III – Pesquisas em Andamento – Teoria da Literatura UTOPIA E IDEOLOGIA DA CULTURA NA ESTÉTICA E NA POLÍTICA DE ARIANO SUASSUNA Roberta Ramos Marques1 (Doutoranda) Resumo: Os discursos do escritor Ariano Suassuna, desde a década de setenta, acerca da estética armorial e de algumas ações políticas para a cultura nos leva a enxergar no Movimento Armorial uma função transformadora. No entanto, o entendimento que está subjacente a idéias como a da cultura popular como a salvaguarda da identidade brasileira é a de que aquela é estática, e esta é tida como um dado a priori, fixa, imutável. A partir da distinção que é feita por Mannheim (1986) entre utopia e ideologia, discutimos em que medida o discurso armorial aproxima-se, ao mesmo tempo, da utopia e da ideologia. Palavras-chave: movimento armorial; cultura; identidade O conteúdo em discussão no presente artigo é extraído da pesquisa de doutorado desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Letras, na UFPE, com o título provisório O que move primeiro o Armorial: a palavra ou o corpo? A atualização do pensamento armorial pelas reelaborações do corpo em cena. Nesse estudo mais amplo, analisamos a relação entre as várias tentativas de criar uma dança armorial e o discurso sobre identidade cultural que está implícito nas teorizações de Ariano Suassuna sobre a estética armorial, bem como em sua literatura, sobretudo no romance emblemático deste movimento estético, Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta e nos roteiros, escritos pelo próprio Ariano Suassuna, para a realização de vários dos espetáculos de dança armorial. O Movimento Armorial tem como fim criar uma arte brasileira erudita com base na cultura popular de origem africana, indígena, ibérica e moura, e, com isto, fortalecer a idéia de uma identidade cultural brasileira. O mentor deste projeto estético é o escritor Ariano Suassuna, que oficializou o movimento no ano de 1970. Antes disso, porém, artistas de vários domínios artísticos já estavam afinados com a proposta armorial, na qual está implícita uma concepção de identidade como um dado a priori, portanto fixa e imutável; e uma representação de cultura popular que remove desta a historicidade e a capacidade ou possibilidade de transformar-se para melhor inserir-se nas condições de sobrevivência. Em 1975, os princípios norteadores de uma estética armorial já haviam 1 Bolsista Capes. Anais do Evento PG Letras 30 Anos Vol. I (1): 345-354 345 III – Pesquisas em Andamento – Teoria da Literatura encontrado espaço nas mais variadas áreas artísticas. Uma dança armorial, entretanto, ainda estava por se fazer. Ariano Suassuna, neste período secretário da cultura da prefeitura de Antônio Farias, convidou, então, uma renomada professora de balé clássico, Flavia Barros, para criar um grupo chamado Balé Armorial do Nordeste e montar um espetáculo intitulado Balé Armorial do Nordeste: iniciação armorial aos mistérios do boi de Afogados. Não satisfeito com os resultados do Balé Armorial, a segunda tentativa, em 1977, foi a criação, em conjunto com André Madureira, do Balé Popular do Recife, que seguiu um caminho diferente do anterior, priorizando a pesquisa in loco dos folguedos e danças tradicionais, com a catalogação e recriação de passos. O grupo recebeu fomento da secretaria de Suassuna durante seus primeiros três anos de existência, mas depois seguiu um rumo próprio, inclusive distanciado dos propósitos armoriais. Em 1997, Maria Paula da Costa Rego, com uma trajetória que inclui uma passagem pelo Balé Popular do Recife, mas que compreende uma série de outras referências em dança, criou o Grupo Grial, existente até hoje. Foi a última e tem sido a mais duradoura e mais consistente das tentativas de criar-se uma dança armorial. O que problematizamos nesta pesquisa é como essas três tentativas diferentes relacionam-se com o discurso de Ariano Suassuna sobre a estética armorial e com sua literatura, sobretudo no que diz respeito a uma visão ideológica sobre identidade, cultura popular e povo. O foco de nossa análise recai, no entanto, na produção do Grupo Grial, uma vez que sua trajetória, mais duradoura e consistente em sua pesquisa sobre os folguedos, é a que, por um lado, mais satisfaz os anseios de Ariano Suassuna, mas, por outro, problematiza ou desestabiliza, em alguns aspectos, as representações de identidade, cultura popular e povo pressupostas nos princípios de criação do Movimento Armorial. O nosso objeto de estudo é, em síntese, constituído do movimento Armorial, nos âmbitos da literatura e da