A cidade ilhada traz, pela boca de um de seus personagens, sua autodefinição: “ninguém pode ser totalmente outro”. Primeiro livro de contos de Milton Hatoum. Obra regionalista ou universal? Regionalista, no que tange à organização espacial. Universal, no que diz respeito aos conflitos encontrados no enredo. Cenário e personagens: a Manaus cosmopolita, que contrasta esplendor e miséria, por meio da exuberância natural da região. cidade habitada pela memória inventada de narradores nativos e estrangeiros e, é claro, do próprio autor. Algumas personagens transitam entre os contos. Reflexo da narrativa: Os textos trazem lirismo e humor. Os contos refletem a vida nômade de Milton antes de se tornar um autor consagrado, pois viveu alguns anos na Europa; depois, lecionou Literatura nos Estados Unidos, e atualmente mora em São Paulo. As histórias têm humor e leveza porque dizem respeito à sua vida de andarilho, que foi uma época de pobreza, mas de muita alegria, segundo Hatoum. O gênero literário: Milton, em uma entrevista ao jornal “A crítica”, de Manaus, disse: “Tentei trabalhar com a ideia do conto moderno, que não opera com uma surpresa final, como era o conto do século 19. O conto moderno, do século 20, narra duas histórias paralelas e, no fim, revela o significado oculto de uma das duas histórias. Você começa contando uma coisa que não é aquilo que você quer narrar, como se houvesse uma história narrada que é retrabalhada numa outra história, que é a que você quer trabalhar.” (01) Varandas de Eva Narrado em 1ª pessoa. O narrador-personagem conta um episódio ocorrido em sua infância, quando visitou, pela primeira vez, o bordel Varandas da Eva, e lá passou sua primeira noite, com uma bela e enigmática mulher. (01) Varandas de Eva Ele foi com seus amigos: • Minotauro: forte ‘de meter medo’, com uma voz ainda de adolescente (fina e grossa ao mesmo tempo). • Gerinélson: paciente, calmo, ‘cheio de reticências’. Já namorava e dirigia escondido a lambreta de seu irmão. • Tarso: tímido, nunca dizia onde morava, parecia ser de classe social mais baixa que os amigos. Não quis entrar no bordel. A ida ao Varandas de Eva foi financiada pelo tio Ranulfo (tio Ran). (01) Varandas de Eva Depois que entram, Minotauro cutucou o narrador, mostrando uma mulher que sorria para ele. Eles dançam. Ela percebe a ânsia dele e o aperta com gosto. Ela o leva para a varanda, eles ficam ‘na maior pegação’. Ela o ensina a fazer TUDO. Ele volta ao local várias noites, mas nunca mais a encontrou. A adolescência passa, a maturidade chega, o narrador se muda com os tios, afastando-se ainda mais dos amigos. (01) Varandas de Eva O único que cruzou seu caminho outras vezes foi o Minotauro. Já envelhecido, o narrador apresenta a cena final: • Ele avista de longe o Tarso. • Tarso está diante do palácio do governo, subindo as escadas para deixar uma cesta, quando aparece uma mulher que acena para ele, com um olhar muito carinhoso. • Era sua mãe. • Era a mulher que o transformara em homem. Ele permanece ali um pouco, relembrando. 1ª (01) Varandas de Eva As diferenças sociais de um grupo de amigos parecem pequenas quando todos não passam de meninos que descobrem a vida. O tempo passa e as memórias de uma juventude de aventuras livres são atropeladas pela separação (inevitável?) entre pobres e não pobres e por uma atormentadora coincidência. O autor faz uma leitura nostálgica do passado neste texto. Chora a passagem do tempo, capaz de dissipar "os gozos sem fim", dando espaço para que a aspereza de cada ato da vida surja "como um cacto, ou planta sem perfume". 1ª (01) Varandas de Eva Em uma leitura mais atenta percebe-se o amigo do narrador como o menino pobre que ganhou as roupas para visitar o bordel e se emocionou ao experimentálas, para chacota dos demais; a hesitação do menino no dia da tão esperada visita, e seu posterior sumiço; o carinho e o mistério da mulher para com o narrador. E vê-se que cada frase, cada cena, cada comentário tem uma função no texto e ajuda a construir aquele desfecho, e é nessa leitura que entende-se ser esta não a história de um menino em busca da primeira mulher, mas de um menino tornando-se homem e perdendo, com isso, muito da antiga ingenuidade, muito da ilusão. (02) Uma estrangeira da nossa rua O protagonista estava em São Paulo e retornou à sua cidade, onde encontrou a casa azul – que ficava em frente da do seu tio – em ruínas. Ele olha pra varanda da casa e lembra de... • Lyris: tinha +ou– 18 anos, cabelos quase ruivos, olhos verdes puxados, rosto anguloso, era mais alta que sua irmã, menos arredia também. • Irmã de Lyris: tinha +ou- 15 anos. • Antonieta: vizinha escandalosa que apelidara Lyris e sua irmã de bichos-do-mato porque elas não iam a lugar algum (festas, carnaval, praias), nem tinham namorados ou amigos. (02) Uma estrangeira da nossa rua • Doherty: engenheiro, era o pai de Lyris e sua irmã, bem como o responsável pelo apelido que elas ganharam de Antonieta, pois ele sempre as escoltava. O narrador conta que Lyris, sua irmã, Doherty e Alba (mãe/esposa) eram afáveis. Ele suspeita que o pai era inglês ou irlandês e que a mãe era peruana. Certa vez, o protagonista vê, de binóculo, Lyris lendo um livro de capa vermelha, deitada nua em sua cama. Ele analisa cada movimento dela.. (02) Uma estrangeira da nossa rua Meses depois, ele conversa – pela primeira vez – com Lyris e ganha um beijo dela. Ela o convida para visitá-la, mas ele nunca aparece, tem medo de Doherty. Certo dia, os Doherty saem e Lyris não volta com eles. Tempos depois, ele recebe uma carta de Lyris da Tailândia. 1ª (02) Uma estrangeira da nossa rua Neste conto, a família Doherty mantém-se distante do entorno. Pai, mãe e duas lindas filhas estão isolados do país pelo muro da casa, numa discrição excessiva que os afasta das relações mais casuais. É nesse ambiente de distanciamento que o narrador percebe a presença de Lyris, a jovem sedutora porque o garoto sente "alguma coisa terrível e ansiosa parecida com a paixão". 