UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA - UNB
INSTITUTO DE LETRAS – IL
DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERÁRIA E LITERATURAS – TEL
AS INFLUÊNCIAS DA CULTURA POPULAR NORDESTINA E A
COMPOSIÇÃO DO MOVIMENTO ARMORIAL DE ARIANO SUASSUNA
Sarah Fernandes Navega de Aguiar
Brasília, 28 de novembro de 2014
1
Ora, existem alguns escritores brasileiros do Mar,
e existem outros do Sertão, isto é, uns são da
Tigre marinha verde-azul, e outros do Jaguar-deouro sertanejo, mosqueado de negro e de
vermelho. Mas o único que é, ao mesmo tempo,
filho da marinha Tigre fêmea verde-azul e do
Jaguar-macho e sertanejo de pêlo de ouro é o
modesto Rapsodo que vos fala neste momento.
(...) Foi então para que se cumprissem as
profecias que eu tive esse ambíguo nascimento
marinho
e
contraditório,
sertanejo,
bifronte,
dilacerado
muito
característico
aliás,
e
do
enigmático Signo de Gêmeos que é o meu.
(Suassuna - O Rei Degolado: As Infâncias de
Quaderna, Folheto 26)
2
Sumário
Resumo .............................................................................................................. 4
Introdução .......................................................................................................... 5
1. A vida do escritor e a relação Quaderna ................................................. 7
2. O Cordel e sua influência ........................................................................ 8
3. Outras influências .................................................................................. 10
4. O sertão nordestino – “lócus mítico” ..................................................... 11
5. O Teatro Brasileiro................................................................................. 12
6. Movimento Armorial ............................................................................... 13
7. Conclusão.............................................................................................. 19
8. Referências Bibliográficas ..................................................................... 21
3
Resumo
O desejo de criar uma arte brasileira erudita a partir da cultura popular
nordestina levou Ariano Suassuna a idealizar e concretizar o Movimento
Armorial, que surgiu na década de 70 e que abrangeu várias expressões
artísticas, passando pela literatura, pelo teatro, pela música e pelas demais
formas de representação. O presente trabalho, baseado no apanhamento
bibliográfico das obras de Suassuna, com destaque aos textos de Carlos
Newton Júnior, Braulio Tavares e Ideletette Santos, teve como propósito
verificar as influências da cultura popular nordestina na composição artística do
escritor, com o intuito de revelar a objetividade e a consistência do Movimento
Armorial, que até hoje tem a sua importância e representatividade no panorama
da produção artística brasileira.
Palavras-chave: Suassuna; Movimento Armorial; Cultura Popular.
Abstract
The desire of create a classical Brazilian art from the northeastern popular
culture took Ariano Suassuna to conceive and materialize the Armorial
Movement, which emerged in the 70’s and covered various artistic expressions,
through literature, theater, music and others forms of representation. This
paper, based on the bibliographic pickup Suassuna’s works, especially the texts
of Carlos Newton Junior, Braulio Tavares and Ideletette Santos, aimed to verify
the influences of northeastern popular culture in the artistic composition of the
writer, in order to reveal the objectivity and consistency of the Armorial
Movement, that until today has its importance and representativeness in the
Brazilian panorama of artistic production.
Key words: Suassuna; Armorial Movement; Popular culture.
4
Introdução
Ariano Suassuna foi exaltado, principalmente, pela atuação no teatro
brasileiro. Responsável pela fundação do Movimento Armorial nos anos 70,
que tinha como objetivo criar uma arte erudita através de elementos da cultura
popular nordestina, modernizou o teatro brasileiro e entrou para a história da
literatura brasileira como um grande escritor, poeta e dramaturgo. Suas obras
revelam a influência que recebera dos romanceiros populares do nordeste, os
cordéis, e da vida no sertão nordestino, o qual estabelece uma relação íntima,
e que na verdade é o “locus mítico” (TAVARES, 2007, p. 165) de sua obra.
