NARRATIVAS DE UMA CIÊNCIA DA INTEIREZA Maria da Conceição Xavier de Almeida* Universidade Federal do Rio Grande do Norte RESUMO: A defesa de uma escritura dessubjetivada da ciência se acondiciona nos nichos do pensamento patológico da racionalização. Mesmo que as ciências modernas, nascidas no século XVII, tenham consagrado o mito da neutralidade científica e um conhecimento desencarnado, tudo que é descrito é fruto da experiência de um sujeito imerso numa dada realidade. É sempre da sua experiência que falam o autor, o escritor, o cientista. Longe, entretanto, de caracterizar um fenômeno de nosso tempo, pensadores marcados pela consciência da indissociação entre vida e escritura expressaram, com vigor, a relação do sujeito com o fenômeno do qual tratam. “A palavra é metade daquele que a diz, e a metade de quem a escuta”, dirá Michel de Montaigne nos Ensaios. O astrofísico Hubert Reeves acentua que todas as considerações, argumentos e respostas dos cientistas “só podem ser pessoais”. Também o químico belga-russo Ilya Prigogine argumenta em favor da subjetivação do cientista vez que, para ele, a tríade ciência, razão e paixão é uma contingência do processo criativo na ciência..Talvez seja Edgar Morin o pensador contemporâneo que exponha com mais radicalidade esse exercício do sujeito implicado no conhecimento. Sejam em escritos considerados auto-biográficos como Meus Demônios, nos seus diários (Um ano sísifo; Amar, chorar, rir e compreender; X da questão: o sujeito à flor da pele),ou na sua obra seminal O Método, desdobrada em seis tomos, esse artesão do pensamento complexo expõe, muitas vezes sem mediação, sua interioridade, seus desencantos, seus insights, suas indeterminações. Dirá ele, em Meus Demônios, “não sou daqueles que têm uma profissão, mas daqueles que têm uma vida”. Com base nesses pensadores discute-se a importância da ciência assumir, definitivamente, sua natureza complexa. PALAVRAS-CHAVE: Narrativa da ciência; sujeito; complexidade. INTRODUÇÃO: ciência e subjetividade O conhecimento científico é uma construção humana. Por isso, mesmo se distinguindo de outras narrativas por um método cujo rigor é insistentemente professado e defendido, a ciência também gesta e alimenta mitos. Dois deles, e talvez os que melhor caracterizam a consolidação das ciências modernas, nascidas no século XVII, são os mitos da neutralidade e da objetividade. Se libertar dos aspectos subjetivos durante a pesquisa; produzir análises que se restrinjam a enunciar os fenômenos como eles ‘realmente são’; e construir interpretações desprovidas dos valores e visões de mundo do observador, são alguns dos princípios referendados pelos ideários de uma ciência da assepsia, destituída de * Antropóloga. Professora do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Coordenadora do Grupo de Estudos da Complexidade – Grecom. e-mail: [email protected] 1 sujeito, purificada dos afetos, iras, marcas inconscientes, ideologias e valores éticos dos quais se nutrem – queiramos ou não – estudantes, professores e pesquisadores de todos os tempos e lugares. Tão logo ultrapassamos nossa iniciação nos códigos do conhecimento formal escolar – alfabetização, assimilação dos conteúdos de diversas disciplinas – e sobretudo, quando nos é outorgado o direito de nos iniciarmos na atividade da pesquisa, somos levados a ingerir um conjunto de normas e modos de investigação que destacam a separação entre um sujeito soberano e um objeto inerte, mas pronto para falar, tão logo seja tocado pelo sujeito. Tudo se passa como se o sujeito fosse um mero tradutor do que está fora de si. Tal separação tem por suposto uma realidade já dada, a ser descoberta, manipulada (analisada) e, por fim, conhecida. Esse duro e frio protocolo corresponde, de fato, a um paradigma próprio da ciência ocidental moderna e, mesmo assim, tal paradigma está longe de representar as vicissitudes e idiossincrasias dos saberes e fazeres da prática científica. Diferentemente do que é anunciado nas aulas de ciência e metodologias de pesquisa, cientistas e pesquisadores vêem o mundo a partir do lugar de um observador constituído por sua subjetividade, suas experiências de vida, seus saberes acumulados, sua cultura, sua história pessoal. “Tudo que sabemos, sabemos por nossa própria experiência”, diz Erwin Schrodinger (1887-1961), célebre físico austríaco, Prêmio Nobel de Física de 1933. O relato de sua trajetória intelectual no texto Fragmentos Autobiográficos escrito em 1960, mostra bem como seu interesse pela biologia e pela física emerge do rico contexto de experiências diversas, que inclui o ambiente familiar, os amigos, as viagens, o clima cruel da guerra de 1914, as leituras. Talvez porque tivesse consciência de que o contexto e as experiências vividas estão na raiz das teorias e interpretações construídas, o autor do clássico ensaio sobre O que é a vida? pode, com tenacidade e clareza, discutir a exclusão do sujeito na ciência. No conjunto das “Conferências de Tamer”, que tem por título Mente e matéria Schrödinger problematiza o princípio da objetividade. Para ele, por meio desse princípio “excluímos o sujeito cognoscente do domínio da natureza que nos esforçamos para entender. Retrocedemos para o papel de um expectador que não pertence ao mundo, o qual, por esse mesmo procedimento torna-se um mundo objetivo” (SCHRÖDINGER, 1977, p. 2 132). Ou seja, o princípio da objetivação na ciência, só se sustenta como condição do sujeito se conceber separado da natureza, do mundo à sua volta. Schrödinger relativiza tal princípio, uma vez que, diz ele, “meu próprio corpo (ao qual minha atividade mental está tão direta e intimamente vinculada) forma parte do objeto (o mundo em torno de mim) que construo a partir de minhas sensações, percepções e memórias” (Idem, idem). Mesmo que se tratem de meta-argumentos atinentes a uma fenomenologia geral, as reflexões desse físico prefiguram, já nos anos 50 do século passado, uma crítica importante à separação entre o sujeito que conhece e o objeto do qual se ocupa o pesquisador. Certamente é o biólogo chileno Humberto Maturana (1928-) quem trata mais diretamente de desfazer o tão celebrado mito da realidade objetiva. Para ele, a palavra realidade deve ser posta entre parênteses, uma vez que tudo que dito sobre um fenômeno é construído a partir de um observador em sua relação com o meio exterior, relação essa que passa por sua visão de mundo e seus valores. Tendo como base o conceito de auto-poiesis, construído em parceria com Francisco Varela, Maturana rediscute as bases biológicas da cognição humana realçando o papel central do sujeito-observador. Daí porque, para ele, sobre uma mesma “realidade” sujeitos com experiências de vida e valores distintos a compreendem de maneiras distintas, por vezes mesmo antagônicas e opostas (MATURANA, 1977; 1998; 1999; 2001). Resguardadas as importantes pesquisas e argumentos de Maturana que incidem numa crítica radical ao princípio da objetividade e, de forma mais abrangente, aceitando as descobertas da física quântica que tem por hipótese central distintos níveis coexistentes de realidade, centramos nossa atenção na natureza subjetiva da narrativa da ciência. Avançando nessa direção, é importante assinalar que a defesa da objetividade, da neutralidade do pesquisador e de um saber destituído das marcas do autor-sujeito fazem parte de um método que foi repetidamente disseminado nas escolas e universidades. Como sabemos, sendo um produto da cultura, a ciência é também um tipo de conhecimento tornado hegemônico numa sociedade capitalista, utilitária, e tem, na padronização, uma base importante de sua consolidação. A padronização – outra forma de dizer da negação a tudo que é diverso – acaba por celebrar uma prática científica monolítica, voraz em nivelar os indivíduos, em subsumir suas individualidades, em cultuar um modelo único de conhecer e narrar. Por conseqüência, elege-se uma axiomática do fazer 3 que prima em impor uma monocultura da mente, como denuncia Vandana Shiva (2003). Do ponto de vista da narrativa da ciência, a monocultura da mente impõe uma gramática desubjetivada, fria e supostamente impessoal. Para dar um exemplo, sabemos como os pósgraduandos são cobrados (pelas normas e regras dos manuais, ou pelos orientadores) a narrar suas pesquisas e reflexões na terceira pessoa do plural ou no infinitivo. Ora, a impessoalidade, ao mesmo tempo que amesquinha a singularidade das narrativas, funda, por outro lado, um discurso de autoridade capaz de, por vezes, desautorizar qualquer outra concepção. Esse padrão monolítico da narrativa morta, porque sem sujeito, acaba