1 ARTETERAPIA NA SAÚDE MENTAL: UMA REFLEXÃO SOBRE ESTE NOVO PARADIGMA *Sonia Burgareli Pereira ** Roberta Guimarães Firmino RESUMO Este artigo propõe uma reflexão teórica da arte como terapia em saúde mental. Discute os diálogos entre arte e loucura ao longo da história. Concentra-se na arte como um recurso expressivo, bem como os efeitos terapêuticos sobre a saúde mental do sujeito. Apresenta um novo olhar sobre a loucura através da arte como terapia e sua importância para a desinstitucionalização em saúde mental como um instrumento de reabilitação social. Para este trabalho foram selecionados e analisados diversos autores, cujas publicações no campo da reabilitação psicossocial através da arte, mostram sua importância como substitutivo que prioriza a qualidade de vida dos pacientes. Que esta reflexão possa indicar caminhos e servir de estudo, para que profissionais da área usem esta terapêutica como possibilidade a mais de dinamização da assistência em saúde mental. Palavras-chave: Arte. Terapia. Desinstitucionalização. Socialização. _____________ *Graduada em Educação Artística pela UEMG/BH, pós-graduada em Didática pela Faculdade de Educação São Luiz, Jaboticabal SP. [email protected] ** Docente do curso de Especialização em Saúde Mental e Intervenção Psicossocial, terapeuta ocupacional especialista em Terapia Ocupacional com Enfase em Saúde Mental pela Universidade Federal de Minas Gerais. [email protected] 2 1 INTRODUÇÃO Atualmente, recursos artísticos utilizados nos Serviços de Saúde Mental condizem com as diretrizes propostas pela lei 10216 do SUS, que discorre sobre os direitos das pessoas com sofrimento mental e sobre o tipo de assistência a elas prestada. Busca-se romper com a lógica manicomial através da reinserção social e empoderamento do indivíduo em sofrimento mental. Após a década de 70, repensar a psiquiatria e o modelo manicomial até então existente é fundamental. A reforma psiquiátrica procura ver o homem como um ser biopsicossocial e dentre as reformas mundo afora, o Brasil se inspirou no modelo italiano da desinstitucionalização. A reforma psiquiátrica brasileira começa a ser impulsionada pelo Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, encabeçado por trabalhadores da área, familiares e usuários dos serviços, que cansados de presenciar métodos pretensamente terapêuticos, mas que só produziam torturas e isolamento dos que sofriam com os transtornos mentais, decidiram buscar por alternativas de intervenção. Com a reformulação da atenção a saúde, a partir da lei nº 8080, em substituição ao modelo hospitalocêntrico para a assistência em saúde mental, o Ministério da Saúde define uma nova política com a criação dos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) que visa prestar uma assistência psiquiátrica de base comunitária e atendimento multiprofissional possibilitando que o usuário seja visto para alem de seus sintomas, de uma forma ampla e individualizada. Desta forma, propor a desinstitucionalização em Saúde Mental é propor possibilidades e suporte técnico e material, para que os sujeitos tenham condições de enfrentar os desafios a fim de superar a exclusão. O maior obstáculo a pessoa com sofrimento mental talvez seja, ter seus direitos de cidadão limitados. Para Barros (1993) a desinstitucionalização se dará desmontando sua sustentação, e isso ocorre na luta contra a violência, criando-se serviços que tenham uma dinâmica de acolhimento e inclusão. Dentro desse entendimento pode-se inferir que os CAPS além de oferecer o tratamento medicamentoso são um espaço para a participação e 3 construção coletiva, promovendo a troca de experiências e permitindo ao usuário se reconhecer sujeito. Alem dos CAPS, outros dispositivos de assistência foram criados para compor a rede em saúde mental. Entre eles estão os Centros de Convivência, espaços de produção criativa que visa fazer a ponte para os pacientes estabilizados entre a clinica e a comunidade através da participação destes em atividades artísticas, artesanais, esportivas, culturais e produtivas. Com o modelo de intervenção Psicossocial um importante dispositivo do tratamento comum nos espaços de assistência em saúde mental são as oficinas. Entende-se por oficinas, como um local de realização de atividades que produzam no individuo possibilidades de transformação de si a partir da relação dele com o grupo, com a atividade e com o material. A proposta é de que nas oficinas artísticas o participante possa externar, através da arte, seus conflitos, uma forma de conscientizar-se da sua fantasia e da sua realidade. Deve-se registrar aqui que a arte como