ISSN: 1981-3031 PRODUÇÃO TEXTUAL – UMA ATIVIDADE SOCIOINTERATIVA Foco no escritor, na língua ou na interação? 1 José Adailton Cortez Freire (IFAL-UAB) Resumo: Este trabalho aborda a escrita do ponto de vista sociointerativo, sem desassociá-la, contudo de outros aspectos importantes e inerentes ao ato de escrever, como a codificação e decodificação. São apresentadas algumas das concepções antigas e equivocadas sobre produção textual, que mantinham o foco na língua e no autor, mostrando, especialmente, as limitações e problemáticas destas, que, por consequência, dificultam a formação do aluno-escritor. O objetivo é compreender que o texto só funciona como tal, quando inserido numa relação dialógica, na qual locutor e interlocutor se constroem e são construídos no interior do evento comunicativo. Em suma, produzir texto é uma tarefa complexa que exige de quem a faz um conjunto de atividades de cunho cognitivo-discursivo. Percebeu-se também que não é possível construir sentidos apenas no campo da língua, mas é preciso verificar as condições de produção, ou seja, o contexto sócio-histórico e cultural do discurso. Palavras-chave: produção textual – interação – locutor – interlocutor Introdução Durante muito tempo, acreditou-se que o processo de elaboração de um texto dependia exclusivamente da pessoa que o escrevia, de seus conhecimentos linguísticos e de sua visão de mundo. Porém, com o avanço das pesquisas científicas sobre as concepções e modelos de leitura e as estratégias de produção textual, percebeu-se que essa atividade é muito mais complexa do que parecia. Para se efetivar, de fato, ela depende não apenas do seu locutor, mas também da presença do seu interlocutor. A construção de um texto exige a execução de um conjunto de atividades de cunho cognitivo-discursivo que irão preenchê-lo com certos elementos, propriedades e/ou características, as quais serão responsáveis pela construção dos sentidos. Ou seja, são necessárias diversas habilidades para que uma manifestação linguística se constitua num texto, precisando, inclusive, que haja intenção do autor numa determinada situação comunicativa. 1 José Adailton Cortez Freire é graduado em Comunicação Social – Jornalismo, pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal), em 2010/2. Atualmente é estudante do 6º período do curso de Licenciatura em Letras – Português, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Alagoas (Ifal) em parceria com a Universidade Aberta do Brasil (UAB). E-mail: [email protected] 2 Além disso, a escrita deve ser precedida pela leitura, porém não a leitura enquanto mera decodificação, simples reconhecimento do código linguistico, mas a leitura aprofundada, a que realmente gera compreensão. Antes de entender a complexidade desse processo de construção de sentidos, é necessário entender que os sentidos (as ideias, intenções comunicativas, etc.) não estão, por completo, contidos no texto, mas que eles são construídos a partir deste. Nem tudo é dito durante o ato enunciativo e, por isso, é tão importante a presença do interlocutor interagindo com o discurso inicial. Este trabalho aborda as antigas concepções que reduziam o ato de escrever a uma atividade solitária, isolada, com foco na língua ou autor. Além disso, se propõe a iniciar uma discussão sobre a concepção sociointerativa da escrita, tomando como base teóricos da Linguística Textual e Aplicada, que defendem a interação como princípio dessa atividade. Não se pretende encerrar o debate sobre o texto e a relação locutor/interlocutor, mas fomentá-lo, de modo a eliminar as concepções simplistas anteriores. 1. A escrita com foco no escritor Há quem entenda o processo de escrita como uma simples representação do pensamento individual, ou seja, o sujeito, ora autor, controla e constrói o texto apenas com base nas ideias por ele mentalizadas. Porém, verificou-se que isso não ocorre verdadeiramente. Quem escreve, o faz para um outrem ou para si mesmo, mas em todos os casos existe a representação do leitor/interlocutor. Nessa concepção, que por muito tempo permeou a mente de educadores e educandos do país, o indivíduo autor da enunciação funciona como senhor absoluto desta. O material escrito é visto apenas como um produto lógico-discursivo de quem o escreve, sem que houvesse interferência de nenhum outro indivíduo. Ao aceitar essa ideia sobre a escrita, despreza-se o fato de que todo autor, ao escrever, leva em consideração uma série de fatores como o seu público alvo, ou seja, as características do sujeito-interlocutor, o tipo de pessoas a quem o texto vai se destinar. Esse aspecto é decisivo para nortear o processo de produção textual, visto que quando se escreve, por exemplo, para uma autoridade política é completamente diferente de quando o interlocutor é um amigo próximo, um estudante universitário, um médico, um sindicalista, etc. Um dos problemas encontrados nas redações escolares é justamente devido à falta de precisão com que o aluno se dirige ao seu 3 interlocutor: o professor. Isso, claro, também é consequência da 2situação comunicativa artificializada. Outros fatores determinantes que são considerados pelo autor, durante seu processo criativo-produtivo, são as suas intenções comunicativas, pois quem escreve pretende alcançar objetivos definidos (persuadir, reclamar, informar, solicitar, etc.), e as experiências e conhecimentos prévios de seu interlocutor Em outras palavras, aceitar a visão de que o autor da enunciação é senhor absoluto desta é reduzir o complexo processo de produção textual a mera expressão do pensamento, abandonando-se todo o contínuo de interação que envolve locutor e interlocutor num contexto histórico situado. 