Pró-Reitoria de Graduação
Curso de Letras
Trabalho de Conclusão de Curso
LITERATURA DE CORDEL: TRADIÇÃO POPULAR E
RECRIAÇÃO NO AUTO DA COMPADECIDA
Autora: Patrícia Fernandes Pereira Garcia
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Andréa Márcia M. Alves Coutinho
Brasília - DF
2012
PATRÍCIA FERNANDES PEREIRA GARCIA
LITERATURA DE CORDEL: TRADIÇÃO POPULAR E RECRIAÇÃO NO AUTO
DA COMPADECIDA
Monografia apresentada no curso de
Graduação em Letras da Universidade
Católica de Brasília como requisito para a
obtenção do título de Licenciado em Letras
com Habilitação em Português e Literatura em
Língua Portuguesa e Inglês e Literatura em
Língua Inglesa.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Andréa
Mercadante Alves Coutinho
Brasília
2012
Márcia
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Andréa Márcia Mercadante Alves Coutinho
_____________________________________________________
Prof. Dr. Maurício Lemos Izolan
_____________________________________________________
Prof. Dr. Wiliam Alves Biserra.
Dedico este trabalho ao meu filho
Pedro que mesmo aos nove anos teve
maturidade para compreender minha ausência
constante e ao meu marido Jeferson que foi pai
e mãe neste período.
AGRADECIMENTO
Agradeço a Deus por tornar todas as coisas possíveis. Aos mestres que me ajudaram a
trilhar o caminho do saber em especial minha orientadora Professora Andréa Márcia
Mercadante Alves Coutinho por me auxiliar na execução de um trabalho ousado dentro da
proposta da Universidade. Aos meus pais que mesmo sem estudo esforçaram-se para que eu
chegasse até aqui. Ao brilhante escritor Ariano Suassuna por permitir que eu adentrasse no
mundo da tradição popular e paralelamente as raízes mais profundas que permearam a vida
dos meus pais.
A grande importância do folheto, no meu entender, é que o folheto é
o único espaço em que o povo brasileiro se expressou sem
influências e sem deformações que lhe viessem de cima, de fora.
Aqui ele se expressou como ele é. Aqui não imitou a França, não
imitou a Inglaterra nem os Estados Unidos. O povo brasileiro aqui se
expressou como ele é. Então essa é a grande lição do folheto em
feira.
Ariano Suassuna
RESUMO
GARCIA, Patrícia Fernandes Pereira. Literatura de Cordel: tradição popular e
recriação no Auto da Compadecida. 2012. 52. Trabalho de Conclusão de Curso de
Graduação. Curso de Letras. Universidade Católica de Brasília. Brasília. 2012.
A presente pesquisa objetiva analisar os folhetos de cordel que inspiraram a
construção dos três atos da obra suassuniana Auto da Compadecida. O primeiro capítulo traz
uma breve apresentação de Ariano Suassuna e sua influência direta e decisiva para o
Movimento Armorial tendo como bandeira a literatura de cordel. Seguem-se, no segundo
capítulo, as raízes do cordel, sua forte presença na construção da obra e dos personagens e o
caminho percorrido por ela. No terceiro capítulo há uma análise dos folhetos, dos trechos os
quais foram construídos a partir deles e a presença do cordel o qual passou por uma
reescritura nos três atos da peça. Num quarto capítulo apresenta-se uma abordagem das
variadas fontes utilizadas na construção dos personagens da obra. Ao final percebe-se que
Ariano buscou resgatar as narrativas dos folhetos em verso transformando-os em prosa sem
desfazer a grandeza cultural das raízes nordestinas reunindo-as em uma obra pautada na
reescritura de textos que permearam e concretizaram o cordel, um gênero ainda descriminado
por parte da população, mas que traduz a essência de um povo.
Palavras-chave: Auto da Compadecida. Literatura de Cordel. Ariano Suassuna.
ABSTRACT
GARCIA, Patrícia Fernandes Pereira. Literatura de Cordel: tradição popular e
recriação no Auto da Compadecida. 2012. 52. Trabalho de Conclusão de Curso de
Graduação. Curso de Letras. Universidade Católica de Brasília. Brasília. 2012.
This research aims to analyze the cordel literature booklets that inspired the
construction of the three acts of the book Auto da Compadecida by Ariano Suassuna. The first
chapter gives a brief presentation of Ariano Suassuna and his direct and decisive influence for
the Movimento Armorial having as a banner the cordel Literature. In the second chapter, it is
presented the roots of the cordel, its evolution and strong presence in the construction of the
book and its characters. The third chapter is an analysis of the booklets and the section of the
work which were built based on them and the presence of the cordel, which went through a
rewriting in the three acts of the book. In the fourth chapter we see the many facts which
permeate the construction of important characters. At the end, it is realized that Ariano sought
rescuing the verse narratives of the booklets turning them into prose without undoing the
cultural greatness of northeastern roots, bringing them together in a book based on the
rewriting of texts that permeated the cordel, a genre still discriminated by the population, but
that reflects the essence of people.
Keywords: Auto da Compadecida, Cordel Literature, Ariano Suassuna.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10
1 - ARIANO SUASSUNA: AUTOR DO AUTO DA COMPADECIDA E PRECURSOR
DO MOVIMENTO ARMORIAL ......................................................................................... 11
2 - AS RAÍZES DO CORDEL E SUA PRESENÇA NO AUTO DA COMPADECIDA . 14
2.1 Influência dos folhetos na construçãos dos personagens .................................... 19
3 - ANÁLISE DA REESCRITURA DA LITERATURA DE CORDEL NO AUTO DA
COMPADECIDA ................................................................................................................... 23
3.1 Primeiro ato: o enterro do cachorro .................................................................... 24
3.2 Segundo ato: o gato que descomia dinheiro, a bexiga com sangue e a morte de
João Grilo ............................................................................................................................. 27
3.3 Terceiro ato: o julgamento .................................................................................. 36
4 - OUTRAS FONTES INSPIRADORAS NA CONSTRUÇÃO DA OBRA .................... 42
CONCLUSÃO......................................................................................................................... 49
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 51
INTRODUÇÃO
O Auto da Compadecida constitui-se como uma peça teatral que resgata a comédia
medieval e renascentista européia bem como a comédia popular nordestina. Tal obra foi
elaborada a partir de vertentes distintas onde encontram-se resquícios de obras conhecidas e
consagradas mundialmente e tradição popular impressa em folhetos. A premiada peça, escrita
em 1955 tornou-se obra literária e adaptação cinematográfica e não faz restrições a idades,
credos ou classes sociais.
Trata-se de uma história de grande aceitação traduzida em vários idiomas onde a base
é constituída da literatura de cordel abordando temas universais a partir da cultura do povo do
sertão que vive em meio a sofreguidão.
A obra transposta de verso para prosa atesta a genialidade de Ariano Suassuna o qual
compilou a riqueza de suas leituras em uma obra aclamada que trata da comicidade e
tragicidade onde o autor transpõe, recria, renova e enriquece episódios existentes em uma
tradição oral e escrita que juntas constituirão uma atmosfera satírica e impactante.
Utilizando criações cordelistas e livros cujas leituras e discussões resistiram a décadas
e séculos, Ariano constrói uma obra que desencadeia sentimentos e emoções as quais não
desmerecem àquelas sentidas na leitura das obras originais.
É essa construção pautada em folhetos que permeia a pesquisa e análise aqui
apresentadas buscando traçar um paralelo entre narrativas em cordel e sua reescritura no Auto
da Compadecida sendo que a compilação destes textos é de tal maneira construída que propõe
uma ligação de diversas histórias que, unidas, compõem o corpo a peça.
A literatura de cordel, que constitui uma das bases na construção da obra, é tida como
bandeira de um movimento que buscou resgatar as raízes nordestinas denominado de
Movimento Armorial que teve como fundador Ariano Suassuna.
Cabe ressaltar que as influências cordelistas não só pautaram a construção da obra
como também a elaboração arquetípica dos personagens que, com suas peripécias, fizeram
com que a história caísse no gosto popular. Mas essa construção de personagens advém
também de outras fontes que aqui serão trabalhadas superficialmente por não tratar-se do foco
deste trabalho. Até o personagem célebre João Grilo é fruto também das narrativas de cordel.
Este trabalho propõe abordar a história da literatura de cordel, a importância do gênero
para o Movimento Armorial e principalmente destacar os textos que serviram de fonte
inspiradora para a construção do enredo do Auto da Compadecida.
Todas as abordagens e análises encontram-se divididas em quatro capítulos os quais
abordam superficialmente a vida de Ariano, adentra o Movimento Armorial, analisa de que
forma deu-se a construção dos personagens que vão desde célebres aos que se tornaram
notáveis passando pelos secundários.
10
1 – ARIANO SUASSUNA: AUTOR DO AUTO DA COMPADECIDA E PRECURSOR
DO MOVIMENTO ARMORIAL
O célebre autor da obra “Auto da Compadecida” Ariano Suassuna é dono de uma
mente multifuncional que lida com maestria tanto com teatro quanto com o romance. Possui
formação em advocacia e ocupa uma das cadeiras da Academia Brasileira de Letras. Nasceu
em 16 de junho de 1927 no Palácio da Redenção sede do governo paraibano. Sua indiscutível
apreciação pelo Sertão e suas peculiaridades com seus personagens ricos em artimanhas e
pobres em recursos materiais, pessoas sofridas e encantadoras como em Auto da
Compadecida foi herdada de seu pai assassinado quando o autor tinha apenas quatro anos.
Iniciou sua vida de escritor aos dezoito anos (1945) quando seu professor de geografia
Tadeu Rocha entregou a publicação da primeira versão do poema Noturno. Já em 1946
ingressou na Faculdade de Direito do Recife e juntamente com membros de um grupo de
alunos retoma, no mesmo ano, o Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP) o qual propunha
trabalhar com clássicos literários bem como com pesquisas na difusão de um novo teatro
enraizado no nordestino popular. Nesse período estabeleceu contanto com a obra de García
Lorca. Segundo Carlos Newton Júnior:
O conhecimento da poesia e do teatro de Lorca representou um marco na vida e na
obra de Suassuna. Pela primeira vez, ele se deparava com um grande escritor erudito
que fundamentava toda sua criação nas fontes populares da sua Cultura, na Cultura
popular da Espanha, principalmente através do Romanceiro Popular Ibérico. As
paisagens descritas por Lorca nos seus poemas, povoadas de ciganos, bois e cavalos,
serão decisivas para afastar o jovem poeta Suassuna da influência do Romantismo,
aproximando-o ainda mais do seu próprio mundo, do Sertão, e das manifestações
artísticas ligadas ao Romanceiro Popular Nordestino, que tanto admirava.
(NEWTON JÚNIOR, 2000, p. 44)
A participação de Ariano no TEP foi fundamental para a construção de sua vida
literária que como na obra Auto da Compadecida foi pautada também em folhetos do
Romanceiro Popular Nordestino. O TEP propagou a cultura através de encenações as quais
eram montadas sem verba ou apoio e foi dele a responsabilidade pelo lançamento de uma
revista intitulada Estudantes que tinha seu foco na cultura. Nesse periódico, Suassuna teve a
publicação de alguns de seus poemas baseados no Romanceiro Popular como a peça Mulher
Vestida de Sol a qual foi escrita em 1947.
A retomada do TEP em 1946 trouxe a tona um sonho de Ariano Suassuna em pautar a
arte nas raízes nordestinas e essa vontade de valorização da cultura popular, foi de fato
concretizada décadas depois com o advento do Movimento Armorial consolidado quando
assumiu o cargo de Diretor do Departamento de Extensão Cultural da Universidade Federal
de Pernambuco. Para o escritor a arte popular brasileira é discriminada inclusive no meio
acadêmico por apresentar os elementos relativos à cultura popular brasileira.
A abordagem do Movimento Armorial neste trabalho faz-se necessária, pois a
literatura de cordel (aqui foco da pesquisa) é um elo de ligação deste movimento. No caderno
de Literatura Brasileira, há o registro da definição da Arte Amorial pelo próprio Ariano:
11
A Arte Armorial Brasileira é aquela que tem como característica principal a relação
entre o espírito mágico dos “folhetos” do Romanceiro Popular do Nordeste
(Literatura de Cordel), com a Música de viola, rabeca ou pífano que acompanha suas
canções e com a Xilogravura que ilustra suas capas, assim como o espírito e a
forma das artes e espetáculos populares correlação com este Romanceiro.
(SUASSUNA, apud CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA, 2000, p. 47)
Suassuna é defensor da retomada e preservação da literatura de cordel e enquanto
Secretário de Educação e Cultura tinha o projeto de restaurar um importante local de venda
dos folhetos (bandeira do movimento): Mercado São José. Segundo Maria Thereza Didier a
justificativa da preservação do cordel por Ariano é a seguinte:
Suassuna defendia a literatura de cordel como uma expressão fundamental da cultura
brasileira porque, em sua opinião, subsistia à margem das influências cosmopolitas.
Segundo o escritor dela emergiam, plenas de sentido autenticamente nacional, a
poesia, a gravura e a música. “Por sua vez”, dizia Suassuna, “a poesia pode dar a
origem à literatura e ao teatro, a gravura pode dar origem à talha e à escritura e, por
último, os folhetos são comumente cantados ao som de violas e rabecas”. Dessa
fonte cosmológica nordestina, viriam as elaborações armoriais (DIDIER, 2000, p.
42).
Segundo Idelette Muzart Fonseca em texto publicado no Cadernos de Literatura:
Ao proclamar a existência do Movimento Armorial, nos anos 70, Ariano Suassuna
assume publicamente seu compromisso com a arte popular e define a arte armorial
na relação com a literatura da voz e do povo, fundamento de sua criação, com a
cantoria que inspira os poetas armoriais uma nova poética, ancorada na
improvisação e numa organização genérica nova, mas presente também como tema
com a personagem mítica o cantador; o folheto e o romance, como texto oral e
popular, submetido à reescritura parcial ou total, citado ou plagiado, mas sempre
reivindicado como modelo de integração que os artistas e signo de um novo
processo criativo; a imagem, desenho ou gravura, que mantém com o texto popular
uma relação estreita e ambivalente, que os artistas armoriais procuram preservar (ou
reencontrar) nas suas obras plásticas tanto quanto literárias, graças à narratividade da
gravura ou à emblematização do relato (...) (SANTOS, apud CADERNOS DE
LITERATURA BRASILEIRA, 2000, p. 97)
A nomenclatura “armorial” foi adotada por tratar-se de insígnias, brasões, estandartes
e bandeiras. A Arte Armorial, que surgiu durante o período militar e apresenta-se como
junção de popular e erudito, é uma crítica à arte industrializada bem como à sociedade que
dela se perfaz. Pensada por um grupo de intelectuais pernambucanos é pautada na recriação
de temas enriquecidos pelos diversos gêneros artísticos que o Movimento engloba e segundo
Suassuna não tem parentesco com o romantismo ou regionalismo revelando influências
ibéricas medievais e recriação, por meio da arte, do sertão nordestino, de sua singularidade e
do verdadeiro sentido de ser brasileiro. Neste âmbito o Nordeste é centro por preservar suas
tradições dando ao país uma autenticidade quanto à identidade cultural baseada na cultura
popular. Embora haja renovação artística, no Movimento Armorial a essência da cultura
permanece assim como o elo entre os artistas dessa arte, pois todos partem de elementos da
tradição nordestina. De acordo com Maria Thereza Didier (2000, p. 74): “... o objetivo
12
proposto pelo Armorial: elevar a arte popular à condição de expressão do pensamento
nacional.”
Em seu livro Emblemas da Sagração Armorial, a autora Maria Thereza Didier
apresenta uma afirmação de Suassuna publicada em O Globo datado de 10 de setembro de
1972 a cerca das características dos artistas do movimento (2000, p.71): “a despreocupação
com a técnica e o desrespeito pela questão formal tornam mais livre este artista. E o
aproveitamento pelo erudito das formas populares é a única maneira de se formar uma arte
nacional, por causa de sua pureza.”
Suassuna explora as características do cantador, também artista do Movimento
Armorial, afirmando que:
(...) quantas obras não já deixaram de ser escritas por causa da preocupação
mesquinha e orgulhosa e estéril da criação individual? O Cantador nordestino não se
detém absolutamente diante dessas considerações: apropria-se tranquilamente dos
filmes, peças de teatro, notícias de jornal e mesmo dos folhetos dos outros. Que
importa o começo, se no final, a obra é sua? Ele, depois de tudo, acrescentou duas
ou três cenas, torceu o sentido de três ou quatro outras, de modo que a obra
resultante é nova. Não era assim que procediam Molière, Shakespeare, Homero e
Cervantes? (...) Os Cantadores procedem do mesmo jeito. Há, mesmo, uma palavra
que, entre eles, indica o fato, o verbo versar, que significa colocar em verso a
história em prosa de outro. Quando Shakespeare escreveu Romeu e Julieta não fez
mais do que versar as crônicas italianas de Luigi da Porto e Bandello. (SUASSUNA,
apud NEWTON JÚNIOR, 2008, p.176)
O romanceiro nordestino possui parentesco com o ibérico ao mesmo tempo em que
apresenta certo distanciamento visto que o primeiro é ainda atuante. Essa influência ibérica
está nas marcas culturais dadas pela mistura de raças ocorridas com a presença dos
colonizadores.
