Eglon Pinto da Fonseca Educação Sociocomunitária, corporeidade e linguagens circenses: a práxis dos arte-educadores do Instituto Sócio Cultural Brinquedo Vivo Americana 2012 Eglon Pinto da Fonseca Educação Sociocomunitária, corporeidade e linguagens circenses: a práxis dos arte-educadores do Instituto Sócio Cultural Brinquedo Vivo Dissertação apresentada como exigência parcial para obtenção do grau de mestre em Educação Sociocomunitária, com a linha de pesquisa: linguagem, intersubjetividade e práxis, no Centro Universitário Salesiano de São Paulo, sob a orientação do professor/Doutor Severino Antônio Moreira Barbosa. Centro Universitário Salesiano Americana 2012 Fonseca, Eglon Pinto da F239e Educação Sociocomunitária, corporeidade e linguagens circenses: as práxis dos arte-educadores do Instituto Sócio Cultural Brinquedo Vivo / Eglon Pinto da Fonseca – Americana: Centro Universitário Salesiano de São Paulo, 2012. 125 f. Dissertação (Mestrado em Educação). UNISAL – SP. Orientador: Prof. Dr. Severino Antonio Moreira Barbosa. Inclui bibliografia. 1. Educação Sociocomunitária. 2. Corporeidade. 3.Linguagens circenses – Brasil. I. Título. CDD – 370.193 Catalogação elaborada por Maria Elisa Pickler Nicolino – CRB-8/8292 Bibliotecária do UNISAL – Unidade Americana. Autor: Eglon Pinto da Fonseca Título: Educação Sociocomunitária, corporeidade e linguagens circenses: as práxis dos educadores do Instituto Sócio Cultural Brinquedo Vivo Dissertação apresentada como exigência parcial para a obtenção do grau de Mestre em Educação Educação Sociocomunitária, com a linha de pesquisa: linguagem, intersubjetividade e práxis, no Centro Universitário Salesiano de São Paulo, sob a orientação do professor/Doutor Severino Antonio Moreira Barbosa. Trabalho de Conclusão de Curso defendido e aprovado em____/____/______, pela comissão julgadora: _______________________________________ Professor/Doutor Severino Antônio Moreira Barbosa Centro Universitário Salesiano de São Paulo - Unisal __________________________________________ Professor/Doutor Luis Antônio Groppo Centro Universitário Salesiano de São Paulo - Unisal __________________________________________ Professora/Doutora Claudia Regina Alves Prado Fortuna Universidade Estadual de Londrina – UEL Americana 2012 Resumo A presente pesquisa de mestrado dissertou sobre os trabalhos educativos de alguns arte-educadores que se apropriam das linguagens circenses como meios para as suas intervenções. Partindo do entendimento de que Educação é um fenômeno complexo, que vai além dos processos educativos desenvolvidos pela escola formal, buscamos investigar as possíveis contribuições que as práticas circenses proporcionariam na formação do educando. Para tanto, além de focarmos a nossa atenção nessa questão, procuramos entender como acontecem os processos de aprendizagens organizados e conduzidos pelos arte-educadores que trabalham debaixo da lona – práxis – a partir de uma perspectiva de circo escola. Para entendermos o que acontece debaixo da lona, lançamos mão da observação participante, subsidiados pela concepção fenomenológica da Educação, tendo como principais referências as contribuições dos educadores/formadores brasileiros Augusto J. Crema Novaski, e Antônio Muniz Rezende, e orientados pela pedagogia libertadora de Paulo Freire estabelecemos diálogos com os pressupostos do paradigma da Corporeidade que nos possibilitou ensaiar algumas reflexões sobre o corpo no processo de aprendizagem. Ao final desse trabalho, chegamos ao entendimento provisório de que as experiências com as linguagens circenses contribuem de forma significativa com o desenvolvimento global dos educandos. No entanto, apesar dos belos trabalhos que os arteeducadores desenvolvem, falta-lhes um melhor entendimento sobre a importância das suas próprias práticas, pois isso lhes possibilitariam realizar intervenções de forma mais consciente, mais sensível, mais competente. Acreditamos que este trabalho possa colaborar com os educadores que se interessam em conhecer as linguagens circenses, e suas possibilidades de utilização em suas práxis. Palavra chaves: circenses. Educação Sociocomunitária, Corporeidade, linguagens Abstract This master research spoke about the educational work of some art educators who appropriate languages as media circus for their interventions. Based on the understanding that education is a complex phenomenon that goes beyond the educational process developed for formal schooling, we investigate the possible contributions that the circus would provide practice in elementary education. For this purpose, and focus our attention on this is sue, try to understand how the processes of learning take place organized and conducted by art teachers working under canvas-praxis- from the perspective of a circus school. To understand what happens under the canvas, we used participant observation, subsidized by the phenomenological conception of Education, the main references the contributions of educators/ trainers Brazilian Augusto J. Novaski Crema and Antônio Muniz Rezende, and directed by Paulo Freire liberating pedagogy establish dialogues with the assumptions of the paradigm of Embodiment, which allowed us to test some reflections on the body in the learning process. At the end of this work, we reached the provisional view that the experiences with the circus language contribute significantly to the overall development of students. However, despite the beautiful works that art teachers develop, they lack a better understanding of the importance of their own practices, as this would allow them to intervene more consciously, more sensitive, more competent. We believe this work can collaborate with educators who are interested in learning languages circus, and its possible usesin hispractice. Keywords: The Social and community Education, Embodimentand circus languages. Sumário Introdução......................................................................................................................12 1 - Reflexões sobre Educação......................................................................................18 1.2 Educação: em busca de um sentido..............................................................29 1.3 Educação Sociocomunitária e comunidade circense.....................................42 2 – Corporeidade e Educação.......................................................................................50 2.1 O corpo que aprende.....................................................................................59 3 – Linguagens circenses: arte e motricidade...............................................................69 3.1 A experiência de criar pelo movimento..........................................................70 3.2 As experiências vivenciadas debaixo da lona...............................................74 3.2.1 Ginástica Acrobática...................................................................................75 3.2.2 Tecido Acrobático.......................................................................................78 3.2.3 Lira..............................................................................................................79 3.2.4 Trapézio......................................................................................................80 3.2.5 Malabares....................................................................................................81 4 – Os caminhos da pesquisa.......................................................................................82 4.1 Delineando um caminho.................................................................................83 4.2 Apresentando o Instituto Sócio Cultural Brinquedo Vivo...............................88 4.3 Aprender com o outro: aproximando os conhecimentos................................91 4.4 O trabalho de campo......................................................................................93 4.5 As vozes dos educadores..............................................................................97 4.6 Sobre o que observamos e ouvimos............................................................112 Considerações finais...................................................................................................118 Referências Bibliográficas...........................................................................................122 “A grandeza do homem consiste na sua decisão de ser mais forte que a condição humana” Albert Camus “Cada um de nós compõe a nossa história, e cada ser em si carrega o dom de ser capaz e ser feliz”. Almir Sater – “A marcha” Agradecimentos Ao professor/Doutor Severino Antônio, com quem aprendi que ser educador é saber aprender com as experiências dos outros por meio do diálogo, pela orientação e pela paciência com que conduziu esse processo. Aos professores Luis Antônio Groppo e Claudia Fortuna, pelas valiosas contribuições na qualificação. A todos os meus amigos do programa de mestrado em especial a Suzana Coutinho, Jose Vicente, Carolina Defilipe, Rogério Masi, Sandra Bittencourt, Viviam Kauling, Maria do Carmo. Com eles aprendi o sentido da palavra solidariedade. Ao Instituto Sócio Cultural Brinquedo Vivo por abrir as portas e permitir a pesquisa fosse realizada. Aos arte-educadores do Instituto Sócio Cultural Brinquedo Vivo, pelo acolhimento e pelas valiosas contribuições que ofereceram. Compartilho com todos os citados os resultados deste trabalho. Dedico este trabalho a minha esposa Manoela. Pelos incentivos, pela compreensão e paciência que foram fundamentais na realização deste trabalho. Em memória dos meus pais Raymundo Fonseca e Lucila da Silva Fonseca. | 12 Introdução Educação!? Qual é o seu sentido? Essa pergunta vai nos acompanhar em todo o processo de construção desse trabalho. A princípio, parece ser uma pergunta de fácil resposta. Mas, para os educadores profissionais não é bem assim. Podemos encontrar várias respostas em todos os lugares, inclusive acompanhadas por receitas prontas de ações educativas. Para isso há uma quantidade imensurável de obras que se propõem a esse fim. No entanto, apesar de existir modelos educativos validados e reconhecidos pela comunidade científica-educativa, o que testemunhamos com frequência são os exemplos de comportamentos egoístas, individualistas, consumistas e de confronto. Na sociedade contemporânea, ainda não conseguimos erradicar os comportamentos que geram as situações de injustiças, de violência gratuita, de desrespeito aos direitos dos outros e, o que é mais lamentável, é que estamos perdendo a capacidade de nos indignar com essas situações. É comum nos depararmos com situações de desrespeito: dos mais novos para com os mais velhos, dos filhos para com os pais, dos alunos para com os professores, no trânsito, na política. As referências de valores privilegiam as aparências, o poder econômico, as fantasias criadas pelos meios de comunicação para estimular o consumo e inculcar valores. Educar, nesse contexto, tornou-se um desafio. Acreditamos que, assim como nós, muitos educadores/professores tenham certa dificuldade em definir com clareza e convicção o sentido da sua ação profissional e as suas responsabilidades. Devemos educar para transformar o sistema vigente ou adaptar os educandos/alunos a uma realidade que a primeira vista nos parece imutável? É possível mudarmos a realidade? O que podemos propor para viabilizar essa mudança? Apesar dos mais otimistas acreditarem que é possível construir, por meio da educação, uma sociedade melhor para se viver, escolhemos seguir um caminho mais modesto, acreditando que é possível contribuir na formação de | 13 pessoas capazes de viver e sobreviver de maneira ética em um mundo competitivo, egoísta, esquizofrênico, no qual as pessoas falam “X”, mas fazem “Y”, onde somos constantemente julgadaspelo o que temos e não pelo o que somos. Na sociedade contemporânea, onde os espaços e os recursos são cada vez mais escassos, é comum que exista uma disputa de poder entre os homens, ou determinados grupos sociais, pela hegemonia material e simbólica. Se antes a supremacia dos interesses era imposta pelo uso da força bélica, hoje os mecanismos de dominação são sutis. Podemos elencar vários mecanismos de alienação e de controle utilizados para a obtenção do poder, porém consideramos que os mais eficientes são os meios de comunicação de massa que têm a capacidade de propagar informações interessadas e/ou criar um mundo de sonhos e fantasias, contribuindo fortemente na formação de uma cultura em que não é possível diferenciar o que é real do irreal, se temos necessidades ou desejos de consumo. Na sociedade contemporânea é comum que se criem necessidades de consumo para escravizar as pessoas, formando uma dinâmica sem fim de trabalho-consumo-endividamento, mais trabalho, mais consumo, mais endividamento... Entretanto, devemos reconhecer que essa é uma dinâmica em que muitos gostam de estar inseridos, ou pelo menos não se importam com ela, e não cabe a quem quer que seja dizer se ela é boa ou má, se ela traz a felicidade ou a infelicidade, mesmo por que ninguém pode instituir parâmetros definitivos para essa questão. Cabe à educação e ao educador profissional fornecer subsídios, para o educando, que o capacite para que possa realizar uma leitura mais contextualizada, para que assim possa decidir os rumos que direcionarão a sua vida. Por meio da educação intencional e sistematizada – educação formal e não formal –, precisamos contribuir para a formação de sujeitos que sejam capazes de criar alternativas e possibilidades de sobrevivência, seguindo um conjunto de princípios éticos. Alguns educadores/formadores (ASSMANN, 1998; ANTÔNIO, 2010; REZENDE, 1978, 1992; NOVASKI, 1994), acreditam | 14 que é preciso desenvolver os sentidos e a sensibilidade, pois são eles as bases dos filtros de percepção da realidade. A falta de sensibilidade leva os sujeitos a se comportarem como pessoas apáticas, perdendo o senso ético, agindo por meio de ações mecanizadas. São incapazes de criar, e vivem conforme os interesses e ideais dos outros. É fato corrente, entre os educadores, que a educação é um processo que leva as pessoas a uma mudança de comportamento, e a certeza que temos é que essas transformações apenas ocorrem quando há modificações nas suas estruturas cognitivas – maturação orgânica –, pois desenvolvem as suas capacidades de associação de conceitos e de fatos, por meio do pensamento e do raciocínio, permitindo que façam suas escolhas para as tomadas de decisões mais vantajosas (DAMASIO, 1996), sem a necessidade de desrespeitar os espaços e os direitos dos outros. Dessa forma, os sujeitos partirão de um ponto de ignorância, ou incapacidade de formular referências de análises para a leitura da realidade, para outro em que são capazes de manipular os recursos de cognição e de linguagem para uma leitura contextualizada do mundo, ou seja, movem-se da imposição alheia para a emancipação individual (SANTOS, 2007). Neste momento histórico de incertezas, é fundamental que o educador/professor, saiba a diferença entre o seu mundo dos sonhos e o mundo real. Com tantas teorias educacionais, não é difícil cairmos na armadilha de acreditarmos nos discursos ocos, nas retóricas sem finalidade prática. É muito comum encontrarmos educadores/professores “papagaios”, ou seja, aqueles que decoram um conjunto de teorias e saem por aí repetindo, sem reflexão, sem conseguir atribuir sentido a sua própria prática. Nesse trabalho dissertativo, a nossa intenção é de nos aventurar pelo mundo – da educação – em busca de respostas que pudessem dar sentido ao ato de educar. Nessa caminhada dialogamos com alguns educadores/formadores, brasileiros, principalmente com os que lançam mão das concepções fenomenológicas da educação (NOVASKI, 1984; RESENDE, 1992), para o enriquecimento desse diálogo também buscamos nos aproximar de outras vertentes epistemológicas como a antropologia social, por meio das | 15 contribuições de Brandão (2010), e dos pressupostos da formação para a autonomia e emancipação social de acordo com ás ideias do educador Paulo Freire (1992), e do sociólogo Boaventura de Souza Santos (2007). Refletimos sobre suas concepções e tentamos esboçar um sentido próprio para a educação e as responsabilidades dos educadores profissionais, do educador social e do professor. Como sabemos a escola, na sociedade contemporânea, tornou-se a principal referência na questão da formação humana a partir de processos educativos. Porém, acreditamos ser um equívoco atribuir unicamente a ela essa responsabilidade. Se assim fosse, atribuiríamos uma responsabilidade para o professor – como agente da educação nesse espaço – indo além das suas possibilidades. Essa responsabilidade, de educar, no nosso entendimento, deve ser partilhada com outras instituições sociais onde as relações humanas acontecem, por exemplo: família, instituições religiosas, centros comunitários e de convivência. Neste sentido, precisamos entender quais são os espaços, as perspectivas e as possibilidades de atuação do profissional da educação – educador social e professor. Assim acreditamos que seja possível forjar outros caminhos e outros meios de realização de processos educativos a partir de linguagens não contempladas, ou pouco contempladas, pela educação escolar ou familiar. Lembramos que, de forma nenhuma queremos substituir a educação escolar ou familiar. Somos conscientes das suas importâncias no processo de formação humana. O que queremos dizer é que não podemos reduzir a processos de educação formal (escolar) e informal (familiar) toda a formação humana. Partindo do pressuposto que o processo educativo acontece a partir de experiências de aprendizagem, na maior parte das vezes em relação com os outros, acreditamos que seja possível educar por meios alternativos, como as atividades artísticas e corporais. Existem várias instituições e educadores que se propõem a desenvolver propostas educativas que contemplem as artes, seja visual, corporal, escrita, musical, plástica, entre outras. Dessa forma, entendemos ser legitimo o | 16 interesse conhecer com profundidade as propostas educativas dessas instituições e desses educadores para que possamos realizar uma leitura reflexiva sobre as sua práxis. No caso comunidade específico educativa, em desse que trabalho, buscamos acontecem investigar experiências uma educativas intermediadas pela arte e pela motricidade humana; uma comunidade circense, o Instituto Sócio Cultural Brinquedo Vivo. Iremos considerar como comunidade circense – arte-educadores e educandos – que compartilham um espaço em comum – debaixo da lona – e desenvolvem processos educativos. As linguagens circenses, como linguagens artísticas e corporais, devido às suas características, contribuem para a educação dos sentidos e da sensibilidade,que são os meios pelos quais percebemos e interpretamos o mundo que nos rodeia, permitindo que possamos agir de forma crítica e criativa. No entanto, precisamos compreender o homem como um ser complexo – emocional, biológico, histórico, cultural – em constante processo de reorganização de sua corporeidade para continuar vivo, não apenas existindo. Nessa comunidade que investigamos, os arte-educadores circenses são os principais protagonistas da organização das experiências de aprendizagem a serem compartilhadas. Não desconsideramos as diversas subjetividades dos demais membros dessa comunidade (educandos), mas voltamos nosso olhar para os educadores por acreditarmos que se trata de pessoas que participam do processo e das relações de forma mais qualificada devido às suas experiências de vida. Para a realização desse trabalho, optamos por utilizar os métodos da observação participante, por entendermos que apenas a partir de uma relação próxima aos educadores entenderemos os sentidos que fundamentam suas práticas. Para melhor situar o leitor nesse trabalho, resumiremos aqui os três capítulos que serão descritos no desenvolvimento do trabalho. No primeiro capítulo realizaremos uma reflexão sobre Educação, refletindo sobre suas possibilidades e suas limitações, deixando claro o nosso entendimento e posicionamento quanto à questão, e partindo do principio de | 17 que se trata de processos intencionais e não intencionais, que podem ser desenvolvidos em diversos ambientes, e não unicamente na escola. Nesse momento também discutiremos sobre Educação Sociocomunitária, um conceito em construção que, entre outras intenções, busca investigar as experiências educativas que acontecem em espaços não escolares, a partir das múltiplas abordagens e linguagens. Falaremos também sobre a comunidade circense como uma comunidade educativa que se apropria de linguagens específicas que são intermediadoras das relações e das experiências. No segundo capítulo, discorreremos sobre o paradigma da corporeidade, entendendo que suas bases teórico-epistemológicas permitem que os educadores/professores entendam a importância do corpo nos processos de construção e apreensão de conhecimento (aprendizagem). Neste capítulo também aprofundaremosa questão das linguagens circenses como possibilidades educativas, pois proporcionam um conjunto de experiências corporais que permitem relações enriquecedoras com o outro e com o mundo. O terceiro capítulo tratará dos procedimentos adotados na pesquisa de campo que, como já adiantamos, consiste em uma observação participante com os arte-educadores do Instituto, na intenção de participar ativamente das suas realidades para se pensar comunitariamente, a superação de eventuais dificuldades encontradas por esses educadores. Posteriormente iremos propor a leitura e interpretação das informações colhidas junto com esses educadores. Finalmente, faremos uma discussão sobre vozes dos arte-educadores do Instituto, assim como a de seu fundador e das observações que realizamos, procurando estabelecer uma relação com os princípios da educação para a humanização. O fim desse estudo é provocar o leitor a refletir sobre as possibilidades de uma filosofia de ação na educação que aponte para um caminho que leve o educando a uma vida livre e mais feliz. 1 – Reflexões sobre Educação “A inteligência e o caráter é o objetivo da verdadeira educação”. Martin Luther King “A principal meta da educação é criar homens que sejam capazes de fazer coisas novas, não simplesmente repetir o que outras gerações já fizeram. Homens que sejam criadores, inventores, descobridores. A segunda meta da educação é formar mentes que estejam em condições de criticar, verificar e não aceitar tudo que a elas se propõe.” Jean Piaget | 19 Vamos iniciar esse trabalho de pesquisa realizando algumas reflexões sobre educação, baseados em nossa experiência como educadores profissionais, e em nosso convívio com outros educadores – educadores sociais e professores de educação escolar. Para nós, educadores profissionais, um dos maiores desafios da prática docente é transformar as teorias que foram apreendidas no momento de formação acadêmica em ações educativas coerentes. Quando terminamos a etapa como alunos de graduação e iniciamos na carreira de educadores profissionais deparamo-nos com uma realidade completamente diferente aos pressupostos teóricos da formação acadêmica, e muitas vezes nos sentimos inábeis e até incompetentes. Perguntamo-nos: até que ponto as proposições teóricas proferidas no ambiente de formação acadêmica são válidas ou eficientes no exercício da profissão? Como iniciantes na profissão, parte considerável dos recém formados ainda não possui subsídios para a realização de uma leitura que identifique e diferencie os verbalismos inoperantes e as possibilidades reais de ações educativas. Dessa forma, tornam-se facilmente influenciáveis pelos discursos ocos, pelas teorias sem nenhuma conexão com a realidade docente que vivenciam. Situação que deixa os educadores confusos e indecisos em relação às suas práticas. Entendemos que essa situação apenas será superada após um longo período de trabalho e reflexões que levarão o educador a um amadurecimento pessoal e profissional. Cabe aqui uma ressalva de Otto Maduro, que vai a encontro da nossa percepção do universo acadêmico: [...] valeria a pena refletir pessoal e coletivamente sobre qual é a situação especifica daqueles que reconhecemos como autoridades científicas: a partir de onde, apoiados por quem, em beneficio de quem, com que proveito próprio e em quais áreas tais autoridades fazem ciência, produzem conhecimentos? Qual é a posição social, econômica, política, profissional etc., a partir da qual tais autoridades dizem conhecer? Quais vozes, interesses, tradições, especialidades, habilidades, conquistas, técnicas e conhecimentos são, ao contrario desautorizados por essas autoridades? Em que outros aspectos se diferenciam autoridades e desautorizados? Seria algo causal? (1994, p.69) | 20 Acreditamos que refletir sobre essas provocações, do autor, deva ser o inicio para formularmos um entendimento autônomo e provisório do sentido da educação. Sem esse entendimento ou consciência, qualquer prática ou intervenção educativa não passará de ativismo, sem um ponto de partida ou de chegada, e sem um caminho possível a ser percorrido. Cabe-nos, como educadores profissionais, estarmos atentos e vigilantes às influências dos discursos inoperantes daqueles que nunca vivenciaram, corporalmente, a realidade de uma comunidade educativa. Para tanto, precisamos religar teoria e prática, ação e reflexão, para saber o que é possível e o que é apenas discursos politicamente corretos que são pronunciados por aqueles que têm a intenção de se apropriar do poder (FOUCAULT, 2010). A grande dificuldade dos educadores profissionais – educador social e professor –, é exatamente definir os fins e os meios da educação. Partimos do princípio de que o bom educador/professor é aquele que é capaz de atribuir significado a sua própria prática, partindo de reflexões constantes sobre o contexto histórico que estamos vivendo. O bom educador profissional, no nosso entendimento, é aquele que não permite que os sentidos da sua ação sejam impostos por fatores externos a ele – discursos ocos. No entanto, para nos tornarmos bons educadores, precisamos desenvolver a nossa capacidade leitora da realidade que nos cerca. Isso nos permitira renovar e reinventar as nossas ações. Para nós, é evidente que existem sentidos que circulam na sociedade, em relação à educação, que beneficiam um pequeno grupo que trabalha em busca da dominação dos recursos materiais e simbólicos. A partir da concepção desse grupo, o projeto de educação das pessoas deve estar voltado para a formação da mão de obra que atenda as suas demandas, os seus interesses, garantindo dessa forma a manutenção do poder e da dominação. A história tem nos mostrado que o homem age por dois motivos: para obter prazer, ou para evitar o sofrimento. Novaski (1984, p.16) comenta que “[...] a vida é um constante sentir necessidades em busca de satisfação, que podem ser de ordem material e também de ordem não material [...]”