabulário do aluno são lidas e escritas com dificuldade, já que não se encontram estocadas no léxico mental. Segundo pesquisas recentes (cf. Capovilla, Varanda e Capovilla, 2006), a dificuldade de de(codificação) da palavra decorre de um déficit de natureza fonológica associado à ausência de instrução escolar adequada. Por outro lado, estudos de Bishop e Adams (1990) colocam em foco a relação existente entre o funcionamento intelectual e o desenvolvimento da lectoescritura, explicando que déficits cognitivos e linguísticos, conjuntamente, são passíveis de desencadear problemas relacionados ao processamento lexical. Nesta pesquisa, o principal aspecto a ser verificado nos testes com palavras não usuais é se há equivalência entre leitura e escrita , ou seja, se os sujeitos fazem correspondência grafo-fonológica, já que, nesse caso, para ler e escrever não é possível fazer uso da memória visual da palavra. A tabela, a seguir, ilustra os piores resultados quando comparados aos testes anteriores. Esses resultados indicam que o melhor desempenho na leitura e escrita de palavras usuais pode ter relação intrínseca com a memória visual (leitura via rota lexical) do que propriamente com o 136 estabelecimento de correspondência grafo-fonológica. Somam-se dez (10) pontos para o teste de leitura (um ponto para cada palavra) mais dez (10) pontos para o teste de escrita, chegando-se a um total de vinte (20) pontos na avaliação do índice de habilidade de correspondência grafo-fonêmica de vocábulos não familiares. Tabela III – Leitura e escrita de vocábulos não familiares Informante Leitura – 10 pontos Escrita – 10 pontos Índice de habilidade de correspondência grafofonológica S1 2/10 = 20% 3/10 = 30% 5/20 = 25% S2 zero zero zero S3 zero zero zero S4 Zero zero zero S5 não fez não fez não fez S6 10/10= 100% 9/10= 90% 19/20= 95% Os sujeitos S2, S3 e S4 demonstraram dificuldade no conhecimento de regras de correspondência grafo-fonológica logo na primeira etapa do teste, fase em que a pesquisadora lia pausadamente cada item lexical solicitando que o informante o escrevesse. Os resultados, em linhas gerais, apontaram para a leitura e escrita de pseudopalavras e/ou tentativas de adivinhações. S6 foi quem melhor estabeleceu relação entre fonemas e grafemas no teste com palavras não familiares, tanto na etapa de codificação quanto na de decodificação. Esse fato já era previsto, dado que a informante, como mostram as tabelas I e II, apresentou os escores mais altos nos testes com palavras familiares, demonstrando maior habilidade de correspondência grafo-fonológica entre os 137 informantes. Apenas uma palavra apresentou, na escrita, a alteração de letras que representam auditivamente, neste contexto, o mesmo fonema (“jeribazeiro” x “geribazeiro”), fato que pode ser considerado irrelevante em se tratando de uma palavra que não consta do vocabulário da informante. Quanto a S1, a amostra de leitura e escrita foi a que se mostrou mais próxima da palavra-alvo quando comparada com as amostras dos outros sujeitos. Tal como ocorreu nos testes com vocábulos familiares, S1 realizou a leitura mais aproximada da escrita e vice-versa, embora houvesse exemplos de alterações, adições e cancelamentos de fonemas e/ou grafemas. Por exemplo, “paleontologia” foi lida cancelando-se fonemas ([paleto'loga]), mas escrita apropriadamente (“paleontologia”), ao passo que “imaculatismo”, lida corretamente ([ɪmakʊla'tʃismo]), foi escrita “imalatismo”, portanto, cancelando-se grafemas. Um caso instigante é a leitura da palavra “arinque”. S1conseguiu codificá-la adequadamente (inclusive registrando a nasalidade, aspecto incomum). No entanto, no teste de leitura, a aluna não nasalizou, substituiu o fonema /r/ pela estrutura /pl/ ([a'plikey]), além de realizar ditongação na última sílaba. Vale reiterar que essa característica (alterações na leitura a despeito da escrita correta ou vice-versa) demonstra que os processos de leitura e escrita não necessariamente estabelecem função biunívoca, podendo apresentar-se inconsistentes. Em outras palavras, o processo de alfabetização do portador de retardo mental reflete uma amostra bastante complexa e heterogênea (alterações ora na escrita, ora na leitura ou em ambas), as quais parecem estar primordialmente relacionadas à falta de consciência fonológica e ao déficit de atenção e memória. Fenômenos vigentes nos testes com palavras familiares puderam ser igualmente observados na escrita de palavras não familiares. A não experiência da palavra (não acomodação do vocábulo pelo léxico mental) parece propiciar incorreções ortográficas como as que se verificam pela troca de letras que representam o mesmo som (“geribazero” para “jeribazeiro”, “sazonao” para “sazonal” e “enatioz” para “enantiose”) e a ausência de nasalização nos processos de decodificação e 138 codificação (à exceção de “arinque”, na qual houve registro de nasalização, “ranfoteca” é lida [xafo'tεka] e escrita “rfoteca” e “enantiose” é lida [enato'eʃ] e escrita “enatioz”). A única palavra que efetivamente apontou para a correspondência entre leitura e escrita foi “fugacidade” que, acredita-se, pela estrutura silábica (CV) mais simples levou S1 a lê-la e a escrevê-la corretamente. Quanto à amostra de S2, verificam-se basicamente as mesmas alterações ocorridas nos dados de S1, ou seja, omissões e/ou substituições de fonemas ou cadeias sonoras, além de exemplos de adições indevidas de sons no teste de leitura. No entanto, como discutido previamente, as alterações observadas em S1 parecem de natureza puramente fonética, enquanto que S2 apresenta problemas de ordem fonológica (dificuldade para discriminar e organizar mentalmente uma cadeia sonora). A fala do informante, notoriamente ininteligível, dá indícios de que a dificuldade enfrentada pelo aluno no nível fonético da linguagem gera consequências no nível fonológico. Portanto, se na etapa de leitura de palavras usuais o desempenho de S2 foi considerado “pobre” em relação aos demais sujeitos, era previsível que fosse apresentado desempenho similar nos testes com palavras desconhecidas, haja vista a dificuldade de competência grafo-fonológica e a não possibilidade de leitura visual da palavra. Não foi possível estabelecer um paralelo entre leitura e escrita, já que S2 não escreveu em nenhum dos testes, apenas rabiscou traços irregulares formando sempre um mesmo desenho (semelhante a uma assinatura), o qual alegava ser a forma escrita da palavra solicitada. O fato de S2 não escrever uma única palavra nos testes ratifica a hipótese de baixo nível de consciência fonológica que, associado à imaturidade neurológica, desencadeia a fala disártrica e/ou dispráxica (cf. seção 1.1.1) com reflexos evidentes na (ausência de) escrita. Por conseguinte, o que se tem como resultado é uma leitura pouco aproximada da palavraalvo, levando à formação de pseudopalavras (“arinque” é lido [ɣaɣi'oe], “marroada” lê-se [me'ɣaka], “turaniano” faz-se [tʊ'aflo], “imaculatismo” é [meʃea'tʃiʃo], assim por diante). As alterações na etapa de leitura são tantas, que numa única palavra como “arinque”, S2 inverte a 139 posição de segmentos na cadeia sonora (/aR/ x /Ra/), omite (/k/) e adiciona (/o/) fonema (s). Note-se que S2, ainda que raramente, decodifica grupos sonoros tornando a leitura mais aproximada do item lexical testado. A título de exemplo, em “ranfoteca”, lido [xafo'ka], apenas o grupo [te] é omitido, além da ausência de nasalização que é uma característica constante nas leituras realizadas pelos informantes. Os dados de S3 também apontam para a falta de congruência entre leitura e escrita, aspecto recorrente entre os sujeitos nos testes com palavras não familiares. Note-se que não existe qualquer relação entre a leitura e a escrita de “ranfoteca”, por exemplo ([ka'ɣuso] x “aftc”). Esse fato reforça a hipótese de relação entre a ausência de consciência fonológica e a performance inferior desse teste em relação aos testes com palavras familiares. O fato de S3, em particular, estar totalmente disperso no momento da testagem pode ter sido um fator agravante para a baixa pontuação atingida pelo aluno. Similarmente ao que ocorreu nos testes com palavras familiares, na etapa de leitura, S3 tenta adivinhar a palavra a partir da decodificação de uma sílaba apenas como em “jeribazeiro”, lido [ʒi'rafa], “imaculatismo”, lido “ [ma'sã] , ['gato] para “fugacidade” e [su'sεso] para “sazonal”. As palavras não adivinhadas resultaram em pseudopalavras (“ranfoteca” lê-se [ka'ɣuso] e “paleontologia lê-se [to'zelo]). Retomando a questão da (não) relação entre leitura e escrita, é importante observar que, apesar da ausência de equidade entre as duas operações, se analisados separadamente, esses processos mostram que a leitura e a escrita das palavras não são totalmente aleatórias, isto é, há indícios de que o informante consegue estabelecer uma relação entre fonemas e grafemas, ainda que parcialmente e não obedecendo a uma sequência lógica. Note-se a título de exemplo que, na leitura de “ranfoteca”, estão decodificados o arquifonema /R/, bem como a sequência [ka]. A escrita do item citado (“aftc”) também deixa evidente que o aluno encontra dificuldade para codificar uma palavra que não consta do seu vocabulário, mas consegue organizar minimamente a estrutura vocabular focalizando primordialmente os grafemas consonantais que iniciam as sílabas da palavra. 