A partir dos anos cinquenta, Suassuna trouxe elementos que
ampliassem a discussão em torno dos pilares modernos do teatro nacional, que
se encontrava atrasado, em relação às tendências das artes produzidas a partir
da década de vinte até a década de quarenta. Dessa forma, procurou
“estabelecer uma ligação eficaz com o teatro popular ocidental, lugar da praça
pública em que o povo tinha voz e vez na crítica aos poderes
institucionalizados e às misérias humanas perpetuadas” (MATOS, 1988, p. 5).
Desde sempre, buscou, em suas obras, destacar a importância e
estabelecer um elo entre as fontes populares e o sentimento de nacionalidade,
colocando o Nacional e o Popular como elementos que “interagem num todo
orgânico” (MATOS, 1988, p.19). É nesse sentido, que o estudo das influências
da literatura de cordel se faz necessário para análise da obra de Ariano
Suassuna, que tem como base o Popular e a relação deste com a questão da
nacionalidade. O próprio escritor afirma:
“(...) essa Arte popular brasileira existe. E não apenas isto: é vigorosa
e
autêntica,
como
provam,
entre
outras
manifestações,
as
xilogravuras populares do Nordeste. E a literatura popular brasileira
também existe, bastando o fato de possuirmos nos folhetos, o maior e
mais variado Romanceiro vivo do mundo, para demonstrar essa
minha afirmação.” (SUASSUNA, 2008, p.151)
5
Todo o anseio de reafirmar esses elementos da cultura popular,
principalmente do romanceiro, para comprovar a existência de uma literatura
autenticamente brasileira, está presente no Movimento Armorial que Suassuna
idealizou e conseguiu construir, com a união de vários artistas, das mais
diversas formas artísticas.
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1. A vida do escritor e a relação Quaderna
Ariano Vilar Suassuna nasceu dia 16 de junho de 1927, na Paraíba.
Seus primeiros anos de vida foram marcados por uma luta política de
proporções nacionais,e como ele mesmo afirma em “O Rei Degolado: Ao Sol
da Onça Malhada”:
“Talvez somente aqueles que ao ouvir a palavra ‘Trinta’, sabem que
‘trinta’ não é somente um número; 30 é o nome de uma Revolução; o
nome de um ano glorioso, sangrento e terrível; um tempo no qual
nós, Sertanejos, não podemos pensar sem ouvir de novo o estralejar
das balas nos tiroteios, sem sentir de novo o gosto de sangue do ódio
e do sofrimento, assim como o terror das fugas noturnas e dos cercos
implacáveis”.
Seu pai, João Suassuna, era uma figura política importante para o
Estado da Paraíba. Governou nos anos de 1924 a 1928, quando encerrou seu
mandato e passou o cargo para o seu sucessor, João Pessoa. Com a
Revolução de 30, na Paraíba, ocorreram profundas modificações sociais no
Estado, e com a família de Ariano Suassuna não foi diferente. No dia 9 de
outubro de 1930, seu pai foi alvejado pelas costas por um pistoleiro, ao sair do
hotel em que estava hospedado, no Rio de Janeiro. Dessa forma, a infância do
escritor não foi marcada apenas pela ausência de seu pai, “mas também pela
condição de se saber pertencente a um clã derrotado” (TAVARES, 2007, p.
22).
As modificações sociais ocorridas pela Revolução de 30 trouxeram um
“contexto
ideológico
que
repisava
com
insistência
os
conceitos
de
modernização, de vitória do progresso urbano sobre o atraso rural, da
civilização sobre a selvageria, da Lei sobre o cangaço” (TAVARES, 2007, p.
22). Ariano queixou-se várias vezes por passar a infância e a adolescência
escutando que sua família e amigos eram cangaceiros e criminosos,
principalmente por conta da trajetória de vida de João Suassuna, seu pai. Com
isso, percebemos em sua obra um tom de ironia em relação a essas
acusações, principalmente no Romance d’ A Pedra do Reino, no qual
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Quaderna, ao ver seus antepassados serem acusados de fanáticos e
assassinos, compara-os às famílias reais europeias:
“Se esse Rei da França falsificava dinheiro, que é que tem
que meus antepassados, Reis do Povo Brasileiro, degolassem
mulheres, meninos e cachorros? Crime por crime, os de minha família
foram muito menos chinfrins, porque degolar pessoas é muito mais
monárquico do que passar dinheiro falso!”.