2. A escrita com foco na língua Outra concepção de escrita que perdurou muito tempo, é a da escrita com o foco na língua. Os adeptos dessa concepção creem que o processo de produção textual apenas depende do domínio do código linguístico, ou seja, da língua. Essa visão trouxe inúmeros danos às aulas de Língua Portuguesa, no que se refere ao estudo do texto e da escrita, deixando sequelas como os seguintes mitos: escreve bem aquele que simplesmente domina a gramática normativa; ou, só sabe escrever quem utiliza um vocabulário rebuscado. Como explica Ingendore Villaça Koch e Vanda Maria Elias, em seu livro “Ler e escrever: estratégias de produção textual”, quando se considera a língua como fator principal para a escrita “o texto é visto como simples produto de uma codificação realizada pelo escritor a ser decodificado pelo leitor, bastando a ambos, para tanto, o conhecimento do código utilizado” (Koch; Elias, p. 33, 2010). A problemática dessa concepção é justamente a hipervalorização do código em detrimento do processo interativo. Embora o domínio do código linguístico seja essencial para o processo de produção textual, ele não garante uma boa escrita, nem uma leitura reflexiva, por exemplo. O processo de codificar-decodificar é apenas a primeira etapa dentro de um emaranhado complexo que é o ato 2 O aluno, no exemplo citado, não escreve por ter uma intenção comunicativa, mas por precisar de uma nota. Isso gera pelo menos dois problemas: o primeiro é a falta de precisão para escrever para um interlocutor que ele não pretendia de escrever (seu professor); o segundo porque seu processo de produção está condicionado à nota e não a uma verdadeira intenção comunicativa, tornando, por isso, a situação de comunicação artificial. Para aprofundar a discussão ler: GERALDI, João Wanderley. et al. (orgs.). O texto na sala de aula. 3. Ed. São Paulo: Ática, 2001. 4 de escrever. Apesar de o código ser fundamental para a comunicação efetivar-se, ainda é preciso à presença de outros fatores, como o acionamento dos conhecimentos prévios e, é claro, a interação entre estes e o texto. Nas palavras de Luiz Antônio Marcuschi, “um texto não se esclarece em seu pleno funcionamento apenas no âmbito da língua, mas exige aspectos sociais e cognitivos” (Marcuschi, 2010 p.65). 3. Escrita com foco na interação Essa concepção é, até o momento, a que melhor caracteriza o ato de escrever. A escrita é percebida como um processo de produção textual que exige de quem a realiza a ativação de conhecimentos e mobilização de várias estratégias. Ou seja, o autor pensa no que vai escrever de acordo com suas intenções comunicativas, porém, pensa antes no seu leitor. Esse procedimento se repete a cada alteração feita no texto, pois quem escreve, escreve para um interlocutor que não é simplesmente um destinatário. Desse modo, tanto o autor quanto os leitores do texto são atores sociais, sujeitos ativos que se constroem e são construídos no texto, numa relação dialógica. Quando o autor refaz um trecho de uma obra, ele procura torná-lo mais claro para o seu interlocutor. Ele pressupõe os conhecimentos do interlocutor e, com base nessa ideia, vai aprimorando o material escrito para que seu leitor consiga compreender exatamente o que ele quis dizer (sua real intenção). Essa ideia é conhecida como princípio da interação. Esse princípio está presente tanto na leitura quanto na produção textual. Porém, nem tudo está dito na enunciação, existem os implícitos, pressupostos e subentendidos, que são fundamentais para a construção dos sentidos. Citando Ângela Kleiman, “a compreensão dependerá das relações que o leitor estabelece com o autor durante a leitura “(Kleiman, 2004 p. 37). Ou seja, se locutor e interlocutor não interagirem, não dialogarem dentro do evento comunicativo (texto) não será possível estabelecer a compreensão, prejudicando desse modo, a produção dos sentidos. Outro fator de extrema importância para construção de significação é o contexto do dito. Sem estar a par da situação enunciativa, o interlocutor pode ter sua compreensão prejudicada e, se isso ocorrer, a interação se restringe e os sentidos não são bem construídos. “Um ato linguístico pode ser formalmente igual do ponto de vista do enunciado, mas, do ponto de 5 vista de sua significação e de seus efeitos, ele será bem diverso, a depender do lugar que o condiciona, isto é, das condições de produção em que foi realizado” (Marcuschi, 2010 p. 67-68). Para esclarecer, aqui se entende sentido como um efeito do funcionamento da língua, quando os interlocutores estão situados