Maria Aparecida Lopes Nogueira (2002, p. 109) chama atenção para o fato de que a
retomada de textos para a produção literária é um elemento utilizado por cânones como
Shakespeare, Molière, Cervantes, Lopes de Vega, Gregório de Matos, Garcia Lorca, Gogol,
Tolstoi, e Dostoievski.
Esta mesma retomada, “restauração”, da cultura popular também esteve na obra de
José de Alencar que busca nas quadras populares substâncias que componham sua obra. Tal
retomada de texto, pode ser considerada pela crítica como sendo plágio ou pura falta de
originalidade. Maria Lopes Nogueira comenta este fato e transpõe a opinião de Suassuna
sobre o assunto:
Nas peças, reescreve os folhetos e romances populares e os clássicos da literatura
erudita, achando que tal atitude retira a marca da visão puramente individual da
criação: “A originalidade, eu acho uma preocupação muito boba. Porque a
originalidade, ou se tem de nascença ou não se tem de jeito nenhum. (...) Porque a
pessoa procurar originalidade, eu acho isso uma besteira tão grande! Shakespeare
não procurou, por que é que eu vou procurar? Não é? Tá doido”. No caso da
literatura popular brasileira, a arte barroco - primitiva dos séculos XVII e XVIII,
13
assim como na Europa clássico-mediterrânea ou na romântica, o conceito de autoria
é diluído no anonimato, pois a imitação ou reinvenção são processos de criação.
(SUASSUNA apud NOGUEIRA, 2002, p. 110)
Ainda dentro do debate sobre a originalidade, afirmou Idelette Muzart Fonseca dos
Santos:
A maior originalidade da literatura popular nordestina reside, sem dúvida, no
intercâmbio estreito e permanente que se estabelece entre expressão oral e escritura.
Tradicionalmente diferenciada, definida ao contrário, a escritura (do folheto) não
exclui a voz (da cantoria, do romance, do conto): completa-a e renova-a,
desempenhando o papel de arquivo de improvisação e do fugitivo.(...) É na escritura
do folheto que o escritor ou o artista armorial se apóia para ancorar a recriação ou
reescritura, como modo privilegiado da criação armorial, seguindo modelo da poesia
popular e de suas incessantes retomadas de temas e formas. (SANTOS, 1999, p. 19)
Dentre as críticas que o Movimento Armorial recebeu, está a impressão de ser um
movimento elitista ao que Suassuna rebate afirmando que sua arte não é construída para uma
classe específica e que a produção é pautada no popular como campo ficcional.
O Movimento Armorial ficou enfraquecido em 1981 quando Suassuna publica em
carta aberta seu afastamento da vida pública e literária para dedicar-se ao espetáculo da vida.
O silêncio proclamado nesta data duraria uma década.
2. AS RAÍZES DO CORDEL E SUA PRESENÇA NO AUTO DA COMPADECIDA
A bandeira do Movimento Armorial, como abordado anteriormente, foi a literatura de
cordel a qual foi também a base para a construção dos três atos da peça Auto da
Compadecida. A literatura de cordel é tida como literatura do povo e a definição vem do fato
das obras serem expostas em cordões ou barbantes nos locais de venda os quais ofertam os
folhetos a baixo custo. O fato é que o cordel é sinônimo de manifestação cultural e recebeu
influências dos países os quais dele se utiliza e adaptou-se perfeitamente ao Nordeste que
mesmo não sendo berço de sua criação é campo de etnias distintas como português, africano e
escravo. As características que recebeu ao chegar ao Brasil, faz com que muitos não percebam
que não se trata de uma literatura propriamente brasileira. De acordo com o professor Manuel
Diégues Júnior:
A presença da literatura de cordel no Nordeste tem raízes lusitanas; veio-nos com o
romanceiro peninsular, e possivelmente começam estes romances a ser divulgados,
entre nós, já no século XVI, ou mais tardar, no XVII, trazidos pelos colonos em suas
bagagens (DIEGUES JÚNIOR apud BATISTA, 1977, p. I).
Segundo o professor Manuel Diégues Júnior (apud BATISTA 1977, p. I) as raízes da
literatura de cordel, relacionadas ao romanceiro popular, estão na exposição de histórias de
épocas remotas bem como a divulgação de fatos cotidianos fazendo papel de veículo de
informações gerais. Com o advento do jornal esta literatura enfraquece em Portugal, mas não
no Brasil onde se viu ameaçada somente com a propagação da televisão e do rádio. Cabe
ressaltar que não é correto afirmar que a literatura de cordel é de origem estritamente lusitana,
14
Portugal recebeu fontes diversas de origem espanhola onde era denominada “pliegos sueltos”
(folhas volantes) ou de países hispânico - americanos.
Segundo Ribamar Lopes:
1830 é considerado, historicamente, o ponto de partida da poesia popular nordestina.
Em torno dessa data nasceram Ugulino de Sabugi – o primeiro cantador que se
conhece – e seu irmão Nicandro, ambos filhos de Agostinho Nunes da Costa, o pai
da poesia popular. (LOPES, 1983, p. 18)
Também denominada de narrativa, popular, impressa, ou folheto de feira, a literatura
de cordel foi “adotada” pela região Nordeste por suas características culturais e tornou-se um
importante meio de comunicação que permitia interligação entre diversas sociedades. Como
afirma o professor Manuel Diégues Júnior:
Fatores de formação social contribuíram para isso; a organização da sociedade
patriarcal, o surgimento de manifestações messiânicas, o aparecimento de bandos de
cangaceiros ou bandidos, as secas periódicas provocando desequilíbrios econômicos
e sociais, as lutas de famílias deram oportunidade, entre outros fatores para que se
verificasse o surgimento de grupos de cantadores como instrumentos do pensamento
coletivo, das manifestações da memória popular. (DIEGUES JÚNIOR apud
BATISTA, 1977, p. IV)
Na literatura de cordel encontramos a compilação de versos especialmente preparados
para compor a obra ou simplesmente a construção a partir do que foi “ouvido” por cantadores
em seus inúmeros desafios ou pelejas. Por haver forte presença de transmissão oral, por vezes
a autoria torna-se desconhecida e para minimizar este problema alguns autores terminavam
com versos que compunham um acróstico com seu nome a fim de registrar a autoria. Mas há
quem suprima esse acróstico para deturpá-la, o que dificulta a precisão das informações
relativas ao autor.
Os temas abordados na literatura de cordel são variados onde se vê a apresentação de
fatos históricos ou vivências sociais cotidianas apresentados de maneira improvisada ou por
meio da chamada “obra feita” com retomadas do que o autor já possui de leituras anteriores
ou obras orais apreciadas. A escrita dos cordéis, data de final do século XIX quando houve
iniciativa de rompimento do analfabetismo do povo. Neste período os folhetos eram
manuscritos tornando-se mais difusos com o advento da tipografia em cidades interioranas.
Suassuna concorda com a proposta de classificar os folhetos em nove ciclos como
abordou Braulio Tavares:
Ciclo heróico, trágico e épico.
Clico do fantástico e do maravilhoso.
Ciclo religioso e de moralidades.
Ciclo cômico, satírico e picaresco.
Ciclo histórico e circunstancial.
Ciclo de amor e fidelidade.
Ciclo erótico e obsceno.
Ciclo político e social.
Ciclo de pelejas e desafios. (TAVARES, 2007, p.27)
15
Essa mesma classificação foi transcrita por Suassuna (apud SANTIAGO, 2007, p.
281) constando apenas seis ciclos: “o ciclo heróico, com os romances trágicos e épicos, o
ciclo maravilhoso; o ciclo religioso e de moralidade; o ciclo cômico, satírico e picaresco; o
ciclo histórico e circunstancial; e o ciclo de amor de fidelidade.”
Segundo Braulio Tavares (TAVARES, 2007, p. 104): “Ariano escolheu o folheto
como a célula-mãe de uma nova maneira de fazer arte de enxergar o Nordeste, de enxergar o
mundo e de recriar suas formas.”
A utilização da reescrita de textos populares compreende uma escrita grafofágica.
Torna-se um refazer-se com ares de novidade. Em entrevista ao professor Ronaldo Salgado,
há um trecho transcrito por Braulio Tavares:
A grande importância do folheto, no meu entender, é que o folheto é o único
espaço em que o povo brasileiro se expressou sem influências e sem deformações
que lhe viessem de cima, de fora. Aqui ele se expressou como ele é. Aqui não
imitou a França, não imitou a Inglaterra nem os Estados Unidos. O povo brasileiro
aqui se expressou como ele é. Então essa é a grande lição do folheto em feira.
(SUASSUNA apud TAVARES, 2007, p. 120)
Em entrevista ao Cadernos de Literatura, Suassuna destacou o papel do cordel (2000,
p.39): “O cordel é o único espaço literário no qual o povo brasileiro se expressou como quis;
o equivalente político do cordel foi Canudos.”
Para Suassuna o cordel passa por uma fase delicada onde a cultura de massa o reprime,
mas sua capacidade de resistência ainda o mantém vivo mesmo em meio à diversidade étnica
que o Brasil comporta tendo recebido influências de colonizadores, dos negros, índios e
contatos culturais europeus ou não advindos com os meios de comunicação e transporte. O
cordel não surgiu de um programa técnico estilístico, seu surgimento não foi imposto e trouxe
ao povo a possibilidade de transformar em arte todos os seus sofrimentos, acontecimentos e
anseios. Embora haja resquícios europeus, o cordel não é só imitação, é literatura viva, meio
de comunicação que origina um espetáculo vigoroso.
Um episódio notável de atenção minuciosa foi o fato de que a literatura de cordel tão
rica e enraizada na cultura popular nordestina como a voz de um povo que em meio a tantos
fatores desfavoráveis como a seca não se cala, porém é vítima de discriminação como afirma
Suassuna:
O Romanceiro medieval ibérico é, hoje, apenas uma sobrevivência, estudada como a
importantíssima manifestação literária que é, mas também apenas quase como coisa
de museu, nas cátedras universitárias européias. Nós, aqui no Brasil, temos, à mão,
um material muito mais vasto, rico e variado do que o Romanceiro ibérico, um
material que, se caísse, daqui a dois séculos, na mão de um crítico de sensibilidade,
encheria sua vida de estudos; e, apesar disso, por causa da injusta discriminação a
que já me referi, o Romanceiro Popular do Nordeste é deixado de banda nos estudos
literários universitários do Brasil. Aqui, são criadas essas discriminações contra
grandes artistas e escritores que, somente por não terem tido formação universitária
ou informações e participações sobre as “conquistas da civilização industrial”,
ficaram como que estigmatizados e relegados a posições secundárias. (SUASSUNA
apud NEWTON JÚNIOR, 2008, p. 152)
16
Embora o cordel sofra essa discriminação como sendo literatura para pessoas de
classes desfavorecidas e analfabetas, foi por intermédio do cordel que muitos aprenderam a
ler e escrever. Segundo livro de antologia da literatura de cordel publicado pelo Banco do
Nordeste sob organização de Ribamar Lopes:
Outro papel importante exercido pela literatura de cordel diz respeito à sua função
como auxiliar de alfabetização. Sabe-se que incontáveis nordestinos carentes de
alfabetização aprenderam a ler deletreando esses livrinhos de feira, através de outras
pessoas alfabetizadas. Numa época em que as cartilhas de alfabetização eram raras e
não chegavam gratuitamente ao homem rural, o folheto de cordel cumpria
espontaneamente essa alta missão social. (LOPES, 1983, p. 8).
Os temas abordados na obra Auto da Compadecida, não só retomam os folhetos de
tradição popular nordestina como povoam seu imaginário. Em texto intitulado A memória no
discurso do auto da compadecida Irenilde Pereira dos Santos (apud MICHELETTI, 2007, p.
102) aborda tais tópicos dividindo-os em oito acontecimentos. Primeiro o cavalo bento,
depois houve um sinal de mau agouro quando João Grilo quer chamar o padre, pois tal
atitude lembra a extrema unção. Logo após nos deparamos com o testamento do cachorro, em
seguida com a fantasiosa lenda do pirarucu ou do homem pescado pelo peixe não menos
fantasiosa que a história do gato que defecava dinheiro. Outro ponto importante é a história
mentirosa da gaita que cura ferimento, a crença dos milagres por meio do poder de Padre
Cícero e por fim a misericórdia da compadecida.
Cabe ressaltar que a veia cômica de Suassuna começou a pulsar em 1954 quando o
autor decide dar novos rumos a sua atmosfera literária enveredando-se pelo risível e picaresco
diferente do trágico que até então permeava seu estilo. De acordo com Carlos Newton Júnior:
Suassuna declarou que a grande importância do Auto da Compadecida no conjunto
de sua obra está na guinada que esta peça representa em direção ao cômico. É a
primeira grande comédia, já que, até então, seus trabalhos ligados ao cômico eram
entremezes para mamulengo, peças curtas, de um único ato. Com Auto da
Compadecida, o autor, que traz em sua personalidade uma forte marca trágica,
parece descobrir o riso como alternativa para se antepor ao absurdo da existência
humana, cercada de morte por todos os lados. No que se refere a sua poesia,
entretanto, permanece o sentimento trágico como tônica predominante. (NEWTON
JÚNIOR, 1999, p. 155)
Mesmo com todo o sucesso da obra Auto da Compadecida fazendo com que grande
número de pessoas conhecem Suassuna sem ao menos ler suas obras, apreciando-a por meio
de adaptações, ela não constitui a obra mais querida do autor. Em texto escrito no Cadernos
de Literatura Brasileira o professor Marcos Vinícios Rodrigues Vilaça conta um episódio em
que Suassuna fez uma confissão enquanto escrevia no Álbum de depoimentos de sua filha em
1977 onde lia-se as palavras acerca da obra A Pedra do Reino:
Querida Taciana: Se tudo o que eu escrevi tiver que ser esquecido e desgastado pelo
Tempo e se só fosse dado o direito de salvar um só livro dessa cinza e desse pó, eu
escolheria o longo romance que venho escrevendo desde 1958 (...) (SUASSUNA
apud CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA, 2000, p. 18)
17
Ariano sempre comenta que respeita a opinião do público, mas sua obra de mais
estima é A Pedra do Reino, sua peça de preferência foi Farsa da boa preguiça por tratar-se,
segundo o autor, de uma peça escrita em versos e rimada.
Peça em três atos escrita em 1955, Auto da Compadecida em suas primeiras
apresentações não foi sucesso de público, mas posteriormente Suassuna veio colher os frutos
de seu trabalho. Nas próprias palavras do autor registradas pelas escritoras Adriana Victor e
Juliana Lins:
A gente não esperava aquela explosão toda, foi uma grande surpresa. Quando
terminamos a apresentação, o público subiu nas cadeiras de madeira. Todos batiam
os pés com vigor, fazendo muito barulho. ... Logo no início, eu estava um pouco
temeroso. Era um tipo de peça que nunca tinha visto nem no Recife, quanto mais no
Rio de Janeiro. Esse negócio de cachorro enterrado em latim... Jamais esperava o
resultado alcançado. Eu não pensava nunca que o Auto da Compadecida, um dia
saísse do Recife. (SUASSUNA, apud VICTOR e LINS, 2007, p. 73)
Contrariando as expectativas do autor, a peça recebeu prêmio da Associação Brasileira
de Críticos Teatrais após vencer o Primeiro Festival de Amadores Nacionais em 1957, não só
saiu do Recife como foi encenada em diversos países como Alemanha, Estados Unidos,
Finlândia, França, Espanha, Grécia, Holanda, Israel, Polônia, Portugal, Suíça e
Tchecoslováquia dentre outros da América do Sul. O livro veio um ano após este período e
também recebeu traduções variadas como inglês, francês, espanhol, holandês, hebraico e
mesmo alemão.
No prefácio de sua dissertação de mestrado, Geraldo Mattos assim refere-se ao
sucesso advindo com a publicação da obra:
Quando foi publicada mobilizou a crítica literária do Brasil e do estrangeiro.
Mereceu referências elogiosas de Eduardo Portela ao dizer que “... o grande
acontecimento cultural do Nordeste de hoje é o teatro do Sr. Ariano Suassuna.” E Le
Soir, o maior diário belga, assim a ela se referiu:”...uma criação magistral.”
(MATTOS, 2004, p.9)
A sétima arte também foi palco da peça: primeiro em 1969 tendo a direção de George
Jones sob o título de A compadecida, com uma repaginada mais cômica ganhou a segunda
versão em 1987 com nome de Os Trapalhões no Auto da Compadecida, anos depois o público
recebe a terceira versão da obra em 2000 a exato um ano após versão em microssérie.
Mas Ariano não é flexível com relação a adaptações. Temos o caso, por exemplo, da
diretora Bárbara Bruno que queria adaptar a obra modificando a linguagem transformando-a
em mais juvenil e paulistana, alterando personagens como o coronel em bicheiro ou o padre
nordestino em português e, por isso, não obteve a aprovação do autor.
Segundo Suassuna o Auto da Compadecida foi a primeira experiência satisfatória do
ator em utilizar-se dos folhetos com a riqueza de seus personagens e histórias bem como a
transposição de espetáculos como o Bumba-meu-boi constituindo-se uma “fusão” entre
tradução ibérica e a cultura popular.