140 Fenômeno semelhante ocorre em “arinque”, lido [xa'fo] e escrito “airc”. No processo de leitura, o informante acrescentou aleatoriamente a sequência [fo], que não consta da palavra e deteve-se na decodificação de dois grafemas (a e r), embora invertendo a ordem (enunciou [xa] ao invés de [ar]). Tal aspecto se mostrou recorrente também na leitura de palavras usuais. Já a escrita da palavra apresenta discriminados os grafemas que a compõem, embora com inversão na ordem sequencial (“ir” ao invés de “ri”), o não registro de nasalização (outro aspecto recorrente entre os informantes), além da grafia da letra “c” em substituição à sílaba “que”, fato que corrobora a dificuldade de assimilação de convenções ortográficas. Em “turaniano”, “marroada” e “enantiose”, as leituras mostram-se totalmente discrepantes das palavras-alvo (['zezʊ], ['feɣʊ] e ['leva], respectivamente), mas a escrita apresenta uma relação, ainda que rudimentar, com a forma padrão (“uaano”, “mroada” e “enaiios”, respectivamente). Essa característica, pelo menos no tocante ao sujeito S3, contraria o que postula Scliar-Cabral (2002), segundo a qual o processo de escrita é mais difícil que o processo de leitura. S4, que já havia demonstrado déficit na relação grafo-fonológica nos testes com palavras familiares, apresentou pontuação muito baixa nos testes com palavras não familiares. Novamente, a informante fez tentativas de adivinhações na etapa de leitura, como se observa em “paleontologia” (lido [pa'nεla]), “fugacidade” (lido [fute'bɔw/), “enantiose” ([bo'nito]), “turaniano” (['towro]) e “jeribazeiro” ([ʒaka'rε]). Mais uma vez é preciso chamar atenção para o fato de que essas tentativas de adivinhações não são totalmente aleatórias. Note-se que, mesmo fora de ordem, a aluna decodifica grafemas constituintes do item lexical testado, enunciando uma palavra que consta de seu vocabulário (ex: paleontologia x [pa'nεla], turaniano x ['towro] etc). Por outro lado, como já ocorrera em exemplos anteriores, há combinações que resultam em pseudopalavras em virtude da omissão de fonemas (marroada x ['mada], sazonal x [sa'zona]), inversão e omissão de fonemas (imaculatismo x [mi'akʊ]), além de casos de soletração como em “arinque” ([a:eɣe:ka:ene]). O único vocábulo cuja leitura foi equivalente à escrita foi “sazonal” (lido [sa'zona] e escrito “sazona”). 141 Esse fato corrobora a dificuldade dos informantes, de maneira geral, para fazer correlação grafofonológica, o que, por sua vez, indica baixo nível de metafonologia. Curiosamente, de modo similar ao ocorrido no processo de leitura, é válido observar que, a despeito do déficit na escrita, existe relação entre grafemas e fonemas, isto é, a informante não grafa letras aleatoriamente. Em “ranfoteca”, por exemplo, escrito “afteh”, “fugacidade”, escrito “fugcde”, “marroada” grafado “marcoada” e “enantiose” grafado “enatioz”, apesar de cancelar, alterar ou acrescentar letras indevidamente, S4 codificou vários dos fonemas ouvidos. A palavra “turaniano” foi a que teve a escrita mais aproximada, “toraniano”, com apenas uma troca de grafemas (u x o). Nesse caso especificamente, como os fonemas representados pelas letras “u” e “o” são auditivamente semelhantes a troca de grafemas é previsível inclusive para alfabetizandos com desenvolvimento típico. Através dos dados observados, tanto nos testes com palavras usuais, assim como nos testes com vocábulos não familiares, fica claro que, no caso de alfabetizandos portadores de deficiência mental, aspectos da oralidade e da escrita refletem um quadro mais complexo e variável do que em alunos com desenvolvimento típico. Por fim, é válido reiterar que, de modo geral, o teto cognitivo mais baixo, este intrinsecamente ligado a déficits de atenção e de memória, somado a problemas de visão e audição, que geralmente acometem portadores de SD, dificultam, mas não impedem, o processo de alfabetização. A seguir, tal como nos testes de oralidade, discuto os gráficos que ilustram os resultados de escrita. 142 Gráfico IV - Gênero Pe rce ntual de Ace rtos por Gê ne ro 100% Percentual de Acerto 90% 80% 70% 60% Masculino 50% Feminino 40% 30% 20% 10% 0% Escrita - Palavras usuais Escrita - Palavras não usuais Te s te Novamente a variável gênero se mostrou relevante. Na média de acertos, as mulheres obtiveram resultado bem superior, ainda que pobre, em relação ao dos homens tanto no teste com palavras familiares quanto com palavras não familiares. Note-se pelo gráfico que os resultados são discrepantes, tendo a escrita se mostrado ainda mais deficiente quando comparada ao teste de leitura (cf. gráfico I). Além disso, o gráfico revela que as mulheres mantiveram um padrão regular no desempenho dos dois testes de escrita, fato que corrobora a hipótese de maior habilidade metafonológica nesse grupo. 143 Gráfico V - Idade Percentual de Acertos por Idade 120% Percentual de Acertos 100% 80% Palavras Usuais 60% Palavras Não Usuais 40% 20% 0% S3 - 17 S2 - 19 S5 - 19 S4 - 22 S1 - 23 S6 - 24 Idade A variável idade, ao contrário do que ocorrera na oralidade, revela existir um paralelo entre o avanço da idade cronológica e o melhor desempenho escrito, tal como é previsível na escrita de indivíduos com desenvolvimento típico. Note-se que S1 e S6, as informantes mais velhas do grupo, obtiveram desempenho muito superior a S3, S2, S5 e S4, tanto na escrita de palavras usuais como na de palavras não familiares. A amostra, porém, não é suficiente para se afirmar a relevância da idade cronológica no melhor desempenho da escrita. 144 Gráfico VI – Terapia fonoaudiológica Percentual de Acertos em Função de Terapia Fonoaudiológica 100% 90% Percentual de Acertos 80% 70% 60% Com Terapia 50% Sem Terapia 40% 30% 20% 10% 0% Escrita - Palavras usuais Escrita - Palavras não usuais Te s te O gráfico ilustra que, de modo geral, a média de acertos na escrita, ficou muito aquém do previsto, principalmente no que tange ao grupo de palavras familiares . No entanto, ao contrário do que ocorreu nos testes de leitura (cf. gráfico III), a terapia fonoaudiológica se mostra sutilmente mais relevante, ou seja, parece exercer maior peso no processo de codificação do que no de decodificação. Na seção, a seguir, compilo algumas propostas educativas para maximizar o potencial de alfabetizandos com Síndrome de Down. 4.3 Propostas pedagógicas Esta seção compila abordagens pedagógicas propostas em Stampa (2009) a partir de subsídios da Consciência Fonológica. Pretende-se ilustrar através das atividades lúdicas 145 apresentadas que o exercício consciente da relação som-letra tende a atenuar déficits de lectoescrita durante o processo de alfabetização. As práticas aqui sugeridas constituem uma pequena amostra do “leque” de habilidades metafonológicas, em geral, aplicadas em alfabetizandos com desenvolvimento típico, mas igualmente passíveis de serem utilizadas no contexto da educação especial. Atividades de consciência Fonológica implicam, antes de mais nada, a consciência auditiva: a capacidade de perceber e reagir a um estímulo sonoro. De acordo com a autora suprarreferida, qualquer dificuldade nesse sentido gera problemas de aprendizagem e de comunicação. Sabendo-se que portadores de SD são acometidos por infecções recorrentes no canal auditivo é imprescindível a aferição audiométrica do aluno. Tomadas as providências médicas cabíveis a cada caso, preconizase que o grupo de alfabetizandos, como um todo, seja estimulado com atividades perceptivas gerais como, por exemplo, através da audição de sons oriundos do próprio corpo (bater palmas, tossir, soprar, espirrar etc), sons de instrumentos musicais, variando em frequência e intensidade (tambor, flauta, violão etc), reagir à ausência de som (parar de dançar quando um som produzido de forma contínua for interrompido etc) e assim por diante. Esses exercícios podem ser desempenhados em sala de aula com a orientação do professor e/ou do fonoaudiólogo. Sequencialmente, deve-se pesquisar a memória auditiva do indivíduo, isto é, a capacidade de reter e reproduzir estímulos sonoros. Dentre as tarefas sugeridas, ressalta-se a repetição de palavras quanto à rima, por exemplo, “bola”- “mola”, “bola” - “mola” - “rola”, quanto ao número de sílabas como em “nó” - “pé, “bolo” - “sola”, “picolé” - “sacola”, quanto à sequência de palavras relacionadas, por exemplo, “maçã”- “pera”, “maçã”, “pera”, “uva” etc. Tais atividades podem ser adaptadas de acordo com a criatividade do professor. Entretanto, aconselha-se variar o grau de dificuldade gradativamente, de acordo com a evolução de cada caso. Stampa (2009) chama a atenção para o fato de que a memória auditiva sequencial (capacidade de perceber e repetir sons na mesma ordem em que foram produzidos) é uma 146 habilidade fundamental para o sucesso da leitura e da escrita. Déficits de memória sequencial acarretam inversões ou substituições de sílabas em palavras (“pipoca” - “picapo”) e de palavras em frases. Os testes para avaliar esse tipo de memória baseiam-se novamente em séries de repetições que vão desde o uso de instrumentos musicais variados (o aluno é solicitado a repetir a sequência dos sons