. Isso faz com que o ser humano viva em um grande jogo, em que as relações humanas | 21 giram em torno da disputa da busca pelo prazer. Podemos então estabelecer uma relação do prazer, ou sua busca, com o poder. Aqueles que possuem a habilidade de manipular a dinâmica social serão os privilegiados com o prazer, e na maioria das vezes o poder subjuga e oprime o outro, pois poder e opressão andam lado a lado. A história também nos mostra que o homem, no intuito de conquistar o poder, criou vários mecanismos e estratégias para fazer valer sua supremacia. O homem, então, passou a explorar o trabalho dos seus semelhantes, os menos privilegiados, transformando-os em objetos, coisas, ou melhor, coisificando-os. Paulo Freire é feliz ao fazer uma critica a essa dinâmica social, quando disserta que “ninguém pode ser, autenticamente, proibindo que os outros sejam [...] o ser mais que se busque no individualismo conduz ao ter mais egoísta, forma de ser menos. (1982, p.86). Santos (2007) nos lembra que os mecanismos de alienação e opressão não estão apenas relacionados à questão trabalho-capital. O autor entende que existem seis formas de poder – patriarcado, exploração, fetichismo das mercadorias, diferenciação desigual, dominação e intercâmbio desigual – que podem ser vistos como instrumentos analíticos de produção de poder e de saber. Nesse momento podemos lembrar as provocações de Otto Maduro, pois nos faz refletir sobre o conhecimento e o poder que ele exerce, e como pode ser utilizado como instrumento de manipulação a serviço dos interesses de alguns grupos sociais. Por essa razão devemos ver os discursos dos intelectuais da educação com certa cautela. Cada autor, escritor, cientista enxerga a realidade com os olhos dos seus interesses, e a maioria das vezes os discursos proferidos sobre a realidade social injusta fica apenas na retórica, pois não tem nenhum interesse em modificá-las, mas apenas ganhar notoriedade na comunidade acadêmica. Foucault (2010) em sua obra “A ordem do discurso” nos fala sobre os discursos como instrumento de apropriação do poder, dessa forma nos esclarece que as disputas entre grupos sociais pelo poder simbólico e material, podem acontecer por meio de discursos que | 22 propagam ideias e interesses pontuais daquele grupo, negando e interditando o discurso dos demais. A nossa dificuldade em definir e compreender de imediato o termo e o sentido da educação se justifica pelo medo de, inconscientemente, estarmos reproduzindo os discursos e interesses que não sejam os nossos e automaticamente estar servindo como instrumento para atender os interesses dos outros. Lembro aqui um comentário do professor Novaski, em sua tese de doutorado, que em seus cursos costumava provocar seus alunos dizendo: “sou muito mais aquilo que me fizeram ser, do que aquilo que penso ter feito por mim” (1984, p.91). Vale aqui também referenciar Foucault quando diz que “[...] todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo” (2010, p. 44). Acreditamos que esse é o momento ideal de me posicionar em relação ao nosso entendimento provisório sobre educação, que confessamos que se fundamenta em uma visão pouco otimista do mundo e do ser humano. Brincando de observar os comportamentos das pessoas e o nosso próprio – dizemos brincar, por não sermos um profissional da área; psicólogo, psiquiatra, ou psicanalista –, percebemos que poucas pessoas têm a capacidade de tomar decisões que lhes tragam benefícios sem prejudicar os outros. É rotineiro nos depararmos com pessoas dessensibilizadas, que não têm nenhuma consideração aos sentimentos e necessidades dos outros e por isso possuem atitudes desonestas, mesquinhas, que não medem as consequências dos seus atos se for para obterem vantagens. Alguns podem questionar: mas nem todas as pessoas são assim! Ainda existem pessoas dignas e honestas, com um grande senso de solidariedade e respeito ao próximo. E concordamos com esse discurso, e são pessoas assim – que acredito que é a minoria – que alimentam a nossa vontade em contribuir para formar um mundo melhor. No nosso entendimento, algumas pessoas, de boa fé e até com uma dose de inocência, pensam em educação como a fórmula mágica para todos os males da sociedade. O nosso questionamento é até que ponto a educação pode interferir nos comportamentos das pessoas? Estamos cansados de ver | 23 campanhas educativas na tentativa de conscientizar as pessoas para não dirigir após consumir bebidas alcoólicas, mas a cada dia assistimos noticiários recheados de noticias de acidentes de transito envolvendo pessoas alcoolizadas. Fala-se muito de reeducação para jovens infratores, mas trabalhamos com vários adolescentes em situação de liberdade assistida com comportamentos nocivos a si mesmos e aos outros. Em nosso tempo de estudante de ensino médio cansamos de presenciar adolescentes consumindo drogas dentro da escola, apesar de que no entendimento popular escola é lugar para estudar. E o que dizer de irmãos que tiveram, praticamente, a mesma formação familiar, que frequentaram a mesma escola, conviveram com o mesmo grupo social, mas um seguiu um caminho para a vida honesta e outro o da criminalidade? Essas experiências e outras que até hoje vivenciamos, nos mostra que um mundo com pessoas dignas, honestas, solidarias e respeitadoras dependem de fatores que vão além das intervenções educativas dos educadores profissionais, e é nesse sentido que precisamos dissertar o que entendemos por educação e intervenção educativa realizada por educadores profissionais. Entendo que mudar o comportamento ou as crenças das pessoas já com certa experiência de vida, não seja possível, mesmo que esses comportamentos e crenças sejam destrutivos para elas mesmas e para os outros, mas podemos contribuir para evitar que outras gerações continuem reproduzindo e contribuindo para um sistema de crenças e valores desumanizantes. É nesse sentido que deve atuar o educador profissional. Como dissertamos anteriormente, nem sempre temos a capacidade de tomar decisões que nos beneficiem. Há estudiosos das neurociências – como Antônio Damásio (1996) –, e das ciências biológicas – como Humberto Maturana e Francisco Varela (1995) – que acreditam que os fatores que influenciam as tomadas de decisões dependem de um conjunto de experiências corporais que modificam as estruturas neurológicas dos sujeitos. Dessa forma, podemos acreditar que as decisões tomadas por alguém acontecem a partir de um repertório de possibilidades construídas e adquiridas durante suas experiências – conhecimento – e, quanto menos experiências o sujeito possui, menores serão as referencias para a tomada de decisões – | 24 ignorância –, repercutindo em ações desajustadas, impensadas e agressivas a si mesmo e aos outros, ou em ações baseadas nas influências dos outros. É comum, na sociedade contemporânea, encontrarmos pessoas subjugadas aos determinismos, conformados com as migalhas que sobram dos detentores do poder – econômico ou simbólico. Pessoas que não acreditam em sua própria capacidade de superação e por isso ficam letárgicos, acreditando em uma virada da sorte para ter uma vida melhor. Ignoram a ideia de que o desenvolvimento e aperfeiçoamento humano é um processo que exige sacrifícios, escolhas, alegrias e frustrações. Para muitos, a felicidade depende dos rumos políticos, de Deus, de sorte. Questões como trabalho, dedicação, entrega, estudo são desconsideradas. Na concepção de Santos (2007), a superação do sistema opressor apenas será possível quando o sujeito passar da condição de ignorância – caos – para uma condição de conhecimento – ordem –, ou seja, quando o sujeito se apropriar de um conhecimento emancipatório que o possibilite sair da imposição colonial e passar para uma autonomia solidária. Apesar de reconhecer que ações isoladas são incapazes de transformar o egoísmo em empatia, a ignorância em conhecimento, o individualismo em solidariedade, temos a consciência de que podemos contribuir na tentativa da formação de pessoas mais conscientes, mais éticas, e menos gananciosas. O nosso desafio, que acreditamos que seja também a dos outros educadores, é não deixar que nossa prática torne-se um sistema de ações mecanizadas, reproduzidas da mesma forma por diversos anos, independente do espaço, do publico, das necessidades específicas dos educandos. É comum encontrarmos com educadores/professores que aprendem um método de ensino, fundado em um conjunto de conteúdos específicos, durante um determinado tempo e posteriormente reproduzem, ritualisticamente, a mesma proposta pelos próximos anos da sua carreira. Entendemos que o bom educador é capaz de ressignificar e reinventar a sua prática, por meio da leitura reflexiva da realidade, contemplando as necessidades dos educandos e o contexto histórico da sua atuação. | 25 A formação do bom educador depende de muitos fatores que vão além da apreensão dos conhecimentos originados pelas teorias pedagógicas. Novaski (1984) acreditava que o bom educador – ou filósofo da educação, nas suas palavras –, não pode desmerecer o conhecimento acadêmico, no entanto não pode reduzir o sentido de sua prática a ele. Dessa forma, orientava seus alunos que a matéria prima fundamental na construção de propostas de intervenções educativas era a própria história vivida. Segundo Novaski, A contemporaneidade seria o primeiro traço desse perfil. Partilhar dos anseios contemporâneos, das angustias e vicissitudes que permeiam a vida cotidiana é, com efeito, colocar-se na linha de uma filosofia engajada. Compromisso com a história, na medida em que compete a cada um inserir na indeterminação dos acontecimentos a determinação da ação judiciosa. (1984, p. 86) No entanto, para nos aventurarmos pelo mundo na tentativa de contribuir com a superação dessas angustias da vida cotidiana, como nos fala Novaski, entendemos que devemos, antes, superar nossas próprias angustias, com a busca do entendimento do sentido da educação. Sem esse entendimento do seu sentido não nos é possível construir propostas de intervenção; ou melhor, os rumos que devemos tomar. Como nos lembra Novaski (1984): [...] a primeira responsabilidade da filosofia, que é a de não ficar nas análises e descrições da nossa contemporaneidade, mas de certa forma sair do diletantismo à la ironia socrática e partir para uma maiêutica cujo escopo seria a coerência entre o pensar e o agir, coerência esta dotada do mesmo índice de inacabamento de que é dotada a verdade, pois fundamentalmente a busca da coerência é ela também alétheia. (p.86-87, grifos do autor). Essas angústias, que acompanham boa parte dos educadores profissionais e também a nós, apenas serão superadas quando nos esforçarmos em entender os comportamentos humanos e suas origens, além de contextualizá-los em um momento histórico. Não é mais possível, para o bom educador, esconder-se por detrás de discursos inoperantes – parafraseando Paulo Freire. Urge a necessidade de fundamentarmos propostas de ação baseadas nas experiências pessoais e profissionais. Boaventura de Souza Santos (2007), em seu livro, “Renovar a teoria critica e reinventar a emancipação social”, defende a ideia de que não podemos ter como base para a tomada de decisões unicamente as ciências, que no caso do | 26 nosso campo são as ciências da educação. O autor defende que não devemos considerar os conhecimentos como rivais – científico e empírico – mas sim devemos entender que cada conhecimento contribui da sua forma para a explicação da realidade. Essa forma de entender os conhecimentos é denominada pelo autor de “ecologia de saberes”, que em suas próprias palavras: Não se trata de "descredibilizar" as ciências, nem de um fundamentalismo essencialista "anticiência"; como cientistas sociais, não podemos fazer isso. O que vamos tentar fazer é um uso contra-hegemônico da ciência hegemônica. Ou seja, a possibilidade de que a ciência entre não como monocultura, mas como parte de uma ecologia mais ampla de saberes, em que o saber científico possa dialogar com o saber laico, com o saber popular, com o saber dos indígenas, com o saber das populações urbanas marginais, com o saber camponês. (2007, p. 32-33). Compartilhando com as ideias de Novaski (1984), a nossa filosofia de ação pedagógica, nada mais é do que a filosofia do que somos. Se formos, ou nos comportamos como seres escravizados, alienados, manipulados pelos discursos e teorias de educação, nos tornaremos apenas reprodutores dessas teorias, e nada teremos a acrescentar à vida do outro, estaremos fingindo ao outro e para nós mesmos que estamos agindo. Se teorias e discursos vão contra ao que somos em nossa realidade, serão inutilidades que usaremos para justificar nossa prática pedagógica. Paulo Freire (1996) nos alerta para o risco de cairmos na armadilha do verbalismo inoperante – a qual muitos, inclusive eu, se deixaram seduzir –, por meio de discursos sem finalidade prática, apenas para satisfazer a ordem do discurso politicamente correto. Na tentativa de nos distanciarmos dessa armadilha e também dos ativismos mecanicistas, pensamos em desenvolver um trabalho de pesquisa em que seja possível aliar os pressupostos das ciências da educação com as experiências práticas de alguns arte-educadores que trabalham com as linguagens circenses. Partindo do principio de que “compreender é compreender-se, interpretar é interpretar-se”, decidimos “andarilhar” pelo mundo, na tentativa de compreender o que os outros educadores/professores estão fazendo, por que estão fazendo? Como estão fazendo? Acreditando que com a interpretação das suas práticas de intervenção educativa, possamos | 27 encontrar subsídios que nos ajudem a pensar um sentido da educação, e assim fundamentar a nossa própria prática. Antônio (2007, 2009) orienta-nos a escutar as vozes que são proferidas pelos outros sujeitos, independente da origem social do discurso, pois nessas vozes pode haver fontes riquíssimas de conhecimento, que nos ajudarão na nossa caminhada rumo à humanização. Para Antônio “educar é criação de sentido. Uma atividade de descoberta e construção de conhecimento. Reconhecemos e produzimos sentido nas interações e diálogos que configuram o trabalho de educar e educar-se” (2009, p.19). Para Rezende “[...] a atitude interpretativa e crítica prolonga-se e se completa na criatividade que, por isso mesmo, aponta para frente, em projetos que, pelo menos, apresentamse como novas possibilidades” (1978, p. 70). Nessa empreitada, pretendemos dialogar com alguns educadores formadores brasileiros – Antônio (2010); Assmann (1998); Brandão (2010), Resende (1992), Novaski (1984); Paulo Freire (1992) –, e outras vozes que venham contribuir para a reflexão sobre o sentido da educação. Nesse momento é fundamental deixar claro que a intenção não é observar o trabalho dos arte-educadores para depreciá-los. Não queremos ser como os oportunistas que usam os outros – professores/educadores – para colher dados e informações e, posteriormente, realizar uma análise baseado em algum paradigma, finalizando com pronunciamentos sobre erros e acertos, instituindo o certo ou o errado. Por outro lado, não pretendemos deixar de lado a nossa responsabilidade como interpretes críticos desse contexto. Devemos considerar que, não importando a origem social do discurso, todos nós somos capazes de produzir conhecimentos e, mais do que isso, temos credibilidade (BRANDÃO, 2010). Essa dissertação antes de ser endereçada à comunidade científica, para o consentimento de uma graduação acadêmica, é endereçada a nós mesmos, pois precisamos satisfazer as nossas necessidades. Cabe aqui uma referência de Paulo Freire quando diz que [...] os homens são seres do que fazer e exatamente por que seu que fazer é ação e reflexão. É práxis. É transformação do | 28 mundo. E, na razão mesma em que o que fazer é práxis, todo fazer do que fazer tem de ser uma teoria que necessariamente o ilumine. O que fazer é teoria e pratica. É reflexão e ação. Não pode reduzir [...] nem ao verbalismo, nem ao ativismo” (1992, p.145) O trabalho, que hora iniciamos, tem como objetivo principal refletir sobre as práticas educativas de outros educadores/professores, na esperança de que o encontro entre nossas subjetividades forme subsídios para compreendermos e fundamentarmos as nossas ações. Pensamos que, com essa intenção, possamos provocar os educadores profissionais, que tenham contato com este trabalho, a buscar um significado para a sua própria prática, relacionando o que são com o que fazem. Para tal, precisamos reconhecer o quanto somos medíocres, para depois vislumbrarmos a possibilidade de mudança, para agir da forma que considerarmos significante. Os leitores desse trabalho estão percebendo que temos mais perguntas do que respostas, e isso nos leva a um esforço na tentativa de atingir nossos objetivos, mesmo atribuindo mais importância ao processo e menos ao resultado final. Nos próximos itens, buscaremos algumas referências sobre o conceito e o sentido da educação. Para tal, pretendemos dialogar com alguns educadores/formadores acreditando que seus entendimentos possam nos ajudar a formular o nosso. Posteriormente, falaremos sobre Educação Sociocomunitária, um conceito ainda em construção que pode contribuir para compreendermos o trabalho da instituição que estamos investigando. 1.2 – Educação: em busca de um sentido “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”. Paulo Freire “Ninguém escapa da educação” Carlos Rodrigues Brandão | 30 Na sociedade contemporânea, a escola tornou-se sinônimo de educação; quando se fala em educação, naturalmente nos vem à cabeça a palavra escola, dando a impressão de que, esse espaço, é o único onde ela se desenvolve. Porém, Brandão (2007), a partir de uma visão antropológica de educação, afirma que a escola não é o único espaço para seu desenvolvimento, e talvez nem seja o melhor local. Não é tarefa simples conceituar e buscar sentido para a palavra educação devido à sua complexidade. Se recorrermos à origem etimológica da palavra entenderemos que educar se origina do latim “educere” que significa extrair de dentro de si, denotando que educar consiste no processo pelo qual se “extrai” do educando todas as suas potencialidades. Entretanto o processo de “extração” de potencialidades não acontece apenas no processo educacional, pois existem outros métodos que também são capazes de atingir esses objetivos. Educar como um processo contínuo e permanente deve possuir um significado mais abrangente e com uma importância maior, pois educar é algo exclusivamente humano, porque podemos adestrar – treinar, capacitar, preparar – animais, mas não educá-los. Brandão afirma que “a educação não é uma atividade provisória e antecipadamente calculável segundo princípios de utilidade instrumental, utilidade cujo destino é apenas o trabalho produtivo, principalmente quando o exercício deste trabalho serve ao poder e aos interesses do mundo dos negócios” (2010, p.21). Ao nascer, o homem é naturalmente inserido em instituições sociais – grupos humanos –, com um conjunto de códigos e símbolos culturalmente estabelecidos. A apreensão e compreensão desses códigos e símbolos são determinantes para que o homem tenha uma vida satisfatória. São delegadas as gerações mais experientes a tarefa de traduzir esses códigos e símbolos em forma de conhecimento, pois serão esses conhecimentos – sistematizados ou não, e transmitidos por meio de diversas linguagens – que subsidiarão o homem na sua caminhada pela existência, de maneira que possa transformar os recursos disponíveis em instrumentos para uma vida de qualidade. | 31 É na interação/relação com o mundo e com os outros, que o homem vai, paulatinamente, construindo sua personalidade e sua identidade, em um processo no qual vai influenciando o mundo ao mesmo tempo em que é influenciado por ele (BUBER, 2003). Brandão comenta que “educação é como outras, uma fração do modo de vida dos grupos sociais, que criam e recriam, entre tantas outras invenções de sua cultura, em sua sociedade” (2007, p.11). Em um entendimento muito próximo de Brandão, o professor Antônio Muniz Rezende entende educação é como um processo-projeto, o qual tem como objetivo personalizar os sujeitos. O autor, em sua tese de livre docência, estabelece uma interface entre filosofia e antropologia cultural, e define educação “como sendo o processo pelo qual, através da historia, os membros dos diversos grupos humanos assimilam e vivem a imagem de homem veiculado por suas respectivas culturas” (REZENDE, 1978, p.10). Podemos notar, no discurso dos autores citados anteriormente, uma unidade de significado, a palavra cultura. O homem precisa conhecer o seu entorno, sua cultura, precisa adaptar-se a ela, criar e recriar formas de se viver. Há educadores/pesquisadores que defendem a ideia de que processos vitais e processos cognitivos – de conhecimento – podem ser considerados sinônimos, ou seja, “todo sistema vivo precisa necessariamente estar conhecendo ativamente o seu entorno para poder continuar vivo e agir” (ASSMANN, 1998, p.38). Nesse sentido, o sujeito necessita adquirir um conjunto de habilidades que o subsidiarão na sua existência, em outras palavras precisa saber viver. O saber viver depende da capacidade do indivíduo em se adaptar/aprender formas de manter-se vivo nesse entorno. A partir dessas considerações, podemos sintetizar, por meio dessas referencias iniciais, que educação é um processo pelo qual o homem se submete, de forma voluntaria ou não, em que apreende conhecimentos que irão auxiliá-lo na sua inserção nos grupos sociais, de forma que possa contribuir produtivamente, satisfazendo suas necessidades como ser humano. Dessa maneira, não podemos considerar a escola como o único momento e lugar onde se desenvolve educação, mas sim um ambiente – frequentado, | 32 durante um determinado período – responsável por desenvolver habilidades e competências específicas que contribuirão com apenas uma parcela na formação do educando. Gohn (2010) nos fala sobre os vários contextos educacionais: a educação formal, que acontece dentro do ambiente escolar, e onde os professores são responsáveis pelos processos educativos; a educação não formal, que acontece em espaços coletivos e tem como objetivo preparar as pessoas para o exercício da cidadania a partir de experiências compartilhadas; nesse espaço atua o educador social; e a educação informal, que consiste na apreensão de valores éticos e morais a partir do convívio entre pessoas do mesmo grupo social - pais, amigos, escola, igreja etc. Não importando o contexto educacional, o que devemos considerar é que os processos educativos devem proporcionar experiências que ajudem os educandos a adquirir habilidades que serão importantes no seu relacionamento com o mudo e com os outros. Muito depende da educação, o processo de desenvolvimento da sociedade. Para isso se torna necessário preparar as novas gerações para que assumam a responsabilidade de contribuir produtivamente na sociedade em que vivem. É necessário, nesse momento, realizar algumas perguntas, como: para qual sociedade? E, qual o perfil de homem que deve ser formado? Seja qual for a resposta para essas perguntas, torna-se necessário que se pronunciem princípios que nortearão os processos educativos que serão desenvolvidos. Em uma sociedade capitalista, como é a nossa, os princípios norteadores de formação de ser humano estão voltados para a obtenção de poder por meio do acúmulo de propriedade e de bens de consumo. Boa parte das pessoas estão com as preocupações voltadas para a formação de um homem que se adéque às normas e exigências do mercado. Sobreviver na sociedade capitalista depende da capacidade do indivíduo em acumular riquezas, capital; de consumir, mesmo que para isso ocorra o empobrecimento e até a miséria de alguns, ou de muitos. Sendo assim, o princípio mais importante na educação contemporânea é educar para o trabalho. O educando | 33 deve apreender um conjunto de conhecimentos que o habilitem para sobreviver na sociedade de consumo. Como já dissertamos anteriormente, hoje, mais do que antes, a educação formal/escolar tornou-se a principal referência na formação do indivíduo para a sociedade. Com as transformações da sociedade, se aperfeiçoaram os mecanismos de alienação e controle social, a partir de então, as elites perceberam, no espaço escolar, uma possibilidade de controlar e manipular a sociedade conforme seus interesses. Para se manter o poder via o acumulo do capital, são necessários que se controlem as potencialidades humanas, fazendo com que os sujeitos ocupem espaços e posições pessoais pré- determinadas, atendendo o interesse de classes, grupos ou indivíduos. Quanto mais for controlado o processo de desenvolvimento humano e social, maiores serão as possibilidades de manutenção do status de determinado grupo ou classes. Como nos lembra Ivan Illich (1988, p.35): A escola tornou-se a religião universal do proletariado modernizado, e faz promessas férteis de salvação dos pobres da era tecnológica. O Estado-nação adotou-a, moldando todos os cidadãos num currículo hierarquizado, à base de diplomas sucessivos [...] O Estado moderno assumiu a obrigação de impor os ditames de seus educadores por meio de inspetores bem intencionados e de exigências empregatícias [...] Para Illich (1988), a escola é um meio utilizado pelo Estado para institucionalizar o modo de vida das pessoas, impondo-lhes valores, princípios, códigos de condutas e papéis sociais, por meio de aprendizagens, que vão ao encontro de seus interesses, como Estado. Dessa forma determinam-se os espaços que cada um deverá ocupar, desconsiderando as subjetividades e os anseios pessoais. Por esse motivo, se considerássemos a escola como única referência educacional, acabaríamos por reconhecer a necessidade de formar o educando para se encaixar na engrenagem de um sistema explorador. Nesse sentido, educar deixaria de ser apenas processo de apreensão de conhecimentos construídos historicamente, para tornar os indivíduos autônomos/emancipados, para ser um processo determinista, institucionalizado que serve apenas ao interesse de um pequeno grupo social. | 34 Rezende (1978, 1994) defende a ideia da educação como um processoprojeto em que o sujeito se apropria de uma consciência cultural e a partir dela pode personalizar suas ações e se tornar homem, ou humano. Diferentemente da educação mecanicista – que em algumas vezes a educação escolar se aproxima –, que determina a condição humana como uma peça no processo de produção, sem espontaneidade, sem intencionalidade criativa. Em suas reflexões, Paulo Freire (1996) argumenta que o homem não é um recipiente vazio, a ser preenchido por um conhecimento mecanizado, fruto de memorização, para que assim possa se adaptar á realidade, mas sim um sujeito capaz de construir novos conhecimentos interferindo nos rumos de sua existência, ou seja, humano. Para Paulo Freire educação “[...] implica na negação do homem abstrato, isolado, solto, desligado do mundo, assim também na negação do mundo como uma realidade ausente dos homens” (1982, p. 81). O conhecimento, nesse processo, torna-se o principal, mas não o único objetivo a ser alcançado, pois é dele que o educando precisa lançar mão como instrumento de sobrevivência. Conhecer a realidade que nos cerca e aquilo que nos incomoda, é fundamental para refletirmos sobre as possibilidades de superá-la (MADURO, 1994). Esse é um dos motivos do por que não podemos conceber a educação formal/escolar como única fonte a subsidiar a formação dos educandos, pois o contexto escolar que a classe trabalhadora dispõe está voltada, quase que exclusivamente, para a formação de mão de obra para atender ás necessidades do mercado. Nesse contexto privilegia-se o saber fazer em detrimento da capacidade de entender o processo. Este saber é mecânico, domesticado não necessita de leitura ou interpretação. O que defendemos é a possibilidade de desenvolver processos educativos não formais – ou para além da escola – que subsidiem a humanização das ações dos educandos, possibilitando-os a criar formas de viver de ser feliz. Entendemos por humanização a habilidade do ser