por livrar o autor do seu compromisso com o que é dito, o que se constitui, em última instância, numa porta aberta para o distanciamento ético do pesquisador com o seu mundo. Mesmo assim, e malgrado a tentativa de defender uma ciência amputada do sujeito, são inúmeras as publicações que explicitam a imbricação do ser do autor nas palavras, argumentos e textos que materializam a produção do conhecimento científico. Ainda que sejam classificadas como publicações ensaísticas e ad hoc, separada da obra pela qual o cientista ficou consagrado, são exemplares os livros ou coletâneas que exibem a face um pouco mais completa de Galileu Galilei, Albert Einstein, Guttemberg, Karl Marx e Werner Heisenberg, entre outros. Essas publicações são, às vezes, discriminadas como ‘obras de divulgação científica’,o que demonstra o quanto o paradigma da redução se precavê contra a contaminação do sujeito. Vivas e dinâmicas, entretanto, elas descortinam os contextos, eventos, obstinações e circunstâncias afetivas do interior das quais os escultores da ciência organizam seu pensamento. Apesar de consideradas obras ilustrativas, tais narrativas expõem o lado vivo de uma ciência levada a efeito por pessoas de carne e osso, minadas por suas euforias, pessimismos, obsessões, emoções. O livro Ciência, ordem e criatividade, do físico David Bohm (1989), é exemplar para corroborar o argumento da indissociação entre o sujeito que conhece e as idéias que elabora. Para o autor, somos parasitados por um conjunto de valores pessoais e circunstancias psicológicas que se organizam numa infra-estrutura tácita de idéias e conceitos. Mesmo que o conjunto dos axiomas e argumentos do livro se dirijam a discutir como ultrapassar os obstáculos da infra-estrutura tácita, não é possível visualizar a situação ideal de um sujeito que se desvencilhe, por completo, dos padrões cognoscente e crenças que lhes parasitam inconscientemente. Os antigos valores e modos de conhecer se 4 constituem, como quer o autor, em tranqüilizantes para o sujeito que acaba por fazer associações equivocadas. De qualquer forma, ainda que tenhamos que considerar a necessidade de por em diálogo nossas crenças e visões de mundo, é sempre a partir de um padrão psico-subjetivo que compreendemos o mundo a nossa volta. Mais algumas referências são aqui emblemáticas a esse respeito. Em primeiro lugar, os livros Como vejo o mundo e Escritos da maturidade (1981 e 1994), duas coletâneas de aulas, conferências e artigos de Albert Einstein. Ali, o grande físico expõe suas angustias em relação à organização bélica do mundo, seus valores éticos, sua preocupação com a formação dos jovens, as circunstâncias nas quais elaborou sua teoria a respeito do tempo. Por sua vez, Werner Heisenberg no livro A parte e o todo (1986), expõe a dinâmica iminentemente coloquial, afetual e tensa que tece o contexto da fabricação da ciência. Uma ciência tecida por sujeitos de carne e osso, poderia muito bem aparecer como subtítulo do livro. No prefácio, uma advertência essencial: “É evidente, mas muito frequentemente esquecido, que a ciência é feita por homens (...) Este livro versa sobre o desenvolvimento da física atômica nos últimos cinqüenta anos, tal como o autor os vivenciou” (Op. cit. p.7). Ao longo das 286 páginas da edição brasileira, Heisenberg reconstrói os cenários diversos no interior dos quais foram sendo elaborados importantes conceitos da física e da mecânica quânticas: complementaridade, simultaneidade, probabilidade, incerteza, entre outros. As longas conversas entre Niels Bohr, Carl Friedrich, Otto Hahn, Paul Dirac e outros cientistas em diversos lugares, deixam entrever os cenários afetivos que estão na base da construção da ciência. Uma intersubjetividade explícita pode ser depreendida da leitura desse livro. Uma crítica aguçada ao que se considera, na ciência positivista, como “objetivo” e “subjetivo”, aparece em vários momentos da reconstituição narrativa da nova física, em A parte e o todo. Para Bohr, “são realmente problemáticos os concertos de “objetivo” e “subjetivo”, que normalmente usamos com tanto desembaraço” (BOHR, apud HEISENBERG, op. cit. p. 126). Isso porque, a interpretação da realidade é empreendida por sujeitos com valores e concepções de mundo que vão se consolidando por meio de suas experiências. Daí