Tendo em vista os acontecimentos da vida do escritor, podemos afirmar
que Quaderna, o protagonista do Romance d’ A Pedra do Reino, é um
personagem que “se funde com o seu criador” (TAVARES, 2007, p.141). Nessa
obra encontra-se uma série de características, como o estilo, o vocabulário,
que expressam o “detalhe acessório”, ou melhor, a mistura de interjeições
populares e vocabulário erudito, o que comprova a maestria de Ariano
Suassuna, ao incorporar elementos da cultura popular para criar uma arte
erudita.
2. O Cordel e sua influência
Não há uma definição até os dias atuais que afirme precisamente a
época do surgimento da Literatura de Cordel ou, como muitos a chama,
romanceiro popular em verso, que compreende, também, a poesia oral
improvisada nas cantorias dos repentistas. O que se sabe é que ela foi
assimilada em Portugal antes do século XVII, como originária dos romances
tradicionais que aqui chegaram, também, nos séculos XVI e XVII pelos
colonos, em suas bagagens.
Podemos dizer que o seu início está ligado à divulgação de histórias
tradicionais e às narrativas de velhas épocas que a versão popular da memória
nacional foi conservando e transmitindo ao longo do tempo. Essa literatura era
chamada de romance ou novela de cavalaria, de amor, de histórias sobre
guerras e viagens ou conquistas marítimas. Ao mesmo tempo, no mesmo tipo
de poesia e de apresentação, algumas descrições de fatos recentes, de
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acontecimentos que envolviam a sociedade e que prendiam a atenção da
população, começaram a aparecer.
Em Portugal, antes do Jornal, a literatura de cordel era a única fonte de
transmissão das informações e com o passar do tempo foi perdendo o seu
lugar de prestígio. Sua impressão era muito rudimentar e precária, todavia, os
folhetos eram vendidos nas feiras, nas romarias, nas praças ou nas ruas e
neles se registravam histórias e transcreviam-se igualmente poesias eruditas.
Já no Brasil, mesmo com o Jornal, ela continuou em seu pleno esplendor, mas
quase nunca contou com o reconhecimento que merecia.
Devido às condições sociais e culturais características do nordeste, foi
possível o surgimento da literatura de cordel, que se tornou símbolo cultural da
região. A formação social, como a forma de organização da sociedade
patriarcal, o surgimento de manifestações messiânicas, o aparecimento de
bandos de cangaceiros ou bandidos e as secas periódicas, que provocavam
desequilíbrios econômicos e sociais, justificam o aparecimento e a fixação
dessa literatura nessa região do país.
Portanto, essa literatura, que Ariano Suassuna conheceu ainda menino,
serviu como uma fonte inspiradora para sua obra literária e, também para o
Movimento Armorial, que configurou-se como uma das “invenções mais
consistente” da cultura brasileira. Para Suassuna,“o cordel é uma forma de
expressão que envolve a Literatura, por meio da história contada em versos; a
Música, pela toada (a solfa utilizada no Sertão para cantar versos); e as Artes
Plásticas, pelas xilogravuras que ilustram as capas dos folhetos” (TAVARES,
2007, p. 25). Foi a partir dessas expressões que ele criou as suas obras mais
significativas, principalmente no teatro. De acordo com Tavares:
“No cordel, o teatro está presente na arte histriônica do cordelista ou
folheteiro que, recitando ou cantando seus versos na feira, diante do
público, muda de voz, de trejeito, de postura, atuando ora como
narrador impessoal, ora como este ou aquele personagem, cujos
diálogos ele interpreta com alternância de voz e de atitude”.