ouvidos) até a repetição de palavras soltas ou frases simples, aumentando-se o número de itens lexicais a cada etapa, por exemplo, “o menino caiu”, “o menino caiu da cadeira”, “o menino caiu da cadeira e chorou”. Ainda no que tange à percepção auditiva, a discriminação, capacidade para distinguir um som dos demais, é outra habilidade suscetível de ser explorada em sala de aula. Dificuldades nessa capacidade, em particular, podem deflagrar confusão e troca de fonemas, por exemplo /vaka/ x /faka/, acarretando problemas na correspondência som-letra e, por conseguinte, desvios de leitura e escrita. A avaliação dessa capacidade pode ser iniciada por tarefas que envolvam discriminação de sons não verbais: toca-se, por exemplo, um chocalho; após breve pausa, toca-se um sino. O aluno em seguida é questionado se os sons são iguais ou diferentes. Já os testes para verificar a discriminação de sons verbais englobam uma série de exercícios, entre os quais destaco: - o professor/terapeuta solicita ao aluno que reaja ao ouvir um som previamente estabelecido (o aluno pode levantar um braço ou bater palmas ao ouvir o som, por exemplo). Stampa (2009) sugere que tais exercícios comecem por fonemas que possam ser prolongados como os fricativos /f/, /v/, /s/, /z/ etc. Dá-se continuidade com fonemas não passíveis de prolongamento como os oclusivos /k/, /g/, /d/, /t/, /b/ e /p/. A autora chama atenção para o fato de que se deve estimular o grau de dificuldade dos exercícios através da enunciação de fonemas auditivamente semelhantes. Estes, em geral, diferem-se em apenas um traço distintivo, aspecto que dificulta a percepção pelo ouvinte; - o professor/terapeuta pode trabalhar com pares de fonemas, solicitando ao alfabetizando que responda se os pares enunciados são iguais ou diferentes (/p/-/p/ são iguais ou diferentes? /f/-/v/ são iguais ou diferentes?). Com os sons vocálicos procede-se de forma semelhante sempre 147 solicitando do aluno uma reação previamente combinada, por exemplo, bater palmas quando os pares de vogais enunciadas forem iguais (a-a, e-o, i-u, o-o, etc). Uma vez que sons consonantais e vocálicos tenham sido introduzidos separadamente, podese combiná-los através de uma infinidade de padrões silábicos (CV, VC, CVC, CCV etc), formando pares que devem ser discriminados (pai-pia). Posteriormente, pode-se combinar palavras com fonemas contrastantes (folha/rolha, lata/mata etc) aumentando-se o grau de dificuldade com vocábulos que englobem fonemas auditivamente semelhantes (homorgânicos) como “pote”/ “bode” e “fila”/ “vila”. Stampa (2009) sugere uma série de pares de palavras com diversos fonemas em diferentes posições para esse propósito. Reitero que exercícios de discriminação auditiva devem ser massivamente estimulados em portadores de SD por uma série de questões amplamente discutidas nesse trabalho, entre elas, o déficit cognitivo que dificulta a percepção e a memória das unidades fonológicas, aspecto agravado por fatores relativos às infecções recorrentes no canal auditivo. Afora à questão acústica, o trabalho de consciência fonológica deve envolver a prática criteriosa do gesto articulatório relacionado ao som previamente ouvido. O professor tem que estar atento à forma como o alfabetizando articula os sons e, caso seja necessário, encaminhá-lo à clínica fonoaudiológica. A interação entre esses dois profissionais é, desse modo, aconselhável, quando não imprescindível. Proponho, a partir da sugestões feitas acima, que ao constatar que o alfabetizando consegue fazer correlação entre a percepção acústica do som e sua respectiva realização fonética, o professor apresente as formas gráficas possíveis de um dado fonema. Sendo bem sucedida a prática acústicoarticulatória, passa-se, então, à etapa de tomada de consciência de que a relação som-letra não é necessariamente unívoca. O aluno precisa precisa assimilar que o som /s/, por exemplo, assume diversas grafias, entre as quais, “s”, “ss”, “sc” , “ç”. Nesse ponto, julgo que a estratégia de memória visual da palavra exerça um papel fundamental para o estabelecimento da escrita canônica. Exercícios do tipo cópia e ditado podem ajudar o aluno a fixar as diferentes grafias de um mesmo 148 som como é o caso de “sala”, “assado”, “crescer” e “açúcar”, além de dar conta da assimilação da grafia de letras que não têm som como é o caso do “h” em “hoje”, “homem”, “hotel” e “hora”. Chamo a atenção novamente para o fato de que alunos com retardo mental em geral requerem estimulação visual massiva. Isso significa que o portador de SD precisa desempenhar mais vezes um mesmo exercício de cópia, por exemplo, quando comparado aos seus pares de desenvolvimento típico. Mesmo entre indivíduos com desenvolvimento atípico, o professor deve estar atento às especificidades de cada um. O trabalho de estimulação, portanto, é individual e dependente da performance do aluno. CONSIDERAÇÕES FINAIS "Não deixem que os cromossomos tenham a última palavra." (Feuerstein,1997) Este trabalho se propôs a traçar os dados de oralidade e escrita de uma população dita atípica, mais especificamente, de indivíduos acometidos por retardo mental e dificuldades relacionadas à realização do gesto articulatório. A amostra indica que a interação de fatores fisiológicos (periféricos e centrais) e psicossociais resulta na formação de padrões fonológicos heterogêneos. Em primeiro lugar, com relação à oralidade, os dados reúnem evidências experimentais de que a dificuldade de realização do gesto articulatório, em virtude de um fator periférico deficiente, 149 associada à função cognitiva retardada (imaturidade neurológica), deflagra produções fonêmicas desviantes e distintas entre os informantes. Em outras palavras, aspectos de falas disártrica e dispráxica, primordialmente, conduzem a manifestações articulatórias variáveis para cada um dos casos pesquisados. A hipótese de que portadores de SD têm dificuldade para discriminar sons foi confirmada através dos dados de S2. A fala do informante, em grande parte ininteligível, denota que uma parte da população estudada apresenta um repertório fonológico muito aquém do esperado quando se leva em consideração a idade cronológica do indivíduo. O desvio de natureza fonético-fonológica está ilustrado na enunciação e leitura de pseudopalavras articuladas com dificuldade. Aventou-se também a hipótese de que o portador de SD apresenta dificuldade para realizar foneticamente uma cadeia sonora. Os dados, que refletem a interação de déficits de caráter neurológico e articulatório, comprovam a hipótese. Assim, registra-se um quadro de alterações diversificadas e motivadas por complicações na realização do movimento articulatório. Duas observações fazem-se pertinentes. Há evidências de que uma parcela da população apresenta déficits de ordem fonológica no que tange à discriminação e organização mental dos fonemas que constituem uma palavra, como é o caso de S2. Acredita-se que esses déficits tenham origem a partir de transtornos fonéticos. Assim, a dificuldade do gesto articulatório parece motivar o déficit fonológico, ou seja, a dificuldade de processamento dos sons que compõem o item lexical. Observou-se também que há desvios especificamente fonéticos os quais não implicam déficit fonológico: o indivíduo tem um repertório fonológico completo, sendo capaz de discriminar e combinar sons. Dessa forma, depreende-se que as alterações nos padrões sonoros testados tenham relação não com a capacidade de abstração de fonemas, mas com a dificuldade de combinar estruturas silábicas mais complexas (dificuldade de realizar o gesto articulatório) ou que sejam consequência de complicações neurológicas, tais como déficit de atenção e memória. Esse fato responde afirmativamente a uma das perguntas elencadas na introdução: diferentes 150 graus de imaturidade neurológica determinam diferentes graus de transtorno articulatório? Respondendo a essa questão, as informantes S1, S4 e S6, que obtiveram escores mais altos nos testes orais, apresentam (segundo anamnese conduzida pela psicóloga da escola) melhor desempenho em termos cognitivos, se comparadas aos outros informantes. A cognição melhor desenvolvida implica percepção e memória auditiva da estrutura da palavra que, por sua vez, facilita sua reprodução sonora. Os dados indicam também que alunos submetidos a terapia fonoaudiológica obtêm melhor performance nos testes orais e escritos. A título de exemplo, S2 que, segundo a escola, não participa de sessões de fonoaudiologia, foi quem pior pontuou tanto na oralidade quanto na escrita. S6, por outro lado, que faz fonoaudiologia há vários anos, atingiu os escores mais altos em todos os testes. Escores discrepantes observados nos dados de S2 e S6 denotam que os desvios de natureza articulatória e implicações na lectoescrita constituem um quadro bastante heterogêneo na população com SD e que fatores biológicos e psicossociais estão em constante interação na configuração de cada caso. Um aspecto importante da pesquisa é que as alterações fonético-fonológicas se caracterizam pela inconsistência e idiossincrasia. As mais recorrentes abarcam substituições de sons abrangendo modo e zona de articulação e/ou vozeamento até omissões de um só fonema ou cadeias sonoras inteiras (“liquidificador” x [mo'do]). Entre os fenômenos mencionados, destacam-se: substituição envolvendo zona de articulação ([kri'ãsa] x [tri'ãsa]; [kõ'grεsʊ] x [tro'drεsʊ] - anteriorização de plosiva), simplificação do padrão CCV por CV (['pratʊ] x ['patʊ]), omissão de segmento desencadeando destravamento silábico (['gaxfʊ] x ['gafʊ]; ['nuvẽ] x ['nuvi]), alteração implicando modo de articulação e vozeamento ([papa'gaiʊ] x [papa'ʃaiʊ]), substituição de vibrante por lateral ([maraka'nã] x [malaka'nã]), adição de fonema (['ovʊ] x ['vovʊ]), dentre outros. Essas alterações, se descontextualizadas, podem tornar a fala ininteligível e/ou infantilizada. Observou-se, por outro lado, a ocorrência de variantes sociais ([fla'mẽgu] x [fra'mẽgu]), tal como na fala de falantes ditos normais e que, portanto, não caracterizam patologia. Tal fenômeno dá 151 indícios de que o portador de SD, assim como indivíduos com desenvolvimento típico,é passível de se apropriar de variantes da língua oral, corroborando a tese de que uma palavra é mais ou menos prototípica de acordo com sua frequência de token. No que tange ao processo de alfabetização, como previsto nas hipóteses, os distúrbios de natureza fonoarticulatória de portadores de SD repercutem na apropriação da lectoescrita, mais especificamente, nos processos de codificação e decodificação. Observou-se que nem sempre há congruência entre leitura e escrita, fenômeno que denota um aspecto em particular: a dificuldade para estabelecer correspondência grafo-fonológica. Esse fato novamente remete aos aspectos relacionados à síndrome, quais sejam: a dificuldade para realizar o gesto articulatório e o teto cognitivo mais baixo, aspecto que leva à confusão no momento de se estabelecer a relação fonemagrafema. No entanto, pensar na possibilidade de alfabetização de indivíduos com deficiência mental leve à moderada não é utopia. O letramento é algo de concreto nas salas de aula para alunos especiais, ainda que o processo aconteça de forma mais lenta. Os dados demonstram que os desvios de leitura e escrita não são totalmente aleatórios, ou seja, mesmo diante das dificuldades fisiológicas impostas pelo acidente genético, o alfabetizando Down consegue estabelecer a relação som-letra. A amostra denota também que, em se tratando de deficiência mental, cada caso é um caso, apesar dos aspectos em comum. Como atesta Rodrigues (1989), indivíduos que apresentam distúrbios articulatórios mostram uma produção fonêmica sistemática que parece obedecer a leis de formação individuais, em certa medida generalizáveis para outros indivíduos. Assim, a escola e, em especial, o alfabetizador precisam desenvolver um olhar clínico para as reais necessidades de cada aluno. Uma vez que se detecta, por exemplo, que o alfabetizando altera a escrita de “planta” para “pranta”, mas não o faz em “Flamengo”, deve-se priorizar o enfoque à escrita e leitura da palavra alterada através de exercícios sistemáticos que podem abranger desde cópia e leitura (para a fixação visual) até o ditado (para facilitar a percepção do som 152 que ser quer colocar em evidência). Como tese defendida por alguns autores, linguagem e cognição caminham lado a lado (cf. Vygotsky, 1989). À luz desse preceito, depreende-se que, ao ser estimulado verbalmente, o portador de retardo mental atinge de modo progressivo um teto cognitivo mais alto. Por outro lado, o melhor desempenho das estruturas cognitivas leva a um avanço da linguagem em todos os seus níveis. A pesquisa apresentou dados contundentes de que o desenvolvimento cognitivo-linguístico é mais lento em indivíduos com SD. Paralelamente, o processo de letramento, também mais lento, obedece a um ritmo particular, aspecto que fica patente ao se considerar a idade cronológica dos alfabetizandos (17 a 24 anos). A apropriação da leitura e da escrita está sobremaneira vinculada à maturação nervosa e, portanto, varia de acordo com o grau de desenvolvimento biopsíquico de cada um. A gama de distúrbios de ordem fisiológica (problemas do aparelho fonador, visão e audição deficitárias) e neurológica (variações nos níveis de QI, déficits de atenção e memória) não constituem, porém, impedimento para que alunos especiais se expressem de maneira inteligível, leiam e escrevam apropriadamente, desde que suas dificuldades de linguagem e de aprendizagem sejam monitoradas por uma equipe multidisciplinar, através de terapias fonoaudiológicas sistemáticas e de apoio familiar e psicopedagógico intensivo. Fundamentalmente, a pesquisa conduzida nesta tese de doutoramento, pretendeu chamar a atenção de profissionais da educação para o fato de que, a despeito das limitações cognitivas impostas pelo acidente genético, o portador de SD é potencialmente capaz para o processo de alfabetização. Cabe à escola, especial ou inclusiva, desenvolver estratégias pedagógicas direcionadas a maximizar o processo de letramento para essa população. Não se trata de fazer a apologia de um ou outro método de alfabetização, mas de identificar problemas e buscar soluções práticas, levando-se em consideração os diferentes níveis de desenvolvimento, enfim, as idiossincrasias de cada aluno. A alfabetização deve, sobretudo, proporcionar a essas pessoas a 153 oportunidade de construir conhecimento e de se integrar à sociedade. A discussão proposta neste trabalho não se encerra aqui. Os aspectos linguísticos abordados (nível fonético-fonológico da fala e repercussões na lectoescrita) devem abranger um número maior de informantes e também podem ser replicados para outros grupos ditos atípicos. Além disso, os demais níveis da gramática (o pragmático-discursivo, por exemplo) abrem-se como novas direções de pesquisa voltada para portadores de SD, tendo em vista a gama de perguntas a serem respondidas no vasto campo da educação especial. Por fim, os dados dessa pesquisa parecem estar em conformidade com as palavras de Ferreiro (2003): "Considero a alfabetização não um estado, mas um processo. Ele tem início bem cedo e não termina nunca. Nós não somos igualmente alfabetizados para qualquer situação de uso da língua escrita. Temos mais facilidade para ler determinados textos e evitamos outros. O conceito também muda de acordo com as épocas, as culturas e a chegada da tecnologia." 154 REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ADAMS. J. M. Et al. Consciência fonológica e alfabetização. Porto Alegre: Artmed, 2006. ANTUNHA, E. L. Diagnóstico psicopedagógico da deficiência mental. In Krynski, S.Os novos rumos da deficiência mental. São Paulo: Sarvier, 1983. BORTONI-RICARDO, Stella Maris.Métodos de alfabetização e consciência fonológica: o tratamento de regras de variação e mudança. SCRIPTA, Revista do Programa de PósGraduação em Letras e do Centro de Estudos Luso-afro-brasileiros da PUC Minas, v.9 nº18, 2006, p.201-220 BOWER, A & HAYES, A. Short-term memories and Down's Syndrome: a comparative study. The Down Syndrome educational trust, volume 2, number 2, 1994. BYBEE, J.Phonology and Language use. New York: Cambridge University Press, 2001. CAGLIARI, L.C. Alfabetização e ortografia. Educar nº 20, p. 43-58, Editora UFPR. Curitiba: 2002. CALLOU, D. & LEITE, Y. Iniciação à fonética e à fonologia. 5ª ed. Jorge Zahar, 1995. CAPOVILLA, A & CAPOVILLA, F. Alfabetização: método fônico. São Paulo: Memnon, 2002. CARDOSO-MARTINS, C. Consciência fonológica e alfabetização. Petrópolis: Vozes, 1996. CARVALHO, M. Alfabetizar e letrar: um diálogo entre teoria e prática. Petrópolis: Vozes, 2005. COSSU, G., Rossini, F. & Marshall, J. C. (1993). When reading is acquired but phonemic awareness is not: A study of literacy in Down’s syndrome. Cognition, 46, 129138. CRYSTAL, D. Patologia del lenguage. Salamanca: Gráficas Ortega, 1993. DI SANTO, J. M. Texto consultado no site de pesquisa Google. Setembro de 2009. FAIRCLOUGH, N. Language and power. London, 1989. FERREIRA, A.B. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986. 155 FERREIRO, E. Reflexões sobre alfabetização. São Paulo: Cortez Autores Associados, 1987. FERREIRO, E. Escrita e oralidade: unidades, níveis de análise e consciência metalinguística In FERREIRO, E. (org.) Relações de (in)dependência entre oralidade e escrita. Porto Alegre: Artmed, 2003. FERREIRO, E. & TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999. FISCHER, M. Mother-child interaction in preverbal children with Down's Syndrome. JSHD, 52, 179-190, 1987. FROTA-PESSOA, O. Genética da deficiência mental. In Krynski, S. Os novos rumos da deficiência mental. São Paulo, Sarvier, 1983. FUJIMURA, O. Temporal organization of articulatory movements as a multidimensional phrasal structure. Phonetica, 38: 66-83, 1981. GASSER, M. Connectionism and Universals of Second Language Acquisition. In Studies in Second Language Acquisition, 12, 179-199 (1990). GOMES, Christina A. Aquisição do tipo silábico CV(r) no português brasileiro. Scripta, v.9, n.18, editora PUCMinas, 2006. HERNANDORENA, C. L. Introdução à teoria fonológica. In BISOL, L. (org) Introdução a estudos de fonologia do português brasileiro. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999. ISSLER, S. Articulação e linguagem. 