porque, conforme relata Heisenberg, era muito difícil para Einstein aceitar a nova teoria quântica, mesmo que Bohr tenha demonstrado para ele a persistência do princípio da incerteza. Esse fato levará Heisenberg a afirmar: “compreendi como é difícil alguém abrir mão de uma atitude em que se basearam toda a sua abordagem e toda a 5 sua carreira científica. Einstein dedicara a vida a investigar o mundo objetivo de processos físicos que têm lugar no espaço e no tempo, independentes de nós, de acordo com leis exatas”. (HEISENBERG, 1996, p. 98) Ampliando o elenco de pensadores que se colocaram a favor de uma ciência da inteireza, cito mais uma referência. A indissociação entre valores pessoais e interpretação dos fenômenos é o centro da reflexão de Ilya Prigogine no artigo Ciência, razão e paixão, do livro que leva o mesmo nome (2001). Mesmo sem fazer referência a David Bohm, Prigogine acrescenta elementos novos e, penso eu, mais pertinentes, a noção de infraestrutura tácita de idéias e conceitos. Para ele, o papel desempenhado pela forma de pensar do cientista, pela emoção, pela paixão e “em termos mais gerais, por elementos irracionais” é um assunto de grande importância e sobre o qual não devemos descuidar. “À primeira vista”, diz ele, “parece que estamos tratando de um paradoxo. A ciência, por definição, não se situa além da paixão, além mesmo das necessidades mais prementes da sociedade? Era assim que pensava Einstein; como sabemos, ele esperava que os cientistas pudessem ter emprego como faroleiros” (Op. Cit, p. 89). Ao problematizar e discutir a relação estreita entre o estilo psíquico do sujeito e suas interpretações dos fenômenos, o artigo apresenta uma síntese arrojada da presença da emoção na construção dos conceitos e macrointerpretações dos fenômenos. Afirma Prigogine, que a ciência é a expressão de uma cultura, e “que é difícil definir suas fronteiras”; que “a natureza não é um dado, implica uma construção da qual nós fazemos parte”. Com base nesses postulados, o autor discute o fato de que, aceitar o determinismo ou a irreversibilidade do tempo é mais que o resultado de uma manipulação de dados objetivos. Isso porque, são as atitudes cognitivas vivenciadas e consolidadas pelos cientistas que se projetam nos enunciados, demonstrações, interpretações. Verdadeiros processos de racionalização, por assim dizer. Em outras palavras, por acreditar na separação sujeito e mundo e, por conseqüência, por conceber os fenômenos físicos como objetivos, é que Einstein se oporá a idéia de irreversibilidade do tempo. Argumenta Prigogine que isso se deve à “personalidade de Einstein” que ilustra “o conflito entre razão e paixão, melhor do que ninguém. Ele tentava eliminar a todo custo, o tempo como irreversabilidade das equações fundamentais da física. Sabia muito bem, como todos nós, que estava envelhecendo dia após dia. O que significava para ele dizer que o tempo é uma ilusão?” (PRIGOGINE, 2001, p. 94). 6 Por meio de relatos singulares, Prigogine fala da “atitude basicamente pessimista de Einstein em relação a problemas existenciais. Ele era um homem muito sozinho e reconhecia possuir poucos amigos e poucos alunos. Chegou mesmo a afirmar que seu relacionamento com suas esposas era difícil” (op. cit. p. 95). Não é pois de estranhar que esse físico compreendesse o mundo pela ótica determinista e tivesse, na ciência, “uma maneira de escapar da condição humana e contemplar os esplendores da razão que agia na natureza”, segundo relata Prigogine (idem, idem). Essa vontade de fazer da ciência uma redoma para se proteger do mundo é explicitada pelo próprio Einstein numa citação feita por Prigogine. “Um dos motivos mais poderosos que leva as pessoas à arte e à ciência é o desejo de sair de uma existência monótona com o seu sofrimento e vazio desesperador, para escapar da escravidão de desejos pessoais que não param de muda” (EINSTEIN, apud PRIGOGINE, op. cit. p. 95). Diferente, e mesmo oposta, é a atitude de Ilya Prigogine. Acreditando nas bifurcações, mudanças de caminhos e eventos imprevisíveis, o belga-russo, Prêmio Nobel de Química de 1977, se dizia otimista e acreditava que as ações individuais são cruciais para a mudança da história e da cultura. Talvez, por isso, ele inferisse do seu conceito sobre a irreversibilidade do tempo, o