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Durante a infância e a adolescência, Ariano Suassuna tivera contato
com a biblioteca de seu pai, preservada pelo tio Manuel Dantas Villar, onde
encontrou o Sertão Alegre e outros livros em que o escritor cearense Leonardo
Mota recolheu versos e “causos” dos poetas populares do Ceará. Entre outras
pessoas, o livro foi dedicado ao seu pai João Suassuna, fato que se tornou
mais um incentivo para que Suassuna destacasse, em suas obras, a
importância da tradição literária popular, que, posteriormente, enriqueceria o
Auto da Compadecida.
Cabe ressaltar que a influência do cordel na vida de Ariano se deve
também a variedade de títulos disponíveis para o escritor na década de trinta.
João Martins de Athayde, poeta que pertenceu à primeira geração de poetas
do cordel, possuía uma gráfica, que na época, junto a outras dessas e às
editoras, supria o mercado crescente, que teve seu auge entre as décadas
de1940 e 1950. Assim, mais uma vez recorremos ao Romance d’ A Pedra do
Reino, para constatar a ocorrência dos elementos característicos da literatura
de cordel na obra. O personagem Quaderna revela os seus primeiros contatos
com a Literatura de Cordel, e por mais que seja apenas um personagem, suas
experiências se aproximam daquelas vividas pelo escritor.
3. Outras influências
Ariano Suassuna tivera contato, também, com outras formas de arte
popular. Quando criança, conheceu o teatro popular, com o espetáculo de
mamulengos, em Taperoá, cidade onde passou parte de sua infância e
adolescência.
Lá, com os mamulengueiros que eu não sei de onde vinham, existia
uma pequena peça que adorei, achei extraordinária. (entrevista à
revista Continente Multicultural)
Contudo, foi no circo onde se interessou pelo teatro, e “cujo universo
viria a ser uma das referências emblemáticas” de sua obra, pois trazia a
encenação dos chamados “dramas” e o cinema, com a projeção precária de
filmes. Dessa forma, o teatro deixou sua marca no dramaturgo, que com a sua
10
genialidade, criou uma arte a partir da literatura de cordel, como fonte de
inspiração. Em uma de suas entrevistas, afirma:
“No circo eu conheci também um palhaço que se chamava Gregório,
que me marcou muito. Quando eu tomei posse da Academia
Brasileira de Letras, em 1990, fiz um elogio a ele, como uma das
pessoas que me influenciaram. Eu tenho para mim que essas coisas,
junto com os folhetos de cordel, foram muito importantes na minha
formação de dramaturgo. Quando eu resolvi depois ser um escritor de
teatro, eu não queria imitar nem o teatro alemão nem o francês nem o
americano, aí foi que eu parti para a literatura de cordel, para ver se
por ali eu podia me inspirar.”
4. O sertão nordestino – “lócus mítico”
Por mais que a sua trajetória pessoal e literária tenha seguido rumo ao
litoral e à cidade, Ariano Suassuna faz uma “defesa estética e moral” do Sertão
e de seus valores, recorrendo ao sertão da infância, sua fonte de inspiração,
em detrimento à realidade no litoral, a qual chegou a repelir. De acordo com
Tavares, “sua obra pode ser dividida em dualidades muito nítidas: autores
sertanistas e autores urbanistas”. Tal caráter revela o sertão como o
locusmítico da obra de Ariano. Dentro dele, encontra-se o triângulo formado por
Taperoá, as Pedras do Reino e a fazenda Acauhan, que servem como um
cenário recriado em seus poemas e romances. Ao fazer uma declaração de
amor ao sertão, revela:
“O sertão, a terra luminosa do sol! O amor invencível a esta terra de
dor, apego do líquen à rocha do sofrimento, é a fatalidade inelutável
do destino de seus filhos. De mim, confesso a nostalgia inconsolável
que me mata, quando longe desta incomparável gleba fascinante,
extremamente boa e cruamente má. Nem posso sofrer que se
maldiga do seu sol, desse sol que é a coroa radiante do nosso
martírio, mas que também envolve, nas “bolandeiras” irisadas dos
seus halos, as nossas horas de abastança e alegria”. (discurso de
posse na Academia Brasileira de Letras)
11
5. O Teatro Brasileiro
Podemos dizer que as primeiras manifestações teatrais no Brasil datam
do século XVI. Tais manifestações, trazidas pelos colonos portugueses, teve
como precursores os jesuítas, com destaque para o Padre José de Anchieta,
um dos responsáveis por perpetuar os autos, consagrados à vida dos santos, e
que tinham como finalidade a catequização dos índios. Se até o momento o
teatro no Brasil possuía um viés religioso, foi a partir do século XIX que, com o
início do Romantismo, o teatro brasileiro criou forças para se estabelecer,
contando com a ajuda de grandes escritores como Martins Pena, Gonçalves
Magalhães e Machado de Assis. Já no século XX, com a criação do Teatro
Estudante do Brasil, em 1938, começam a surgir as primeiras companhias
experimentais de teatro.