humano de criar possibilidades de superação dos desafios cotidianos, superando os determinismos impostos pela sociedade de controle e consumo. | 35 Para Rezende “a educação aparece como processo-projeto de humanização do sujeito, que não seria simplesmente objeto passivo, mas sujeito ativo da historia e da cultura. Neste sentido, mais do que um mero processo, a educação pretende ser um projeto de personalização dos sujeitos, de desalienação tanto individual como coletiva” (1978, p.14). Podemos, nesse momento, realizar uma interface com a visão antropológica de Brandão (2010, p.21) que nos diz que “ainda que represente uma escolha de saberes, de sentidos, de significados e de sociabilidades, entre outras, a educação não pode preestabelecer ‘modelos de pessoas’. Não pode criar antecipadamente ‘padrões de sujeitos’ como atores sociais predefinidos e treinados para realizar, individual ou coletivamente, um estilo social de ser”. Mais uma vez encontramos sentidos de educação semelhantes entre os dois autores – Brandão, (2003) e Rezende, (1978) –, a da personalização do ser humano, em que o sujeito deve participar ativamente do seu entorno e para isso precisa ter a habilidade de aprender e, com base nesse aprendizado, atribuir sentido próprio ao mundo. No entanto, precisamos adentrar nas questões dos processos de construção de conhecimentos, e de que forma eles acontecem. Partindo do pressuposto de que todo conhecimento é construído como forma de superação de alguma dificuldade humana, e considerando que os homens partilham de dificuldades e desafios em comum, seria correto afirmar que a construção do conhecimento poderia ser concebida de forma cooperativa e comunitária. Para tal, é necessário que o homem entre em relação com os outros e através das experiências subjetivas construam formas de superação das dificuldades e desafios. Nesse sentido, as palavras relação e experiências tornam-se importantíssimas no processo de construção de conhecimento. Buber (2003) em seu livro “EU-TU”, disserta sobre as relações interhumanas – aqui chamadas de intersubjetivas – nas quais o homem se descobre no mundo com o outro – podemos dizer: eu-tu ou tu-ele – são a partir das relações que o homem vai reconhecer-se como humano, através das experiências compartilhadas. Rezende (1978) diria “ser-no-mundo-com-osoutros”. Esse então seria o fundamento principal dos processos educativos | 36 com vistas à humanização das ações: Proporcionar experiências nas quais os educandos signifiquem e re-signifiquem o apreendido, criando ou re-criando novas formas de fazer, ultrapassando a forma mecanizada e superficial de aprender. Correndo o risco de cair na obviedade, devemos entender que o sujeito possui um meio de comunicação entre ele e o mundo, entre ele e o outro, que é o seu corpo. “Todo o sistema de relações humanas está construído na e pela corporeidade. O fundamento da presença humana ou do fenômeno humano acontece na corporeidade significante e expressiva em direção ao outro. É no universo da corporeidade que se instaura a subjetividade e a inter-subjetividade [...]” (SANTIN, 1987, p.51). É por intermédio do seu corpo, com seus órgãos sensoriais - visão, olfação, tato, paladar e audição - que o homem estabelece contato com o mundo – relação – e com toda produção material e simbólica dos homens, ou seja, com a cultura. Esse contato se dá em forma de sensações. É por intermédio dos sentidos que o homem percebe o seu entorno, e os outros sujeitos, a matéria, atribuindo significados às suas percepções, ou nas palavras do neurologista Antônio Damásio (2000): a formação da consciência. Segundo Damásio (2000), as sensações que percebemos por meio dos nossos órgãos dos sentidos, são transformadas, pelo nosso cérebro, em imagens mentais, formando um tipo de consciência: a consciência central. Quando as imagens mentais são evocadas em um processo chamado pensamento e manipuladas em forma de raciocínio, para planejar estratégias de ação a serem tomadas, no futuro, a consciência deixa de ser central e passa para um outro estágio que o autor denomina: consciência ampliada. Entretanto, isso não acontece de forma automática e linear. Partindo do pressuposto de que cada organismo vivo – que chamaremos aqui de corporeidade – possui sensações e percepções singulares, precisamos entender que cada corporeidade atribui sentido e significado singular as sensações (ASSMANN, 1994; GONÇALVES, 2004; MERLEAU PONTY, 1999; MATURANA, VARELA, 1995). Por esse motivo, concordamos com Rezende (1978) com o fato de que de que é preciso educar os sentidos – ou | 37 corporeidade –, pois entendemos que é a partir da corporeidade que é possível estabelecer relações de qualidade com o mundo e com os outros, ampliando a consciência e possibilitando um maior conhecimento de si mesmo e do mundo. Entretanto, a elite intelectual, econômica e social, compreendeu que a massificação da consciência coletiva deveria ser iniciada por esses canais de comunicação do ser com o mundo, e com o auxílio dos meios de comunicação de massa passou a disseminar formas-pensamento – ideias – que são interessantes para seus objetivos, criando “uma espécie de mundo intermediário, o das imagens, que, num certo nível, substitui o mundo real” (REZENDE, 1978, p. 64), influenciando diretamente na constituição da corporeidade dos sujeitos. Maduro afirma que “[...] submetidos a interesses de minorias fortes e poderosas, os mais fracos podem acabar aceitando como verdadeiro aquilo que lhe é imposto pelos mais fortes – coisa que geralmente é benéfica para os poderosos, mas prejudicial para os mais vulneráveis” (1994, p.113). Essa armadilha – na qual facilmente caímos – não nos permite atribuir nossos próprios significados ao que percebemos, limitando nossa compreensão do mundo. Isso faz com que sejamos determinados pelos discursos alheios. Rezende defende a tese de que o homem só se torna humano de fato quando, por meio da sua inteligibilidade, é capaz de atribuir sentido próprio ao mundo percebido, fora desse contexto, é apenas um sujeito perdido no mundo, condenado a alienação. Segundo Rezende: [...] não cabe a nenhuma outra pessoa dar sentido á minha própria existência. Essa é talvez a crítica mais profunda que se possa fazer a uma insuficiente noção religiosa de predestinação ou mesmo de presciência. Mas, essa critica nunca é tão pertinente como com relação às tentativas de dominação de pessoas e grupos sobre outras pessoas e grupos humanos. (1978, p.31) Robert Greene (2000), em seu livro “As 48 leis do poder”, uma espécie de manual do charlatão ou fenomenologia do poder, ensina em uma dessas leis, sobre “o despertar a fantasia nas pessoas” que | 38 [...] em geral evita-se a verdade por que ela é feia e desagradável. Não apele para o que é verdadeiro ou real se não estiver preparado para enfrentar a raiva que vem com o desencanto. A vida é tão dura e angustiante que as pessoas capazes de criar romances ou invocar fantasias são como Oasis no meio do deserto: todos correm até lá. Há um enorme poder em despertar a fantasia das massas. (p.290) Infelizmente, essas afirmações soam como verdadeiras, por mais chocantes que pareçam ser, e apesar de não querermos aceitar. É fato que na sociedade de consumo – e de controle – as pessoas são estimuladas pelos meios de comunicação e a vestirem máscaras sociais para mostrar aos outros uma imagem que elas gostariam que tivessem delas, e para isso passam a comprar o que não precisam – e muitas vezes com um dinheiro que não têm – para passar uma falsa imagem de felicidade. Camus (2008, p.21) afirma que “o homem é a única criatura que se recusa a ser o que é.” É nessa relação, de fantasia e poder, que a concepção fenomenológica da educação e a antropologia social – apropriando-se do paradigma da corporeidade – devem agir fazendo com que o homem seja capaz de atribuir sentido próprio ao mundo concreto, e não viver a fantasia que amansa seu espírito de contestação. Camus (2008) explica que as grandes revoltas surgem quando o homem percebe que está sendo cerceado de seus direitos, da percepção da tentativa de terceiros em amansá-lo, dominá-lo fazendo dele instrumento a serviço de interesses que não são os seus, instituindo assim um mundo estranho – alienado – e passa a agir de forma que possa atribuir seus próprios significados ao mundo, tomando controle da sua própria vida. Novaski disserta sobre a responsabilidade do filósofo em educação – ou educador – que é ajudar o homem a tornar-se humano: “aquele que não se deixar mutilar pela oficialização dos valores quaisquer que sejam: religião, ética, educação, saúde, bem-estar, sexo; aquele que tem uma vontade quase desesperada de vida autêntica, pois acha que ainda não está esgotado para possibilidades maiores” (1984, p.18). É no processo-projeto de educação que o homem vai paulatinamente se humanizando e readquirindo a sua sensibilidade, livrando-se da opressão do sistema. Para isso, é necessário negar a concepção mecanicista de educação | 39 em que, por meio da imposição de uma cultura hegemônica, se massifica a consciência coletiva. Cabe nesse momento referenciar Paulo Freire (1996), com suas preposições embasadas na concepção fenomenológica da educação nas quais disserta que Infelizmente, o que se sente, dia a dia, com mais força aqui, menos ali, em qualquer dos mundos em que o mundo se divide, é o homem simples, esmagado, diminuído e acomodado, convertido em expectador, dirigido pelo poder dos mitos que forças poderosas criam para ele. Mitos que voltandose contra ele, o destroem e aniquilam. É o homem tragicamente assustado, temendo a convivência autentica e até duvidando de sua possibilidade. Ao mesmo tempo, porém, inclinando-se a um gregarismo que implica ao lado da solidão, que se alonga como medo da liberdade, na justaposição de indivíduos a quem fala um vinculo critico e amoroso, que a transformaria numa unidade cooperadora, que seria a convivência autêntica (FREIRE, 1996, p.53) É por esse motivo que “para a fenomenologia, há na educação todo um trabalho de educar os sentidos, a partir deles: aprende-se a ouvir, a ver, a cheirar, a degustar, a sentir, como se aprende a lidar com a imaginação” (REZENDE, 1990, p.52). Serão esses sentidos, bem desenvolvidos, que subsidiarão o homem a refletir, a se conhecer, através das interpretações que faz de si mesmo e do mundo. A concepção antropológica de educação contribui com esse diálogo a respeito do “processo social de aprendizagem”, em que o homem apreende todos os códigos e símbolos de sua cultura, atribuindo-lhes significados, e tudo aquilo além do seu universo cultural tornase alienação (BRANDÃO, 2007). Vale ressaltar que não estamos falando em conduzir o homem rumo “a uma vida melhor”, não cabe a ninguém decidir o que é melhor para o outro, mas sim subsidiá-lo, com habilidades perceptivas que o propiciem a pensar a vida, e a contextualizá-la. Outra responsabilidade do filósofo em educação – educador/professor – baseado nos pressupostos da fenomenologia da educação – é ajudar o sujeito a buscar o equilíbrio entre a autonomia e a heteronômia, tendo a consciência de que o homem necessita do outro para se desenvolver, mas, estabelecendo | 40 limites entre sua individualidade e sua identidade cultural. Novaski afirma que “foi rompido o equilíbrio entre essa duas formas, devido à hipertrofia das instituições que hoje não só detém o monopólio radical do seu produto, como também tornam sem valor a ação autônoma das pessoas que querem gerir suas próprias vidas” (1984, p. 16). Dessa maneira, na maioria das vezes, as ações dos homens são inspiradas e motivadas por forças contrárias a sua intencionalidade criativa, carecendo de espontaneidade e obedecendo a normas de comportamentos instituídos pelo pensamento dominante. Nesse trabalho/dissertação, defendemos a educação como um processo-projeto – parafraseando Rezende (1999) – no qual o homem – através de sua corporeidade – estabelece relação com o mundo e com os outros, adquirindo habilidades em perceber as diferentes sensações que o mundo o submete, possibilitando-o a dar respostas através de significados construídos de forma subjetiva, ou seja, construindo conhecimentos. Para tanto entendemos que a educação acontece a todo o momento, nos mais diversos espaços, através de diversas linguagens, como na arte, na musica, na motricidade. A educação como processo para humanizar as ações dos homens – ou sua corporeidade – pode e deve acontecer não apenas nas instituições formais como a escola, mas em todos os lugares onde existam relações humanas. Dessa maneira, precisamos refletir sobre a possibilidade de vivenciarmos experiências que nos possibilitem humanizar-nos, seja dentro ou fora das instituições formais. A partir da década de 1990, no Brasil, surgiram alguns estudos – como os de Ghon – refletindo sobre a possibilidade de construção de propostas educacionais fora do ambiente escolar, denominada como educação não formal. Tais reflexões, a princípio, estavam voltadas ao aprendizado proporcionado dentro dos movimentos sociais, entretanto, não demorou a perceber a possibilidade de sistematização de propostas educacionais em outros espaços além dos movimentos sociais e das escolas, que visam formar o sujeito para a vida social. | 41 A educação Sociocomunitária, com pressupostos que se aproximam aos da educação não formal, apesar de ser praticada há algum tempo por educadores dentro das comunidades mais carentes, passou a ser pensada de forma sistemática na área de ciências da educação com a formação do programa de mestrado em educação Sociocomunitária do Centro Universitário Salesiano de São Paulo – Unisal. No próximo capítulo realizaremos algumas considerações sobre educação Sociocomunitária, um conceito ainda em construção, e a atuação dos educadores Sociocomunitários. Também discorreremos sobre as comunidades educativas lugares em que acontecem ações educativas intencionais ou não. Finalmente argumentaremos que podemos considerar os espaços debaixo das lonas de circo e os frequentadores desse espaço como comunidades educativas. 1.3 – Educação Sociocomunitária e Comunidade Circense “A comunidade pode, a partir da relação entre duas ou algumas pessoas, tornar-se o fundamento da vida em comum de muitas pessoas. Mesmo assim, contudo, lhe são colocados limites espaciais cuja ultrapassagem representa o inicio da diluição do conteúdo da imediaticidade: a forma legítima da comunidade como construção social é a construção concreta” Martin Buber | 43 No item anterior discutimos sobre o sentido da educação, evidenciando a sua utilização por alguns grupos sociais para a apropriação do poder simbólico e econômico. Também discutimos a educação a partir das concepções de alguns educadores/formadores brasileiros, e defendemos a educação como um processo-projeto de humanização das ações do ser humano. Para tal, acreditamos que é essencial o desenvolvimento dos sentidos e da sensibilidade humana, pois são essas habilidades que nos fornecerão subsídios para realizar uma leitura contextualizada do mundo a partir de uma consciência autônoma. A intenção agora é dissertar sobre os pressupostos da educação Sociocomunitária – um conceito em construção – e o circo, que aqui iremos nos referir como “debaixo da lona”, considerando este um micro-sistema social, ou uma comunidade educativa, que na definição de Gomes (2007, p.41) “[...] implica que se tenha um conjunto de pessoas que estão compartilhando um tempo histórico e um espaço geográfico”. E ainda, uma linguagem específica, no caso as linguagens circenses, que se trata de um conjunto de manifestações artísticas predominantemente corporais que surgiram com a intenção de divertimento e hoje estão sendo utilizados com outras intenções – lazeres, educação, terapia, estética etc. Existem várias versões sobre o surgimento do circo, mas não vamos nos atentar a sua historicidade. As informações disponíveis acerca do assunto sugerem que manifestações artísticas e culturais em diversas partes do mundo ocorriam em momentos comemorativos nos quais os grupos exibiam suas destrezas físicas ou artísticas. Por esse motivo, consideraremos, nesse trabalho, como conjunto de atividades de destreza corporal e/ou artística desenvolvida por determinados grupos sociais/culturais que, com o tempo, vão sendo re-significadas por outros grupos. O que nos importa nesse trabalho é evidenciar e reconhecer que as linguagens, que são dispostas nas apresentações circenses, podem se transformar em experiências educativas com vistas à formação dos educandos. Entretanto, devemos esclarecer que o conceito comunidade circense não se encerra na existência de uma única comunidade. | 44 Em fase de construção, a educação Sociocomunitária surgiu pelo interesse de investigar as articulações comunitárias que se propõem em transformar a sociedade por meio de propostas de intervenções educativas. Gomes (2006) nos ensina que não se trata apenas de uma prática, um ativismo, mas uma ação que se origina da reflexão – práxis – atribuindo uma direção histórica. Inspirada na Educação Salesiana, proposta de educação Sociocomunitária vai da ação para a sistematização, ou seja, privilegiam-se as experiências de intervenção realizadas pelos educadores e, posteriormente, realiza-se uma análise e interpretação das mesmas, refletindo sobre as suas possibilidades e limitações. Com pressupostos que se aproximam da educação não formal, podemos considerar a educação Sociocomunitária como um meio educacional que acontece a partir das experiências compartilhadas pelos membros de uma comunidade, provocando modificações nas estruturas cognitivas e comportamentais desses membros. Nesse contexto, o educador-pesquisador sociocomunitário – educador social, arte-educador, ludo-educador etc – é um organizador das experiências intencionais de aprendizagem, a partir dos conhecimentos construídos pela própria comunidade. Dessa forma, o educador sociocomunitário, não institui experiências que considera importante para a comunidade, mas sim busca organizar experiências a partir da realidade cultural que fundamenta o convívio da comunidade. É parte fundamental desta dissertação entender o que acontece “debaixo da lona”, como acontecem as interações humanas por meio dos processos educativos, e qual é o endereço histórico do resultado dessas interações. Entendemos esse espaço como uma “ecologia cognitiva” 1, ou como uma comunidade educativa. O educador sociocomunitário, como investigador, interlocutor e intérprete, precisa ouvir as vozes desses sujeitos, suas dificuldades, suas intenções, seus sonhos, para saber se há algo que possa fazer para contribuir na formação desses sujeitos. Antônio (2007) nos orienta que o educador 1 Em sua obra “Reencantar a educação” editora Vozes, 1998. Hugo Assmann referese à ecologia cognitiva como um ambiente capaz de propiciar experiências de aprendizagens, o qual contribuiria na formação dos sujeitos “aprendentes”. | 45 Sociocomunitário não é aquele que, ao engajar-se na comunidade, dita os comportamentos e pensamentos que seus membros devem ter, mas é aquele que busca contribuir na evolução humana desses. E como isso é possível? Segundo Antônio, “primeiro você escuta, só trata o outro como sujeito, se tiver escuta da alma dele. Não é só falar de coisas agradáveis e de consenso, mas também de conflitos, de dores e questões não resolvidas. Se você não escuta, não há relação educativa” (2007, p.53). Ser interlocutor e intérprete nesse ambiente específico da nossa pesquisa – debaixo da lona – com características peculiares – as linguagens circenses, um misto de arte e motricidade humana – requer determinada habilidade perceptiva e interpretativa, pois o discurso dos protagonistas da pesquisa não é apenas enunciado por meio de suas vozes, mas principalmente pelas ações de seus corpos. É neste momento que gostaríamos de valorizar a nossa formação e denotar a importância do profissional de Educação Física nessa empreitada, e até ousar em criar um novo termo: “Educador Físico sociocomunitário”. Existem vários autores que poderíamos lançar mão para justificar esse termo, mas a do educador/formador Silvino Santin já nos parece suficiente. Segundo o autor, [...] o movimento humano, por fim, pode ser compreendido como linguagem, ou seja, como capacidade expressiva. O homem se expressa pelos seus movimentos, pelas suas posturas, pelos seus gestos. O corpo humano é fala e expressão. A presença do homem é sempre presença falante, mesmo silenciosa. O homem se expressa no seu olhar, na sua face, no seu andar; ao ocupar seu lugar; o movimento humano será sempre intencional e pleno de sentido. (SANTIN, 1987, p.34). O profissional de Educação Física adquire, na sua formação, conhecimentos provenientes de várias vertentes epistemológicas, que o subsidiam na sua prática profissional. A palavra “física” – que aqui podemos entender como sinônimo de corpo –, da Educação Física pressupõe que, logicamente, haveria uma educação não física ou “intelectual”. Essa fragmentação provoca um entendimento de que o professor de Educação Física é aquele que “educa o corpo”, como se corpo e mente/cérebro fossem partes dissociadas. Educador físico a que me refiro, deve ser entendido como | 46 profissional da educação que passou por um processo de formação em que adquiriu um conjunto de conhecimentos que o possibilitam a desenvolver um conjunto de práticas educativas, apropriando-se da motricidade humana como linguagem educativa e como instrumento de trabalho. Com diversas possibilidades de atuação profissional – saúde, treinamento esportivo, educação – o educador físico tem na motricidade humana – e sua produção cultural – uma linguagem educativa e seu instrumento de trabalho, e para tal, necessita desenvolver um olhar diferenciado sobre o corpo e sobre as ações motoras. Dessa maneira, o educador físico sociocomunitário caracteriza-se pela sua habilidade em reconhecer e interpretar as vozes corporais, que se expressam através das ações motoras – entendendo que cada ação é a expressão do discurso interior, em que explicitam os medos, os anseios, os desejos, as aspirações – para que assim possa construir comunitariamente propostas de ação com vistas a atender as demandas das comunidades. Especificamente neste trabalho, o educador físico sociocomunitário, como educador, pesquisador, interlocutor e intérprete, necessita engajar-se nessa comunidade – circense – para verificar se existe a possibilidade de transformar um saber eminentemente familiar e empírico – circo família – em um saber popular a ser socializado por intermédio de experiências educativas. Se antes as linguagens circenses eram restritas apenas aos integrantes das famílias circenses, em que o saber era transmitido de forma oral, e muitas vezes informalmente, por meio de vivências e observações; com a modernidade e a escolha dessas famílias em atribuir um novo rumo às suas vidas e de seus filhos, as artes circenses transformaram-se em produtos possíveis de ser comercializados 2. Atualmente existem instituições que utilizam as linguagens circenses como possibilidade de intervenções educativas buscando formar um sujeito 2 No Brasil, a primeira escola de circo que se tem noticia é a escola de circo Piolin, que na década de 1970, no Rio de Janeiro, ensinava técnicas circenses a pessoas não pertencentes a famílias circenses. Daí a passagem do circo-familia para o circoescola. | 47 capaz de exercer sua cidadania, como é o caso do Instituto Sócio Cultural Brinquedo Vivo. Desse modo, os profissionais que desenvolvem esses projetos educativos são, em sua maioria, oriundos de famílias circenses, ou ex-alunos de escolas de circo, dotados de um rico conhecimento empírico, que é preciso que seja reconhecido. Porém, é necessário que se entenda que o saber desses sujeitos surgiu de uma metodologia especificamente voltada para a formação do artista circense, ou seja, aquele que utiliza as suas destrezas artísticas e corporais para apresentações e shows, em troca de determinada remuneração. Nesse sentido, a transmissão do saber circense tem como aporte o método técnico instrumental, no qual os praticantes reproduzem movimentos pré-determinados pelos mais experientes. Entretanto, a missão das instituições que utilizam as linguagens circenses como conteúdos a serem contemplados no processo formativo, no nosso entendimento, não pode ficar limitada ao saber-fazer. Lembramos, aqui, Paulo Freire, que foi um dos maiores críticos da educação bancária, educação que vê o aluno como um banco em que deve ser depositado todo conhecimento “verdadeiro” do educador. Para Paulo Freire “[...] ensinar não é transferir conhecimentos, conteúdos, nem formar é ação pela qual um sujeito criador da forma, estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado” (1996, p. 22). Entendemos que debaixo da lona seja um espaço rico para o processo de formação da identidade humana, pois consiste em um lugar em que são desenvolvidas experiências educativas, e onde as subjetividades encontram-se por meio da arte corporal, um lugar propício ao desenvolvimento dos sentidos e das sensibilidades. Porém, essa formação apenas será completa se houver liberdade de cada sujeito em manifestar seus próprios significados, suas intencionalidades, suas espontaneidades. “A educação pode existir livre e, entre todos, pode ser uma das maneiras que as pessoas criam para tornar comum, como saber, como idéia, como crença, aquilo que é comunitário, como bem, como trabalho ou como vida” (BRANDÃO, 2003, p. 10). | 48 O fim da alienação da consciência humana apenas será possível quando o homem se tornar senhor de si mesmo, quando através de suas experiências, for capaz de atribuir seus próprios sentidos, sistematizar seus próprios conhecimentos, nem que seja ingênuo, pois como nos ensina Paulo Freire “[...] ao ser produzido, o conhecimento novo supera outro que antes foi novo e se fez velho e se dispõe a ser ultrapassado por outro amanhã” (1996, p. 26). O papel de todo educador, comprometido com a utopia da formação de um homem livre, seja ele educador social, escolar, sociocomunitário etc., é de criar condições para que o homem não se torne apenas uma peça na engrenagem do sistema dominador e de controle. É por isso que “debaixo da lona” as experiências educativas não podem estar voltadas apenas para o saber fazer, sem reflexão, sem espontaneidade, sem intencionalidade. O saber fazer “debaixo da lona” deve andar lado a lado com o saber pensar, o saber criar, recriar ou ressignificar. A autonomia humana só é possível quando o sujeito atribuir o próprio sentido às suas experiências (REZENDE, 1978). Daí, a importância do educador físico sociocomunitário, aquele que articula o saber das ciências da educação com o conhecimento empírico dos profissionais de circo, acreditamos que no encontro dessas subjetividades seja possível sistematizar a práxis circense de forma que possa contribuir com a formulação de experiências que objetivam formar um sujeito autônomo. No nosso entendimento, como profissional da educação, o educador físico sociocomunitário é um educador profissional capaz de realizar propostas de intervenções educativas que contribuam para a formação de um sujeito autônomo, por meio de experiências educativas envolvendo ações corporais. Deixamos claro, nesse momento, que não estamos falando em ensinar a se movimentar, mas a pensar a vida por meio do corpo, a contextualizar e atribuir sentido próprio com os recursos que são adquiridos nos processos de interações. Por se tratarem, como já dissemos, de arte e motricidade humana, entendemos que o paradigma da corporeidade possa ser o corpo teórico que contribuirá em nossas reflexões acerca das linguagens circenses. Muitos profissionais da educação, principalmente os educadores físicos, apropriam-se | 49 desse paradigma para fundamentar as suas propostas de ação. Sendo considerado por muitos como uma das principais vozes da corporeidade, o filósofo Maurice Merleau Ponty (1999) nos referencia com seus estudos acerca da sensibilidade e das sensações que são, para os educadores físicos, os princípios norteadores para as propostas de intervenções educativas. Nas teorias de Merleau Ponty (1990) o homem se manifesta a partir de sua corporeidade, não apenas como corpo material, mas como corpo expressivo, capaz de expressar-se por meio de seus movimentos. Na voz de Merleau Ponty: Os outros homens nunca são puros espíritos para mim: só os conheço através de seus olhares, de seus gestos, de suas palavras, em suma através de seus corpos. Certamente, para mim, um outro está bem longe de reduzir-se a seu corpo. Um outro é esse corpo animado de todos os tipos de intenções, sujeito de ações ou afirmações as quais me lembro e que contribuem para o esboço de sua figura moral para mim. (2004, p.43) Segundo Assmann, a partir de uma visão educacional fundamentada pelos pressupostos das ciências cognitivas e até certo ponto nos entendimentos de Merleau Ponty, “a corporeidade não é fonte complementar de critérios educacionais, mas seu foco irradiante primeiro e principal” (ASSMANN, 1995, p.77). Entendemos que o paradigma da corporeidade, possa nos dar recursos importantes ao tratar do entendimento acerca das relações corpo e mundo. Partindo do principio de que somos seres-no-mundo-com-os-outros (REZENDE, 1978), e que os processos educativos acontecem, predominantemente, em relação com os outros, por intermédio do corpo, nos próximos capítulos dissertaremos acerca da corporeidade e suas contribuições na área da educação, bem como as relações entre motricidade, arte e educação que acontecem debaixo da lona, assim como o trabalho do educador circense. 