UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO RELAÇÕES EXISTENCIAIS DECORRENTES DO PODER FAMILIAR E SUA TUTELA PELAS NORMAS DO DIREITO DAS OBRIGAÇÕES Catarina Almeida de Oliveira TESE DE DOUTORADO Área de Concentração: Teoria e Dogmática do Direito Recife, 2012 1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO RELAÇÕES EXISTENCIAIS DECORRENTES DO PODER FAMILIAR E SUA TUTELA PELAS NORMAS DO DIREITO DAS OBRIGAÇÕES Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito do Recife/Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco como requisito parcial para obtenção do grau de Doutora. Área de Concentração: Teoria e Dogmática do Direito. Orientadora: Profa. Dra. Fabíola Santos Albuquerque Catarina Almeida de Oliveira Recife, 2012 Catalogação na fonte Bibliotecária Eliane Ferreira Ribas CRB/4-832 O48r Oliveira, Catarina Almeida de Relações existenciais decorrentes do poder familiar e sua tutela pelas normas do direito das obrigações / Catarina Almeida de Oliveira. – Recife: O Autor, 2012. 196 f. Orientadora: Fabíola Santos Albuquerque. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco. CCJ. Direito, 2012. Inclui bibliografia. 1. Constituição Federal de 1988 - Direito brasileiro - Direito civil. 2. Dignidade humana - Solidariedade - Igualdade - Ordenamento jurídico brasileiro. 3. Princípio da dignidade da pessoa humana - Brasil. 4. Direitos civis - Relações de família. 5. Direito constitucional - Relações de família. 6. Filiação - Direitos e deveres - Brasil. 7. Relações familiares - Aspectos jurídicos - Aspectos psicológicos - Aspectos sociais - Aspectos morais - Brasil. 8. Comportamento afetivo - Brasil. 9. Obrigações civis - Relações jurídicas - Poder familiar. 10. Direito de família Modernização - Brasil. 11. Relações familiares - Responsabilidade civil - Brasil. 12. Pátrio poder - Brasil. 13. Direitos e garantias individuais - Brasil. 14. Família Direitos fundamentais. I. Albuquerque, Fabíola Santos (Orientadora). II. Título. 346.81015 CDD (22. ed.) UFPE (BSCCJ2012-029) 2 Catarina Almeida de Oliveira “Relações existenciais decorrentes do poder familiar e sua tutela pelas normas do direito das obrigações” Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito do Recife/Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco como requisito parcial para obtenção do grau de Doutora. Área de Concentração: Teoria e Dogmática do Direito Orientadora: Profa. Dra. Fabíola Santos Albuquerque A Banca Examinadora composta pelos Professores abaixo, submeteu a candidata à defesa em nível de Doutorado e a julgou nos seguintes termos: MENÇÃO GERAL:____________________________________________________ Prof. Dr. Paulo Luiz Netto Lôbo (Presidente - UFPE) Julgamento:_____________________________Assinatura:____________________ Profa. Dra. Carolina Valença Ferraz (1ª Examinadora - UNICAP) Julgamento:_____________________________Assinatura:____________________ Prof. Dr. Roberto Paulino de Albuquerque Junior (2º Examinador – UFPE) Julgamento:_____________________________Assinatura:____________________ Profa. Dra. Larissa Maria de Moraes Leal (3º Examinadora – UFPE) Julgamento:_____________________________Assinatura:____________________ Prof. Dr. Torquato da Silva Castro Junior (4º Examinador – UFPE) Julgamento:_____________________________Assinatura:____________________ Coordenador do Curso: Prof. Dr. Marcos Nóbrega 3 Para Manoela 4 THE FAMILY SPIRIT The family, in a sense, is a spiritual entity, for the dead and unborn are widely believed to be as much a part of it as the living. Just as animals and humans have more “force” than inanimate objects, so spirits have more than humans. A family may maintain a shrine not only to honor the ancestral and thus secure their general protection, but also to seek specific aid at special times that generally involve the family as such. Pregnancy, birth, sickness, initiation, marriage, death are all occasion when family spirits may be invoked, using a ritual performed by the head of the family. There seems a clear divison between the natural and the supernatural, the material and the spiritual. Yet we are not quite beyond the realm of science, for the “force”, if spiritual, is none the less real in traditional belief. (METROPOLITAN MUSEUM. Nova Iorque, abril 2011) A chilly breeze that seemed to emanate from the heart of the forest lifted the hair at Harry’s brow. He knew that they would not tell him to go, that it would have to be his decision. “You’ll stay with me?” “Until the very end,” said James. “They won’t be able to see you?” asked Harry. “We are part of you,” said Sirius. “Invisible to anyone else.” Harry looked at his mother. “Stay close to me,” he said quietly. (ROWLING, J. K. Harry Potter and the Deathly Hallows, 2007) Mother, you had me, but I never had you/ I wanted you, you didn't want me/ So I, I just got to tell you/ Goodbye, goodbye… Father, you left me, but I never left you/ I needed you, you didn't need me/ So I, I just got to tell you/ Goodbye, goodbye… Children, don't do/ what I have done/ I couldn't walk and I tried to run/ So I, I just got to tell you/ Goodbye, goodbye… Mama don't go….Daddy come home… (JOHN LENNON - John Lennon Plastic Ono Band – 1970) 5 AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus por tudo. Ao meu irmão Fábio, por me proteger e inspirar sempre, e não me abandonar nunca. À minha mãe Juliana, por proporcionar a mim e a Manu, a melhor experiência familiar do mundo. Ao meu pai Geraldo, por seu amor, por sua curiosidade acadêmica, por seu entusiasmo inteligente, pelas palavras de incentivo, pela revisão ortográfica desta tese e pela ajuda com o Abstract. À minha filha Manoela pelos melhores momentos de minha vida. Por tornar minhas obrigações parentais, as experiências mais fabulosas de minha existência. Às minhas tias, especialmente Thetê, por ser minha segunda mãe, me apoiando e incentivando todas as vezes que preciso. Ao meu irmão Chico e ao meu amigo Leonardo Galiza, pela preocupação, disponibilidade e ajuda, quando, em plena madrugada de carnaval, apaguei de meu computador, o programa que continha o editor de texto que estava utilizando para escrever esta tese. A Fabíola Albuquerque que, além de amiga, foi uma orientadora sensível, profissional e criteriosa. Ao meu professor Paulo Lôbo, pelas melhores lições de Direito Civil, sendo o meu paradigma profissional. A Liana Lins, por me ajudar, sempre, a tomar as decisões mais importantes, que vão da compra do meu apartamento à escolha do tema desta tese. A Tania Onoratti, por ter me ensinado italiano, idioma sem o qual, não teria iniciado esta jornada. A Antonieta Lynch pela sólida amizade e pela insistência de anos, para que eu fizesse o doutorado. A Roberta Cruz, pela adequação desta tese às regras da ABNT e por ser a minha amada irmã caçula, provando que os laços familiares vão além da identidade genética. 6 A Felipe Negreiros, pela amizade e pelo contagiante entusiasmo profissional e acadêmico. A Roney Lemos, pelo profissionalismo tranquilo que me acalma sempre que está por perto. A Clarissa Marques, pelos bons artigos disponibilizados e pela valiosa companhia em tantas madrugadas de estudos, via facebook. A Marcos Erhrardt, por ter sofrido comigo, sendo meu melhor exemplo de persistência, coragem, determinação e êxito. A José Mário Wanderley, por ter me fornecido bons links para doutrina estrangeira e pela ajuda no Abstract. A Larissa Leal, por milhares de motivos. Por me proporcionar uma existência emocionante em histórias que merecem um livro e que a torna essencial em minha vida. Em especial, nesta tese, por ter me escolhido para apresentar as ideias de Alexy em seminário de sua disciplina. A Pablo Malheiros, pelo massacre impiedoso no meu seminário de tese e, depois, já meu amigo, pelas boas conversas, risadas, reflexões, livros e artigos. Ao meu aluno, Avner Cavalcanti, que, ainda no terceiro período da graduação, contribuiu ativa e ricamente, em meu seminário de tese. A Pablo Falcão, pela amizade, pela música e pela filosofia. A Alexandre Costa Lima, pela amizade, pelo humor refinado e pela filosofia. A Roberto Paulino, por sua solidariedade, me emprestando, desapegadamente, cinco exemplares do Tratado de Direito Privado de Pontes de Miranda; Por ter se disposto tantas vezes a ouvir minhas inquietações e pelos valiosos momentos de descontração na Unicap. A Eduardo Rabenhorst, por compartilhar sua erudição comigo, confiando as primeiras leituras de seus excelentes escritos. Pelas palestras e conversas que sempre me despertaram a vontade de saber cada vez mais. Por ter me apresentado a teoria de W. N. Hohfeld. A Helena Castro, por ser minha valiosa ponte com Torquato Castro Jr., na fase de qualificação desta tese. 7 A Torquato Castro Jr., pelas melhores aulas de Teoria do Fato Jurídico, pelo exemplo acadêmico e pelo livro de autoria de seu pai, Torquato Castro. A Carolina Ferraz, pela forte energia vital que coloca em todas as suas ações. Pela torcida e por todo apoio, pelo amor ao Direito Privado, pelo incentivo à pesquisa, pela dedicação à academia e mais do que tudo, por mostrar ao mundo, sempre junto a Glauber Salomão e ao incrível Vini, que a família é o mais lindo e importante vínculo que temos na vida. A Taciana Beltrão, pelo estímulo, apoio, amizade e principalmente, pelo jeito alegre de viver a academia, trazendo leveza e cor à rotina profissional de quem a cerca. A Maria Rita Holanda, pela irmandade, por me proporcionar uma linda família estendida (Eduardo, João e Nathália), por fazer parte de minha melhor rotina e pela doutrina francesa utilizada nesta tese. A Luciana Brasileiro, por seu profissionalismo, maturidade, jovialidade e alegria. Pelos cuidados comigo em nossas viagens Ibedermanas. Por estar sempre por perto. Por muito mais. A Adriana Rocha, por ser tão importante pra mim, por todo o carinho, pelos terapêuticos momentos de alegria, pela sensatez de seus conselhos, pela incentivadora leitura desta tese, em sua versão final. A Gustavo Andrade, Everilda Brandão, Tatiane Goldhar, Eduardo Dantas, Belinda Guedes, Patrícia Lane, Raymundo Juliano, Bruno Galindo, João Paulo Allain Teixeira, Marília Montenegro, Mirian de Sá Pereira, Walber Agra, Theresa Nóbrega, Alessandra Gomes, Ricardo Galvão, Cynthia Suassuna, José Itamar Carvalho, Andréa Campos, Lúcia Monteiro, Nicolle Torres, Maria Dlara, Virgínia Colares, Saulo Miranda, Armando Andrade, Felipe Vilanova, George Pessoa, Edmílson Maciel, D. Creuza, Vinícius Calado, Roberto Campos, Pe. Caetano, João Franco, Adílson e Idaia Barreto e tantos bons amigos, por todo o incentivo, carinho e amizade. Aos advogados pernambucanos, por me confiarem, honrosamente, a OAB/PE. A Henrique Mariano, por ser um dos melhores exemplos de integridade, profissionalismo, firmeza e polidez que eu conheço e também por, juntamente a Hebron Cruz, Pelópidas Neto, Leonardo Coelho, Bruno Baptista, Jayme Asfora, Leonardo Accioly, Pedro Henrique Alves, conselheiros e funcionários da OAB de Pernambuco, 8 compartilhar comigo, a grande alegria de trabalhar na construção de uma sociedade solidariamente justa. A Inácio Feitosa, por ter me proporcionado a boa doutrina argentina. A Juliana Schetini, por cuidar de minha saúde, para que eu tivesse condições de escrever um dos trechos essenciais desta tese. A Fabíola Ferreira e Walman Rosas pelas atividades físicas e pelos momentos agradáveis de descontração, imprescindíveis neste período. À Livraria Jaqueira, nas pessoas de Seu Alfredo, Fabrízio, Carlão e Edson e à lanchonete Dalena, na pessoa de Seu Batista, pelo atendimento, ao mesmo tempo, profissional e acolhedor, oferecendo, além dos livros, cafés, chás e tortas, os melhores ambientes de estudo, onde a maior parte desta tese foi escrita. 9 RESUMO OLIVEIRA, Catarina Almeida de. Relações existenciais decorrentes do poder familiar e sua tutela pelas normas do direito das obrigações. 2012. 196 f. Tese de Doutorado – Centro de Ciências Jurídicas / Faculdade de Direito do Recife, Universidade Federal de Pernambuco. A Constituição Federal de 1988 pode ser considerada um marco divisor na história do direito brasileiro, exercendo grande e vital influência sobre o direito civil. A importância por ela conferida aos princípios, sobretudo os da dignidade humana, solidariedade e igualdade, promoveu uma grande mudança na interpretação de institutos já sedimentados no ordenamento jurídico brasileiro. O poder familiar não escapou às profundas alterações que não se limitaram, apenas, à mudança de nomenclatura. A própria noção de poder enquanto situação jurídica complexa que salienta os deveres dos pais em relação aos interesses dos filhos, aponta para o giro sofrido pelo instituto, restando ressaltados, hoje, os interesses daquele polo relacional que, até então, via-se apenas, sujeito à autoridade paterna. Com a evidência do momento de vulnerável importância pelo qual passa toda criança e adolescente, enquanto pessoas em formação, assim como, pela necessidade de que todos os que integrem a sociedade, tenham uma formação estrutural emocional e física, equilibrada, transcendendo os interesses meramente individuais, cumpre entender a estrutura relacional que vincula pais e filhos durante o poder familiar, com o objetivo de compreender os deveres do pai e da mãe, como obrigações no sentindo técnico e, assim, possibilitar a eficácia das normas que ressaltam os direitos existenciais, verdadeiras bases da dignidade humana. Admitindo a possibilidade de entender os deveres jurídicos parentais como condutas exigíveis, tornase viável a utilização dos recursos jurídicos próprios daquela área do direito civil que até então, tinha se voltado, apenas, à satisfação de interesses econômicos, originados nos negócios jurídicos, na responsabilidade civil e no enriquecimento sem causa. Assim, diante da relevância dos interesses que se busca efetivar, principalmente por meio da convivência familiar, as condutas obrigadas poderão ser exigidas, bem como a impossibilidade de cumprimento por fato imputado ao pai e/ou à mãe, poderá resultar em obrigação de indenizar. A interferência do Estado, justificada pela natureza de direitos humanos vivenciados na família, se torna plausível diante dos direitos considerados fundamentais pela norma maior que ficou conhecida como a “Constituição Cidadã.” PALAVRAS-CHAVES: 1. PODER FAMILIAR. 2. DIREITOS FUNDAMENTAIS. 3. OBRIGAÇÕES. 4. CONVIVÊNCIA FAMILIAR. 5. RESPONSABILIDADE CIVIL. 10 ABSTRACT OLIVEIRA, Catarina Almeida de. Existencial relations from parental authority and their protection by the rules of obligations law. 2012. 