terapia não é uma proposta recente no Brasil. Antes mesmo de se pensar na reforma psiquiátrica e de introduzir o método de Intervenção Psicossocial a psiquiatra Nise da Silveira utilizava em seus atendimentos atividades diversas e com isto provou os resultados positivos e inovadores na atenção em saúde mental. Esta psiquiatra em 1946 foi pioneira iniciando no Brasil, no Hospital Psiquiátrico Pedro II do Rio de Janeiro, sessões de terapia ocupacional, com pinturas e modelagem. Nesta experiência ela constatou a melhora de seus pacientes e através dos trabalhos, que eles realizavam permitia a ela uma analise ímpar das angústias humanas. O trabalho desta psiquiatra contribuiu fundamentalmente para entendermos a arte como proposta terapêutica inclusiva. Na proposta da Reforma psiquiátrica a arte como terapia aplicada ao individuo de acordo com os novos paradigmas de atenção em saúde mental, é um processo terapêutico não-verbal, por meio das artes plásticas, música, dança, em que o 4 acolhimento à diversidade é fundamental. Dentro deste entendimento o percurso da reflexão a seguir dará um panorama da arte e sua confluência com a loucura, através da história, para se instalar como um dos substitutivos em Saúde Mental. 2 ARTE E HISTÓRIA DA LOUCURA: CONFLUÊNCIAS Se a reforma psiquiátrica hoje busca novas práticas multifacetadas consoantes com a inclusão e o exercício da cidadania é por que anos de prisão e confinamento deixaram marcas profundas. Tirar do convívio social os doentes mentais é uma historia antiga. A nau dos loucos não é lenda, os insanos eram colocados em barcos e, de uma cidade a outra, vagavam como errantes. Eram relegados a própria sorte. Mais tarde surgiram os hospícios, verdadeiros depósitos dos alienados. Segundo Michel Foucault, em “A história da loucura na Idade Clássica”, os manicômios tem origem na cultura árabe e foram absorvidos pela Espanha, quando da sua ocupação pelos mouros no século XV. Os hospitais que antes abrigavam os leprosos, os acometidos pelas doenças venéreas, passam a receber os loucos. Nestes lugares os doentes mentais eram mal tratados e as condições eram piores que as das prisões. O Hospital geral, diferente da idéia médica tinha uma função real: Há mais: desempenhando um papel ao mesmo tempo de assistência e de repressão, esses hospícios destinan-se a socorrer os pobres, mas comportam quase todas as células de detenção e casernas nas quais se encerram pensionários pelos quais o rei ou a família paga uma pensão (FOUCAULT, 1978, p. 52). “O Classicismo inventou o internamento, um pouco como a Idade Média a segregação dos leprosos (...)” (FOUCAULT, 1978, p. 53). Com a supressão da lepra os locais onde eram confinados os leprosos ficam vazios então foram ocupados novamente, agora pelos loucos e todo tipo de desviante. Percebe-se que os valores permanecem e a forma de a sociedade lidar com o diferente é a exclusão. Numa época em que se denomina como a Idade da Razão é estabelecida uma sensibilidade diferenciada à loucura. Pra se ter uma idéia o único Hospital Geral de Paris agrupava 6000 pessoas, 1% da população. (FOUCAULT, 1978). O internamento adquire também outra função: a mão de obra barata nos períodos de 5 altos salários e o controle da agitação e revoltas nos períodos de desempregos. Várias casas de internamento têm especialidades distintas e o comércio e a indústria desenvolve com esta mão de obra. No início do século XIX, os médicos Willian Tuke e Philipe Pinel empreendem a “humanização dos pacientes” tornando o hospital uma instituição médica. A busca pela cura com técnicas terapêuticas justificadas são punições, castigos, isolamento, correntes. Pinel manda tirar as correntes de doentes mentais internados e Tuke já o havia feito ao asilar dementes sem correntes nem camisas de força, algemas, grilhões ou mordaças. (FOUCAULT, 1978). A proposta de Pinel era o tratamento “moral” em que usava amabilidade, firmeza, diversões sadias, otimismo. Acreditavase ser a doença mental curada através de correção social; quando a coação era indispensável seria aplicada de forma eficaz. Pinel transformou o conceito de “lunáticos” em “doentes mentais” e estes deveriam ser atendidos em instituições como pacientes e não encarcerados como prisioneiros. Este foi um marco na História da loucura. Para Foucault (1978 p.132) “... com Pinel, está nascendo uma psiquiatria que pela primeira vez pretende tratar o louco como um ser humano.” Se na Idade Média a loucura era vista como castigo divino, daí uma forma de redenção, na Renascença a figura do louco era objeto poético. Na Idade Clássica adquire um significado social e moral: o louco é relacionado à razão. No século XV a loucura perde seu caráter cósmico, passando a ser objeto de preocupação social. O estatuto da loucura é a razão, ou seja: todas as pessoas que estavam fora dos padrões de comportamento social eram consideradas loucas. Somente no século XIX a loucura passa a ter estatuto científico. O trabalho organizado dos hospícios do século XIX afastou todas as manifestações artísticas, teatros, música, livros, eram vistos como forma de perversão, desregramento dos sentidos, cultivo das ilusões, produtores das doenças nervosas e mentais (FOUCAULT, 1978). 