1ª (02) Uma estrangeira da nossa rua Aqui a história aparente conta o amor platônico de um menino por uma vizinha ruiva, filha de estrangeiros que jamais deixavam a casa, embora fossem afáveis com todos na rua. A história oculta, porém, revela mais, revela o fosso social que se cria entre comunidades muito próximas, revela a dificuldade de relacionamento entre culturas diferentes, revela o medo e até a soberba daqueles que julgavam trazer o progresso. (03) Uma carta de Bancroft O narrador-protagonista é um escritor amazonense que se muda para Waverly Place (San Francisco) para um temporada na universidade de Berkeley. Ele conversa com o 1º americano que encontra: Tse Ling Roots. Ling conta que seu bisavô veio da China para trabalhar nas minas e ferrovias da Califórnia. Seu bisavô foi um dos responsáveis pela Chinatown como se conhece hoje. Outro olhar estrangeiro, mas dessa vez de um brasileiro em Berkeley. (03) Uma carta de Bancroft Ling era policial e, nas horas vagas, visitava um templo, para não enlouquecer. Mas a paisagem da cidade era linda: tinha as colinas de Berkeley, as pontes iluminadas à noite e os edifícios com traços futuristas. O protagonista foi a essa universidade por estar interessado em manuscritos brasileiros. Ele vai ao fichário “Brasil: Limites & Fronteiras”, no arquivo: “cartas e outros documentos manuscritos”, onde encontra uma carta de Euclides da Cunha a Alberto Rangel. Euclides estava passando um tempo na casa de Rangel, em Manaus, enquanto este estava no Rio. (03) Uma carta de Bancroft O protagonista diz que Manaus o persegue. Na carta, o protagonista reconhece a linguagem de Euclides: “barroca, sinuosa, exuberante” e lê sobre um sonho deste autor. Euclides sonhou que a Amazônia tinha sido povoada por europeus, que a haviam devastado e transformado em uma cidade cosmopolita, extensão de Manaus e Belém. Até que encontra um francês, Gabineau, o qual tenta convencê-lo de que as terras amazonenses só serão viáveis com a colonização europeia. (03) Uma carta de Bancroft No sonho, Euclides decide voltar para casa, quando passa em frente ao cemitério e assiste ao enterro do suboficial da Polícia Militar do Amazonas, cabo de feições indígenas que lutara na Guerra de Canudos. No enterro, Euclides fica sabendo que o cabo levou 4 tiros do amante de sua mulher. 1ª (03) Uma carta de Bancroft Aqui, o narrador descreve seu espanto ao encontrar uma carta fictícia de Euclides da Cunha numa biblioteca americana. No manuscrito, o escritor descreve um sonho e uma cena premonitória. Mais uma vez, Manaus aparece emaranhada. O narrador diz que a cidade o persegue, mesmo quando não é solicitada, "como se a realidade da outra América se intrometesse na espiral do devaneio para dizer que só vim a Brancoft para ler uma carta amazônica do autor de Os sertões. (04) Um oriental na vastidão A narradora-personagem, pesquisadora da Universidade do Amazonas, conta que recebeu um fax de.. • Kazuki Kurokawa: de olhos apertados e vivos, era biólogo de água doce e professor aposentado da Universidade de Tóquio, com experiência de campo na África e nas Filipinas. Kazuki queria fazer um passeio pelo Rio Negro, mas só podia ficar dois dias na cidade. A narradora reserva para ele o hotel Tropical e, quando vai buscá-lo, recebe um estojo com um ideograma do Japão:“No lugar desconhecido habita o desejo”.”. (04) Um oriental na vastidão A narradora combinou o trajeto com o barqueiro Américo: descer o paraná do careiro até Murumurutuba, ilha do Maneta, e retornar ao Amazonas, fazendo uma parada no encontro das águas. Kazuki diz que quer fazer o trajeto sozinho, mas que um dia voltará para refazer o passeio com a pesquisadora. Ele sabia muito sobre o Rio negro. Não levou nem máquina fotográfica, nem filmadora. Seu passeio foi um mistério. A narradora fica sabendo que ele cumpriu com o combinado, inclusive devolvendo o barco a Américo. (04) Um oriental na vastidão Depois de um tempo, o cônsul do Japão em Manaus convidou a narradora para acompanhá-lo a um passeio no Rio Negro. Foram – em um silêncio misterioso – no barco do consulado. Em determinado ponto, o cônsul pegou uma caixa coberta com a bandeira do Japão e entregou-a à narradora junto com uma carta. Tratava-se de uma carta-testamento, em que Kazuki pedia à ela para jogar suas cinzas no Rio Negro. 1ª (04) Um oriental na vastidão Momento de maior lirismo, outro conto do rol de preferidos do escritor. Um professor japonês realiza, de forma inusitada, o maior sonho de sua vida, conhecer o Rio Negro. Como de praxe, em todos os contos se mistura a história do próprio Hatoum, suas "memórias recriadas". Aqui, abre-se espaço para o fascínio. Manaus é um lugar metafórico, representa o mistério que conquista o homem: “No lugar desconhecido habita o desejo”. (05) Dois poetas da província Dois poetas – intelectuais – manauaras conversam: • Albano: filho de um magnata de Manaus, é jovem, ambicioso e domina a língua francesa, o que lhe permitiu morar em Paris. • Zéfiro: ou ‘L’Immortel’, apelido cunhado em 1969, quando o governo militar interrompeu sua carreira no magistério público, era bem mais velho que Albano, fazia pouco caso das belezas naturais do Amazonas, da época do governo militar, do Estado (considerava este avesso às artes). Era apaixonado – escancaradamente – por Paris. Sabia muito bem francês, tanto que foi professor de Albano. (05) Dois poetas da província Em 1981, Albano e Zéfiro estavam no hotel Amazonas, em uma sala com ar condicionado, bebendo um Bordeaux de 1972 e comendo um peixe pescado no Rio Negro. Albano, embora com pressa, convidou o imortal para ficar com ele, dizendo ser por sua conta, pois este era uma jantar de despedida. Zéfiro cita nomes e lugares da França com uma propriedade inigualável. Conta que, naquela mesmo hotel, já recebera Sartre e Simone Beauvoir. (05) Dois poetas da província Zéfiro interpretou despedida como uma referência à sua morte, pois já estava velho, mas seu orgulho superou o medo. O almoço acaba e Zéfiro vai para casa. Lá, ele recita poemas de Lamartine, Victor Hugo e Baudelaire. Depois, cansado, debruça-se sobre o mapa de Paris, mas já era tarde. “Bocejou, a cabeça oscilou e estalou no encosto”. 