196 f. PHD Thesis – Centro de Ciências Jurídicas / Faculdade de Direito do Recife, Universidade Federal de Pernambuco. The Federal Constitution of 1988 can be considered a milestone in the history of brazilian law, continuously exerting a strong and vital influence on the civil law. The importance granted by it to principles, especially of human dignity, solidarity and equality promoted a great change in the interpretation of precepts already sedimented in the brazilian legal system. The parental authority could not escape the profound changes that were not limited only to the change of nomenclature. The very notion of authority as a complex legal situation that emphasizes the duties of parents in relation to the interests of children, points to the dramatic changes suffered by the rules, remaining importants today, the interests of that relational pole, until then one could see only subject to parental authority. With the evidence of the moment of vulnerable importance all children and teenagers experiment as humans beings in their development as well as the need that all who integrate society have a balanced structural, physical and emotional formation, transcending the merely individual interests, we must understand the relational structure that links parents and children in the parental authority, in order to understand the duties of father and mother as obligations, in the technical sense, and thus enabling the effectiveness of rules that focus on the existential rights, real foundations of human dignity. Admitting the possibility to understand parental legal duties as mandatory behaviors, it becomes feasible the utilization of legal resources in the realm of civil law faced only to the satisfaction of economic interests arised in the business of law, liability and unjust enriching. So, considering the importance of the interests that one seeks to effect mainly in family life, mandatory behaviors could be required, resulting in indemnization obligation in the case of accomplishment failure by any fact attributed either to father, mother or both of them. Thus the interference of the state justified by the nature of human rights experienced in family becomes plausible in the face of fundamental rights considered by the major law known as the Citizen Constitution. KEY WORDS: 1. PARENTAL AUTHORITY. 2. FUNDAMENTAL RIGHTS. 3. OBLIGATIONS. 4. FAMILY LIFE. 5. LIABILITY. 11 SUMÁRIO INTRODUÇÃO..........................................................................................................14 I Delimitação do Tema.................................................................................................14 II Método.....................................................................................................................16 III Desenvolvimento da Tese.......................................................................................17 CAPÍTULO I – PODER FAMILIAR – NOVOS PARADIGMAS NA TRAVESSIA DO PATRIARCADO À FAMÍLIA DEMOCRÁTICA CONTEMPORÂNEA 1.1 Patriarcado como Modelo Milenar de Família......................................................20 1.2 Patriarcado no Brasil. Mulheres, Filhos e Sociedade............................................24 1.3 Decadência da Autoridade Paterna........................................................................28 1.4 Poder Familiar na Constituição Federal de 1988. Para a Realização da Dignidade, Igualdade e Solidariedade............................................................................................31 1.4.1 Dignidade Humana, como Princípio Norteador das Relações Humanas, aplicável ao Direito de Família....................................................................................33 1.4.2 Sem Igualdade, não há Dignidade......................................................................36 1.4.3 A Solidariedade na Repersonalização dos Direitos Civis com ênfase nas Relações de Família.....................................................................................................40 1.5 Conteúdo Constitucional do Poder Familiar..........................................................42 1.6 Poder Familiar no Direito Civil Brasileiro............................................................45 1.7 Para onde Apontam os Deveres Parentais no Poder Familiar................................48 1.8 Interferência Estatal e Intimidade Familiar............................................................50 CAPÍTULO II – SITUAÇÃO JURÍDICA E DIREITOS SUBJETIVOS EXISTENCIAIS NO PODER FAMILIAR 2.1 Situação Jurídica e Relação no Poder Familiar.....................................................56 2.1.1 Situações Jurídicas Patrimoniais........................................................................60 2.1.2 Situações Jurídicas Existenciais.........................................................................61 12 2.2 Direitos subjetivos e Deveres no Poder Familiar..................................................63 2.3 Definindo os Direitos Subjetivos nas Relações Jurídicas do Poder Familiar com base na Teoria de Hohfeld...........................................................................................67 2.4 Liberdades no Exercício do Poder Familiar...........................................................73 2.5 Proteção Integral para a Concretização dos Interesses da Criança e do Adolescente..................................................................................................................76 2.6 Princípio do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente na Interpretação do Poder Familiar Contemporâneo...................................................................................79 2.7 Definindo o Afeto enquanto Objeto de Relações Jurídicas do Poder Familiar........................................................................................................................81 2.7.1 A Afetividade como Princípio............................................................................82 2.7.2 Do Valor ao Princípio.........................................................................................84 2.7.3 Afeto e Deveres Jurídicos...................................................................................86 CAPÍTULO III - IMPERATIVIDADE NORMATIVA NA TUTELA DOS DIREITOS EXISTENCIAIS DECORRENTES DO PODER FAMILIAR 3.1 Influências Culturais, Naturais e Religiosas na Definição Jurídica de Família e a Dificuldade de Separar Tradição, Fé, Instinto e Razão...............................................93 3.2 Deveres ou Faculdades. Distinção Necessária entre Comandos e Conselhos em Bobbio..........................................................................................................................99 3.3 Identificando as Obrigações Civis nas Relações Jurídicas do Poder Familiar......................................................................................................................102 3.3.1 Prestação Debitória nas Relações Parentais.....................................................107 3.3.2 Conteúdo Econômico da Prestação Debitória..................................................108 3.3.3 Repersonalização do Direito das Obrigações...................................................110 3.3.4 Interesse Puramente Moral e o Reconhecimento da Prestação Debitória Desprovida de Conteúdo Econômico........................................................................112 3.4 Inserção de Normas Obrigacionais nas Relações de Família..............................116 CAPÍTULO IV - CONVIVÊNCIA FAMILIAR COMO DIREITO E MEIO REALIZADOR DOS INTERESSES EXISTENCIAIS NO PODER FAMILIAR 13 4.1 Convivência Familiar para Construção e Realização da Personalidade.............................................................................................................122 4.2 Convivência Familiar como Direito Fundamental..............................................126 4.3 Conflito de Interesses..........................................................................................129 4.4 Ponderação de Interesses nas Relações Jurídicas Parentais................................133 4.5 Guarda Compartilhada como Garantia de Convivência......................................136 4.6 Mediação. A Força do Diálogo............................................................................141 CAPÍTULO V – INADIMPLEMENTO E RESPONSABILIDADE 5.1 Inadimplemento nas Obrigações Parentais.........................................................145 5.1.1 Alienação Parental...........................................................................................149 5.1.2 Multa Cominatória...........................................................................................154 5.2 Responsabilidade Civil nas Relações Parentais..................................................157 5.2.1 Alguns Pressupostos de Responsabilidade Civil..............................................161 5.2.2 Dano Moral Indenizável...................................................................................163 5.2.3 Perda de uma Chance como Dano Moral Indenizável.....................................165 5.3 A Retórica no Superior Tribunal de Justiça.........................................................167 5.4 Amar é Faculdade, Cuidar é Dever. O Reconhecimento do Abandono Afetivo no Superior Tribunal de Justiça......................................................................................182 CONCLUSÃO..........................................................................................................186 REFERÊNCIAS.......................................................................................................189 14 INTRODUÇÃO I Delimitação do Tema A afetividade, enquanto princípio, direito e dever, foi introduzida nas discussões acadêmicas de direito de família, nas últimas duas décadas. Partindo de reflexões acerca da nova normativa constitucional, que centrou o ordenamento na dignidade humana, considerada no contexto político-social solidário e democrático, a reconhecida importância das posturas afetivas provocou significativas mudanças no direito de família nacional. Primeiro, por ser o principal pilar sobre o qual se sustenta e se verifica a existência de entidades familiares não matrimonializadas como as hoje, já juridicizadas, uniões estáveis. Por força dessa mudança de paradigma, seguiram diversos desdobramentos, como por exemplo, o reconhecimento das uniões homoafetivas e até, o questionamento acerca da possibilidade e dos limites da tutela jurídica de famílias simultâneas. Também, no rumo dos reconhecimentos jurídicos, a afetividade tem cumprido uma importante função na vinculação de pessoas em relações de filiação, estabelecendo elos que tornam, muitas vezes, desnecessária a coincidência genética. É inegável que já se pode comemorar o avanço social e cultural brasileiro, a se ver prevalecer as vivências, sobre os exageros formais, ainda que para torná-las, oficialmente aceitas, na aparente contradição de refutar o formalismo em busca do reconhecimento formal do Estado. Na verdade, o que se pretende é inserir no sistema, o que antes era marginal e excluído, perseguindo o ideal democrático nas mais diversas searas. Ainda assim, a abrangência das principais mudanças não foi muito além do contorno das famílias, praticamente se limitando a dizer se o vínculo familiar existe ou não e, existindo, quais são seus principais efeitos patrimoniais. Para a preocupação se voltar, de maneira mais enfática, à intimidade das relações de família, sobretudo das relações parentais, ressaltando os interesses puramente existenciais como interesses juridicamente merecedores de tutela, foi preciso em 2004, que a mídia veiculasse três histórias de pessoas que, sentindo-se abandonadas por seus 15 pais, buscaram amparo jurídico, resultando em decisões polêmicas acerca da reparabilidade dos prejuízos advindos da falta de afeto.1 Apesar de existir no direito brasileiro, em diversos diplomas legais, inclusive na Constituição Federal vigente, previsão quanto ao conteúdo jurídico das relações do poder familiar, abrangendo principalmente, os interesses existenciais, foram levantadas inúmeras indagações acerca da moralidade das ações impetradas, tendo em vista que, em princípio, a indenização pela falta de afeto mercantilizaria as relações e seria contrária ao que se espera, natural e culturalmente, das experiências entre pais e filhos. Muitas dúvidas foram levantadas acerca das reais intenções dos autores nos referidos processos, quando buscavam satisfação econômica em substituição da convivência familiar saudável que não tiveram. E para tornar o debate mais polêmico, argumentavase que a negligência, sobretudo a paterna, estaria inserida em outros campos normativos, para ser regulada, tão somente por normas religiosas ou morais, tendo em vista que o Estado não poderia invadir a intimidade da família, buscando ponderar o imponderável. Talvez um primeiro e apressado contato com o tema, remeta a tais conclusões, mas, na análise mais cuidadosa de nosso ordenamento jurídico, se verá que aqueles comportamentos naturalmente esperados de um pai ou de uma mãe são, na verdade, condutas obrigatórias impostas, sobretudo, pela Constituição Federal, pelo Código Civil e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. São deveres geradores de obrigações e não, de meras faculdades à mercê da livre vontade das pessoas. A liberdade encontra-se antes, no âmbito do planejamento familiar e após, o que se verifica são regras de conduta exigíveis e metas principiológicas a serem perseguidas, ressaltando assim, a responsabilidade parental. O principal objetivo desta tese é apresentar a plausível aplicação das normas que, usualmente regem o direito patrimonial para conferir eficácia aos princípios e regras que lastreiam os direitos existenciais, nas relações entre pais e filhos, durante o poder familiar. O ordenamento jurídico brasileiro elenca uma série de deveres típicos do poder familiar e entre eles, encontram-se tanto os que se voltam à satisfação de interesses econômicos, como os que apontam para a formação essencial da personalidade dos 1 Ago/2003 – Comarca de Capão da Canoa; Abr/2004 – 7ª Câmara Cível do TAMG e Jun/2004 – 31ª Vara Cível da Comarca de São Paulo. 