dança. Confrontamos as criações coreográficas e o histórico dos grupos que tentaram transpor a estética armorial para a dança com a produção do âmbito artístico de origem do movimento armorial – a literatura. Verificamos como o modo de os grupos de dança articularem, em sua criação, diferentes formações técnicas com as danças populares, evidenciam, problematizam ou complexificam a relação que o movimento Armorial estabelece com a cultura popular para a construção de uma identidade cultural. Consideramos, nesta análise, três aspectos fundamentais: o contexto histórico em que surgem o movimento armorial e as tentativas de criar-se uma dança armorial; os discursos produzidos por seus criadores e agentes; e seus resultados estéticos, na literatura e na dança. O que motivou este estudo foram, inicialmente, os resultados da pesquisa desenvolvida pelo Projeto Acervo RecorDança2, que estuda a história da dança 2 A atual etapa do RecorDança consiste no projeto RecorDança on-line (inserção do acervo e do banco de dados na Internet), de cujas atividades me mantenho, no momento, afastada, devido à dedicação exclusiva à fase de dissertação da tese de doutorado. Anais do Evento PG Letras 30 Anos Vol. I (1): 345-354 346 III – Pesquisas em Andamento – Teoria da Literatura cênica da Região Metropolitana do Recife e que teve como recorte, em sua fase inicial (2003 a 2004), os anos de 1970 a 2000. Esta pesquisa permitiu perceber como o diálogo entre danças eruditas e danças populares é um dado bastante significativo em vários momentos da história da dança da cidade e que um marco deste diálogo foram as várias tentativas de criar-se uma dança armorial, empreendidas ou estimuladas pelo escritor Ariano Suassuna. Desta percepção nasceu o desejo de desenvolver um estudo aprofundado sobre os princípios estéticos e ideológicos do Movimento Armorial e da literatura de Ariano Suassuna. A tese resultante dessa pesquisa divide-se em cinco capítulos, que ainda não possuem títulos definitivos, mas que podem ser descritos, respectivamente, da seguinte forma: 1. capítulo teórico acerca dos conceitos de identidade, cultura popular, povo e política cultural; 2. capítulo histórico-crítico sobre o Movimento Armorial, as tentativas de uma dança armorial e o pensamento de Ariano Suassuna acerca de política cultural, identidade, cultura popular e povo; 3. capítulo teórico acerca das diversas visões ideológicas sobre o corpo e suas respectivas concepções implícitas acerca da identidade; 4. capítulo analítico sobre os diferentes pontos de partida para se criar uma dança armorial e os aspectos ideológicos implícitos nesses pontos de partida; 5. capítulo analítico que confronta o discurso ideológico de Ariano Suassuna com sua produção literária e com a trajetória de tentativas de se criar uma dança armorial, a fim de verificar de que forma as últimas experiências da dança armorial (as do Grupo Grial) revisam ou atualizam concepções implícitas na estética armorial acerca de identidade, cultura popular, povo e política cultural. O segundo capítulo inclui um subitem que trata de características ideológicas do Movimento Armorial e os pensamentos implícitos acerca de cultura, cultura popular e identidade nas políticas culturais implementadas nas gestões de Ariano Suassuna. É neste subitem especificamente que se insere a discussão que trazemos em parte neste ensaio. A sistematização feita pelo escritor Ariano Suassuna, em seus discursos desde a década de setenta, acerca da estética armorial e de algumas ações políticas para a cultura nos leva a identificar o papel do Movimento Armorial com uma função transformadora no que diz respeito ao tratamento que é dado à cultura popular, ao povo e à identidade nacional. No entanto, ao analisarmos a fundo o entendimento que está subjacente a idéias como a de que na cultura popular é a salvaguarda da identidade brasileira, verificamos que aquela é tratada como estática, e esta é Anais do Evento PG Letras 30 Anos Vol. I (1): 345-354 347 III – Pesquisas em Andamento – Teoria da Literatura abordada como um dado a priori, fixa, imutável. Não são consideradas as negociações que as manifestações populares operam dentro do processo histórico, e ao povo é atribuída uma essência, como se os traços identitários fossem características inerentes aos indivíduos ou aos povos e não fossem produzidos historicamente por escolhas complexificadas pelas relações de poder. Desta forma, a partir da distinção que é feita por Mannheim (1986) entre utopia e ideologia, discutimos em que medida o discurso armorial aproxima-se