espaço da liberdade dos sujeitos para transformar a história. A idéia de que “o futuro está aberto”, condiz certamente com o estilo de pensar que se opõe ao determinismo, porque aposta na criatividade humana como capaz de inaugurar novos eventos e mudanças de rota. Na Carta para as futuras gerações, dirá que “os dados não foram lançados e que o caminho a ser percorrido depois das bifurcações ainda não foi escolhido. Estamos num período de flutuação no qual as ações individuais continuam a ser essenciais” (op. cit. p. 19). Longe de qualquer determinismo, afirma que “cabe ao homem tal qual é hoje, com seus problemas, dores e alegrias, garantir que sobreviva no futuro. A tarefa é encontrar a estreita via entre a globalização e a preservação do pluralismo cultural, entre a violência e a política, e entre a cultura da guerra e a da paz” (op. cit. p.20). Essas considerações propositivas de Prigogine demonstram uma prática noológica que não se aparta das contingências éticas do sujeito em sua singularidade. Tais argumentos estão em sintonia com suas experiências intelectuais que totalizam e religam cultura científica e cultura humanística. Ao falar de sua adolescência e formação intelectual expressa suas atitudes interrogativas diante mesmo de axiomas que eram tidos como 7 incontestáveis. Leitor ávido de Henri Bérgson, manteve em sua mente o famoso pronunciamento desse autor - “o tempo é uma invenção ou não é nada” – para posteriormente, “sem tomar consciência plena”, questionar “uma ciência em que o tempo é somente uma ilusão”. Segundo ele, “encarando o mesmo dilema (de Bérgson), reagir de forma diferente” (op. cit. p. 97). O papel construtivo de situações fora do equilíbrio (portanto situações complexas como ocorrem em certos fenômenos físicos, na cultura e na história) acabará por se constituir na chave do pensamento prigoginiano, um pensamento que interroga as tendências pré-estabelecidas, joga luz na criatividade e singularidade das ações dos sujeitos no mundo. Essa forma de pensar a física, a cultura e a história, só poderia ser expressa por um sujeito afeito as amizades e insatisfeito com os rumos da cultura da violência, amoroso, generoso e, sobretudo pronto para fazer suas escolhas éticas. Um otimista, nunca um demissionário. Um sujeito inteiro e ativo, nunca um marionete que encena uma história já pronta e dirigida por um demiurgo invisível. Mais ainda: essa forma de conceber uma ciência subjetivada, inunda a escritura de grande parte da obra de Prigogine, como se fosse para exemplificar o argumento, segundo o qual, ‘escrever é inscrever-se’. A expressão que lhe foi atribuída pelos químicos – o “poeta da termodinâmica” - certamente anuncia, com justeza, a narrativa estética da ciência na gramática prigoginiana. Certamente que aos nomes de Ervin Schödinger, Albert Einstein, David Bohm, Werner Heisenberg e Ilya Prigogine, outros tantos poderiam se incorporar ao conjunto de sujeitos-autores que deixam entrever o quanto a narrativa da ciência contém idiossincrasias, humores e subjetividades. Farei apenas mais uma referência. Michel de Montaigne (15331592), com muita propriedade, é um bom exemplo. As palavras de Sérgio Milliet, na primeira página do prefácio ao Tomo I de seus Ensaios (1987) são claras a esse respeito. “Partindo do estudo de si mesmo, de “um homem”, alcança o ensaísta, o conhecimento “do homem””. O prefaciador faz alusão ao “tom de absoluta sinceridade dos Ensaios” o que permite compreender a natureza egocêntrica de todo conhecimento e que se torna superlativa na escrita de Montaigne. “Se se refere ao amor, é de suas aventuras que parte; se fala da amizade, é em função das que teve; se analisa o casamento, ao seu próprio se atém” (op. cit. p. XII). Também o prefácio ao Tomo II, assinado por Pierre Villey (1987) corrobora uma escritura viva do sujeito. Para Villey, “os Ensaios de Montaigne são as 8 experiências a que procede seu julgamento. Quando diz, falando de seu livro: eis os meus Ensaios, isso significa: a propósito de todos os assuntos que ventilei propus-me a mim mesmo oferecer-vos uma opinião pessoal” (op. cit. p. 4). Continua Villey, a propósito de Montaigne: “Ele quer que o vejam (em seu livro) singelo, natural, sem artifício; em seu modo de ser; porque é a si mesmo que pinta. Seus defeitos aí se vão