2 – Corporeidade e Educação “Eu sou um ser. Sou uma pessoa que começa no existir do corpo de quem é: o meu corpo. Mas ele (ou eu) é também o corpo que me habita. Pois quem seria ele sem eu? É o corpo que eu vivo a minha vida, o corpo em que eu vivo a vida, o corpo que eu habito e em que me obrigo para viver, pois quem seria eu sem ele agora?” Carlos Rodrigues Brandão “O nosso corpo é um exemplo que clarifica os diferentes níveis de realidade, interconectados e interdependentes. Nosso corpo é, ao mesmo tempo, um organismo físico-quimico-biológico e uma existência sócio-histórica-cultural. Ele é feito de palavras, assim como vestígio de estrelas. Constitui-se da matéria orgânica e da matéria de que são feitos os sonhos”. Severino Antônio | 51 No capítulo anterior procuramos refletir sobre Educação sociocomunitária, partindo do pressuposto de que se trata de uma abordagem que busca investigar as ações educativas comunitárias. Essa abordagem tem a intenção de fundamentar propostas educativas, através da práxis, dentro das comunidades, a partir dos saberes e dos potenciais dessas comunidades, visando contribuir na formação de um sujeito autônomo. Também procuramos evidenciar nosso entendimento de que debaixo da lona consiste em um espaço de interação – comunidade – com saberes e linguagens específicas que proporcionam um ambiente de aprendizagem. Pelo fato das linguagens circenses se constituírem em um misto de motricidade e arte – entendendo motricidade como movimento humano intencional, e arte como a corporificação da criatividade e sensibilidade humana – acreditamos ser o paradigma da corporeidade a luz para iluminar o caminho da compreensão das inter-relações debaixo da lona. Neste capitulo iremos nos atentar aos pressupostos da corporeidade como possibilidade no processo educativo debaixo da lona. Merleau Ponty (1999) em sua obra “Fenomenologia da percepção” traz contribuições importantes para os estudos dos processos de apreensão do conhecimento intermediados pelo corpo, que nesse trabalho entenderemos como corporeidade. No entendimento de Merleau Ponty nosso corpo e a motricidade humana são os principais meios que nos colocam em contato com o mundo e com os outros sujeitos, ou seja, são os interlocutores entre os sujeitos e as experiências do conhecimento. Nas palavras de Merleau Ponty (1999, p. 253) “é por meu corpo que compreendo o outro, assim como é pelo meu corpo que compreendo as coisas”. O mundo sensível, os outros e os objetos apenas podem existir no momento em que atribuímos um sentido para eles, e tais sentidos acontecem a partir da corporeidade. A existência humana acontece por meio da corporeidade. Na concepção de Merleau Ponty, para compreendermos o processo de construção e apreensão do conhecimento precisamos nos atentar á importância do corpo e principalmente da motricidade humana. O homem | 52 existe por meio da sua corporeidade e, é a partir dela que ele percebe e interage com o mundo, apreendendo seus sentidos e significados, sempre em constante movimento intencional, que o autor denomina de motricidade humana. Dessa forma o movimento não é um simples deslocar-se pelo mundo, mas sim uma condição que permite o homem se expressar por meio de sua gestualidade. Para Merleau Ponty (1999, p.193) Um movimento é aprendido quando o corpo o compreendeu, quer dizer, quando ele o incorporou ao seu "mundo", e mover seu corpo é visar às coisas através dele, é deixá-lo corresponder à sua solicitação, que se exerce sobre ele sem nenhuma representação. Portanto, a motricidade não é como uma serva da consciência, que transporta o corpo ao ponto do espaço que nós previamente nos representamos. Para que possamos mover nosso corpo em direção a um objeto, primeiramente é preciso que o objeto exista para ele, é preciso então que nosso corpo não pertença à região do "em si". Os objetos não existem mais para o braço do apráxico, e é isso que faz com que ele seja imóvel. Os estudos de Merleau Ponty inspiraram outros trabalhos de diferentes correntes epistemológicas. Um dos trabalhos mais conhecidos é a obra dos biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela, “A árvore do conhecimento” (2001). Segundo os cientistas, cujos entendimentos vão ao encontro dos estudos de Merleau Ponty, o processo de apreensão do conhecimento depende das relações recíprocas entre o sujeito e o mundo. O homem, por meio das experiências corpóreas, estabelece relação com o mundo e com os outros e essas relações provocam modificações em sua estrutura corporal, principalmente as estruturas cognitivas. A partir dos pressupostos dos autores, devemos entender que todo o ser vivo possui uma estrutura biológica inicial que vai se modificando a partir da sua relação com o mundo. Dessa forma, as sensações corporais, que acontecem principalmente por meio dos cinco sentidos – olfato, audição, visão, paladar e tato – e da consciência ampliada (DAMÁSIO, 2000) – como produto final dessa interação –, permitem ao homem perceber os estímulos e provocações do mundo e, a partir de um processo de leitura e interpretação valendo-se da consciência, adaptar-se a ele. Essa é um sistema complexo de auto-organização, que os autores chilenos (MATURANA; VARELA, 2001) | 53 denominam de autopoiesis – auto fazer-se, auto criar-se. No entanto, as modificações dessas estruturas não dependem dos estímulos externos e sim das estruturas iniciais dos seres vivos. Nas palavras dos próprios biólogos, [...] todo ser vivo começa com uma estrutura inicial, que condiciona o curso de suas interações e delimita as modificações estruturais que estas desencadeiam nele. Ao mesmo tempo o ser vivo nasce num determinado lugar, no meio que constitui o entorno no qual ele se realiza e em que ele interage, meio esse que também vemos como dotado de uma dinâmica estrutural própria, operacionalmente distinta daquela do ser vivo. (MATURANA; VARELA, 2001, p. 107). Apesar de sujeito e entorno formarem e pertencerem a uma ecologia e se influenciarem reciprocamente, o que define as modificações nos seres vivos são suas estruturas iniciais. Nesse sentido, [...] se uma célula interage com uma molécula X, incorporando-a a seus processos, o que acontece como consequência da interação não está determinada pelas propriedades dessa molécula, e sim pela maneira como ela é “vista” ou tomada pela célula, ao incorporá-la à sua dinâmica autopoiética. As mudanças que possam ocorrer nela, em conseqüência dessa interação, serão as determinadas por sua própria estrutura como unidade celular. (MATURANA, VARELA, 2001, p.61) Esses pressupostos são importantes para entendermos a participação do corpo nos processos de experiências intencionais de aprendizagem. Precisamos entender o corpo/corporeidade como um sistema complexo, autoorganizativo, capaz de se adaptar as diversas provocações do meio externo. Para tal, o organismo vivo/corpo possui uma incrível capacidade genética de adaptar-se ao ambiente e continuar vivendo. Essa adaptação acontece por meio das aprendizagens. Por esse motivo que, para alguns estudiosos/educadores, processos cognitivos – de aprendizagem – e processos vitais são sinônimos (ASSMANN, 1998/1999; GONÇALVES, 2004). Diversos autores, estudiosos da corporeidade, das duas concepções – ciências cognitivas e filosofia – (SANTIN, 1987; BATISTA FREIRE, 1991; SALIN GONÇALVES, 1994; MERLEAU PONTY, 1999; CARMO JR., 2005; ASSMANN, 1995; GONÇALVES, 2004) criticam a visão da filosofia dualista que dicotomiza o homem em corpo e alma/mente/cérebro, atribuindo à mente | 54 importância maior em relação ao corpo. Para Assmann (1995) não existe educação fora do corpo, e questiona: como atribuir importância maior à mente, se ela está encarnada em um corpo e depende desse corpo para existir? Para Gonçalves (2004, p. 49) “o uso do termo corporeidade procura construir uma linguagem que ultrapasse a dicotomia do corpo e da mente como instâncias separadas. Desta forma a mente não seria apenas uma proprietária do corpo como forma dele dispor quando conveniente”. Trataremos o corpo/corporeidade, neste trabalho, como uma unidade, sem dualismo, um organismo vivo com uma incrível capacidade de autoorganização – interna – para dar respostas às provocações do meio – externo – pois “[...] a corporeidade humana constitui um todo biológico, sociológico e psicológico de fenômenos articulados, podendo abrir espaço para tentar enxergar um lugar no qual o sentido do todo corporal projeta nossa consciência” (CARMO JUNIOR, 2005, p. 25). E, também, entenderemos como corporeidade a capacidade do homem em expressar-se por meio da sua motricidade, pois “[...] o homem não age por partes, mas age sempre como um todo. O pensar, as emoções e os gestos são humanos, não são hora físicos ou psíquicos, mas sempre totais, isto é, são ao mesmo tempo toda a adjetivação que lhe pode atribuir” (SANTIN, 1987, p.25). Dessa maneira devemos considerar o corpo como um organismo, que recebe estímulos/provocações do meio externo (percebe); decodifica e interpreta (auto-organiza) e emite respostas (significa); por meio de linguagens expressivas (gestualidade). São as respostas frente aos estímulos que determinam o significado individual de cada sujeito, ou seja, sua corporeidade. Para Carmo Junior, “O corpo se transforma em corporeidade na medida em que adquire sentido, quando se torna referência na transição e transmissão de dados e idéias" (2005, p. 26). Essa ideia inicial nos faz pensar na urgência de um modo de pensar educação diferentemente da que acontece na maioria das escolas. Na pequena experiência que temos como professores de educação física escolar percebemos que o corpo é tratado, nesse ambiente, como inimigo do aprendizado, pois a ideia dos profissionais de educação desse ambiente é a de | 55 que o aluno aprende melhor quando o corpo está inerte. Surge então uma pergunta: se o corpo é o principal elemento relacional com o mundo – e consequentemente com o conhecimento – um corpo sem movimento não terá mais dificuldade em apreender conhecimentos? Batista Freire (1991) disserta sobre a unidade entre o sensível e o inteligível, em que trata o corpo como sensível e o intelecto como inteligível. Para Batista Freire “[...] o incremento da inteligência do inteligível depende tanto da sensibilização do inteligível quanto a sensibilização do sensível depende da inteligência do sensível” (1995, p.77). Dessa maneira seria um equívoco pensar educação de forma compartimentada, em que se educa mente – por meio de matérias/disciplinas predominantemente “teóricas” como Geografia, História, Matemática, Língua Portuguesa, etc., e a Educação Física ou educação motora, que ensina o movimento humano. Primeiro, porque para aprender Matemática, História, Geografia etc., é necessário que o corpo esteja presente no processo. Sem corpo não há educação, assim como para se movimentar é necessário que o corpo pense, pois o pensamento também é uma forma de movimento. E, segundo, porque acreditamos que o papel do educador/professor não é ensinar Matemática, Geografia, História, Língua Portuguesa ou movimentos prédeterminados de alguma modalidade esportiva ou artística, e sim provocar o aluno a atribuir sentido próprio ao que faz, utilizando os conhecimentos adquiridos no processo educativo para contextualizar o mundo em que vive, criando formas de superar as dificuldades e desafios que surgem na sua existência. Concordamos quando Antônio nos diz que “conhecer não é dissociar, mas principalmente contextualizar” e também “conhecer não é abstrair, mas principalmente concretizar” (2009, p. 24). O corpo, dessa maneira, se constitui como interlocutor principal entre o conhecimento disponível no mundo e o sujeito, funcionando como um meio pelo qual as informações desconexas vão adquirindo sentido. É por meio das relações dos sistemas sensoriais com o mundo que o corpo vai organizando as respostas, baseadas em matrizes de significação incorporadas a consciência. | 56 Para Santin “[...] todo sistema de relações humanas está constituída na e pela corporeidade” (1987, p. 51). Entendemos, então, porque Assmann (1995) defende a corporeidade como foco principal para se pensar educação. Para Assmann “[...] a corporeidade não é fonte complementar de critérios educacionais, mas seu foco irradiante e principal. Sem uma filosofia do corpo, que pervada tudo na educação, qualquer teoria da mente, da inteligência, do ser humano global, é, de entrada, falaciosa” (1995, p. 77). No entanto, desenvolver a corporeidade, no intuito de possibilitar que as relações sejam mais significativas, perpassaria pelo acesso a experiências educativas que priorizassem o movimento. É nesse sentido que as linguagens circenses se tornariam possibilidades ricas no desenvolvimento da corporeidade, pois são constituídas – como dito anteriormente – de uma junção de motricidade e arte. Dessa maneira, as linguagens circenses, vivenciadas a partir de experiências educativas proporcionariam aos educandos a oportunidade de desenvolverem-se, como sujeitos, através de um processo de auto-organização, levando em consideração suas capacidades expressivas e subjetivas. Debaixo da lona, nesse contexto, se configuraria assim em uma comunidade com espaço específico e uma linguagem própria (GOMES, 2008), ou seja, uma ecologia cognitiva capaz de proporcionar experiências de aprendizagem/educativas (ASSMANN, 1998). No entanto, para aperfeiçoar as relações e as oportunidades de aprendizagem, contribuindo assim na formação dos sujeitos, torna-se necessário pensar educação diferentemente das propostas/concepções tradicionais, nas quais se homogeniza as experiências – obrigando o educando/aluno a deitar-se no leito de Procusto da educação 3 –, e 3 A metáfora refere-se a Procusto, um bandido da mitologia grega que construiu em sua casa um leito de ferro. Tinha o costume de sair pelas ruas e deter os viajantes, convidando-os para jantar em sua casa e quando terminava a refeição estendia-os sobre o leito de ferro. Se o corpo ficasse menor que o leito, ele o desconjuntava-o, por outro lado, se ficasse maior, ele mutilava o excedente. Essa metáfora pode ser utilizada na educação tradicional, onde as subjetividades são anuladas pelo processo de homogenização dos comportamentos e aprendizagens, o educando/aluno que não se adéqua aos padrões é considerado incompetente/inapto, ficando às margens, da sociedade por não atender suas necessidades. Referência disponível em http://www.slideshare.net/matiasalves/o-leito-de-procusto : acessado em 03/08/2011. | 57 mecaniza as experiências de aprendizagem 4. A característica positiva das linguagens circenses está no fato de que são atividades que se manifestam a partir da motricidade, e é nesse sentido que se justifica pensar propostas educativas a serem realizadas “debaixo da lona” a partir da corporeidade. No entanto, sem a necessária ruptura metodológica que predomina nas concepções tradicionais de educação, as linguagens circenses se tornariam apenas experiências instrutivas, voltadas ao saber fazer, ao reproduzir o que já se sabe, deixando no esquecimento a capacidade interpretativa e criadora. Historicamente, as manifestações artístico-corporais surgiram da necessidade das diversas culturas de expressar suas habilidades criativas, através de movimentos subjetivos e espontâneos. Tomando como base essas considerações, necessitamos entender quais concepções que, hoje, predominam no trabalho das instituições que desenvolvem ações educativas a partir das linguagens circenses, ou seja, o que acontece debaixo da lona. A intencionalidade aqui não é validar um discurso em detrimento de outros, mas conhecer o que acontece debaixo da lona, para posteriormente poder discutir propostas de aprimoramento dessas ações a partir da corporeidade. O que intencionamos evidenciar até aqui, são as contribuições das experiências educativas através das linguagens circenses na formação dos sujeitos, tendo como base de entendimento o paradigma da corporeidade. Necessitamos, neste momento, lançar mão de todos os recursos teóricos disponíveis para adentrarmos em um universo onde essas experiências acontecem. Esse trabalho faz a proposta de conhecer, de forma participante, não apenas as praticas/ações dos educadores debaixo da lona, mas também o significado 4 que cada educador atribui à sua prática. A mecanização da aprendizagem refere-se à concepção técnico-instrumental muitas vezes privilegiada pela educação tradicional. Baseada nos princípios da administração cientifica de Frederick W. Taylor (1856-1915), em que existe uma preocupação com o comportamento motor do empregado, visa a perfeição do gesto motor garantindo maior produtividade. | 58 A seguir discorreremos sobre as linguagens circenses, evidenciando como manifestações da criatividade humana, expressadas pelo corpo. 2.1 – O corpo que aprende “É por meu corpo que compreendo o outro, assim como é pelo meu corpo que compreendo as coisas”. Merleau Ponty | 60 Realizaremos neste momento algumas considerações sobre as modificações que o corpo passa devido aos processos de aprendizagem em relação com o mundo e com os outros. Acreditamos que necessitamos entender o que acontece com o corpo quando ele está diante de uma experiência de aprendizagem e quais as consequências dessas experiências vividas. Para tal, recorreremos aos pressupostos das ciências cognitivas acreditando que possam contribuir com nossas reflexões. Na nossa prática docente, como profissional de Educação Física, tanto em ambientes escolares como não escolares, observamos que eram constantes as reclamações dos professores e educadores em relação às dificuldades de aprendizagem de seus educandos/alunos. O discurso que circulava, e até hoje circula entre os educadores profissionais, é o de que os educandos/alunos possuem uma incapacidade de compreender os conteúdos, e de resolver as situações problemas que são propostas. Outro fator que os incomodava era, e é, o fato dos alunos apresentarem pouco interesse em aprender. Como educador/professor, vivenciamos as mesmas dificuldades, pois é comum observar em nossas aulas, seja com a Educação Física escolar ou nas oficinas de artes circenses, a dificuldade dos alunos em compreender as explicações das propostas. Muitas vezes é preciso demonstrar corporalmente os movimentos e mesmo assim a assimilação é demorada. No entanto, vemos um diferencial que torna nosso trabalho um pouco menos difícil: a prazerosidade. Geralmente, as aulas de Educação Física na escola são as mais queridas e esperadas pelos alunos. Quando, por algum motivo, os educandos/alunos ficam durante determinado tempo sem essas aulas, segundo o relato dos professores/educadores, eles ficam mais estressados, mais agitados, o que dificulta ainda mais o processo de aprendizagem. Para muitos educadores as aulas de Educação Física são apenas momentos em que os educandos/alunos têm possibilidades de se descontrair por meio do movimento. | 61 Entretanto, não acreditamos que as aulas que envolvem o movimento humano – Educação Física, oficinas de expressões corporais ou esportivas – sejam apenas uma válvula de escape para as tensões dos alunos/educandos. Para nós, o movimento humano pode ser uma estratégia educativa e o corpo o principal interlocutor entre o mundo do conhecimento e os sujeitos. Na etapa de convívio com os arteeducadores circenses, lhes perguntamos sobre os benefícios de praticar as atividades circenses e, entre as várias repostas, encontramos uma interessante: Segundo os educadores, constantemente, os pais os procuram para relatarem as mudanças no comportamento de seus filhos que refletem positivamente no rendimento escolar. Podemos sintetizar essa situação na resposta da arte-educadora (F) que nos relatou que um pai a procurou para agradecer, pois o seu filho estava melhorando o rendimento escolar: “depois que meu filho (a) passou a praticar as atividades circenses as suas notas na escola melhoraram”. A partir daí surge uma pergunta: existe relação entre o aprendizado das artes circenses, ou qualquer outra que envolva o movimento humano, com o desenvolvimento das capacidades cognitivas? Para responder essa pergunta devemos inicialmente compreender os processos cognitivos, ou o que acontece com o corpo quando estamos participando de uma experiência de aprendizagem. Um dos maiores equívocos dos professores/educadores, segundo o nosso entendimento, é a de que boa parte deles considera que aprendemos melhor quando estamos parados. Isso pode ser notado nas salas de aula, lugar onde o movimento é proibido, e o bom aluno é aquele que fica sentado na sua cadeira recebendo passivamente as orientações do professor. Dessa forma, esses professores privilegiam, em suas práticas educativas, a utilização de recursos tecnológicos de informação (computadores) e os visuais (televisão). A intenção, dessa estratégia, é fazer com que os alunos mantenham seus corpos parados. Nesse sentido, mesmo sem saberem, embasam as suas práticas a partir de uma visão dualista de homem que separa a mente – cérebro – do corpo. | 62 Esse dualismo, inspirado na concepção dualista-cartesiana5, entende a mente/cérebro como dimensão primeira e principal a ser trabalhada/desenvolvida. Por outro lado o corpo seria um fator secundário, lugar onde o cérebro faz a sua morada, com uma importância menor no processo de conhecer. Nesse momento intencionamos argumentar/refletir brevemente sobre algumas questões que envolvem os processos de aprendizagem, como processo de construção de conhecimento, evidenciando a importância do corpo nesse processo. Humberto Maturana e Francisco Varela (1995) explicam que os processos do conhecer humano estão diretamente relacionados com as nossas experiências corpóreas. Os autores apresentam evidências que sugerem que o conhecer humano surge a partir de um complexo sistema de interação entre o organismo vivo e o meio/entorno, que faz surgir uma compreensão particular do conhecido. Para os autores “[...] toda a experiência cognitiva inclui aquele que conhece de um modo pessoal, enraizado em sua estrutura biológica, motivo pelo qual toda experiência de certeza é um fenômeno individual cego em relação ao ato cognitivo do outro [...]” (MATURANA; VARELA, 2001, p. 22). As estruturas cognitivas de quem conhece – sujeito – define as interpretações que ele faz daquilo que é conhecido - entorno. E, essas estruturas vão se modificando a partir das relações que estabelecemos com o mundo e com os outros em um processo, como dito no capitulo anterior, que os autores chamam de autopoiesis (autofazer-se, autocriar-se). Dessa maneira o organismo/sujeito e meio/entorno formam uma ecologia indissociável, em que ambos influenciam e são influenciados reciprocamente. Hugo Assmann (1998), a partir de uma interpretação da obra de Maturana e Varela, estabelece uma interface entre seus pressupostos e a educação e colabora afirmando que 1 A concepção dualista cartesiana foi formulada pelo filósofo René Descartes que entendia o homem como um ser duplo. De um lado o ser-corpo (res extensa, ou extensão do espaço) e o ser consciencia (res cogitans, capaz de pensar). Nessa concepção o corpo como ser biológico, corpóreo que ocupa lugar no espaço, e por isso se submete às leis da natureza, por isso ser determinado. Por outro lado, a mente consciência seria a parte responsável pelo pensamento, que não ocupa lugar no espaço, por isso ser livre. Dessa forma, pensar, para Descartes, era uma atividade separada do corpo (Discurso do método, Renê Descartes. Tradução: Manuel dos Santos Alves, Editora Universitária Lisboa, 1990). | 63 [...] o organismo vivo e seu entorno formam, em cada momento, um único sistema, e qualquer distinção acerca de autonomias de subsistemas dentro desse sistema (por exemplo, aprendentes individuais num sistema aprendente) tem que frisar o caráter relativo dessas autonomias [...] (ASSMANN, 1998, p.36) A partir dessa concepção podemos entender que o conhecimento gerado a partir das interações não são provocados pelos elementos externos aos sujeitos, mas sim pelo modo como o sujeito interpreta e responde a essas interações. A forma como conhecemos acontece a partir de um processo interno “[...] donde se conclui que não há separação entre o produtor e produto. O ser e o fazer de uma unidade autopoietica são inseparáveis, e esse constitui seu modo específico de organização” (MATURANA; VARELA, 2001, p. 57). Nessa perspectiva podemos creditar ao corpo uma importância fundamental no processo de aquisição e construção do conhecimento – aprendizagem –, pois é ele que estabelece relações, modificando suas estruturas de modo que possa continuar vivendo harmoniosamente com o entorno. Como nos diz Assmann: O aprender não se resume em aprender coisas, se isto fosse entendido como ir acrescentando umas coisas aprendidas a outras, num processo acumulativo semelhante a juntar coisas num montão. A aprendizagem não é um amontoado sucessivo de coisas que vão se reunindo. Ao contrário, trata-se de uma rede ou teia de interações neuronais extremamente complexas e dinâmicas, que vão criando estados gerais qualitativamente novos no cérebro humano. É a isto que dou o nome de morfogênese do conhecimento (1998, p.40) grifos do autor Outra obra importante que estuda as relações do corpo com os processos de apreensão do conhecimento – aprendizagem – é a do neurocientista português Antônio Damásio, denominada “O erro de descartes: emoção, razão e cérebro humano” (1996). Damásio defende a ideia de que o corpo e a mente formam um sistema indissociável, integrados por circuitos bioquímicos e neurais em intensa interação