ao mesmo tempo em que se distancia de motivações próprias à utopia. No Dicionário de Política, Bobbio et alli (2000: 1289), na tentativa de definir o que caracteriza um utopista, relativiza os critérios de identificação relacionados a ter escrito uma obra enquadrada no gênero literário utópico e a ter elaborado um pensamento político que vislumbrasse transformações políticas a partir da problematização de uma dada realidade : (...) Do ponto de vista do pensamento político, pode-se ser um utopista sem nunca se ter escrito nada que figure no gênero literário utópico. Ao mesmo tempo, do ponto de vista histórico da literatura, pode-se ser um utopista sem nunca se ter abordado nenhum dos grandes problemas de política. A rigor, mesmo essa flexibilidade de critérios para se reconhecer um utopista não seria suficiente para atribuir esse caráter ao escritor e ex-secretário da cultura do Recife e de Pernambuco, Ariano Suassuna. Nem consta de sua obra literária algum título que possa ser aproximado do que caracteriza a Utopia como gênero; nem o conjunto de seu pensamento, expresso através de ensaios, entrevistas, ou até de sua "cartilha" armorial, apresenta traços de tratado político, a exemplo daqueles escritos que descrevem ou prescrevem o que viria a ser o "melhor dos mundos possíveis" (BOBBIO et alii, 2000: 1286). Entretanto, se considerarmos várias das características daquilo que Mannheim chama de "estado de espírito utópico" e que diversos autores atribuem aos utopistas, veremos que alguns desses traços estarão presentes tanto na obra literária de Ariano Suassuna, quanto em suas formulações teóricas sobre estética, e ainda em suas ações como gestor da cultura. Para esse reconhecimento, porém, é necessário, de antemão, deixarmos acertado que a dicotomia entre utopia e ideologia, argumentada pelo mesmo Mannheim, é bastante problemática. É acerca do "estado de espírito utópico" diluído na prática artística, teórica e política de Ariano Suassuna, bem como as implicações ideológicas disso, que gostaria de discutir neste ensaio. De suas opções estéticas, que passavam a divergir em vários aspectos do MCP (Movimento de Cultura Popular) e do TPN (Teatro Popular do Nordeste), dos quais fora sócio fundador, Ariano Suassuna extraiu o motivo para a criação de um outro movimento de cultura, o Armorial. O que havia de afinidade entre os três pensamentos era a valorização da cultura brasileira com base a cultura popular. No Anais do Evento PG Letras 30 Anos Vol. I (1): 345-354 348 III – Pesquisas em Andamento – Teoria da Literatura entanto, do MCP, ele discordava da concepção de criação artística a serviço de um projeto político e educacional, ou do engajamento político como um pressuposto das manifestações artísticas. Em relação ao TPN, e neste caso mais especificamente em relação a Hermilo Borba Filho, o criador do Armorial divergia dos caminhos escolhidos no processo de apropriação da cultura popular nos espetáculos teatrais3. Estes caminhos, criticados por Ariano, tinham um significado, a um só tempo, estéticos e políticos. Tratava-se, por exemplo, das afinidades de Hermilo com "artistas de vanguarda" que vinham redirecionando o teatro no Ocidente, como Antonin Artaud e Bertold Brecht. Deste último viria a simpatia do dramaturgo e encenador pernambucano ao exercício do teatro épico anti-ilusionista, ao contrário de Ariano Suassuna, que, em várias entrevistas, aponta o anti-ilusionismo como responsável por investir contra o encantamento do teatro. Outra divergência diz respeito ao fato de que Hermilo passa a entender a cultura popular como "conseqüência das injustiças sociais" (REIS, 2005: 26), ao passo que Ariano Suassuna via a possibilidade de conciliação entre "melhor condição de vida para o povo e a preservação dos valores culturais próprios ao país" (DIDIER, 2000: 74). Com a criação do Movimento Armorial, oficializado em 1970, Ariano Suassuna deixava claro que sua maior motivação era criar uma arte erudita brasileira com base em símbolos isolados da cultura popular, diferentemente de Hermilo Borba Filho, que passava a ampliar o espaço das inquietações políticas em relação à condição social dos artistas populares e, justamente por isso, julgava-se distante do projeto armorial, por considerá-lo como uma "aristocratização do popular" (BORBA FILHO apud REIS, 2005: 25). Apesar desta crítica de Hermilo Borba Filho, não podemos deixar de reconhecer os méritos e os efetivos ganhos da insistência de Ariano Suassuna em valorizar a cultura popular, sobretudo no que isso teve de conseqüência em