18
Os estudos acerca das fontes que deram origem ao Auto da Compadecida são vastos
como afirma Maria Aparecida Lopes Nogueira:
O Auto da Compadecida é profundamente arraigado na tradição das peças da alta
Idade Média, nos chamados “Milagres de Nossa Senhora” do século XIV, nos autos
de Gil Vicente do século XV, no teatro espanhol do século XVII, no teatro de Lopes
de Vega e Calderón de La Barca; já o cômico vem de Plauto, Goldoni e da
commedia dell’arte. (NOGUEIRA, 2002, p. 102)
O local escolhido para ser o cenário da obra foi o sertão. Fato característico das obras
do autor e não escolhido por mero acaso como comentado pelo próprio autor na obra Ariano
Suassuna e o cabreiro tresmalhado de Maria Aparecida Lopes Nogueira:
(...) Eu cresci lendo jornais falando mal de meu pai... Era a luta do bem contra o mal.
O bem era o urbano, que representava a modernidade, o progresso, o governo. O mal
era meu pai, que significava o atraso, o primitivo, por ser rural. Sabe o que fiz para
conseguir viver, pois aquilo que me doía muito?... Resolvi inverter: o bem era o
rural, o mal era o urbano... Pautei toda minha vida nisso... (SUASSUNA, apud
NOGUEIRA, 2002, p. 30)
A obra foi construída de maneira que nada acontece ao acaso, observa-se que até a
palavra auto que compõe o título tem toda uma justificativa histórica como abordado por
Irenilde Pereira dos Santos (apud MICHELETTI, 2007, p.94): “designativo de um gênero
dramático ou teatral originário da Europa Medieval desde o século XIII. Bastante comum no
mundo ibérico, sobretudo em Portugal, tem em Gil Vicente uma de suas figuras mais
expressivas.”
A proposta de Ariano Suassuna, como destaca a professora Maria Aparecida Lopes
Nogueira é:
(Procuro) “criar um estilo capaz de acolher o maior número possível de histórias,
mitos, personagens e acontecimentos, para atingir, assim, através do que consigo
entrever em minha região, o espírito tradicional e universal. (...) Quero um teatro
trágico e cômico, vivo e vigoroso como nosso Romanceiro Popular; um teatro que se
possa encenar, sem maiores mistérios, até nos recintos do Circo. (...) É claro que não
preconizo uma volta ao passado. Não quero o teatro antigo nem o moderno, quero o
perene.” (SUASSUNA apud NOGUEIRA, 2007, p. 57).
2.1 - A influência dos folhetos na construção dos personagens
Não só os atos foram produzidos a partir de folhetos, os personagens que marcaram a
mente do público também possuem traços da literatura de cordel. João Grilo da versão em
cordel é de autoria de João Martins de Athayde (1877 – 1959) e datado de Juazeiro, 22/5/51, e
passou por reedições. Segundo Braulio Tavares houve alterações quando passou de sextilha a
septilhas. Segundo Bráulio:
O personagem de Athayde é um caso típico de “personagem cabide” da tradição
picaresca, ao qual podem ser atribuídas as mais variadas aventuras de qualquer
origem, desde que não entrem em contradição com seu perfil básico. (TAVARES
2007, p. 88)
19
Braulio Tavares traça um paralelo entre o João Grilo do cordel e o personagem de
Auto da Compadecida:
Ocorre algo parecido como João Grilo do Auto da Compadecida, que vira herdeiro
das três artimanhas colhidas por Ariano no folclore (o enterro do cachorro, o gato
que descomia dinheiro, a gaitinha mágica). Aqui num contexto diverso e mais denso
do que o folheto, João Grilo é um personagem completo e complexo. É um
trabalhador (trabalha na padaria); seu relacionamento com os poderosos (o padre, o
major) não é episódio, mas o da convivência diária que é de esperar em uma vila
pequena; e dispõe de um parceiro para os momentos cômicos em que,
alternadamente, cada um “faz escada” (como se diz no teatro e na TV) para
proporcionar a piada ao outro. O Grilo do folheto só existe em função das proezas
(com a notável exceção da convivência com a mãe, a quem repetidamente conforta,
garantindo-lhe que vão melhorar a vida). O Grilo da peça, mesmo obedecendo à
tradição do “tipo cômico”, é um personagem mais completo, de perfil emocional
mais variado. (TAVARES, 2007, p. 90)
A personagem João Grilo da literatura de cordel é dotada de astúcia considerável e
sofre da mesma pobreza que nosso célebre personagem do Auto da Compadecida. No início
do folheto, João de Athayde conta que João Grilo já começou suas artimanhas ainda na
barriga da mãe. Nasceu de sete meses e aos sete anos perdeu seu pai. O número sete aparece
outras vezes como no momento em que ele tira o padre do sério com suas peripécias e
afirmou que iria se confessar no dia sete do mês (coisa que nunca o fez), ou no momento em
que às sete horas resolve aprontar outra de suas artimanhas com o padre. Aos sete anos deixa
a escola. João Grilo cria adivinhas diversas as quais não são respondidas por àqueles que ele
desafia, é evidente sua inteligência. No presente cordel a seguinte septilha descreve este
astuto:
João Grilo em qualquer escola
chamava o povo atenção
passava quinau nos mestres
nunca faltou com a lição
era um tipo inteligente
no futuro e no presente
João dava interpretação (ATHAYDE, 1977, p.9)
João Grilo do cordel engana até ladrões que aparecem na cidade e fica com os frutos
do roubo da quadrilha. É então convidado pelo rei do Egito para uma adivinhação. O sultão
diz que fará 12 perguntas a serem respondidas pelo espertalhão em 15 dias e o ameaça de
morte caso alguma das questões fique sem resposta. João respondeu as variadas perguntas do
sultão, ganhou fama e passou a interferir até nos julgamentos que havia. Passou por muitos
lugares e quando convidado por outro sultão, apareceu esfarrapado e despertou nos moradores
dúvidas se aquele era ou não o tão esperado e ilustre convidado. Na verdade João Grilo estava
maltrapilho e trazia em sua bagagem roupa de gala e durante o jantar deixou para aquele povo
uma lição quando se mostrou entristecido ao constatar que as pessoas que o receberam
homenagearam a roupa que usava e não a pessoa que de fato era. Por sua esperteza termina o
cordel sendo comparado ao rei Salomão por sua sabedoria
Quanto as proximidades entre João Grilo do Auto da Compadecida e João Grilo do
cordel, Beti Rabetti explora características do último:
20
- personagem envolvido em especiais circunstâncias de nascimento (“foi cristão que
nasceu antes do dia; na noite em que (João) nasceu houve um eclipse na lua”)
- personagem de espírito sagaz para adivinhações (em idade escolar, faz perguntas
que seu Mestre não sabe responder e, já adulto, a convite do rei Bartolomeu do
Egito, a ele responde, com argúcia, 12 capciosas perguntas);
- personagem cujo saber, no entanto, não se basta com adivinhações. Traduzindo-se
em inteligência que administra o reino, “sua sabedoria era igual à de Salomão”,
permitindo ao brincante cantar as proezas de qualidades diversas. (RABETTI, 2005,
p. 52)
Outro folheto também relacionado ao nosso querido personagem João Grilo, é outra
obra de João Martins de Athayde intitulado A vida de canção de fogo e seu testamento. O
início da história já trata do personagem principal como um “quengo” e segue os versos com
descrição apoteótica:
Pois ele desde criança
sabia a tudo iludir
estradeiro muito velho
não pode a ele competir
o Canção nunca armou laço
que alguém pudesse sair. (ATHAYDE, 1978, p.1)
Ao que seguem outras sextilhas descritivas da astúcia de Canção:
Porque admira a todos
esse ente se criar
e enganar todo mundo
e ninguém o enganar
nunca achou um estradeiro
que o pudesse enrascar (ATHAYDE, 1978, p. 3)
Aos sete anos quase morreu afogado, porém tal acontecimento não causou tristeza em
sua família. Aprontou uma de suas artimanhas oferecendo uma morada em troca de dinheiro,
mas enganou o vaqueiro e levou-o a delegacia, por isso teve que fugir da Paraíba para o
Goiás. Por sua dedicação em um trabalho que conseguiu na nova moradia, juntou dinheiro e
enviou para mãe que por ele não nutria nenhum afeto. O tio de Canção, que também tinha
maus sentimentos pelo sobrinho, envia o vaqueiro que fora enganado para trazê-lo de volta e
trancafiá-lo na prisão sendo acusado de roubo, sugeriu vingança. Canção o descobriu antes, o
trancafiou chamando delegado dizendo tratar-se de um assassino. Canção pediu o dinheiro
referente ao seu trabalho afirmando que iria embora encontrar-se com sua mãe. Seu tio
descobre que o vaqueiro está preso, visita-lhe e sugere que vá ao encontro de Canção terminar
o seu trabalho. O José Vaqueiro diz que aprendeu a lição e que não vai atrás do astuto Canção
que mentiu, pois na verdade foi para o Recife. Encontrou um parceiro durante a viagem e
juntos foram para o Ceará e até o fim do folheto é narrada as peripécias da nova dupla e
termina com o convite do autor para acompanhar a continuação da história no próximo
folheto.
Outro personagem que tem parentesco com João Grilo é Pedro Malasartes um astuto
preguiçoso que recusa trabalho até para o sustento de seu pai, bem diferente de seu irmão João
que se compadece de situação do patriarca e sai em busca de emprego e ao encontrar um turco
sofre humilhações variadas. Saía para a roça em trabalho pesado e só podia retornar quando
21
uma cadela que o acompanhava voltasse pra casa. Em excesso João só tinha trabalho, pois
comia mal e após três dias confessou ao patrão que não agüentava a dura rotina, porém o
turco repleto de maldade amarrou João e tirou-lhe pele das costas. O pobre voltou para casa e
seu pai ao vê-lo não suportou e morreu.
Pedro cuidou do irmão, sepultou o pai e jurou vingança ao turco. Conseguiu emprego
na fazenda de seu inimigo que logo falou dos combinados que os empregados seguiam: ir à
roça e só retornar na companhia da cadela. Chegando ao roçado, Pedro bateu no bicho até
cansar e ao soltá-la o animal retornou ao dono. Quando a hora da refeição se aproximou,
Pedro não aceitou o pouco que lhe servira e foi pessoalmente ao fogão para garantir uma
quantia que lhe matasse a fome, fato que deixou o turco em nervos. No outro dia, seu inimigo
mudou o destino de Pedro e pediu que fosse buscar lenha com nós, mas para acabar com a
paciência do fazendeiro Pedro cortou canas preciosas da plantação ao pé que o turco quase
enfarta, mas resolve dar outra tarefa ao atrapalhado serviçal que para destruir a paciência de
seu patrão corta bananeiras da fazenda e deixa o turco mais uma vez boquiaberto fazendo com
que ele se juntasse a sua maléfica mãe e juntos expulsassem Pedro de suas terras.
Logo o fazendeiro disse a Pedro que próximo onde ele dormia havia uma fera e que
ele corria riscos, mas o astuto preparou sua arma e ao ouvir vozes atirou e matou a mãe do
turco que decidiu mandar Pedro embora. Porém para cumprir seu combinado retirou a pele
das costas do patrão entregando-a ao irmão. Pedro resolveu ir embora da casa onde morava
com o irmão, mas antes matou o jumento que o pai deixara, retirou o que lhe cabia e partiu
mundo a fora. Montou um plano e com a carniça de sua parte do jumento conseguiu capturar
um urubu.
Em suas andanças deparou com uma casa, ouviu o que dizia a dona, foi convidado
pelo dono a cear com a família. Fingiu que o urubu contava algo e o dono da casa ficou
maravilhado e interessado em comprar a ave por uma boa quantia e Pedro não se fez de
rogado.
Continuou as andanças e encontrou um emprego em troca de alimento, mas logo
começou a matar os porcos para vender a carne e fugiu da fazenda levando as três filhas de
seu patrão com quem ficou por dias até resolver pedir que voltassem para casa. Prosseguiu em
suas perambulações e foi parar numa praia deparando-se com uma freira morta portando uma
caixa que despertou sua curiosidade. Observou que dentro do recipiente havia um crucifixo,
uma corrente e uma carta que dizia para receberem a freira que iria cuidar de uma princesa.
Pedro devolveu o corpo da freira ao mar, vestiu suas roupas e em posse da carta conseguiu
embarcar em um navio que o levaria para onde a freira iria. Apresentou a carta ao rei e foi
incumbido de cuidar da princesa cuja sorte fora lida e descobriu-se que aos treze anos perderia
sua inocência.
Logo a menina começou a mudar, ao passo que o rei descobriu que ela estava grávida.
A princesa confessou que na verdade sua freira era homem. O rei logo obrigou Pedro a casarse com sua filha e juntos viveram felizes, o astuto deixou de ser trapaceiro, mereceu a coroa
do rei e mandou buscar seu irmão para viver uma vida digna.
22
Nota-se que a Literatura de Cordel, fonte de reescritura no enredo, também foi fonte
inspiradora na construção dos personagens que são, na verdade, o retrato do homem que sofre
com tantas mazelas da vida em especial o povo do nordeste que é castigado severamente pela
seca. Mas essa sofreguidão não os torna menos capazes, ao contrário, os torna um modelo a
ser seguido, pois em meio a tanta miséria nos deparamos com sábios que retiram dessa vida
sofrida ensinamentos transformando-os nos versos dos belos cordéis de feira.
3 – ANÁLISE DA REESCRITURA DA LITERATURA DE CORDEL NO AUTO DA
COMPADECIDA
A decisão de pesquisar as fontes que deram origem ao Auto da Compadecida, deu-se
após a leitura da peça que em sua 35ª edição publicada em 2005 pela editora Agir trouxe em
suas últimas páginas um texto de Braulio Tavares intitulado Tradição popular e recriação no
“Auto da Compadecida”. Trata-se de uma análise da obra a partir de suas fontes inspiradoras
tendo como parágrafo introdutório as palavras que me instigaram na pesquisa em questão:
Reza a lenda que certa vez um crítico teatral abordou Ariano Suassuna e o inquiriu a
respeito de alguns episódios do Auto da Compadecida. Disse ele: “Como foi que o
senhor teve aquela idéia do gato que defecava dinheiro?” Ariano respondeu: “Eu
achei num folheto de cordel.” O crítico: “E a história da bexiga de sangue e da
musiquinha que ressuscita a pessoa?” Ariano: “Tirei de outro folheto.” O outro: “E o
cachorro que morre e deixa o dinheiro para fazer o enterro?” Ariano: “Aquilo ali é
do folheto também.” O sujeito impacientou-se e disse: “Agora danou-se mesmo!
Então, o que foi que o senhor escreveu?” E Ariano: “Oxente! Escrevi foi a peça!”
(TAVARES apud SUASSUNA, 2005, p. 175)
Os folhetos utilizados na construção arquitetônica da obra estão da seguinte maneira
organizados segundo Lígia Vassalo:
O primeiro ato se baseia em O enterro do cachorro, fragmento do folheto O
dinheiro, de Leandro Gomes de Barros; o segundo na História do cavalo que
defecava dinheiro, do mesmo artista; o terceiro amalgama O castigo da soberba, de
Anselmo Vieira de Souza, e A peleja da Alma, de Silvino Pirauá Lima, ambos
retomados pelo entremez de Suassuna O castigo da soberba. Provém ainda do
romanceiro a cantiga de Canário Pardo utilizada como invocação de João Grilo a
Maria; o nome Compadecida e a estrofe com que o Palhaço encerra o espetáculo
pedindo dinheiro são tomados ao folheto O castigo da soberba.(VASSALO apud
CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA, 2000, p. 156)
A peça foi construída baseada em entremezes, mas de forma tão arquitetônica como
afirma Idelette Muzarte Fonseca em texto publicado no Cadernos de Literatura Brasileira:
A reescritura de um folheto, em forma de entremez ou em peça de teatro, representa
a prática mais freqüente de Ariano Suassuna. A reescritura permanece pontual e
delimitada (um folheto transforma-se em um ato), mas introduz um processo de
recriação do qual só manifesta a primeira etapa. Assim reescreve-se folheto no
entremez na peça. Uma reescritura esconde a outra, e várias outras, admitindo-se,
herdeiro as vozes tradicionais, o folheto é fruto da reescrituras e transformações
textuais sucessivas. (FONSECA apud CADERNOS DE LITERATURA
BRASILEIRA, 2000, p. 100)
23
Esta reescritura de empréstimo popular e fusão de folhetos, torna-se um novo texto
adquirindo uma dimensão ampla, mas inacabada, aberta a retomadas e transformações sem
perder um ar de originalidade como bem aborda Idelette Muzarte Fonseca:
Eis, talvez, a mais profunda originalidade de Ariano Suassuna e de alguns artistas do
Movimento Armorial: tomaram emprestada da literatura popular, além dos seus
temas e dos seus modelos poéticos, uma estética nova, movimento que não imobiliza
a obra, convertendo-a em “obra-prima” imutável, numa estética que se alimenta de
suas próprias obras tanto quanto das obras alheias, num ciclo infinito de retomadas e
empréstimos. (FONSECA, apud CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA,
2000, p. 101)
3.1 – Primeiro ato: o enterro do cachorro
O Auto da Compadecida tem em seu início, após a apresentação do Palhaço sobre a
história, a discussão entre João Grilo e Chicó se o padre benzeria ou não o cachorro da mulher
do padeiro. Então Chicó conta uma história fantasiosa de um cavalo bento que ele possuía.