1ª (05) Dois poetas da província Contrapõe o primeiro conto, pois mostra a outra ponta da vida, a velhice e os desejos vencidos. O texto aborda o encontro de Albano e Zéfiro, dois poetas, um ex-aluno do outro, ambos apaixonados por Paris. Albano se prepara para embarcar para França. Zéfiro, um poeta que nunca publicou um livro, vive em Manaus o sonho europeu, e se orgulha em desprezar o governo militar com a mesma altivez em que ignora "a cachaça, o sol da tarde e a floresta". Albano, o ex-aluno, é também uma espécie de alter ego do professor, se não por sua postura diante da poesia, certamente por sua postura diante da vida. 1ª (05) Dois poetas da província O conto faz referência a vários nomes importantes: • Jean-Paul Charles Sartre (1905-1980) : filósofo, escritor, crítico francês e representante do existencialismo. Acreditava que os intelectuais têm de desempenhar um papel ativo na sociedade. Em 1964, recusou-se a receber o Nobel de Literatura. Sua filosofia dizia que no caso humano (e só no caso humano) a existência precede a essência, pois o homem primeiro existe, depois se define, enquanto todas as outras coisas são o que são, sem se definir, e por isso sem ter uma "essência" posterior à existência. 1ª (05) Dois poetas da província • Simone Lucie-Ernestine-Marie de Beauvoir (19081986): filósofa existencialista, escritora e feminista francesa. • Victor-Marie Hugo (1802-1885): escritor (Romantismo) e ativista pelos direitos humanos. • Alphonse Marie Louis de Prat de Lamartine (17901869): escritor, poeta e político francês. Influenciou o Romantismo. • Charles-Pierre Baudelaire (1821-1867): poeta e teórico de arte francesa, foi um dos precursores do Simbolismo e da poesia Moderna. (06) O adeus do comandante Um velho – Moamede – retorna a Manaus e conta a seus netos e amigos uma história inacreditável, não era lenda como a do “boto”. Ele conta que ao navegar pelo Amazonas (interior) viu o barco Princesa Anuíra atracado na rampa do mercado, perto do restaurante Barriga Cheia. O dono do barco, Dalberto, estava lá. • Dalberto: cabloco musculoso, valente, desconfiado, de poucas palavras, mas de bom coração. Sua festa de casamento era lembrada por todos, devido à jovialidade da esposa e à grandiosidade de sua festa de casamento. (06) O adeus do comandante Dalberto convidou o amigo a subir em seu barco. O velho subiu e viu dois homens carregando um caixão para o barco. Fora feito pelos famosos artesãos de Kirintins, mas estava vazio e não tinha nenhuma cruz. Dalberto desceu do barco e embrenhou-se na mata. Todos ouviram um grito e o tilintar de um sino. O medo tomou conta de todos, as mulheres fizeram o sinal da cruz. Dalberto apareceu e todos aplaudiram. (06) O adeus do comandante Ele carregava um corpo amarrado em uma espécie de saco. Chamou o narrador Moamede para ajudá-lo a levar o corpo ensanguentado do jovem até sua casa. Colocou o corpo na sala e orientou a empregada a acender velas quando sua patroa (esposa de Dalberto) chegasse, pois ela tinha “visita”. Olhou para o amigo e pediu-lhe um último favor: acompanhá-lo à delegacia e reforçar a mentira que era verdade: dizer que o vira matar o irmão mais novo por ser amante de sua mulher Anaíra. 1ª (06) O adeus do comandante A lenda do boto tem sua origem na região amazônica. Ainda é muito popular na região e faz parte. De acordo com a lenda, um boto cor-de-rosa sai dos rios nas noites de festa junina e transforma-se num lindo jovem vestido com roupa social branca. Ele usa um chapéu branco para encobrir o rosto e disfarçar o nariz grande. Galanteador e falante, aproxima-se das jovens que estão sós, seduzindo-as. e convencendo-as a dar um passeio no fundo do rio, onde costuma engravidá-las. Na manhã seguinte volta a se transformar no boto. (07) Manaus, Bombaim, Palo Alto Um escritor amazonense recebe um telefonema do governo pedindo que recebe em sua casa um almirante indiano: Rajiv Kumar Sharma. • Rajiv: almirante da marinha indiana – leia-se escritor de crônicas –, era magro, tinha pele acobreada e os cabelos pretos e escorridos cortados à escovinha. Além disso, falava muito bem o inglês o hindi e outros dialetos indianos. • Narrador: escritor amazonense, que tem um apartamento pequeno e muito bagunçado. (07) Manaus, Bombaim, Palo Alto O estrangeiro dizia que apenas queria conhecer um escritor amazonense, pois considerava a Amazônia um labirinto. O narrador confessa não conhecer quase nada da literatura indiana. A chegada é constrangedora: chove muito e o apartamento tem goteiras, sem falar que o gato do narrador fica se esfregando na roupa impecável do hóspede. Eles falam da literatura indiana. (07) Manaus, Bombaim, Palo Alto Anos mais tarde, o narrador descobre que o almirante era, na verdade, um cronista que escreve sobre sua estada na casa dele, comparando-a com um chiqueiro. 1ª (07) Manaus, Bombaim, Palo Alto Este é um dos contos mais divertidos, quase anedótico: um escritor amazonense recebe um telefonema misterioso de um assessor do governo, pedindo que receba a visita de um almirante indiano. Hatoum revela que este é o conto mais autobiográfico do livro. Bombaim é a maior cidade da Índia. Palo Alto é uma cidade da Califórnia. (08) Dois tempos O narrador volta a Manaus a fim de fazer uma surpresa ao tio Ranulfo, com quem morou quando tinha 14 anos. Foi caminhar e viu Aiana, uma vizinha e ex-aluna do conservatório. Aiana saiu do casarão e o perguntou se lembrava da professora Tarazibula Steinway. Ele relembra a época em que frequentava o conservatório. Ela, levando uma vela, puxa o narrador e o conduz a uma sala. (08) Dois tempos Ele hesita, mas entra. Narra todas as sensações: sinestesia. Vê seu tio debruçado sobre o corpo da exprofessora. Mais sensações. 