com o meio que os rodeiam. Reforçando os pressupostos de Maturana e Varela, que criticam o entendimento dualista do homem – corpo e cérebro/alma –, Damásio fala sobre a forte influência que o entorno exerce na formação das estruturas cognitivas do sujeito. Para o autor: | 64 O ambiente deixa sua marca no organismo de diversas maneiras. Uma delas é por meio da estimulação da atividade neural dos olhos (dentro das quais está a retina), dos ouvidos (dentro dos quais está a cóclea, um órgão sensível ao som, e o vestíbulo, um órgão sensível ao equilíbrio) e as miríades de terminações nervosas localizadas na pele, nas pupilas gustativas e na mucosa nasal. As terminações nervosas enviam sinais para pontos de entrada circunscritos no cérebro, os chamados córtices sensoriais iniciais da visão, da audição, das sensações somáticas, do paladar e do olfato. (1996, p. 117) Podemos entender, a partir das explicações do autor, que as influências do meio, percebidas pelos órgãos sensoriais/perceptivos, provocam modificações nas estruturas sinápticas do cérebro, possibilitando que o sujeito tenha a capacidade de formar imagens mentais, que são manipuladas, em um processo chamado pensamento, e podem nos servir para articular comportamentos e ações a serem tomados em determinadas situações. Vale lembrar que quando ele fala de imagem, não se refere apenas a imagens visuais, mas também as imagens sonoras, olfativas, palativas etc. Damásio nos fala que: O conhecimento adquirido baseia-se em representações dispositivas existentes tanto nos córtices de alto nível como ao longo de muitos núcleos de massa cinzenta localizados abaixo do nível do córtex. Algumas dessas representações dispositivas contêm registros sobre o conhecimento imagético que podemos evocar e que é utilizado para o movimento, o raciocínio, o planejamento e criatividade; e outras contêm registros de regras e de estratégias com as quais manipulamos essas imagens. A aquisição de conhecimento novo é conseguida pela modificação contínua dessas representações dispositivas. (1996, p.133) A partir desses pressupostos, acreditamos que os processos de construção e apreensão do conhecimento – aprendizagem – acontecem a partir do corpo e do movimento corporal. Quando limitamos nossos meios de interação com o ambiente a apenas uma dimensão perceptiva, limitamos também nosso modo de compreender o mundo. Por isso a nossa crítica da utilização exagerada dos recursos tecnológicos e visuais e a organização do processo pedagógico que nega o movimento corporal. As preferências maiores pelos aparelhos eletrônicos não se limitam apenas ao espaço escolar. Na contemporaneidade as pessoas adotam o uso excessivo de aparelhos eletrônicos em suas vidas. Além de delimitar o | 65 desenvolvimento dos nossos órgãos sensoriais/perceptivos esses aparelhos exercem uma influência negativa na formação de nosso cérebro e consequentemente de nossos pensamentos, segundo os estudos de Valdemar Setzer (2001). Dentre vários recursos tecnológicos, o autor fala sobre a televisão e as influências do aparelho, principalmente nas crianças. Segundo Setzer (2001) quando estamos na frente do televisor ficamos fisicamente inativos e, dos nossos sentidos, somente a visão e a audição trabalham, e de maneira muito precária. O autor explica que “[...] a falta de movimento dos olhos de uma pessoa vendo televisão indicam um estado de desatenção, de sonolência, de semi-hipnose” (p.18). Esse estado deixa nossos pensamentos praticamente inativos o que nos impede de raciocinarmos conscientemente e de realizarmos associações mentais. Outro fator negativo no aparelho está nas mudanças constantes e rápidas das imagens, que é intencional, pois provoca “[...] a excitação necessária dos sentimentos (recursos usados para impedir que o telespectador passe do estado de sonolência para o de sono profundo) [...]” (p.19). A partir dessas explicações podemos levantar a hipótese de que a falta de concentração das crianças nas explicações feitas pelos educadores/professores, seja gerada pela incapacidade do cérebro em pensar por imagens criadas ou formadas. A criança, e até o adulto, que passa muito tempo à frente da televisão acostuma-se a pensar por imagens prontas, dessa forma é incapaz de manipular imagens mentais (pensar) para articular conceitos e associações. Outro fator é a incapacidade de manter a atenção por muito tempo. O cérebro está acostumado a mudar constantemente de foco/visão. Setzer, como crítico do uso dos meios eletrônicos na educação, principalmente de crianças, argumenta que: Na leitura, é preciso produzir uma intensa atividade interior: num romance, imaginar a paisagem e os personagens; num texto filosófico ou científico, associar constantemente os conceitos descritos. A TV, pelo contrário, não exige nenhuma atividade mental: as imagens chegam prontas, não há nada para associar. Não há possibilidade de pensar sobre o que está sendo transmitido, por que a velocidade das mudanças da imagem, de som e de assunto impede que o telespectador se | 66 concentre e acompanhe a transmissão conscientemente (2001, p.19) E adiante continua [...] a educação deveria ter como uma das suas principais metas desenvolver nas crianças e nos jovens a capacidade de imaginar e de criar mentalmente. Mas a televisão faz exatamente o contrário: o constante bombardeio de milhões de imagens faz com que o telespectador perca a habilidade de imaginar e criar. Isso é principalmente preocupante com crianças e jovens, que estão desenvolvendo essas habilidades (num adulto que as tenha, a perda parcial pode ser lamentável, mas muito pior é nunca chegar a desenvolvê-las (2001, p.20). Outro aparelho criticado por Setzer é o jogo eletrônico. Segundo Setzer esse tipo de jogo exige do jogador velocidade de reação, ou seja, ações sem pensar, automáticas. Nesse sentido, os jogos eletrônicos possuem a capacidade de des – sensibilizar o jogador, fazendo com que ele se acostume a ter reações automáticas, sem pensar nas consequências de seus atos. Setzer nos explica que: É interessante notar que reações automáticas são características de animais e não de seres humanos adultos. Em geral, o ser humano pensa antes de fazer algo, examinando, por meio de representações mentais, as consequências de seus atos. (SETZER, 2001, p. 23). Em sua obra “Meios eletrônicos e educação: uma visão alternativa” (2001), Valdemar Setzer realiza um estudo aprofundado sobre vários aparelhos eletrônicos. O que nos interessa nesse momento é levantar hipóteses para entender as dificuldades de aprendizagem dos alunos e a dificuldade que os educadores têm de conduzir o processo de ensino. Essas pequenas explanações de Setzer podem ser o fundamento básico para associarmos as dificuldades de aprendizagem com os modos de vida e de ensino que na atualidade são assumidos. Se voltarmos à questão inicial, em que os arte-educadores que trabalham debaixo da lona relatam que os pais dos educandos lhes agradecem pela transformação do comportamento de seus filhos, principalmente sobre a melhora no desempenho escolar, podemos acreditar com certa convicção que os movimentos característicos das atividades circenses ajuda os educandos a superar a inércia de raciocínio e de pensamento. Vejamos: | 67 Em uma das visitas que realizei nas lonas observei alguns educandos realizando a atividade de malabares com três claves. O arte-educador ia constantemente orientando os alunos em relação aos erros que iam surgindo. Notamos que os iniciantes tinham um semblante tenso, precisavam se concentrar de modo que não deixassem cair às claves. Lembramos que se trata de uma atividade muito complexa. Para realizar essa atividade o educando necessita de uma coordenação motora bem desenvolvida, a todo o momento duas claves estão no ar, é necessário que se preste atenção nas claves e nas mãos. Um educando com mais habilidade era capaz de jogar as três claves e se equilibrar em cima de um rola-rola6, outra educanda fazia uma dinâmica, também com três claves, com o arte-educador em que apenas uma das mãos era utilizada para lançar as claves ao alto e outra mão precisava “roubar o chapéu” do companheiro. Outro exemplo: nas várias lonas que visitei observei as (os) arteeducadoras (es) ensinando os movimentos das atividades aéreas (trapézio, tecido, lira). A maior parte dos movimentos são ensinados com os educandos nos aparelhos, primeiro eles sobem depois as educadoras vão passando a informação para que eles executem. Os movimentos são sequenciais, quando se realiza um movimento é necessário que se encaixe outro na sequência. Poucas vezes vi as arte-educadoras demonstrando corporalmente o movimento, e poucas vezes esses movimentos foram simulados no solo. Esses são dois exemplos, entre os vários, que poderíamos relatar que mostram que as atividades circenses exigem que os educandos formulem imagens mentais, que associem velocidade com força, equilíbrio com flexibilidadee, principalmente, consciência corporal. O risco à integridade física que algumas atividades possuem, exige dos educandos a capacidade de pensar corretamente, que nesse caso, é pensar corporalmente. Como já dissemos anteriormente, atividades corporais – esportes, danças, expressões circenses – não podem ser vistos como válvulas de escape para tensões, tampouco pouco ser justificada apenas pela importância da saúde corporal. Essas atividades contribuem na formação dos educandos 6 Um cilindro onde os educandos se equilibram com uma pequena tábua semelhante à prancha de skate. | 68 no desenvolvimento de suas corporeidades, melhorando suas capacidades de aprendizagem. Na sequência do trabalho dissertaremos sobre as linguagens circenses, evidenciando sobre a sua importância no processo educativo e para o desenvolvimento dos sentidos e da sensibilidade a partir da arte e da motricidade. 3 – Linguagens circenses: arte e motricidade “A arte não estabelece verdades gerais, conceituais, nem pretende discorrer sobre classes de eventos e fenômenos. Antes, busca apresentar situações humanas particulares nas quais esta ou aquela forma de estar no mundo surgem simbolizadas e intensificadas perante nós”. João Francisco Duarte Junior “Vivemos seguramente, graças ao caráter superficial de nosso intelecto, numa ilusão perpétua: necessitamos, portanto, para viver da arte a cada instante. Nossa visão nos prende às formas. Mas se somos nós próprios aqueles que educamos essa visão, vemos também reinar em nós mesmos uma força artistica. Vemos até mesmo na natureza mecanismos contrários ao saber absoluto: o filósofo reconhece a linguagem da natureza e diz: ‘temos necessidade da arte’ e ‘só precisamos de uma parte do saber”. Nietzsche | 70 3.1 A experiência de criar pelo movimento Em alguns anos de prática docente, como profissional de Educação Física, sempre nos intrigou o porquê da necessidade do homem em se movimentar. Percebemos que o movimento humano é mais do que um ato de locomoção, com o intuito de se deslocar. O homem tem no movimento uma forma de sentir prazer. Isso pode ser facilmente notado ao observarmos quando crianças, mesmo sem se conhecerem, ao se encontrarem logo arrumam alguma forma de brincar, de se movimentar. Alguém já viu duas crianças sentadas, conversando sem se movimentar? As crianças, na maioria das vezes se comunicam brincando. O que dizer dos bailes da terceira idade que estão cada vez mais frequentados? Achamos fascinante observar pessoas já passando dos 50 anos buscando na dança uma forma de se sentirem mais jovens. E os atletas de finais de semana, nos parques, nas quadras, nas piscinas. Médicos dizem que não é aconselhável fazer atividade física apenas nos finais de semana, pois pode ser um risco à saúde. Se nos perguntassem sobre a questão, eu diria que o importante não é viver saudável e sim morrer feliz. O que podemos notar é que uma pequena parte da população, principalmente urbana, vem encontrando outras formas de prazer que substituem o prazer pelo movimento. Uma hipótese, possível, para explicar esse comportamento pode estar relacionada ao crescimento das possibilidades tecnológicas que facilitam os afazeres diários. Se antes o homem caminhava para se deslocar ao trabalho, hoje vai de carro, se antes andava de bicicleta, hoje anda de moto, se antes saia para conversar com os amigos, hoje isso é possível com a utilização da internet. Outro fator que não podemos desconsiderar são as poucas oportunidades que os espaços urbanos propiciam para as práticas de atividade física e de lazer. As brincadeiras de rua estão em extinção. Nas escolas onde lecionamos – aulas de Educação Física – temos que ensinar as regras de brincadeiras como: mãe da rua, taco, rebatida, quatro cantos etc. As crianças vivem cada vez mais trancadas em suas casas e apartamentos, algumas vendo televisão, outras brincando com jogos | 71 eletrônicos ou em computadores, atividades que inibem as suas capacidades criativas. Assmann (1998; 1999) baseado nas teorias das ciências cognitivas – principalmente nos estudos dos cientistas Humberto Maturana e Francisco Varela (2001) – nos lembra que não há diferença entre processos cognitivos e processos vitais, ou seja, “[...] todo sistema vivo precisa necessariamente estar conhecendo ativamente o seu entorno para poder continuar vivo e agir” (1998, p.38, grifo nosso). Isso significa que para conhecer precisamos estar interagindo corporalmente com o ambiente/entorno. O corpo é, nesse processo, o interlocutor entre o sujeito e o ambiente/entorno, e a motricidade sua principal linguagem. Segundo as teorias das ciências cognitivas é por meio do movimento que o pensamento vai sendo construído. Merleau Ponty (1999) fala sobre o “mundo dos pensamentos”, onde as operações cognitivas, que vivenciamos a todo o momento, devido às relações e experiências, vão se sedimentando, tornando conceitos de que lançamos mão no momento em que nos deparamos com o desconhecido. No entanto, as aquisições originadas das operações cognitivas não podem ser consideradas aquisições absolutas, ou seja, a cada nova experiência vamos ressignificando os nossos conceitos, formulando outros que nos subsidiarão em novas leituras. Para Merleau Ponty: [...] cada frase que dizem diante de mim faz então germinar questões, idéias e reorganiza o panorama mental e se apresenta como uma fisionomia precisa. Assim, o adquirido só está verdadeiramente adquirido se é retomado em um novo movimento de pensamento, e um pensamento só está situado se ele mesmo assume sua situação (1999, p. 183) Na experiência que temos na Educação Física escolar, principalmente com crianças nas idades entre 5 a 10 anos, é muito comum ao entrarmos nas salas de aula, para buscar as turmas, ver as crianças sentadas nas cadeiras, ameaçadas de não participar da aula de Educação Física se não ficarem quietas. A proibição na participação nas aulas de Educação Física é um meio que os professores lançam mão para manter a ordem. Conhecendo as crianças dessa idade, nós, até certo ponto, respeitamos essa estratégia. Mas, como são pelos movimentos que as crianças se relacionam com os outros e com o | 72 mundo/entorno, qual a possibilidade de haver o desenvolvimento cognitivo se os corpos estão inertes? É fato que algumas crianças querem se movimentar até demais, chegando a atrapalhar as aulas, mas devemos reconhecer que elas estão aprendendo. A relação com o entorno é feita de provocações e desafios. No entorno existe a necessidade de sobreviver, de se adaptar a ele, de superar as dificuldades que ele impõe. Viver corporalmente o entorno/ambiente significa conhecê-lo, estabelecendo relações significativas, criando possibilidades de superar seus desafios. Os estudiosos das ciências cognitivas chamam esse processo de adaptação do organismo vivo de autopoiesis que pode ser entendido como auto fazer-se ou auto criar-se. Segundo Assmann, “[...] a motricidade humana consiste em processos de aprendizagem corporal em interação com o meio circundante, e as biociências nos mostram que isso acontece sob a forma de processos autopoieticos [...]” (1998, p. 46). Como já discorremos anteriormente, o homem é um sujeito autônomo e heterônomo (NOVASKI, 1984; REZENDE, 1978), que se humaniza por meio de suas relações com os outros e com o mundo – EU-TU (eu - você) e EU-ISSO (eu - experiência) – conforme Buber (2003). Isso significa que existem conhecimentos de que nos apropriamos a partir das relações que estabelecemos com o mundo – subjetivos –, e conhecimentos formulados por meio de sínteses que se originam das relações com os outros - intersubjetivas. O homem no instinto de sobrevivência viu a necessidade em se unir a outros homens, criando comunitariamente formas de sobreviver, aprendendo a transformar os recursos disponíveis na natureza em utensílios para lhes facilitar a vida. Esses conhecimentos foram sendo compartilhados, ressignificados e reconstruídos pelos membros das comunidades, em suas relações sociais (BRANDÃO, 2007). Entretanto, o homem não se conteve em apenas sobreviver. Na verdade ele sempre teve, e sempre vai ter a necessidade de superar-se, de ir além de seus limites, de adquirir habilidades especiais e de expressá-las de várias formas. | 73 Neste trabalho, vamos entender como arte toda forma de materialização e expressão da sensibilidade e criatividade humana. Bosi (2004) entende que a arte é um fenômeno que passa por três dimensões: o conhecer, que se refere à capacidade imaginativa do homem em formular idéias que modificarão o (seu) mundo; o fazer, ou operar construtivamente sobre os recursos naturais e culturais; e o exprimir, ou materializar sua criação. Segundo Bosi, “a arte é uma produção; logo supõe trabalho. Movimento que arranca o ser do não ser, a forma do amorfo, o ato da potencia, o cosmos do caos” (2004, p. 13). Antônio (2010) nos lembra que a todo o momento estamos realizando uma criação, seja ela intelectual, sensitiva ou imaginativa, e que nossas criações devem ser consideradas. Geralmente temos a concepção de que fazer arte é privilégio de uma minoria abastada intelectualmente, ou seja, por pessoas com dons especiais. Antônio discorda, dizendo que todo homem é um sujeito e esse sujeito é um autor [...] de idéias, de textos, de diálogos, de ações, de vida, ainda que precariamente, ainda que cercado de muitas misérias e opressões. Precisa reconhecer-se como sujeito e como autor. Precisa ser assim reconhecido. Esse reconhecimento é fundamental para a experiência de reconhecimento e de educação, assim como para mudar a vida, para transformar o mundo (2010, p.111). O que nos parece é que conhecer o entorno para continuar vivendo – como defendem os pesquisadores das ciências cognitivas – não é o suficiente. É preciso manifestar o que já se tornou conhecido. O ser humano já não se contenta apenas em saber, ele quer também expressar, e a expressão do saber acontece corporalmente. Com base em Merleau Ponty (1999), podemos partir do principio de que toda manifestação expressiva acontece por meio do corpo. Segundo Merleau Ponty (1999), é por meio das percepções que temos do mundo e das relações sensíveis que estabelecemos e que permitem que os nossos pensamentos vão se formando e respondemos a essa relação de forma expressiva, ou seja, o movimento é uma forma de expressão do nosso pensamento e, por isso, tem em si uma grande dose de subjetividade. Voltando ao proposto pelo trabalho, quando dizemos que as linguagens circenses são caracterizadas por um misto de motricidade e arte, estamos | 74 sugerindo que são atividades corporais que possibilitam a expressão da criatividade humana com uma estética diferenciada. É comum observarmos um artista circense realizar uma releitura de uma modalidade – malabares, acrobacias, mágicas – e nessa releitura ele atribui um sentido próprio ao seu movimento. Para Carmo Junior, “[...] ditar as coisas com o corpo é afirmar que a motricidade nele nasce como força de expressão” (2005, p. 14). O mais interessante é que, quando estamos debaixo da lona, sabemos que existem “atalhos” que precisamos seguir para realizar algum movimento, mas, quando esses movimentos nos são interiorizados, podemos sugerir nossos próprios sentidos aos movimentos através de gestos motores que se tornam uma fala corporal. As linguagens circenses tornam-se uma fala criativa, dotadas de sentidos, com altas doses de subjetividade. O gesto falante é o movimento que não se repete, mas que se refaz, e refeito diz cem vezes, tem sempre o sabor e a dimensão de ser inventado, feito pela primeira vez. A repetição criativa não cansa, não esgota o gesto, pois não é repetição, mas criação. Assim ele é sempre movimento novo, diferente, original. Ele é arte (SANTIN, 1987, p.26). As linguagens circenses, como conteúdos a serem contemplados como propostas educativas para o desenvolvimento dos sentidos e da sensibilidade tornam-se, dessa maneira, uma fonte riquíssimapara o desenvolvimento da criatividade humana a partir de sua corporeidade, pois exigem que o educando lance mão de recursos adquiridos no contato com os outros e com as experiências para ressignificar e dar sentido próprio ao mundo, criando formas originais e subjetivas de expressão. Até o momento, dissertamos sobre a importância de proporcionar, aos educandos, uma educação humana, na qual o educando é capaz de atribuir sentido próprio ao mundo por meio de um processo de leitura contextualizada, dando significado e ressignificando o já conhecido. Para isso se faz necessário que estabeleça relação com o mundo e com os outros. Dissertamos, também, sobre a comunidade circense como uma comunidade educativa. No próximo capítulo dissertaremos sobre o caminho que iremos percorrer para chegarmos a esse entendimento. Para tal, adotaremos a observação participante como | 75 referência inicial, entendendo ser esse um bom caminho para colhermos informações significativas e interpretá-las, na busca de um entendimento sobre os sujeitos a serem pesquisados. 3.2 As experiências vivenciadas debaixo da lona Quando falamos em linguagens circenses estamos nos referindo a um grande número de modalidades e manifestações, dente elas: malabares, mágica, ginástica acrobática, atividades acrobáticas aéreas, palhaços, equilibrismo. No entanto, especificamente debaixo da lona – do Instituto Brinquedo Vivo – algumas modalidades são praticadas com maior frequência. Para melhor situar o leitor nesse trabalho, realizaremos uma pequena exposição, por meio de fotos, que adquirimos em nossas visitas nos pólos. 3.2.1 Ginástica acrobática Também conhecida como ginástica de solo, caracteriza-se por um conjunto de movimentos acrobáticos – rodantes, flic-flac, estrelas sem apoio das mãos, saltos mortais etc – e semi-acrobáticos – estrelas, reversões, rolamentos, paradas de mãos etc. Esses movimentos são intercalados com exercícios de apoio e suspensão entre pares: pirâmides ou figuras. A idéia é a de que os parceiros – duplas, trios, quartetos ou grupos maiores – realizem uma evolução dinâmica que envolva movimentos coreográficos, intercalados com os movimentos da ginástica, sempre com apoio e auxílio entre parceiros. | 76 Figura 1- Pirâmides em grupos maiores. Foto: Acervo do pesquisador | 77 Figura 2 – Exercício estático em duplas. Foto: Acervo do pesquisador | 78 3.2.2 Tecido acrobático O tecido acrobático é uma das modalidades aéreas do circo. Consiste em um tecido suspenso – em duas partes – em que os praticantes se penduram e desenvolvem movimentos corporais – enrolar-se, se, realizam chaves de pé, quedas – formando posições/ figuras. Essa modalidade exige do praticante um domínio corporal considerável, além de muita resistência resistência física. A figura a seguir demonstra alguns exercícios que podem ser realizados tecido. Figura 3 – Figuras no tecido. Fotos das alunas do Instituto Sócio Cultural Brinquedo Vivo. Acervo do pesquisador | 79 3.3.3 Lira A lira é um aparelho, em forma de arco, que fica suspenso por um cabo de aço em que o educando pendura-se pendura se e realiza movimentos corporais – figuras, contorções. As capacidades motoras mais importantes para a realização dessa modalidade são: força muscular e flexibilidade. Figura 4 – Lira circense. Foto: acervo do pesquisador | 80 3.3.4 Trapézio É uma barra de ferro suspensa por duas cordas, neste aparelho são realizadas figuras e quedas e o trapézio permanece sem balanço. Figura 5 – Trapézio fixo. Foto: acervo do pesquisador | 81 3.3.5 Malabares Os malabares são aparelhos que devem ser manipulados sem que se perca o seu controle. Exige dos educandos uma grande capacidade de organização corporal que acontece por meio da coordenação óculo-manual – olhos/mãos. Figura 6 – Malabares (claves) Foto: acervo do pesquisado 4 – Os caminhos da pesquisa “Aprender com a experiência dos outros é menos penoso do que aprender com a própria” José Saramago “O progresso do saber não constitui em esquecer o que nos dizem os sentidos ingenuamente consultados, e que não tem lugar num quadro verdadeiro do mundo, a não ser como particularidade de nossa organização humana [...] Merleau Ponty “Saber com o outro significa que a pesquisa científica não deve ser pensada e colocada em prática como um momento único ou isolado, em nome e a serviço de qualquer interesse de adquirir poder por meio da ciência”. Carlos Rodrigues Brandão “O conhecimento é algo sempre por fazer, refazer, criticar e transformar. A linguagem é um dos principais instrumentos para construção, comunicação, critica e transformação do conhecimento”. Otto Maduro | 83 4.1 Delineando um caminho Na nossa prática docente – que se iniciou por meio de estágios – sempre percebemos um distanciamento significativo do que vivenciávamos na formação universitária e nas literaturas que tinha à disposição, com a realidade que encontrava nas comunidades onde praticávamos intervenções educativas. Essa situação fez com que nós formulássemos alguns dilemas que há muito tempo nos perseguiu. Alguns deles foram passíveis de superação, outros até hoje estão mal resolvidos. O principal deles está relacionado aos discursos. Muitos autores dissertavam e dissertam sobre educação propondo soluções simplistas aos problemas do cotidiano educacional. Pelos enunciados, a impressão que passam é a de que apenas conhecem crianças/alunos/educandos por fotos, ou leituras científicas. Então, como alguém pode dissertar sobre educação se nunca estabeleceu relação próxima com os educandos? Qual é a contribuição desses autores nos problemas educacionais além de formular pressuposições? Seguindo as ideias de Brandão (2003): são educadores que pesquisam? Ou pesquisadores que eventualmente educam? Educam quem? O que, infelizmente, acontece na sociedade contemporânea, é a hiper valorização dos “educadores de biblioteca”, ou seja, aqueles que recebem financiamento, por meio de bolsa pesquisa, de instituições governamentais para formular “hipóteses” que servirão para orientar os “ignorantes” trabalhadores da educação. Bom educador, na atualidade, é aquele que torna publico livros ou artigos em revistas científicas. Ainda persiste a ideia de “autoridades”, ou pessoas com conhecimentos validados por certificações e reconhecidos pela comunidade cientifica. Já, aqueles educadores que todos os dias travam uma batalha real com as dificuldades do cotidiano educacional, na maioria das vezes recebendo baixos salários e com recursos materiais e espaciais precários, esses têm pouco valor, e seus discursos e vozes não têm credibilidade. No íntimo, sempre percebemos essa injustiça, principalmente por pertencermos a esse grupo de desacreditados da educação, cujas vozes eram – e são – oprimidas pelos “donos da verdade científica”. | 84 Ao