Quando questionado sobre fatos irreais, Chicó responde com sua célebre frase “Não sei, só sei
que foi assim.”
A mulher do padeiro possui um cachorro que está à beira da morte. O padeiro temendo
perder a mulher que ameaçou largá-lo caso o cão morresse, deixa sob os cuidados da dupla
João Grilo e Chicó o apelo ao padre para que o cachorro fosse benzido. O padre se recusa a
benzer o bicho e é questionado por João Grilo que afirma que o motor do Major Antônio
Moraes (importante, rico morador da cidade) foi benzido e que não havia nada demais benzer
um cachorro. Para convencer o padre, João Grilo diz que o bicho também é de propriedade do
rico e poderoso Major e esta afirmação faz com que o padre mude de idéia. Tudo parecia
caminhar para um desfecho satisfatório, porém o Major aparece na igreja. Para tentar
despistar a mentira arquitetada, João Grilo tem outra de suas idéias: dizer ao Major que o
padre está insano. A confusão está armada, o Antônio Moraes pede benção ao seu filho ao
passo que o padre acha que a benção é para o cachorro. Após a confusão Antônio sai da igreja
muito nervoso. Nesse momento João Grilo diz que queria um favor do padre para que ele
benzesse o cachorro de seu patrão, ele recusa-se e teme a presença do bispo vendo tal feito. A
mulher do padeiro e seu marido ameaçam o padre de suspender todos os donativos dados á
igreja caso o cão não seja benzido. O sacristão aparece, presencia a confusão e o bicho morre
no pátio da igreja. João Grilo pede autorização ao patrão para resolver o impasse desde que
houvesse uma quantia em mãos, ao passo que o padeiro, então, dá liberação ao nosso amarelo
astuto.
Nesse momento cruzamos a história de Suassuna com a literatura de cordel
precisamente com o Testamento do cachorro publicado no folheto intitulado “Dinheiro”
escrito por Leandro Gomes de Barros (1865 – 1918) e sobre essa fonte, Ariano comenta:
Quando publiquei o Auto da Compadecida, Raimundo Magalhães Júnior, em erudito
e arguto artigo, chamou atenção para o fato de que essa história que eu julgava
anônima e puramente nordestina, já fora usada, numa versão parecida, por Le Sage,
no Gil Blás de Santillana. Punha ele em dúvida a autoria popular da nossa versão,
coisa em que se enganava, como se vê, porque, como agora se sabe, ela é de
24
Leandro Gomes de Barros. (...) Por outro lado, depois o Auto da Compadecida foi
traduzido e encenado na Europa, os professores Jean Girodon e Enrique Martínez
López – um francês, o outro espanhol – mostraram que a história é muito mais
antiga do que Le Sage; vem do norte da África, tendo passado à Península Ibérica
com os árabes, e sendo muito comum nos fabulários e novelas picarescas ibéricas,
assim como, na França, por Ruteboeuf. (SUASSUNA apud SANTIAGO, 2007, p.
260)
O cordel de Leandro Gomes de Barros é composto por sextilhas e seu início trata da
grandeza da importância do dinheiro que compra a justiça, a polícia, testemunhas, jurados, dá
poder a iletrados, a fracos, dá aos feios a beleza estonteante. Segue-se de sextilhas que
assemelham-se ao caso do enterro do cachorro narrado no auto. Abaixo segue um
comparativo entre o cordel e o trecho da obra:
Nas páginas 5 a 8 narra-se a história do testamento do cachorro escrito por Leandro
Gomes de Barros (1865 – 1918)
Um inglês tinha um cachorro
De uma grande estimação
Morreu o dito cachorro
E o inglês disse então:
Mim enterra esse cachorra
Inda que gaste um milhão.
Foi ao vigário e lhe disse:
_ Morreu o cachorra de mim
E urubu do Brasil
Não poderá dar-lhe fim...
- Cachorro deixou dinheiro?
Perguntou o vigário assim.
Mim quer enterrar cachorra!
Disse o vigário: - Oh! Inglês
Você pensa que isto aqui
É o país de vocês?
Disse o inglês: - O Cachorra
Gasta tudo desta vez. (BARROS, 2005, p. 5)
O testamento do cachorro
Auto da Compadecida
Ele antes de morrer
Um testamento aprontou
Só quatro contos de réis
Para o vigário deixou.
Antes do inglês findar
O vigário suspirou.
JOÃO GRILO: Estou dizendo que, se é desse jeito
vai ser difícil cumprir o testamento do cachorro, na
parte do dinheiro que ele deixou para o padre e
para o sacristão.
SACRISTÃO: Que é isso? Cachorro com
testamento?
JOÃO GRILO: Esse era um cachorro inteligente.
Antes de morrer, olhava para a torre da igreja toda
vez que o sino batia. Nesses últimos tempos, já
doente pra morrer, botava uns olhos bem
compridos pr’os lados daqui, latindo na maior
tristeza. Até que meu patrão entendeu, com a
minha patroa, é claro, que ele queria ser abençoado
Coitado! Disse o vigário,
De que morreu esse pobre?
Que animal inteligente!
Que sentimento tão nobre!
Antes de partir do mundo
Fez-me presente do cobre.
25
Leve-o para o cemitério,
Que vou encomendar
Isto é, traga o dinheiro
Antes dele se enterrar,
Estes sufrágios fiados
É factível não salvar.
E lá chegou o cachorro
O dinheiro foi na frente,
Teve momento o enterro,
Missa de corpo presente,
Ladainha e seu rancho
Melhor do que certa gente.
Mandaram dar parte ao bispo
Que o vigário tinha feito
O enterro do cachorro,
Que não era de direito
O bispo aí falou muito
Mostrou-se mal satisfeito.
Mandou chamar o vigário
Pronto, o vigário chegou
As ordens, sua excelência...
O bispo lhe perguntou:
Então que cachorro foi,
Que seu vigário enterrou?
Foi um cachorro importante
Animal de inteligência
Ele antes de morrer
Deixou à vossa excelência
Dois contos de réis em ouro...
Se errei, tenha paciência.
Não foi um erro, Sr. Vigário,
Você é um bom pastor
Desculpe eu incomodá-lo
A culpa é do portador,
Um cachorro como este
Já vê que é merecedor.
O informante disse-me
Que o caso tinha se dado
E eu julguei que isso fosse
Um cachorro desgraçado,
Ele lembrou-se de mim?
Não o faço desprezado. (BARROS, 2005, p. 6 - 8)
pelo padre e morrer como cristão. Mas nem assim
ele sossegou. Foi preciso que o patrão prometesse
que vinha encomendar a bênção e que, no caso
dele morrer, teria um enterro em latim. Que em
troca do enterro acrescentaria no testamento dele
dez contos de réis para o padre e três para o
sacristão.
SACRISTÃO: Que animal inteligente! Que
sentimento nobre. E o testamento? Onde está?
(...)
SACRISTÃO: Mas eu não disse que fica tudo por
minha conta?
PADRE: Por sua conta como, se o vigário sou eu?
SACRISTÃO: O vigário é o senhor, mas quem
sabe quanto vale o testamento sou eu.
PADRE: Hein? O testamento?
SACRISTÃO: Sim, o testamento.
PADRE: Mas que testamento é esse?
SACRISTÃO: O testamento do cachorro.
PADRE: E ele deixou testamento?
PADEIRO: Só para o vigário deixou dez contos.
PADRE: Que cachorro inteligente! Que
sentimento notável.
JOÃO GRILO: E um cachorro desse ser comido
pelos urubus! É a maior das injustiças.
PADRE: Comido, ele? De jeito nenhum. Um
cachorro desse não pode ser comido pelos urubus!
PADRE: Mas que jeito pode-se dar nisso? Estou
com tanto medo do bispo! E tenho medo de
cometer um sacrilégio!
SACRISTÃO: Que é isso? Não se trata de nenhum
sacrilégio. Vamos enterrar uma pessoa altamente
estimável, nobre e generosa, satisfazendo, ao
mesmo tempo, duas outras pessoas altamente
estimáveis, nobres, e, sobretudo, generosas. Não
vejo mal nenhum nisso!
(...)
SACRISTÃO: Se é assim, vamos ao enterro.
Como se chamava o cachorro?
MULHER: Xaréu.
SACRISTÂO: Xaréu. Absolve, Domine, animas
omnium fidelium defunctorum ab omni vinculi
delictorum.
TODOS: Amém. (SUASSUNA, 2005, p. 48 - 55)
Sobre o testamento do cachorro além do mencionado francês Ruteboeuf há menção em
latim como explica Lígia Vassalo:
Vemo-lo presente em textos desde a Idade Média até o século XX. As mais antigas
incidências medievais mostram-no em francês, no Testament de l’âne de Ruteboeuf
(século XIII), e em latim, na Facetia XXXVI do toscano Poggio de Bracciolini
(1380 – 1459), sob o título De sacerdote qui caniculum sepelivit. É registrado
também no número 96 das Cent nouvelles nouvelles, coletânea de novelas escritas
26
por vários autores franceses e publicada em 1455. (VASSALO apud CADERNOS
DE LITERATURA BRASILEIRA, 2000, p. 177)
Ao observar as duas histórias aqui analisadas, vê-se que trata-se de dois gêneros
textuais diferentes onde os versos do cordel unem-se para contar a história do testamento do
cachorro a qual também é narrada na obra de Suassuna, porém construída como peça teatral.
Como visto, as semelhanças são notáveis e torna-se visível a construção do primeiro ato da
peça Auto da Compadecida baseando-se neste folheto. Primeiro nos deparamos com um
cachorro pertencente a pessoas influentes por seus status financeiros. Outro aspecto observado
na análise é que os servos da igreja concordam em enterrar o cachorro após descobrirem que
lucrarão com o feito, fato que os fazem elogiar o animal. Por fim a ladainha durante o enterro
também pode ser observada nos dois gêneros assim como a preocupação de o cachorro ser
devorado por urubus.
3.2 – Segundo ato: o gato que “descomia” dinheiro, a bexiga com sangue e a morte de
João Grilo
O segundo ato da peça Auto da Compadecida, inicia-se com a conversa entre o padre e
o bispo sobre as reclamações de Antônio Moraes quanto a forma com que foi tratado pelo
primeiro que afirma que a culpa é de João Grilo. Na cena que se segue entra João Grilo e
Chicó. Quando o Bispo descobre que houve um enterro de cachorro em latim, a confusão está
instaurada, mas dura pouco até João Grilo contar a história do testamento do cachorro e dizer
que o bicho deixou também uma quantia para o bispo que dotado de ganância esquece a
improbidade cometida pelo sacristão. Ao sair da igreja, João Grilo conta a Chicó uma de suas
novas idéias.
Neste momento a narrativa depara-se com outra inspiradora fonte advinda com a
leitura de folhetos, e deu-se também com Leandro Gomes de Barros em sua obra intitulada O
cavalo que defecava dinheiro. O narrador inicia dizendo que na cidade de Macaé existia um
duque ambicioso que possuía um compadre pobre que sustentava seus filhos com
dificuldades. Tal compadre foi trabalhar em engenhos distantes e no retorno trouxe um cavalo
que nada valia. Vendo as dificuldades financeiras e tendo apenas o velho cavalo que já não
suportava mais trabalhar, teve uma idéia: conseguiu na venda três moedas e colocou-as
secretamente no “fiofó” do pobre animal e saiu dizendo que estava rico, pois era dono de um
cavalo que defecava dinheiro. Essa artimanha despertou o interesse do duque que foi visitá-lo
para admirar de perto a história que ouvira. Chegou à casa do compadre como quem nada
queria e foi convidado a ver a proeza do cavalo que defecava dinheiro. Impressionado ao ver
moedas nas fezes do animal, o duque sugere que o compadre o venda. O dono do bicho ganha
seis contos de réis e o duque sai feliz por sua nova aquisição. O novo ambicioso dono do
cavalo o alimenta fartamente e o acompanha várias vezes ao dia, mas logo percebe que fora
enganado por seu compadre pobre. Segue abaixo uma comparação entre o trecho do cordel de
Leandro Gomes de Barros e o trecho do segundo ato da peça de Suassuna:
O cavalo que defecava dinheiro
Auto da compadecida
(...)
Se vendo o compadre pobre
(...)
JOÃO GRILO: Eu não lhe disse que a fraqueza da
27
Naquela vida privada
Foi trabalhar nos engenhos
Longe de sua morada
Na volta trouxe um cavalo
Que não servia pra nada
Disse o pobre à mulher:
Como havemos de passar?
O cavalo é magro e velho
Não pode mais trabalhar
Vamos inventar um “quengo”
Pra ver se o querem comprar
Foi na venda de lá trouxe
Três moedas de cruzado
Sem dizer nada a ninguém
Para não ser censurado
No fiofó do cavalo
Foi o dinheiro guardado
Do fiofó do cavalo
Ele fez um mealheiro
Saiu dizendo: sou rico
Inda mais que um fazendeiro
Porque possuo um cavalo
Que só defeca dinheiro.
Quando o duque velho soube
Que ele tinha esse cavalo
Disse pra velha duquesa:
Amanhã vou visitá-lo
Se o animal for assim
Faço o jeito de comprá-lo
Saiu o duque vexado
Fazendo que não sabia,
Saiu percorrendo as terras
Como quem não conhecia
Foi visitar a choupana,
Onde o pobre residia.
Chegou salvando o compadre
Muito desinteressado
Compadre, como lhe vai?
Onde tanto tem andado?
Há dias que não lhe vejo
Parece está melhorado...
-É muito certo compadre
Ainda não melhorei
Porque andava por fora
Faz três dias que cheguei
Mas breve farei fortuna
Com um cavalo que comprei
- se for assim, meu compadre
Você está muito bem
É bom guardar o segredo
Não conte nada a ninguém
Me conte qual a vantagem
mulher do patrão era bicho e dinheiro?
CHICÓ: Disse.
JOÃO GRILO: Pois vou vender a ela, pra tomar
lugar do cachorro, um gato maravilhoso que
descome dinheiro!
CHICÓ: Descome, João?
JOÃO GRILO: Sim, descome, Chicó, ao contrário.
CHICÓ: Está doido, João! Não existe essa
qualidade de gato.
(...)
JOÃO GRILO: Por uma pessoa cuja fraqueza é
dinheiro e bicho, não vejo nada melhor do que um
bicho que descome dinheiro.
CHICÓ: João, não é duvidando não, mas como é
que esse gato descome dinheiro?
JOÃO GRILO: É isso que é preciso combinar com
você. A mulher vem já pra cá, cumprir o
testamento. Eu deixei o gato amarrado ali fora.
Você vá lá e enfie essas pratas de dez tostões no
desgraçado do gato, entendeu?
CHICO: Entendi demais (Vai sair, mas volta). Ó
João!!
JOÃO GRILO: Que é?
CHICÓ: E cabe?
JOÃO GRILO: Sei lá! Se não couber, bote de
cinco tostões, entendeu?
CHICÓ: Entendi.
JOÃO GRILO: Quando eu gritar por você, venha,
me entregue o gato e deixe o resto por minha
conta.
CHICÓ: E o que é que ganho nisso tudo?
JOÃO GRILO: Uma parte no testamento do
cachorro.
(...)
Chicó faz uma saudação à mulher, que vem
entrando, com dois pacotinhos de dinheiro e sai.
JOÃO GRILO: Como vai a senhora? Já está mais
consolada?
MULHER: Consolada? Como, se além de perder
meu cachorro, ainda tive de gastar treze contos
para ele se enterrar?
JOÃO GRILO: Está aí, o dinheiro?
MULHER: Está. Entregue ao padre e ao sacristão.
JOÃO GRILO: Um momento. O que é que tem
escrito aqui?
MULHER: Sacristão.
JOÃO GRILO: E aqui?
MULHER: Padre.
JOÃO GRILO: Pois por favor escreva aqui “bispo
e padre”.
MULHER: “Bispo e padre” ? Por quê?
JOÃO GRILO: Porque houve um pequeno arranjo
e o bispo também teve que entrar no testamento.
MULHER: Que complicação! E se ao menos eu
lucrasse alguma coisa... Mas perdi foi meu
cachorro.
JOÃO GRILO: Quem não tem cão caça com gato.
MULHER: Como é?
JOÃO GRILO: Quem, não tem cão caça com gato
e eu arranjei um gato que é uma beleza para a
28
Que este seu cavalo tem
Disse o pobre: ele está magro
Só tem o osso e o couro,
Porém tratando-se dele
Meu cavalo é um tesouro
Basta dizer que defeca
Níquel, prata, cobre e ouro
Aí chamou o compadre
E saiu muito vexado,
Para o lugar onde tinha
O cavalo defecado
O duque ainda encontrou
Três moedas de cruzado,
Então exclamou o velho:
Só pude achar essas três
Disse o pobre: ontem á tarde
Ele botou dezesseis
Ele já tem defecado,
Dez mil réis mais de uma vez
Enquanto ele está magro
Me serve de mealheiro
Eu tenho tratado dele
Com bagaço do terreiro
Porém depois dele gordo
Não há quem vença o dinheiro
Disse o velho: meu compadre
Você não pode tratá-lo,
Se for trabalhar com ele
E com certeza matá-lo
O melhor que você faz
É vender-me este cavalo
- Meu compadre, este cavalo
Eu posso negociar,
Só se for por uma soma
Que dá para eu passar
Com toda minha família,
E não precise trabalhar.