1ª (09) A casa ilhada Lavedan queria ir até a casa ilhada antes de voltar a Genebra. • Lavedan: alto, magrela, careca e de pele rosada. No dia 16/07/1996, Lavedan pede ao barqueiro – em francês – para levá-lo até a casa ilhada mostrando um postal em que ela aparece. As pessoas riem daquele homem estranho. Quando ele avista, depois da curva do igarapé, o telhado vermelho da casa, fica extasiado. O catraieiro atracou ao lado de um barco abandonado, de nome já meio apagado “Terpsícore”. (09) A casa ilhada Lavedan pronuncia o nome do barco e vai fissurado em direção à casa de telhado vermelho. Ele a via como uma casa misteriosa, que ganhava vida somente à noite, quando as luzes iluminavam sua fachada e seu jardim. Lavedan volta como se estivesse reconfortado e conta ao narrador que agora iria ao Rio, de onde partiria para Zurique. O estrangeiro parte e, dois dias depois (18/07/1996), sai no jornal que fora encontrado no dia anterior (17/07) o corpo do único morador daquela casa. (09) A casa ilhada Passados dois meses, o narrador recebeu uma carta de Lavedan, na qual contava sua história. Lavedan conta que há 20 anos viajara para Manaus com sua esposa inglesa, Harriet. Lá, eles se divertiram muito em festas, noitadas, bebedeiras e prazeres no Shangri-Lá. Até que, em uma dessas festas, um dançarino manauara a convidou para dançar. Lavedan foi trocado, mas, de dois em dois anos, ele recebia de sua ex-esposa um cartão-postal com os seguintes dizeres: “O Shangri-Lá fechou, mas dançamos nessa pequena ilha: nossa morada.” (09) A casa ilhada O primeiro foi em 1980, até que, em 1996, recebera um sem nada escrito, o que o levou a pensar que ela devia estar para morrer. Lavedan termina a carta dizendo: “O resto dessa história você já sabe.” O narrador conversou com alguns biólogos do Instituto de Pesquisas da Amazônia e descobriu que as pesquisas de Lavedan eram verdadeira e importantes. Tanto que sete peixes da faixa equatorial levam seu nome. (09) A casa ilhada Contudo, ele não deixou nenhum vestígio de ter estado na Amazônia, não fez nenhuma publicação sobre o assunto, nem deixou vestígios de homicídio na casa ilhada. Para o narrador, a carta de Lavedan era tão misteriosa quanto ele próprio e sua estada em Manaus. 1ª (09) A casa ilhada O olhar estrangeiro em Manaus permeia praticamente todo livro, como deve mesmo ser para quem cresce na fronteira entre o país urbanizado e a floresta, entre a modernidade e o selvagem. O estrangeiro deste conto é atento, curioso, desconfiado com tudo que cerca o mundo real. Aqui, abre-se espaço para o crime. (10) Bárbara no inverno Lázaro e Bárbara eram um casal que moravam em Paris porque ele fora exilado. Ele dava aulas de português a um grupo de executivos do “La Défense”. Ela trabalhava na redação da Radio France Internacionale. Bárbara era extremamente politizada. Não suportava conversas que outros exilados e expatriados puxavam sobre a violência no Brasil. Sempre questionava porque não falavam também sobre o colonialismo na Indochina e na África, o genocídio na Argélia e a França do marechal Pétain. (10) Bárbara no inverno Aos sábados, Lázaro reunia seus amigos e, quando Bárbara chegava, ela trazia notícias do Brasil e promovia uma discussão exaltada. Quando a reunião acabava, Lázaro jogava-se na rede com um livro e Bárbara bebia rum, comentando que aquelas reuniões eram uma farsa, pois a maioria sequer trabalhava, só ficava reclamando da vida. Bárbara reclamou de Lázaro, disse que eles não ouviam mais a mesma música. Depois do exílio, ela sentia solidão e muita saudade do Rio. (10) Bárbara no inverno Certo dia, no aniversário de Lázaro, ela chega tarde por causa do trabalho e tem uma crise de ciúmes, causada pela mistura de uma cena indesejada com a bebedeira. Ela vê um beijo furtivo de Francine. Após algumas cenas de ciúmes, ela diz querer voltar para o Brasil, até que não mais encontra Lázaro. Ela começa a procurá-lo por todo o canto e, consequentemente, deixa seu trabalho cair. É advertida por isso. Ela o vê. Ele foge. (10) Bárbara no inverno Sete meses depois, ele envia um postal dizendo que estaria viajando pelo sul da França para esquecer tudo, mas voltaria antes do inverno. Bárbara ficou sabendo que Lázaro havia sido anistiado. Ela achou a chave do apartamento de Copacabana e decidiu, então, voltar para o Brasil. Passou antes no apartamento, notou que as coisas estavam mudadas, mas não ligou. Colocou uma música para ouvir e foi para a varanda. Então Lázaro chega com Cláudia, que ela conhecia como Fabiana. (10) Bárbara no inverno Eles estavam juntos. Não imaginavam que Bárbara estivesse lá. Discutiram sobre o som ligado, até que ouvem o choro – ou riso diabólico – dela. Lázaro vai até a varanda. Bárbara se joga, ao som de Chico Buarque: “E me vingar a qualquer preço”. 1ª (11) A ninfa do Teatro Amazonas Álvaro Celestino de Matos, imigrante de olhar triste, silencioso, 87 anos, era vigia do teatro Amazonas. Certa noite, ele acorda assustado porque ouvira um ruído, achou que estava sonhando com a voz de uma cantora. Já fazia mais de 60 anos que ele dormia olhando para a imagem da soprano Angiolina Zanuchi. Desceu atrás do barulho com a arma em punho. Via a porta entreaberta e uma mancha vermelha que sumia na sala de espetáculos. Para não fazer o mesmo caminho, dá a volta e entra pelos bastidores. (11) A ninfa do Teatro Amazonas Puxa uma alavanca, acendendo a luz do palco, e vê uma cortina desenhada. Nela havia uma naia deitada em uma concha que flutuava entre as águas do Rio Negro e do Rio Amazonas. De repente, viu uma sombra na 1ª fila: era uma mulher jovem, morena e que trazia em seus braços uma criança. Ele olhou-a atentamente e a viu lambendo a criança. Então, jogou-se no chão num acesso misto de riso com histeria e começou a ouvir o eco de sua loucura. 