LETRAMENTO E ALUNOS SURDOS: PRÁTICAS PEDAGÓGICAS EM ESCOLA INCLUSIVA. SCHELP, Patrícia Paula – UNICENTRO [email protected] Eixo Temático: Diversidade e Inclusão Agência Financiadora: Não contou com financiamento Resumo: Este artigo é parte da pesquisa de mestrado realizada em uma escola regular de ensino que trabalha com a proposta de inclusão de sujeitos surdos. A pesquisa teve por objetivo discutir a questão do letramento e alfabetização através da Língua de Sinais, as práticas pedagógicas que os educadores estão adotando no contexto escolar quando se refere a educação de crianças surdas em fase de alfabetização, incluídas em escola regular. Tal objetivo foi estabelecido pela constatação de que a maioria dos surdos apresenta dificuldades para atribuir sentido ao que lê, ou seja, aprendem as técnicas de codificação e decodificação, mas possuem dificuldades em significar, interpretar e compreender um texto. O problema que incide neste contexto é analisar se as práticas sociais de leitura e escrita estão acontecendo de forma significativa para os sujeitos surdos. A abordagem metodológica privilegiou os registros etnográficos coletados nas atividades rotineiras de uma escola regular que oferece atendimento a pessoas surdas. Além do diário de campo, onde foram registradas as rotinas de sala de aula e as atividades dos surdos, os materiais desses alunos foram analisados na perspectiva de compreender o processo de significação da escrita; também foram utilizadas gravações em vídeo de intervenções feitas com os alunos, entrevistas e questionário com as professoras. O letramento aborda aspectos sócio-históricos da aquisição de um sistema de escrita e suas conseqüências para as pessoas que vivem e interagem na sociedade, está baseada no uso da escrita, mesmo por aqueles não-alfabetizados. O aporte teórico usado para pensar sobre o letramento na educação de surdos foram: Stuart Hall, Michel Foucault, Carlos Skliar, Tomaz Tadeu da Silva e Alfredo Veiga-Neto. No campo dos Estudos Surdos, conheci os trabalhos de Gladis Perlin, Ronice M. de Quadros, Adriana Thoma, Lodenir Karnopp, entre outros pesquisadores. Palavras-chave: Letramento. Surdez. Práticas pedagógicas. Inclusão. Introdução Na busca de manter a ordem, os sujeitos são classificados em normais e anormais, deficientes e não deficientes, surdos e ouvintes, brancos e negros, pobres e ricos. Criam-se saberes e pedagogias que permitem trabalhar com diferentes “tipos humanos”. 3037 A escola foi criada com o intuito de manter esta ordem, ou seja, disciplinar e corrigir os sujeitos para que estes aprendessem a obedecer ao que lhes era imposto e não questionar. Kant (apud THOMA, 2004, p. 34), em relação a isto diz que: As crianças são mandadas cedo a escola, não para que aí aprendam alguma coisa, mas para que aí se acostumem a ficar sentadas tranquilamente e a obedecer pontualmente aquilo que lhes é mandado, afim de que no futuro elas não sigam de fato e imediatamente cada um de seus caprichos. Isto mostra que a responsabilidade da escola era a de manter um controle minucioso sobre o corpo, deixando em segundo plano questões significativas e fundamentais da educação. O ser humano passa a ser objeto de estudo na modernidade, pois havia corpos imperfeitos, que necessitavam de ajustes, deveriam torná-lo normal, reabilitá-lo para ser aceitável na sociedade. Começam então a ser construídos espaços, instituições, escolas, enfim, lugares específicos para que houvesse essa reabilitação dos corpos imperfeitos. Instituições estas em que eram depositados todos os tipos de seres humanos que não se adequavam aos padrões da sociedade. No caso específico dos surdos, do qual trato neste artigo, lhes faltava a audição e por isso não tinham razão, ora, "não falavam", conseqüentemente não pensavam e assim não desenvolviam suas capacidades cognitivas. Atualmente, a inserção do aluno surdo no ensino regular é uma das diretrizes fundamentais da política de inclusão. Entretanto, o desempenho acadêmico e social esperado da criança surda só pode ser alcançado se no espaço escolar for contemplada sua condição lingüística e cultural e, portanto, se a língua de sinais fizer-se presente. Para tal, torna-se necessária a presença de intérpretes de LIBRAS e de educadores surdos, para que os conteúdos escolares sejam desenvolvimento/aprendizagem repassados da LIBRAS em LIBRAS (educadores (intérpretes) surdos) pelas e para o crianças e profissionais da escola. No entanto, muitas realidades escolares