ter contato com as obras de Michel Foucault (2010), Otto Maduro (1994) e Santos (2007), percebemos que toda teoria pronunciada em forma de discurso é uma forma de apropriação de poder. Foucault (2010) nos fala sobre interdição. Em uma sociedade como a nossa não temos o direito de dizer tudo o que pensamos, pois como o discurso é uma forma de apropriação do poder, haverá sempre a disputa que se reflete na tentativa de calar as vozes dos outros. Para Foucault, “[...] o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta o poder do qual nós queremos apoderar (2010, p. 10)”. Na mesma linha de Foucault, e realizando uma crítica à idéia de que apenas os “intelectuais” são capazes de produzir conhecimentos, Otto Maduro nos fala que: [...] um dos problemas do conhecimento humano é que, com demasiada frequência, desprezamos nossa própria capacidade – e a de outras pessoas e comunidades – de participar ativa e criativamente nas atividades intelectuais, isto é, nas tarefas de construção crítica e transformação do conhecimento. Habitualmente, pensamos que são apenas os peritos, cientistas, intelectuais, e outros profissionais que verdadeiramente conhecem ou que são, pelo menos, aqueles que sabem o que na verdade é mais importante (1994, p.104). Temos o péssimo hábito de recorrer apenas a discursos de especialistas para validar alguma decisão ou pensamento, mas será que existem especialistas na arte de viver? Devemos acreditar em algo ou alguém apenas por serem reconhecidos pela comunidade científica? O que percebemos na nossa “andarilhagem” pela vida é que algumas pessoas sem títulos ou status acadêmicos eram – e algumas ainda são – dotadas de uma sabedoria ímpar e muito tinham – e ainda tem – a acrescentar na vida dos outros, eram – e são – educadores auto-formados. Mais uma vez, deixamos claro que em nenhum momento estamos desqualificando o conhecimento metodicamente construído pelas ciências e pelos cientistas. O que estamos tentando dizer é que devemos tomar cuidado com a ideia deconhecimento válido ou refutável, verdadeiro ou falso, e que a sua construção ou validação não é tarefa restrita a especialistas. Em uma conversa, informal, com um dos coordenadores do Instituto Sócio Cultural | 85 Brinquedo Vivo, o sociólogo Eduardo Ullian7, lhe perguntamos qual seria a sua definição de conhecimento, e sua resposta podemos resumir em uma pequena frase, mas que vai ao encontro do que também acreditamos ser. Segundo o sociólogo, “toda ação humana transformadora e criadora é uma forma de conhecimento”, ou seja, todo ser humano, a todo o momento, produz conhecimento. Constantemente nos vemos em situações difíceis, que nos causam sofrimentos e inquietações, e buscar a superação desses momentos se torna um desafio. Quando, de alguma forma, encontramos possibilidade de superação desses desafios, estamos então construindo conhecimento e, esse conhecimento pode ajudar outras pessoas a superá-lo também (MADURO, 1994). Sobre essa questão Severino Antônio nos fala que “os saberes são fruto do trabalho coletivo, direta e indiretamente, e não apenas dos nomes conhecidos. Representam possibilidades, de melhorar a vida, diminuir o sofrimento, alargar a consciência e os campos de possíveis (2010, p.30)”. Devemos reconhecer que somos seres com necessidades e também seres com desejos e, na busca de suprir nossas necessidades e desejos, criamos formas diferenciadas de ação/superação. Não conhecemos tudo – e isso é óbvio – e por meio das relações aprendemos coisas novas todos os dias. Brandão nos fala que “[...] de várias maneiras estamos sempre vivendo experiências de criação, de buscar respostas às nossas perguntas (2003, p. 73)”. Então, nesse trabalho intencionamos agir como pesquisadores que se lançam no mundo para compreender a sua própria prática. Consideramo-nos educadores- pesquisadores, e só o fato de pesquisar significa que não sabemos e precisamos aprender. Acreditamos que muito temos a aprender com os educadores do instituto a ser pesquisado. Por outro lado, a experiência que adquirimos pesquisando e trabalhando pode ser compartilhada, acrescentando algo nas práticas educativas desses educadores. 7 O sociólogo Eduardo Ullian é coordenador de projetos do Instituto Sócio Cultural Brinquedo Vivo. | 86 A partir desses pressupostos propomos realizar esse trabalho, acreditando haver muito conhecimento disponível nas ações dos educadores do Instituto, mas que precisa de alguma maneira ser refletida, compreendida, sistematizada, fundamentada para ser transformada em práxis educativas. Para tal, acreditamos ser necessário estabelecer uma inter-relação entre pressupostos das ciências da educação e da prática empírica desses educadores. Para tanto, lançaremos mão da pesquisa qualitativa, que pode ser definida como o estudo das experiências humanas. Chizzotti esclarece que os pesquisadores que adotam essa abordagem se dedicam [...] à análise dos significados que os indivíduos dão às suas ações, no meio ecológico em que constroem suas vidas e suas relações, a compreensão do sentido dos atos e das decisões dos atores sociais ou, então, dos vínculos indissociáveis dasações particulares com o contexto social em que estas se dão (1998, p. 79). Como esse trabalho tem um viés social e educativo, em que visa buscar o sentido e significado das práticas educativas realizadas pelos educadores debaixo da lona, acreditamos – nós e nosso orientador - não ser suficiente entender os discursos e ações de maneira distante e supostamente “neutra”, mas que é importante a participação ativa no cotidiano desses educadores. Com base em Groppo e Martins (2003), entendemos que para realizarmos essa intenção, a observação participante seja a mais adequada. Os autores nos explicam que “na observação participante há um contato direto do pesquisador com o fenômeno observado, recolhendo as ações dos atores no seu contexto natural, muitas vezes com base nos pontos de vista dos atores” (2003, p. 49). Nessa perspectiva, a pesquisa foi realizada em duas fases: I – Entrevistas: em um primeiro momento a nossa preocupação foi a de conhecer os arte-educadores do Instituto. Nesse momento abrimos espaços para que as vozes dos arte-educadores sejam pronunciadas. Segundo Groppo e Martins (2003, p.51), “a entrevista pode ser descrita como um diálogo que o pesquisador estabelece com uma ou mais pessoas que guardam informações | 87 sobre o tema e problema da pesquisa”. Esse instrumento foi escolhido por proporcionar uma relação mais próxima entre os sujeitos da pesquisa – entrevistador/entrevistado, pesquisador/educador –, e também por possibilitar maior espontaneidade aos discursos. Em um segundo momento será realizado uma observação participante, na qual o educador/pesquisador passará a conviver com os outros sujeitos da pesquisa – os arte-educadores –, registrando suas ações, as dinâmicas e estratégias que adotam como se articulam; conversando sobre os porquês, os objetivos, as intencionalidades, as dificuldades etc. II – análise e interpretação dos dados: Essa fase também será realizada em dois momentos: em um primeiro momento faremos a descrição e análise dos discursos dos arte-educadores, adotando uma atitude fenomenológica. Para Masini“[...] este enfoque de pesquisa caracteriza-se pela ênfase ao ‘mundo da vida cotidiana’, pelo retorno àquilo que ficou esquecido, encoberto pela familiaridade” (1994, p. 61). Rezende explica que essa atitude – fenomenológica – “[...] contribui didaticamente para um tratamento adequado da experiência, isto é, para a manifestação do sentido da existência humana (1978, p.179)”. Em um segundo momento, a intenção era de sereunir com os sujeitos participantes e realizar uma exposição dos dados coletados, bem como das análises realizadas. Nesse momento seriam expostos os discursos, cruzando-os com os registros das observações anotadas, evidenciando todos os aspectos observados subjetivamente pelo pesquisador. Entendíamos que esse seria um momento enriquecedor da pesquisa, pois pretendia discutir com os educadores sobre as suas práticas, pois é no encontro das subjetividades que se constrói o conhecimento. Voltamos novamente à premissa de que todos nós, a todo o momento, construímos conhecimento, e que “[...] somos confiáveis e podemos acreditar em nossas mentes racionais e aprendentes, e também no todo consciente pensante de nós mesmos, por que sentimos e pensamos, imaginamos e devaneamos, saltando fronteiras, desconfiamos dos saberes consagrados [...], dialogamos e transgredimos” (BRANDÃO, 2010, p.61). Infelizmente esse momento de encontro e dialogo não foi possível, por motivos que explicaremos mais adiante. Entretanto, o que realizamos nos foi suficientemente satisfatório. | 88 Para início de trabalho entendemos ser importante abrirmos espaço para ouvir as vozes dos arte-educadoresdo Instituto Sócio Cultural Brinquedo Vivo, precisamos conhecer melhor essa instituição, e acreditamos que além de considerar os documentos que legitimam a instituição; sua historicidade e suas intencionalidades é muito importante darmos vozes aos idealizadores da formação do mesmo, assim comoaos educadores. Nesse sentido, procuramos o principal idealizador da instituição e realizamos uma entrevista na intenção de conhecer melhor essa instituição. A seguir apresentaremos de forma um pouco mais detalhada a instituição que será pesquisada, dialogando com as pessoas que vivenciam seu trabalho no dia a dia, considerando ser importante ouvir de suas próprias vozes sobre o trabalho que desenvolvem e suas perspectivas em torno de suas ações. 4.2 - Apresentando o Instituto Sócio Cultural Brinquedo Vivo O Instituto Sócio Cultural Brinquedo Vivo8 é uma instituição do terceiro setor (ONG), que se propõe a promover ações educativas por meio da arte em diversas regiões da cidade de São Paulo. A instituição mantém convênio com alguns parceiros da iniciativa privada, mas principalmente com o setor público. Com vários projetos em andamento – o circo-escola, as brinquedotecas, as oficinas de confecções de brinquedos, recreação em parques públicos ounas ruas de lazer – a instituição prioriza a educação pelo brincar. Defende a idéia de que, por meio dos jogos e das brincadeiras seja possível desenvolver habilidades artísticas, corporais e sociais, que favorecerão no processo de formação de crianças e adolescentes. Nesse momento acreditamos ser relevante a apresentação da Instituição de que estamos realizando a pesquisa. Para tal pensamos em contar a história do seu surgimento a partir da voz do seu principal idealizador. Senhor Roberto Avritchir, é um medico cardiologista que tem uma relação estreita com as linguagens artísticas e culturais. Em entrevista concedida a nós – em seu consultório –, ele nos contou um pouco da sua vida e suas relações com a arte e a educação, bem como os seus planos para o futuro. Essa entrevista nos 8 WWW.brinquedovivo.org.br | 89 abriu um panorama para que pudéssemos compreender um pouco melhor as intencionalidades do instituto. Para a realização dessa entrevista optamos pelo método não diretivo, que consiste em uma entrevista semi-estruturada, mas aberta a novas possibilidades. Acreditamos que esse método de entrevista melhor contribuiria para o nosso objetivo que é buscar a autenticidade do entrevistado a partir de um discurso livre (MARTINS; GROPPO, 2007). Chizotti nos esclarece que: [...] o informante é competente para exprimir-se com clareza sobre questões da sua experiência e comunicar representações e análises suas, prestar informações fidedignas, manifestar em seus atos o significado que tem no contexto em que eles se realizam, revelando tanto a singularidade quanto a historicidade dos atos, concepções e ideias (1998, p. 92) Avritchir nos conta que desde garoto, sempre foi um apaixonado pela magia do circo, por brinquedos, e coleções. Paixão que até hoje o ajuda a manter o espírito de criança. “Há uns oito anos atrás eu fui fazer uma avaliação e percebi que tinha mais de cinco mil peças no meu acervo, do brincar, do lúdico. Não brinquedos só, mas peças que mostravam a alma do artista, como brincadeira, dessas pessoas que a gente vê que são sonhadores, que é um perfil do artista e do artesão”. Em suas relações sociais, Avritchir nos contou que conheceu pessoas que, de forma direta ou indireta, tinha e tem relação com a arte, com a criação de brinquedos e esculturas. “[...] além de colecionar, na verdade eu gostava muito de conversar com pessoas que faziam essas peças (se referindo aos brinquedos artesanais, esculturas, quadros, etc) [...] e eu percebi que eram pessoas com a alma de criança”. A ideia principal, na voz de Avritchir, ao fundar a instituição, não era apenas proporcionar a vivência de brincadeiras, mas principalmente valorizar as brincadeiras espontâneas e criativas via construção de materiais para brincar, por isso entendemos a valorização dos artistas e dos artesões. “A profissão da criança é brincar. O brinquedo não faz a menor diferença, mas o brincar sim. [...] algumas vezes as crianças com um pedaço de giz, riscam um amarelinho no chão e vão brincar, e naquela brincadeira aprendem as | 90 regras do jogo e o respeito às regras, isso vai fazer uma sociedade e um mundo melhor”. Podemos notar, no discurso exposto anteriormente, que o instituto surgiu com a intenção de prezar pela educação por meio das linguagens lúdicas, seus projetos são todos voltados a ludo-educação, ou seja, práticas educativas a partir das brincadeiras. Roberto Avritchir nos fala sobre suas concepções em relação à importância de brincar na formação da criança: “a gente fala que brincar é coisa séria! [...] a criança que brinca vai ser um adulto melhor [...]” Para que o nascimento do instituto fosse possível foi preciso que houvesse a união de força com outras pessoas próximas ao Sr. Roberto “[...] tinha uma pessoa aqui na clínica, que é o senhor Mesake, eu conversei com ele e contei o meu sonho, e nasceu a ideia de fazer uma ONG. Então, na verdade, o instituto é uma ONG, uma instituição de bairros [...] ela tem participado de processos junto ao estado [...] em projetos de circo, brinquedotecas, brincadeiras de ruas [...]” Ao nos falar sobre a sua participação no andamento da instituição o Avritchir esclarece que a sua participação/colaboração é limitada, segundo ele seu papel na instituição é colaborar indiretamente para o bom andamento dos projetos “[...] todo projeto tem os sonhadores e as pessoas que fazem acontecer, no caso sou o sonhador, eu acho que a minha missão no projeto é ajudar as pessoas”. Inicialmente, o instituto foi formado na intenção de resgatar as brincadeiras populares e a confecção artesanal de brinquedos. Com o tempo outras linguagens foram sendo incorporadas aos seus projetos, e o circo é um dos casos. Roberto Avritchir nos relata que um dos seus sonhos é de que o instituto tenha uma sede própria em que ofereça a vivencia de brincadeiras populares e artesanais. Hoje, o Instituto conta com um escritório que fica responsável pelas questões administrativas. | 91 Outro sonho é o de que a proposta do Instituto Sócio Cultural Brinquedo Vivo possa ser desenvolvida por outros países, formando uma rede de trocas de experiências. “[...] gostaria muito que o instituto tivesse seus irmãos em outros países e assim possibilitasse a todos a oportunidade de brincar. Quem brinca é mais feliz. Só construiremos um mundo melhor quando percebermos a importância do lúdico na vida das pessoas”. Ao final da entrevista, abrimos espaço para que o Avritchir falasse sobre o que quisesse respondendo a pergunta que não fizemos. Roberto Avritchirnos disse que achou que todas as perguntas foram importantes para falar sobre o trabalho e agradeceu a nossa iniciativa por realizar esse trabalho. “[...] gostaria de parabenizar você e seu orientador por essa iniciativa. Vocês estão mostrando que é possível aproximar a teoria com a prática”. 4.3 – Aprender com o outro: aproximando os conhecimentos Até esse momento do trabalho de pesquisa, procuramos deixar claro que a nossa intencionalidade, como educador/pesquisador, é a de investigar o que acontece debaixo de uma lona de circo, entendendo esse espaço como uma comunidade educativa, sendo os arte-educadores os principais protagonistas e sujeitos chaves da pesquisa. Quando decidimos realizar essa investigação já tínhamos a consciência de que não seria um trabalho fácil. Afinal estaríamos “invadindo” um espaço que é compartilhado por um público específico, com saberes próprios, com concepções próprias sobre os trabalhos educativos e sobre o corpo. Para nós, o maior desafio nessa pesquisa é o de aproximar os conhecimentos empíricos dos educadores circenses com o saber sistematizado das ciências da educação. Desafio, porque ainda entendemos que as disputas pelo poder material ou simbólico acontecem a partir da formação dos discursos. Por vezes, as ciências de modo geral, e as ciências da educação de modo específico, reivindicam para si a idéia de “conhecimento válido” ou “conhecimento pertinente”. Por outro lado, supomos que os educadores | 92 circenses não abrem mão de um conhecimento construído a partir das experiências no seio das suas famílias que foi transmitido as várias gerações. Pensamos que a disputa pela legitimação do conhecimento seja um mal para ambos, pois restringe o saber das duas partes, limitando seus entendimentos sobre a educação e suas práticas educativas. Concordamos com Boaventura de Souza Santos quando ele nos fala que “[...] não há conhecimento geral; tampouco há ignorância geral. Somos ignorantes de certo conhecimento, mas não de todos” (2007, p.52). Segundo o autor, podemos considerar a existência de dois tipos de conhecimentos: o conhecimento de regulação, que vai de um ponto A – ignorância/caos – a um ponto B – saber/ordem, e o conhecimento de emancipação que vai de um ponto A – colonialismo ou objetivação do outro – a um ponto B – conhecimento solidário, ou construído com o outro. O problema é que temos o hábito de valorizar o “conhecimento validado pela ciência”; dessa forma, a ordem para o caos depende do saber eminentemente sistematizado pela ciência, mesmo que para isso o conhecimento empírico/subjetivo, originado das experiências subjetivas, seja desconsiderado. Nesse sentido, aceitamos viver segundo as “recomendações científicas”, ou seja, colonizados por um do modo de vida, desconsiderando plenamente a possibilidade de construção de conhecimento com o outro a partir das experiências, o conhecimento solidário. Em outro extremo, os empiristas acreditam que o conhecimento construído a partir das experiências práticas do dia a dia sejam o suficiente para compreender a realidade. Otto Maduro nos fala que “nosso modo real de viver molda nossa maneira de ver a realidade, levando-nos usualmente a acreditar que as coisas são, sem duvida, como as vemos e que outras maneiras de vê-las são, é claro, falsas” (1994, p. 21. grifos do autor). O que mais uma vez pretendemos fazer é trazer a reflexão, a partir das explanações anteriores, que não podemos desconsiderar os conhecimentos sistematizados pelas ciências nem tampouco o conhecimento construído a partir das experiências com os outros e com o mundo. Precisamos, sim, estabelecer um diálogo entre as duas formas de conhecimento de maneira que | 93 nos facilite a compreensão do mundo e nos possibilite a formular ações contextualizadas das ações educativas. Nesse desafio recorremos às orientações de Boaventura de Souza Santos (2007) que propõe a formação de uma ecologia de saberes em que os conhecimentos empíricos e científicos dialogam entre si para a compreensão de um fenômeno. Nessa concepção “[...] a ignorância não é necessariamente um ponto de partida, pode ser um ponto de chegada” (2007, p. 54). Nesse sentido, para aprendermos algo diferente não precisamos desaprender o que já conhecemos. Nas próprias palavras do sociólogo: [...] a utopia de uma ecologia de saberes é que possamos aprender outros conhecimentos sem esquecer nossos próprios conhecimentos. Mas nosso ensino nas universidades, nossa maneira de criar teoria, reprime totalmente o conhecimento próprio, o deslegitima, o desacredita, o inviabiliza. (SANTOS, 2007, p. 54). O desafio dessa pesquisa é o de aproximar as duas diferentes formas de conhecer. Buscando as contribuições das experiências empíricas dos educadores circenses para as ciências da educação, bem como utilizando os conhecimentos sistematizados das ciências para compreender o fenômeno das comunidades educativas circenses. Para nós, não há outro caminho senão a convivência com esses arteeducadores. É preciso ouvir suas vozes, considerar suas subjetividades, entender o que fazem e por que fazem. 4.4 - O trabalho de campo Para a realização dessa pesquisa buscamos uma maneira de conviver com os arte-educadores sem atrapalhar o trabalho deles e da instituição. O Instituto Sócio Cultural Brinquedo Vivo realiza o trabalho de oficina de artes circenses em parceria com a Secretaria Municipal de Esportes da cidade de São Paulo. São montadas lonas de circo em alguns clubes recreativos municipais nas diversas regiões da cidade. Ficou combinado com a instituição que as visitas consistiriam em observações participantes que em nada interfeririam no desenvolvimento das aulas. Também ficou combinado que a entrevista seria realizada mediante a concordância dos entrevistados, ou seja, o arte-educador não era obrigado a | 94 participar das entrevistas. Aceito os termos do acordo partimos para a visita nos pólos. Apesar de a instituição realizar trabalhos educativos, por meio das linguagens circenses, em diversos pólos nas diferentes regiões da cidade, escolhemos três para observarmos as oficinas e entrevistarmos os arte educadores. Como recurso material, utilizamos um gravador de voz e papel e caneta para anotarmos as nossas sensações que surgiam durante a entrevista. Foram realizadas observações no pólo do Clube-escola Vila Curuça durante 5 dias; no pólo do Clube-escola José Bonifácio outros 4 dias, e no Clube José de Anchieta mais 3 dias. Foram entrevistados 7 arte-educadores: sendo 3 do sexo masculino e 4 do sexo feminino. Inicialmente, procuramos observar as estruturas espaciais e materiais. Em cada pólo – como chamaremos os locais – trabalham três educadores. Basicamente as atividades realizadas eram as mesmas: ginástica de solo (acrobacias e semi-acrobacias), malabares, atividades aéreas (trapézio, lira, tecido), trampolim acrobático, ou cama elástica. Havia pólos que tinham recursos outros recursos, como: mini-tramp, ou mini trampolim, arame de equilíbrio ou corda bamba. Não conseguimos enxergar diferenças significativas no desenvolvimento das aulas, as dinâmicas eram muito parecidas. Apenas alguns poucos exercícios físicos e motores se diferenciavam. Por esse motivo descreveremosa dinâmica das aulas de um modo geral, não especificando as lonas individualmente. Nos inícios das aulas acontece um aquecimento inicial. Os educadores se revezam na condução desse momento. Enquanto um dos educadores conduz o aquecimento, os outros dois não participam, apenas observam de longe. Os educadores, formados em Educação Física, sabem que nem todos os alunos que realizam uma atividade física têm consciência corporal, ou seja, uma postura adequada para a sua realização. As posturas equivocadas podem causar danos às estruturas da coluna cervical ou nas articulações dos membros superiores e inferiores, causando um comprometimento na qualidade de vida dos educandos, pois os impedem de realizar certos movimentos ou até os movimentos básicos de locomoção. | 95 Podemos aqui dar uma primeira sugestão: os educadores precisam de uma formação mínima que os possibilite compreender as posturas corporais mais adequadas na realização dos exercícios. Outra questão que acreditamos ser pertinente é a da colaboração entre os educadores: enquanto um conduz o processo de ensino, os outros dois poderiam corrigir e orientar os educandos, de modo que os impedissem de realizar posturas e movimentos equivocados. Devemos lembrar que não se trata de instituir um estereótipo de movimento para padronizar as ações dos educandos. É ideia corrente, entre os que trabalham com a motricidade, que existem maneiras de movimentar que não acarretam danos ao aparelho locomotor. Ao fim dessa primeira parte da aula, geralmente há um intervalo de 5 a 10 minutos para que os educandos tomem água. Na volta, eles estão livres para realizar as atividades que preferirem. Dessa forma os educadores se dividem em estações: solo, aéreos, malabares, trampolim (cama elástica) etc. Percebemos aqui que os educadores dividem as responsabilidades, os alunos são obrigados a participar apenas no primeiro momento das aulas. Nas estações, os educadores propõem atividades explicando e demonstrando corporalmente os exercícios, constantemente vão dando o retorno para os alunos sobre os seus erros e o melhor caminho para superálos. Nas oficinas de circo as dinâmicas sequenciais das aulas vão acontecendo conforme o que os educadores vão se lembrando. A impressão que tivemos, confirmada posteriormente conversando com os educadores, era a de que as ações não eram sistematizadas previamente, ou seja, as oficinas não eram preparadas. Essas observações nos permitiram fazer uma comparação entre a educação formal (escolar) e a não formal. Geralmente um professor da educação formal tem a responsabilidade de entregar, no início do ano, um planejamento anual especificando os conteúdos a serem abordadas, as estratégias (metodologia), os objetivos, o tempo pedagógico, o processo de avaliação etc. Debaixo da lona esse planejamento não acontece. As ações dos educadores têm como base as suas experiências; dessa forma as aulas vão acontecendo. Quando perguntamos a alguns educadores sobre o processo de | 96 avaliação, em termos gerais, eles nos disseram que não se preocupam com o rendimento corporal e sim com o comportamento que os alunos apresentam. Entretanto, essas observações não se tornam relatórios escritos ou registrados. Apesar dessas diferenças com a educação formal (escolar), percebemos que os educandos aprendem, seja pelo auxílio dos arte-educadores, seja pela relação com os outros educandos, ou por livre iniciativa. O domínio corporal que os educandos têm, algumas vezes, chega a impressionar. Como também temos experiência na educação escolar, sabemos que os alunos, por diversos motivos, a maior parte das vezes, possuem dificuldades de aprendizagem, e que não há sistematização que dê conta de ensinar alguns conteúdos. Os leitores desse trabalho podem por um instante pensar que a nossa intenção é levantar o debate do que é melhor ou mais adequado na prática pedagógica: sistematizar e agir pragmaticamente na condução do processo educativo ou privilegiar os conhecimentos empíricos na condução de uma aula mais espontânea? Mas esse não é o caso. E acreditamos que educação é um processo tão complexo que se tentarmos pronunciar o que é melhor ou mais adequado corremos o risco de reduzir o processo educativo a “receitas pedagógicas”, e isso já estamos saturados de ver, e saber que não é o caminho. O que estamos tentamos dizer é que não são apenas os processos formais que educam. Lembramos de uma passagem do livro “Sobre comunidade” (2008) do filósofo Martin Buber, que no capitulo “Educação para a comunidade”, nos fala que: [...] consideremos novamente a influência do professor sobre os alunos. Como o professor exerce realmente influência sobre o aluno? Na medida em que não existir esta resistência, na medida em que entre ele e os alunos não houver a seguinte situação: “ah, agora vamos ser educados!” Em outras palavras, quando as relações entre o professor e o aluno forem espontâneas e estes não o saibam nem o percebam. Quando ele educa, o faz com sua existência pessoal, e se ele acha incapaz de ensinar assim, é recomendável que mude de profissão (2008, p. 90) Para Buber, o processo educativo deve acontecer de forma espontânea e é a existência – ou estar no mundo com os outros – a base principal da educação. | 97 Concordamos em parte com o filósofo. As relações com os outros é fator importante no processo educativo, mas é necessário que os conhecimentos construídos historicamente sejam compartilhados de forma organizada e intencional. Acreditamos que esse processo possa ser importante na evolução dos sujeitos, das comunidades, das sociedades etc. Mas, retomando as narrações sobre as observações, percebemos que debaixo da lona não existem objetivos claros, ou tempos pedagógicos previamente estipulados. As modificações das estruturas cognitivas, derivadas do desenvolvimento do saber sensível – sensibilidade –, que permitem que os alunos realizem uma leitura da realidade que os cerca, e o tempo necessário para essas mudanças, não são as preocupações desses educadores. O importante é que os educandos aprendam. Para melhor compreensão do universo circense, a seguir apresentaremos as entrevistas que fizemos com os educadores. Suas vozes podem contribuir para essa compreensão. 