6 Segundo relata Lima (2009), o interesse da psiquiatria pela produção artística espontânea que brotava nos asilos data do final do séc.XIX. Porém os psiquiatras se serviam da produção dos loucos como elementos na construção de um conhecimento sobre o funcionamento psíquico e ajudar nos diagnósticos. Os estudiosos davam classificação das patologias segundo as produções. Porém quem estudou e organizou, em 1919, toda a produção artística dos asilos franceses foi Hans Prinzhorn. Prinzhorn publicou um livro em 1922 que valorizava as obras dos internos e reconhecia a possibilidade de compreensão da linguagem criada por cada artista. Ele chamou a atenção de artistas como Max Ernest e Paul Klee.O distanciamento antes visto entre arte e loucura acabou por aproximá-las, talvez por esta tênue separação e pela busca de entendimento do funcionamento psíquico. Segundo Lima (2009), para Freud somente por meio da psicanálise a medicina se relacionaria com a estética, a mitologia e o folclore. Neste sentido Foucault entende que Nietzsche, Artaud e Van Gogh, ao acolherem a loucura, deram-lhe uma expressão e uma ascendência sobre o mundo ocidental. A psiquiatria começa então a se interessar por esta confluência: arte e loucura. Pode-se afirmar que arte e psicanálise se atravessam num período cultural importante. Freud foi buscar nas artes idéias e modelos próximos da concepção de vida que a psicanálise criava. Freud via nos grandes criadores a capacidade de desvendar a alma humana antes de qualquer esforço científico. A partir desta nova visão, os excluídos, escondidos em asilos, mostram suas obras; suas expressões artísticas agora servem para material de pesquisa. Neste contexto em 1900, surge a primeira exposição de trabalhos de doentes mentais no Bethlem Royal Hospital de Londres. (FOUCAULT, 1978). Importante ressaltar que esta reflexão não pretende discutir o conteúdo artístico destes trabalhos; se estas obras têm valor artístico, se podem ser consideradas arte! A reflexão que se pretende fazer está no efeito terapêutico que a expressão artística realiza no indivíduo com sofrimento mental. Nos Estados Unidos, Florence Cane, na Inglaterra, Adrian Hill contribuíram fundamentalmente para a inclusão da arte no processo terapêutico. E no Brasil, como era recebido este atravessamento arte e loucura? Os médicos brasileiros viam 7 a arte e os divertimentos como possíveis causadores de alienação mental. Para Lima (2009), existiu um solo sociopolítico e cultural que propiciou a emergência de um território no qual os campos da arte e da saúde se encontraram e passaram a dialogar. Segundo a autora, a partir do século XIX e durante o XX este diálogo teve ligação com o surgimento da terapia ocupacional. No Brasil, duas experiências serviram como modelo para a atualidade: a Escola Livre de Artes Plásticas do Juqueri e o Museu de Imagens do Inconsciente. A psicanálise entrou no Brasil pela porta da arte e não da medicina. A primeira tradução de um texto freudiano foi publicada em uma revista do movimento modernista mineiro. A psicanálise atrelouse as experiências artísticas dos modernistas correspondendo às manifestações de ruptura da linguagem. Jung (1987) descreveu o valor artístico em si, utilizando as representações produzidas por seus pacientes. Para Jung o homem seria orientado por símbolos e a terapia através da criação artística facilitaria a resolução de estados conflituosos. Na teoria Junguiana, a arte propicia o encontro com materiais expressivos e adequados para a criação, que está presente na imaginação do individuo; este universo é traduzido em símbolos que retratam estruturas psíquicas internas do inconsciente pessoal e coletivo. Na arte como terapia, através da linha Junguiana, o surgimento dos símbolos abre caminho para o trabalho do arteterapeuta. Talvez então a finalidade da arte seja para refletir a sociedade. Desde os primórdios o homem faz uso da arte para materializar elementos do seu universo psíquico. Esta é produto de uma necessidade de expressar, de