Assim, a modernização do teatro brasileiro insurge na década de 40,
com um atraso considerável frente ao panorama das artes produzidas nas
décadas de 1920-40, principalmente com a chegada da semana de arte
moderna. Em 1948, o italiano Franco Zampari funda o Teatro Brasileiro de
Comédia (TCB), responsável por renovar o ambiente cultural brasileiro e por
conferir caráter eminentemente empresarial à atividade teatral. De acordo com
Magaldi, “a hegemonia do autor brasileiro só veio a se dar em 1958 quando o
Teatro de Arena de São Paulo lançou Eles não usam black-tie, de
Gianfrancesco Guarnieri, abrindo caminho para um grupo de jovens talentos”.
Contudo, o golpe militar de 1964 trouxe para o palco teatral a hegemonia da
censura, que culminou numa dramaturgia social e política, que de certa forma
entrou em “decadência”.
Portanto, seguindo a argumentação de Matos, “a manifestação teatral
brasileira desde os seus primeiros momentos ligou-se a realidade do povo e
nela colheu a moção para repensar seu caminho, principalmente a partir da
década de 30 quando se avolumam as questões sociais e políticas”. Dessa
forma, através do panorama histórico do Teatro brasileiro, notamos que a obra
de Ariano Suassuna, a partir dos anos cinquenta, “vem trazer elementos
especiais à discussão que se ampliava: o lugar das fontes populares e do
12
sentimento de nacionalidade numa ‘escrita cênica’ em que o palco e texto
dariam conta de vários momentos da herança nacional” (MATOS, 1988). De
acordo com Suassuna:
“(...) a literatura, a pintura, a escultura, a arquitetura e a música
brasileiras, apesar de ser isso um fato pouco notado e salientado
pelos que escrevem a esse respeito, têm um lastro formado pelo
barroco ibérico que, desde o século XVI, começou a ser recriado,
reinterpretado e reinventado aqui, num sentido brasileiro e original,
como uma grosseira artesanal e mestiça que já se encaminhava para
a criação de um outro lastro: aquele que hoje é constituído por toda
uma poesia, todo um teatro, toda uma escultura, uma pintura e uma
música populares de primeira qualidade.” (SUASSUNA, 2008, p.63)
6. Movimento Armorial
O Movimento Armorial, idealizado por Ariano Suassuna, teve o seu início
no dia 18 de abril de 1970, com a realização de uma exposição e um concerto
da Orquestra Armorial na Igreja de São Pedro dos Clérigos. Na busca de criar
uma arte brasileira erudita com elementos da cultura popular nordestina,
Suassuna desenvolveu um movimento que abrangesse várias expressões
artísticas, passando pela música, pelo teatro, pelas artes plásticas e afins.