4.5 - As vozes dos arte-educadores Para nós, esse é o momento da pesquisa que mais causa preocupação, e vários são os motivos: nossos preconceitos, nossa sensibilidade limitada, nossa revolta em relação aos discursos hipócritas que circulam no mundo etc. Nessa discussão, Rezende (1978) contribui conosco, quando nos sugere que o pesquisador, para alcançar seus objetivos de encontrar os sentidos que circulam em determinada cultura, precisa se despir de seus pré-conceitos e pré-conhecimentos. Para o autor: [...] o pesquisador deverá interrogar-se a respeito de sua própria capacidade de compreender e interpretar os dados que recolheu ou que lhes foram propostos. A auto critica inicial élhe sugerida pela atitude fenomenológica de époque, cujo nome deverá colocar entre parêntesis tudo o que já sabe, para estar atento ao sentido do texto tal como proposto pelo interlocutor, isto é, pela situação sócio histórica que vai analisar (1978, p.184, grifos do autor). Quando iniciamos a fase de entrevistas e observações, o fizemos com certo receio. Não sabíamos se haveria aceitação dos arte-educadores da | 98 nossa proposta. Apresentamo-nos aos educadores/pesquisadores e explicamos o motivo da nossa visita. Deixamos bem claro sobre a participação voluntária nas entrevistas. Para a nossa surpresa, não houve resistência ou rejeição ao nosso trabalho. Ao contrário do que pensávamos, os arte-educadores nos receberam muito bem e colaboraram de todas as formas para a realização do trabalho. Contamos com a orientação de Novaski (1984), que dizia que: o que fazemos tem raízes tão profundas quanto o que somos, e que as propostas de ações educativas têm origens na história de vida do educador, ou seja, qualquer proposta educativa apenas poderá ser legitimada “[...] na medida em que a história vivida for a matéria prima para elaboração daquela proposta” (1984, p.7). Na mesma direção, Rezende nos fala que “[...] a existência é a fonte de toda informação” (1978, p. 180), sugerindo que, se não conhecermos as experiências dos outros, jamais poderemos atribuir sentido as suas ações. Nesse sentido, para entendermos o que esses arte-educadores fazem, porque fazem e como fazem, precisamos buscar em suas histórias de vida os processos que forjaram suas identidades, pois entendemos que suas ações têmraízes fundadas nas suas experiências como artistas circenses e como seres humanos, inclusive nas suas relações com os seus educadores. Entrevistamos sete arte-educadores, sendo quatro do sexo feminino e três do sexo masculino. Realizamos as mesmas perguntas. Encontramos respostas semelhantes, outras isoladas, mas foi possível compreender um pouco desse universo. Para melhor identificação dos educadores, iremos nomeá-los como: Arte-educador A, Arte-educador B, Arte-educador C, e assim sucessivamente. Inicialmente, solicitamos aos arte-educadores que fizessem uma regressão de memória sobre suas histórias de vida, sua formação, e como foi sua relação com as artes circenses. A seguir, apresentaremos os relatos de história de vida dos sujeitos da pesquisa, acreditando que seja possível compreender de maneira mais completa as suas práticas. Arte-educador A - Tenho vinte e nove anos e trabalho com o circo há nove anos, tenho o ensino fundamental completo. Estudei teatro há dois anos. Fiz | 99 vários shows de rua no litoral de São Paulo, quando voltei para a capital me chamaram para trabalhar aqui no projeto. Arte-educador B - Tenho quarenta e seis anos, vim de uma família tradicional de circo que é a quarta geração, comecei a trabalhar com circo a partir dos seis anos de idade, geralmente crianças de circo começam como palhaço, depois vai atingindo um certo grau físico e uma certa idade vai se aperfeiçoando em outras atividades. Arte-educador C – Tenho cinquenta anos de idade, estudei até o segundo ano colegial, sou de família tradicional da arte circense, já trabalhei em vários circos aqui no Brasil e também no exterior, hoje estou trabalhando no projeto do brinquedo vivo. Arte-educadora D - Tenho vinte e dois anos estou cursando faculdade de sociologia. Minha formação foi de escola circense, fiz curso profissionalizante de circo, e comecei estagiando com adolescentes e crianças, depois me convidaram a trabalhar nesse projeto. Arte-educadora E – Tenho vinte e cinco anos cursei ensino médio completo. Entrei na escola de circo aos cinco anos e saí com dezoito. Eu passei por todos os aparelhos de circo, mas a minha especialização são os aéreos. Arte-educadora F - Tenho vinte e sete anos, sou formada em Educação Física, comecei praticando ginástica acrobática e logo depois comecei a praticar asatividades circenses e mais interesse dos aéreos de circo. Aqui no projeto dou aulas de ginástica acrobática e de aéreos. Arte-educadora G - Tenho trinta e três anos, cursei dois anos do curso de Educação Física. Quando tinha três anos comecei a fazer ballet clássico, com oito fiz ginástica olímpica. Quando fui estudar no colégio da policia militar conheci a ginástica acrobática. Trabalhei em vários projetos como voluntaria até que me convidaram a trabalhar aqui no projeto. No decorrer das entrevistas tivemos a mesma sensação em relação a todos os arte-educadores; que eles tinham muito orgulho de relatarem as suas histórias, e que estavam muito felizes em expor suas experiências, como se tivessem muito a dizer e aquela era a oportunidade. Mas foi um início difícil, tanto para nós quanto para eles, pois parecia que ambos buscavam as palavras certas, nós, sujeitos pesquisadores, buscávamos as palavras certas para perguntar, eles sujeitos da pesquisa buscavam as palavras “politicamente corretas” para responder. A impressão que tivemos é a de que os arteeducadores com quem dialogamos imaginavam que a qualidade de seus | 100 trabalhos resumia-se aos discursos e aquele momento de diálogo, era fundamental para mostrar o seu valor. No momento em que estamos separando as unidades de significado, para entendermos esses arte-educadores, percebemos as diferentes histórias de vida e de formação. Alguns são de famílias circenses – com a experiência do circo família, não apenas as experiências das linguagens artísticas, mas também as experiências do convívio em suas comunidades sociais, que vão além dos treinamentos e ensaios –, outros de escola de circo profissionalizante ou de projetos sociais, e há também os que se relacionaram com as artes circenses devido às outras praticas anteriores – formação acadêmica, teatro, esportes, danças etc. Pelo fato de esses educadores profissionais possuírem diferentes experiências, também possuem valores e comportamentos diferentes, por esse motivo temos a convicção de que encontraremos sentidos diferentes nos seus discursos. Uma das hipóteses que levantamos era a de que as suas ações educativas eram fortemente influenciadas pelas experiências que tiveramquando eram ainda artistas ou alunos, e por isso solicitamos que eles falassem sobre as relações com seus educadores, perguntando: como foram os seus primeiros contatos com as linguagens circenses? Como era a sua relação com os seus professores? Arte-educadora E - Eu passei por muitos professores, mas meu relacionamento com os professores sempre foi bom, tinha meus professores como pais, mas era tratada como uma aluna como todos. E havia um respeito mútuo. Já vi muitos casos que os professores querem mandar na vida dos alunos fora do circo e eu acredito que não é por aí. Apesar de não encontrarmos outro discurso semelhante a esse, podemos notar que em algumas vezes a admiração do aluno/educando para com seus educadores/professores é tão intensa que o educando toma seus educadores quase como heróis e em algumas vezes como pais. Por outro lado, os educadores/professores, confundem suas responsabilidades, querendo assumir as responsabilidades que, no nosso entendimento, não lhes | 101 competem, e sim aos pais. Entendemos que o bom senso do educador, tão valorizado por Paulo Freire (1996), também está relacionada em reconhecer até onde vai a nossa responsabilidade, e o que foge dela. Nunca podemos esquecer que somos apenas educadores e não o “messias” que veio trazer a salvação a todos os males do mundo. Outro discurso chamou a atenção, por deixar claro para nós um perfil de educador/professor: a do controlador. Vale salientar que em alguns casos esse comportamento é admirado pelo educando, que considera essa postura como forma de dizer que o educador/professor se importa com ele, que quer o seu bem. Arte-educadora G - Meus professores eram muito exigentes, eles cobravam muito a gente, eles não eram bravos, eles eram muito ruins. Na parte da disciplina eu aprendi muito com eles. Na parte dos exercícios, quando você não conseguia fazer um exercício o professor falava: se você não consegue fazer então o que você está fazendo aqui? Por que então você não vai embora?. Muita coisa eu aprendi com eles. Arte-educadora D - Quando fazia a escola profissionalizante de circo, meus professores eram muito rígidos, tínhamos que atingir a perfeição na realização dos exercícios. No diálogo com os arte-educadores percebemos a valorização da rigidez no processo educativo. Eles entendem o termo disciplina como sinônimo de controle e bom aluno como aquele que sesubmete aos comandos do educador. Nesse sentido, bons educadores são aqueles temidos pelos educandos, e que controlam a todo o momento os processos educativos. Por meio desse discurso, identificamos um entendimento que era muito próximo ao nosso, pois como dissemos anteriormente, nossa prática educativa, por falta de entendimento, segurança ou conhecimento, era baseada por meios coercitivos de controle. Nesse momento, surgiu em nós duas sensações: primeiro a de satisfação por saber que a nossa sensibilidade não é tão limitada assim, pois identificamos no outro algo em que também acreditávamos, como dizia Novaski (1984), interpelar é interpelar-se, interpretar é interpretar-se. A segunda sensação é a de preocupação, pois ao identificarmos essas posturas percebemos que esses educadores estão trilhando um caminho perigoso, em que pode acarretar problemas não apenas na formação do educando, mas na sua própria formação como educador. | 102 Em relação aos educadores que são de origem familiar circense, algumas vezes a relação extrapola os limites de preparação corporal para eventos e apresentações. Em conversas com eles, boa parte nos relata que sua formação envolvia castigos físicos, quando eram incapazes de realizar alguma tarefa. Arte-educador B - Meus pais que me ensinaram quase tudo. Quando você é de família de circo você precisa aprender tudo, desde vender pipoca até bater estaca. Minha relação era rígida, quando uma criança de circo não consegue fazer alguma atividade ou reclama que está cansada ela apanha. Uma das grandes confusões, não apenas entre os educadores profissionais – professores e educadores sociais – mas também dos demais educadores – família e sociedade – é o sentido de autoridade. A partir da concepção do senso comum, entendemos autoridade como capacidade de exercer influência no comportamento e nos desejos dos outros, seja pela força física ou pelo temor de algo – coação. O professor Silvio Donizette Gallo em sua tese de doutorado “Autoridade e a construção da liberdade: o paradigma anarquista em educação”, pela Universidade de Campinas (1993), realiza um estudo fenomenológico sobre esses temas – autoridade e liberdade –, fundamentado, a partir do paradigma anarquista da educação. Nessa pesquisa Silvio Gallo, defende a idéia de que, ao contrário da concepção dos defensores do modelo da escola nova que “[...] critica o uso da autoridade, argumentando que o indivíduo deve desenvolver-se de forma livre e natural [...]” (p. 140), a condição da liberdade e da autonomia é construída a partir de um processo que se inicia pelo principio de autoridade, e diz “[...] uma educação que se pretenda libertária não pode tomar a liberdade como um ponto de partida, mas de chegada; a liberdade é o fim e não o meio da educação anarquista” (p.136). Para Silvio Gallo, a autonomia e a liberdade não podem ser doadas, pois a incompreensão dos sentidos de normas, códigos e símbolos que circulam no mundo impossibilita que os sujeitos realizem ações e escolhas não nocivas para eles e para os outros. Por esse motivo é necessário que os sujeitos passem por um processo de autoridade em que, por meio das experiências com os outros, possam aumentar sua cosmovisão, sendo capaz de avaliar suas ações e consequências. | 103 [...] a aplicação do princípio de autoridade nas crianças, mais do que justo, é absolutamente necessário e legítimo. Deixar as crianças a mercê de uma suposta liberdade natural é a mais pura irresponsabilidade pedagógica; longe de constituir-se numa educação libertária, seria uma educação libertina. (GALLO, 1993, p.137) Desse modo, o professor/educador participa do processo educativo de uma forma mais qualificada, com uma visão mais completa do mundo, e essa qualificação e experiência é que lhe atribuem a autoridade. Cabe ao professor/educador conduzir o processo educativo até o momento em que o aluno seja capaz de caminhar sozinho nos processos de apreensão e construção do conhecimento para a tomada de decisões. Na sequência da pesquisa, sentimos que precisávamos entender como aconteceu à transição de aluno/artista circense para educador. Nesse sentido pedimos para que os educadores rememorizassem essa passagem, e por esse motivo perguntamos: Como foi a passagem de artista/aluno para arteeducador? Arte-educador B - Eu não tinha noção de como era ser professor de circo, era uma coisa nova [...] eu ensinava assim como os meus pais me ensinaram. Arte-educadora E - Eu não tive muita dificuldade, pois era uma escola profissionalizante. Usávamos uma linguagem mais direta. Éramos um pouco mais diretos com os alunos. Eu tive dificuldades quando eu fui trabalhar em um projeto social [...] em um circo social nós temos que trabalhar a educação, há coisas que não posso falar. Arte-educadora D - Essa passagem foi bem complicada. Eu comecei a ensinar na escola profissionalizante onde eu também era aluna. Pensava que era só passar o conhecimento, mas aí você vê que não é bem assim, a gente tem que respeitar a idade, se tem menos flexibilidade, menos memorização, e isso a gente adquire na convivência. Arte-educadora F - Não comecei sendo professora de circo. Já tive experiência em projetos culturais. No começo tive muitas dificuldades, principalmente na organização dos alunos, eram alunos indisciplinados, a maioria só queria atrapalhar as aulas. Com o tempo consegui dominar o grupo e ficou mais fácil. Como podemos observar nas falas anteriores, a transição aluno/artista para educador exigiu uma adaptação a uma nova realidade. Como já dissertamos, o circo família abriu espaço para o circo escola com objetivos totalmente diferentes, sendo que o primeiro prepara os sujeitos para as | 104 apresentações e shows e o segundo para a formação humana que possibilite a emancipação e autonomia. As dificuldades relatadas fazem sentido, pois a única referência de processos educativos que esses novos educadores profissionais era a de formação de artistas circenses. É aceitável acreditar que o professor/educador em começo de carreira tem a tendência de reproduzir as ações de seus professores/educadores, principalmente daqueles com quem tiveram mais afinidade. Isso parece razoável, pois nesse momento lidamos com a nossa limitação, com a nossa inexperiência, que nos causa insegurança, por isso buscamos, em exemplos já vivenciados, um porto seguro para a nossa prática. Porém, assim como muitos educadores, acreditamos que o profissional de educação qualificado é aquele que é capaz de dar sentido à sua prática, que compreende que é sempre necessário reinventá-la, em um processo interminável de ação-reflexão-ação. Saber se houveram mudanças no trato das ações educativas desses arte-educadores só é possível por intermédio do entendimento que eles têm do que é pertinente ou não naquele momento – das ações educativas –, naquele contexto, por isso solicitamos aos arte-educadores que relatassem sobre quais as ações de seus educadores que eles consideram importantes e, por isso adotaram em suas práticas, e o que eles de maneira nenhuma reproduzem. Arte-educador B - Eu falo que é a técnica de ensinamento (podemos entender como prática de ensino). A criança que é de família circense não pode se negar a fazer nada. Quando a gente ia fazer uma sequência de rodada com flick (movimentos acrobáticos das ginásticas artística e acrobática) meu professor colocava de cada lado uma fileira de cadeiras com as pernas para cima. Se eu errasse, eu caia em cima das cadeiras. Hoje, é lógico que a gente não vai fazer isso. Então alguns modos de antigamente eu vejo que não são adequados para fazer hoje. É o mesmo caso de um pai que educa um filho usando o cinto. É errado. Não se educa forçando a pessoa a fazer aquilo que ela não quer. Esse relato de um arte-educador que é de família circense nos chama a atenção por evidenciar como eram os processos educativos dentro de um universo circo-família. As aprendizagens eram, e talvez ainda sejam baseadas no temor por errar, que acarretaria em sofrimentos físicos. Dessa maneira os educadores procuravam garantir as aprendizagens pela dor em caso de erros. Outro fator que diferencia o educador de família circense do educador social é a condução do processo. No circo família os educandos eram obrigados a | 105 realizar as atividades por meio de coação. No circo escola exige-se do educador uma postura diferenciada, pois os educandos não são obrigados a participar das atividades. Outro discurso muito semelhante é de uma arte-educadora que participou temporariamente – três anos –, como aluna, de um circo profissionalizante. Na concepção dessa educadora os métodos de seus professores eram muito rígidos, o que não cabe em um circo escola. Arte-educadora C - O processo no circo profissionalizante é muito rígido. Não acho que é necessário ser tão rígido com as crianças. Quando é adulto tudo bem, você pode pegar mais pesado. Tem professores que acham que a criança tem que aprender na dor mesmo. Aqui tem que ser mais lúdico. Não podemos nos esquecer de que o circo escola e o circo profissionalizante têm objetivos diferentes, portanto abordagens diferentes. Essa rigidez no processo parece não ser exclusiva das escolas de circo. Uma arte-educadora de origem de escola militar, nas turmas de treinamento, relata um processo de ensino idêntico aos praticados no circo família e na escola profissionalizante. Arte-educadora G - No meu tempo como atleta era muita disciplina. O ensinamento era muito militar. Tinha crianças que chegavam a chorar. Se eu fizesse aqui a mesma coisa que eles faziam, não ficaria nenhum aluno. São questionáveis as metodologias utilizadas pelos educadores de família circense. No entanto, esse trabalho não se propõe a emitir juízo de valor sobre elas. Deixo esse exercício de reflexão aos leitores desse trabalho. E, para ampliar essa reflexão, podemos perguntar: essa metodologia não expõe o aluno/educando a ponto de desconsiderar a sua integridade e sua dignidade? É possível alcançar os mesmos objetivos sem colocar em risco a integridade física e moral do aluno/educando mesmo que os objetivos sejam os de rendimento? Paulo Freire (1996), quando nos fala dos saberes necessários para a prática educativa, nos lembra que é fundamental que tenhamos bom senso, que deságua na questão do respeito às características dos educandos/alunos. Segundo Freire: | 106 Saber que devo respeito à autonomia, à dignidade e à identidade do educando e, na prática, procurar a coerência com este saber, me leva inapelavelmente à criação de algumas virtudes ou qualidades sem as quais aquele saber vira inautêntico, palavreado vazio e inoperante. De nada serve, a não ser para irritar o educando e desmoralizar o discurso hipócrita do educador, falar em democracia e liberdade, mas impor ao educando a vontade arrogante do mestre (1996, p.62) Podemos até considerar que essa “rigidez” na condução das práticas seja uma maneira de garantir a sobrevivência econômica a partir de seus trabalhos corporais. Mas, justificaria colocar em risco a integridade do educando? O que nos chama a atenção, e consideramos muito significativo, é o relato de duasarte-educadoras que vivenciaram o universo do circo profissionalizante, que é muito parecido com o da educadora que frequentou turma de treinamento em escola militar. Quando relatam sobre o que faria de diferente em relação a seus instrutores, elas insistem na questão da linguagem, ou melhor, no trato com os educandos. Segundo elas, as linguagens utilizadas no circo profissionalizante são completamente diferentes das do circo escola. O circo profissionalizante busca a perfeição dos movimentos dos praticantes, pois serão artistas, seus corpos e suas habilidades serão vendidos em apresentações. Quando essas educadoras tiveram a oportunidade de experienciar uma realidade diferente – circo escola – encontraram algumas dificuldades de adaptação. Arte-educadora E - É completamente diferente trabalhar aqui (projeto social) e trabalhar no curso profissionalizante. Lá nós podemos exigir mais. Os alunos têm mais disposição em aprender, ninguém reclama dos exercícios. Os alunos aqui são mais preguiçosos, nem sempre querem fazer os exercícios. Um discurso isolado, mas não menos importante, é de uma educadora que relata que em sua prática evita reproduzir o sistema de exclusão. Segundo ela, alguns educadores escolhem os alunos que irão realizar os exercícios. Arte-educadora F - A maioria dos professores têm os seus preferidos. Os alunos que se destacam têm atenção especial. A maioria dos professores não gostam de trabalhar com alunos iniciantes ou os que têm mais dificuldade. Eles definem o que os alunos vão fazer. Daí eles colocam seus preferidos nos aparelhos que eles querem. | 107 No nosso entendimento, uma das maiores virtudes do educador/professor é a paciência. E, negar ao outro a oportunidade de aprender, seja qual for o motivo, demonstra que o educador perdeu a paciência em ensinar e consequentemente seu comprometimento com a sua profissão. Não podemos, aqui, utilizar essa dissertação para o pronunciamento de um discurso do politicamente correto. Isso seria uma hipocrisia, considerando que ainda estamos aprendendo a ser educadores/professores. Os desafios da nossa profissão exigem de nós, educadores, uma energia que nem sempre é restaurada, e o acúmulo de responsabilidades nos deixa um pouco impacientes. É compreensível vez ou outra perder a paciência, afinal somos seres humanos – racionais e emocionais –, mas viver mal humorados todos os dias é sinal de que alguma coisa está errada. Ou, querer facilitar o nosso trabalho em detrimento do aprendizado dos educandos/alunos é uma total falta de compromisso com o outro e com a profissão, amostra do desinteresse em contribuir na formação do outro. Busco em Paulo Freire uma passagem que considero importantíssima para a nossa reflexão. Saber que não posso passar despercebido pelos alunos, e que a maneira como me percebem me ajuda ou desajuda no cumprimento de minha tarefa de professor, aumenta em mim os cuidados com o meu desempenho. Se a minha opção é democrática, progressista, não posso ter uma prática reacionária, autoritária, elitista. Não posso discriminar o aluno em nome de nenhum motivo. A percepção que o aluno tem demim não resulta exclusivamente de como atuo, mas também de como o aluno entende como atuo. Evidentemente, não posso levar meu dia como professor a perguntar aos alunos o que acham de mim ou como me avaliam. Mas devo estar atento á leitura que fazem de minha atividade com eles. Precisamos aprender o significado de um silêncio, ou de um sorriso ou de uma retirada da sala. O tom menos cortês com que foi feita uma pergunta. Afinal, o espaço pedagógico é um texto para ser constantemente “lido”, interpretado, “escrito” e “reescrito”. Neste sentido, quanto mais solidariedade exista entre o educador e educandos no “trato” deste espaço, tanto mais possibilidades de aprendizagem democrática se abrem na escola. (1995, p.97, grifos nossos). Essa passagem nos faz refletir sobre as nossas responsabilidades como educadores/professores. Resumir os processos educativos em experiências de | 108 aprendizagens é ignorar as múltiplas formas de existência humana, é não reconhecer que os educandos são seres históricos e sociais. É querer “catequizar”, ou transformar os outros à nossa imagem. Nesse sentido, os que não se enquadram nas nossas normas, não realizam os nossos desejos, deitam no nosso leito de Procrusto, ou seja, são excluídos. Resumindo, ser educador/professor é ser capaz de reconhecer e respeitar os outros e nunca negar-lhes o direito de aprender. Nessa passagem da pesquisa a pergunta era: o que de bom, e o que de mau você utiliza, que seus educadores utilizavam? Uma parte considerável dos arte-educadores relatavam os fatos de que não gostaram, mas os bons momentos muitos esqueceram. Precisamos nos desculpar nesse momento, pois, como entrevistadores, talvez ficamos um pouco empolgados e nos deixamos levar pelas histórias. A nossa preocupação maior era a de deixar que os educadores falassem livremente, sem interrompermos, e isso fez com que em algumas vezes perdêssemos o foco principal da pergunta, e apenas percebemos falha no momento em que estavamos separando as unidades de significado. Agora descobrimos a importância de insistir na pergunta, buscando um sentido principal que nos ajudaria em uma maior compreensão da realidade. Felizmente, duas arte-educadoras foram mais centradas do que nós e responderam a pergunta. Arte-educadora G - O que trago de bom é que apesar deles serem ruins (no sentido de cruéis) eles sempre me motivaram, eles não deixaram que nós desistíssemos, pelo mais difícil que fosse fazer um exercício. Aqui eu faço a mesma coisa. Arte-educadora F - Meu professor me cobrava muito, mas também me ajudava muito. Toda hora ele vinha nos corrigir. Se precisasse de ajuda era só pedir que ele ajudava. Aqui eu não sou babá de aluno, mas ajudo sempre que eles precisam de mim. Todo e qualquer processo educativo, seja intencional ou