configurar e trazer para o nível concreto imagens internas repletas de energia psíquica (MOREIRA, 2007, p.04). A arte seria a captura e prisão da vida orgânica, vista panorâmica e no momento em uma moldura de plástico. Isso é para capturar a vida dinâmica em um quadro estático. É a visualização da atitude humana perante a vida e para o mundo. Podese dizer que a finalidade da arte é também responder ao mistério de existência individual humana. Como disse Visgotski (2003, p. 233), “A arte não é um 8 complemento da vida, mas o resultado daquilo que excede a vida no ser humano”. Ribeiro enfatiza que: Na arteterapia, na análise psicológica de uma obra, como expressão do seu autor, deverá como propõe a teoria vigotskiana, estar a História da Arte, que é a história contextualizada da vida e obra do artista. Neste sentido, é importante repensar os conceitos de arte que se apresentam apenas como uma atividade artística pragmática, destituída de todo e qualquer processo histórico-cultural, que serve de base e elucida a obra de arte (RIBEIRO, 2002, p.15). Assim, através da produção criativa o individuo se permite redescobrir significados na vida e possibilitar a expansão da consciência. Para muitas pessoas, é mais fácil usar imagens para expressar emoções. Neste sentido a arte vem a ocupar um lugar importante, pois através das manifestações artísticas nos fornece um despertar para inclinações e paixões que estão veladas em nosso íntimo; é como um resgate da realidade através da fantasia. A tarefa da arte nesse momento será deixar a fantasia livre e preencher a experiência natural de nossa existência exterior, nos despertando para paixões que estão adormecidas. A arte tem finalidade curativa. As imagens configuradas surgem como nos sonhos e estas expressões sinalizam conteúdos internos profundos que vem à tona naturalmente como imagens do inconsciente (MOREIRA, 2007). A psicanálise mostrou-se presente no modernismo brasileiro em textos de Oswald de Andrade, em obras de Almeida Junior, Menotti Del Picchia, Tarsila do Amaral, Ismael Neri, Cícero Dias entre outros. Porém, foi o médico paraibano Osório Cesar, também músico e crítico de arte, que deu a devida atenção à produção dos doentes asilados. Cesar foi assistente do laboratório no Juqueri (Hospital Psiquiátrico de São Paulo) em 1920. Ele percebeu a necessidade que certos internos tinham em realizar seus sentimentos estéticos. Alguns desenhavam em papeis, em panos, chapéus, paredes. Osório Cesar denominava os autores destas obras como artistas. Desta manifestação foi criada a Escola Livre de Artes do Juqueri. Cesar catalogou os trabalhos dos doentes e escreveu um livro em que passa a explicitar seu enfoque, sua admiração extasiante ao ver estilizado nas produções dos doentes a psyche de cada um (CESAR 1929). 9 Esta admiração provoca um novo olhar, por parte da comunidade brasileira, pela produção artística dos internos suscitando novas possibilidades de terapêuticas e acrescenta: “O louco não é um indivíduo desprezível que mereça desinteresse da sociedade.” (CESAR,1929,p.159). Para Lima (2009), Cesar encontrou na arte um instrumento para a reabilitação dos doentes. Entende-se aí que a psicanálise e depois a psicologia analítica, foi inicialmente introduzida na clinica no Brasil, como instrumento para pensar o processo de criação na arte; nos manicômios, como práticas terapêuticas (LIMA, 2009). A proximidade entre arte, loucura e vanguarda artística brasileira tomou novos rumos a partir do final da década de 1940. Trabalhos dos internos do Hospital Engenho de Dentro no Rio de Janeiro despertaram para um novo olhar sobre a loucura. Coordenados pela Dra. Nise da Silveira, psiquiatra que, indignada com o tratamento dispensado aos pacientes psiquiátricos nos Hospitais, optou por seguir o caminho da terapia ocupacional. Seu interesse era penetrar no mundo interno dos loucos e conhecer-lhes a dor. Foram desenvolvidos progressivamente dezessete núcleos de atividades: encadernação, marcenaria, trabalhos manuais, costura, música, dança, teatro e outros. Lima (2009) informa que nestes núcleos procuravase criar um clima de liberdade. Era o início de uma luta para transformar o ambiente hospitalar. Nesta nova lógica, Dra Nise desenvolveu uma leitura de imagens de base teórica Junguiana. Para ela “a produção plástica dos psicóticos ia muito além das representações distorcidas e veladas dos conteúdos pessoais reprimidos” (SILVEIRA, 1981, p.51). Com o objetivo de propiciar aos artistas revelados no Engenho de dentro, um futuro menos trágico que Dra Nise, em 1952 criou o Museu de Imagens do inconsciente. Este