O velho disse ao compadre:
Assim não é que se faz
Nossa amizade é antiga
Desde os tempos de seus pais
Dou-lhe seis contos de réis
Acha pouco, inda quer mais?
- Compadre, o cavalo é seu
Eu nada mais lhe direi,
Ele, por este dinheiro
Que agora me sujeitei
Para mim não foi vendido,
Faça de conta que dei
O velho pela ambição
Que era descomunal,
Deu-lhe seis contos de réis
senhora.
MULHER: Um gato?
JOÃO GRILO: Um gato.
MULHER: E é bonito?
JOÃO GRILO: Uma beleza!
MULHER: Ai, João traga pra eu ver! Chega me dá
uma agonia! Traga, João, já estou gostando do
bichinho. Gente, não, é povo que não tolero, mas
bicho me dá gosto.
JOÃO GRILO: Pois então vou buscá-lo.
MULHER: Espere. Sabe do que mais, João? Não
vá buscar o gato que isso só me traz aborrecimento
e despesa. Não viu o que aconteceu com o
cachorro? Terminei tendo que fazer testamento.
JOÃO GRILO: Ah, mas aquilo é porque foi seu
cachorro. Com meu gato é diferente...
MULHER: Diferente por quê?
JOÃO GRILO: Porque, em vez de dar despesa,
esse gato dá lucro.
MULHER: Fora cabra, vaca, ovelha e cavalo,
bicho que dá lucro não existe!
JOÃO GRILO: Não existe se não... Eu fico meio
encabulado de dizer!
MULHER: Que é isso, João, você está em casa!
Diga!
JOÃO GRILO: É que o gato que eu lhe trouxe
descome dinheiro.
MULHER: Descome dinheiro?
JOÃO GRILO: Descome sim.
MULHER: Essa, eu só acredito vendo!
JOÃO GRILO: Pois vai ver, Chicó!
MULHER: Ah, e é história de Chicó? Logo vi!
JOÃO GRILO: Nada de história de Chicó, mas foi
ele quem guardou o bicho, Chicó!
CHICÓ: Tome seu gato. Eu não tenho nada a ver
com isso.
JOÃO GRILO: Está aí o gato.
MULHER: E daí?
JOÃO GRILO: É só tirar o dinheiro.
MULHER: Pois tire!
JOÃO GRILO: Tire aí, Chicó!
CHICÓ: Ei não, tire você!
JOÃO GRILO: Deixe de luxo, Chicó, em ciência
tudo é natural.
CHICÓ: Pois se é natural, tire.
JOÃO GRILO: (Passa a mão no traseiro do gato e
tira uma prata de cinco tostões.) Esta aí, cinco
tostões que o gato lhe dá de presente.
MULHER: Muito obrigada, mas se você não se
zanga quero ver de novo.
JOÃO GRILO: De novo?
MULHER: Vi você passar a mão e sair com
dinheiro, mas agora quero ver é o parto.
JOÃO GRILO: O parto?
MULHER: Sim, quero ver o dinheiro sair do gato.
JOÃO GRILO: Pois então veja.
MULHER: (Depois da nova retirada) Nossa
Senhora, é mesmo! João, me arranje esse gato pelo
amor de Deus!
JOÃO GRILO: Arranjar é fácil, agora, pelo amor
29
Tudo em moeda legal
Depois pegou no cabresto
E foi puxando o animal
Quando ele chegou em cada
Foi gritando no terreiro:
Eu sou o homem mais rico
Que habita o mundo inteiro
Porque possuo um cavalo
Que só defeca dinheiro
Pegou o dito cavalo
Botou na estrebaria,
Milho, farelo e alface
Era o que ele comia
O velho duque ia lá,
Dez, doze vezes por dia
Logo no primeiro dia
O velho desconfiou
Porque na presença dele
O cavalo defecou
Ele procurou dinheiro
Nem um tostão encontrou
Aí o velho zangou-se
Começou logo a falar:
Como é que meu compadre
Se atreve a me enganar?
Eu quero ver amanhã
O que ele vai me contar
Porém o compadre pobre,
Bicho do quengo lixado,
Fez depressa outro plano
Inda mais bem arranjado
Esperando o velho duque
Quando viesse zangado.
(BARROS, 1999, p. 1 – 5)
de Deus é que não pode ser, porque sai muito
barato. Amor de Deus é coisa que eu tenho, dê ou
não lhe dê o gato.
MULHER: Quer dizer que não tem jeito de eu
arranjar esse gato?
JOÃO GRILO: Tem um jeito, e é até fácil!
MULHER: Pois diga qual é, João.
JOÃO GRILO: Deixe eu entrar no testamento do
cachorro.
MULHER: Pois você entra! Por quanto vendo o
gato?
JOÃO GRILO: Um conto, está bom?
MULHER: Está não, está caro.
JOÂO GRILO: Mas por um gato que descome
dinheiro!
MULHER: Já fiz a conta, vou levar dois mil dias
só pra tirar o preço.
JOÃO GRILO: Mas ele descome mais de uma vez
por dia, a senhora não viu?
MULHER: Mas ele pode morrer! Só dou
quinhentos e, se você não aceitar será demitido da
padaria.
JOÃO GRILO: Está certo, fica pelos quinhentos.
MULHER: Tome lá. Passe o gato, Chicó. Meu
Deus, que gatinho lindo! Agora a coisa é outra,
tenho um filho de novo e vou tirar o prejuízo. (Sai
contentíssima)
CHICÓ: João, adeus, eu vou embora.
JOÃO GRILO: Nada disso, tome lá a metade do
dinheiro e deixe de ser mole!
CHICÓ: Homem, eu não tenho coragem de
continuar sempre, é melhor fugir logo, enquanto
tudo está em paz.
JOÃO GRILO: Não adianta Chicó, você já entrou
na história e agora é tarde porque a mulher
descobre já. Quantas pratas você conseguiu meter?
CHICÓ: Três.
JOÃO GRILO: Então o negócio estoura já!
(SUASSUA, 2005, p. 71 – 84)
Sobre a história do cavalo que defeca dinheiro Lígia Vassalo afirma:
A História do Cavalo que defecava dinheiro, de Leandro Gomes de Barros, fornece
ao Auto da Compadecida um dos temas mais recorrentes da literatura universal.
Martínez López encontra 105 versões, sendo 27 hispânicas, 62 não hispânicas, 16
orientais e africanas. Encontra-se ainda na cena 2, segunda parte da comédia Os
encantos de Medea (1735), de Antônio José da Silva, o Judeo na qual se menciona
“um burro que caga dinheiro”.
De forma edulcorada o tema reaparece no conto infantil sobre a “Galinha dos ovos
de ouro” ou “João e o pé de feijão”, de Grimm, e em “pele de asno”, de Perrault. Em
ambas as histórias, o tópico do mundo as avessas transforma o desprezível e
corriqueiro produto fecal no apreciadíssimo e raro metal. O burro que defeca ouro
faz parte do bestiário maravilhoso, associado a um cunho satírico: o extraordinário
poder de “descomer” o metal precioso. O tema pertence à antiga tradição de velhas
províncias francesas e apresenta versões diferentes, com outros nomes. (VASSALO
apud CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA, 2000, p. 178)
30
De fato as semelhanças entre o Auto da Compadecida e O cavalo que defecava
dinheiro são visíveis, o compadre e João Grilo são pobres e aproveitam-se da ganância do
duque e da mulher do padeiro para lucrar com uma mentira de que os bichos “descomiam”
dinheiro. Mas o paralelo entre as duas obras não termina com a história dos bichos que davam
lucro aos seus donos por defecarem dinheiro, continuamos com outra artimanha dos astutos: a
borrachinha ou bexiga de sangue. Segundo Suassuna:
Eu julgava a história da borrachinha de sangue- transformada, por mim, no Auto da
Compadecida, na da bexiga do cachorro puramente nordestina. Quando a peça foi
montada na Espanha, o escritor Pedro Laín Entralgo, da Real Academia Espanhola,
escreveu um artigo dizendo entre outras coisas a respeito do meu ato: “Não é só
gilvicentino que existe nele; é, também, num sentido muito amplo e muito profundo
do termo, cervantinismo.” Fiquei sem saber exatamente a que se referia o ilustre
espanhol, com tanta honra para mim. Até que um dia um amigo meu, o Professor
Murilo Guimarães, me emprestou um livro de Thomas Mann, uma espécie de diário,
no qual havia as notas tomadas pelo escritor alemão durante a leitura do Dom
Quixote. Quando chega no episódio das bodas de Camacho – capítulo de Cervantes
– aparece uma história muito parecida com a da borrachinha. Thomas Mann diz que,
lendo tal capítulo do Dom Quixote, teve a impressão de história já conhecida. Ora,
era a primeira vez que ele lia o livro de Cervantes. Então, forçando a memória,
recordou-se que essa história estava na antiqüíssima novela de Apuleio, O asno de
ouro. O que aliás – digo agora -, não é de estranhar, uma vez que O asno de ouro e o
Satíricon – assim como os contos de Boccacio – além de povoados de contos e
legendas orais e populares do norte da África e das penínsulas mediterrâneas, estão
nas vertentes da novela picaresca ibérica, uma das fontes em que bebeu Cervantes
para fazer Dom Quixote. (SUASSUNA apud SANTIAGO, 2007, p. 276)
A história da borrachinha aparece tanto no Auto da Compadecida quanto na obra de
Leandro Gomes de Barros. O pobre e o João Grilo com a mente sempre a trabalhar para
conseguir melhorar a condição de vida precária a que estão submetidos, elaboram outro plano.
O pobre vê-se com uma idéia que lhe renderá uma quantia do duque previamente enganado
com a história do cavalo que defecava dinheiro, João Grilo aproveitou a morte do cachorro e
arrancou-lhe a bexiga já esperando que ela servisse a seu novo plano. O padeiro descobriu a
verdade sobre o gato e foi até a igreja onde estava a dupla Chicó e João Grilo para tirar
satisfação quanto as mentiras contadas a sua esposa. Quando estavam na igreja a trocar farpas
sobre o comportamento adotado por cada um, ouvem-se tiros fora da casa santa ao passo que
entra a mulher do padeiro e conta que a cidade fora invadida por Severino, um cangaceiro
sanguinário que invade a igreja e promete matar o primeiro que tentar a fuga, mas a mulher do
padeiro lhe desperta a ira ao tentar seduzi-lo mesmo sendo casada. O padeiro lhe oferece
emprego em sua padaria, mas não acalma Severino que pede que todos deixem a igreja para
matá-los antes do retorno da polícia que abandonou a cidade. O padeiro pediu que a mulher
fosse morta primeiro por sua traição, mas seu marido se arrependeu e ao perceber que
Severino ia matá-la de fato, abraçou-a e morreram com um só tiro. A próxima vítima seria
João Grilo e aí a história da borrachinha muda o rumo dos fatos. Este trecho das obras
também está em sintonia:
O cavalo que defecava dinheiro
Auto da compadecida
31
O pobre foi na farmácia
Comprou uma borrachinha
Depois mandou encher ela
Com sangue de uma galinha
E sempre olhando a estrada
Pra ver se o velho vinha.
Disse o pobre à mulher:
Faça o trabalho direito
Pegue esta borrachinha
Amarre em cima do peito
Para o velho não saber
Como o trabalho foi feito
Quando o velho aparecer
Na volta daquela estrada
Você começa a falar
Eu grito: oh mulher danada!
Quando ele estiver bem perto
Eu lhe dou uma facada
Porém eu dou-lhe a facada
Em cima da borrachinha
E você fica lavada
Com o sangue da galinha
Eu grito: arre danada!
Nunca mais comes farinha!
Quando ele ver você morta
Parte para me prender,
Então eu digo para ele:
Eu dou jeito dela viver
O remédio tenho aqui,
Faço para o senhor ver.
Eu vou buscar a rabeca
Começo logo a tocar
Você então se remexa
Como quem vai melhorar
Com pouco diz: estou boa
Já posso me levantar.
Quando findou-se a conversa
Na mesma ocasião
O velho ia chegando
Aí travou-se a questão
O pobre passou-lhe a faca,
Botou a mulher no chão.
O velho gritou a ele
Quando viu a mulher morta:
Esteja preso: bandido!
E tomou conta da porta
Disse o pobre: vou curá-la
Pra que o senhor se importa?
- O senhor é um bandido
Infame de cara dura
Todo mundo apreciava
Esta infeliz criatura
Depois dela assassinada,
SEVERINO: Muito bem como é o nome de Vossa
Senhoria?
JOÃO GRILO: Minha Senhoria não tem nome
nenhum, porque não existe. Pobre tem lá senhoria,
só tem desgraça!
SEVERINO: Diga então o nome de Vossa
Desgracência!
JOÃO GRILO: João Grilo.
SEVERINO: Chega então a vez de Sua
Desgracência, o Senhor João Grilo, o amarelo mais
amarelo que já tive a honra de matar. Pode ir, a
casa é sua.
JOÃO GRILO: Um momento. Antes de morrer,
quero lhe fazer um grande favor.
SEVERINO: Qual é?
JOÃO GRILO: Dar-lhe esta gaita de presente.
SEVERINO: Uma gaita? Pra que eu quero uma
gaita?
JOÃO GRILO: Pra nunca mais morrer dos
ferimentos que a polícia lhe fizer.
SEVERINO: Que conversa é essa? Já ouvi falar
de chocalho bento que cura mordida de cobra, mas
de gaita que cura ferimento de rifle, é a primeira
vez.
JOÃO GRILO: Mas cura! Essa gaita foi benzida
por Padre Cícero, pouco antes de morrer!
SEVERINO: Eu só acredito vendo.
JOÃO GRILO: Pois não. Queira Vossa Excelência
me ceder seu punhal.
SEVERINO: Olhe lá!
JOÃO GRILO: Não tenha cuidado. Pode apontar o
rifle e se eu tentar alguma pra seu lado, queime.
SEVERINO: Aponte o rifle pra esse amarelo, que
é desse povo que eu tenho medo! (Entrega o
punhal a João, sob a mira do Cangaceiro.) E
agora?
JOÃO GRILO: Agora vou dar uma punhalada ma
barriga de Chicó.
CHICÓ: Na minha não.
JOÃO GRILO: Deixa de moleza, Chicó. Depois eu
toco na gaita e você fica vivo de novo!
(Murmurando a Chicó.) A bexiga, a bexiga!
Acena para Chicó, mostrando a barriga e
lembrando a bexiga, mas Chicó não entende.
CHICÓ: Muito obrigado, mas eu não quero não,
João.
JOÃO GRILO: (Novos acenos) Mas eu já não
disse que toco na gaita?
CHICÓ: Então vamos fazer o seguinte: você leva a
punhalada e quem toca na gaita sou eu.
JOÃO GRILO: Homem, sabe do que mais? Vamos
deixar de conversa. Tome lá! Morra, desgraçado!
(Dá uma punhalada na bexiga. Com a sugestão,
Chicó cai ao solo, apalpa-se, vê a bexiga e só
então entende. Ele fechou os olhos e finge que
morreu.)
JOÃO GRILO: Está vendo o sangue?
SEVERINO: Estou. Vi você dar a facada, disso
nunca duvidei. Agora, quero ver é você curar o
homem.
32
O senhor diz que tem a cura?
- Compadre, não admito
O senhor dizer mais nada,
Não é crime se matar
Sendo a mulher malcriada
E mesmo com dez minutos,
Eu dou a mulher curada
Correu foi ver a rabeca
Começou logo a tocar
De repente o velho viu
A mulher se endireitar
E depois disse: estou boa,
Já posso me levantar
O velho ficou suspenso
De ver a mulher curada
Porém como estava vendo
Ela muito ensangüentada
Correu ela, mas não viu,
Nem o sinal da facada.
O pobre entusiasmado
Lhe disse: já conheceu
Quando esta rabeca estava
Na mão de quem me vendeu
Tinha feito muitas curas
De gente que já morreu
No lugar onde eu estiver
Não deixo ninguém morrer,
Como eu adquiri ela
Muita gente quer saber
Mas ela me está tão cara
Que não me convém dizer
O velho que tinha vindo
Somente propor questão,
Por que o cavalo velho
Nunca botou um tostão
Quando viu a tal rabeca
Quase morre de ambição.
Compadre, você desculpe
De eu ter tratado assim
Porque agora estou certo
Eu mesmo fui o ruim
Porém a sua rabeca
Só serve bem para mim.
Mas como eu sou um homem
De muito grande poder
O senhor é um homem pobre
Ninguém quer o conhecer
Perca o amor da rabeca
Responda se quer vender?
Porque a minha mulher
Também é muito estouvada
Se eu comprar esta rabeca
JOÃO GRILO: É já. (Começa a tocar na gaita e
Chicó começa a se mover no ritmo da música,
primeiro uma mão, depois as duas, os braços, até
que se levanta se estivesse com dança de São
Guido.)
SEVERINO: Nossa Senhora! Só tendo sido
abençoada por Meu Padrinho Padre Cícero? Você
não está sentindo nada?
CHICÓ: Nadinha.
SEVERINO: E antes?
CHICÓ: Antes como?
SEVERINO: Antes de João tocar na gaita.