não, provoca, no educando modificações em suas estruturas cognitivas, comportamentais ou físicas/corporais. Desse modo, os processos educativos que acontecem debaixo da lona também contribuem de alguma forma na formação do | 109 educando. Nesse sentido perguntamos aos educadores sobre quais são, no entendimento deles, os benefícios das atividades circenses na formação dos educandos. Arte-educador B - Eu acredito que é o corpo. Pra você ter uma boa saúde você precisa exercitar o corpo. Aqui os alunos exercitam o corpo brincando. Arte-educador A - A criança ganha mais alongamento, mais resistência, coordenação motora. O beneficio do circo para o corpo é trabalhar o corpo dela de uma maneira que ela gosta. Arte-educadora E - Acredito que o aluno aprende a ser responsável. Quando o aluno vai fazer um exercício ele tem que ter consciência de que se ele não fizer corretamente ele pode se machucar. Tem muitos alunos que levam o circo como brincadeira, e se ele brinca toda hora ele pode se machucar. Arte-educador C - Quem faz o circo tem mais disposição, tem crianças aqui que melhoraram as notas na escola depois que começaram a fazer as aulas de circo. Elas ficam mais espertas. Arte-eduadora G - O circo ensina que nos precisamos colaborar um com o outro. Tem muitas atividades que os alunos precisam trabalhar em equipe. Se um não confiar no outro não sai nada. Nesse momento da pesquisa sentimos certa dificuldade dos educadores em relatar os benefícios de suas práticas para os educandos. A sensação foi a de que os arte-educadores nunca pararam para refletir sobre essa questão. Mesmo assim, percebemos que, alguns educadores, valorizam os benefícios físicos para uma boa saúde que as atividades proporcionam. Outros valorizam a convivência social, questões como trabalhar cooperativamente, responsabilidade, respeito, etc. A próxima pergunta refere-se ao sentido que os arte-educadores atribuem a suas práticas, ou melhor, o que é educação para eles e onde eles querem chegar quando estão ensinando. Esse é um momento crucial para entendermos como eles articulam as suas práticas. Encontramos respostas diferentes: Arte-educador B - As crianças chegam aqui muito carentes. Algumas delas ficam sozinhas em casa enquanto os pais trabalham. Então aqui nós ensinamos a importância de ser responsável; porque ele tem que ir para a escola, o respeito aos colegas. Um pouco de tudo. | 110 Arte-educador C - Educar é cuidar do aluno, orientar para que ele não saia por aí fazendo besteira, a gente tem que ensinar o que é certo e errado. Arte-educadora D - Trazer uma base social. Ensinar que é importante respeitar o outro e respeitar o professor que é à base do ensinamento. Arte-educadora E - Educação a gente leva pra todo lugar. Se a gente não tem educação a gente não consegue nada. Aqui a gente tenta ensinar a educação para eles serem pessoas boas, que respeitam os outros. Arte-educador A - A gente tenta buscar o respeito deles, fazer eles levarem a sério o trabalho com o corpo para que eles não se machuquem e trazer confiança para a gente fazer um bom espetáculo. Podemos notar que todos os arte-educadores relacionam o termo educação com o aprendizado de bons modos, ou respeito às regras sociais. Em uma sociedade como a nossa, que carece de princípios e valores morais, os educadores acreditam que o seu papel é o de formar para conviver melhor com os outros. Sabemos que a instituição família, na sociedade contemporânea, vem sofrendo transformações, uns até acreditam que é uma instituição falida. Nós não achamos que chega a tanto. Esses arte-educadores, no nosso entendimento, acreditam q que podem preencher as lacunas deixadas pelas famílias na formação dos educandos, e direcionam as suas ações, ou as justificam, no sentido de modificarem os comportamentos, ajustando-os às regras sociais. Algumas lonas que visitei recebem crianças de abrigos, outras recebem crianças com necessidades especiais. São crianças sem a noção de limites ou respeito ao outro. Os arte-educadores, a todo o momento, precisam chamar a atenção ou até colocar alguns de castigo. Ficamos pensando na nossa própria prática, as dificuldades que temos em organizar e sistematizar os conhecimentos a serem compartilhados e em criar estratégias para aquele educando que tem dificuldades em aprender. Descobrimos que é muito difícil ser educador/professor. Mal conseguimos cumprir com as nossas responsabilidades de maneira satisfatória. Nesse | 111 momento, nos perguntamos: se mal conseguimos cumprir com as nossas responsabilidades como educadores/professores, é possível que, além dessa responsabilidade, podemos dar conta de assumir as responsabilidades da família? Do Estado? Da sociedade? Será que não estamos incorporando a síndrome de Atlas? Existem os messias da educação, que vêm salvar o mundo de todas as mazelas? Ou a intervenção nas responsabilidades da família, do Estado e da sociedade é mais uma exigência da profissão? Entendemos que precisamos possuir uma consciência maior de quais são as nossas responsabilidades. Sem essa consciência teremos dificuldades em definir estratégias de intervenção educativa. Devemos, também, nos conscientizar de que somos apenas parte do processo e, a formação dos educandos depende de diferentes experiências que serão vivenciadas em outros contextos, e não apenas nos espaços de educação formal ou não formal. Deixamos um pouco de lado esses questionamentos, pois são perguntas que não cabem tentarmos responder nesse momento. Voltaremos ao foco do trabalho. Nesse momento iremos agrupar sequencialmente a última pergunta aos arte-educadores, ou melhor, a não pergunta. Perguntamos qual era a pergunta que não fizemos, mas que eles consideram importante que respondam. Ou deixei esse momento para eles ficassem à vontade para que deixassem o último recado. Arte-educador A - Eu queria deixar bem claro que, as pessoas hoje precisam estar mais focadas em fazer atividade física para melhorar a saúde. Pra todos que estão parados hoje e acham que não dá mais, que venham fazer atividade física. Arte-educador B - Eu acho que a pergunta que vocês não fizeram e que eu acho que seria importante é por que eu estou aqui? E, eu estou aqui por que eu acredito que através da arte circense eu possa não deixar a arte acabar, e eu mesmo não estando no picadeiro, eu amo o circo. O circo é a minha vida, tudo o que eu sei foi viajando de cidade a cidade, conhecendo outras pessoas, outras cidades etc, se hoje eu sou uma pessoa de bem eu devo isso ao circo, e por isso não posso deixar que essa arte acabe. Arte-educadora E - Eu acho que a pergunta é: o que eu aconselho para todos que querem seguir as artes circenses? e, eu acho que é a humildade, se você é humilde você aprende mais, quando você acha que sabe tudo você para de aprender. | 112 Arte-educadora F - A arte é uma ferramenta maravilhosa de contato com as pessoas e a educação é fundamental para o desenvolvimento do ser humano, o circo pode educar, e as pessoas têm que ter o conhecimento disso. Arte-educador C - Eu acho que tudo o que eu to fazendo aqui é com uma base de prática. E tem muitos que fazem com uma base teórica. E a pratica é muito importante. Nós que somos de circo (família), nós temos uma história e essa história tem que ser respeitada. Arte-educador G - Que bom seria se tivesse mais oportunidades para as crianças de fazer aulas de circo. É uma pena que essa arte não seja valorizada. A criança que faz circo é mais calma, tem mais disposição para fazer as coisas. Como podemos observar, cada educador, baseado no seu entendimento, deixa o seu recado final. Alguns valorizam as atividades como um todo, já outros declarando o seu amor por essa atividade. O importante é que esse é o momento em que o educador pode demonstrar que tem voz, que tem algo a dizer. Não cabe a nós pesquisadores emitir juízo de valor sobre seus trabalhos. Cada um possui uma experiência pessoal e é nela que se baseia para atuar nas atividades. 3.4 - Sobre o que observamos e ouvimos A decisão que tomamos em conhecer, de maneira próxima, essa comunidade acabou tornando-se a mais acertada, mesmo que algumas questões não tenham ficado muito claras para nós. Esperávamos maishomogeneidade nos discursos, o que acabou não acontecendo. Entretanto as ações educativas eram muito semelhantes. Nesse momento, iremos realizar uma reflexão baseados em 4 itens: 1 – o texto institucional disponível na internet 9 ; 2 – a voz do fundador da instituição; 3 – as vozes dos arte-educadores; 4 – as nossas impressões sobre o que observamos e dialogamos. Retomando a entrevista que realizamos com o fundador do Instituto Sócio Cultural Brinquedo Vivo, Roberto Avritchir, perceberemos que a intenção inicial do Instituto era o de proporcionar experiências educativas por meio de confecções de brinquedos artesanais e do resgate das brincadeiras populares 9 WWW.brinquedovivo.org.br | 113 que com o tempo estão desaparecendo. O relato de Avritchir vai ao encontro do texto institucional que disserta que a Instituição: “É uma organização sem fins lucrativos que propõe implantar, em parceria com demais organizações, espaços interativos voltados a: atividades lúdicas, capacitação, criação e exposição de brinquedos artesanais, que constituam um meio para o desenvolvimento humano, social e educacional”. Como podemos observar, a princípio, a Instituição não tinha como objetivo inicial implantar propostas educativas por meio das linguagens circenses, isso fica claro quando visitamos a sua página institucional da internet. A implantação do projeto de circo veio posteriormente em parceria com a Prefeitura de São Paulo. Entretanto, esse projeto não possui uma divulgação completa, pois não cita que desenvolve o projeto em vários pontos da cidade, e referenciam apenas em um dos muitos pólos em que a Instituição atua. Segundo a página institucional: “Nossa proposta são oficinas de circo do programa Clube escola CERET, abertas à comunidade, buscando nas populações em situação de risco o foco principal de nossa iniciativa. Com esse trabalho estamos preenchendo uma lacuna no aprendizado escolar, que privilegia a escrita e as atividades intelectuais, em detrimento das atividades físico-motoras” Podemos encontrar um ponto discordante entre as vozes dos educadores e o que está exposto na página institucional. Segundo a nota institucional anterior, a instituição pretende “preencher as lacunas deixadas pelas aprendizagens escolares” e, como observamos, para os arte-educadores, amaior preocupação é a de preencher as lacunas deixadas pela educação familiar – informal. Mais uma vez voltamos à discussão sobre as responsabilidades dos educadores de cada campo da educação – formal, nãoformal e informal, que precisamos refletir e retomar em um outro momento. Outra questão que consideramos importante é a dos sentidos ocultos nos discursos dos educadores. Se nos baseássemos no que os educandos estão aprendendo em cada lona, as observações que realizamos não nos permitiram identificar nenhuma habilidade ou conhecimentos dos arte-educadores que diferenciasse, significativamente, os trabalhos realizados nas diferentes lonas. Apesar de que, nas entrelinhas dos discursos, nós percebemos que existe um jogo de vaidade | 114 entre os arte-educadores. No nosso entendimento, podemos dizer, com certa convicção, que os arte-educadores de circo família, os arte-educadores de origem de escolas profissionalizantes e os de formação acadêmica, entendem que os seus conhecimentos são mais importantes ou pertinentes. Mas as tentativas de apropriação de poder simbólico por meio do conhecimento não se justificam. Uma das falas que mais nos chamou a atenção foi a de uma arteeducadora que afirmou que a maioria dos arte-educadores tem os seus “favoritos”, ou seja, privilegiam os educandos que sabem mais, ou mais desenvolvidos. Não acreditamos que nenhum arte-educador, espontaneamente, assuma que realmente tem os seus preferidos e se dedicam mais a eles. Quando observávamos os arte-educadores em atuação, percebemos que realmente alguns educandos vivenciavam uma atividade em um tempo maior do que os outros. Em nenhum momento pensamos que seria um privilégio. Pensávamos que era normal, devido ao nível de desenvolvimento do aluno. Depois do discurso da Arte-educadora expondo essa situação, ficamos em duvida se aquela era uma situação de privilégio. Precisamos investigar com mais tempo. No entanto, se essa situação for confirmada, é lamentável. Na página da instituição na internet, está escrito que uma das missões da instituição é a de capacitar arte-educadores para trabalhar em espaços recreativos. Segundo o texto: “O Instituto Sócio Cultural Brinquedo Vivo reflete a preocupação de seus educadores com a falta de oportunidades e espaços para brincar, a escassez de pessoas devidamente capacitadas para neles atuar”. No entanto ao interpelar os educadores se era oferecida esse tipo de capacitação eles nos disseram que existe um encontro uma vez por mês, mas são tratados apenas assuntos administrativos, ou seja, não existe capacitação ou orientação pedagógica. O que falta para a instituição, no nosso ponto de vista, falando especificamente das oficinas de linguagens circenses, é definir sentidos e objetivos para as ações educativas. Entendemos que seja necessário a instituição explicitar as bases epistemológicas que fundamentam o trabalho desenvolvido por ela. Isso facilitaria a construção de uma | 115 metodologia de trabalho que legitimasse ainda mais a importância da arte educação por meio das linguagens circenses. A intenção inicial desse trabalho ouvir as vozes dos educadores e posteriormente encontrá-los para sintetizar as informações que foram colhidas debaixo das lonas. Acreditávamos que em diálogo com eles poderíamos discutir e refletir sobre as ações, as dificuldades, os desafios e as possíveis ações para a sua superação. No entanto, apesar do pedido de espaço em um desses encontros, isso não foi possível. Segundo os coordenadores responsáveis pela instituição, os assuntos a serem tratados nos encontros tomariam um tempo que impediria a abordagem de outros assuntos. Nós lamentamos. Deixando de lado esse desencontro, ou não encontro, fizemos a promessa aos arte-educadores, que colaboraram com essa pesquisa, de que nós devolveríamos esse trabalho finalizado a eles, e nos colocaríamos a disposição para dialogar sobre suas e nossas impressões. O que mais nos marcou nessa pesquisa é a impressão que esses educadores nos deixaram. Trata-se de sujeitos com um grande e reconhecido conhecimento prático, com seus erros e acertos, mas que atingem resultados reais, muitas vezes de forma não sistematizada ou previamente organizada. São pessoas que gostam do que fazem e fazem com muita dedicação. Eles têm prazer de ver os educandos realizando algo que eles ensinaram. Mas, por outro lado, nos parece que eles não pararam para pensar na riqueza que seus trabalhos representam para o processo de boa formação dos educandos e isso ficou claro para nós no momento das entrevistas. São pessoas que têm muito a dizer e muito a acrescentar, muito podem contribuir nos processos educativos de seus educandos, mas não pararam para refletir e articular um discurso com a da grandeza de seus trabalhos. Ouvimos de uma educadora que as oficinas eram “um complemento da escola”, de outro educador ouvimos que nas oficinas ele tentava mostrar para os educandos porque é importante ir para a escola. A impressão que fica é de uma importância menor de seus trabalhos, e não é nisso que acreditamos. | 116 Na realidade, acreditamos que esse trabalho, desenvolvido debaixo da lona, por ter características motoras – de movimento – e artísticas, pode contribuir para a educação dos sentidos e das sensibilidades, proporcionando uma maior e mais qualificada capacidade criativa. As ações dos educandos encaixam-se, perfeitamente, em um entendimento de cognição incorporada, ou no nosso entendimento, o aprender com o corpo, ou melhor, aprender a partir da corporeidade. A impressão que tivemos é a de que para ser arte-educador circense, é necessário apenas que se vivenciem corporalmente as atividades do circo, de modo que possa reproduzir todo o conhecimento vivenciado corporalmente de forma mecânica, ou seja, ensinar exatamente como aprendeu. O problema dessa forma de ensinar é que desprivilegia o principio da individualidade biológica e a subjetividade dos educandos. O trabalho educativo, dessa forma, estaria voltado ao puro treinamento técnico instrumental. Não entendemos que deva ser dessa maneira. Ser educador, como já dissemos anteriormente, exige de nós uma reflexão ininterrupta da nossa prática, de modo que possamos significá-la e constantemente reinventá-la. Para tal significação e reinvenção, acreditamos que a redução das práticas em fundamentos empiristas ou intelectualistas não seja o caminho. Apropriando-nos das ideias de Boaventura de Souza Santos (2007), entendemos que o conhecimento que subsidia a práxis precisa ser construído a partir da união dos conhecimentos advindos das experiências corporais e das reflexões sobre as propostas teóricas das ciências da educação, ou seja, a partirde uma ecologia de saberes. Todos aqueles que se propõem a utilizar as artes circenses como conteúdo de ensino, independente de serem de família circense, ex-alunos de escolas profissionalizantes para formar artistas, ou educadores licenciados por graduação acadêmica, precisam compreender que ser educador é, também, estar constantemente aberto para a aquisição de novos conhecimentos e, dessa forma, em constante processo de formação. No livro “Educação não formal e educador social”, (2010), a autora Maria da Glória Gohn nos fala que, apesar do aumento em quantidade e qualidade de pesquisas em educação não formal, existem lacunas e desafios que precisam | 117 ser abordados e solucionados, entre eles: “Formação específica a educadores a partir da definição de seu papel e atividades a realizar, no que se refere às formas de conhecer uma dada realidade social, público alvo dos programas educativos, características dos processos culturais e socioeducativos etc.” (p. 44-45). Essa observação de Gohn nos faz pensar sobre a possibilidade de promovermos uma proposta de formação específica para arte educadores que se propõem a promover intervenções educativas por meio das linguagens circenses. Cabe-nos, como educadores, e pesquisadores, articularmos propostas de formação de arte-educadores, estabelecendo diálogo entre as suas experiências práticas e as bases epistemológicas das ciências da educação. No entanto, essa proposta depende de outro estudo, aprofundado em bases epistemológicas que subsidiem os educadores em suas intervenções. Se observarmos, a partir da perspectiva da Educação Sociocomunitária que investiga as ações educativas comunitárias e ensaia propostas de intervenções educativas por meio das diversas linguagens, em constante diálogo com as comunidades e as teorias das ciências da educação, podemos sugerir a possibilidade de darmos continuidade a esse trabalho, devolvendo, para esses arte-educadores, pressupostos que enriqueçam sua formação e consequentemente seus trabalhos. Para nós, é evidente o valor dos processos que acontecem debaixo de uma lona de circo. Mas esse processo pode ser ainda mais valorizado a partir de uma formação mais qualificada dos educadores, e isso envolve a aquisição ede conhecimentos, valores pertinentes para o processo de construção de uma sociedadedesejada. | 118 Considerações finais Quando iniciamos essa pesquisa buscávamos encontrar sentido para o trabalho do educador profissional. Considerando a complexidade do ato de educar, dialogamos com várias vozes, principalmente com educadores/formadores da concepção fenomenológica da educação. Essa caminhada nos possibilitou formular um entendimento provisório sobre o sentido da educação e das responsabilidades do educador profissional, seja ele professor ou educador social. Educação é um processo que visa modificar as estruturas cognitivas e comportamentais dos educandos por meio de apreensão e construção de conhecimentos, preparando-os para viver e conviver colaborativamente e eticamente na sociedade. E, educador profissional é aquele que, a partir de um entendimento do mundo e do homem, organiza intencionalmente ações a serem experienciadas pelos educandos e por ele mesmo, com o objetivo de formar a capacidade leitora do mundo e das experiências, possibilitando modificar e formular comportamentos socialmente aceitáveis dentro de sua cultura. Nesse sentido educador e educando formam uma ecologia em que ambos são educados. Aos educadores profissionais é delegada a responsabilidade de preparar os educandos para que possam enfrentar os desafios existentes na comunidade e na sociedade em que vivem. Nesse contexto, os processos educativos têm como principal objetivo capacitar – por meio de conhecimentos apreendidos e construídos – para a autonomia e para a emancipação. É por meio dos conhecimentos – apreendidos e construídos – que podemos avaliar as possibilidades de ações a serem tomadas nas diversas situações. Resumindo, entendemos educação como um processo endereçado à formação do homem por meio de apreensão de conhecimentos existentes e construção comunitária e social de novos conhecimentos. Um dos maiores equívocos cometidos pelos educadores profissionais, no nosso entendimento, está em separar o processo de apreensão e | 119 construçãodoconhecimento em: conhecimento sensível – que acontece a partir das sensações e percepções do mundo, e conhecimento inteligível, que acontece a partir dos processos de pensamento. Nessa pesquisa, baseamonos na concepção fenomenológica da educação que entende que não há somente conhecimento sensível ou conhecimento inteligível, pois ambos são dialeticamente interligados, não havendo a possibilidade da existência de um sem o outro. Para a concepção fenomenológica da educação, existem sentidos que circulam nas diversas culturas, e esses sentidos devem ser lidos, interpretados e compreendidos para que sejam ressignificados e transmitidos às gerações seguintes por meios das diversas linguagens. Nesse contexto, a proposta é a de que devemos desenvolver os sentidos e a sensibilidade que são habilidades fundamentais para que possamos realizar ações criativas. Por esse motivo, fundamentamo-nos no paradigma da corporeidade – corpo que sente e aprende – e buscamos conhecer uma comunidade educativa, em que acontecem experiências de aprendizagem artísticas e corporais por meio das linguagens circenses, uma comunidade circense. As linguagens circenses, que podemos entender como um misto de motricidade humana e arte são atividades que permitem aos educandos a possibilidade de desenvolver sua sensibilidade e criatividade por meio de movimentos corporais. Os educadores que se apropriam dessas linguagens para proporcionar experiências de aprendizagens, contribuem significativamente com o desenvolvimento da corporeidade. A partir de diálogos com os arte-educadores que trabalham debaixo da lona, mais precisamente no Instituto Sócio Cultural Brinquedo Vivo, e de observações de suas práticas educativas, nos foi possível perceber a riqueza de possibilidades de construção e apreensão do conhecimento por meio de vivências corporais, e a importância do trabalho desses educadores na formação dos educandos. Nessa relação de observações e diálogos, percebemos como são realizados os processos educativos desenvolvidos pelos arte-educadores, e os sentidos que fundamentam essa prática. Comparando com a educação formal – escolar – podemos perceber algo curioso e importante: não existe planejamento por meio de unidade didática – o que vai ser desenvolvido em | 120 cada aula – ou planejamento semanal, ou anual. O aprendizado acontece sem acompanhamento sistematizado, é considerado apenas as percepções dos arte-educadores em relação aos conteúdos que devem ser abordados para novo aprendizado ou para superação das dificuldades. Essa pesquisa nos mostrou que educação não se reduz a um único momento, um único ambiente, ou uma única linguagem. Todos nós somos educadores, profissionais ou não, e a todo o momento estamos realizando processos educativos, sejam eles intencionais ou não. As propostas de intervenções da Educação Sociocomunitária, não pretendem substituir a educação escolar, pois não existe um método ou uma abordagem ideal para os processos educativos, mas sim modos diferentes de realizar as intervenções. Nesse sentido, os Educadores sociocomunitários parte do princípio de que as comunidades possuem seus próprios conhecimentos, construídos a partir de suas experiências, no entanto, muitas vezes não percebem as riquezas – conhecimentos – de que dispõem. A responsabilidade desse educador, nesse contexto, é de organizar e sistematizar os conhecimentos já existentes na comunidade, e devolvê-los como possibilidades de superação de suas dificuldades, ou para viver melhor. Esse é o sentido de ser interlocutor e intérprete. O educador sociocomunitário não é um “catequizador”, que institui um conhecimento em que ele acredita ser pertinente; mas sim, antes de tudo, um organizador de experiências de aprendizagem que desperta nos educandos o que eles já sabem, mas que com o tempo deixaram de perceber. Nessa relação de construção por meio do diálogo, o educador precisa participar de uma forma qualificada e, essa qualidade depende de uma formação que o capacite para as suas responsabilidades. Entendemos que o educador não deve impor suas convicções de maneira manipuladora ou autoritária, mas, sim, precisa conquistar o respeito por meio de seus conhecimentos que legitimam a sua autoridade. Argumentamos, com essas considerações, que é fundamental para o educador profissional – educador social, arte-educador, educador sociocomunitário, professor –, passar por processos de formação permanente. | 121 Não é aceitável que o profissional, seja de qualquer área de formação, aprenda um conjunto de conhecimentos durante um ou dois anos de carreira e reproduza a mesma forma de atuação nos anos posteriores. E, isso serve também para o arte-educador circense. Dessa forma, apontamos para a necessidade de fundamentarmos propostas de formação de educadores profissionais que os capacite para atuarem nos vários lugares onde a educação possa ser desenvolvida. Essa pesquisa foi o passo inicial para entendermos especificamente o universo circense. Os educadores com que dialogamos contribuíram significativamente para um maior e melhor entendimento sobre as práticas educativas que acontecem debaixo da lona. Agora, precisamos devolvê-los para os arte-educadores, para que possam realizar suas ações educativas de forma mais sensível, consciente, criativa, dialógica etc. Entendemos que esse trabalho de pesquisa abre espaço para um trabalho posterior, com novas fundamentações, e isso nos exigirá um tempo maior. Mas, temos a convicção de que existe essa possibilidade e de que sua realização possa ser o fundamental para os educadores que trabalham debaixo daslonas. | 122 Referências Bibliográficas ANTÔNIO, Severino. LINGUAGEM E EDUCAÇÃO SOCIOCOMUNITÁRIA. Americana. Revista Ciências da Educação. Unisal. Americana. Numero 17, 2007. ANTÔNIO, Severino. UMA NOVA ESCUTA POÉTICA DA EDUCAÇÃO E DO CONHECIMENTO: diálogos com Prigogine, Morin e outras vozes. São Paulo: Paulus, 2009. ASSMANN, Hugo. PARADIGMAS EDUCACIONAIS E CORPOREIDADE. 3ª edição. Piracicaba: Unimep, 1995. ASSMANN, Hugo. REENCANTAR A EDUCAÇÃO: rumo à sociedade aprendente. 2ª edição. Petrópolis: Vozes, 1998. ASSMANN, Hugo. 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