por inteiro, descritos com a sinceridade que o decoro permite” (idem, idem). É compreensível que os sentinelas de uma ciência da racionalização vejam com estranheza, e às vezes mesmo com repúdio, uma expressão de Montaigne já consagrada. “Assim, leitor, sou eu mesmo a matéria do meu livro”, dizia ele. Entretanto, bem vistas as coisas, quem, no lugar de cada um de nós, pensa por nós, significa por nós, interpreta por nós? Não são as nossas experiências quando tornadas conscientes – sejam elas materiais, fenomênicas ou noológicas – a matéria-prima de nossas reflexões? Não é por extensão, analogia, similitude ou oposição às nossas experiências que construímos conhecimento e ampliamos o que parece ser individual e absolutamente singular? Dois autores, um filósofo e um etólogo, redimensionam as reflexões aqui colocadas em patamares epistêmicos mais consistentes e fundantes. Entretanto, uma alusão demasiado rápida a Merleau-Ponty e Boris Cyrulnik, comprometeria a constelação argumentativa de suas idéias a respeito da contingência corporal do ato cognitivo, no primeiro caso, e da dinâmica da projeção da história pessoal para compreender e significar o mundo, no segundo caso. Sendo assim, passemos, de pronto, para a segunda parte deste texto, contextualizando agora a mestiçagem entre sujeito e narrativa na obra de Edgar Morin. EDGAR MORIN: “por que falar de mim?” É sem dúvida Edgar Morin quem expressa com mais exuberância e radicalidade a indissociação entre sujeito e narrativa. Quem leu os livros O diário da Califórnia (1973); Vidal e os seus (1994); O diário da China (inédito); Meus demônios (1996); Um ano sísifo (1998); Pleurer, aimer, rirer, comprendre (1996); O X da questão: o sujeito à flor da pele (2002), sabe bem das desavenças intelectuais, dos conflitos teóricos, das alegrias, dores, contratempos, decepções, leituras seminais e acasos, que cercam sua vida. Sabe bem das condições de emergência, metamorfose e aparecimento das noções centrais e periféricas das quais se vale esse pensador para reorganizar o conhecimento em metapatamares complexos. 9 Isso faz uma diferença crucial entre Morin e um estilo de intelectual que se mostra pela metade. Ler os seis volumes de O método, livros densamente povoados por conceitos, noções e pensadores de diversas áreas do conhecimento, tendo ao lado e por suporte o desvelamento das condições emocionais e políticas nas quais ele se encontra imerso, equivale a dessacralizar a ciência, a facilitar a compreensão da linguagem técnica, a destituir a falácia do poder do saber envolta pelo véu da obscuridade e do segredo. Equivale, sobretudo, a reintroduzir o sujeito no conhecimento e o conhecimento no sujeito. Mesmo se considerarmos apenas os Métodos, são fartos os enunciados contaminados ora de ira, ora de afetos, ora de perplexidade, ora de incertezas. Seja qual for o tom ou a coloração das iras e afetos que aparecem em sua obra, é o sujeito, encarnado nas idéias, quem fala sempre. E por inteiro. No Método I dirá quase no final da introdução: "Por que falar de mim? Não é decente, normal e sério que, quando se trata da ciência, do conhecimento e do pensamento, o autor se apague atrás de sua obra e se desvaneça num discurso tornado impessoal? Devemos, pelo contrário, saber que é aí que a comédia triunfa. O sujeito que desaparece no seu discurso instala-se, de fato, na torre de controle. Fingindo deixar um lugar ao sol copernicano, reconstitui um sistema de Ptolomeu cujo centro é o seu espírito". Essas palavras sobre a comédia do intelectual que pensa proferir um discurso objetivo e impessoal, expõem uma concepção de narrativa da ciência que não é comum e muitas vezes é desautorizada pela polícia do pensamento. E, mesmo que Montaigne e alguns pensadores nômades da ciência e da filosofia tenham exercitado uma escritura onde o autor aparece é, sem dúvida, Edgar Morin quem inaugura uma forma radical (e mesmo perigosa), de expor o intelectual por inteiro. No Método 6, como se não bastasse esse mostrar-se por inteiro nos argumentos, o autor cria, pela primeira vez, o que denomina notas introspectivas, lugar aonde extravasa as suas auto-análises. É óbvio que, a esse respeito, seus livros incomodam a comunidade científica. E muito. Isso porque, de certa forma, expõe e desnuda pedaços de todos nós trancafiados a sete chaves. Alguns de seus livros - seus diários em especial - chocam até os que convivem mais de perto com ele. Quanto mais aos que, instalados na torre de vigilância cognitiva, aguardam uma frase intempestiva ou a descrição de um acontecimento insólito, para comprometer sua imagem. 