CHICÓ: Ah, eu estava morto.
SEVERINO: Morto?
CHICÓ: Completamente morto! Vi Nossa Senhora
e Padre Cícero no céu!
SEVERINO: Mas em tão pouco tempo? Como foi
isso?
CHICÓ: Não sei, só sei que foi assim.
SEVERINO: Que foi que Padre Cícero lhe disse?
CHICÓ: Disse: “Essa gaitinha que eu abençoei
antes de morrer. Vocês devem dá-la a Severino,
que precisa dela mais do que vocês.”
SEVERINO: Ah meu Deus, só podia ser Meu
Padrinho Padre Cícero mesmo! João, me dê essa
gaitinha!
JOÃO GRILO: Então me solte e solte Chicó.
SEVERINO: Não pode ser, João. Eu matei o
bispo, o padre, o sacristão, o padeiro e a mulher e
eles morreram esperando. Se eu não matar você,
vem-me perseguir de noite, porque será uma
injustiça com eles!
JOÃO GRILO: Mas mesmo eu lhe dando essa
gaita? Você repare que eu podia ter morrido sem
nada lhe dizer e você nunca saberia de nada,
porque ninguém ia dar importância a uma gaita!
SEVERINO: É verdade!
JOÃO GRILO: Eu lhe dei uma oportunidade de
conhecer Meu Padrinho Padre Cícero e você me
paga desse modo!
SEVERINO: Conhecer? Nunca tive essa sorte! Fui
uma vez ao Juazeiro só pra conhecer Meu
Padrinho, mas pensaram que eu ai atacar a cidade
e fui recebido a bala!
JOÃO GRILO: Mas pode conhecê-lo agora.
SEVERINO: Como?
JOÃO GRILO: Seu cabra lhe dá um tiro de rifle,
você vai visitá-lo. Então eu toco na gaita e você
volta.
SEVERINO: E se você não tocar?
JOÃO GRILO: Não está vendo que eu não faço
uma miséria dessa? Garanto que toco.
SEVERINO: Sua idéia é boa, mas por segurança
entregue a gaita a meu cabra (João entrega a
gaita.) Agora eu levo um tiro e vejo Meu
Padrinho?
JOÃO GRILO: Vê, não vê, Chicó?
CHICÓ: Vê demais, está lá, vestido de azul, com
uma porção de anjinhos em redor. Ele até estava
dizendo: “Diga a Severino que eu quero vê-lo.”
33
Dela não suporto nada
Se quiser teimar comigo,
Eu dou-lhe uma facada
Ela se vê quase morta
Já reconhece o castigo,
Mas eu com esta rabeca
Salvo ela do perigo
Ela daí por diante,
Não quer mais teimar comigo
Disse-lhe o compadre pobre:
O senhor faz muito bem,
Quer me comprar a rabeca
Não venderei a ninguém
Custa seis contos de réis,
Por menos, nem um vintém.
O velho muito contente
Tornou então a repetir:
A rabeca já é minha
Eu preciso a possuir
Ela para mim foi dada,
Você não soube pedir.
Pagou a rabeca e disse:
Vou já mostrar a mulher
A velha zangou-se e disse
Vá mostrar a quem quiser
Eu não quero ser culpada
Do prejuízo que houver.
SEVERINO: Ai, eu vou. Atire, atire!
CANGACEIRO: Capitão!
SEVERINO: Atire, cabra frouxo, eu não estou
mandando?
CANGACEIRO: Capitão!
SEVERINO: Atire!
JOÃO GRILO: Homem, atire logo pelo amor de
Deus!
O cangaceiro ergue o rifle.
SEVERINO: Espere (João, extremamente nervoso,
ergue os braços pra o céu.) Não se esqueça de
tocar na gaita.
CANGACEIRO: Não tenha cuidado, Capitão.
SEVERINO: Então atire.
O Cangaceiro ergue o rifle de novo e atira.
Severino cai e o Cangaceiro pega a gaita.
JOÃO GRILO: Impedindo-o. Não deixe pra tocar
depois! Deixe pobre de Severino conversar mais
um pedaço com Padre Cícero! Essas ocasiões são
poucas, é preciso aproveitar.
CANGACEIRO: Não, já deu tempo dele ver o
padre. (Toca na gaita.) Capitão! (Toca na gaita)
Capitão! Capitão! (Empurra Severino com o pé.)
Está morto!
JOÃO GRILO: Toque na gaita!
CANGACEIRO: Depois de tocar. Capitão! Ah,
Grilo amaldiçoado, você matou o capitão!
(SUASSUNA, 2005, p. 101- 109)
O senhor é mesmo um velho
Avarento e interesseiro
Que já fez do seu cavalo
Que defecava dinheiro?
Meu velho, dê-se a respeito,
Não seja tão embusteiro.
O velho que confiava
Na rabeca que comprou
Disse a ela: cale a boca
O mundo agora virou
Dou-lhe quatro punhaladas,
Já você sabe quem sou.
Ele findou as palavras
A velha ficou teimando,
Disse ele: velha dos diabos
Você ainda está falando?
Deu-lhe quatro punhaladas
Ela caiu arquejando
O velho muito ligeiro
Foi buscar a rabequinha,
Ele tocava e dizia:
Acorde, minha velhinha:
Porém a pobre da velha,
Nunca mais comeu farinha.
(BARROS, 1999, p. 5 – 10)
34
O duque avarento caiu num choro de arrependimento e jurando vingança ao pobre,
chamou dois capangas que fizeram um surrão e capturaram o pobre. Os capangas resolveram
parar para uma bebida, mas o astuto miserável começou a falar que não queria se casar com
uma mulher milionária. Essas palavras chamaram atenção de um boiadeiro que por ali
passava e mostrou desejo em casar-se com tal mulher. Os dois trocaram de lugar e o pobre
fugiu com a boiada. Os capangas ao retornarem, não perceberam que não era o pobre que
estava no surrão. O boiadeiro foi arremessado serra abaixo e sua vida foi tirada. Já o pobre
passou a negociar a boiada, deparou-se com o compadre e tratou de inventar outra história
dizendo que ao cair da serra jogado pelos capangas avistou muito dinheiro. A ambição do
duque novamente o fez acreditar nas palavras do pobre e pensando no montante que poderia
ganhar, pediu ao seu compadre para jogá-lo no mesmo local onde os capangas o haviam
jogado e o final chega com a morte do ganancioso duque.
Já na peça do Auto da Compadecida, a bexiga (idéia de João Grilo) fez com que Chicó
fosse dado como morto e levantasse ao som da gaita. Segundo Lígia Vassalo:
A falsa morte de Chicó, no Auto da Compadecida, vem do folheto O enterro do
cachorro, fragmento de O dinheiro, de Leandro Gomes de Barros. Mas já está
presente em Dom Quixote, no episódio das Bodas de Camacho, em que o jovem
enamorado finge suicídio para casar-se com a amada in extremis e ressuscita logo
após. No entanto o tema remonta a mais longe, pois no Asno de ouro Apuleio mostra
como a magia malfeita pode transformar Lúcio em burro – o que não deixa de ser
uma falsa morte. (VASSALO apud CADERNOS DE LITERATURA
BRASILEIRA, 2000, p. 177)
Uma das diferenças entre o cordel que narra a história do cavalo e o Auto da
Compadecida, está na escolha do bicho que na obra de Suassana trata-se de um gato. Outra
diferença está na aquisição da bexiga que foi comprada pelo pobre compadre no cordel de
Leandro Gomes de Barros, mas no auto foi feita a partir da bexiga do cachorro morto. Nos
versos do cordelista o artefato recheado de sangue foi feito para enganar o fazendeiro
conseguindo arrancar-lhe uma quantia em dinheiro. Já nosso astuto João Grilo teve a idéia
para tapear novamente a Mulher do Padeiro, mas serviu para enganar o cangaceiro Severino
de Aracaju levando-lhe a morte. Outra diferença está no fato de que a rabeca foi adquirida
pelo duque por ambição. Já Severino a desejou pela fé que tinha em Padre Cícero. Mas além
das disparidades, as semelhanças também são notáveis. Os personagens que tiveram a idéia de
utilizar a bexiga com sangue, contaram com ajuda de comparsas (a mulher do compadre e
Chicó) para que tudo saísse como arquitetado. Um objeto que aparece de forma distinta, mas
como o mesmo propósito é a rabeca que aparece no Auto da Compadecida como gaita.
Ambas têm o objetivo de “trazer a pessoa atingida de volta a vida.” A ideia de tirar proveito
da tal bexiga garantiu sucesso nas duas obras. Outra similaridade entre as histórias é que parte
dos personagens não são apresentados por nomes próprios e sim por suas funções exercidas
como o caso do duque, o compadre pobre e sua mulher frutos do cordel e do cangaceiro,
mulher do padeiro, padeiro e demais membros da igreja apresentados no Auto da
Compadecida.
35
O segundo ato de Auto da Compadecida continua com João Grilo atingindo o
Cangaceiro, se apossando do testamento do cachorro e contando a Chicó que preparara a
bexiga para a mulher do padeiro quando viesse reclamar o preço do gato, mas Severino na
verdade não estava morto e com dificuldades por conta do ferimento, atira em João Grilo que
morre e deixa Chicó em desespero.
3.3 – Terceiro ato: o julgamento
O terceiro ato da peça Auto da Compadecida, inicia-se com a saída do Palhaço e de
Chicó seguida pelo diálogo entre Severino, Padre, Bispo e João Grilo que observa a presença
do Demônio aguardando que todos pagassem por seus feitos. O Encourado entra em cena e
deixa a todos em pânico com sua rispidez e pede ao Demônio que os leve. Porém, João Grilo
reclama por ser levado sem ao menos ter direito ao julgamento e, apoiado pelos que seriam
escravos do Encourado, o “amarelo astuto” apela para Jesus que na peça atende pelo nome de
Manuel e desperta a curiosidade de João Grilo por ser negro. O Bispo chama atenção do
astuto pela falta de respeito com Jesus, mas este o repreende por todo o mundanismo e
soberba com que servia a igreja, mas não só o Bispo é repreendido por Manuel, João também
é advertido por seu preconceito. O Padre tenta parecer um ser humilde e correto desprovido
de racismo, mas é criticado pelo Encourado que afirma que o “santo homem” sempre batizava
primeiro os cristãos de pele branca. Manuel afirma que os interesses verdadeiros do Padre
eram o dinheiro e a posição social. Ao começar o julgamento, o Bispo é o primeiro e o
Encourado o acusa de ter enterrado o cachorro apenas por dinheiro, mas também é acusado
por outras artimanhas: falso testemunho ao citar o Código Canônico para justificar o enterro
do cachorro, arrogância, falta de humildade. O próximo a passar pelo julgamento foi o Padre
acusado pelos mesmos motivos que o Bispo com exceção da falsidade com relação ao Código
Canônico, mas ganhou ainda o título de preguiçoso. Seguindo os servidores da igreja, o outro
acusado a passar pelo julgamento foi o Sacristão que acompanhou o enterro do cachorro
objetivando o lucro, além de ser hipócrita, auto-suficiente e ladrão da própria igreja. O
Padeiro avarento e a Mulher adúltera foram considerados os “piores patrões” e tratavam
melhor o cachorro que o empregado João. Outro a ser julgado foi Severino por ser assassino.
Quando Manuel afirma que as acusações são sérias e que todos estão em maus lençóis,
os acusados se desesperam e João parte em defesa própria, mas o Encourado começou sua
acusação dizendo que o amarelo havia tramado a história do cachorro e do gato que descomia
dinheiro. João diz que só agiu dessa forma pela miséria que recebia dos patrões e por pena do
gato que estava abandonado. Ao ser acusado pela morte de Severino e seu cabra, João disse
que agiu em legítima defesa, mas não é poupado e o Encourado disse que o levará primeiro.
João observa o desespero de todos e com o apoio deles sai em busca de misericórdia dada por
Nossa Senhora.
O chamado de João Grilo, também é fruto da fonte inspiradora da literatura de cordel
onde suas palavras estão registradas na obra Violeiros do Norte e foi Artur Sales quem as
repetiu ao famoso cantador de Paraguaçu Canário Pardo assassinado por um rival. As palavras
desse trecho são repetidas no Auto da Compadecida:
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Violeiros do Norte
Auto da Compadecida
Valha-me, Nossa Senhora,
Mãe de Deus de Nazaré!
A vaca mansa dá leite,
A braba dá quando qué,
A mansa dá sossegada,
A braba alevanta o pé...
Já fui barco, fui navio
E hoje sou iscalé...
Já fui linha de meada,
Hoje sou carrité...
Já foi menino, sou home,
Só me falta ser muié...
Valha-me Nossa Senhora,
Mãe de Deus de Nazaré!
(PARDO apud MOTA, 1982, p. 38)
Valha-me Nossa Senhora, / Mãe de Deus de
Nazaré!
A vaca mansa dá leite, / a braba dá quando quer.
A mansa dá sossegada, / a braba levanta o pé.
Já fui barco, fui navio, / mas hoje sou escaler.
Já fui menino, fui homem,/ só me falta ser mulher.
(...)
Valha-me Nossa Senhora, / Mãe de Deus de
Nazaré. (SUASSUNA 2005, p. 114)
As disparidades entre as duas citações encontram-se em dois aspectos: o primeiro é
que Leonardo Mota registrava tudo obedecendo à oralidade como pode ser observado nas
palavras: “qué”, “iscalé”, “carrité” e “muié” e isso não se repete na obra de Suassuna. Outra
observação é quanto à ausência dos versos “Já fui linha de meada, hoje sou carrité” que não
são repetidos no Auto da Compadecida.
Nossa Senhora entra em cena e parte para interceder pelas almas julgadas e
condenadas pelo Encourado. A Compadecida afirma que o Bispo apesar de seus defeitos,
trabalhava e cumpria suas obrigações. Quanto ao padre, o sacristão, erravam por medo. A
justificativa para perdoar o marido seria porque ele perdoou a mulher no leito de morte e ela
porque o traía, por ser maltratada por ele. Quanto a Severino e seu cabra, ambos foram salvos
por Manuel sob a alegação que os dois tiveram suas famílias mortas pela polícia e assim
sendo não eram donos de seus atos. João sugere que o Sacristão, o Bispo, o Padre, a Mulher e
o Padeiro ocupem lugares no purgatório e tal idéia é bem aceita pela Compadecida que afirma
que dessa forma todos pagarão por seus feitos e serão salvos. Manuel questiona porque João
Grilo não se colocou no purgatório como os outros e este afirma que merece salvação direta e
obtém auxílio de Nossa Senhora que diz que o amarelo foi um grande sofredor de suas
condições sociais e sugere que o pobre amarelo volte para a Terra. Manuel aceita e impõe
uma condição: João deve fazer-lhe uma pergunta que ele não saiba responder e a tal questão
foi que Manuel dissesse quando voltaria ao mundo. Para esta pergunta o Senhor não pôde dar
resposta por tratar-se de algo entre ele e o Pai. João volta à Terra, quando o Palhaço e Chicó
estavam carregando seu corpo e seu amigo custa a acreditar que o amarelo escapou. Ambos
comemoram a riqueza que adquiriram com o testamento do cachorro, mas a alegria dura
pouco, pois Chicó prometeu à Nossa Senhora que daria todo o dinheiro caso o amigo
escapasse, após muitas lamúrias decidiram entregar a quantia, pois com a Compadecida não
se brinca.
Antes de o Palhaço pedir os aplausos do público e fechar o pano, ele diz as palavras
que atestam a fonte inspiradora da Literatura de Cordel e recita versos registrados no livro
Violeiros do Norte que o autor Leonardo Mota ouvira de Anselmo Vieira de Sousa intitulado
O Castigo da soberba e repetidos por Suassuna na última página do Auto da Compadecida:
37
A história da Compadecida termina aqui. Para encerrá-la, nada melhor do que o
verso com que acaba um dos romances populares em que ela se baseou:
Meu verso acabou agora,
Minha história verdadeira.
Toda vez que eu canto ele,
Vêm dez mil-réis pra a algibeira.
Hoje estou dando por cinco,
Talvez não ache quem queira. (SUASSUNA, 2005, p. 173)
No terceiro ato nos deparamos com dois folhetos: O Castigo da soberba e A peleja da
Alma. O primeiro pode ser encontrado no livro Violeiros do Norte de Leonardo Mota. Nessa
obra em que embebeu-se Ariano para construção do auto, Leonardo Mota um exímio
apaixonado pela linguagem do povo do sertão, saiu em viagens registrando a poesia dos mais
diversos autores. Durante seus passeios conviveu com uma diversidade considerável de
sertanejos fazendo anotações da tradição oral de cantadores anciãos, cegos, de pelejas
improvisadas, desafios, histórias de cunho moral ou simplesmente humorísticas de sabedoria
popular. A respeito da influência recebida de Leonardo Mota Suassuna afirma:
O acaso também desempenha um papel importante em nossa formação: meu pai
gostava muito da literatura popular nordestina. Leonardo Mota era seu hóspede, de
vez em quando, e ouviam juntos os cantadores que o cearense levava a nossa casa
com seus livros e cantigas anotadas. Mal aprendi a ler, descobri esse material e
decorei alguns dos romances, autos e moralidades que ainda hoje são meus temas
obsessionais em teatro. (SUASSUNA apud NEWTON JÚNIOR, 2008, p. 53)
Nessas andanças em busca de catalogar valiosos e variados versos, Leonardo Mota
ouviu de Anselmo Vieira de Sousa um poeta cearense, os versos que demonstram a ligação
dos sertanejos com o divino. O castigo da soberba narra a história de um homem muito rico
que dava a mulher uma vida de rainha, mas com ela não teve filhos. Era respeitado por sua
fortuna, mas aos cinqüenta anos viu-se pobre e desprezado. A mulher adoeceu pelo descaso
de suas amigas e logo então deu a luz a um menino que nasceu na mais profunda pobreza e à
igreja só foi em seu batismo. Morreu e sua alma foi acompanhada por milhares de demônios
alegres até as portas do céu. Lá o homem pede por clemência. O Cão teceu suas acusações e
Jesus as achou tão graves que tornava-se difícil uma absolvição, mas tal qual em o Auto da
Compadecida, o acusado pede amparo a Maria:
Castigo da soberba
Auto da Compadecida
(Alma): “Vala-me, ó Virgem Maria,
Pelo vosso resplendor,
Pelo dia em que nasceu
Pelo nome que tomou,
O nome do vosso filho
Que no ventre carregou!”