não possuem estes profissionais para atuar junto com os professores em sala de aula e isso demanda o aperfeiçoamento do professor da turma, através do aprendizado da LIBRAS para que este possa oferecer aos alunos surdos conteúdos e informações necessárias para sua educação. Conforme Dorziat (1998), o aperfeiçoamento da escola comum em favor de todos os alunos é primordial. Esta autora observa que os professores precisam conhecer e usar a 3038 Língua de Sinais, entretanto, deve-se considerar que a simples inserção dessa língua não é suficiente para escolarizar o aluno surdo. Assim, a escola precisa implementar ações que tenham sentido para todos os alunos e que esse sentido possa ser compartilhado com os alunos surdos. A partir da proposta de inclusão escolar de crianças surdas, a apropriação da LIBRAS merece atenção especial no intuito de que sejam oferecidas oportunidades e favorecida sua inserção nos currículos em todos os níveis do sistema educacional. Desde o nascimento, a criança passa a interagir com o meio circundante através da linguagem. A linguagem é considerada a primeira forma de socialização da criança e, na maioria das vezes, é principalmente na relação com os pais, através de instruções verbais durante atividades diárias e de histórias que expressam valores culturais que se realiza essa interação. Através da linguagem, a criança tem acesso a valores, crenças e regras, adquirindo conhecimentos de sua cultura. À medida que a criança se desenvolve, alcança um nível lingüístico e cognitivo mais elevado, enquanto seu campo de socialização se estende, principalmente quando ela inicia sua vida escolar, pois tem maior oportunidade de interagir com outras crianças. No caso das crianças surdas, o que vemos em seu âmbito familiar é que a maioria dos pais não se comunica através da língua de sinais e, por isso, o acesso ao conhecimento de sua cultura acaba sendo tardio, ou seja, vai se tornar possível somente quando a criança surda iniciar sua vida escolar. No entanto, para que ela tenha acesso à língua de sinais o mais precocemente possível, a escola precisa oferecer e priorizar a língua de sinais como primeira língua através da presença de surdos adultos que possam ensinar e interagir com as crianças. Para que o surdo possa ter conhecimento do mundo que o cerca, além de dominar sua língua natural, é necessário também o conhecimento da língua portuguesa escrita, sua segunda língua, no caso do Brasil. É de fundamental importância para um educador que deseja trabalhar com o ensino da língua portuguesa para surdos, conhecer e entender o processo de aquisição da linguagem pela criança surda, ou seja, da língua de sinais, como sua forma natural de comunicação, e o processo de aquisição de uma segunda língua. Durante muitos anos as escolas de surdos, assim como outras instituições, foram criadas com o intuito inicial de fazer com que estes sujeitos falassem, pois assim se tornariam iguais, aceitáveis e poderiam participar da vida social. A filosofia que imperava nesta época era o Oralismo, com pedagogias corretivas, metodologias extremamente cansativas e massacrantes, treinamentos fonoarticulatórios e leitura labial/orofacial, todos com o objetivo 3039 de recuperar e de aproximar o surdo de um modelo ouvinte. Afirmavam que a sua língua natural era a falada. Mas é possível um surdo adquirir de forma natural essa língua oral como acontece com o ouvinte? Segundo a filosofia oralista não era permitido o uso da língua de sinais e todas as metodologias e treinamentos tinham o propósito de ocultar a “deficiência”, fazendo com que estes sujeitos fizessem leitura labial e assim pudessem também responder com uma fala próxima à dos ouvintes. Também essa proposta desconsiderava as questões culturais das comunidades surdas. Depois de um certo tempo, o oralismo cedeu espaço para a Comunicação Total, em que era permitido o uso da língua de sinais como recurso para o ensino e desenvolvimento da língua falada. A metodologia continuava com os treinamentos fonoarticulatórios, mas os surdos poderiam também usar os sinais e a fala concomitantemente, ou seja, o português sinalizado. Essa filosofia ainda hoje é usada por muitas escolas e educadores que acreditam ser eficiente, no entanto, essa filosofia não demonstra bons resultados. Como há possibilidade de falar duas línguas ao mesmo tempo se ambas possuem estruturas gramaticais diferentes? Após muitas lutas, avanços e retrocessos, os surdos adquiriram por lei o direito de se