termos de reconhecimento dos valores culturais populares pelas classes média e alta, mesmo que filtrados por uma forma para muitos des-historicizada e despolitizada de apropriação e ressignificação de símbolos da cultura popular. Essa ênfase em colocar a cultura brasileira e, em especial, a arte popular em foco, em contraponto e resistência à aceleração da importação de valores culturais estrangeiros na década de 70, constitui o que podemos reconhecer como o "espírito utópico" e está presente nas obras de Ariano Suassuna, no seu discurso sempre que se refere aos objetivos do Movimento Armorial, e na sua atuação como secretário da cultura. Os componentes utópicos se identificam numa clara recusa de uma situação dada (no caso, as trocas da cultura brasileira com a americana, que Ariano Suassuna interpreta como subserviência cultural) e na delineação de um projeto (mesmo que restrito à área da cultura) que visa à preservação de uma identidade nacional e ao não esquecimento dos valores culturais populares, tal como 3 Sobre o assunto cf. Reis, Luís Augusto da Veigas. A herança "regionalista-tradicionalistamodernista" no Teatro Popular do Nordeste: fraternais divergências entre Ariano Suassuna e Hermilo Borba Filho. In: Investigações. Lingüística e teoria literaria. Vol. 17, no. 1, janeiro, 2004. / Universidade Federal de Pernambuco. CAC. Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística – Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2005. Anais do Evento PG Letras 30 Anos Vol. I (1): 345-354 349 III – Pesquisas em Andamento – Teoria da Literatura ele defende nesta entrevista concedida em 1986: (...) resolvi criar o Movimento Armorial pra ver se criava uma fronteira de resistência, que fosse possível, para continuar a falar em Cultura Brasileira e Cultura Popular. Porque eu acreditava, como ainda hoje acredito, que no Brasil, o problema da Cultura Popular se identifica com o próprio problema da Cultura Nacional e, portanto, com o próprio problema da sobrevivência do Brasil enquanto nação. Porque no meu entender, no Brasil só é nacional o que é popular ou então ligado ao popular. (...) E outra coisa que acreditava e que até hoje acredito, é que somente fortalecendo esse tronco cultural popular ou então ligado fundamentalmente ao popular, é que você pode então conviver fraternalmente com outras culturas. (apud OLIVEIRA, 1993: 127) Numa separata da Revista Pernambucana de Desenvolvimento, intitulada O Movimento Armorial, publicada em 1977, Ariano Suassuna sistematiza o que define a estética armorial e cada um dos domínios artísticos que o Armorial já abrangia a essa altura. Em todas as modalidades artísticas armoriais que descreve, faz uma abordagem que, por um lado, sonha com uma produção artística possível (a escultura com a qual eu sonhava para o Nordeste) e, por outro, mostra o desejo de ruptura com um sistema existente: (...) Eu, há muito tempo não me conformava com o fato de a Escultura, no Nordeste, vir sendo feita, quase que somente, em gesso e metal. Achava, como ainda acho, que os grandes momentos da Escultura em todo o mundo coincidem com o emprego da madeira e da pedra, e foi nesse sentido que fiz um apelo a Fernando Lopes da Paz para que voltasse a empregar esses materiais. (...) É por isso, por ter encontrado seu caminho pessoal dentro da maravilhosa tradição popular, que o mundo de Samico aparece com tanta novidade, com todas as contradições e purezas da violência, dentro do mundo da Gravura brasileira, cinzento e monótono, onde quase que só se exercitavam os maneirismos de uma Arte Européia de segunda-mão e onde hoje, graças a ele, os pássaros de fogo do Sol nordestino fulgem como Estrelas ou dragões incendiados nas torres e bandeiras do Reino do Sertão do Brasil. (SUASSUNA, 1977: 47) Levando em conta que as orientações utópicas são, segundo Mannheim (1986: 216) as que abalam a ordem que prevaleça no momento e as orientações ideológicas são as que corroboram esta mesma ordem, poderíamos agora pensar até que ponto é possível situar o pensamento implícito na estética e em todas as ações enquadradas no Movimento Armorial em uma dessas duas possibilidades. No que diz respeito à postura assumida por Ariano Suassuna, na década de setenta, Anais do Evento PG Letras 30 Anos Vol. I (1): 345-354 350 III – Pesquisas em Andamento – Teoria da Literatura em relação à conjuntura histórica do "servilismo cultural brasileiro perante os países hegemônicos, mais especificamente os Estados Unidos" (OLIVEIRA,1993: 123), entendemos o Armorial como um movimento de projeção de