Museu passou a ser considerado um Museu de Arte, embora estivesse ligado a um interesse científico e clínico. Diferentemente de Osório Cesar, Nise da Silveira se interessava somente pela investigação clínica, mesmo assim buscava parceiros no campo das artes e outras áreas. Esta articulação que a Dra Nise tinha com diversas áreas, culminou na formação do Grupo de Estudos do Museu de Imagens do Inconsciente. Este grupo mostra o 10 caráter interdisciplinar do estudo, questionando a univocidade da fala e do saber médico sobre a loucura. A lógica introduzida pela Dra Nise da Silveira abre espaço para novas possibilidades de vida fora do asilo. A proposta muda da investigação psicopatológica das produções dos doentes, para a construção de uma nova terapêutica em saúde mental. 3 ARTE COMO TERAPIA Ao voltarmos no passado longínquo da história da humanidade, para os primeiros registros de expressão artística, veremos que o homem sempre estabeleceu um diálogo entre conteúdos internos e externos através de produções simbólicas, pinturas rupestres, modelagem no barro, desenhos. A arte para o homem préhistórico teria um sentido mágico, se referia ao mundo invisível dos espíritos. Talvez o temor, ou uma forma de controle da natureza fez o homem construir utensílios, moradias... A arte foi associada à forma e função, o trabalho do homem como construção de sua própria cultura. No mundo árabe, em hospitais destinados somente a loucos, por volta do século XII, eram utilizadas manifestações artísticas como dança música, narrativas de contos e espetáculos como forma de cura da alma (FOUCAULT, 1978). Desde o século XVIII alguns artistas iam aos asilos e faziam desenhos de observação dos loucos. Em vários destes desenhos há cenas representando o cotidiano dos internos, em que estes desenhavam nas paredes das celas (BARBOSA, 1998). Percebe-se que estes alienados buscavam formas de expressão mesmo antes de haverem propostas terapêuticas neste sentido. Pode-se entender que, uma condição fundamental para a criação construtiva em arte é estabelecer uma reflexão de sentido, talvez um centro interior avaliador. Então a criação construtiva tornar-se-á terapêutica. Neste sentido, entende-se que as 11 oficinas de arte podem funcionar como terapia, pois, a viabilidade e importância das oficinas como tratamento na área de saúde mental é uma prática que vem somar ao acompanhamento medicamentoso e tratamento psicoterápico individual, propondo uma ruptura das práticas psicológicas tradicionais. Esta importância é maior ainda quando estas atividades são desenvolvidas por uma equipe de saúde mental. Estas oficinas buscam promover o ser humano como um todo, aspectos psíquicos e sociais, respeitando as suas individualidades. Assim, as oficinas terapêuticas são fundamentais para o paciente restabelecer relações. Eles podem fazer trabalhos em pintura, arte em papel e tecidos, entre outros, sempre considerando atividades individuais e coletivas que trazem o conteúdo da sociedade para dentro dos grupos. Neste aspecto a arteterapia entra no processo deste descobrimento interior através da produção artística nas oficinas. Na teoria Junguiana, a arte propicia o encontro com materiais expressivos e adequados para a criação que está presente na imaginação do individuo. E este universo é traduzido em símbolos que retratam estruturas psíquicas internas do inconsciente pessoal e coletivo. Na arteterapia, através da linha Junguiana,o surgimento dos símbolos abre caminho para o trabalho do arteterapeuta (VALLADARES, 2003). Através da psicologia analítica, pode-se entender que o artista é um indivíduo que transita permeando consciente-inconsciente. Então os artistas trazem a tona sua produção inconsciente através da sua arte. Para Jung, na arte, produto da neurose, o artista busca inspiração em seu inconsciente pessoal e esta inspiração pode se extinguir ao dissolverem-se os conflitos. Segundo Jung “A neurose não cria arte. Ela é não criativa e inimiga da vida. Ela é o fracasso e a nãorealização” (JUNG, 2001 p. 337). Desta afirmação pode-se deduzir o papel purgativo da arte na neurose. A expressão da emoção e da sensação através da arte é a própria expressão do inconsciente, pois ao produzir o indivíduo pode estabelecer uma linguagem com o meio. Através da produção artística poderá haver uma reinvenção do cotidiano e a aproximação do indivíduo doente ao mundo social (VALLADARES, A. C. A. (Org.) 2004). No Brasil a Dra Nise da Silveira usou a terapia ocupacional como proposta terapêutica. O processo terapêutico só poderia se desenvolver se o paciente fosse 12 acolhido com afeto, afirmava