16 filhos. Como se tratam de interesses exigíveis e, salientada sua relevância no caput do art. 227 constitucional, revestidos de prioridade absoluta, cabe ao Estado assegurar meios capazes de trazer eficácia à ordem sob o risco de ver o seu comando esvaziado. No que tange às obrigações patrimoniais, não se questiona a utilização de meios processuais que garantam o seu cumprimnto, a exemplo das ações de alimentos e de todos os efeitos que delas decorram, como a possibilidade de prisão do devedor. No entanto, o mesmo não acontece quando nos direitos a serem tutelados, inexiste o interesse econômico. Diante de tantas opiniões diferentes acerca da possibilidade jurídica (ou possibilidade moral) de reparação dos danos que decorram do abandono afetivo, bem como quanto à possibilidade jurídica (ou possibilidade moral) da interferência do Estado na intimidade do ambiente familiar, condenando pais e mães ao pagamento de indenizações ou, antes e para evitar tal desfecho, utilizando a tutela inibitória para tornar efetivos os interesses tanto dos filhos quanto dos próprios pais, propõe-se mostrar que os deveres jurídicos dos pais não se confundem com qualquer obrigação de sentir amor, mas antes, consistem em verdadeiras obrigações de fazer e não fazer, com a finalidade principal de auxiliar os filhos a crescerem e se tornarem pessoas sociais, saudáveis e felizes. II Método A abordagem metodológica da tese é quase totalmente, dogmática, seguindo um enfoque analítico que abrange os conceitos básicos e elementares de sua temática central, compreendendo basicamente, o Direito Constitucional e o Direito Civil, como pode se verificar ao longo de todo o trabalho. Na seara do Direito Civil, apesar de, aparentemente, se tratar de um tema próprio do Direito de Família e apesar das ideias terem nascido a partir da doutrina mais avançada lançada, em sua maioria, pelos membros do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), poderá se constatar que nenhum dos capítulos versa sobre questões puramente de família, remetendo à análise de temas mais afeitos à Parte Geral do Direito Civil e ao Direito das Obrigações, com dois capítulos reservados a este último, o III e o V. A parte geral do Direito Civil e algumas noções de Lógica Jurídica são os principais objetos de análise do capítulo II. 17 No campo do Direito Constitucional, a atenção se volta para o capítulo III, inserindo a convivência familiar como direito fundamental e abordando o papel dos princípios no ordenamento jurídico contemporâneo, sua estrutura e função para verificar as soluções mais apropriadas aos objetivos constitucionais, quando ocorrer o conflito de interesses, a partir da técnica da ponderação. A escolha pelo direito material levou a uma análise apenas indispensável, da dogmática processual, no que se refere à eficácia da sentença (e à efetividade dos direitos), a partir da utilização da tutela inibitória nos casos em que ainda for possível cumprir os deveres parentais. Também foi utilizado o método na perspectiva filosófica, para se chegar a uma ideia de afeto mais adequada às preocupações jurídicas e ainda, considerando a retórica, inserida nesta perspectiva, para analisar o voto proferido pelo ministro Fernando Gonçalves, no primeiro julgamento do STJ sobre a matéria. A referida análise retórica também participa do método empírico utilizado no trabalho, com o intuito de não se distanciar tanto da realidade em uma abrangência puramente conceitual. Não se procurou, aqui, usar a jurisprudência como argumento de autoridade, mas antes, apresentar na prática, as teses contrárias e a favor do objeto do presente estudo. A escolha pelo STJ, além do fato de ser um tribunal superior, se deve ao número reduzido de julgamentos sobre o tema, contando, atualmente, três em seu histórico, possibilitando mostrar o perfil do tribunal, induzindo à reflexão sobre a evolução da matéria, não por um critério quantitativo, mas, pelas argumentações utilizadas nos votos dos relatores dos julgamentos ocorridos em 2005 e, agora, em 2012. Por fim, como as relações jurídicas estão sempre em construção, não poderia ser diferente nas relações de família. Assim, não poderia ficar de fora o estudo crítico de obras que versem sobre os aspectos sociológicos e antropológicos do assunto, complementados pela análise psicanalítica no que interessa à construção emocional da pessoa como parte da realização de sua personalidade. III Desenvolvimento da Tese O capítulo I objetiva contextualizar as relações jurídicas entre pais e filhos nos cenários sociais, políticos e culturais em que a família esteve inserida durante milhares 18 de anos, em um mundo de raiz greco-romana. A situação dos menores também foi influenciada pelo modelo patriarcal que vigorou por quase toda a história da humanidade e por isso, a necessária apresentação do trânsito, no Brasil, do modelo patriarcal para o democrático. Também aqui, se encontra a análise constitucional do poder familiar, partindo de seus princípios mais importantes: dignidade, igualdade e solidariedade, que lastreiam o novo modelo familiar que enxerga cada integrante do grupo, observando os vulneráveis para melhor protegê-los. Finalmente, respondendo uma das indagações mais frequentes, o capítulo esclarece, na abordagem psicanalítica, o que se espera que uma geração transmita à outra, especificamente considerando as relações entre pais e filhos. O capítulo II pretende mostrar que o conceito de direito subjetivo ainda guarda importância na efetividade dos interesses que neles estão abrigados, ainda que compreendidos em um modelo mais amplo de situação jurídica. É a partir da análise desses direitos subjetivos que integram o poder familiar, com base na teoria de Hohfeld e nas regras da lógica jurídica que se esclarece a posição dos filhos menores enquanto sujeitos de direitos e, assim, titulares de pretensões que correspondem por outro lado, a verdadeiros deveres jurídicos de seus pais, enquanto vigore o poder familiar. Nessa abordagem, também são verificadas as liberdades, enquanto privilégios familiares, protegidos da interferência do Estado para, por fim, analisar a importância do afeto nas relações parentais, no intuito de esclarecer qual de suas muitas maneiras de se apresentar, vai ser a que, verdadeiramente, interessa ao direito. Após verificar a forte presença dos deveres jurídicos do pai e da mãe em relação aos interesses de seus filhos enquanto crianças e adolescentes, o capítulo III passa a analisar as razões da resistência de muitos, em considerar tais deveres, como obrigações em seu sentido técnico, mostrando que a negação tem sua base alicerçada em um momento cultural que não é mais o atual. É também neste capítulo que se vai abordar os conceitos e elementos basilares do direito das obrigações para defender a tese da possibilidade de relações obrigacionais com interesses e prestações puramente morais, no sentido de não haver nelas, nenhum conteúdo econômico e aqui, poder inserir as obrigações parentais que se voltam a realizar os direitos existenciais de seus filhos na vigência do poder familiar. O capítulo IV trata da convivência familiar, como um direito fundamental que também se faz necessário como instrumento para o cumprimento da maior parte das 19 obrigações parentais na busca da realização do melhor interesse das crianças e adolescentes em seu direito à proteção integral. Numa perspectiva constitucional, aqui também se verifica a adequação da técnica da ponderação para superar os conflitos que surgirem entre direitos de base principiológica. Neste capítulo, ainda, será apresentada a mediação, como meio mais eficaz de transformação dos conflitos nas relações de família, sobretudo nas relações entre pais e filhos, buscando ainda, viabilizar a convivência, para resgatar a saúde das relações e com isso, evitar as medidas mais enérgicas, próprias das regras do direito das obrigações. No capítulo V, diante do descumprimento das obrigações parentais, seja pelo abandono, pela alienação parental ou por outras condutas também reprováveis, apresentam-se as medidas adequadas a forçar o seu cumprimento, como a aplicação de multas, na tutela inibitória, assim como a aplicação da responsabilidade civil, enquanto consequência do inadimplemento, com a finalidade de reparar os prejuízos por ele causados, ainda que se tratem de prejuízos não econômicos, como nos danos morais ou nos danos que correspondam à perda da chance. Nesse último capítulo são apresentados os votos dos relatores dos julgamentos do abandono afetivo no STJ, demonstrando que o caminho que se vem se abrindo para as vivências entre pais e filhos é o da responsabilidade para a concretização da dignidade. 20 CAPÍTULO I PODER FAMILIAR – NOVOS PARADIGMAS NA TRAVESSIA PATRIARCADO À FAMÍLIA DEMOCRÁTICA CONTEMPORÂNEA DO 1.1 Patriarcado como Modelo Milenar de Família. 1.2 Patriarcado no Brasil. Mulheres, Filhos e Sociedade. 1.3 Decadência da Autoridade Paterna 1.4 Poder Familiar na Constituição Federal de 1988. Para a Realização da Dignidade, Igualdade e Solidariedade. 1.4.1 Dignidade Humana, como Princípio Norteador das Relações Humanas, aplicável ao Direito de Família.1.4.2 Sem Igualdade, não há Dignidade. 1.4.3 A Solidariedade na Repersonalização dos Direitos Civis com Ênfase nas Relações de Família 1.5 Conteúdo Constitucional do Poder Familiar 1.6 Poder Familiar no Direito Civil Brasileiro 1.7 Para Onde Apontam os Deveres Parentais do Poder Familiar 1.8 Interferência Estatal e Intimidade Familiar 1.1 Patriarcado como Modelo Milenar de Família Entre as várias relações jurídicas possíveis em uma sociedade ocidental organizada, pode-se dizer que as familiares foram das que sofreram mudanças mais significativas. E o que mais impressiona, é o curto espaço de tempo em que ocorreram, considerando o tempo de existência humana, o tempo de existência consciente e o palco das transformações que foi o século XX. Um quase nada temporal. Mas, há explicação para tanto. O século XX vivenciou as consequências de duas das mais importantes revoluções do passado, a francesa e a industrial, assim como foi nele que a humanidade experimentou duas grandes guerras mundiais, uma em seu alvorecer e outra em meio caminho. Entre glórias e tragédias, novos rumos sociais foram traçados. Família e sociedade guardam relação bastante estreita, reconhecida, inclusive, pela Constituição Federal.2 A primeira corresponde a um microcosmo da segunda.3 Com 2 Art. 227. “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. “A família, átomo da sociedade civil, é a responsável pelo gerenciamento dos “interesses privados”, cujo bom andamento é fundamental para o vigor dos Estados e o progresso da humanidade. Cabe-lhe um semnúmero de funções. Elemento essencial da produção, ela assegura o funcionamento econômico e a transmissão dos patrimônios. Como célula reprodutora, ela produz as crianças e proporciona-lhes uma primeira forma de socialização. Garantia da espécie, ela zela por sua pureza e saúde. Cadinho da consciência nacional, ela transmite os valores simbólicos e a memória fundadora. É a criadora da cidadania e da civilidade. A “boa família” é o fundamento do Estado e, principalmente para os republicanos, como assinala Jules Sion em Le devoir [O dever] (1878), existe uma continuidade entre o amor à família e à pátria, instâncias maternais que se confundem, e o sentimento de humanidade. Daí o interesse crescente do Estado pela família: em primeiro lugar pelas famílias pobres, elo fraco do sistema, e a seguir por todas as outras.” PERROT, Michelle. Funções da Família. In: PERROT, Michelle (org). 3 21 base na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, que estabelece em seu art. 16.3 “A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado”, Paulo Lôbo alerta que “a família não é célula do Estado (domínio da política), mas, da sociedade civil, não podendo o Estado tratá-la como sua”.4 Não se pode compreender a família, sem verificar a sociedade na qual ela se insere. Assim, também não se pode pensar em família, sem compreender aspectos sociais importantes, como a influência econômica e religiosa. Voltando a um passado distante, é possível encontrar algumas respostas para muitos comportamentos que perduraram até pouco tempo, assim como também, para alguns que ainda se mantém bem vivos, ainda que alicerçados em bases antigas que não cabem mais em uma sociedade plural e democrática. A cultura da supremacia masculina em face da mulher, por exemplo, conforme Regina Lins,5 teve início ainda, no período neolítico, momento em que ele se dá conta de ser o responsável pela procriação. Antes dessa descoberta, as mulheres tinham grande importância para o grupo, levando-se ao extremo de atribuir a elas, a causa da fertilidade dos campos. A divindade, inclusive, era feminina. Os homens do paleolítico e, ainda em parte do neolítico, não tinham a consciência de sua participação na origem dos filhos gerados pelas mulheres. A noção do seu papel na reprodução, só ocorreu no momento em que surge a necessidade de se fixar na terra, para fins de realizar atividades de agricultura e pastoreio. A partir do momento em que abandonam a caça e participam daquelas atividades junto às mulheres, passam a conviver mais com os animais, o que os leva a observar que as ovelhas segregadas não produziam nem cordeiros, nem leite. No entanto, verificavam que isso acontecia exatamente em períodos constantes, após o carneiro cobrir a ovelha. Ainda conforme a autora, outra importante descoberta segue a essa: o carneiro, não era apenas responsável pela fertilização de uma ovelha por vez, mas, poderia ser ao mesmo tempo, capaz de emprenhar mais de 50 delas. Essa percepção foi decisiva para a mudança de comportamento em relação à autoridade de acordo com o sexo, dessa vez o masculino. O macho não era, simplesmente, parte do processo de geração de vida. Sua História da Vida Privada. Da Revolução Francesa à Primeira Guerra. Tradução: Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2009 (p. 91-106). p. 91. 4 LÔBO, Paulo. Famílias.1 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 1- 2. 5 LINS, Regina Navarro. A Cama na Varanda. Arejando nossas ideias a respeito de amor e sexo. 3 ed. Rio de Janeiro: BestSeller, 2008, p. 21- 29. 22 participação tinha um poder maior, autorizando o homem a exercer uma autoridade que perdura, com mais ênfase em uns lugares que em outros, por milhares de anos. A família ocidental foi fortemente influenciada pelo modelo greco-romano. Assim, para melhor compreendê-la, é preciso buscar suas raízes na antiguidade, quando a autoridade masculina ainda era a realidade, dentro e fora da família. Em Grécia e Roma antigas, segundo os ensinamentos de Fustel de Coulanges,6 os laços de união dos membros de uma família, não tinham origem na afeição natural e nem mesmo, na identidade do sangue. Para aquelas civilizações, ainda que existissem os afetos, para o direito isso nada significava. Na busca de conhecer as razões que conferiram origem às famílias, Fustel de Coulanges parte da análise de textos de historiadores romanos que concluíam que o fundamento da família romana seria o poder paterno ou marital. Coulanges, no entanto, refuta essa ideia, afirmando que a força seria um efeito e, não, uma causa. A origem e a razão estariam na religião e a força masculina, à época, resultava dela. A “família antiga era mais uma associação religiosa que uma associação natural”7 O sentido grego de família era apontado pelo vocábulo que a designava: epístion, significando literalmente, “aquilo que está junto de um fogo doméstico”, assim “Uma família era um grupo de pessoas a quem a religião permitia invocar o mesmo fogo doméstico e oferecer o repasto fúnebre aos mesmos ancestrais.” 8 O casamento foi a primeira instituição estabelecida pela religião doméstica, que não pertencia, exclusivamente, ao homem, uma vez que havia a participação da mulher no culto, como filha, junto ao pai e como esposa, participando dos atos religiosos de seu marido. No entanto, a mulher estava longe de ser a figura central da religião doméstica, tanto é que, pelo casamento, rompiam-se as relações da mulher com a religião doméstica dos seus pais, passando, então, a sacrificar ao fogo doméstico de seu marido.9 6 COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. Estudos sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia e de Roma. Tradução: Edson Bini. 4 ed. São Paulo: Edipro, 2009, p. 39-45. 