uma realidade (ao menos no âmbito da cultura) distinta da que se apresentava e, portanto, com características próprias à utopia. No entanto, se examinarmos com cautela o que está subentendido na idéia de valorização da cultura brasileira com base na cultura popular, seremos levados a perceber que a ideologia está contida na utopia. O que acontece com Ariano Suassuna, portanto, parece aproximar-se do que Mannheim (1986: 216) descreve da seguinte forma: Uma pessoa pode-se orientar para objetos que sejam estranhos à realidade e que transcendam a existência real – e, não obstante, permanecer ainda ao nível da realização e na manutenção da ordem de coisas existentes. O que faz com que as idéias armoriais em incongruência com a realidade não possam ser consideradas como "absolutamente utópicas", e portanto opostas à ideologia segundo Mannheim, são as contradições e equívocos que lhe são inerentes, ou o fato de que seus conteúdos correspondem a representações da realidade que resguardam antigas orientações ideológicas. Quais sejam? A concepção de identidade como raiz única, fixa e existente como um dado a priori; e uma visão de cultura popular e de povo que tende a lhes remover a historicidade, entendendo-os como isentos às transformações e às negociações com as culturas de elite e até mesmo com a cultura de massa, abominada por Ariano Suassuna. Na suposição de que a cultura popular abriga a autenticidade e a unidade da cultura nacional está implícito um enfoque desta instância da cultura que se aproxima, sobretudo, de uma das correntes protagonistas, segundo Canclini (2003: 206), da “teatralização do popular”: o folclore4. A migração de símbolos isolados do “povo” para o contexto da arte erudita, como propõe o discurso de Ariano, concorre para uma das tarefas do folclore, a saber, a apreensão do popular como tradição: Essa fascinação pelos produtos, o descaso pelos processos e agentes sociais que os geram, pelos usos que os modificam, leva a valorizar nos objetos mais sua repetição que sua transformação. (CANCLINI, 2003: 211) Com a vitória de Eduardo Campos (PSB, Partido Socialista Brasileiro) para o governo de Pernambuco, Ariano Suassuna foi nomeado, mais uma vez, Secretário da Cultura, no que essa gestão está chamando de Secretaria Especial de Cultura. Sua disposição é dar continuidade às metas perseguidas desde a década de 70, o que já provoca, no entanto, algumas dúvidas bem perplexas e, em alguns casos, descontentamento. Talvez a vinculação de uma estrutura política a um movimento estético formado por uma elite de intelectuais não fosse vista com tantas ressalvas se seus pilares ideológicos tivessem sido revistos. Mas, ao que tudo indica, Ariano 4 As demais são as indústrias culturais e o populismo político. Anais do Evento PG Letras 30 Anos Vol. I (1): 345-354 351 III – Pesquisas em Andamento – Teoria da Literatura Suassuna continua a tratar a cultura popular como a salvaguarda da identidade nacional, como se a cultura popular e o povo, vistos da perspectiva da elite, permanecessem ilesos à história, e também não dialogassem, por sua própria iniciativa, com as culturas de massa e com as da elite. Além disso, uma visão de cultura brasileira que aceita determinadas contaminações, mas não outras, determinadas manifestações, mas não outras, continua sendo marca do escritor. Na década de 70, não conferia legitimidade ao Tropicalismo, por dizer que esse corroborava a imagem que os norte-americanos construíam dos latinos; na década de 90, o manguebeat, apesar de também valorizar a cultura popular pernambucana, não recebia os melhores aplausos de Ariano porque o mais popular de seus representantes era conhecido como Chico Science e não Chico Ciência, e porque não negava referências oriundas da cultura norte-americana, como a guitarra, o rock e o Hip Hop. Hoje, mal começa a gestão assumidamente armorial, e Chimbinha é atingido em cheio pela visão apocalíptica do mestre do Armorial. A complexidade cultural e a diversidade estética prevêem que a música de bandas no estilo da Calypso agrade a uma parte da sociedade e a outra, não, como, de resto, toda manifestação cultural. Se aqueles que não se agradam estão no lugar da elite, isso não lhes confere o direito de que sua visão estética seja o referencial, o parâmetro, a partir do qual se julgam outras escolhas, outros gostos, outras expressões. Cada uma das expressões tem valor legítimo como lugar de significação e de construção e afirmação de identidades. É surpreendente que uma gestão cultural, hoje, não parta desse entendimento, ou, no