em contextos sócio-históricos bem definidos e produzem textos em condições conhecidas, interagindo numa relação dialógica. Vale ressaltar que se compreende por texto um evento comunicativo no qual convergem ações linguísticas, sociais e cognitivas (Beugrande, 1997 apud. Marcuschi), estando este extremamente ligado as condições de produção. O contexto da enunciação pode ser considerado uma fonte de sentidos, pois nem tudo que constrói significado está no âmbito da língua. O contexto não é um simples entorno, mas situa e insere culturalmente o texto. “Sem situacionalidade e inserção cultural não há como interpretar o texto. [...] A língua sem contexto é vazia e o contexto sem a língua é cego” (Marcuschi, 2010 p.87). Diante do exposto, percebe-se que a escrita é produto sociointerativo, não sendo resultado do simples uso do código linguístico, nem das intenções do autor. Para se efetivar ela demanda de quem a faz o uso de diversas estratégias como a ativação dos conhecimentos da situação comunicativa (contexto social, intenções comunicativas, etc.); seleção, organização e desenvolvimento de ideias; equilíbrio entre informações explícitas e implícitas; e revisão da escrita durante o processo. Desenvolver um texto escrito é simular a ação do falante e a reação do ouvinte. Ou seja, escrever é emular a interação com o outro visando à perspectiva real de comunicação, ou melhor, vislumbrando o processo interativo entre locutor e interlocutor durante movimento do texto – do enunciado. Conclusões Depois de observar essas concepções sobre a escrita, percebe-se: (A escrita) se realiza com base nos elementos linguísticos e na sua forma de organização, mas requer no interior do intervalo comunicativo, a mobilização de um vasto conjunto de conhecimentos do escritor, o que inclui também o que esse pressupõe ser do conhecimento do leitor ou do que é compartilhado por ambos (KOCH, 2010 p. 35). 6 Verificou-se que a escrita é uma atividade de interação porque quem escreve, o faz para alguém, mesmo que seja a si mesmo; quando o autor revê o texto é porque procura ajustá-lo a sua real intenção comunicativa, e para que o interlocutor consiga compreender os sentidos. Em outras palavras, o texto não é apenas produto das intenções do autor nem do uso do código, mas é um produto da interação entre autor-leitor. Os sentidos não estão no texto, mas surgem a partir do texto, num movimento interativo entre os conhecimentos de mundo, os conhecimentos enciclopédicos e linguísticos do leitor. Nas palavras de Marcuschi: Os falantes/escritores da língua, ao produzirem textos, estão enunciando conteúdos e sugerindo sentidos que devem ser construídos, inferidos, determinados mutuamente. A produção textual, assim como um jogo coletivo, não é uma atividade unilateral. Envolve decisões conjuntas. Isso caracteriza de maneira bastante essencial a produção textual como uma atividade sociointerativa (Marcuschi, 2010 p. 77) Vale ressaltar as Palavras de Magda Soares ao tratar da importância da leitura e da escrita: “aprender a ler e a escrever e [...] fazer uso da leitura e da escrita transformam o indivíduo, levam o indivíduo a um outro estado ou condição sob vários aspectos: social, cultural, cognitivo, linguístico, entre outros” (Soares, 2009 p. 38). Em suma, produzir e compreender textos não são atividades limitadas à codificação e decodificação, mas sim um complexo processo de construção de sentido mediante atividades inferenciais. Não se pode negar a importância dessa discussão sobre a escrita, embora esta não se esgote com esse trabalho, mas, pelo contrário, aqui é apenas um primeiro contato para que o debate se aprofunde no decorrer dos anos enquanto docente. Diante das novas perspectivas sociais e lembrando que vivemos numa sociedade grafocêntrica, onde a escrita e a leitura são dia a dia mais exigidas pelas demandas sociais, não se pode negligenciar o estudo do tema, principalmente no que se refere à produção textual nas salas de aula. 7 Referências GERALDI, João Wanderley. et al. (orgs.). O texto na sala de aula. 3. Ed. São Paulo: Ática, 2001. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler em três artigos que se completam. 23. ed. Coleção Polêmicas do nosso tempo. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1989. KLEIMAN, Ângela. Oficina de leitura: teoria e prática. 10 ed. Campinas: Pontes, 2004. . Leitura: ensino e pesquisa. 2ª ed. Campinas: Pontes, 2004. KOCH, Ingedore Villaça & ELIAS, Vanda Maria. Ler e escrever: estratégias de produção textual. São Paulo: Contexto, 2010. KOCH, Ingedore Villaça. Ler e compreender os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2006. . O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto, 2010. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola, 2008. ORLANDI, Eni Puccinelli. O que é linguística. 2. ed. Coleção Primeiros Passos. São Paulo: Editora Brasiliense, 2009. SILVEIRA, Mª Inez Matoso. Modelos teóricos e estratégias de leitura – suas implicações no ensino. Maceió: EDUFAL, 2005. SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. 3 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.