Nise. Segundo Lima (2009), Nise utilizou o conceito de afeto de Spinoza e o associou a idéia de um disparador do processo de cura, tomando a noção de catalisador da química. Mesmo que Dra. Nise não abordasse o valor estético dos trabalhos, criou-se uma atmosfera cultural em torno da sua aventura teórico-prática, possibilitando a alguns artistas se desprenderem do rótulo de loucos. Foi o caso de Emygdio que entrou no rol dos artistas brasileiros representando o Brasil na Bienal de Veneza. Se o objetivo maior da Dra Nise era buscar acesso ao mundo interno do psicótico surpreendeu-se ao perceber que o próprio ato de pintar poderia adquirir, por si mesmo, qualidades terapêuticas. Ela observou intensa criatividade e uma pulsão configuradora de imagens: As imagens do inconsciente, objetivadas na pintura, tornavam-se passíveis de uma certa forma e trato, mesmo sem que houvesse nítida tomada de consciência de suas significações profundas. Lidando com elas,plasmando-as com suas próprias mãos, o doente as via agora menos fortes e desintegrantes cargas energéticas (SILVEIRA,s/d,p.32). Dra Nise percebeu grande harmonia nas imagens produzidas, sobre isto se comunicou com Dr. Jung para discutir os significados. Jung esclareceu que algumas imagens eram mandalas, estas buscavam compensar o caos interior sofrido pelo paciente na tentativa de reconstruir a personalidade dividida. A partir da explicação do Dr. Jung, pode-se entender a função terapêutica na produção artística do paciente. Os símbolos, presentes nas criações plásticas, poderão estar presentes também nos sonhos destes pacientes. A interpretação destes símbolos facilitará a compreensão dos conflitos deste indivíduo por parte do arteterapeuta. O uso terapêutico da arte está no fato de ser uma expressão simbólica da psique. Portanto, os símbolos são uma forma de acessar o inconsciente e funciona como uma ponte para o consciente. (JUNG, 1987). Pode-se inferir a partir do exposto acima que, para facilitar o trabalho em arteterapia é importante a utilização de materiais expressivos diversos, pois assim, abrange muitas possibilidades e atende ao gosto de cada paciente. Esses materiais podem servir para estimular a criatividade, e posteriormente desbloquear e trazer à 13 consciência informações guardadas na sombra. Este lado desconhecido da psique humana ao se manifestar poderá contribuir para a expansão de toda a estrutura psíquica. Através destes materiais, tintas, pincéis, dos materiais para colagens, da modelagem, da dobradura, máscaras, de materiais naturais, como folhas, flores, sementes, cascas de árvores ou da aproximação e experimentação com elementos vitais como a água, o ar, a terra e o fogo e inúmeras outras possibilidades criativas, talvez assim surjam os símbolos necessários, para que cada indivíduo entre em contato com aspectos a serem compreendidos e transformados. As modalidades expressivas podem ser tão variadas permitindo facilitar a melhor compreensão dos símbolos. Ciornai (2005) nos conta que: No trabalho de expressão corporal, muitas vezes emprego materiais panos, tules, elásticos, bambu e bolinhas para facilitar o processo terapêutico. Cada material sugere um movimento de repertórios e qualidades. Por exemplo, ao trabalharmos com elásticos, além de ampliarmos a fluência, também desenvolvemos a flexibilidade do corpo e comportamentos. Este tipo trabalho pode culminar em uma dança, como desenvolver primeiro a relação interpessoal, propiciando uma interação energética entre pessoas, para depois culminar numa harmonia de movimentos (CIORNAI, 2005 p.126, 127). Pode-se entender que os símbolos advindos da produção com esta diversidade de materiais expressivos possibilitarão conhecer, compreender, recuperar, rememorar; uma linguagem metafórica do inconsciente. A arte é uma agente de cura quando permite que o indivíduo reencontre os seus símbolos. Para Ciornai (2004), a utilização de linguagens artísticas em processos terapêuticos é como ver o “velho” com um novo olhar, reconstruir de uma forma nova. Trabalhando a criação se torna uma fonte de reflexão e autoconhecimento. A arteterapia facilita a pessoa a encontrar seu eu, o fazer artístico não é pra ocupar o tempo e sim promover crescimento pessoal, daí a diferença da terapia ocupacional. Para esta autora a arte pode ser terapêutica no momento que possibilita uma fonte de reflexão para a pessoa que a cria. A autora deixa evidente que a arte é uma necessidade humana, a capacidade de criar é inata, quando crescemos automaticamente vamos reprimindo a criação livre como fazem as crianças,retomar este processo é redescobrir a si próprio. 