O seu surgimento se deve, também, às heranças deixadas por outros
movimentos que o seu idealizador participou, como o Teatro do Estudante de
Pernambuco, do Gráfico Amador e do Teatro Popular do Nordeste. Da amizade
com Hermilo Borba Filho, conheceu o teatro de Frederico García Lorca, que
era baseado no romanceiro popular espanhol, o que fez com que percebesse
que poderia fazer um teatro, olhando para a sua própria região, visto que, de
acordo com Idelette Santos, a literatura regional representa a expressão viva
de um povo, e para tanto ela torna-se elemento, participando de uma
identidade brasileira complexa e múltipla. (Santos, 2009, p.17)
13
Artistas do movimento questionam o seu surgimento, alegando que a
arte armorial se desenvolveu antes de seu manifesto:
Não aderi ao movimento, mas fui colocado nele. Quando voltei da
Europa, tomei conhecimento de que minha arte era armorial por
Ariano Suassuna, então pedi para ele me explicar do que se tratava.
(SAMICO, apud CORRÊA, 2010)
A composição dos textos de Ariano Suassuna se concentrou no final da
década de 50, e o lançamento do Movimento Armorial na década de 70
representou, de acordo com Corrêa, a teorização e o batismo de uma poética
que vinha sendo desenvolvida desde a década de 1950 e que buscava criar
uma arte brasileira erudita a partir da cultura popular produzida no Nordeste. O
auto da compadecida (1955) e A Farsa da Boa Preguiça (1960) são peças
cômicas que apresentavam essa estética revolucionária, mesmo que não fosse
declarada, pois “tiveram em comum o interesse de pensar a identidade cultural
do Nordeste a partir das manifestações populares” (CORRÊA, 2010). O próprio
Suassuna afirma que “a arte armorial precedeu o Movimento Armorial” (2010,
p. 26) e que o Auto da Compadecida era uma bandeira desse movimento,
tendo em vista a fortuna crítica adquirida pela obra.
Portanto, podemos dizer que o “Movimento Armorial começou a sua
gestação décadas antes de seu lançamento oficial e dialogou com intensas
transformações sociais e culturais que o país atravessou desde a década de
1950” (Aguiar, 2010, p.22), pondo-se em destaque o fato de que o Brasil
passava por mudanças no processo de industrialização, no governo Juscelino
Kubitschek, e posteriormente a instauração do regime militar, em 1964.
Tais acontecimentos refletiram diretamente na economia nacional,
aberta ao capital estrangeiro, o que possibilitou o crescimento da indústria
cultural e da cultura pop, que acompanhavam o inchaço populacional.
Tínhamos,
assim,
um
país
que
enfrentava
grandes
mudanças
e,
paralelamente, uma literatura brasileira que dialogava intensamente com essas
transformações. Consequentemente, nasce o questionamento da nossa
14
verdadeira identidade, ou melhor, a busca do nacional e da cultura brasileira,
que passam a ser fortemente reafirmados no Movimento Armorial.
Realizado, então, na década de 70, procurou reunir artistas que
partilhavam as mesmas preocupações para trabalhar com ele. Pouco
importava as rotulações, o que realmente interessava era que o movimento
alcançasse o “resultado de uma arte vigorosa”, tendo como base as tradições.
Alguns escritores atestam que o movimento se configura como uma ação
estética, que se realizou por afinidade do que produziam. “Foi um movimento
de empatia, mais do que por filiação” (MONTEIRO apud CORRÊA, 2010).
Ariano Suassuna escreveu o Romance da Pedra do Reino, movido pelo
desejo de reafirmar a nossa identidade nacional, e podemos dizer essa obra se
configura como aquilo que sintetizou os pressupostos do armorial. Assim, “é na
literatura que se encontra o ‘coração’ do armorial” (AGUIAR, 2010, p.23), algo
que não se justifica pelo fato do seu criador ser um escritor, mas sim pelo fato
de estarem presentes, na prosa e no verso, as reflexões fundamentais sobre o
movimento.