10 Certamente esse intelectual intempestivo sabe bem que sua maneira de ser e escrever lhe confere um bilhete de entrada para a arena onde estão os leões famintos. Entretanto, não penso que se trata de uma atitude excêntrica para direcionar as luzes do palco para si. É mais adequado afirmar que se trata de 'por a vida nas idéias e as idéias na vida' como diz ele, e de fazer dos textos uma tapeçaria na qual o intelectual está tecido por inteiro, mesmo que não por completo. “Minha vida intelectual é inseparável da minha vida ... não sou daqueles que tem uma carreira mas dos que têm uma vida”, dirá em vários de seus escritos. Esse estilo cognitivo, que bricola viver e conhecer, pode ser destacado como um dos fios centrais que tecem o itinerário do pensamento e da obra de Edgar Morin. Para situar o destaque dado ao sujeito cognoscente e sua relação com as experiências que o constrói, é importante sublinhar que em Meus Demônios Morin fala das obsessões cognitivas com as quais tem convivido; como foi transformando em conhecimento suas emoções fundamentais como ira, ternura, resistência; e como esses sentimentos impulsionaram focos importantes de sua maneira de ver/conhecer/compreender o mundo. Nos livros mais afeitos à antropologia, à política e à sociologia, e sobretudo nos Métodos 3, 4, 5 e 6, argumenta fundamentalmente, a propósito da relação de indissociabilidade entre o sujeito que conhece e o fenômeno que quer explicar, entender, compreender. Para ele, o processo cognitivo é a conjugação (em dosagens sempre variadas, tanto no nível individual, quanto coletivo e histórico) de três domínios de aptidões que constituem o propriamente humano: pulsão, razão e emoção. É a conexão entre esses três domínios que constitui uma certa estrutura a partir da qual os conhecimentos acumulados e as informações que nos chegam são retotalizados, significados, compreendidos, avaliados, julgados. Não tomando, entretanto, a experiência vivida pelo sujeito como a única e determinante maneira de conhecer, diz no Método 4 que “nem a experiência pessoal nem a ausência de experiência são decisivas”. Para ele, alguns podem passar por experiências sem tirar delas lições, enquanto outros são capazes de “sentir, compreender e conceber” experiências que não viveu pessoalmente. Essa relativização do papel da experiência, longe de corroborar a idéia de um conhecimento que prescinde da vida do sujeito, expõe o problema de se pôr, ou não, para si, a experiência vivida. Além do mais, há para Morin outros meios de acionar as projeções do sujeito que, em certo sentido, presentifica experiências não vividas diretamente por ele, como é o caso do papel cinema. Por meio dos 11 processos de identificação e projeção, o filme permite potencializar estados do ser que se encontram adormecidops pela racionalização, para Morin uma patologia da razão. Por meio de vários artifícios e reflexões, Edgar Morin vai, aos poucos, desnudando para si e seus leitores os elos que ligam diversos eventos da sua vida com os temas dos quais se ocupa em suas obras. O trauma provocado pela morte de sua mãe Luna, quando tinha apenas nove anos, se constitui para ele um verdadeiro acionador cognitivo de um projeto de conhecimento que se consolidou sobre tudo no livro O homem e a morte (1988). Mas essa não é uma referência isolada. Sua impulsiva militância política, seu desacordo com qualquer forma de crueldade humana, seu questionamento sobre os limites do perdão, transpassam conceitos, noções, argumentos, interpretações, e mesmo a própria concepção de método complexo. São sobremaneira desafiantes as considerações feitas pelo autor a respeito da construção psico-cognitiva do sujeito do conhecimento. Elas podem ser retotalizadas se observarmos, no Método 3, o capítulo que o autor dedica à 'existencialidade do conhecimento'. Ali, desmembrados em dois tópicos ('A psique' e 'Obsessões cognitivas e alegrias da certeza'), Morin dialoga com referências da psicanálise (sobretudo com as idéias de Freud, Lacan e Bishot) e com