(Maria): “Alma, já que me chamaste,
Na presença te cheguei,
Tu falaste com fiança
Neste nome que eu tomei,
No nome de meu filhinho
Que no ventre carreguei.”
(Alma) “Ai, Senhora, Virgem Pura,
Padroeira mãe dos home,
JOÃO GRILO: Valha-me Nossa Senhora, / Mãe
de Deus de Nazaré!
A vaca mansa dá leite, / a braba dá quando quer.
A mansa dá sossegada, / a braba levanta o pé.
Já fui barco, fui navio, / mas hoje sou escaler.
Já fui menino, fui homem,/ só me falta ser mulher.
(...)
Valha-me Nossa Senhora, / Mãe de Deus de
Nazaré.
(...)
ENCOURADO: Lá vem a compadecida! Mulher
em tudo se mete!
(...)
A COMPADECIDA: E pra que foi que você me
38
Valei-me nesta agonia,
Nesta sorte que consome,
Sempre vejo protegido
Quem recorre ao vosso nome.”
(Maria) – “ Alma, tu nunca assististe,
Nem ao menos um momento
Dentro dum lugar sagrado
Onde houvesse um Sacramento,
Que tu ouvisses meu nome
Com grande contentamento?...”
(Alma) – “Mãe amada, me livrai
Das grandes rigoridade
Sei que gastei os meus dias
Envolvido em vaidade,
Mas espero ser valido:
Valei-me por caridade!”
(Maria) - “Alma, o que tu me pediste
Eu não posso prometer,
Se tivesse em penitença,
Com razão eu ia ver:
Mas, assim é impossível
Te salvar, sem merecer.”
(Alma) – “Rainha, Mãe Amorosa,
Esperança dos mortais,
Quem recorre a vosso nome
Sei que não desamparais,
Eu, pegando em vossos pés,
Sei que não desamparais
Eu, pegando em vossos pés,
Sei que não largo eles mais.”
(Maria) – “Pois alma, demora aí
Enquanto eu vou consultar,
Fazer pedido ao meu Filho,
Ver se eu posso te salvar,
Ver se seus grandes pecados
Têm grau de se perdoar.”
(Maria) - “Meu Filho, perdoe esta alma,
Tenha dela compaixão!
Não se perdoando esta alma,
Faz-se é dar gosto ao cão:
Por isso absolva ela,
Lançai a bossa benção.”
“Se vós não salvar esta alma
Que aos vossos pés se apresenta,
O demônio, sabendo disto,
Agora é quem bem atenta,
E eu quero que ele hoje
Réle a testa e quebre a venta.”
(Jesus) – “Pois minha Mãe, carregue a alma,
Leve em sua proteção,
Diga às outras que a recebam,
Façam com ela união...
Fica feito o seu pedido:
Dou a ela salvação.”
(Cão) – “Vamos todos nos embora
Que o causo não é o primeiro,
E o pior é que também
Não será o derradeiro...
Home que a mulher domina
Não pode ser justiceiro!”
chamou, João?
JOÃO GRILO: É que esse filho de chocadeira
quer levar a gente para o inferno. Eu só podia me
pegar, mesmo com a senhora.
ENCOURADO: As acusações são graves. Seu
filho disse que há tempo não via tanta coisa ruim,
junta!
A COMPADECIDA: Ouvi as acusações.
ENCOURADO: E então?
JOÃO GRILO: E então? Você ainda pergunta?
Maria vai-nos defender. Padre João, puxa aí uma
Ave – Maria!
(...)
A COMPADECIDA: Está bem, vou ver o que
posso fazer.
(...)
A COMPADECIDA; Intercedo por esses pobres
que não têm ninguém por eles, meu filho. Não os
condene.
MANUEL: Que que eu posso fazer? (...)
(...)
ENCOURADO: Não tem jeito não. Homem
governado por mulher é sempre sem confiança!
(...)
JOÃO GRILO – Quer dizer que posso voltar?
MANUEL – Pode, João, vá com Deus!
JOÂO GRILO – Com Deus e com Nossa Senhora
que foi quem me valeu. Até á vista grande
advogada. Não me deixe de mão não, estou
decidido a tomar jeito, mas a senhora sabe que a
carne é fraca.
A COMPADECIDA: Até a vista, João.
JOÃO GRILO: Muito obrigado, Senhor. Até à
vista.
MANUEL: Até a vista, João.
(SUASSUNA, 2005, p. 144 – 161)
39
(Jesus) – “Os demônios se arretirem,
Vão lá pras suas prisão
Que é pra não atentar mais
A todo fiel cristão...
Quem recorrer a meu nome,
Eu garanto salvação.”
(...) (VIEIRA apud MOTA, 1982, p. 145 – 155)
Tanto a Alma quanto João Grilo estão em situação complicada por todos os feitos
cometidos durante suas vidas. Ambos recorrem primeiramente a Jesus que a princípio recusase a conceder qualquer benefício a eles. Nesse momento eles se fazem de versos para pedir a
intercessão de Nossa Senhora que aparece para conversar com o Filho sobre a condenação dos
pecadores. Nos dois trechos, Jesus atende ao pedido da mãe e concede uma segunda chance
aos condenados. Outro aspecto que deve ser ressaltado é a visão do Demônio com relação a
Nossa Senhora:
O castigo da Soberba
Auto da Compadecida
(Cão) – “Vamos todos nos embora
Que o causo não é o primeiro,
E o pior é que também
Não será o derradeiro...
Home que a mulher domina
Não pode ser justiceiro.
(VIEIRA apud MOTA, 1982, p. 154)
ENCOURADO – Não tem jeito não. Homem
governado por mulher é sempre sem confiança.
(SUASSUNA, 2005, p. 155)
Observa-se nessa análise que a presença e intervenção feminina é criticada pelo
Demônio como assim o é a visão masculina contemporânea.
No cordel intitulado A peleja da alma escrito por Silvino Pirauá, as similaridades com
o Castigo da Soberba são impressionantes. Nas duas histórias o homem avarento e rico vê-se
pobre e com um filho pra criar. Porém sua cria despreza os pais e a igreja. Quando morreu
confessou-se para Deus que o condenou às trevas e então viu-se pedindo clemência a Virgem
Maria. A similaridade entre Auto da Compadecida, Castigo da Soberba e A peleja da alma
está na intervenção de Nossa Senhora como registrou Rodrigues de Carvalho em
Cancioneiros do Norte o cordel de Silvino Pirauá:
Saiu dos pés de Jesus
Para os da Virgem Maria,
Para ver se como mãe
Que ainda a socorria.
“Maria, Virgem Maria,
Mãe de meu Deus Redentor.
Mãe de Deus e mãe de Cristo,
Mãe do Padre Salvador,
Rogai por mim a teu filho
Que nesta hora me condenou”!
- Alma sai-te de meus pés,
Para que vem te valer de mim?
Que meu filho, reto juiz,
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Não faz o que é ruim.
(...)
- “Senhora, tem compaixão
De minha necessidade,
Já que o pecado roubou
A minha felicidade.
(...)
- Maria, Virgem Maria,
Vai pedir a teu bom filho
Que teu pedido não rejeita;
Se vós não fores ouvida,
Então irei satisfeito.
Pobre alma, fica aí
Que vou falar com Domício
Para ver se como mãe
Inda dou um jeito a isso”,
(...)
Nossa Senhora pediu
Rogando a Nosso Senhor:
- Filho meu, meu bento Filho
Filho e meu Redentor,
Aquela alma esteve aqui,
Por que Jesus não a salvou?
Dizei-me meu bento Filho,
Foi ela só quem pecou?
(...)
- Minha Santíssima mãe,
Botai-me vossa bênção;
Que a senhora é a Rainha!
É a flor da Redenção”.
Foi protetora da alma,
Que satisfez a paixão!
“Vem cá,Miguel! – Quem me chama?
Lúcifer que vá embora,
Que ele não tem parte em nada,
Que a alma que ele veio ver,
Da virgem foi amparada”.
“Está tão triste o Maldito!
Eu alegre agora estou!
Recebe esta embaixada,
Que o Rei dos Reis te mandou
Disse que fosses embora,
Para tormentos eternos,
Fosses em chama de fogo,
Pras profundas dos infernos.
Disse mais aquela alma
Que tu vieste tentar,
Hoje triunfa a floria,
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A Virgem fez triunfar. (PIRAUÁ apud CARVALHO 1967, p.117-122)
Como visto, as obras o Castigo da Soberba, A peleja da alma e o Auto da
Compadecida, tem algo em comum: um homem errante e pecador que após a morte pede
misericórdia ao Senhor que analisando seu passado não vê a possibilidade em concedê-la. O
pecador ao perceber que não será salvo por Jesus, resolve pedir a intercessão de Nossa
Senhora que após conversar com seu Filho, garante a alma uma segunda chance.
Segundo a autora Lígia Vassalo, podemos contar com duas versões de O castigo da
soberba sendo a primeira publicada na Revista DECA (Departamento de Extensão Cultural e
Artística) em 1962 e a segunda na obra intitulada Seleta em prosa e verso, tendo a última sido
organizada por Silviano Santiago. Na última versão há mudanças de enredo, foco, distribuição
de falas e a presença do folheto A peleja da Alma.
4 – OUTRAS FONTES INSPIRADORAS NA CONSTRUÇÃO DA OBRA
O foco deste trabalho, como já discutido anteriormente, é uma análise da literatura de
cordel como aspecto fundador da obra em questão Auto da Compadecida, porém durante as
pesquisas deparei-me com uma gama considerável de fatores que influenciaram na construção
da peça, portanto creio ser válido apreciar, não de maneira aprofundada, outros aspectos que
atraíram atenção do autor e foram retomados na obra.
O espaço geográfico ficcional, foi ancorado na cidade de Taperoá onde o autor viveu
alguns anos de sua infância e onde presenciou manifestações culturais as quais exerceram
forte influência em seu mundo literário. Taperoá é tida como “gênese da criação poética” do
autor.
Os elementos risíveis da peça como o testamento e enterro do cachorro, o história
fantasiosa do cavalo que defecava dinheiro ou mesmo o poder mágico da gaita, traçam
paralelos com a obra O grande teatro do mundo, do espanhol Calderón de La Barca.
Outro elemento hilariante é o personagem narrador de toda a história que é um palhaço
o qual representa o autor, ou cantador proporcionando riso ao povo sofredor. Segundo Carlos
Newton Júnior:
... a estética teatral suassuniana (assim como toda a poética que se encontra por trás
de sua obra) é profundamente devedora do circo, a ponto de circo e teatro serem
considerados pelo autor como sendo uma coisa só. Se na visão dos artistas barrocos
o mundo era um teatro, e Deus o autor de uma grande peça que os homens
encenavam, sem que ninguém tivesse escolhido o seu papel, para Suassuna o mundo
é como um circo, em cujo picadeiro desfilam as tragédias e comédias da condição
humana. (NEWTON JÚNIOR, 2000, p. 28)
Braulio Tavares transcreveu as palavras de Ariano acerca da importância da figura do
circo em sua obra:
Veja bem, o meu interesse por teatro surgiu no circo. Porque eu fui um menino
sertanejo, do interior, e os primeiros espetáculos de teatro que eu vi foram no circo.
(...) Vi um grupo de teatro mambembe e ambulante de um ator chamado Barreto
Júnior que andava por esse Nordeste todo aí, apresentando comédias de costumes da
42
década de 20 e de 30. No circo eu conheci também um palhaço que se chamava
Gregório, que me marcou muito. Quando eu tomei posse da Academia Brasileira de
Letras, em 1990, fiz um elogio a ele, como uma das pessoas que me influenciaram.
Eu tenho pra mim que essas coisas, junto com os folhetos de cordel, foram muito
importantes na minha formação de dramaturgo. Quando eu resolvi depois ser um
escritor de teatro, eu não queria imitar nem o teatro alemão nem o francês nem o
americano, aí foi que eu parti para a literatura de cordel, para ver se por ali eu podia
me inspirar. (SUASSUNA apud TAVARES, 2007, p. 32)
O Palhaço exerce a função metateatral e anuncia os próximos acontecimentos
comentando-os, mas está à parte da peça apresentando o prólogo, o início dos atos e o
epílogo. O Palhaço também explicita e qualifica a obra e ao final exerce o papel de figurante
ao auxiliar no enterro de João Grilo. Ao apresentar o desfecho da peça, fala das fontes
originárias dessa e pede aplausos.
Mas Suassuna traz para a obra outros elementos da atmosfera circense como a dupla
João Grilo e Chicó que remetem a Mateus e Bastião do bumba-meu-boi ou até mesmo as
figuras do Besta e do palhaço característicos do próprio circo. Tais personagens estão
arraigados do tradicional puramente nacional, mas não distante de um parentesco
especialmente internacional com os personagens de Cervantes como observou o escritor
espanhol Pedro Laín Entralgo quando afirmou que havia mais que gilvicentismo na obra, e
que ao observar mais amplamente ver-se-ia cervantinismo. A esta observação comentou
Ariano em seu texto A compadecida e o romanceiro nordestino publicado no livro
Almanaque Armorial que havia encontrado três proximidades após a releitura de Dom
Quixote as quais poderiam estar em seu subconsciente ao escrever a peça:
A primeira, é o parentesco que tenho com a literatura oral picaresca do Nordeste que
Cervantes também tinha com a espanhola, seja nas Novelas Exemplares, seja no
próprio Dom Quixote. A segunda, é a presença da dupla formada por João Grilo e
Chicó. Minha dupla vem, é claro, do “Mateus” e do “Bastião” do Bumba-meu-boi,
do “Palhaço” e do “Besta” do circo etc. Mas, refletindo sobre a dupla cervantina, vi
que Dom Quixote é um sonhador, como Chicó (mentiroso lírico alucinado pelo sol
do Sertão), e que Sancho Pança é um pícaro como João Grilo. Estas são as
aproximações que se poderiam fazer entre os quatro tipos. A diferença entre eles
seria que, no Dom Quixote, o corajoso é o Cavaleiro sonhador, e o covarde é o
pícaro popular, enquanto que, no Auto da Compadecida, acontece o contrário: João
Grilo, o pícaro, é que tem arrancos quixotescos de coragem, e Chico, o mentiroso
sonhador e lírico, é que tem a covardia tocada de bom senso, de Sancho. Esclareço,
de passagem, que estou falando de semelhanças de temperamento e de linhagem
literária, e não de qualidade e grandeza... a terceira semelhança que encontrei,
relendo o Dom Quixote, após artigo do escritor espanhol: é o episódio das bodas de
Camacho, história muito semelhante à da borrachinha do “Compadre Pobre” ou a
bexiga do cachorro do Auto da Compadecida; o que prova mais uma vez, como é
verdade aquilo que eu afirmava em 1948 na entrevista que citei, isto é, que minha
Literatura era filha da Literatura popular nordestina e neta da ibérica. (SUASSUNA,
apud NEWTON JÚNIOR, 2008, p. 182)
Quanto as similaridades com o teatro vicentino há a característica de purificação por
meio do riso. Além da presença do auto, há uma transposição dos problemas sociais para a
peça, e tal qual Gil Vicente, o enfoque está no sócio – ideológico, onde a maioria é desprovida
43
de bens materiais e poucos são os afortunados como Antônio Morais dono de minas e poder.
Mas as similaridades entre Gil Vicente e Ariano Suassuna são limitadas visto que espaço e
tempo histórico são distintos. Percebe-se que não houve adoção total da obra vicentina, o que
houve foi o resgate das formas erudita e popular recriando um auto nacional.