Com o intuito de combater o processo de vulgarização da cultura
nacional, em decorrência das transformações citadas anteriormente, o armorial
buscou a criação de uma cultura erudita a partir da cultura popular, colocando o
Nordeste brasileiro, um espaço geográfico, histórico e mítico, como o elemento
fundamental da criação popular que o movimento adota. Além disso, tomou
duas “linhas de ação: recriar a arte erudita a partir do romanceiro popular
nordestino e aproximar essa criação à heráldica1, à cultura dos emblemas, dos
estandartes2 e das alegorias.” (Aguiar, 2010, p.23)
No caso do romanceiro popular, os escritores deveriam retomar
personagens, formas fixas e imagens poéticas da poesia popular,
bem como aproximar de uma certa atmosfera mágica, encantada,
1
Arte de descrever os brasões de armas ou escudos.
Estandarte é um tipo de bandeira, ricamente bordada, às vezes em fios de ouro, e que não se
prestam a ser hasteadas, mas sim levadas pela tropa, como "guias", utilizada por diversas
instituições. O termo "estandarte" é aplicado a vários tipos de bandeiras diferentes: bandeiras
militares, bandeiras de corporações ou comunidades religiosas, bandeiras distintivas de chefes
de estado ou de pessoas de famílias reais.
2
15
épica e barroca, que seriam típicas desse popular. Na proximidade
com a heráldica, reside, possivelmente, o grande achado do armorial:
os emblemas, os glifos3, as alegorias, e os esmaltes fazem parte de
uma vertente da cultura nordestina, seja nos estandartes, das
procissões e penitências, nos campos de futebol, ou nas estripulias
carnavalescas das ladeiras de Olinda. (AGUIAR, 2010, p.23)
Se o romanceiro popular representou a força maior do movimento, no
que se refere à literatura, vários poetas e prosadores se aproximaram do
armorial, dentre eles: Ângelo Monteiro, Deborah Brennand, que, segundo
Ariano, apresentava uma poesia mais aristocrática e de forma mais livre,
Janice Japiassu, Marcos Accioly, Raimundo Carrero e Maximiano Campos.
Dessa forma, o Movimento Armorial uniu artistas que possuíam
linguagens pessoais que traduziam a maneira de pensar o Nordeste com a
cultura popular, e que foi de encontro à indústria cultural. Cabe ressaltar que a
adesão à essa estética se deu de maneiras diferentes. Enquanto uns optavam
pelo tema ou por imagens, outros optavam pela forma. Afirma Accioly:
Usei as formas populares e não os temas, criei minha poesia em cima
das estruturas do martelo agalopado, do mourão e da sextilha
(ACCIOLY apud CORRÊA, 2010).
No que se refere à música, encontramos a influência das raízes ibéricas,
originária da cultura espanhola influenciada pelos mouros no período barroco.
O Quinteto Armorial e a Orquestra Armorial de Câmara tornaram-se referências
instrumentais do movimento, (com destaque para os músicos Antônio Nóbrega,
Antônio José Madureira e César Guerra Peixe), foram os responsáveis por
reintegrar os instrumentos populares sem espaço na orquestra, através da
música barroca e renascentista, para finalmente produzir peças baseadas na
música folclórica. Faziam parte do grupo de instrumentos utilizados: o violão, o
violino, a viola caipira, flauta ou pífano e o marimbau, na percussão. De acordo
com Amaral:
3
O Glifo, em tipografia, é uma figura que dá um tipo de característica particular a um símbolo
específico. Um glifo é um elemento da escrita.
16
A adoção, por parte de compositores eruditos, de ritmos folclóricos e
escalas modais (de intervalos característicos entre as notas)
presentes na música rural nordestina era recorrente no ano de 19301950, mas César Guerra Peixe (1914-1993) ressaltou em maior
escala a aproximação de timbres entre instrumentos populares e
eruditos – vide Inúbia do cabocolinho, para flauta e piano, e De Viola
e de Rabeca (depois reescrita por Clóvis Pereira e rebatizada de
Mourão), para violão e violino (AMARAL, 2010, p. 28).