14 Na arteterapia não se tem uma preocupação estética, apenas em expressar sentimentos. Esta cartase pode proporcionar ao indivíduo possibilidades de se reorganizar internamente, pois a atividade artística por si só é regeneradora. No processo criativo poderíamos dizer que o inconsciente se liga a um arquétipo o expressando numa atividade simbólica e assim somos forçados a nos confrontar com as facetas de nosso íntimo. Percebe-se a partir do exposto que a arteterapia é a utilização de recursos artísticos para fins terapêuticos. A arteterapia auxilia neste processo, oferecendo inúmeros materiais para que o indivíduo sinta-se livre na escolha daquele que mais lhe for apropriado. Isso atende a sua singularidade, funciona como ferramenta para despertar e ativar a criatividade e, também, para desbloquear e transmitir à consciência instruções e informações oriundas do inconsciente. Essas informações normalmente são ignoradas, contidas e disfarçadas, encobertas e principalmente ocultas. Na psique humana, e, as informações colaboram para o desenvolvimento de toda a dinâmica intra-psíquica, ao serem transportadas à consciência por meio do processo arteterapêutico (VALLADARES, 2001). É importante salientar as artes plásticas na arteterapia por sua materialidade de conceder documentário perene e palpável as produções dos pacientes. Não que a arteterapia não use a música, a dança, enfim. O trabalho com materiais diversos como elástico, bolinhas, materiais usados pelo corpo como um todo, é muito produtivo. Porém, uma produção plástica visual documentada, poderá ajudar na interpretação dos conflitos sofridos pelos pacientes e fornecer ao terapeuta instrumentos que auxiliem um diálogo. Também é importante lembrar que em casos muito graves o paciente é incapaz de simbolizar, então a música, a dança, entram como facilitadoras, pois se dirigem ao corpo do indivíduo. A linguagem, os materiais e os instrumentos em muito vão estimular à produção. É a relação do ser humano com essa matéria que a potencializa e transforma. O homem e a matéria interagem e atuam em sua energia criativa, e ambos se modificam nessa relação. Há um diálogo, às vezes uma "briga", encontros e desencontros, em que o tempo e a dimensão espacial se transformam. Entre embates e buscas, a criação se processa e o indivíduo vai podendo ver na matéria o que vem de seu mundo subjetivo e de seu olhar mais consciente, percebendo sua atuação em outros momentos da vida, 15 sentindo e se conscientizando do que aquelas imagens que se formam ali à sua frente significam (CIORNAI, 2004, p. 72). Portanto respeitar a singularidade de cada lugar com suas peculiaridades e regionalidades bem como a individualidade do usuário é essencial. Vasconcelos (2000) traz o termo empowerment para discutir a construção de suas práticas no cotidiano no tratamento da saúde mental. Este termo significa a descentralização de poderes pelos vários níveis hierárquicos do grupo, o que permite liberdade de iniciativa. Cada usuário deverá ter o poder necessário e suficiente para controlar o seu próprio trabalho. A viabilidade e importância das oficinas como tratamento na área de saúde mental é uma prática que vem somar ao acompanhamento medicamentoso. Propõe uma ruptura das práticas psicológicas tradicionais. Esta importância é maior ainda quando estas atividades são desenvolvidas por uma equipe de saúde mental. Isto porque o poder contratual desses usuários poderá ser transformado e ampliado na relação que se estabelece entre eles e os membros da equipe de profissionais. Desta forma contribui para o rompimento do modelo manicomial institucionalizado e promove a qualidade de vida dos cidadãos. Parece ser um consenso que as oficinas de arte são uma ferramenta importante como dispositivo na reforma, possibilitando outros modos de expressão, então por que muitas oficinas se transformam em meros encontros de ocupação de tempo? Deve-se entender que o trabalho é terapêutico se é o reconhecimento de um direito, onde o sujeito realiza sua possibilidade. E essa concepção se desfaz quando é uma mera técnica de tratamento, onde a instituição decide o processo (ROTELLI, LEONARDIS e MAURI. 2001.p, 34). A arteterapia pode promover o ser humano como um todo, aspectos psíquicos e sociais, respeitando as suas individualidades e os ajudando a restabelecer relações. O eixo central é a interação organismo-meio e essa interação acontece através de dois processos simultâneos: a organização interna e a adaptação ao meio. O processo de criação provoca esta reorganização interna de sentimentos e pensamentos e a partir deste ponto é possível estabelecer uma linguagem com o externo, a realidade. 