comunicar através da Língua de Sinais. O usuário desta língua está exposto à língua portuguesa, na modalidade escrita, o que deveria ser sua L21, e a Língua de Sinais, a L1 ou língua natural. Surge a partir dessas lutas o Bilingüismo, que tem como proposta de ensino tornar acessível à criança duas línguas no contexto escolar. Quanto a essa proposta, Quadros (1997, p. 30), diz que: A presença de surdos adultos apresenta grandes vantagens dentro de uma proposta bilíngüe. Primeiro, a criança, tão logo tenha entrado na escola, é recebida por um membro que pertence à sua comunidade cultural, social e lingüística; assim, ela começa a ter oportunidade de criar a sua identidade. Segundo, essa criança começa a adquirir a sua língua natural. Tais vantagens são imprescindíveis para o sucesso da proposta bilíngüe... assim, tornar-se-á possível o ensino de uma segunda língua, caso contrário, a criança surda não terá chances de apresentar um domínio razoável da língua portuguesa. Apesar de muitas vezes ser comprovado que a proposta bilíngüe é a mais adequada para a educação dos surdos, ainda há muitos educadores que defendem a idéia de que o surdo 3040 deve aprender a oralizar como pré-requisito para sua aprendizagem, para poderem se alfabetizar. No entanto, Botelho não concorda e afirma que isso não é fator determinante para os surdos alfabetizarem-se, pois estes possuem a experiência visual (BOTELHO, 2004). A língua de sinais possui uma estrutura específica, a configuração da mão, o espaço em que acontece o sinal, o movimento das mãos, o alfabeto datilológico, enfim, é uma língua de modalidade visuo-espacial. Na escrita, o surdo toma emprestado a língua portuguesa, uma língua oral-auditiva, com regras e estruturas específicas. No entanto, ao usar esta escrita, o surdo escreve em língua portuguesa, mas na estrutura gramatical da língua de sinais. Estudantes ouvintes, ao estudarem as regras gramaticais da língua portuguesa, possuem um universo de exemplos de uso da língua, proporcionados por sua experiência oralauditiva, para relacionar com as regras que estão aprendendo; o surdo, por sua vez, é desprovido destas referências, sendo este fator determinante na sua dificuldade de assimilar as regras de escrita da língua portuguesa. Todas estas questões devem ser levadas em consideração e a escola que inclui ou mesmo escola especial de surdos, deve rever suas práticas metodológicas em sala de aula para estes sujeitos. A que tipos de metodologias estão expostos? Qual a visão e conceito que os educadores têm dos surdos? Como tratam a questão da alfabetização e as práticas da leitura e escrita dos sujeitos surdos? É levada em consideração sua cultura, identidade, comunidade, pertencentes a um grupo minoritário? Que voz2 o sujeito está tentando passar? Qual a filosofia adotada pela escola? A autora Giordani3 (apud LOPES, 2004, p. 124), diz que: A escola, através do seu currículo totalizante, produziu a ilusão em nós de que só há um jeito correto de se escrever o português, um português regulado pelas normas gramaticais da norma culta, da norma padrão. 1 O surdo deveria ter como L2 a língua portuguesa na modalidade escrita, mas a realidade é que a maioria dos surdos são filhos de pais ouvintes e estes não sabem língua de sinais, expondo a criança à língua majoritária, ou seja, a língua falada. 2 A voz é entendida, segundo Mey (1997), como a expressão dos pensamentos, desejos e anseios específicos de uma comunidade. 3 Liliane Ferrari Giordani neste seu artigo “Letramento na educação de surdos: escrever o que está escrito nas ruas”, propõe apresentar um recorte de uma pesquisa realizada nos anos de 2002 e 2003, com alunos jovens e adultos surdos do Centro Municipal dos Trabalhadores – Paulo Freire, em Porto Alegre. O objetivo desta foi analisar as narrativas destes sujeitos em relação à escola, que eles querem escrever o que está escrito nas ruas. A pesquisa teve como registro filmagens e entrevistas. Foram em torno de 26 sujeitos entrevistados e que, inclusive pediram para que seus nomes permanecessem, “se é para as pessoas saberem o que pensamos, precisamos falar quem somos” (Ricardo). 