1ª (11) A ninfa do Teatro Amazonas Foi levado por dois homens de branco para o Hospício de Flores. Com uma voz rouca e grave contou o que havia acontecido. O psiquiatra disse que era doença da idade. Tratavase de um homem errante que às vezes refugiava-se no teatro. O homem era, na verdade, um pescador. Ele trazia em seu bolso uma foto antiga, já puída, provavelmente de Angiolina, sua paixão de adolescente. (12) A natureza ri da cultura A narradora, jovem magra e tímida, conta que um dos amigos de sua avó... • Armand Verne: andarilho que colecionava lendas da Amazônia, falava vários idiomas e estudava as línguas indígenas. • ... fundou a sociedade Montesquieu do Amazonas, cujo lema era “educar para libertar”. Ele estudava os nativos para ajudá-los. Foi a avó que ela procurou quando quis estudar francês. A avó indicou seu outro amigo Felix Delatour. (12) A natureza ri da cultura Certa manhã, em julho de 1959, a narradora o procurou para estudar. Conta a sala onde ele tinha uma escura, um quarto amplo e avarandado, uma mesa de madeira, duas cadeiras de vime, quatro livros abertos, quatro lápis vermelhos e um mapa-múndi. Nos dois meses de estudo, Felix quase não falou sobre a língua francesa e, sempre que a narradora pedia uma explicação gramatical, ele falava de Armand. Comentava que Armand, mesmo bem intencionado, não conseguia promover a cultura indígena devido à distância da pronuncia. (12) A natureza ri da cultura Armand conta que, um dia, a índia Leonilda, exímia conhecedora da história de sua tribo, bateu em sua porta dizendo que iria viajar a São Paulo. Ela entregou a Armand uma plaqueta que dizia: “Voyage sans fins”, Armand pedia para ela entrar e ler alguns versos de Rimbaud que contava a história de um narrador que largara sua vida na Europa para morar em uma região equatorial. Feliz pergunta à narradora: “Viajar não é entregar-se (ainda que simbólico) ao ritual do canibalismo?” Dez anos depois, a narradora conta que foi procurar Felix, mas não o encontrou. Sua avó disse que ele subiu o Rio. 1ª (12) A natureza ri da cultura A viagem permite a confusão, a fusão de origens, a perda de algo, o surgimento de outro olhar. Todo o viajante corre o risco de julgar o outro. Neste conto, temos o convívio com o estranho, a entrega e a rejeição, o desejo de possuir e de ser possuído. Segundo o crítico José Castello, Feliz Delatour existe. É albino, sofre de gigantismo e sobrevive como professor de francês em Manaus. (13) Encontros na península O narrador era um estudante brasileiro que estava em Madrid / Barcelona (era ex-bolsista) Estava desempregado e pôs um cartaz dizendo que lecionava português. A senhora Victoria Soller o procura, pois queria conhecer Machado de Assis. Ela leu 18 contos em agosto de 1980. Fez uma pausa em setembro, depois retomou a leitura com Memórias póstumas de Brás Cubas. O narrador, além de discutir sobre as obras, tirava as dúvidas gramaticais da cliente. (13) Encontros na península No fim do outono, Victoria, que acabara de reler Dom casmurro, comentou que Machado de Assis era irônico, terrível, genial. Victória conta ao narrador que resolveu estudar Machado de Assis porque tinha uma amante português que era apaixonado por Eça de Queirós. E, como Eça de Queirós criticava Machado de Assis, Victória achou oportuno estudar este autor. Ela se ‘embebeda’ de Machado. Victória termina com seu amante via carta. Motivo: ele não sabe ler e, por isso, não sabe amar. (13) Encontros na península Certa vez, ele fora se encontrar com ela e não a amou, dormiu, roncou. De repente, acordou e saiu correndo. Victoria, indignada, o seguiu. Ele entrou em uma festa de aniversário de uma mulher mais velha, que estava vestida de preto e sentada em uma cadeira. Ele a parabenizou, chamou a amante, que vira espiando, e apresentou-a à sua professora de espanhol. Ele a beijou na boca, era sua esposa. Ela chamou Victoria e disse em seu ouvido que ensinara seu amante a amar, ainda que em espanhol. Victoria amaldiçoou o homem. 1ª (13) Encontros na península O protagonista ensina Machado de Assis a uma viúva espanhola, que quer estudar a obra do brasileiro para se vingar do ex-amante. Neste conto, o autor se distancia de Manaus e de seus personagens habituais. Vale ainda um trecho de "Encontros na península", em que um jovem brasileiro morando em Barcelona é procurado por uma mulher para aprender português do Brasil com o intuito de ler Machado de Assis e refutar a afirmação de seu amante português de que ele fora infinitamente inferior a Eça de Queirós: 1ª (13) Encontros na península Eça de Queirós: "Não, mas é louco por Eça de Queirós. Ele disse que Machado foi pérfido ao criticar cruelmente dois romances do escritor português. Não sei se isso é verdade; sei que Soares não se conforma com essas críticas, e até ficou exaltado quando perguntou: por que a dor física e a miséria são menos aflitivas que a dor moral? Ele não se cansa de afirmar que Eça é muito superior a Machado, que é o maior escritor brasileiro. Por isso eu quis ler no original o rival de Eça. Coisas de amantes." (14) Dançarinos na última noite Porfíria e Miralvo se casaram e foram morar nos fundos de uma mansão cambista. Não gastavam nada. Trabalhavam na mansão. Ela cuidava dos serviços da casa. Ele, durante o dia trabalhava na casa, nas horas vagas, do jardim e, à noite, fazia entregas. Certo dia, Porfíria e Miralvo receberam a notícia de que seu patrão iria morar em Brasília. Porfíria queria ir junto, mas o patrão disse que só se o Miralvo não fosse. Ela não concordou. (14) Dançarinos na última noite Naquela 6ª feira, Miralvo perdeu o emprego na fábrica japonesa, foi substituído por um robô. O patrão disse que não os deixaria na mão. Ele conseguira um emprego para ambos no Hotel New Horizon, chique, que ficava às margens o Lago Ubim, no meio da selva. Miralvo pela manhã levava os hóspedes para passear e pescar no Rio, falava das lendas, do boto, da cultura amazonense. À noite, dançava no salão e ganhava uns trocados. Porfíria começou trabalhando de arrumadeira, depois passou a cozinheira. (14) Dançarinos na última noite Os dois queriam era assistir aos shows caribenhos. Mas, como consolo, iam