mínimo, não tenha implícito em suas ações e seu discurso o reconhecimento de que bandas como a Calypso representam, inclusive, uma expressão econômica legítima, pois constituem um verdadeiro circuito independente de produção, circulação e consumo e empregam milhares de músicos, técnicos, dançarinos, etc., especialmente no Norte e no Nordeste do Brasil. Esse fascínio do sujeito da elite por “resgatar” o povo mas não conhecê-lo remove das manifestações populares sua historicidade e sua capacidade própria de transformação, vendo-as, dentro do processo histórico, como incapazes de construírem suas próprias condições de se manterem vivas. Segundo Hall (2003: 260), fazê-lo é analisar as “formas culturais populares como se estas contivessem, desde o momento de sua origem, um significado ou valor fixo e inalterável”. E este autor vai além, ao considerar que, assim como “não há um conteúdo fixo para a categoria da ‘cultura popular’” (HALLl, 2003: 262), o sujeito que a ela é atrelado - “o povo” (exatamente assim, com artigo definido) – também não constitui um sujeito estável, como determinadas forças o querem representado: “O povo” nem sempre está lá, onde sempre esteve, com sua cultura intocada, suas liberdades e instintos intactos (…); como se, caso pudéssemos “descobri-lo” e trazê-lo de volta à cena, ele pudesse estar de prontidão no lugar certo e ser computado (HALL, 2003: 263) Essa forma de operar com os valores culturais populares, tratando-os como símbolos isolados e sem História, identifica-se com o que Martín-Barbero (1997) chama de inclusão abstrata e exclusão concreta. Como se víssemos as ideologias Anais do Evento PG Letras 30 Anos Vol. I (1): 345-354 352 III – Pesquisas em Andamento – Teoria da Literatura se camuflarem de utopias. Ou como se, ao contrário do raciocínio de Mannheim, não fosse viável separá-las. Para além da afinidade e contribuição portanto espontânea de alguns artistas com a proposta do Armorial, a abrangência deste movimento, que engloba literatura, música, pintura, escultura, teatro, dança, etc., deveu-se às iniciativas de Ariano Suassuna nos cargos públicos que assumiu ligados à gestão de cultura: diretor do Departamento de Extensão Cultural da Universidade Federal de Pernambuco (1969); secretário de Educação e Cultura do Recife, na gestão do prefeito Antônio Farias (1975/1979); e secretário estadual de Cultura, no governo de Miguel Arraes (1995/1998). Suas ações para a cultura foram guiadas pelas suas concepções, e não são poucas as críticas em relação à sua atuação como um secretário que privilegiou suas opções estéticas. São incrivelmente pertinentes, para pensar a contribuição política de Ariano Suassuna, estas palavras de Canclini (2003: 156 e 157): (...) uma política democratizadora é não apenas a que socializa os bens "legítimos", mas a que problematiza o que deve entender-se por cultura e quais são os direitos do heterogêneo. Por isso, a primeira coisa que deve ser questionada é o valor daquilo que a cultura hegemônica excluiu ou subestimou para constituir-se. Considerações Finais As antigas orientações ideológicas do "estado de espírito utópico" de Ariano Suassuna devem-se, então, não só à "aristocratização do popular", como apontara Hermilo Borba Filho, mas também à tendência a enxergá-lo como estático, a essencializar a identidade (seja ela de nacionalidade, de etnia ou de raça) e a determinar a legitimidade de determinados tipos de bens simbólicos e os modos "adequados" de se apropriar deles. Hoje, isso fica ainda mais evidente por nos encontrarmos num momento em que as trocas culturais e lingüísticas ocorrem de maneira fulminante, e também num momento em que a "utopia" da preservação da identidade nacional tem que ser substituída pela de uma "identidade relação" (GLISSANT, 2005: 28): aquela "que comporta uma abertura ao outro, sem perigo de diluição". REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOBBIO, N., MATTEUCCI, N., PASQUINO, G. 2000. Dicionário de política. Vol. 2 LAnais do Evento PG Letras 30 Anos Vol. I (1): 345-354 353 III – Pesquisas em Andamento – Teoria da Literatura Z. 5.ed. Brasília: Editora Universidade de Brasilia: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, CANCLINI, N. G.2003. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. 2.ed. São Paulo: Edusp. DIDIER, M. T. 1970-76. Emblemas da sagração armorial: Ariano Suassuna e o Movimento Armorial. GLISSANT, E. 2005 Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora: Editora UFJF. HALL, S. 1986. 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