Além desta proximidade com os personagens de Cervantes, Suassuna afirma que há
outras fontes que deram origem ao personagem João Grilo que se rebela contra sua própria
condição, apresenta resquícios de pessoas as quais ele conheceu como um sujeito morador de
Taperoá apelidado de Piolho e outro astuto, trapaceiro e de caráter duvidoso que morava em
Recife chamado João e cognominado de João Grilo por apresentar linha tênue com o
personagem de mesmo nome do romanceiro e mesmo com Pedro Malazarte ou personagens
do bumba-meu-boi. De acordo com Maria Aparecida Lopes Nogueira:
... o personagem João Grilo do Auto da Compadecida, constantemente adjetivado,
pelos outros personagens da peça, de “amarelinho”. Amarelo é luz, que transfigura
em algo menor, negação do luminoso; ao mesmo tempo, o próprio João Grilo se
auto-resgata como ser alumioso, uma vez que é responsável direto pela reversão e
absolvição de todos os personagens no julgamento final, com ajuda da Nossa
Senhora, a compadecida. (NOGUEIRA, 2002, p.55)
João Grilo engana a fome, trapaceia e com sua astúcia constrói o riso pautado em sua
miséria, causa ordem e desordem numa luta constante por sobrevivência. Essa maneira de
driblar os problemas foi comparada a história do personagem Lazarilho de Tormes da obra
publicada em 1554 na Espanha de autoria anônima. Trata da sátira social narrada em primeira
pessoa. Lázaro conta sua história principiando sobre a vida de seu pai que depois de acusado
de roubo foi preso e morreu servo de um cavaleiro. A mãe muda-se para a cidade e passa a
lavar e cozinhar para sobreviver. Conheceu, então, um homem com quem teve outro filho,
este sendo negro. O padrasto de Lázaro foi açoitado após roubar e sua mãe recebeu chibatadas
por ser conivente. O garoto cuidou do irmão e posteriormente foi adotado por um cego que
cheio de artimanhas o deixava passar fome, mas que o ensinou muito sobre a vida de maneira
bem cruel fato que despertou em Lázaro um ódio imensurável. Após muito sofrimento decidiu
deixar o cego e tomar seu caminho. Encontrou em outra cidade um clérigo e foi ajudar-lhe em
missa, mas logo viu que havia encontrado outro ser dotado de maldade e continuou a passar
fome. A comida era presente somente nos velórios que freqüentavam o que fazia com que
rezasse para que cada dia Deus levasse alguém. Após roubar alimentos de seu amo por várias
vezes, foi descoberto e posto à rua ferido. Encontrou durante suas andanças em outra cidade
seu terceiro amo um escudeiro. Tal homem era quase tão miserável quanto Lázaro a não ser
pelo teto (alugado) que tinha sem pertences significativos. Este homem acumulava dívidas e
fugiu deixando Lázaro em momento delicado. O quarto amo era um frade e Lázaro pouco fala
sobre o período em que o acompanhou. O quinto era um buleiro que vivia a caminhar
arrecadando dinheiro enganando o povo. Ao encontrar seu próximo amo, um capelão, nosso
personagem viu-se apto a construir sua própria vida, após conseguir melhorar suas condições,
deixa este homem. Encontrou um emprego como agente de polícia então passou apregoar
vinhos e apreciava tal ofício. Casou-se e passou a ser assunto onde morava, pois as más
línguas diziam ser sua esposa infiel, mas ele decidiu não dar ouvidos. Ao final garante estar
em boas condições e anuncia outra aventura que contaria em outra oportunidade.
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Outros foram os parentescos com o amarelo astuto de Ariano. Lígia Vassalo (apud
CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA, 2000, p. 178) traça um paralelo entre João
Grilo com o alemão Till Eulenspiegel, o espanhol Pedro Urdemalas de Portugal, Pedro
Malazartes no Brasil o qual tem raiz no Bertoldo bolonhês de Giulio Cesare Croce do século
XV.
Ariano não concorda com a afirmação de que João Grilo seja um anti-herói, segundo o
autor o personagem é na verdade um herói que vence os mais afortunados. Em entrevista ao
Jornal da Poesia em palavras transcritas por Braulio Tavares afirmou Ariano:
... no Auto da Compadecida, o padeiro representa a burguesia urbana; o major
Antônio Moraes representa os proprietário rurais; o sacristão, o padre e o bispo, o
clero. Então você tem ali o clero, a nobreza e a burguesia e ele, João Grilo, é o
representante do povo. E ele vence esse pessoal todo, e como se não bastasse ainda
vence o diabo. Se ele não é um herói, eu não sei quem é herói, não. (SUASSUNA
apud TAVARES, 2007, p. 70)
Além da conhecida astúcia que torna o personagem João Grilo muito bem recebido
pelo público, Chicó também é ancorado em personagens reais. Suassuna afirma ter conhecido
um homem com nome de Chicó de Berto e que os mentirosos não podem faltar em contos do
popular nordestino incluindo os poetas.
Além da dupla em que giram os principais acontecimentos da história, a peça
apresenta membros da igreja católica que agem em desacordo aos preceitos divinos e por este
motivo o Auto da Compadecida chegou a ser acusado de anti-religioso. Mas de acordo com
Maria Aparecida Lopes Nogueira (2002, p. 209), os personagens desonestos tal qual o Bispo e
o Sacristão representam uma crítica feita a igreja institucional e os personagens do Frade de
Manuel e da Compadecida “relevam uma religiosidade ingênua e agradável, defendida e
exercida por alguém que acredita na simplicidade da relação entre os homens, na
compreensão e fé na misericórdia e na proximidade entre os humanos e divino.” Ainda
segundo a autora a leitura da obra foi obrigatória entre os jesuítas no Rio Grande do Sul com a
função de rever alguns conceitos.
O padre cede ao clamor da mulher do padeiro (personagem que explora os menos
afortunados) para que seu cachorro seja enterrado em latim. Tal passagem da obra foi
comparada por Suassuna ao mito do Fausto o qual vende a alma ao diabo. Esse contexto serve
para reafirmar que uma das características de Suassuna é a escrita de tons religiosos e por
vezes moralizantes e no caso da peça em questão, há abordagem do julgamento final. Quanto
aos seres infernais que lutam por arrebatar mais almas, nos transporta para uma atmosfera
sobrenatural.
Outra personagem de destaque da obra é a mulher do padeiro. Carlos Newton (apud
NOGUEIRA, 2007, p. 140) afirma que é de conhecimento de poucos, mas em 1938 um filme
intitulado La Femme Du Boulanger (A mulher de padeiro) foi lançado na França sob direção
de Marcel Pagnol. O filme traz a história de um padeiro que foi traído pela esposa que fugiu
com um camponês. Dessa forma o padeiro abandona seu ofício fazendo com que os habitantes
ensandecidos pela falta do pão ajudassem no retorno da esposa para casa a qual arrependida
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recebe o perdão do marido. Esse filme recebeu adaptação para o teatro encenado no Brasil
sendo recebido com sucesso tornou-se uma obra literária fazendo com que o texto chegasse ao
conhecimento de todo o país. Nas palavras de Carlos Newton Júnior:
Ou seja: a “mulher do padeiro”, nos anos 50, era, pelo menos no Brasil, quase
sinônimo de adúltera, ou uma espécie de adúltera por antonomásia, o que fez com
que Suassuna, conscientemente ou não, a escolhesse para representar, no Auto da
Compadecida, a esposa infiel que é perdoada pelo marido pouco antes de serem
ambos assassinados pelo cabra de Severino do Aracaju. (NEWTON JÚNIOR apud
NOGUEIRA, 2007, p. 142)
Esse personagem do capitão impiedoso retoma um aspecto da arte armorial de fazer
alusões a cangaceiros, figura intolerante que costuma banhar em sangue aquilo que pelo
caminho passar, foi também motivo de desconforto por parte de alguns por se tratar de um
assassino frio, mas que foi digno de receber a salvação de Manuel. A justificativa estava que
tendo perdido a família pelas mãos da polícia, o cangaceiro não era dono de suas atitudes. O
mal estar do público está no fato de que os cangaceiros eram vistos como bandidos cruéis,
violentos e sanguinários. Carlos Newton Júnior transcreve as palavras de Suassuna que
explicam o sentimento que possui por esses cruéis desbravadores do Sertão:
Ao tempo que apareceu Sem Lei nem Rei, eu ainda não conhecia Frederico
Pernambucano, um dos maiores conhecedores do Cangaço com quem já tive a
oportunidade de conversar. Não conhecia, portanto sua teoria que procurava explicar
a psicologia desse nosso herói extraviado através de dois pólos principais: o orgulho
e aquilo que Frederico Pernambucano chama de “o escudo ético”. Com a fraqueza e
a ausência de inveja com que procuro me pautar, digo que, sem sombra de dúvida, a
teoria de Frederico Pernambucano – que eu espero ver um dia colocado por ele em
livro – foi a única que explicou a mim próprio os sentimentos contraditórios de
admiração e repulsa que sinto diante dos Cangaceiros. (SUASSUNA apud
NEWTON JÚNIOR apud NOGUEIRA, 2007, p. 138)
Em entrevista ao Cadernos de Literatura Ariano fala da figura de Severino do Aracaju.
Vocês lembram que no Auto da Compadecida aparece o cangaceiro Severino do
Aracaju, um sujeito que eu conheci. As pessoas pensam que o Aracaju é de Sergipe,
mas não, é porque ele morava num sítio do sertão da Paraíba que tinha esse nome. A
certa altura, Severino diz que estava descobrindo que o negócio de reza andava
prosperando em Taperoá. Então chega a imaginar que o bispo poderia demitir o
sacristão e nomeá-lo para o lugar dele – que assim aposentaria o rifle e iria comprar
umas terrinhas e criar bodes. Ora, quando vi isso, me dei conta de que aquele era um
sonho meu, me aposentar da carreira de professor e criar cabras no sertão.
(SUASSUNA apud CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA, 2000, p. 32)
Mas a polêmica não gira somente em torno da absolvição de Severino, há ainda a
figura do Cristo Negro que ajudou a compor a obra, quando foi construída, o escritor detinha
a imensidão que era o preconceito racial e na década de 1980, Ariano passou a se aproximar
ainda mais da causa ao participar do Movimento Negro Unificado (MNU) o entendimento
acerca do problema tornou-se ainda mais palpável.
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No texto de Carlos Newton, ele transcreve as palavras de Ariano que explica a escolha
do Cristo Negro:
(...) Durante os dias em que escrevia a peça estava acontecendo, nos Estados Unidos,
uma campanha destinada a impor legalmente a presença de crianças negras nas
escolas brancas. Em revide, os brancos racistas organizaram manifestações contra a
integração; e eu vi, na revista “Life”, a fotografia de um desses comícios: na frente
do grupo de “brancos, anglo-saxões e protestantes”, uma mulher (aliás, e não por
acaso, horrorosamente feia) exibia um cartaz no qual se lia: “Ao criar raças
diferentes, Deus foi o primeiro segregacionista”. Foi nesse momento que, movido
por uma daquelas indignações a que me referia a princípio, resolvi apresentar como
um negro a figura de “Manuel”, isto é, a imagem popular do Cristo que iria aparecer
em minha peça. (SUASSUNA apud NEWTON JÚNIOR apud NOGUEIRA, 2007,
p. 136)
A entrada do Cristo Negro é considerada por muitos como ápice da peça justificada
então pelo senso de justiça do autor onde ser escritor tem esse poder - o de denunciar os
problemas sociais.
O Cristo a princípio apresentado sozinho, conta com a divina presença de sua mãe
(Suassuna afirma que a presença feminina é fundamental) quando a mesma é inquirida por
João Grilo para interferir no destino de ter o inferno como sua morada. Segundo Braulio
Tavares:
A Compadecida é vista como uma instância superior ao próprio Cristo, inclusive
pela autoridade materna que tem em relação a ele. No julgamento final, nota-se a
ausência do Deus Pai: cabe à Mãe e ao Filho a interpretação da letra e do espírito da
Lei. São diálogos em que Jesus, por uma questão de equidade, escuta as acusações
feitas pelo Diabo e chega a dar a impressão de deixar-se convencer por elas, mas
rapidamente acolhe os argumentos de defesa de Nossa Senhora, que é quem guia seu
veredicto final. Na peça, como na vida, o Filho obedece à Mãe porque vê nela uma
fonte de justiça e de misericórdia, e a intérprete mais confiável da lei do Pai.
(TAVARES, 2007, p. 39)
Ainda dentro do âmbito religioso há a presença do milagre que se dá com o retorno de
João Grilo à Terra resultado da segunda chance obtida com a intercessão da Compadecida.
O religioso é um aspecto extremamente abordado na obra suassuniana Lígia Vassalo
(1993, p. 136) chama atenção para uma passagem bíblica que também aparece como elemento
construtor de algumas cenas como a retomada do Evangelho de São Mateus “É assim que
serão os dois numa só carne” frase que é interpretada quando o padeiro e sua mulher se
abraçam no momento da morte.
Quando questionado pelo entrevistador do Cadernos de Literatura se ele não pensava
que sua obra sendo baseada em “textos alheios” não limitava a arquitetura dramática, o autor
respondeu:
Não. Eu considero as fontes nas quais me baseio muito criativas; elas, inclusive
ajudam contra essa coisa do naturalismo teatral, ao qual eu sempre me opus. Por
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isso, me dou por satisfeito com elas. (SUASSUNA apud CADERNOS DE
LITERATURA BRASILEIRA, 2000, p. 49)
O Auto da Compadecida foi pautada em todas essas personagens, figuras reais,
acontecimentos fantasiosos, aspectos religiosos, tornou-se um obra ímpar garantindo sucesso
e retorno financeiro ao autor, porém para Suassuna o dinheiro não ocupava o primeiro plano
em suas obras, para ele o fundamental era produzir e que embora alguém encontrasse
parentesco com a obra de José Lins do Rego, o Auto da Compadecida era antes romanceiro
popular que regionalismo. Para o autor a obra passa a despertar mais o interesse da leitura a
partir do momento em que revela os problemas sociais.
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CONCLUSÃO
Após análise comparativa entre o Auto da Compadecida e os folhetos que foram fonte
de inspiração, percebe-se que Ariano Suassuna concretizou a idéia de resgatar e eternizar a
cultura nordestina por meio dos folhetos.
É notável observar a gama considerável de fontes as quais Suassuna recorreu na
construção da peça. Em sua maioria está o folheto de feira o que é defendido e retomado na
obra como algo de valor inestimável
Mesmo diante do sofrimento pela morte do pai Ariano alcançou uma veia cômica que
encantou o povo, foi precursor do Movimento Armorial concretizado nos anos 70, mas que já
povoava as idéias de Ariano mesmo em 1946 quando, juntamente com outros alunos da
Faculdade de Direito de Pernambuco, retomou o teatro que seria embasado no Romanceiro
Popular.
O Auto da Compadecida escrito em 1955 já trazia esta proposta de aproveitar a arte
para ressaltar as raízes nordestinas em especial a Literatura de Cordel tida como a voz do
povo. O artista do Movimento Armorial não se preocupa em utilizar-se de matéria já existente
no desenvolvimento de suas produções que por vezes é baseada em sua própria sofreguidão.
Contrariando críticos que debatiam acerca da falta de originalidade a própria essência do
Movimento era o resgate dessa literatura que nos foi recebida de outros países, mas adquiriu
nossa identidade tornando-se meio de comunicação, cartilha de alfabetização, mas que mesmo
em meio a tanta riqueza cultural ainda enfrenta discriminação por parte de alguns, buscando
resistir em meio a esse preconceito.
A aclamada obra Auto da Compadecida peça em três atos escrita por Ariano Suassuna
foi pautada em folhetos da Literatura de Cordel como forma de retomar e exaltar esse gênero
que traduz a identidade cultural de um povo. A obra é mais conhecida por suas adaptações do
que pela leitura da peça que foi recebida e traduzida por outros países demonstrando a
genialidade de seu autor.
Tudo que permeia os acontecimentos na obra é pensado, ou seja, não se dão ao acaso.
A escolha do local onde se passa a história, a figura do circo por meio do Palhaço narrador, as
críticas feitas a membros de caráter questionável que são representantes da igreja, a escolha da
mulher adúltera do padeiro, o temido cangaceiro Severino de Aracaju, o polêmico Cristo
Negro não menos polêmico que o julgamento das almas em fim, todos os personagens reais
ou imaginários tem motivação para comporem a peça.
Além dos personagens, os acontecimentos, que ligados arquitetonicamente compõem
a peça, são pautados em histórias que chegaram ao conhecimento de Ariano Suassuna por
meio de sua admiração pela literatura de cordel. Elementos risíveis foram passados do verso
para a prosa e reunidos renderam o sucesso dessa história que trata da essência de um povo
que, em meio a sofreguidão utiliza de artimanhas para driblar a seca, a miséria sem perder sua
identidade.
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A peça de três atos baseia-se em folhetos como O enterro do Cachorro e a História do
Cavalo que defecava dinheiro ambos de Leandro Gomes de Barros, O castigo da soberba de
Anselmo Vieira de Souza e A peleja da Alma de Silvino Pirauá. Mesmo pautando sua obra em
reescrituras, Ariano em suas várias entrevistas nunca deixou de admitir a retomada de textos
para a concepção do Auto da Compadecida. A literatura de cordel que participou da
construção da história também foi fonte inspiradora na criação dos personagens mais notórios
da peça como a dupla Chicó e João Grilo.
Ariano em sua genialidade retomou folhetos da cultura popular nordestina e teve seu
estilo comparado a ícones como Cervantes, Gil Vicente dentre outros, mas sua real intenção
não foi a de aproximar-se da escrita desses cânones e sim de utilizar-se de sua paixão pelas
raízes populares e torná-las conhecidas e admiradas tentando quebrar as barreiras do
preconceito traduzindo a essência de um povo sofrido, mas que sustenta sua identidade
cultural.
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Patrícia Fernandes Pereira Garcia