dançar á beira do lago, à luz da lua, de costas para a floresta. Porfíria tinha aprendido a dançar com uma amiga caribenha, que vivia em Manaus. Ela sentia falta de Manaus. Certa noite, ela pediu ao gerente do hotel para assistirem a um show de uma banda de Georgetown. O gerente disse não, mas o ex-patrão estava lá e prometera ajudá-los. Porém, ele foi embora e o casal foi barrado. Foram para a beira do lago, onde Porfíria reclamou que lá nem luz eles tinham. (14) Dançarinos na última noite Então, outro dia, Porfírio encontra uma jiboia, mata-a. Pensando que ela engolira uma paca, abre-a e encontra várias coisas, cabeça de boneca, pulseira plástica e uma carteira de couro com um maço de dólares. Ele limpa o dinheiro, vai para casa e convida sua esposa para uma noite de hóspedes. Eles compram roupas e sapatos, hospedam-se na suíte imperial do New Horizon e assistem ao show do El Gran Combo, dançando a noite toda. Porfírio, contudo, alerta: esta noite é nossa, mas amanhã voltamos aos nossos afazeres. 1ª (14) Dançarinos na última noite História leve, a preferida de Hatoum. O empregado de um hotel encontra uma pequena fortuna dentro de uma jiboia. Em vez de mudar de vida, decide viver como um rico, por apenas uma noite. Aqui, abre-se espaço para os sonhos. COMENTÁRIOS extraídos de ANÁLISES É com uma citação de Cortázar que começa o livro de contos “A Cidade Ilhada”: “O conto é uma pequena e perfeita esfera verbal que guarda uma única semente a ponto de eclodir.” Manaus é uma cidade ilhada por excelência. Lá não se chega por terra. Só é possível chegar de barco ou de avião. TEMAS que transformaram a região em uma PROVÍNCIA MODERNA O acesso difícil. O rápido desenvolvimento, através das indústrias que lá se instalaram. A praga dos “condomínios inteligentes”. A exuberância da natureza. A ocupação desordenada. COMENTÁRIOS extraídos de ANÁLISES Terra do mormaço, do remanso das águas, da leseira de fim de tarde por causa do calor, do cheiro das folhas no quintal, do café da manhã farto, das chuvas certeiras e torrenciais, das primeiras descobertas do corpo. Palavras do próprio Hatoum: “Manaus me persegue onde quer que eu vá.” COMENTÁRIOS extraídos de ANÁLISES Em A cidade ilhada, o leitor encontra o riso melancólico a que se habituou e o traçado de Manaus – mais tortuoso pela força da memória do que pela topografia. Encontra também definições e frases contundentes, categóricas, que revelam a sensibilidade – digamos – filosófica do texto. Aquelas frases que são ideias incomuns e que só se comunicam pela precisão da sentença escrita e reescrita, pensada e elaborada, da palavra justa. COMENTÁRIOS extraídos de ANÁLISES Encontra, ainda, certos parentes próximos deles. personagens ou O tio Ran aparece em mais de uma história. Em outras histórias, temos ecos dos pais, das mães e dos vizinhos dos três romances e da novela que antecederam A cidade ilhada. Intertextualidade. COMENTÁRIOS extraídos de ANÁLISES Nesta obra, há ecos de Guimarães Rosa, Machado de Assis ou Borges. Borges especialmente parece acompanhar cada linha do conto-título ou de “A natureza ri da cultura”. Machado, por exemplo, ilumina a pista de “Dançarinos na última noite”. E Cortázar, que ainda não havia aparecido, ressoa por trás da melhor narrativa: “Bárbara no inverno”. As referências são claras sem ser exageradas, sem ultrapassar seu espaço possível, nem se impor à trama que alimentam. COMENTÁRIOS extraídos de ANÁLISES O diálogo subterrâneo ajuda a construir as variações de perspectiva e entonação ou as oscilações de registro narrativo, que podem buscar a linguagem do cinema ou do teatro para enfatizar uma cena ou destacar um personagem. Para mostrar sua leitura cáustica de certos estereótipos brasileiros – que um crítico desavisado ou sobreavisado pode confundir com a fala do próprio autor. COMENTÁRIOS extraídos de ANÁLISES E é essencial num livro que fala da errância, circular entre geografias e temporalidades, vai de Bombaim a Barcelona e a Palo Alto, cruza Manaus tantas vezes e transborda fronteiras, sem nunca escapar do peso da memória da infância. Tensão, contradição? Não: nada é mais errante do que nossa memória, mesmo se a supusermos paralisada. COMENTÁRIOS extraídos de ANÁLISES Hatoum sabe disso e lida com os labirintos da memória a cada conto de A cidade ilhada. Porque sua cidade literária se comunica o tempo todo com outras e, principalmente, com o leitor. Nunca é totalmente outra, mas sempre sonda a chance de migrar. COMENTÁRIOS DE CLAUDIO LEAL Manaus em transição, seres insulares. Primeiro livro de contos do escritor Milton Hatoum. “A cidade ilhada" reúne 14 narrativas breves que marcam uma transição temporal, geográfica e humana do universo amazônico. Milton Hatoum é também autor de "Relato de um certo Oriente" e "Dois irmãos”. COMENTÁRIOS DE CLAUDIO LEAL Nesta obra, ele transita em novas fronteiras ficcionais: outras cidades surgem em sua obra, tendência irreversível ao criador que não se sente com raízes somente fincadas na terra natal. Suas raízes de viajantes são mais rasas, avisa Hatoum em entrevista a Terra Magazine. COMENTÁRIOS DE CLAUDIO LEAL Hatoum busca uma imagem na flora: “Tem uma árvore da Amazônia, chamada Sumaumeira, uma das maiores, considerada uma espécie de "rainha da floresta". Não tenho raízes de Sumaumeira, não estou fincado só no lugar onde nasci. Minhas raízes são mais rasas, são raízes de palmeiras.” Vencedor dos prêmios Portugal Telecom de Literatura Brasileira e Jabuti. COMENTÁRIOS DE CLAUDIO LEAL O escritor ironiza os tiques da crítica quando são analisadas obras de veio mais telúrico. (regionalistas) Em recente entrevista à Folha de S. Paulo, Hatoum defendeu uma revisão das interpretações tradicionais da literatura brasileira "regionalista". Sem rótulos, ironiza: “O curioso é que quando um escritor europeu fala de neve, de carvalhos, de árvores europeias, ninguém chama de exótico, né? (...) Mas, quando um escritor amazonense chama de curumim, parece exótico.” Confira