Quanto à representação do teatro, podemos afirmar que ele constituiu
uma forma artística que tem como característica principal a sua totalidade, que
reúne elementos estéticos que respeitam a unidade da poética armorial, na
medida em que o cenário, os figurinos e a música entram em sintonia com um
texto “que evita o regionalismo de matiz naturalista para se filiar ao espírito
mágico e poético dos espetáculos populares nordestinos” (AMARAL, 2010,
p.31). Segundo Suassuna, os princípios do armorial expressam “o desejo de
um espetáculo total brasileiro, no qual se usassem as máscaras, o canto, a
música, a dança, as roupagens imaginosas dos espetáculos populares
nordestinos” (SUASSUNA, apud AMARAL, 2010, p. 31).
Além da literatura, da música e do teatro, o movimento armorial também
teve as suas manifestações artísticas na dança, na arquitetura e no cinema, e
todas essas manifestações estavam interligadas, com um único objetivo: se
expressar através dos elementos da cultura popular do Nordeste. Talvez esse
seja uns dos fatores que reafirmam a importância desse movimento, na busca
da identidade nacional e cultural brasileira.
A arte Armorial, define-se, portanto, por uma relação “fundadora” com
a literatura popular do Nordeste e particularmente com o folheto de
feira, que o artista Armorial ergue como bandeira por unir três formas
artísticas distintas: a poesia narrativa de seus versos, a xilogravura de
suas capas, a música (e o canto) de suas estrofes (SANTOS, 2009,
p. 13).
Para Ariano Suassuna, a busca constante da originalidade seria o traço
principal do teatro moderno, mergulhado no mundo fantástico, procurou
17
estabelecer no Sertão a “verdadeira fonte da arte erudita” e, imbuído de um
projeto nacionalista de cores fortemente românticas, acabou colocando em
suas mãos e nas do seu Movimento Armorial “as ferramentas que vão separar
o joio do trigo, ou seja, o que são as verdadeiras raízes de uma arte erudita
brasileira das que apenas macaqueiam a europeia” (VIEIRA, 2014).
18
Conclusão
Com base nas características fundamentais da obra de Ariano
Suassuna, percebemos a influência do folheto nordestino na criação de seus
personagens, bem como o reflexo da morte de seu pai nas obras que produziu.
Fica claro o papel que do Romance d’ A Pedra do Reino teve para sua carreira
constituição Movimento Armorial. O próprio Ariano revela sua importância ao
afirmar que, “se um dia todas as suas obras fossem destruídas e apenas uma
pudesse ser preservada, que fosse esse romance”(TAVARES, 2007, p. 149).
Essa obra tornou-se um sucesso editorial, e podemos dizer que se fez
completa. Ariano Suassuna reuniu a paisagem do sertão, a figura do sertanejo
e a memória do pai, João Suassuna para compor uma das suas principais
obras, sem se esquecer dos elementos nacionais, que estão vinculados aos
elementos da cultura popular brasileira. Além disso, com o Movimento Armorial,
mostrou que é possível produzirmos uma arte que possa conquistar o seu lugar
de respeito, tendo em vista a dificuldade que temos de distinguir o que seja, de
fato, uma arte popular, pensando na dimensão e na diversidade cultural
existente no País. A causa principal da discriminação vem da nossa formação,
desde a época da colonização.
E se a arte popular, principalmente o
romanceiro popular, possui em sua bagagem as tradições ibéricas, que
remontam as velhas narrativas, não há motivo para tanta exclusão. Como
afirma, o próprio Ariano Suassuna:
O povo, bem menos acadêmico do que os críticos e teóricos, assimila
tudo, tudo recria e transfigura. O que é necessário é que as elites
brasileiras se portem à sua altura e tomem o seu exemplo, acabando
de vez com essas proscrições e condenações (SUASSUNA, 2008,
p.160).
Portanto, a análise do Movimento Armorial vai além da concepção
superficial de uma arte que tenta valorizar a cultura popular. É preciso levar em
consideração toda a fundamentação teórica e artística que compõe a obra de
Ariano Suassuna, que se apresenta como reflexo da vida do escritor e
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dramaturgo, tendo em vista os elementos que configuram a composição de sua
obra.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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2007.
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<http://issuu.com/suplemtentopernambuco/docs/continente_-_118_-_out10__armorial> Último acesso em 26.11.2014.
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