3ª ed. São Paulo: Lovise, 1996. KATO, M.A. No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística. Ática, São Paulo, 1999. KUMIN, L. C. Councill, and GOODMAN, M, “A longitudinal study of the emergence of phonemes in children with Down syndrome,” Journal of Communication Disorders, vol. 27, pp. 293-303, 1994. LABOV, W. Building on Empirical Foundations. In LEHMANN, W & MALKIEL, Y (eds.) Perspectives on historical linguistics. Amsterdam: John Benjamins, 1982. LEFÈVRE, B. H. Mongolismo-estudo psicológico e terapêutico multiprofissional da Síndrome de Down. São Paulo: Sarvier, 1981. 156 LOPES, I. Cenas de letramentos sociais. Programa de pós-graduação em Letras da UFPE. Coleção Teses. Recife, 2006. LURIA, A. Human brain and the psychological process. Londres: Harper & Row, 1973. MARCUSCHI, L. A. Da fala para a escrita: atividades de recontextualização. São Paulo: Cortez, 2001. MARTINET, A. A línguística sincrônica. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1971. MARTINS, M. A H. Estudo de Caso. Texto retirado do site de pesquisa Google:2009. MATTOS, P. A entrevista não estruturada como forma de conversação:razões e sugestões para sua análise.Rev. Adm pública:39 (4): 823-847, Jul-Ago de 2005. MOLLICA, M. C. Da linguagem coloquial à escrita padrão. Rio de Janeiro: Letras, 2003. MORGAN, M., Moni, K. B. & Jobling, A. (2004). What’s it all about? Investigating reading comprehension strategies in young adults with Down syndrome. Down Syndrome Research & Practice, 9, 37- 44. MOURA, A P. Alfabetização de jovens e adultos: consciência fonológica e desenvolvimento linguístico. Tese de doutorado. UFRJ:2009. OHALA, J.J. The phonetics of sound changes. In Historical Linguistics: problems and perspectives. JONES, C. Longman, p. 237-278, London: 1993 OLIVEIRA, J.B.A. Avaliação em alfabetização. Ensaio v.13, nº 47, p. 375-383: 2005. PIERREHUMBERT, J. (2003). Probalilistic Phonology: discrimination and robustness. In: R. Bod, J. Hay, S. Jannedy (eds). pp.177-228. _______ (2001). Exemplar dynamics: Word frequency, lenition and contrast. In. J. Bybee & P. Hopper (eds). Frequency and the emergency of linguistic structure.Amsterdam: John Benjamins, pp.137-157. . O que é a Síndrome de Down? In Werneck, Muito prazer, eu existo. Rio de Janeiro: WVA, 1993. PACHER, M.C.Revista de divulgação técnico-científica do ICPG Vol. 2 n. 5 – abr.jun./2004. 157 PINTO, B. & LAMPRECHT, R. Estudo do desempenho de crianças com Síndrome de Down em tarefas de consciência fonológica. III Mostra de pesquisa de pós-graduação. PUC-RS, 2008. PORT, R. F., & LEARY, A. (2005). Against formal phonology. Language, 81, 927-964 PUESCHEL, S.M. A parent's guide to Down Syndrome - toward a brighter future. Baltimore, Maryland: Paul H. Brooks, 1990. RAMIREZ, N. J. et al. Parental origin, nondisjunction and recombination of the extra cromossome 21 in Down Syndrome: a study in a sample of the colombian population. Biomédica Colombia, V. 27, p. 141-148, 2007. RECHIA, I. et al. Processos de apagamento na fala de sujeitos com dispraxia verbal. Revista Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia, vol. 14, nº 4. São Paulo, 2009. RODRIGUES, N. Neurolinguística dos distúrbios da fala. São Paulo: Cortez, 1989. RONDAL, J. A Dificultades del lenguaje em el síndrome de Down: Perspectiva a lo largo de la vida y princípios de intervención. Revista Síndrome de Down, v. 23, n. 91, p.120-8, 2006. SCHERRE, M. M.P. (1994) Aspectos da concordância de número no português do Brasil. Revista Internacional de Língua Portuguesa (RILP), 12. Lisboa: Associação das Universidades de Língua Portuguesa: 37-49. SCLIAR-CABRAL, L. Guia prático de alfabetização. São Paulo: Editora Contexto, 2003. _________________ . In PELANDRÉ, N. Ensinar e aprender com Paulo Freire: 40 horas 40 anos depois. São Paulo: Cortez, 2002b. Siegel, L. S. (1989). IQ is irrelevant to the definition of learning disabilities. Journal of Learning Disabilities, 22, 469-478, 486. SILVA, C. A. P. P. G. da. A construção do significado por portadores de Síndrome de Down. Dissertação de Mestrado. UFRJ, Rio de Janeiro, 1999. SILVA, T. C. Exercícios de fonética e fonologia. São Paulo: Ed. Contexto, 2002. SOARES, M.S. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Trabalho apresentado na 26ª Reunião Anual da Anped em Poços de Caldas, em outubro de 2003. _____________ . Letramento: um tema em três gêneros. 2 ed. São Paulo: Autêntica, 1999. SOUZA, C.B.A. Correlacionando aspectos físico-químicos do sistema nervoso central com o funcionamento cognitivo deficitário. Anais do II Congresso Brasileiro sobre Síndrome de Down. Centro de Convenções Ulisses Guimarães. Brasília, 1997. 158 STAKE. R. E. Case studies. In: DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S. (ed.) Handbook of qualitative research. London: Sage, 2000. p. 435-454. STAMPA, M. Aquisiçao da leitura e da escrita: uma abordagem a partir da consciência fono lógica. WAK, 2009. STAMPE, D. A dissertation on natural phonology. Tese de Doutorado. Universidade de Chicago, 1973. ______________. Descartando fonemas: a representação lexical na fonologia de uso. In DA HORA, Demerval; COLLISCHONN, Gisella (orgs). Teoria Linguística: Fonologia e outros temas. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, 2003, p.200-231. _______________. A aquisição de padrões sonoros variáveis. Porto Alegre: Revista Letras Hoje, v.39. n.137, p.101-110. B. Trenholm and P. Mirenda. Home and community literacy experiences Down Syndrome Research and Practice 10(1), 30-40. VAN LIER, L. The classroom and the language learner. Londres: Longman, 1988. VIANNA, S. Limites entre o normal e o patológico em linguagem-reflexões para o professor de língua portuguesa. In Mollica, M. C. (org.) Formação em letras e pesquisa em linguagem. Rio de Janeiro: Navona Editora, 2005. VIHMAN, M..M. & KUNNARI, S. The sources of phonological knowledge a crosslinguistic perspective. Recherches Linguistiques de Vineennes (35), p.133-164. VYGOTSKY, L. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1991. WERNECK, C. Muito prazer, eu existo. Rio de Janeiro: WVA, 1993. YIN, R. Case study research: design and methods. London: Sage Publications, 1984 YIN, R. Applications of case study research. London: Sage Publications, 1993. ZORZI, J. L. Aprendizagem e distúrbios da linguagem escrita: questões clínicas e educacionais. Porto Alegre: Artmed, 2003. 159 ANEXOS 160 Anexo 1 Teste com grupos de palavras familiares Procedimentos Os informantes foram avaliados individualmente numa sala silenciosa. As etapas orais (enunciação e leitura) foram gravadas em áudio e, posteriormente, transcritas. A produção escrita, após concluída pelo aluno, foi fielmente reproduzida pela pesquisadora. Num primeiro momento, a pesquisadora mostrou a figura para o informante que deveria enunciá-la. Após a enunciação o informante era solicitado a escrever o nome da figura. Por fim, a pesquisadora apresentou fichas contendo os nomes das figuras enunciadas e pediu ao informante que as lesse. Os testes possibilitaram fazer um cruzamento dos dados orais entre si, isto é, enunciação e leitura, e, posteriormente, destes com a produção escrita. Descrição Os testes têm como objetivo avaliar três fenômenos, a saber: – processos fonológicos de simplificação (vocábulos polissílabos); – coarticulação de encontros consonantais; – troca/omissão/adição de fonema (vocábulos monossílabos e dissílabos). 161 Sujeito 1 (sexo fem. - 23 anos) Tabela I – Processos fonológicos de simplificação P. F. de Simplificação Enunciação Leitura Escrita 1. liquidificador [lɪtʃɪka'do] [lɪtʃɪka'do] liticado 2. hipopótamo [ɪpo'pɔtamʊ] * [ɪpop'ɔtamʊ] * ihpotamo 3. margarina [maga'rina] [maga'rina] malina 4. geladeira [ʒera'dera] [ʒela'deyra]* geladeira* 5. maracanã [malaka'nã] [maraka'nã] * maracana 6. esqueleto [eʃke'letʊ] * [eʃke'letʊ] * esqueto 7. melancia [melã'sia] * [melã'sia] * melacia 8. Botafogo [bɔta'fogʊ]* [bɔta'fogʊ]* botafogo* 9. elefante [ele'fãtʃi]* [ele'f ãte]* elefante* 10. lagartixa [laga'tʃiʃa] [laga'tʃiʃa] laticha 11. computador [pʊkʊta'do] [kõpʊta'do] coputado 12. televisão [televɪ'zãw]* [televɪ'zãw]* tlevesa 13. sanduíche [sãdʊ'iʃe]* [sãdʊ'iʃe]* sauduiche 14. matemática [mate'matʃɪka]* [mate'matʃɪ ka]* matetica 15. chocolate [ʃoko'latʃɪ]* [ʃokol'ate]* chocolate* 16. papagaio [papa'gaɪʊ]* [papa'gaɪo]* papagaio* 17. ventilador [vẽtʃila'do]* [vetʃila'do]* vetilado 18. helicóptero [ele'kɔtero] [ele'kɔtero] elruetero 19. passarinho [pasa'liɲʊ] [pasar'iɲʊ]* pasasariu 20. abóbora [a'bɔbʊra]* [a'bɔbora]* aobobera ¹As palavras marcadas com asterisco (*) foram corretamente articuladas/escritas. Sujeito 1 162 Tabela II – Coarticulação de EC Coarticulação de EC Enunciação Leitura Escrita 1. prato ['pratʊ]* ['prato]* prato* 2. livro ['livrʊ]* ['livro]* livro* 3.cruz ['krʊʃ]* ['krʊʃ]* cls 4. cobra ['kɔra] ['kɔra] cobra* 5. quadro ['kwarʊ] ['kwadro]* cuebro 6. travesseiro [tlave'serʊ] [trave'sero]* travecero 7. gravata [gra'vata]* [gla'vata] travata 8. bicicleta [bɪsɪ'klεta]* [bɪsɪ'klεta]* bisreleta 9. Flamengo [fra'mẽgʊ] [fra'mẽgʊ] flamengo* 10. Drácula ['dlakʊla] ['rakʊla]* bracora 11. brinco ['brĩkʊ]* ['rĩkʊ] brinco* 12. biblioteca [blɪblo'tεka] [bɪbro'tεka] bribroteca 13. planta ['prãta] ['prãta] pranta 14. atlântico [a'trãtʃɪku] [a'tlãtʃɪko]* apratico 15. trem ['tlẽ] ['trẽ]* trei 16. grávida ['gravɪda]* ['gravɪda]* bravida 17.globo ['grobʊ] ['globʊ]* ilegível 