a entrevista de Milton Hatoum à Revista Terra Magazine: Terra Magazine - Como foi o trabalho de seleção e reescrita dos contos de "A cidade ilhada"? Milton Hatoum - O primeiro conto data da época do Relato, 1989. Aliás, o Relato era inicialmente um conto. Descobri que tinha mais assunto e, quando me dei conta, já tinha escrito mais de cem páginas. E aí, quando terminei o Relato, percebi que um dos aspectos do romance não tinha sido explorado no conto que havia interrompido. Então escrevi "A natureza ri da cultura", com outro título. O primeiro conto data dessa época. Depois eu escrevi alguns contos, porque tinha uma questão pra escrever, e outros por encomenda. Terra Magazine – Esse ofício de contista se deu durante a escrita de romances? Milton Hatoum - Foi. Na década de 90, escrevi a maioria desses oito contos que foram publicados. Quando terminei Relato, enveredei por outro romance que não foi publicado (risos) Mas, ao mesmo tempo, escrevi esses contos. Publiquei alguns no Brasil, outros fora, participaram de antologias no México, na Alemanha, nos Estados Unidos. E os últimos eu escrevi no semestre passado. Havia uma demanda dos leitores. Perguntavam por que eu não publicava tal conto... Aí eu reuni esses relatos e reescrevi todos. Eles não foram escritos visando uma unidade, mas talvez ela exista inconscientemente. Terra Magazine - Esse livro pode marcar uma transição em sua obra literária? Milton Hatoum - Abre para uma Manaus em transição e para outras cidades, saindo do universo que tem marcado sua obra até aqui. O crítico José Castello até notou que a Manaus do início do livro não é a mesma do fim. Essa foi uma ótima observação. As primeiras e últimas páginas marcam também uma diferença temporal da cidade. E a Manaus de "Dançarinos na última noite" não é a mesma da "Varandas da Eva". É mesma cidade, sendo outra também. Com outros problemas, outras questões. É um salto da Província pra uma cidade industrializada, cosmopolita e com muitos problemas. Tem uma árvore da Amazônia, chamada Sumaumeira, uma das maiores, considerada uma espécie de "rainha da floresta". Não tenho raízes de Sumaumeira, não estou fincado só no lugar onde nasci. Minhas raízes são mais rasas, são raízes de palmeiras. Acho que há escritores que nunca conseguiram escrever sem se referir ao seu lugar. E grandes escritores. Falo do Faulkner, salvo um ou outro conto o próprio Guimarães Rosa, Jorge Amado... Se bem que Jorge tem textos sobre as andanças dele, a Navegação de cabotagem, a experiência dele fora do Brasil. Mas alguns escritores recriam, reinventam seu lugar. Metade da minha vida foi vivida fora de Manaus. Você também acumula experiências. Isso é bom por um lado porque o distanciamento te ajuda a repensar. Enfim, a própria memória funciona de outra forma. Terra Magazine - No conto "Dois poetas da província", você trabalha com essa matéria? Milton Hatoum - É a história de um jovem que quer se evadir, quer sair da província, e do outro que sonha com o lugar pra onde o jovem ex-aluno está indo. E sabe tudo de Paris sem nunca ter ido a Paris. Nesse livro, tem pelo menos dois contos, "Bárbara no inverno" e "Encontros na península", que se passam na Europa e se referem à minha experiência fora do Brasil. Terra Magazine - Em "A cidade ilhada", estrangeiros com experiências e códigos não-amazônicos são subvertidos. Experiências levadas pra lá são reviradas... Milton Hatoum - É, são estrangeiros levados para a região, mas deslocados. Essa eleição dos personagens estrangeiros vem desde meu primeiro romance. Em Relato, um dos personagens de que mais gosto é o fotógrafo alemão Dorner. Ao contrário dos nativos, ele percebe coisas que os outros não percebem - pelo olhar, pela vivência, pela sensibilidade. E minha infância, minha juventude, foi marcada por esses viajantes estrangeiros ou por estrangeiros da nossa rua. São pessoas que também adotaram Manaus, o Amazonas, ou foram adotadas pela cidade. Como meu pai, que era libanês e passou a maior da vida em Manaus, está enterrado em Manaus. Ele já era um brasileiro, o Líbano não fazia mais parte... Terra Magazine - Já era uma ficção? Milton Hatoum - Era um Líbano imaginário. Meus professores inglês, francês e alemão eram estrangeiros, como acontece no Brasil todo. A particularidade do Amazonas é seu ilhamento. Tem o lado exótico, que é impossível de não ser evocado, porque a Amazônia é o inverso dos pampas (risos). Não é a mesma coisa. O curioso é que quando um escritor europeu fala de neve, de carvalhos, de árvores europeias, ninguém chama de exótico, né? Ou quando um paranaense chama de piau, um gaúcho chama de guri, ninguém acha exótico. Mas, quando um escritor amazonense chama de curumim, parece exótico. No entanto, isso daí é totalmente incorporado a nosso imaginário, a nosso vocabulário. Terra Magazine - Guimarães Rosa trabalhou com pesquisa de linguagem. Milton Hatoum - Claro, Faulkner também. Todo escritor que se refere a uma região específica, fala do ambiente em que ele viveu e do qual tem conhecimento. Tem uma sabedoria, o narrador é aquele que sabe contar, que tem o conhecimento de uma experiência de vida. O Graciliano Ramos, quando usa termos do Nordeste, é porque é o que há de mais íntimo ao pensamento dele. É claro que para você escrever sobre outras regiões, tem que dominar sua vivência em outros lugares. O que importa, no fim das contas, é o texto, a qualidade do texto. Terra Magazine - E o escritor trabalha com outras dimensões... Milton Hatoum - Tentei a mudança de registro, a mudança de paisagens nesse livro. "A cidade ilhada" não é apenas Manaus, são os seres também, os personagens que estão ilhados. De alguma forma, o leitor. O trabalho da leitura é solitário, é um exercício intelectual solitário. Terra Magazine - Machado de Assis usava os contos como uma espécie de laboratório para temas que desenvolveria em romances.Você vê no conto essa possibilidade? Milton Hatoum - Acho que sim. O conto pode ser uma semente, uma