7 “Não há dúvida que não foi a religião que criou a família, mas seguramente foi ela que lhe deu suas regras, daí resultando que a família antiga recebeu uma constituição tão diferente daquela que teria recebido se os sentimentos naturais tivessem constituído por si sós seu fundamento.” COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. Estudos sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia e de Roma. Tradução: Edson Bini. 4 ed. São Paulo: Edipro, 2009, p. 40. 8 COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. Estudos sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia e de Roma. Tradução: Edson Bini. 4 ed. São Paulo: Edipro, 2009, p. 40. 9 COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. Estudos sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia e de Roma. Tradução: Edson Bini. 4 ed. São Paulo: Edipro, 2009, p. 41. 23 Ainda que houvesse a participação feminina no culto ao fogo doméstico e ao repasto aos antepassados, é ao homem, como marido ou pai que é dado o poder de ser o primeiro junto ao fogo doméstico. Tanto a família como a religião era perpetuada através do pai e somente ele, representa toda a sua descendência. A autoridade, então, só poderia ser masculina dentro de uma casa.10 Nas antigas civilizações greco-romanas, a autoridade masculina, não se resumia ao poder e superioridade exercidos sobre a mulher. Os filhos também estavam sob a decisão do pai, tanto em relação às questões patrimoniais, como também, para as de cunho existencial. A própria condição de filho, dependia da vontade do pai. No Império Romano, conforme estudo de Paul Veyne11, a vinda ao mundo de um romano, não dependia unicamente de um fato biológico. Dependia da decisão do chefe da família, simbolizado pelo ato de levantar o recém-nascido do chão, onde era colocado logo após o parto. Esse era o gesto que levava a criança, a ser reconhecida como filho. Por outro lado, aquela que não fosse levantada, seria enjeitada, exposta diante da casa ou num “monturo público”. Embora não houvesse qualquer necessidade de justificar a rejeição dos recém-nascidos, isso acontecia, normalmente, por razões de natureza econômica. Ou pela pobreza que impossibilitava alimentar e educar mais uma pessoa ou para evitar quebra de testamentos já selados. Algumas vezes, para afastar o fruto de uma suspeitada infidelidade. A lei familiar era representada, então, pelo pater, reduzindo a mulher, a uma posição secundária, inclusive com relação aos filhos que paria. Por essas razões, a família se desenvolve no modelo patriarcal, nome que encontra justificativa no poder do pai em relação à sua descendência, e na autoridade do marido em relação à mulher e aos escravos. Diante do exposto, pode-se afirmar que o patriarcado firmou-se, gradativamente, em um processo que teve início por volta de 3100 a.C. e vai até, mais ou menos 600 a.C. quando alcança, então, o seu ápice, passando em seguida, a uma lenta, quase 10 COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. Estudos sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia e de Roma. Tradução: Edson Bini. 4 ed. São Paulo: Edipro, 2009, p. 73-79. 11 VEYNE, Paul. O Império Romano. In: ARIÈS, Philippe; DUBY, George (coords.) História da Vida Privada. Do Império Romano ao Ano Mil. Tradução: Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. v 1, (p. 17-211). p. 21- 23. 24 imperceptível descida, que acentua abruptamente, ao fim do século XVIII, com a Revolução Francesa12, “quando a democracia pretende aplicar-se a todos”.13 É neste novo cenário, democrático, que acontece a invenção do amor como força originadora das famílias. O sentimento é necessário ao processo de democratização que se iniciava: “ao amor é atribuída a nova tarefa de fundar o casamento e de, ao fazê-lo, superar as fronteiras entre os diversos estados que compõem a sociedade”.14 Afastando as razões de ordem religiosa, políticas ou econômicas, o amor servia a todos como sentimento comum aos seres humanos. A semente da igualdade começa a germinar. No entanto, ainda que tenha sofrido um grande estremecimento nas bases que o justificaram durante milênios, o patriarcado no ocidente, não deixou de existir. Na realidade, ele existe, ainda que alicerçado no inconsciente coletivo que impulsiona a vida à despeito de reconhecimentos formais que ditem o contrário. Muitas mulheres continuam submissas aos seus companheiros ou maridos. Muitos vínculos de filiação são negados em razão apenas, da vontade masculina. Se juridicamente, é possível coagir um homem a reconhecer sua paternidade, socialmente, a negligência e o abandono masculino, com relação aos seus filhos, não causa muito estranhamento. São homens e, assim, como na Cidade Antiga, a paternidade ainda é, de fato, um ato de escolha. Remodelar completamente, a forma pela qual os seres humanos vêm se relacionando, praticamente, desde as origens de sua vida em comunidade, não é fácil. Portanto, a sociedade brasileira atual, também influenciada pela história, não poderia deixar de apresentar resquícios de um patriarcado ensinado pelo europeu colonizador. 1.2 Patriarcado no Brasil. Mulheres, Filhos e Sociedade O Brasil nasceu e se desenvolveu, sob a influência do europeu que o moldou através de sólidas bases patriarcais, importadas da cultura greco-romana, e ainda da influência moura e cristocêntrica. Fátima Quintas aponta um Brasil colonial, essencialmente família e assim, para contar e entender a história brasileira, não se pode 12 Vale ressaltar que, apesar de apontarmos, o enfraquecimento do poder do pai, a partir da Revolução Francesa, isso não se deu da noite para o dia. O enfraquecimento da autoridade masculina na família foi, paulatinamente, acontecendo desde Roma. Piano, piano, até mostrar-se mais claramente, conforme será visto ainda neste capítulo. 13 LINS, Regina Navarro. A Cama na Varanda. Arejando nossas ideias a respeito de amor e sexo. 3 ed. Rio de Janeiro: BestSeller, 2008, p. 42. 14 SCHWANITZ, Dietrich. Cultura. Tudo o que é preciso saber. Lisboa: Dom Quixote, 2004, p. 402. 25 fazê-lo fora do ambiente doméstico, em um cenário que, inicialmente, era autocrático e oligárquico. Em relações que se interlaçavam, na família do Brasil nascente, “se processaram outros brasis: o político, o monárquico, o federativo e o republicano.”15 A estrutura do Brasil colonial era a que melhor atendia às necessidades sociais e econômicas dos portugueses, ou seja, era uma sociedade baseada na agricultura, escravocrata e com condições pautadas na “estabilidade patriarcal da família.”16 As famílias, no Brasil do período colonial, eram assim hierarquizadas e à mulher portuguesa não cabia outro papel que não o de virar matrona velha e ociosa. Isso porque as meninas como eram acostumadas, casavam muito cedo, aos 13, 14, 15 anos, tornando-se mães logo e sucessivas vezes. A interrupção da adolescência dessas meninas-mulheres e a agressão aos seus corpos ainda em formação, causada por várias gestações, impossibilita essas mães de exercerem a maternagem de seus filhos, que deveria ser realizada por uma pessoa mais robusta, surgindo, então, a figura da “mãepreta” que aleitava e mimava, sendo então, responsável pelo lado mais afetivo da infância17. Percebe-se que a atenção e os cuidados dirigidos aos filhos do Brasil nascente, são bem diferentes dos que se praticam e exigem nos dias atuais. A cultura da época permitia que algumas pessoas fossem “coisificadas” e admitia a dominação daqueles que não fossem homens, adultos, brancos e portugueses. Como esperar que se percebessem, nos pequenos, pessoas merecedoras de atenção e cuidados diferenciados, pelo fato de viver um momento especial de formação, não apenas de seus corpos, mas, principalmente, de suas personalidades? Fátima Quintas ensina que os meninos e meninas, nascidos àquela época, em famílias legítimas, eram bem-vindos como criancinhas adoráveis, mas até atingirem os seis ou sete anos, quando o processo de crescimento, que faz nascerem os adultos, era 15 QUINTAS, Fátima. A Família Patriarcal. In: QUINTAS, Fátima (org) A Civilização do Açucar. Recife: Sebrae, Fundação Gilberto Freyre, 2007, (p. 85-123), p. 90. 16 FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Círculo do Livro, 1980, p. 43. 17 “O que houve, entre nós, foi a impossibilidade física das mães de atenderem a esse primeiro dever de maternidade. Já vimos que se casavam todas antes do tempo; algumas fisicamente incapazes de ser mães em toda a plenitude. Casadas, sucediam-se nelas os partos. Um filho atrás do outro. Um doloroso e contínuo esforço de multiplicação. Filhos muitas vezes nascidos mortos – anjos que iam logo se enterrar em caixõezinhos azuis. Outros que se salvavam da morte por milagre. Mas todos deixando as mães uns mulambos de gente”. FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Círculo do Livro, 1980, p. 378. 26 abreviado, suprimindo-se a adolescência que se apresentava de maneira artificial, endurecida na falsa condição de mini adultos. O tornar-se “maduro” assumiu ares de imperativo categórico, porque o canavial não permitia deslizes de infância. Portanto, os ritos de passagem foram praticados com um rigor inigualável. Rigor e precocidade. Por conseguinte, a criança pouco se entendeu com a meninice. Foi órfã da sua puerilidade. A impaciência de um crescimento fora de hora encarregou-se de arrancar-lhes dos braços as bonecas de pano feitas pelas negras. Afinal, o Brasil precisava de gente para colonizar terras tão vastas e os úteros ainda virgens clamavam por fecundação. Crianças por pouco tempo.18 Essa postura não era praticada somente no Brasil. Se nossa sociedade surge do que aprendemos com o europeu, também por lá, os pequenos eram encarados como adultos. A infância e adolescência, como fases especiais para a formação da pessoa, ainda não tinham sido assim, percebidas. A inexperiência, a ignorância e a dificuldade de se conter, eram percebidas como meros déficits. Não se fazia diferença entre o mundo dos adultos e o mundo das crianças.19 Com o declínio do patriarcado, no Brasil, novos olhares se lançam sobre a sociedade e seus integrantes. Para Paulo Lôbo, podem ser apontadas duas principais razões para que a família patriarcal saísse de cena, ao longo do século XX: a urbanização acelerada e a emancipação feminina20. Tanto uma como a outra tiveram impulso com as mudanças nas relações de trabalho, causadas pela revolução industrial, no final do século XVIII. No entanto, o “sair de cena”, não pode significar o desaparecimento por completo de um modelo que sempre ditou a postura dos brasileiros. O historiador Sérgio Buarque de Holanda, ao explicar a natureza cordial do brasileiro,21 aponta a influência daquela família rural e patriarcal. No cenário que acompanhou a transição do trabalho industrial, que exigia relações cada vez mais impessoais, tem início a crise que opõe a “velha ordem familiar”, hierárquica e voltada à educação de seus filhos para o círculo doméstico, à exigência de uma educação que 18 QUINTAS, Fátima. A Família Patriarcal. In: QUINTAS, Fátima (org) A Civilização do Açucar. Recife: Sebrae, Fundação Gilberto Freyre, 2007, (p. 85-123), p. 98. 19 SCHWANITZ, Dietrich. Cultura. Tudo o que é preciso saber. Lisboa: Dom Quixote, 2004, p. 403. 20 LÔBO, Paulo. Famílias. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 15. 21 BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio. Raízes do Brasil. 26 ed. 34 reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 139-151. 27 objetiva a independência desses filhos, resumindo a educação familiar à “apenas, uma espécie propedêutica da vida na sociedade fora da família.”22 O novo modelo que lança os filhos para longe da família, em nome das novas virtudes antifamiliares, como as que se arrimam na iniciativa pessoal e na competitividade, dá origem a uma “crise de adaptação dos indivíduos ao mecanismo social” que se opunha ao meio patriarcal que nem viabilizava a liberdade e nem a igualdade23. No entanto, ressalta o historiador que “só hoje”, o ambiente familiar que circunscreve os horizontes da criança dentro da paisagem doméstica é considerado uma “escola de inadaptados e até de psicopatas.” Antes, ao contrário, era aquela postura que garantia a prosperidade e ordem sociais24. No Brasil, onde imperou, desde tempos remotos, o tipo primitivo da família patriarcal, o desenvolvimento da urbanização – que não resulta unicamente do crescimento das cidades, mas, também do crescimento dos meios de comunicação, atraindo vastas áreas rurais para a esfera de influência das cidades – ia acarretar um desequilíbrio social, cujos efeitos permanecem vivos ainda hoje.25 Vive-se hoje, um momento de transição, quando o problema maior é a convivência de novos e antigos valores, marcada pelo giro que se inicia na queda do poder daquele, que há milênios, era o chefe de família, assim como na ascensão daqueles que sempre foram seus subordinados: mulheres, crianças e adolescentes. Some-se a isso, a ausência de definições quanto a papéis e funções. As atuais exigências sociais, os ideais de igualdade, dignidade e liberdade, a atual cultura ocidental, contrapostos à memória registrada pela história da humanidade, conduzem as famílias ocidentais a um remodelamento necessário, considerando ao mesmo tempo, o ideal democrático, os direitos humanos e as tradições ensinadas pelas gerações passadas. 22 BUARQUE DE HOLANDA, Letras, 2010. p.143. 23 BUARQUE DE HOLANDA, Letras, 2010. p. 144. 24 BUARQUE DE HOLANDA, Letras, 2010. p 145. 25 BUARQUE DE HOLANDA, Letras, 2010. p. 145. Sérgio. Raízes do Brasil. 26 ed. 34 reimp. São Paulo: Companhia das Sérgio. Raízes do Brasil. 26 ed. 34 reimp. São Paulo: Companhia das Sérgio. Raízes do Brasil. 26 ed. 34 reimp. São Paulo: Companhia das Sérgio. Raízes do Brasil. 26 ed. 34 reimp. São Paulo: Companhia das 28 1.3 Decadência da Autoridade Paterna Uma das principais características da família ocidental contemporânea é a igualdade entre seus membros. Um regime democrático não pode permitir qualquer discriminação, conforme está expresso na Constituição Federal Brasileira, no inciso IV do art. 3º que elenca os objetivos fundamentais da república26, não dando espaço à ideia de supremacia em razão de sexo. O homem sai do pedestal doméstico para dar espaço e ladear outros atores da relação familiar. Atualmente, autoridade na família, restrita às relações parentais, tem um sentido mais protetivo, transcendendo os interesses de seu titular para satisfazer os interesses daqueles cujas existências justificam e dão origem a tal poder. O direito de ser protegido não inferioriza ninguém, apenas ressalta uma circunstância de vulnerabilidade, muitas vezes temporária, como acontece com as crianças e os adolescentes, que por suas curtas experiências em razão da idade, necessitam ser guiados por pessoas experientes, a fim de viabilizar que sejam preparadas pessoal e profissionalmente. O crescimento físico e emocional dos mais jovens é viabilizado, normalmente, pela presença constante de pessoas adultas que, por esta condição, somada à proximidade familiar, parecem aptas a viabilizar tal formação. O grande desafio, hoje, é considerar a rapidez das mudanças culturais e sociais, acompanhado da lentidão no processo de transformar, no inconsciente individual e coletivo, a cultura que justifica as relações familiares há milênios e que fora importada da Europa para o Brasil, estando presente em boa parte de nossa história contada e vivida, marcando ainda, a contemporaneidade. Dizer, no entanto, que apenas hoje, vive-se o declínio do patriarca, seria uma inverdade. Também não prospera o argumento de que, apenas no século XX, inicia-se o processo de mudanças nas relações de família. Mesmo que o patriarcado tenha sido o modelo que perdurou por quase toda a história humana, a autoridade do pater não obedeceu a uma constância. Ele já vinha se transformando, paulatinamente, desde a Antiguidade. O que aconteceu no século XX, foi, apenas, a aceleração desse processo. 26 “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (…), IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.” 29 Em estudo que pretende compreender a figura paterna, na perspectiva psicanalítica, Luigi Zoja,27aponta que a decadência daquela personagem forte, tem início na própria Antiguidade, quando Cristo introduz os conceitos de caridade e amor ao próximo, antecipando o princípio da igualdade em uma ampla fraternidade não hierarquizada. “Isso significa que o pai não era mais a imagem exclusiva de Deus na Terra, nem Deus, a imagem do pai no céu: as duas realidades, terrestre e celeste, incorporavam a nova igualdade radical que colocava o filho.” 28 (grifo do autor). O enfraquecimento da autoridade paterna sofre o golpe mais radical com a revolução francesa e a queda do poder dos reis. “Além das cabeças que caem nas cestas com um rumor surdo, também os símbolos são decapitados”29 Seguindo à queda do poder dos reis e da Igreja, avança o laicismo. Pode-se dizer, também, que o surgimento do sistema escolar que também contribuiu para a mudança de paradigma. Influenciada pela obra Émile de Rousseau, que centrava a educação no desenvolvimento natural da criança, a educação dos filhos é tirada do pai e transferida a terceiros. Retira-se mais parte do manto de autoridade do pai. Com a revolução industrial, novas mudanças foram introduzidas no ambiente familiar. A entrada de mulheres e crianças no mercado de trabalho termina por afastar a exclusividade masculina, no papel de provedor. Duro golpe na figura do chefe de família. Pior ainda, alerta Zoja, submetia sua mulher e filhos a uma autoridade externa e não pessoal. Com os avanços na industrialização e o surgimento das primeiras normas de proteção ao trabalho, o homem retoma a hegemonia no campo laboral, recuperando um pouco e brevemente, o poder que a história vinha lhe tirando. Retoma, assim, o seu 27 ZOJA, Luigi. O Pai. História e Psicologia de uma espécie em Extinção. Tradução: Péricles Machado Jr. São Paulo: Axis Mvndi, 2005. p. 151–206. 28 ZOJA, Luigi. O Pai. História e Psicologia de uma espécie em Extinção. Tradução: Péricles Machado Jr. São Paulo: Axis Mvndi, 2005. p. 156. 29 Inclusive, Zoja ainda vincula alguns ideais da Revolução às experiências familiares de seus principais líderes. O poder do rei, representado em casa, no poder do pai, estava em xeque. “De um lado, mudam por via política, as normas que concernem ao pai e à família; de outro, a renovação política é influenciada pelos sentimentos privados: cada um associa a autoridade e, principalmente, o rei, às próprias recordações familiares, à própria imagem do pai (…) as teorias políticas desse período deveriam ser lidas em conjunto com as biografias privadas dos seus protagonistas” ZOJA, Luigi. O Pai. História e Psicologia de uma espécie em Extinção. Tradução: Péricles Machado Jr. São Paulo: Axis Mvndi, 2005. p. 161-163. O autor explica que, enquanto Voltaire rejeitava o pai, Rousseau, embora criado por um bom e dedicado pai viúvo, obstinou-se na reforma da educação, a ponto de não exercer sua própria paternidade, entregando cada um de seus 5 filhos à institutos para crianças abandonadas. Voltaire derrubou seu pai externo e Rousseau, o seu pai interno. 30 posto de provedor. No entanto, a necessidade de ausentar-se para conseguir a renda para a família, o fazia estranho para os filhos. Perdem a autoridade sobre os filhos e o porto seguro em sua imaginação e seus corações: pois as suas ocupações, as suas jornadas, os seus próprios sentimentos voltam-se para o longe e tornam-se estranhos aos filhos. Produzem renda, mas não produzem mais o ensinamento direto e a iniciação dos filhos na vida adulta: funções fundamentais que não podem ser substituídas por intervenções profissionais e institucionais, do mesmo modo pelo qual o mestre-escola não pode suprir o aprendizado da primeira língua, pois ela deve ser transmitida nos recônditos da família.30 Zoja ainda analisa o efeito devastador das grandes guerras do século XX, no poder do pai, tendo em vista que a simbologia comparativa entre o pai de família e a autoridade militar, a partir do momento em que as pessoas passaram a sofrer mais do que se entusiasmar com as guerras, tornou o que era positivo no que de mais destrutivo podia se imaginar. Primeiro pais ausentes pela guerra, pais que matam e que morrem. Pais que deserdam. Pais que proferem ordens mortais e pais que as acompanham. “A novidade, certamente, não é a expectativa de que o pai descreva a guerra ao filho, mas, que deva prestar contas da guerra ao filho, e desse modo ser julgado por ele”31 Ao mesmo tempo em que decai a hegemonia masculina, surgem necessidades econômicas e políticas que fortalecem os movimentos feministas, alicerçados no próprio espírito democrático, vivenciados por muitos países ocidentais e que autorizam, quase sem precedentes, a participação efetiva das mulheres na vida que segue além de suas casas e de seus problemas domésticos. A partir de então, a evolução social se dá numa velocidade jamais experimentada pelo homem. Por isso mesmo, prender-se a conceitos e tradições rígidas que, embora pareçam oferecer estabilidade e certeza, não é mais condizente com o modo atual, plural e veloz de ser “humano”. 30 ZOJA, Luigi. O Pai. História e Psicologia de uma espécie em Extinção. Tradução: Péricles Machado Jr. São Paulo: Axis Mvndi, 2005. p. 167–168. 31 ZOJA, Luigi. O Pai. História e Psicologia de uma espécie em Extinção. Tradução: Péricles Machado Jr. São Paulo: Axis Mvndi, 2005. p. 178. 31 1.4 Poder Familiar na Constituição Federal de 1988. Para a Realização da Dignidade, Igualdade e Solidariedade No Brasil, a Constituição Federal de 1988 é um marco no pensamento jurídico nacional. Na verdade, o constitucionalismo “chega vitorioso”, nas palavras de Luís Roberto Barroso32, porque oferece às pessoas: a) legitimidade, por meio da soberania popular, através do Poder Constituinte; b) limitação do Poder, c) valores, que correspondem às conquistas sociais, políticas e ética que passam a integrar a Constituição. Os valores, quando positivados, são alçados à condição de princípios e o povo brasileiro conquistou, ao longo de sua história, muitos valores importantes, tais como a dignidade, a liberdade, a igualdade e a solidariedade. Expressos na Constituição Federal de 1988, como fundamentos e objetivos da república, os princípios não podem mais esperar sua aplicação, apenas quando da inexistência de regras que versem sobre determinada matéria. O caráter subsidiário dos princípios, ainda mantido no art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil33, não cabe mais no modelo constitucional de uma sociedade complexa, plural e democrática e caso a dignidade, igualdade, liberdade, solidariedade fossem recursos, apenas voltados para preencher espaços vazios do ordenamento, não teríamos nos afastado tanto do modelo patrimonialista e hierárquico, que na história, mostrou-se injusto e incoerente. A Constituição Federal Brasileira de 1988, não se limita às questões de direito público, versando ainda, fortemente, sobre os interesses privados. Ao inserir as relações privadas em seu conteúdo e ao colocar a dignidade como princípio da República, a constituição ressalta a pessoa humana, como o centro ao redor do qual, todo o ordenamento gravita, sempre no sentido de viabilizar os seus interesses, como razão e fim de todo e qualquer direito. Esse novo olhar sobre o direito, que resgata o protagonismo da pessoa humana, é o que alguns autores chamam de fenômeno da Repersonalização do Direito e não se deve confundir com o individualismo liberal que era, sem dúvidas, antropocêntrico, no 32 BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos Teóricos e Filosóficos do Novo Direito Constitucional Brasileiro (Pós-modernidade, Teoria Crítica e Pós-positivismo). In: BARROSO, Luís Roberto (org.) A Nova Interpretação Constitucional. Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 3ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. (p. 1-48), p. 10. 33 Que a partir da Lei 12.376/2010, passou a se chamar “Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB”, mantendo seu conteúdo. 32 entanto, particularizante e alienador. O indivíduo, nesse novo modelo, é considerado como pessoa relacional, assim, enquanto ser social que, em sua dignidade particular, viabiliza a dignidade do grupo em que está inserido. Trazendo a ideia de repersonalização, para as relações mais íntimas, Paulo Lôbo34 afirma que a família deve ser o espaço de realização da afetividade humana e, por isso, as antigas funções econômicas, políticas, religiosas, procracionais, não serviriam mais para justificar o agrupamento permanente. Os valores existenciais e a própria ideia de felicidade e responsabilidade, norteiam a vida familiar contemporânea. A família é, para o autor alagoano, “o espaço por excelência, da repersonalização do direito”35. Essa nova interpretação familiar encontra fundamento na própria hermenêutica constitucional, principalmente, por causa da efetividade da atual Constituição, cujas normas “conquistaram o status pleno de normas jurídicas, dotadas de imperatividade, aptas a tutelar direta e imediatamente todas as situações que contemplem”36. Somada a sua efetividade à condição de Lei Maior que norteia todo o ordenamento jurídico brasileiro, bem como à consideração dos princípios, como normas de aplicação direta (e não, subsidiária), tendo ainda, grande parte das regras constitucionais, forte conteúdo valorativo, o que as tornam regras de fundo principiológico. Em um ordenamento jurídico, como o do Brasil, iluminado pelas normas constitucionais vigentes, não deve se admitir mais, pensar em família, limitando-se ao modelo nuclear do século XIX, negando os diversos arranjos possíveis para sua origem, sua história e, até, seus objetivos. Não se deve afastar, principalmente, dos legítimos interesses existenciais de seus membros, considerando a sociedade democrática que espelha, então, uma família plural e responsável. 34 LÔBO, Paulo. Famílias. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 11. LÔBO, Paulo. Famílias. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 11. 36 BARROSO, Luis Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O Começo da História. A Nova Interpretação Constitucional e o Papel dos Princípios no Direito Brasileiro. In: BARROSO, Luis Roberto (org.) A Nova Interpretação Constitucional. Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 3ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. (p. 327-378), p. 329. 35 33 1.4.1 Dignidade Humana, como Princípio Norteador das Relações Humanas, aplicável ao Direito de Família A dignidade humana, fundamento da República, abrindo o texto constitucional37de 1988, aparece como alicerce da justiça e da paz mundial, na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, proclamada pela resolução nº 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas, logo após o término da 2º Grande Guerra que devastou o mundo, deixando a marca inapagável do tratamento mais cruel, desumano e injusto dirigido a uma parcela da humanidade considerada inferior pelos que promoveram o longo massacre. O artigo 1º da declaração, com a seguinte redação: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”, não apenas reconhece a dignidade como parte integrante e inerente às pessoas humanas, como estabelece seus pilares na liberdade, igualdade e espírito fraterno que pode ser traduzido pela solidariedade. Todavia, sua origem é mais longínqua e traduz o pensamento cristão pelo qual e “pela primeira vez, concebeu a ideia de uma dignidade pessoal, atribuída a cada indivíduo”38. Embora seja inegável a influência de outras religiões e doutrinas filosóficas, não parecendo correto, para alguns autores, imputar a originalidade e a exclusividade no cristianismo,39 o que difere, na dignidade cristã é o fato de que o cristianismo, desvinculado de qualquer nação ou Estado e voltado diretamente para o Deus único, coloca cada indivíduo, independentemente da comunidade organizada, em relação direta com Ele40, viabilizando a importância e o respeito, ou seja, a dignidade de cada um enquanto ser amado pelo Pai e irmãos entre si. O seu conteúdo e alcance desenvolvem-se paulatinamente, traduzindo em sua essência, o imperativo categórico de Kant, inspirando a regra ética maior que é o respeito pelo outro. Ainda, de acordo com o pensamento kantiano, o mundo social seria 37 “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (…) III – A dignidade da pessoa humana.” 38 MORAES, Maria Celina Bodin. O Princípio da Dignidade Humana. In: MORAES, Maria Celina Bodin (coord.) Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. (p. 1-60). p. 8. 39 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana. Parte I. In: BARRETO, Vicente de Paulo (coord.) Dicionário de Filosofia do Direito. São Leopoldo: Unisinos; Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 212. 40 MORAES, Maria Celina Bodin. O Princípio da Dignidade Humana. In: MORAES, Maria Celina Bodin (coord.) Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. (p. 1-60). p. 9. 34 composto de duas categorias de valores que são preço e dignidade. O primeiro, representando um valor externo de mercado e interesse privado e o segundo, valor interno, voltado à moral e de interesse geral41. Na mesma linha kantiana, para Ana Carolina Teixeira, a dignidade humana justifica-se na racionalidade e livre-arbítrio humanos, que os tornam capazes de interagir com os outros e com a natureza e, por isso, é contrário à dignidade “tudo o que possa reduzir a pessoa à condição de objeto.” 