18. blusa ['bluza]* ['ruza]* bruza 19. criança [krɪ'ãsa]* [krɪ'ãsa]* cliasa 20. frio ['friʊ]* ['friʊ]* friu 163 Sujeito 1 Tabela III – Troca/omissão/adição de fonema Troca/omissão/adição de fonema Enunciação Leitura Escrita 1. chapéu [ʃa'pεw]* [ʃa'pεw]* chapeu* 2. pão [pãw]* [pãw]* pão* 3. bolsa ['bowsa]* ['bowsa]* bolsa* 4. azul [a'zuw]* [a'zuw]* azu 5. cinto ['sĩtʊ]* ['sĩtʊ]* sito 6. nuvem ['nuvẽ]* ['nuvẽ]* nuvem* 7. pé ['pε]* ['pε]* pé* 8. leite ['leyte]* ['leyte]* leite* 9. carro ['kaRʊ]* ['kaRʊ]* carro* 10. mala ['mala]* ['mala]* mala* 11. unha ['uɲa]* ['uɲa]* unha* 12. faca ['faka]* ['faka]* faca* 13. garfo ['gafʊ] ['gafo] gafo 14. queijo [k'eʒu]* ['keyʒʊ]* queijo* 15. ovo ['ovʊ]* ['ovʊ]* ovo* 16. rato ['Ratʊ]* ['Ratʊ]* rato* 17. dedo ['dedʊ]* ['dedʊ]* dedo* 18. mesa ['meza]* ['meza]* mesa* 19. peixe ['peʃɪ]* ['peʃɪ]* peixe* 20. milho ['miʎʊ]* ['miʎʊ]* milho* 164 Sujeito 2 ( sexo masc. - 19 anos) Tabela I – Processos fonológicos de simplificação P. F. de Simplificação Enunciação Leitura Escrita 1. liquidificador [mo'do] ['fi] ilegível 2. hipopótamo [pɔ'pɔde] ['pɔta] ilegível 3. margarina [mã'deda] [pa'RiRa] ilegível 4. geladeira [la'deda] ['eRa] ilegível 5. maracanã [mama'dã] [maRae'na] ilegível 6. esqueleto [te'ledo] ['leto] ilegível 7. melancia [mã'dʒida] [te'iRa] ilegível 8. Botafogo [bɔka'fogʊ] ['ʃo] ilegível 9. elefante [mã'dãtʃɪ] [ele'ate] ilegível 10. lagartixa [pala'tiʃa] ['ʃ'ia] ilegível 11. computador [mama'do] [kea'toRo] ilegível 12. televisão [mama'dãw] [tele'gãw] ilegível 13. sanduíche [sãw'iʃe] [ka'tea] ilegível 14. matemática [te'mata] [mate'matea] ilegível 15. chocolate [ko'latʃɪ] [te'lete] ilegível 16. papagaio [mama'dado] [papa'ʃaɪo] ilegível 17. ventilador [mama'dãw] [kela'dãw] ilegível 18. helicóptero [k'ɔbɪlɪ] [kalɪ'koko] ilegível 19. passarinho [para'riɲʊ] [pasa'rido] ilegível 20. abóbora [ka'bɔla] a'bɔboka] ilegível 165 Sujeito 2 Tabela II – Coarticulação de EC Coarticulação de EC Enunciação Leitura Escrita 1. prato ['patʊ] ['peto] ilegível 2. livro ['dʒidʊ] [lɪve'Ro] ilegível 3.cruz ['tutʃɪ] [xe'ua] ilegível 4. cobra ['kɔpara] [ko'beRa] ilegível 5. quadro [mã'datʊ] [ʃu'ato] ilegível 6. travesseiro [mã'data] [ʃɪ'ReRo] ilegível 7. gravata ['nɔ] [ʃe'farla] ilegível 8. bicicleta [bɪdɪ'rεta] [bɪsɪ'bεta] ilegível 9. Flamengo [la'menʊ] [flea'meʃeo] ilegível 10. Drácula Não soube nomear [ʃe'lua] ilegível 11. brinco ['pidʒɪo] [per'ʃio] ilegível 12. biblioteca [ma'zeza] ['lilo] ilegível 13. planta ['pãnεla] [pɪteo'te] ilegível 14. atlântico [mã'tãtʊ] [arte'liko] ilegível 15. trem ['sẽ] ['xeme] ilegível 16. grávida ['godʊ] [xe'vete] ilegível 17.globo ['globʊ]* [ʃelo'po] ilegível 18. blusa ['buza] [peleweʃ'te] ilegível 19. criança [kɪ'ãsa] [ka'iska] ilegível 20. frio ['fiʊ] ['ferso] ilegível 166 Sujeito 2 Tabela III – Troca/omissão/adição de fonema Troca/omissão/adição de fonema Enunciação Leitura Escrita 1. chapéu [sa'pεw] [ka:a:pe'εw] ilegível 2. pão ['pãw]* ['pãw]* ilegível 3. bolsa ['bosa] [po'lisa] ilegível 4. azul [a'zu] [ar'zula] ilegível 5. cinto ['tidʊ] ['ʃiko] ilegível 6. nuvem ['nudɪ] [ʃuse'me] ilegível 7. pé ['pε]* ['pε]* ilegível 8. leite ['letʃɪ]* ['leyte]* ilegível 9. carro ['kaʊ] [ka'Ro]* ilegível 10. mala ['mala]* ['mala]* ilegível 11. unha ['uɲa]* [ʃi'ulɪ] ilegível 12. faca ['faka]* ['faxka] ilegível 13. garfo ['gadʊ] [ʃefo'Re] ilegível 14. queijo ['sedʊ] [ʃ'eʃo] ilegível 15. ovo ['ovʊ]* ['ovo]* ilegível 16. rato ['xatʊ]* ['kako] ilegível 17. dedo ['tedʊ] ['dedo]* ilegível 18. mesa ['meza]* ['ʃera] ilegível 19. peixe ['peʃɪ]* ['piʃe] ilegível 20. milho ['miʎʊ]* [mɪka'ko] ilegível 167 Sujeito 3 (sexo masc. - 17 anos) Tabela I – Processos fonológicos de simplificação P. F. de Simplificação Enunciação Leitura Escrita 1. liquidificador [fɪlɪʃɪ ka'do] ['fogo] fidodo 2. hipopótamo [ɪpo'pɔtamʊ]* [po'damʊ] ibtmo 3. margarina/manteiga [mã'tega]* [ma'maRa] ath 4. geladeira [ʒera'deyra] [ʒela'teiRa] gtar 5. maracanã [maraka'nã]* [maRaka'ne] acna 6. esqueleto [ɪʃke'letʊ]* [sewkew'leRo] iqueto 7. melancia [mãlã'sia] [melã'sia]* amcia 8. Botafogo [bɔta'fogʊ]* [boda'ewgo] dfgo 9. elefante [ele'fãte]* [sewle'ledo] elefte 10. lagartixa [lar'gaxtʊ] ['lago] lgto 11. computador [kõputa'doR]* [pʊta'do] aatd 12. televisão [televɪ'zãw]* [saleve'sio] tlvsa 13. sanduíche [sãdʊ'iʃe]* [sa'lelo] suis 14. matemática [mate'matʃɪ ka]* ['mato] suis 15. chocolate [ʃoko'latʃɪ]* ['komo] ameca 16. papagaio [papa'gaɪʊ]* ['mãno] paco 17. ventilador [vɪtʃɪla'dox] ['vebo] vilto 18. helicóptero [elɪ'kɔpterʊ]* ['kedo] ecaro 19. passarinho [pasa'riɲʊ]* [pase'rono] pro 20. abóbora [a'bɔbora]* [pa'pano] apra 168 Sujeito 3 Tabela II – Coarticulação de EC Não coarticulação de Enunciação EC Leitura Escrita 1. prato ['pratʊ]* ['prato]* aro 2. livro ['livrʊ]* ['livro]* livo 3.cruz ['truʃ] [katra'ʃu] iuz 4. cobra ['kɔbra]* ['kɔpo] coao 5. quadro ['kwadrʊ]* ['keyʒo] aro 6. travesseiro [trave'serʊ]* [tra'veso] avicro 7. gravata [tra'vata] [ka'vato] gavt 8. bicicleta [bɪsɪ'klεta]* [pɪ'kilo] pcel 9. Flamengo [fla'mẽgʊ]* [fle'mẽgo]* laec 10. Drácula ['trakʊla] ['drakʊla]* aula 11. brinco ['bĩkʊ] [brɪga'deyro] pico 12. biblioteca [bɪro'tεka] [bɪ'ledo] poreat 13. planta ['plãta]* ['bala] alta 14. atlântico [a'klãtʃɪkʊ] [ata'lako] ltoc 15. trem ['trẽ]* ['trame] ptq 16. grávida ['gravɪda]* [gavɪ'zãw] ardz 17.globo ['globo]* ['ʒalo] olb 18. blusa ['bluza]* ['beyʒa] pua 19. criança [trɪ'ãsa] ['Rey] ica 20. frio ['friʊ]* [fre'ʒiw] ifo 169 Sujeito 3 Tabela III – Troca/omissão/adição de fonema Troca/omissão e/ou Enunciação adição de fonema Leitura Escrita 1. chapéu [ʃa'pεw] * ['ʃapo] gaeod 2. pão ['pãw]* ['pãw]* pão* 3. bolsa ['bowsa]* ['bolo] bosa 4. azul [a'zuw]* [ʃa'ʃu] auz 5. cinto ['sĩtʊ]* ['sino] icnto 6. nuvem ['nuvẽ]* [nʊ'me] nuve 7. pé ['pε]* ['pε]* pé* 8. leite ['leytʃɪ]* ['leyte]* letd 9. carro ['kaRʊ]* ['xadɪo] caor 10. mala ['mala]* ['lagʊ] aml 11. unha ['uɲa]* ['muko] ucn 12. faca ['faka]* ['faka]* fac 13. garfo ['gafo] ['gato] chfu 14. queijo ['keyʒʊ]* ['keyʒo]* quiejo 15. ovo ['ovʊ]* ['vovo] ovo 16. rato ['xatʊ]* ['xato]* rat 17. dedo ['dedʊ]* [tele'zu] deo 18. mesa ['meza]* ['meza]* meca 19. peixe ['peyʃɪ]* [xe'ze] peig 20. milho ['miʎʊ]* ['milo] milo 170 Sujeito 4 (sexo fem. - 22 anos) Tabela I – Processos fonológicos de simplificação P. F. de Simplificação Enunciação Leitura Escrita 1. liquidificador [vẽtɪka'do] [li] vaieicaro 2. hipopótamo [ɪpo'pɔtamʊ]* [po'tamo] pupo 3. margarina/manteiga [mã'tega]* [maʒa'xina] materh 4. geladeira [ʒala'dera] [ʒela'dera]* galadar 5. maracanã [maraka'nã]* [mate'matʃɪka]* macarina 6. esqueleto [ɪʃke'leto]* ['teto] eliqirol 7. melancia [melã'sia]* [me'lada] malica 8. Botafogo [bɔta'fogo]* [bɔta'fogo]* boituo 9. elefante [ele'fãte]* [ele'nate] eiliet 10. lagartixa [larga'tʃiʃa]* [laʒa'xiʃa] laigia 11. computador [kõputa'doR]* [koputa'do] cotuirdo 12. televisão [telɪvi'zãw]* [televɪ'zaw]* tilico 13. sanduíche [sãdʊ'iʃe]* [sanada'fu] salro 14. matemática [mate'matʃɪka]* [mate'matʃɪka]* maticia 15. chocolate [ʃoko'late]* [ʃoko'late]* colite 16. papagaio [papa'gaɪʊ]* [papa'ʒaɪo] paiciro 17. ventilador [vẽtɪla'doR]* [leta'do] veilo 18. helicóptero [ele'kɔpɪrɪto] [delɪkopata'to] alcoiro 19. passarinho [pasa'riɲo]* [pasa'riɲo]* paiciso 20. abóbora [a'bɔbara] [b'oka] bora 171 Sujeito 4 Tabela II – Coarticulação de EC Coarticulação de EC Enunciação Leitura Escrita 1. prato ['pratʊ]* ['pratʊ]* patora 2. livro ['livrʊ]* ['livro]* vlito 3.cruz ['krʊʃ] * ['za] tnoso 4. cobra ['kɔbra]* [ba'tata] coma 5. quadro ['kwadrʊ]* [ka:d:exe:o] cato 6. travesseiro [travɪ'seyrʊ]* [pasa'riɲo] riuero 7. gravata [gra'vata]* [ʒi'rafa] clidoa 8. bicicleta [bɪsɪ'klεta]* [ɪsɪole'fãte] lisletota 9. Flamengo [fra'mẽgʊ] [fe'lio] fimlo 10. Drácula ['drakʊla]* ['drala] ticola 11. brinco ['brĩkʊ]* ['brĩkʊ]* bolo 12. biblioteca [bɪbrɪo'teka] [bɪbrɪo'teka] bolsa 13. planta ['prãta] ['prãta] apita 14. atlântico ['trãʃɪtʊ] ['trãʃɪto] lrioco 15. trem ['trẽ]* ['trẽ]* teicoear 16. grávida ['gravɪda]* ['glavɪda] latoe 17.globo ['globo]* ['globo]* Bcto 18. blusa ['bluza]* ['bluza]* aboa 19. criança [klɪ'ãsa] [krɪ'ãsa]* consa 20. frio ['friʊ]* ['friʊ]* sacico 172 Sujeito 4 Tabela III – Troca/omissão/adição de fonema Troca/omissão fonema/grafema de Enunciação Leitura Escrita 1. chapéu [ʃa'pεw]* Não leu Não escreveu 2. pão ['pãw]* ['pãw]* pão* 3. bolsa ['bowsa]* ['bowsa]* boasa 4. azul [a'zu] [za'zu] luiaz 5. cinto ['sĩtʊ]* ['sinʊ] sto 6. nuvem ['nuvẽ]* ['nuvẽ]* nuvie 7. pé ['pε]* ['pε]* pera 8. leite ['leyʃɪ]* ['leytʃɪ]* lite 9. carro ['kaRʊ]* ['kaRʊ]* carcao 10. mala ['mala]* ['mala]* mala* 11. unha ['uɲa]* ['una] nuia 12. faca ['faka]* ['faka]* faca* 13. garfo ['gaxfʊ]* ['fogʊ] gaiuo 14. queijo ['keʒʊ]* ['keʒʊ]* qijo 15. ovo ['ovu]* ['ovʊ]* vovo 16. rato ['xatʊ]* ['xatʊ]* rtoa 17. dedo ['dedʊ]* ['dedʊ]* dito 18. mesa ['meza]* ['meza]* mariz 19. peixe ['peʃɪ]* ['peyʃe]* paxo 20. milho /['miʎʊ]* ['miʎʊ]* mailu 173 Sujeito 5 (sexo masc. - 19 anos) Tabela I – Processos fonológicos de simplificação P. F. de Simplificação Enunciação Leitura Escrita 1. liquidificador [lɪkwa'dor] * ['xatʊ] caido 2. hipopótamo [ɪpo'pɔtʊ] ['mew ] opido 3. margarina/manteiga [pã'tega] [taʧɪ'ãna] ptaca 4. geladeira [ʒea'dera] ['Rey] tgela 5. maracanã [maakã'nã] ['nεrtʊ] bedacn 6. esqueleto [ɪʃke'etʊ] [fe'lipɪ ] sedo 7. melancia [malã'sia] ['ia] saba 8. Botafogo [bɔta'fogʊ]* ['ʒayrʊ] crdtfgo 9. elefante [ee'fãtʃɪ] [mɪ'nina] etcat 10. lagartixa [lata'tʃɪʃa] [zaka'riaʃ] sasa 11. computador [kõputa'dor]* [mu'su] ferba 12. televisão [teevɪ'zãw] [dε'dε] tfsmão 13. sanduíche [ʃãdu'iʃɪ ] [dʒɪ 'dʒi] xsixs 14. matemática ['matʃika] ['kikʊ] tmca 15. chocolate [ʃoko'iatʃɪ] ['linʊ] stete 16. papagaio [ papa'gaɪʊ] * [tu'nɪkʊ] pcah 17. ventilador [tʃɪla'dor] [po'lisɪa] statou 18. helicóptero [eli'kɔpɪdʊ] [pĩ'sεw] prshbeo 19. passarinho [pasa'iɲu ]* ['lipɪ] saifelp 20. abóbora [a'bɔbura ] * [ʒaka'rε] bripfeipfeo 174 Sujeito 5 Tabela II – Coarticulação de EC Coarticulação de EC Enunciação Leitura Escrita 1. prato ['pratʊ] * ['tew] peto 2. livro ['livʊ] ['Rɔda ] austio 3.cruz ['kluʃ] [bu'nitʊ] sisahis 4. cobra ['kɔba ] [bunɪ'ʧiɲa] capaeo 5. quadro ['kwadʊ] [koko'vay] saieia 6. travesseiro [tavɪ'seɪʊ] ['awaw] sihaia 7. gravata [ga'vata] ['t'ew] saspi 8. bicicleta [bɪsɪ'kεta] ['gatʊ] siaib 9. Flamengo [fa'mẽgʊ] ['ay] fisau 10. Drácula ['drakura] ['nina] suiaxiau 11. brinco ['bĩkʊ] ['nonu] sitaia 12. biblioteca [bɪbɪo'tεka ] [ba'leɪa] stiate 13. planta ['prãta] [ma'druga ] siahfeo 14. atlântico [a'tãʧɪkʊ] [flo'rĩda] tiuba 15. trem ['tẽ] [ʃɪ'kiɲa ] sitaeiao 16. grávida ['gravɪda] * ['prasa] stipidoe 17.globo ['globʊ] * ['ʃuʃa] pelira 18. blusa [bluza] * [po'pay] spiria 19. criança ['krɪ'ãsa] * [o'livɪa] stieiam 20. frio ['friʊ] * ['brutʊʃ] peiada 175 Sujeito 5 Tabela III – Troca/omissão/adição de fonema Troca/omissão fonema/grafema de Enunciação Leitura Escrita 1. chapéu [ʃa'pεw] * Não leu saiapa 2. pão ['pãw]* ['pepew] pamo 3. bolsa ['bosa] [sa] stiatoe 4. azul [a'zu] [a:a] saeiou 5. cinto ['sĩtʊ] * ['gatʊ] peipiou 6. nuvem ['nuvɪ] [mɪ'miw] satia 7. pé ['pε] * ['pε] * pe 8. leite ['leytʃɪ] * ['ʧaw] aaxappbb 9. carro ['kaRʊ] * ['porkʊ] selaiou 10. mala ['maɪa] [le'ʧisɪa] aapprreelloo 11. unha ['uɲa ] * ['Raw] aeairaibu 12. faca ['faka] * ['kaza] felisbirbo 13. garfo ['gafʊ] ['brunʊ] eefibr 14. queijo ['keʒʊ] * [ʒa'nεla] usieoo 15. ovo ['ovʊ ] * [vo'vʊ] uiou 16. rato ['Ratʊ] * ['Ratʊ] * riee 17. dedo ['dedʊ] * ['nεvɪ] aitlblieie 18. mesa ['meza] * ['kaza] saeaeuo 19. peixe ['peʃɪ] * ['peʃɪ] * xiela 20. milho ['miʎʊ] * ['gatʊ] csaiai 176 Sujeito 6 (fem. - 24 anos) Tabela I – Processos fonológicos de simplificação P. F. de Simplificação Enunciação Leitura Escrita 1. liquidificador [lɪkwɪdʒɪfɪka'dor]* [lɪkwɪdʒɪfɪka'dor]* licodificador 2. hipopótamo [ɪpo'pɔtamʊ]* [ɪpo'pɔtamʊ] * hipopótamo* 3. margarina/manteiga [maga'lina] [maga'lina] magarina 4. geladeira [ʒela'dera]* [ʒela'dera]* geladeira* 5. maracanã [maraka'nã]* [maraka'nã]* maracanã* 6. esqueleto [eʃke'letʊ]* [eʃke'letʊ]* esqueleto* 7. melancia [melã'sia]* [melã'sia]* melancia* 8. Botafogo [bɔta'fogʊ]* [bɔta'fogʊ]* Botafogo* 9. elefante [ele'fãtʃɪ]* [ele'fãtʃɪ]* elefante* 10. lagartixa [laga'tiʃa] [laga'tiʃa] largatixa 11. computador [koputa'dor] [koputa'dor] computador* 12. televisão [televɪzãw]* [televɪzãw]* televisão* 13. sanduíche [sãdu'íʃɪ]* [sãdu'íʃɪ]* sanduíche* 14. matemática [mate'matʃɪka]* [mate'matʃɪka]* matemática* 15. chocolate [ʃoko'latʃɪ]* [ʃoko'latʃɪ]* chocolate* 16. papagaio [papa'gaɪʊ]* [papa'gaɪʊ]* papagaio* 17. ventilador [vẽtʃɪla'dor]* [vẽtʃɪla'dor]* ventilador* 18. helicóptero [elɪ'kɔpterʊ]* [elɪ'kɔpterʊ]* helocptero 19. passarinho [pasa'riɲʊ]* [pasa'riɲʊ]* passarinho* 20. abóbora [a'bɔbura]* [a'bɔbura]* abóbora* 177 Sujeito 6 Tabela II – Coarticulação de EC Coarticulação de EC Enunciação Leitura Escrita 1. prato ['pratʊ]* ['pratʊ]* prato* 2. livro ['livrʊ]* ['livrʊ]* livro* 3.cruz ['kruʃ]* ['kruʃ]* cruz* 4. cobra ['kɔbra]* ['kɔbra]* cobra* 5. quadro ['kwadrʊ]* ['kwadrʊ]* quadro* 6. travesseiro [tarave'serʊ] [tarave'serʊ] travesseiro* 7. gravata [gara'vata] [gara'vata] gravata* 8. bicicleta [bɪsɪ'klεta]* [bɪsɪ'klεta]* bicicleta* 9. Flamengo [fla'mẽgʊ]* [fla'mẽgʊ]* Flamengo* 10. Drácula ['drakula]* ['drakula]* Drácula* 11. brinco ['brĩkʊ]* ['brĩkʊ]* brinco* 12. biblioteca [bɪblo'tεka] [bɪblo'tεka] não escreveu 13. planta ['plãta]* ['plãta]* planta* 14. atlântico [a'tlãtɪkʊ]* [a'tlãtɪkʊ]* atlântico* 15. trem [trẽ]* [trẽ]* trem* 16. grávida ['gravɪda]* ['gravɪda]* grávida* 17.globo ['globʊ]* ['globʊ]* globo* 18. blusa ['bluza]* ['bluza]* blusa* 19. criança [krɪ'ãsa]* [krɪ'ãsa]* criança* 20. frio [fɪ'riʊ] [fɪ'riʊ] frio* 178 Sujeito 6 Tabela III – Troca/omissão/adição de fonema Troca/omissão fonema/grafema de Enunciação Leitura Escrita 1. chapéu [ʃa'pεw]* [ʃa'pεw]* chapéu* 2. pão ['pãw]* ['pãw]* pão* 3. bolsa ['bowsa]* ['bowsa]* bolsa* 4. azul [a'zuw]* [a'zuw]* azul* 5. cinto ['sĩtʊ] * ['sĩtʊ] * cinto* 6. nuvem ['nuvẽ]* ['nuvẽ]* nuvem* 7. pé ['pε] * ['pε] * pé* 8. leite ['leytʃɪ] * ['leytʃɪ] * leite* 9. carro ['kaRʊ] * ['kaRʊ] * carro* 10. mala ['mala]* ['mala]* mala* 11. unha ['uɲa]* ['uɲa]* unha* 12. faca ['faka]* ['faka]* faca* 13. garfo ['garfʊ]* ['garfʊ]* garfo* 14. queijo ['keyʒʊ] * ['keyʒʊ] * queijo* 15. ovo ['ovʊ ] * ['ovʊ ] * ovo* 16. rato ['Ratʊ] * ['Ratʊ] * rato* 17. dedo ['dedʊ] * ['dedʊ] * dedo* 18. mesa ['meza] * ['meza] * mesa* 19. peixe ['peʃɪ] * ['peʃɪ] * peixe* 20. milho ['miʎʊ] * ['miʎʊ] * milho* 179 Anexo 2 Testes com palavras não familiares Procedimentos Os informantes foram avaliados individualmente numa sala silenciosa. A pesquisadora primeiramente leu pausadamente os vocábulos não usuais solicitando que o informante os escrevesse. A produção escrita, após concluída pelo aluno, foi fielmente reproduzida pela pesquisadora. Após todas as palavras terem sido grafadas, dava-se início à etapa de leitura, gravada em áudio e, posteriormente, transcrita. Nessa etapa, a pesquisadora apresentava as fichas com a escrita das palavras desconhecidas, solicitando que os informantes as lesse. Descrição Os testes com palavras não familiares tiveram como objetivo avaliar se os informantes apresentavam melhores resultados de leitura e escrita com palavras familiares. Caso os dados apontassem para escores mais baixos em relação ao teste com palavras familiares, ter-se-ia um quadro que ilustra ausência de habilidade no conhecimento de regras de correspondência grafofonológica. A seguir, os testes com palavras não familiares. 180 Sujeito 1 (sexo fem. - 22anos) Palavras não familiares Leitura Escrita 1.PALEONTOLOGIA [paleto'loga] paleontologia * 2.FUGACIDADE [fugaci'dade]* fugacidade * 3.ARINQUE [a'plikey] arinque * 4.MARROADA [ma'roda] maroada 5.ENANTIOSE [enato'eʃ] enatioz 6.SAZONAL [sa'zona] sazonao 7.TURANIANO [tura'mo] tuniano 8.IMACULATISMO [imakula'tiʃmo]* imalatismo 9.JERIBAZEIRO [ʒaɣa'zero] geribazero 10.RANFOTECA [Rafo'tεka] rfoteca Sujeito 2 (sexo masc. - 19 anos) Palavras não familiares Leitura Escrita 1.PALEONTOLOGIA [pa'ledu] ilegível 2.FUGACIDADE [fukaʃi'ka:a:e] ilegível 3.ARINQUE [RaRi'o:e] ilegível 4.MARROADA [me'Raka] ilegível 5.ENANTIOSE ininteligível ilegível 6.SAZONAL ininteligível ilegível 7.TURANIANO [tu'aflo] ilegível 8.IMACULATISMO [meʃea'tiʃo] ilegível 9.JERIBAZEIRO [ʒa'ReRo] ilegível 10.RANFOTECA [Rafo'ka] ilegível * as palavras em asterisco foram corretamente lidas e/ou grafadas. 181 Sujeito 3 (sexo masc.- 17 anos) Palavras não familiares Leitura Escrita 1.PALEONTOLOGIA [to'zelo] beotltolia 2.FUGACIDADE ['gato] faigte 3.ARINQUE ['Rafo] airc 4. MARROADA ['FeRu] mroada 5.ENANTIOSE ['lεva] enaiios 6.SAZONAL [su'sεso] sasan 7.TURANIANO ['zezu] uaano 8.IMACULATISMO [ma'sã] iacuanao 9.JERIBAZEIRO [ʒi'rafa] gazp 10.RANFOTECA [ka'ɣuso] aftc Sujeito 4 (sexo fem.- 22anos) Palavras não familiares Leitura Escrita 1.PALEONTOLOGIA [pan'εla] palmtologa 2.FUGACIDADE [futeb'ow] fugcde 3.ARINQUE [a:eRe:ka:ene] arnio 4.MARROADA ['mada] marcoada 5.ENANTIOSE [bo'nito] enatioz 6.SAZONAL [sa'zona] sazona 7.TURANIANO ['towro] toraniano 8.IMACULATISMO [mi'aku] iaclxo 9.JERIBAZEIRO [ʒaka'rε] gibazo 10.RANFOTECA [Rafo'tεka] afteh 182 Sujeito 5 (sexo masc. - 19anos) Não fez o teste Palavras não familiares Leitura Escrita 1.PALEONTOLOGIA 2.FUGACIDADE 3.ARINQUE 4.MARROADA 5.ENANTIOSE 6.SAZONAL 7.TURANIANO 8.IMACULATISMO 9.JERIBAZEIRO 10.RANFOTECA Sujeito 6 (sexo fem. - 24anos) Palavras não familiares Leitura Escrita 1.PALEONTOLOGIA [paleõtolo'ʒia]* paleontologia* 2.FUGACIDADE [fugasi'dade]* fugacidade* 3.ARINQUE [a'ɣki] arinque* 4.MARROADA [maɣo'ada]* marroada* 5.ENANTIOSE [enãtʃi'ozi]* enantiose* 6.SAZONAL [sazo'naw]* sazonal* 7.TURANIANO [turãni'ãnu]* turaniano* 8.IMACULATISMO [imakula'tʃismu]* imaculatismo* 9.JERIBAZEIRO [ʒeriba'zeyru]* geribazeiro 10.RANFOTECA [ɣãfo'teka]* ranfoteca* 183 Anexo 3 Questionário respondido pelas alfabetizadoras Sujeito 1 – alfabetizadora 1 1- Que tipos de atividades exploram a linguagem em sala de aula? Conversas informais com foco, principalmente, na parte oral. Também trabalhamos com atividades de escrita, ditados de palavras simples, cópia. 2- Você considera a fala de X inteligível? A fala de S1 é sempre inteligível. 3- X interage espontaneamente ou precisa ser estimulado? S1 Interage muito bem, adora conversar, de modo geral. Por exemplo, adora narrar como foi seu final de semana, o que fez, quem encontrou. Acho que S1 é bem estimulada verbalmente. 