3041 Assim, tudo o que está fora do “correto”, do “normal” não deve ser levado em consideração, está errado. A escola que tem esse olhar, não considera as construções culturais da comunidade surda, desvaloriza um mundo de significações vivido por uma língua ausente no seu currículo. Uma escola que, ao comparar produções da língua escrita entre os alunos surdos e os alunos ouvintes, alimenta o discurso da homogeneização e reclama os ‘problemas de aprendizagem da língua escrita pelos alunos surdos’. (GIORDANI apud LOPES, 2004, p. 118). Dentro deste contexto, a escola diz que o surdo escreve errado o português, que não sabe escrever, no entanto, ele sabe escrever uma escrita diferente do que a escola quer lhe impor. Ele escreve um português diferente, um português ainda difícil de ser compreendido pelos professores, que rejeitam a existência da pluralidade de manifestações lingüísticas dentro do universo da língua portuguesa por parte dos surdos. Professores estrangeiros na língua de sinais, que se aproximam, a descobrem, sinalizam em suas aulas, mas engessados na sua formação, mantêm, na centralidade da leitura e da escrita, experiências validadas pela escola. A escrita do surdo, nas experiências de sua vida já adulta, não é vivida nem pensada pelos professores. Vendas pedagógicas encobrem os olhares que disciplinam. Não só com a disciplina de português, mas muito com a disciplina de português. (GIORDANI apud LOPES e THOMA, 2004, p. 119). Neste sentido, tanto a criança surda como a ouvinte, devem estar em contato e fazer uso das práticas de leitura e escrita, isto é, entrar para o universo do letramento4, através do hábito de ler jornais, revistas, rótulos, livros de histórias, enfim, ter convívio efetivo com a leitura. Mas o que dizer então no caso das crianças quando há barreira de comunicação entre família ouvinte e filho surdo? A apropriação da leitura e da escrita e a incorporação das práticas sociais que as demandam, constituem o que Soares (2002) denomina de letramento. Este não pode ser visto apenas como um conjunto de habilidades individuais, mas sim como um conjunto de práticas 4 Este termo surgiu no discurso de especialistas em educação e das ciências lingüísticas, em meados dos anos 80, expressando uma nova maneira de compreender a escrita no mundo social. “Por letramento entende-se um fenômeno recente que procura valorizar os aspectos históricos e sociais dos sujeitos envolvidos no processo educacional. Complementar a esta idéia, Mey (2001) pontua que o letramento se constitui como um fenômeno essencialmente comunicativo que rompe a barreira imposta ao ato de ler e escrever”. (CAMPOS, 2004, p. 21). 3042 ligadas à leitura e à escrita em que os sujeitos se envolvem no contexto social. Assim, quando um adulto lê histórias infantis para a criança ou quando a leva ao supermercado, onde ela observa e entra em contato com rótulos, com diferentes escritas, está lhe proporcionando a inserção no mundo letrado. O letramento compreende tanto a apropriação das técnicas para a alfabetização quanto esse aspecto de convívio e hábito de utilização da leitura e escrita e isto proporciona às crianças uma leitura de mundo antes mesmo da chegada à escola. Já a criança surda não chega à escola com as mesmas habilidades que um ouvinte em sua língua nativa, pois na maioria das vezes a família não sabe língua de sinais e não há trocas com esta em sua língua natural, e isto torna muito mais difícil a interação da criança na escola. Conforme Lebedeff5: Nesse sentido, para as crianças surdas que vivem em ambientes ouvintes, a possibilidade de participarem de atividades de letramento é muito limitada. Essas crianças precisam ter familiares que aprendam língua de sinais ou conviver com a comunidade surda, de modo que surdos adultos contem histórias para elas. (apud LOPES e THOMA, 2004, p. 134). O que deve ser oferecido à criança surda são práticas de letramento o mais cedo possível, seja na família ou na escola. Para isso deve haver atividades que proporcionam a inserção da criança nas práticas discursivas, assim ela produzirá e lerá seus textos através da leitura de imagens. No caso dos surdos pode-se falar em letramento visual6, ou seja, ler imagens de um livro, usar-se de imagens como apoio à leitura, ler sinais, símbolos, figuras com o objetivo de promover a compreensão dos textos, assim a criança passará a ter o hábito de ler diversas imagens, criando e recriando histórias. Em relação a isso, tomo emprestado as palavras de Campos (2004, p. 40), onde: As práticas de letramento estão diretamente relacionadas às atividades de leitura e escrita e às estruturas sociais em que se encontram, por isso elas mudam conforme o contexto. Essas práticas revelam os diferentes modelos culturais de utilização da 5 “Práticas de letramento na pré-escola de surdos: reflexões sobre a importância de contar histórias”, artigo de Tatiana Bolívar Lebedeff. Esta pesquisa realizada em Passo Fundo tem como proposta instrumentalizar as professoras surdas de uma classe de pré-escola de surdos com diferentes mídias para o conto de histórias infantis. A necessidade de realizar este trabalho, segundo Lebedeff, se dá pelo fato de que os estudos mostram que existem diferenças entre surdos e ouvintes na atividade de contar histórias. 