42 Canotilho explica as razões de dever constar, nas constituições, o princípio da dignidade humana. Em primeiro lugar, porque, como limite ao próprio poder, deve estar na Constituição. Em segundo lugar, porque se trata de um imperativo categórico, que deve estar na Constituição, porque implica também uma proibição total da transformação de um sujeito (que é a pessoa) em objeto. Em terceiro lugar, porque ela própria é um índice de que vivemos em comunidades inclusivas, e a dignidade é uma questão de reconhecimento recíproco de uns em relação aos outros (só temos dignidade uns em relação aos outros).43 Ainda assim considerada, apresentar e discorrer sobre o conteúdo da dignidade humana em uma perspectiva jurídico-constitucional é tarefa impossível de ser esgotada em poucas páginas, sobretudo, como alerta Ingo Sarlet, por sua natureza necessariamente polissêmica, ainda que nem todos os seus atributos se apliquem à dignidade da pessoa humana.44 Admitindo a dificuldade de conceituar e estabelecer um conteúdo para a dignidade da pessoa humana, ao mesmo tempo com a necessidade de fazê-lo, Ingo Sarlet apresenta o tema em três perspectivas diferentes: a dignidade em sua dimensão ontológica (enquanto qualidade inerente ao ser humano e por isso, não passível de cessão, renúncia, criação, sendo indestacável por ser essencial à sua própria humanidade); a dignidade como construção (contextualizada historicamente, não podendo ser vista de maneira fixista por, assim, ferir o pluralismo e a diversidade de 41 Apud MORAES, Maria Celina Bodin. O Princípio da Dignidade Humana. In: MORAES, Maria Celina Bodin (coord.) Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. (p. 1-60). p. 8. 42 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Família, Guarda e Autoridade Parental. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 69. 43 CANOTILHO, J.J. Gomes. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (org.) Canotilho e a Constituição Dirigente. 2 ed. São Paulo: Renovar, 2005, p. 21. 44 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana. In: BARRETO, Vicente de Paulo (coord.) Dicionário de Filosofia do Direito. São Leopoldo: Unisinos; Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 217. 35 valores que imperam nas sociedades democráticas contemporâneas, trata-se da dimensão cultural da dignidade que deve ser complementada por sua dimensão natural e, assim, interagirem mutuamente) e dignidade e intersubjetividade (em sua dimensão comunicativa e relacional). 45 Em todas as três perspectivas, encontramos as razões que permitem defender a dignidade familiar, ou a dignidade da pessoa humana enquanto ser-em-família, já que esta deve ser vista “como espaço comunitário por excelência para realização de uma existência digna e da vida em comunhão com outras pessoas”46. Especificamente com relação aos vínculos decorrentes do poder familiar, encontramos neles, sujeitos dignamente iguais, no entanto, diferentes em razão do momento de vida de seus partícipes. Considerar a diferença entre pais e filhos, justifica inclusive, a própria existência e sentido do poder familiar, no entanto, isso não implica em superioridade dos primeiros em relação aos últimos, mas antes, nas responsabilidades dos pais em face da vulnerabilidade dos filhos enquanto menores, a fim de garantir um crescimento digno e uma personalidade plena. Ana Carolina Teixeira enxerga o viés mais sublime da realização da dignidade, a partir da relação parental. Nas palavras da autora: É sob este prisma que se considera a dignidade dos co-partícipes da relação parental: como uma construção dual, perpassada pelo respeito mútuo. Isso porque, mesmo que os pais tenham muito a ensinar aos filhos, a contribuir para a construção da sua dignidade e personalidade, esses – mesmo sem saber ou sem querer – também ensinam muito aos pais.47 Por mais imperativa que seja a regra, o direito conhece a efetividade quando segue o mesmo sentido que os valores sociais. O contrário também pode apresentar suas verdades, assim, os princípios, como valores positivados, não somente impõem condutas, como norteiam objetivos a serem perseguidos. A dignidade humana ainda não é uma realidade geral, no entanto, sua força é tão presente nos anseios individuais e sociais que em breve, na perspectiva mais otimista, qualquer discussão a seu respeito já será manifestação do senso comum. 45 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana. In: BARRETO, Vicente de Paulo (coord.) Dicionário de Filosofia do Direito. São Leopoldo: Unisinos; Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 217-225. 46 LÔBO, Paulo. Famílias. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 38. 47 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Família, Guarda e Autoridade Parental. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 74. 36 1.4.2 Sem Igualdade, não há Dignidade É na igualdade, que também se alicerça a dignidade humana, não obstante o reconhecimento jurídico da existência de características diferentes entre as pessoas. Diferenças naturais que classificam os humanos em homens, mulheres, crianças, adolescentes, adultos e velhos. Diferenças sociais que classificam as pessoas em integrantes das classes A, B, C, etc., de acordo com a quantidade de dinheiro que são capazes de fazer circular no mercado. Diferenças religiosas que fazem do país, que já foi uma potência católica, um lugar onde se pratica livremente, o espiritismo, o protestantismo, o catolicismo, o candomblé, etc. Diferenças educacionais que apontam a existência de um mínimo de pessoas razoavelmente educadas convivendo com uma legião de completos analfabetos e de analfabetos funcionais. Diferenças culturais marcadas pelas raízes importadas, sobretudo da Europa e da África, culminando em uma variedade de expressões artísticas, marcadas, sobretudo, nas regiões mais influenciadas por esses estrangeiros. Diferenças que algumas vezes aproximam, no entanto, mais frequentemente, afastam muitas pessoas dos valores e objetivos constitucionais. Diferenças que encastelam uns, marginalizam outros e enfraquecem o ideal de dignidade para todos, principalmente quando as diferenças ressaltam para segregar e, não, para erradicar o preconceito e a discriminação, dignificando uma sociedade plural, formada por pessoas que são diferentemente iguais. Uma igualdade voltada para substancialidade humana, em suas diferentes possibilidades de se manifestar. A dignidade pela igualdade está, também, em permitir que a pessoa seja considerada em suas características de fragilidade ou vulnerabilidade face às outras, para que, assim, possam merecer tratamento de acordo com as suas particularidades, a fim de que, supridas as lacunas, seja realizada a personalidade que abriga a dignidade constitucionalmente perseguida. A igualdade é, então, construída pela solidariedade que viabiliza a plenitude e concretiza o ideal democrático. Para se compreender a igualdade material, faz-se necessário, primeiro, reconhecer essa vulnerabilidade e, depois, estabelecer as responsabilidades que estarão justificadas pelo reconhecimento anterior. 37 Transportando o tema, para as relações familiares, particularmente, para o Poder Familiar, que é o centro deste estudo, não se pode deixar de repetir o passado histórico que ressaltava as diferenças entre homens e mulheres e entre adultos e crianças. O ordenamento jurídico anterior, apenas considerava a capacidade feminina, enquanto não existisse a figura de um marido que, por ser homem, possuía maiores condições de decidir o seu destino. Daí o casamento fazer regredir a posição da mulher, que descia à condição de pessoa relativamente incapaz, juntamente com os índios e os menores entre 16 e 21 anos. O último século foi palco de grandes avanços na condição da mulher como pessoa capaz e responsável, igual a seus pares do sexo masculino. Ao passo que decaía a hegemonia masculina, com o enfraquecimento da figura do pater, ressaltava a força feminina que se mostrava capaz de lutar, trabalhar, prover, gerar, cuidar e amar. O Código Civil anterior, datado de 1916, trazia uma série de regras que conduziam a mulher a um papel subalterno, serviente e, por isso, indigno (ainda que a retórica apontasse no sentido de protegê-la, por sua fragilidade física e emocional). A mulher só deixou de ser considerada relativamente incapaz em 1962, a partir do Estatuto da Mulher Casada. A partir de então, as necessidades econômicas, as lutas das feministas e a própria vivência feminina que desmentia o discurso machista e paternalista, fez avançar, passo a passo, a condição da mulher, como membro importante de sua família. É óbvio, no entanto, que a igualdade não foi reconhecida da noite para o dia. O Código Civil, apesar de ter sofrido algumas alterações, sobretudo após o Estatuto da Mulher Casada, continuou reconhecendo a participação feminina, na formação e nos cuidados para com seus filhos, apenas enquanto colaboradora. Nada mais razoável, em uma legislação que refletia o espírito liberal que colocava os interesses patrimoniais acima dos existenciais (que por sua vez, eram até, questionáveis). Na seara constitucional, o embrião da igualdade entre homens e mulheres, já se encontrava, ainda que de maneira implícita, na Constituição de 1824, quando, em seu art. 174, n. 14, declarava: “Todo cidadão ode ser admitido aos cargos públicos civis, políticos, ou militares, sem outra diferenciação que não seja a de seus talentos e virtudes.” A partir do texto constitucional de 1934, a isonomia de sexo começa a ser 38 tratada de maneira expressa48, no entanto, naquela época, ainda havia uma distância entre o conteúdo constitucional e a lei civil, ampliada pela cultura machista que vigorava. Mais uma vez, é graças a Constituição Federal de 1988, que se fertilizam os campos da igualdade, já que passa a ser direito fundamental. Quando se tem uma norma constitucional que não admite mais nenhum tipo de tratamento discriminatório em razão, também, de sexo, dá-se um golpe de morte na legislação que seguia diferente. Ainda que tenham convivido por um curto período, o Código Civil de 1916 e Constituição Federal de 1988, a interpretação do direito civil só deveria apontar para onde a luz da Constituição iluminasse. A igualdade constitucional, assim, interfere nas relações decorrentes do poder familiar, pois amplia a sua titularidade. Se antes, a mulher não passava de uma colaboradora, sendo o titular do poder, o pai, justificando inclusive, a nomenclatura anterior, pátrio poder, agora, é conferida à ela, mãe, uma situação jurídica idêntica à do homem. Esse foi um dos tantos motivos estruturantes que justificou a mudança no nome do instituto, passando a se chamar poder familiar49. Fica claro, então, que o modelo familiar machista e hierárquico que guardou seu sentido em quase toda a história da humanidade, não se identifica mais com o atual modelo democrático baseado na ideia de dignidade humana. A igualdade constitucional, não se resume àquela entre homens e mulheres. No que pertine à condição de filho, não será a forma como foi originado, nem a relação entre seus pais, que vai dizer se são ou não, titulares de direitos próprios das relações paterno/materno-filiais. Desde que seja filho, será igual a qualquer outro filho. Não importa o quanto tenha sido desejado ou indesejado. Não importa se foi concebido com amor ou sob efeito de álcool. Não importa se fruto de um casamento, união estável ou encontro casual. Não importa a identidade genética, tendo em vista que a filiação pode 48 AGRA, Walber de Moura. Manual de Direito Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 151. 49 O motivo gerador de tantas mudanças, incluindo a nomenclatura do instituto, foi a elevação da dignidade da pessoa humana, ao patamar de princípio constitucional, fundamento da República. Daí decorre toda uma proteção especial aos demais direitos fundamentais, inclusive a igualdade. Ao centralizar o ordenamento jurídico no ideal de dignidade humana, o legislador promoveu um giro hermenêutico, a partir do qual resultou, para a nova codificação, não somente a mudança da nomenclatura (de pátrio poder para poder familiar), mas, também a alteração do conteúdo normativo, ainda que se mantenha a redação dos direitos ou poderes que decorrem do instituto. 39 ter origem na afetividade e na história de vida relacional com aqueles que se conduziram como pais. O legislador constituinte foi tão enfático quanto ao tema, que não se contentou apenas com a igualdade genérica do caput do artigo 5º, voltando ao assunto em local específico, impondo, no parágrafo 6º do artigo 226, que “os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. Assim, estarão sujeitos ao poder familiar, sobretudo pela garantia dos direitos que estão em seu conteúdo, tendo em vista o reconhecimento de sua condição especial, vulnerável, enquanto criança ou adolescente, todos aqueles que forem reconhecidos (espontaneamente ou não) como filhos. Por outro lado, a responsabilidade pela satisfação daqueles interesses, recairá, sobre o pai e mãe, em conjunto (ainda que não estejam juntos entre si) – tudo para a viabilização e realização da personalidade daqueles primeiros. Essa perspectiva, de enxergar as diferenças para promover a igualdade, coloca o filho menor (que no passado, já foi considerado “coisa” ou, até, “adulto com déficit”), na posição de alguém que passa por um momento especial de sua vida e que, por isso mesmo, merece especial atenção na formação de sua personalidade. É exatamente por isso, que se reconhece sua vulnerabilidade. Nesta condição, a ele deve ser assegurado tratamento prioritário para o seu desenvolvimento adequado. O reconhecimento constitucional do valor da igualdade, como princípio, assim como a eficácia constitucional, foram os grandes responsáveis por este giro paradigmático. Considerando a igualdade dos pais enquanto responsáveis pela formação física, psíquica e relacional de seus filhos (que também são iguais), veio conferir a existência e a força dos direitos existenciais que são os protagonistas dessa relação. É importante ressaltar que a decadência da figura do pater, a proibição da conduta discriminatória, reconhecendo homens e mulheres como iguais, não implica em uma inferiorização do homem ou no deslocamento social de homens e mulheres, a fim de inverter antigas funções e características. Significa apenas, que em dignidade e responsabilidades, os homens passaram a compartilhar o mesmo espaço, com as mulheres. Subtrai-se um poder masculino injusto e confere-se uma participação 40 feminina mais condizente com a sua capacidade de ser social. Os dois, agora, em uma justa posição de equilíbrio. O exercício conjunto do poder familiar, só se sustenta considerando a responsabilidade igual, a liberdade igual, direitos fundamentais iguais, considerando os papéis que cada um cumpre no exercício de uma autoridade que visa à satisfação dos interesses prioritários dos filhos menores. Conclui-se assim, que as principais mudanças nas relações jurídicas entre pais e filhos menores aconteceram, exatamente, por causa da posição dos refletores que antes, ressaltavam os direitos do adulto masculino e aumentava a distância hierárquica entre ele e seus filhos, para iluminar as necessidades da criança e do adolescente, que passam de objeto a sujeito dos direitos que, hoje, destacam e justificam qualquer ideia de poder (ou melhor, autoridade), na responsabilidade igual de homens e mulheres enquanto pais. 1.4.3 A Solidariedade na Repersonalização dos Direitos Civis com ênfase nas Relações de Família O Princípio da solidariedade, assim como os demais princípios fundamentais constitucionais, é de difícil conceituação. A palavra solidariedade, por sua pluralidade de sentidos pode remeter a diversos significados distintos, entre eles, o sentimento de compaixão em relação ao outro que impulsiona a condutas de apoio, de suporte e de estabelecimento de uma situação mais favorável em relação a quem despertou a ideia de ajuda. Ocorre que, restringindo ao campo dos sentimentos, não se poderia pensar em eficácia fora de uma motivação que tenha por origem, o coração das pessoas. Como a solidariedade é princípio relativo à própria organização da sociedade (art. 3º, I), assim como relativo à prestação positiva do Estado (art. 3º, III) 50, a ideia de solidariedade está mais próxima do conceito de “responsabilidade social” do que, propriamente, de caridade. A inserção da solidariedade, enquanto norma jurídica é talvez, o que mais nos distancia do modelo liberal anterior. A solidariedade, não apenas no Brasil, é efeito de 50 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 13 ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 96. 