os argumentos da objetividade, da certeza e da verdade tão fartamente defendidos pelo racionalismo. Discute uma psicanálise do conhecimento, fala das psicoses que "determinam visões de mundo específicas e impõem sentidos às informações, acontecimentos, situações". Seja na sua forma 'maníaca' ou 'esquizofrênica', esses estados do ser parasitam e modelam interpretações marcadas ora pelo exagero racional da coerência, ora pelo exagero de conceber as contradições e as incertezas. De forma contundente mostra como a obsessão pela certeza e a verdade são uma resposta à 'ansiedade vital'. É importante sintetizar algumas das pontas do mesmo fio que permite a Morin caminhar pelo labirinto do conhecimento e tecer o seu itinerário intelectual: em primeiro lugar, a mestiçagem entre vida e obra; em segundo lugar, uma aposta no sujeito, o que significa sublinhar a indissociabilidade entre sujeito e conhecimento; em terceiro lugar, uma aposta fundamental concernente ao conhecimento do conhecimento, o que supõe uma psicanálise do conhecimento. 12 POR UMA EDUCAÇÃO DA INTEIREZA Os argumentos, circunstâncias e reflexões expostas anteriormente, e sobretudo as referências feitas a Edgar Morin, permitem destacar uma das proposições fundamentais do pensamento complexo, isto é, a implicação do sujeito no conhecimento. Dessa proposição pode se inferir por conseqüência a implicação do autor na narrativa. Trata-se na verdade de: a) tomar consciência dessa implicação; b) relativizar o sentido da objetividade pretendido pela ciência, tanto quanto reduzir o sentimento de verdade absoluta; c) ampliar os diálogos intersubjetivos entre pesquisadores de modo a consolidar uma ecologia das idéias que garanta a singularidade e a diversidade das narrativas da ciência. Se faz sentido propugnar por uma ciência da inteireza, supõe-se igualmente lançar as bases para uma educação que facilite a inteireza do sujeito. Nesse sentido, é importante redirecionar os horizontes pedagógicos e educacionais, com vistas à auto-formação de sujeitos que se sintam autores de suas narrativas. Concebendo-se como construtores da realidade, os pesquisadores sentir-se-ão certamente responsáveis pelo discurso proferido e pela narrativa construída. Dessa perspectiva, a narrativa subjetivada e uma ciência da inteireza caminham lado a lado com uma ética da responsabilidade do cientista-educador. Uma agenda a ser permanentemente refeita ou ampliada poderia se constituir num primeiro passo em direção a esse horizonte. 1. Disseminar e discutir com nossos alunos, livros, textos ou artigos que dessacralizem a ciência e as teorias; que mostrem o contexto, as contradições e as singularidades da vida dos autores consagrados e compreendidos como super-homens; que destaquem a relação de proximidade ou afastamento entre autor e obra, autor e tempo histórico. 2. Problematizar a separação entre obras teóricas, obras de divulgação e obras autobiográficas afim de considera-las como essencialmente complementares e não opostas nem excludentes. 3. Para além da linguagem escrita, fazer uso de filmes que contextualizem a vida dos cientistas, compositores, escritores, tomando tais filmes como complementos das obras escritas e não como meras ilustrações. 4. Incentivar nos alunos uma escritura que evoque a autoria dos argumentos e expresse a relação do sujeito com as palavras; que reduza o mimetismo teórico e a repetição 13 do que já foi demasiadamente repetido; que apele para a criatividade e singularidade das compreensões sobre o mundo. Essa agenda, mesmo que incompleta e provisória, poderia ajudar a desfazer o equívoco de uma ciência abstrata, impessoal, neutra e objetiva. Poderia talvez, alimentar a auto-estima intelectual tão necessária à construção de sujeitos mais vivos e autônomos, verdadeiros artesãos do pensamento, da vida, da ciência e da história de cada dia. Referências BOHM, David. Ciência, ordem e criatividade. Lisboa: Gradiva, 1989. EINSTEIN, Albert. Como vejo o mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. _______________. Escritos da maturidade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994. HEISENBERG, Werner. A Parte e o todo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. MATURANA, Humberto. A ontologia da realidade. 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