4- X apresenta dificuldade para articular algum som/sons? S1 tem boa dicção, articula muito bem os sons. Algumas vezes, porém, troca um som pelo outro ou não pronuncia o som. 5- Que tipos de erros X comete ao ler/escrever? Troca e/ou omite fonemas/grafemas?Que tipos de erros X comete ao ler/escrever? Troca e/ou omite fonemas/grafemas? Como falei anteriormente, S1 pode fazer troca ou omitir sons numa palavra. Também troca e 184 omite grafemas, mas não de forma constante. 6- X tem maior facilidade para ler/escrever palavras mais usuais? Acho que não tem diferença, pois S1 não tem dificuldade para escrever e ler palavras que não sejam usuais para ela, basta pedir que ela leia e escreva a palavra pausadamente. 7- X tem maior dificuldade para ler/escrever palavras com mais de duas sílabas? Depende da palavra. Isso varia muito, pois S1 pode escrever corretamente uma palavra polissílaba e não escrever de modo correto uma palavra menor. 8- X exibe dificuldade para localizar a sílaba tônica? E com relação ao uso do sinal gráfico que marca a sílaba tônica? De modo geral, não. S1 pronuncia bem a sílaba tônica. As vezes, porém, esquece de colocar o sinal gráfico na palavra. 9- X tem alguma dificuldade específica? Auditiva, visual, motora, outra? Acredito que seja só dificuldade visual pelo jeito como fixa o olhar no caderno. 10- Tempo aproximado do processo de alfabetização? De acordo com a ficha da escola, cinco anos. 11- Faz ou fez terapia fonoaudiológica? Por quanto tempo? Não faz fonoaudiologia. 12. Idade mental compatível com a idade cronológica? A idade mental não é compatível com a cronológica. 185 Sujeito 2 - alfabetizadora 2 1- Que tipos de atividades exploram a linguagem em sala de aula? Trabalhamos a linguagem de formas diversificadas, estimulando o relato de fatos acontecidos extra-escola, explorando imagens e cenas, etc. 2- Você considera a fala de X inteligível? A fala de S2 é ininteligível, na maioria das vezes. 3- X interage espontaneamente ou precisa ser estimulado? S2 adora interagir com o grupo, não sendo necessária nenhuma estimulação. 4- X apresenta dificuldade para articular algum som/sons? S2 apresenta bastante dificuldade na articulação de vários fonemas. 5- Que tipos de erros X comete ao ler/escrever? Troca e/ou omite fonemas/grafemas? S2 reconhece os fonemas, apresenta erros na escrita, devido a falta de concentração. 6- X tem maior facilidade para ler/escrever palavras mais usuais? S2 não gosta muito de ter que pensar. Comete erros na escrita e leitura por tentar adivinhar as palavras sem ler e, ao escrever, sabe as letras, fala as palavras e letras usadas para a escrita, mas não quer se dar ao trabalho de pensar e escrever corretamente. 7- X tem maior dificuldade para ler/escrever palavras com mais de duas sílabas? 186 Sim, tem mais dificuldade com palavras polissílabas. 8- X exibe dificuldade para localizar a sílaba tônica? E com relação ao uso do sinal gráfico que marca a sílaba tônica? Sim, no caso de não ter a memória visual da palavra. O uso do sinal gráfico é praticamente inexistente. 9- X tem alguma dificuldade específica? Auditiva? Visual? Motora? Outra? S2 apresenta muita dificuldade na articulação dos fonemas, rigidez para aceitar quando está com o trabalho feito ou escrito errado e, sua motricidade fina, mais precisamente a escrita de palavras sai de forma errônea por conta da necessidade de realizar as atividades de modo rápido. 10- Tempo aproximado do processo de alfabetização? S2 entrou no NDAHC (Núcleo de Desenvolvimento de Habilidades e Competências) este ano, porém já estuda no colégio desde pequeno. Acredito que no outro prédio já tenha passado pelo processo de alfabetização, mas comigo este é o primeiro ano. 11- Faz ou fez terapia fonoaudiológica? Por quanto tempo? Na ficha de atualização que é enviada para casa de cada aluno, consta que S2 faz terapia fonoaudiológica/aula particular, mas não sei precisar por quanto tempo. 12- Idade mental compatível com a idade cronológica? Não. 187 Sujeito3 – alfabetizadora 2 1- Que tipos de atividades exploram a linguagem em sala de aula? Trabalhamos a linguagem de formas diversificadas, estimulando o relato de fatos acontecidos extra-escola, explorando imagens e cenas, etc. 2- Você considera a fala de X inteligível? S3 é bastante falante, porém algumas palavras nem sempre são de fácil compreensão. 3- X interage espontaneamente ou precisa ser estimulado? S3 gosta muito de se relacionar, não necessitando de estímulo. 4- X apresenta dificuldade para articular algum som (sons)? S3 apresenta dificuldade em articular vários fonemas. 5- Que tipos de erro(s) X comete ao ler/escrever? Troca e/ou omite fonemas/grafemas? Como citei acima S3 inverte posições das letras na escrita espontânea e até mesmo quando faz cópia do quadro. O processo da cópia entre o visualizar e a reprodução se perde muitas vezes porque S3 se dispersa por qualquer motivo, até mesmo o movimento de ajeitar os óculos, faz com que ele “perca o rumo” do trabalho. 6- X tem maior facilidade para ler/escrever palavras mais usuais? S3 demonstra dificuldade na escrita de várias palavras, invertendo posições de letras, até mesmo de palavras conhecidas. Quanto à leitura, demonstra insegurança em alguns momentos, até mesmo com palavras de seu vocabulário. 188 7- X tem maior dificuldade para ler/escrever palavras com mais de duas sílabas? Há maior dificuldade com palavras mais extensas. 8- X exibe dificuldade para localizar a sílaba tônica? E com relação ao sinal gráfico que marca a sílaba tônica? Na maioria das vezes não, mas o sinal gráfico aparece raramente. 9- X tem alguma dificuldade específica? Auditiva, visual, motricidade fina, outra? S3 tem dificuldade visual e apresenta rigidez na motricidade fina. 10- Tempo aproximado de processo de alfabetização? S3entrou na escola no ano de 2007 e, durante estes dois anos vem desenvolvendo o processo de alfabetização, obtendo um melhor desenvolvimento neste ano de 2009. 11-Faz ou fez terapia fonoaudiológica? Por quanto tempo? Na ficha de atualização que é enviada para casa de cada aluno, consta que S3 faz terapia fonoaudiológica, mas não sei precisar por quanto tempo. 12- Idade mental compatível com a idade cronológica? Não. 189 Sujeito 4 - alfabetizadora 1 1- Idem resposta sujeito 1. 2- A fala de S4 é inteligível. 3- S4 interage espontaneamente. 4- S4 apresenta dificuldade para articular vários sons. 5- S4 troca e omite fonemas e grafemas. 6- tem maior facilidade para ler e escrever palavras usuais. 7- S4 lê e escreve melhor palavras de menor extensão. 8- Te dificuldade visual. Usa óculos. 9- Tem dificuldade apenas para registrar a sílaba tônica. 10- Está há quatro anos na escola, mas acredito que o processo de alfabetização já aconteça há mais tempo. 11- Sim. Faz também acompanhamento neurológico. 12- A idade mental não é compatível com a cronológica. 190 Sujeito 5 – alfabetizadora 2 1- Que tipos de atividades exploram a linguagem em sala de aula? Idem resposta anterior dada por A2. 2- Você considera a fala de X inteligível? S5 se expressa de forma clara, mas sempre em 3ª pessoa. 3- X interage espontaneamente ou precisa ser estimulado? Durante os dois primeiros anos de S5 no colégio, foi necessário muito investimento nesse processo de interação tanto com o grupo, quanto com os professores. S5 era extremamente introvertido. Hoje posso dizer que Felipe é outro, falante, extrovertido e sempre com uma “tirada” ou música para todos os momentos. 4- X apresenta dificuldade para articular algum som (sons)? S5 demonstra boa articulação dos fonemas. 5- Que tipos de erro(s) X comete ao ler/escrever? Troca e/ou omite fonemas/grafemas? S5 reconhece os fonemas e não apresenta grandes erros na escrita dos fonemas que domina. Ainda está no processo inicial da alfabetização, iniciando os fonemas simples, ainda não foi lançado para S5 os sons do x, o /z/, etc. 6- X tem maior facilidade para ler/escrever palavras mais usuais? S5 demonstra dificuldade na escrita de algumas palavras. Quanto à leitura, demonstra insegurança em alguns momentos, aparentando não querer revelar o que realmente sabe, até mesmo com palavras de seu vocabulário. 191 7- X tem maior dificuldade para ler/escrever palavras com mais de duas sílabas? Sim, tem. 8- X exibe dificuldade para localizar a sílaba tônica? E com relação ao sinal gráfico que marca a sílaba tônica? Isso é muito variável, depende da palavra. O sinal gráfico, no entanto, não aparece. 9- X tem alguma dificuldade específica? Auditiva, visual, motricidade fina, outra? S5 tem dificuldade visual e na motricidade fina. 10- Tempo aproximado do processo de alfabetização? S5 entrou na escola no ano de 2006 e, durante estes três anos vem desenvolvendo o processo de alfabetização. Este ano, seu resultado está melhor. S5 demonstrou um maior envolvimento com a aprendizagem. 11- Faz ou fez terapia fonoaudiológica? Por quanto tempo? Na ficha de atualização que é enviada para casa de cada aluno, consta que S5 faz terapia fonoaudiológica, mas não sei precisar por quanto tempo. 12- Idade mental compatível com a idade cronológica? Percebo que Felipe oscila entre momentos bastante imaturos por conta dos brinquedos que leva para a sala de aula e a necessidade de se tornar um rapaz pelo desejo relatado de ter uma namorada. 192 Anexo 4 Gravuras utilizadas nos testes de nomeação 193 194 195 196 197 198 199 200 201 202 203 204 205 206 207 208 209 210 211 212