41 um período de guerras que marcou o século passado. Maria Celina Bodin 51 explica que a sua origem está na assimilação da própria percepção de humanidade, elaborada após o período da 2º Grande Guerra Mundial, como resposta aos crimes do período. A ideia de conjunto, presente na humanidade, retira a força da vontade individual, que marcou os interesses patrimoniais liberais para considerar, cada indivíduo, como parte de um todo e conferir aos interesses existenciais, uma importância que se justifica na ideia de dignidade e se realiza na natureza social de cada ser humano. Com esse entendimento, Paulo Lôbo52 apresenta o sentimento (pathos) da sociedade, como a inclinação valorativa que resulta na norma constitucional referente à responsabilidade que não se limita aos poderes públicos, mas, recai sobre cada integrante da sociedade, no que diz respeito à existência social de todos os demais membros. Se a Constituição Federal de 1988, aponta, como um dos objetivos da República, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I), e reconhece na família, a base da sociedade (art. 226), expande para esta, a responsabilidade social de cada um de seus integrantes em relação aos demais, na realização da personalidade de cada um, enquanto partícipes de uma estrutura que espelha e afeta, diretamente, a vida que transcende os limites de cada lar. Guilherme Calmon53 lembra que, nas relações familiares, a solidariedade se especializa na proteção voltada para as crianças e adolescentes, assim, também, com relação aos idosos (arts. 227 a 230 da Constituição Federal), sem esgotar seu âmbito de abrangência que vai mais além, vez que também se refere aos demais vínculos familiares. O princípio da solidariedade confere norte a diversos artigos de direito de família, presentes no Código Civil54, não se limitando, apenas às necessidades materiais, mas, 51 MORAES, Maria Celina Bodin. O Princípio da Dignidade Humana. In: MORAES, Maria Celina Bodin (coord.) Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. (p. 1-60). p. 4445. 52 LÔBO, Paulo. Famílias. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 40. 53 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Princípios Constitucionais de Direito de Família: Guarda Compartilhada à Luz da Lei nº 11.698/08: Família, Criança, Adolescente e Idoso. São Paulo: Atlas, 2008, p. 74. 54 “No Código Civil, podemos destacar algumas normas fortemente perpassadas pelo princípio da solidariedade familiar: o art. 1.513 do Código Civil tutela ‘a comunhão de vida instituída pela família’, somente possível na cooperação entre seus membros; a adoção (art. 1.618) brota não do dever, mas do sentimento de solidariedade; o poder familiar (art. 1.630) é menos ‘poder’ dos pais e mais um múnus ou serviço que deve ser exercido no interesse dos filhos; a colaboração dos cônjuges na direção da família 42 também e, sobretudo, às existenciais, afastando o argumento de que a solidariedade apontada na Constituição Federal, como objetivo da República, não cabe nas relações familiares, pois se volta aos problemas econômicos da nação e se dirige aos demais fins, de erradicação da pobreza e diminuição das desigualdades regionais. Se a ideia de solidariedade tem origem na própria percepção de humanidade e a dignidade humana é o princípio que, por sua vez, justifica a própria solidariedade, se a dignidade, conforme Kant, é o valor daquilo que não tem preço, então, não se pode discutir que os interesses existenciais do ser social, ressaltam diante dos demais interesses econômicos que, por sua vez, ganham importância exatamente por viabilizar aqueles primeiros. E nenhuma sociedade ou associação tem a capacidade de realizar tais interesses, melhor que a família. 1.5 Conteúdo Constitucional do Poder Familiar O conteúdo constitucional do Poder Familiar está expresso no art. 227, com a seguinte redação: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. O art. 226 da Constituição Federal de 1988 reconhece na família, a base da sociedade e o artigo acima transcrito, reconhece nas duas, a responsabilidade pelos principais interesses das crianças e dos adolescentes. A vulnerabilidade dos menores e a consciência da importância do momento que vivem, impõem para as relações entre pais e filhos, condutas que não podem ser guiadas por regras e princípios que se voltam para as relações conjugais. Em qualquer relação jurídica, deve ser preservada a dignidade das (art. 1.567) e a mútua assistência moral e material entre eles (art. 1.566) e entre companheiros (1.724) são deveres hauridos da solidariedade; os cônjuges são obrigados a concorrer, na proporção de seus bens e dos rendimentos, para o sustento da família (art. 1.568); o regime matrimonial de bens legal e o regime legal de bens da união (comunhão parcial), sem necessidade de se provar a participação do outro cônjuge ou companheiro na aquisição (arts. 1.640 e 1.725); o dever de prestar alimentos (art. 1.694) a parentes, cônjuge ou companheiro, que pode ser transmitido aos herdeiros no limite dos bens que receberem (art. 1.700), e que protege até mesmo o culpado (§ 2º do art. 1.694 e art. 1.704), além de ser irrenunciável (art. 1.707) decorre da imposição de solidariedade entre pessoas ligadas por vínculo familiar.” LÔBO, Paulo. Famílias. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 41. 43 pessoas envolvidas. Talvez por essa razão, a liberdade venha ganhando cada vez mais espaço e força nas relações conjugais. Todavia, no que se refere às relações dos pais com seus filhos, a responsabilidade dá o tom do vínculo, exatamente pelo fato de seus principais titulares se encontrarem, ainda, formando suas personalidades para, futuramente, alcançar a autonomia necessária que viabiliza a liberdade e o poder da vontade. Neste sentido, pode-se afirmar que o direito não se pode se afastar, até para que não se fragilize, dos valores sociais a respeito do conceito e da abrangência da família (ou das famílias). E é exatamente por isso que tais valores conquistaram a posição de princípios da mais alta categoria normativa do país, encontrando-se ainda que implicitamente, regulando as relações familiares. A postura afetiva, entre casais adultos, passa a ser a origem, o dever e uma das principais finalidades das famílias contemporâneas. Paradoxalmente, a natureza contratual e, assim, a autonomia privada tem sido ressaltadas nesse novo perfil do direito de família, refletindo na liberdade quanto à forma escolhida para ser originadora do agrupamento. O paradoxo, no entanto, apresenta-se exclusivamente, da análise superficial da matéria, vez que, na reflexão mais apurada, percebe-se que é exatamente a liberdade e a vontade que unem os casais na afetividade. Quando a Constituição Federal, em seu art. 226, tornou oficial a família presente na união estável, bem como a família monoparental, não engessou as modalidades em numerus clausus e, assim, permitiu o reconhecimento de outros agrupamentos, como entidades familiares que serão reconhecidos pelos critérios da afetividade, ostensibilidade e estabilidade55. A afetividade, então, é a mola propulsora das relações familiares contemporâneas o que não mais admite motivações exclusivamente econômicas ou políticas no reconhecimento de uma união conjugal, matrimonializada ou não. Como mencionado, a ideia de dignidade, que não se afasta da noção de liberdade, assim como as razões da família, como núcleo promotor de afetos e realizador da personalidade, conferem à vontade, um papel revelador nesse novo olhar sobre a família. 55 LÔBO, Paulo. Entidades Familiares Constitucionalizadas: Para além do Numerus Clausus. Disponível em: http://jus.uol.com.br/revista/texto/2552/entidades-familires-constitucionalizadas. Acesso em: 08 de Março de 2011. 44 E é exatamente, como diz o artista, no “estar-se preso por vontade”56 que se percebe a força das famílias de hoje. A Lei do Divórcio (6.015/1977), apesar de versar sobre o término das histórias conjugais, veio mais revolver o sentido anterior de família, no modelo indissolúvel que protegia, por motivos religiosos e patrimoniais, não as pessoas, mas a instituição casamento, do que incentivar a desagregação do núcleo familiar. Em 2007, a Lei 11.441 conferiu mais força ainda, à vontade, nas relações de família, uma vez que possibilitou a separação consensual e o divórcio consensual pela via administrativa, ressaltando a natureza contratual, mencionada há pouco, do casamento. Com a Emenda Constitucional nº 66 de 2010, esvazia-se do ordenamento jurídico brasileiro, a figura da separação judicial, para permitir o divórcio, sem pré-requisitos processuais ou temporais. Na trajetória do Direito de Família, está claro que, ao longo dos últimos 40 anos, a liberdade e sua expressão na vontade, ganha caráter de essencialidade para a manutenção de uma família democrática e afetiva, refletindo, ao mesmo tempo, em uma sociedade democrática e livre (para que também se permita dizer, justa). No entanto, no que se refere aos vínculos de filiação e parentalidade, para que se respeite a norma constitucional, transcrita no início deste item, é preciso esvaziar da liberdade e da vontade, a força que lhes foram atribuídas para as relações de conjugalidade. Não significa dizer que estão abolidas, até porque o planejamento familiar (que parte da ideia de liberdade e vontade) é, também, constitucionalmente assegurado. O que se pretende afirmar é que nas relações entre pais e filhos, os laços da solidariedade se tornam mais estreitos para que a responsabilidade, independentemente da vontade, permita a realização do conteúdo prioritário do poder familiar. Fabíola Albuquerque57, ao afirmar que, no modelo atual de poder familiar, existe a reciprocidade de direitos, explicita o deslocamento conceitual do instituto clássico do 56 Frase retirada da letra da música “Monte Castelo” da banda Legião Urbana, de autoria de Renato Russo e inspirada na frase do poeta Luís de Camões em soneto sobre o amor. 57 ALBUQUERQUE, Fabíola Santos. Poder Familiar nas Famílias Recompostas e o art. 1.636 de CC/2002. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (org.) Afeto, Ética, Família e o Novo Código Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, (p. 161-179), p. 163-164. 45 pátrio poder e percebe no filho menor, não mais um objeto de direito, mas também, o sujeito de direito na relação com seus pais. Como sujeito dos direitos à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, tais interesses não podem ser desconsiderados com base no argumento de vontade daqueles que têm o dever de torná-los reais: em primeiro lugar, a família (e nela, em primeiro lugar, os pais), a sociedade e o Estado. Por esse motivo, Paulo Lôbo entende que no poder familiar, está o centro da solidariedade familiar, na “exigência da pessoa de ser cuidada até atingir a idade adulta, isto é, de ser mantida, instruída e educada para a sua plena formação social”58 Alguns civilistas já entendem, inclusive, que o cuidado é valor jurídico, aproximando solidariedade e responsabilidade, na proteção que deve ser dispensada aos vulneráveis59. Pode-se afirmar a partir do que foi exposto, que as principais mudanças, no poder familiar, na Constituição Federal de 1988, foram: a) o reconhecimento da igualdade entre homens e mulheres que, por sua vez, conferiu igualdade na participação dos pais no exercício do poder familiar; b) a igualdade entre os filhos, não importando a sua origem; c) o deslocamento conteudístico de poder com ênfase nos direitos do pai, para poder como múnus dos pais; d) o interesse prioritário dos filhos menores na formação de suas personalidades. 1.6 Poder Familiar no Direito Civil Brasileiro O direito civil não poderia se afastar da norma constitucional, primeiro pela hierarquia que o ordenamento lhe confere e, segundo, pela força principiológica dos direitos fundamentais constitucionais que refletem os valores socialmente aceitos. E a efetividade das normas depende, não apenas da obrigatoriedade que caracteriza as normas jurídicas, mas, também da aceitação social quanto ao seu conteúdo e objetivos. 58 LÔBO, Paulo. Famílias. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 41. Para melhor compreender o tema, sugere-se a leitura das seguintes obras: PEREIRA, Tania da Silva; OLIVEIRA, Guilherme de. O Cuidado como Valor Jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2008 e PEREIRA, Tania da Silva; OLIVEIRA, Guilherme de. Cuidado & Vulnerabilidade. São Paulo: Atlas, 2009. 