6 A língua de sinais é visuo-espacial como já se comentou. A escola e os educadores devem refletir sobre o papel da imagem visual para a apropriação do conhecimento. Utilizar a imagem adequadamente como um recurso natural. 3043 linguagem escrita que se fazem presente nas atividades mais simples do cotidiano das pessoas (...) As pessoas constroem o seu entendimento sobre o letramento internamente e, ao mesmo tempo, utilizam as práticas para caracterizar os processos sociais que unem as pessoas na transmissão de ideologias e identidades sociais. Se as práticas de letramento mudam conforme o contexto onde a criança está inserida, como estão lidando os professores em sala de aula em que há alunos surdos incluídos na escola regular? Como se configura a inclusão em sala de aula e na escola como um todo? Quais as metodologias utilizadas pelos professores com crianças em fase de alfabetização? São as mesmas para surdos e ouvintes? Alfabetização de crianças surdas enquanto processo, portanto, só faz sentido se acontece na LSB, a língua que deve ser usada na escola para aquisição da língua, para aprender através dessa língua e para aprender sobre a língua. (QUADROS, 2000, p. 55). Para entendimento da temática que conduz o processo investigativo, é interessante lembrar que, em virtude da estrutura fonética da língua, a concepção da escrita, bem como as atividades no contexto escolar, muitas vezes, são direcionadas à codificação e à decodificação dos signos lingüísticos. Esta é uma visão comportamental da aprendizagem baseada na cópia, na repetição e no reforço. A grande ênfase se dá nas associações e na memorização das correspondências fonográficas. A concepção de letramento que perpassa a prática pedagógica analisada, de forma geral, é aquela que Street (apud ROTAVA, 2002) cunhou de Modelo Autônomo, pois não se faz uma relação da história da criança (surda ou não) com as práticas de leitura e de escrita mobilizadas pela escola. Por essa razão, o aluno surdo é sempre visto como alguém que não consegue se alfabetizar por não ter os pré-requisitos necessários para a aquisição do código: a fala. Dentro dessa visão, não há espaço para a discussão de outros aspectos importantes, como a falta de uma língua comum (afinal o aluno surdo é um estrangeiro dentro da escola) e o fato de os surdos fazerem parte de minorias lingüísticas, como discutido ao longo desta abordagem. Segundo Reily (2003) a imagem tem uma função importante no processo de letramento do aluno surdo: a figura visual, tanto a representação abstrata quanto a figurativa ou pictográfica, traz consigo o potencial de ser aproveitada como recurso para transmitir conhecimento e desenvolver raciocínio. Para o aluno surdo que estuda na rede regular de 3044 ensino, como também no caso do aluno surdo atendido em instituição de educação especial, o caminho da aprendizagem necessariamente será visual, daí a importância de os educadores compreenderem mais sobre o poder constitutivo da imagem, tanto no sentido de ler imagens quanto no de produzi-las. As línguas de sinais são sistemas lingüísticos independentes das línguas orais. Não tendo tendência natural ao aprendizado da língua oral, os surdos foram e são, muitas vezes, ainda submetidos a um processo de ensino da língua escrita por meio de uma prática estruturada e repetitiva, na qual a língua tem sido apresentada com uma lista de vocábulos que os alunos têm de aprender e posteriormente combinar com outras palavras, obedecendo regras de formação de sílabas, vocábulos e de frases do português. Como resultado de tal prática, os leitores surdos apresentam óbvia restrição de vocabulário, uso de frases estereotipadas, nas quais faltam os elementos de ligação. Durante a pesquisa, percebi a fragilidade lingüística em que os alunos surdos se encontram, e isso acaba gerando inúmeras conseqüências, dentre elas, insegurança na ato da escrita e da leitura e, talvez a mais preocupante de todas, a falta de fluência na língua de sinais. Assim, embora possam muitas vezes identificar significados de