16 4 CONCLUSÃO A aplicação da arte como terapia ainda está se inaugurando no Brasil. Percebe-se através deste trabalho que pode-se sustentar a idéia da arte como um dos elementos para o sujeito exteriorizar “discurso/linguagem”. Talvez a arte sua possa fantasia e proporcionar transformá-la em aos um sujeitos encadeamento aos seus significantes soltos, dando certo sentido na construção de seus cotidianos. Talvez a possibilidade de resignificar o cidadão além de suas limitações, como capaz de produzir, esteja diretamente ligado na sua expressão plástica. Assim teremos uma produção numa via de mão dupla, onde terapia e doente se descobrem. Este trabalho buscou uma interlocução com diversos autores propondo uma reflexão responsável e comprometida com a proposta da reforma psiquiátrica brasileira. Percebe-se que a arte como terapia pede passagem em meio a mais variadas interpretações, com repúdio de uns e apoio de outros, para se instalar como um saber multidisciplinar. Deve-se considerar que há pouca literatura abordando o tema e talvez seja este mais um dos motivos de desconfiança e despreparo de alguns profissionais da área da saúde em acolher a arte como terapia. Muitos profissionais confundem a arteterapia com terapia ocupacional, e ambas são necessárias e diferenciadas no lidar com o sujeito; ao somarem-se proporcionam maior amplitude e qualidade no tratamento. Porém, deve-se esclarecer que como um saber acadêmico e instituído a arteterapia esquiva-se de ser apenas oficina de artes. Por isso, profissionais qualificados direcionam a arte a fim de consolidá-la como uma ponte entre a linguagem formal e a simbólica, possibilitando um resultado transformador do ser. Acredita-se que há muitos equívocos em relação a oficinas terapêuticas. Pode-se inferir a partir deste trabalho que as oficinas serão terapêuticas ao estabelecerem conexões que vão além das existentes entre produção desejante e produção da vida material; neste aspecto entende-se como produção de sentido e não reprodução de tarefas orientadas. 17 Parece ser um consenso que as oficinas de arte são uma ferramenta importante como dispositivo na reforma, possibilitando outros modos de expressão, porém infelizmente muitas oficinas se transformam em meros encontros de ocupação de tempo! Deve-se entender que o trabalho é terapêutico se é o reconhecimento de um direito, onde o sujeito realiza sua possibilidade. E essa concepção se desfaz quando é uma mera técnica de tratamento onde é orientado o processo. A partir desta reflexão pode-se entender que a arte e a loucura sempre se entrelaçaram através da história, porém na atualidade é percebida com um novo olhar. Este novo paradigma em Saúde Mental desbanca o saber hegemônico instituído e valoriza a multidisciplinaridade. Os novos substitutivos em saúde mental realmente somam-se numa proposta de um projeto terapêutico que respeita as individualidades e singularidades do sujeito. Portanto não é prioridade o produto final de uma oficina, e se ou quando houver, não pode sobrepor-se ao trabalho psíquico. As relações durante as trocas que se estabelecem numa oficina é que fazem a diferença. Assim não se deve ter a idéia de que a produção dará uma “psicobiografia’ do autor como um diagnóstico. O importante não é o produto e sim a possibilidade de criação e o enfoque se dá na produção de sentido para a vida e a sociabilidade. Portanto este novo paradigma responderá às expectativas da desinstitucionalização, se priorizar a possibilidade de o artista estabelecer laços com o mundo. ART THERAPY IN MENTAL HEALTH: A REFLECTION ABOUT THIS NEW PARADIGM ABSTRACT This article is a theoretical reflection of art as therapy in mental health. Discusses the dialogues between art and madness throughout history. It focuses on art as an expressive resource, as well as therapeutic effects on the mental health of the subject. Presents a new look at the madness through art as therapy and its importance for the desinstitutionalização of mental health as an instrument of social rehabilitation. For this work were selected and analyzed a number of authors whose 18 publications in the field of psychosocial rehabilitation through art, showing its importance as a substitute which prioritizes quality of life of patients. That this reflection can serve to indicate paths and study so that professionals use this therapy as the possibility of more proactive mental health assistance. Keywords: Art. Therapy. Desinstitucionalização. Socialization. REFERÊNCIAS AMARANTE, P. 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