espécie de ponto de partida para um relato mais extenso. Pode ser uma novela, um romance. Em todo caso, acho que há um diálogo temático entre os contos e os romances. Entre alguns contos, pelo menos. Isso você nota no Machado, no Flaubert, nota no Dostoiévski, no Tolstói. O Faulkner tem até personagens que aparecem nos contos e estão nos romances. Porque tudo isso faz parte de um microcosmo, de um pequeno universo ficcional, que você constroi ao longo de sua vida. Então, os contos remetem aos romances, e vice-versa. Muitos dos grandes romances da literatura do Ocidente foram, inicialmente, pensados como contos. Isso tem na obra de muitos escritores. Quem lê "Um coração simples", está lendo alguma coisa de "Madame Bovary", por exemplo. Cada conto dos "Três contos", de Flaubert, aponta para os grandes romances dele. Até mesmo o "Salambô". Terra Magazine - Até o Balzac. Milton Hatoum - Balzac era mestre nisso. Balzac escreveu tantos relatos, tantos romances, novelas, que a obra dele funciona como um imenso vaso comunicante. Vargas Llosa faz isso também. É um escritor, até certo ponto, balzaquiano. Os personagens de Vargas Llosa transitam muito de um romance para o outro. Basta lembrar do sargento Lituma. É como se os personagens não se esgotassem nos romances e tivessem uma sobrevida nos contos. Terra Magazine - Em "A cidade ilhada", retornam Emilie e tio Ran... Milton Hatoum - E aí não é uma nostalgia do personagem, mas é uma espécie de ânsia de infinitude (risos) Terra Magazine - Mas acontece uma coisa inversa. Você trabalhou primeiro esses personagens num romance. É diferente, não? Milton Hatoum - É, porque no conto o personagem é tomado por um problema, um conflito, um mistério que ronda, mas você não pode desenvolver muito a intriga, a trama, nem mesmo o próprio personagem. Porque o conto, apesar da quebra das convenções dos gêneros, ainda é um relato breve. Não é isso que determina o conto, porque a crônica também é um relato breve. É difícil separar os gêneros, sobretudo conto e crônica. Milton Hatoum - No Brasil, as fronteiras são mais tênues. Mas o importante é, nessa brevidade, você dar uma feição forte ao personagem, imprimir um campo forte ao problema do personagem. Tanto que no primeiro conto, "Varandas da Eva", há vários personagens e eu tentei falar brevemente do destino de cada um. Mas o que importa, mesmo, é um deles - e o narrador. Os outros estão implicados. O desafio é como, nesse conjunto de vozes, você dar consistência ao conjunto, uma coesão interna. É o desafio da literatura. No conto "Varandas", abre-se uma multiplicidade de caminhos, como se o narrador estivesse numa floresta. Até que se vai chegando... A uma clareira. E a clareira é, de fato, a questão moral. Quer dizer, é a surpresa, a perplexidade, e como que no fim, já depois da juventude... É um conto muito conradiano, o que me inspirou esse conto foi uma novelinha do Conrad, "Juventude". Acho que há uma outra preocupação, até mesmo uma linguagem diferente, como está em "Bárbara no inverno". Gostaria até de aprofundar essa questão, falar um pouco da política. Terra Magazine - Ali é o gérmen de um romance? Milton Hatoum - É, eu acho que pode ser desenvolvido, é o capítulo de alguma coisa mais extensa. Não sei bem o que é. Terra Magazine - Nos últimos anos, você tem se dedicado a narrativas breves: a novela "Órfãos do Eldorado" e agora "A cidade ilhada", além de organizar uma seleção de crônicas. Como sua linguagem chegará a seu próximo romance? Haverá transformações? Milton Hatoum - Algumas, sim. Eu comecei um relato, não sei o que é ainda. Relato longo. Eu espero que seja longo porque, quando eu penso que já não tem mais o que escrever... Tenho que me conter muito, porque minha imaginação dá muitos saltos. Na verdade, depois do "Cinzas", um romance que me deu muito trabalho - quase uns quatro anos -, fiquei um pouco cansado de um texto mais longo. Sua vida muda, você fica mais velho, envelhece, fica enrugado... (risos) Começa a andar de bengala e está escrevendo um romance... Mas, agora, eu tenho o acúmulo de várias experiências. O romance vai ser uma forma mais abreviada do que foi o "Cinzas do Norte" e até mesmo "Dois Irmãos". Ao mesmo tempo, comecei a escrever outros contos, com outras preocupações. Contos com uma forma memorialística mais direta do que esses publicados. Terra Magazine - "A cidade ilhada" tem os traços memorialísticos, mas com despistes. Milton Hatoum - Queria me esconder menos nesses narradores. Não vejo nenhum mal nisso, não vejo nenhum mal em ser memorialista ficcional, uma espécie de memória/ficção. E aí entrariam - não sei nem se são contos -, alguns relatos de vida, de experiências com viagens, até mesmo de observador, com um traço jornalístico às vezes. Isso também não me incomoda nem um pouco. Talvez a própria prática de cronista me conduza pra um outro caminho. É sempre o trabalho do leitor que é mais importante. É o modo de ler que determina o gênero, não é a intenção do autor. É a recepção, a forma da leitura, a maneira de ler. O gênero é uma expectativa do autor. Pode ser até uma vontade, mas às vezes o leitor lê de outro modo. O leitor pode transformar um conto num relato apenas ficcional ou num relato autobiográfico. Tem toda a liberdade para isso. Os escritores de língua alemã tem esse lado um pouco analítico, confessional, biográfico, mas ao mesmo tempo enganador, dissimula ali uma ficção, o que Proust fez. Terra Magazine - Em "A natureza ri da cultura", você escreve que "a imaginação se nutre de coisas distantes no espaço e no tempo, mas a linguagem encontra-se no tempo". É essa sua relação com a literatura ? Milton Hatoum - Essa, pra mim, é a frase que mais importa. Desde que haja distância temporal, se você já tem uma relação insegura com o passado... O que importa é você não ter certeza do passado. Quando você relativiza ou acolhe as incertezas do que aconteceu, esse é o momento de escrever uma ficção, de reinventar o passado. $ {o b jS s o .