palavras, não conseguem fazer uso efetivo da língua, já que não conseguem, na maioria das vezes, atribuir significado ao que lêem. Para que o letramento aconteça é preciso interação. A criança na escola precisa vivenciar um ambiente lingüístico de significado. A educação deste sujeito está estreitamente ligada ao seu uso da língua de sinais e, principalmente, ao professor ouvinte, o qual deve, ao menos, estar imerso em uma comunidade surda para que consiga estar o mais próximo possível do meio cultural e, assim, interagir melhor com os usuários da LIBRAS. Desta forma, poderá “conduzir” de maneira mais adequada as atividades que envolvem a língua escrita. O aluno surdo fará uso da língua escrita com mais segurança a partir da ampliação de seu conhecimento de mundo. Este conhecimento vai favorecer/contribuir para sua compreensão da língua escrita, propiciando conteúdo para que ele explore sua capacidade interpretativa e de interação com textos escritos. A construção de sentidos do texto não se dá em meio ao vazio. Os significados envolvem, inclusive, a interação do indivíduo com seu meio social, o que lhe permite reconstruir o texto lido, conforme seu conhecimento de mundo, conforme o vocabulário que ele possui. Quanto maior o conhecimento de mundo, mais vasto será seu vocabulário e isto fará com que os textos escritos fiquem cada vez mais enriquecidos. Para Botelho (2002), às vezes os surdos são desencorajados quando procuram recorrer ao contexto, e o mesmo é 3045 tomado como acessório ou solução adotada frente à falta de alternativa imposta pela ausência de um amplo vocabulário, e não como condição para a compreensão. O ensino para surdos ainda está muito centrado em uma perspectiva dos ouvintes, existindo ainda um inibidor para a aprendizagem, a saber, o fato de o professor e o aluno não compartilharem da mesma língua, já que o primeiro domina a língua oral e o segundo domina a língua de sinais. Isso ficou ainda mais evidente durante as análises das atividades em sala de aula, bem como nas tentativas da professora em orientar os estudos e conteúdos escolares. Os resultados desta pesquisa evidenciaram que o uso da escrita e da leitura na língua portuguesa está meramente voltado para a codificação e decodificação dos signos lingüísticos, não havendo assim um significado para o aluno. Considerando as reflexões feitas até o momento, é notável que os dois pré-requisitos básicos para a aquisição eficaz da Língua Portuguesa pelos surdos (garantia de um processo de aquisição da língua natural e aquisição da língua escrita) não foram atendidos nos contextos observados. Algumas mudanças educacionais são necessárias para que o sujeito surdo possa ser reconhecido tanto no ambiente escolar quanto na sociedade em geral e tenha a oportunidade de desenvolver-se integralmente. É fundamental que a escola e a própria sociedade mudem sua concepção de surdez e passem a valorizar os surdos pelos seus talentos e não por aquilo que lhes falta. Em síntese, o que se destaca é a necessidade de uma reflexão sobre as concepções tradicionais do ensino do português escrito para surdos, enfatizando-se a importância do aspecto visual da leitura-escrita como um fator constitutivo desse processo (GESUELI, 2004). Ao concluir este trabalho, reitero que este estudo não teve a pretensão de criar generalizações ou conclusões acerca do letramento para sujeitos surdos, muito menos de apresentar respostas ou encerrar discussões. Pelo contrário, pretendo provocar dúvidas e questionamentos que possibilitem outras problematizações e outros estudos, pois entendo que este espaço é de reflexão e diálogo. Busco finalizar com algumas indagações a respeito da inclusão amplamente discutida: será que a escola está conseguindo dar conta de todas as particularidades dos alunos surdos? Há reformulação de currículos, metodologias e práticas pedagógicas em sala de aula? A inclusão só acontece de fato quando a escola e os professores dialogarem e se prepararem para receber estas crianças, não se pode simplesmente aceitá-los e colocá-los em uma sala de aula sem que haja uma organização antes. Se for somente aceitar o sujeito e deixá-lo em um canto 3046 da sala de aula, copiando e repetindo o que os colegas fazem, não há uma inclusão verdadeira e sim uma exclusão mascarada. 3047 REFERÊNCIAS BOTELHO, Paula. Segredos e silêncios na educação dos surdos. Belo Horizonte: Autêntica, 1998. 144p. CAMPOS, Marcela Luz Saraiva de. 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