59 46 Na esteira do conteúdo constitucional do poder familiar, pode-se dizer que, para o direito civil contemporâneo, ele consiste no “exercício da autoridade dos pais sobre os filhos no interesse destes”60, sendo, obviamente, temporário, enquanto perdurar a menoridade. Não se deve afirmar, no entanto, que no poder familiar não existam direitos conferidos aos pais. Existem sim, são direitos e deveres em reciprocidade a direitos e deveres dos filhos menores. No entanto, e o que caracteriza para os pais, a ideia de poder-dever são exatamente, os interesses que estão, principalmente, voltados para a pessoa dos filhos. São situações jurídicas que serão melhor esclarecidas mais adiante. Um problema que pode ser levantado, na interpretação do poder familiar, encontra-se propriamente, na nomenclatura escolhida pelo legislador, para apresentá-lo. Muitos autores defendem que o instituto seria melhor compreendido caso tivesse sido nomeado por autoridade parental. No entanto, não foi essa a escolha de quem tinha o poder para tanto. Pode-se dizer, em defesa de seu conteúdo, que a interpretação que o distancie das regras e princípios constitucionais, com base apenas no nome, não será adequada e, portanto, deverá ser descartada. A expressão poder familiar deve ser entendida por autoridade parental, ainda que literalmente, guarde um outro sentido61. No âmbito do direito civil, o poder familiar está regulado pelo Código Civil, nos artigos compreendidos entre o de número 1.630 e o 1.638. Como existe outro diploma legal que também regula a matéria, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) Lei 8.069/90 versando nos arts. 21 a 24, sobre a convivência familiar, bem como nos arts. 155 a 163, nas regras procedimentais sobre perda e suspensão do poder familiar, surge a preocupação a respeito das possíveis antinomias entre as duas leis que poderiam resultar na revogação por incompatibilidade de uma delas. No entanto, deve ficar claro que as duas leis não são excludentes, mas, complementares. Paulo Lôbo explicita a distinta abrangência do Código Civil e do ECA, onde no primeiro, estão as dimensões do exercício dos poderes, enquanto no segundo, ressaltam os deveres dos pais62. Ainda não é fácil definir poder familiar, ou melhor, ainda não é fácil pensar em poder familiar em sua definição e conteúdo constitucionais e o momento em que 60 LÔBO, Paulo. Famílias. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 268. LÔBO, Paulo. Famílias. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 269. 62 LÔBO, Paulo. Famílias. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 272. 61 47 vivemos contribui para esta dificuldade. Estamos, ainda, em fase de transição (pra não dizer de crescimento) onde coexistem sólidos valores democráticos com antigas tradições que insistem em gritar nos espíritos brasileiros e por isso, talvez devesse ter sido incluída no Código Civil, uma norma que apontasse o conceito do instituto, a exemplo do Código Civil Francês que é mais explícito ao atribuir a natureza de direitos, deveres e interesses em ambas as esferas jurídicas desse tipo de relação jurídica, em sua redação: Art. 371-1. A autoridade parental é um misto de direitos e de deveres dirigidos ao interesse dos menores. Ele pertence ao pai e a mãe até a maioridade ou emancipação dos menores para a proteção de sua segurança, saúde e moralidade; para assegurar sua educação e permitir seu desenvolvimento com o devido respeito à sua pessoa. Os pais assistirão os menores nas decisões que lhes concernem, considerando sua idade e grau de maturidade.63 O Código Civil Brasileiro inicia a Seção I, de seu capítulo V, no art. 1.630 enfatizando, mais do que qualquer coisa, a sujeição dos filhos à autoridade dos pais: “os filhos estão sujeitos ao poder familiar, enquanto menores.” A ausência de definição normativa abre espaço para as retóricas mais variadas e, exatamente por essa falta de clareza, não se mostram, enquanto tais, os direitos subjetivos dos filhos menores e por isso, questiona-se a própria existência e, consequentemente, a eficácia de tais direitos. Maria Helena Diniz64, em suas anotações ao Código Civil, interpreta o termo sujeição, como uma sujeição dos filhos à proteção do poder familiar, considerando que este existe para nada mais do que protegê-los. É inegável que, diante de tudo o que foi exposto, os artigos do Código Civil, bem como do ECA, devam ser interpretados de maneira a viabilizar a dignidade das pessoas humanas integrantes da relação familiar, conduzindo os comportamentos para construir e praticar a solidariedade, com base na responsabilidade e no cuidado, que são os aspectos objetivos da afetividade, priorizando os interesses que justificam a existência 63 “Art. 371-1 – (1) L’autorité parentale est um ensemble de droits et de devoirs ayant pour finalité l’intéêt de l’enfant. Ele appartient aux père et mère jusqu’à la majorité ou l’emancipation de l’enfant pour le protéger dans sa sécurité, as santé et as moralité, pour assurer son éducation et permettre son développement, dans le respect dû à sa personne. Les parentes associent l’enfant aux décisions qui le concernente, selon son âge et son degré de maturité.” FRANCE. Code Civil. Paris: Litec, 2009, p. 251. 64 DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 1.159. 48 do instituto, ou seja, os interesses dos filhos menores, considerados pessoas vulneráveis pelo atual estágio de vida que experimentam. 1.7 Para onde Apontam os Deveres Parentais no Poder Familiar A responsabilidade parental justifica-se na forma como os filhos menores são encarados pelos valores de uma sociedade laica e consumista. Conforme dito há pouco, hoje, é incontestável a afirmação de que a criança e o adolescente vivem um período especial de formação de suas personalidades e a responsabilidade dos pais é, principalmente, no que pertine à viabilização desse momento, para que a criança e o adolescente possam vir a ser adultos saudáveis e capazes de conviver com os outros de forma harmônica e equilibrada. A pergunta que se faz é: em que consiste um crescimento saudável? Philippe Julien65, em sua abordagem psicanalítica sobre o que cada geração deve transmitir à seguinte, termina oferecendo objetivos que, em uma análise jurídica, podem ser apresentados, também, como os fins das prestações parentais. Para Julien, no século XX, a intimidade familiar foi, aos poucos, invadida pelo social. Não propriamente, no âmbito da conjugalidade, mas, principalmente, na parentalidade, no que ele chama de “intimidade conjugal” e “extimidade parental”66. A modernidade veio mostrar que a parentalidade não pode ser deixada ao arbítrio da mãe e/ou do pai. “Em nome do bem do filho, vem então tomar lugar, sob figuras diversas, um terceiro social: o professor, a pediatra, a psicóloga, a assistente social, o juiz de menores, o juiz de varas de família”.67E isso ocorre em nome do bem-estar do filho, titular dos principais interesses em suas relações com seus pais. A história mostra que os filhos já tiveram vários significados para a família. No entanto, hoje, por mais que se aponte a existência e a força de princípios, como solidariedade e afeto, que norteiam o direito de família, ao se observar a sociedade como um todo, estes parecem conflitar com uma realidade moderna e líquida, na 65 JULIEN, Philippe. Abandonarás teu Pai e tua Mãe. Tradução: Procópio Abreu. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2000, passim. 66 JULIEN, Philippe. Abandonarás teu Pai e tua Mãe. Tradução: Procópio Abreu. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2000. p. 17. 67 JULIEN, Philippe. Abandonarás teu Pai e tua Mãe. Tradução: Procópio Abreu. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2000. p. 15. 49 expressão de Zygmunt Bauman68. Ter filhos, hoje em dia, não significa mais a benção de ser contemplado com a mão-de-obra que ajudará no sustento da família, nem com a alegria de sentir-se infinito na geração seguinte. Atualmente e para muitos, ter filhos representa uma satisfação consumista com riscos altos e imprevisíveis, originadores de estresse e angústia que “adulteram a alegria”69de exercer a parentalidade. O estresse, tão presente na sociedade contemporânea, e a contradição de associar filhos a bens de consumo, ao passo que, ao menos em tese, a dignidade tem sido destacada como substância que iguala a humanidade e norteia o ordenamento jurídico, desfoca o conjunto de direitos e deveres, interesses, sujeições e eficácia das relações paterno/materno-filiais. A vinculação justificada por razões diversas, científicas ou culturais, também incrementa a existência de várias opiniões e interpretações da norma jurídica do poder familiar. Na origem genética ou no ato de escolha, o que se deve considerar é a finalidade da parentalidade hoje. Existindo interesses prioritários, conforme a redação da lei maior do país, voltados para os filhos menores, quais são os objetivos que devem justificar tais interesses? Na leitura de Julien, ao abordar o que deve ser transmitido para a geração seguinte, podemos concluir que os deveres que nascem a partir do momento em que se é pai ou mãe, são: 1) inicialmente, assegurar ao filho, o direito à filiação; 2) nesta condição, promover a integridade psicofísica do filho, em sua formação rumo à plena capacidade, viabilizando as circunstâncias nas quais, normalmente, se é feliz, de acordo com o que a sociedade, naquele momento, reconhece como felicidade. Não se quer dizer com isso, que o dever traga a garantia de felicidade, pois é certo que se trata de um sentimento e, assim, é próprio e muitas vezes, involuntário em cada pessoa. Situações adversas podem originar felicidade, bem como, um ambiente considerado saudável, pode levar à depressão. No entanto, a “sociedade pretende saber cada vez melhor qual é a felicidade da criança”70, tanto é que autoriza e impõe a entrada do terceiro social, conforme já foi dito há pouco. Para o psicanalista francês, segurança, proteção, 68 BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido. Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. 69 BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido. Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 60. 70 JULIEN, Philippe. Abandonarás teu Pai e tua Mãe. Tradução: Procópio Abreu. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2000. p. 19. 50 prevenção e assistência são “palavras-mestras do discurso social sobre a família.”71 Assim, com o cuidado apresentado nos quatro fatores de promoção de um crescimento saudável, conclui-se que os deveres dos pais são mais com os meios que com o resultado (que lhes foge à competência), 3) pela lei do dever, também compete aos pais, posicionar o filho em face do outro, como ser responsável, tornando-o social e, por fim 4) no exercício do poder familiar, cabe aos pais permitir a formação da identidade do filho, através da figura do pai e da mãe, compreendendo-se aí, as funções masculina e feminina72, vivendo a conjugalidade, para que esse filho se liberte de sua família de origem, estando apto a fundar, publicamente, a sua própria. 1.8 Interferência Estatal e Intimidade Familiar A família sempre foi compreendida em seu casulo impermeável e isso acontece por diversas razões, adaptadas em cada contexto histórico, religioso, social, político ou econômico. A interferência na família, por parte de terceiros, sobretudo quando o terceiro é o Estado, apresenta-se, no senso comum, como uma forma de violência naquilo que de mais íntimo, diz respeito à vida das pessoas. Não se pode negar a lógica dessa não intervenção, em tempos passados, quando o agrupamento familiar se confundia com a religião ou até, com o próprio Estado. Retornando à Antiguidade e às lições de Fustel de Coulanges, 73verifica-se que a religião dos primórdios não seguia a crença tão comum nos dias de hoje, de culto a um Deus único e, ainda, um Deus que se voltasse para todas as gentes, castas, nações, ou seja, uma única divindade que atendesse a todo o gênero humano. Acreditava-se na pluralidade dos deuses, que não eram, simplesmente, alvo de adoração de cada família, mas, antes, se confundiam com a própria família. Era a religião doméstica, intimamente 71 JULIEN, Philippe. Abandonarás teu Pai e tua Mãe. Tradução: Procópio Abreu. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2000. p. 23. 72 Lembrando que as funções remetem à idéia de gênero e não de sexo, sendo cultural e não biológico. Deixe-se claro, assim, que apesar da lei da conjugalidade, originariamente, exigir a presença de homem e mulher, esta necessidade deve ser entendida a partir da importância e influência dos gêneros na formação da personalidade do menor e, assim, não poderá ser este o obstáculo para impedir o exercício por casais do mesmo sexo, que exerçam funções masculinas e femininas. Ressalte-se, todavia, que este pensamento não é compartilhado por Philippe Julien. 73 COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. Estudos sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia e de Roma. Tradução: Edson Bini. 4 ed. São Paulo: Edipro, 2009, p. 37-38. 51 ligada ao ritual de repasto fúnebre e ao culto à memória dos mortos, que ficavam sob a responsabilidade da descendência masculina de cada família, passando de pai para filho e que não admitia a interferência de estranhos, ainda como simples observador74. A proteção da família contra estranhos e até contra o Estado, inicia porque a família não existe por causa do direito. O direito regula a família que o precede. A necessidade de agrupamento e de permanência no grupo é da própria natureza humana e assim, não nasce porque a lei impõe, mas, porque é assim que vive o ser humano. Portanto, a intromissão, por si só, já é problemática, imagine o que significa um terceiro impondo condutas? Imagine isso em Roma antiga que, por sua vez, tanto influenciou a sociedade ocidental contemporânea? Fustel de Coulanges, na sua narrativa, explica a impotência da Cidade face à Família: A família não recebeu suas leis da Cidade. Se fosse a Cidade que tivesse estabelecido o direito privado, é provável que o houvesse feito completamente diferente daquilo que estudamos até este ponto. Teria regulado o direito de propriedade e o direito de sucessão segundo outros princípios, pois não constituía seu interesse a terra ser inalienável e o patrimônio indivisível. A lei que permite ao pai vender e até matar seu filho, lei que encontramos tanto na Grécia quanto em Roma, não foi concebida pela Cidade. A Cidade teria, antes, dito ao pai: “a vida de tua mulher e de teu filho não te pertence mais, tanto quanto não te diz respeito a liberdade deles; eu os protegerei, mesmo de ti; não é tu que os julgarás, que os matarás se falharem nos seus deveres: eu serei o único juiz deles”. Se a Cidade não discursa assim, é aparentemente porque não pode fazê-lo. O direito privado existia antes dela.75 É possível afirmar que a sociedade atual é um reflexo de sua experiência histórica e assim, condutas antigas vão se adaptando às novas realidades e necessidades, permanecendo, em muitos aspectos, sua essência, ainda que tais costumes sejam reproduzidos, sem que a maioria das pessoas tenha noção de que repetem condutas, muito menos, perquiram as origens e as razões de seus comportamentos. 74 “O culto não era público. Todas as cerimônias, ao contrário, eram realizadas exclusivamente no seio da família. O fogo doméstico não era jamais colocado nem fora da casa e nem mesmo próximo da porta exterior, de onde qualquer estranho poderia vê-lo. Os gregos o colocavam sempre num recinto que o protegesse contra o contato e mesmo contra o olhar dos profanos. Os romanos o ocultavam no coração de suas casas. A todos esses deuses, Fogo doméstico, Lares, Manes, chamava-se de deuses ocultos ou de deuses do interior. Para todos os atos dessa religião o segredo era mister, sacrificia occulta, diz Cícero; se uma cerimônia fosse percebida por um estranho estaria perturbada, conspurcada tão-só por seu olhar” COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. Estudos sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia e de Roma. Tradução: Edson Bini. 4 ed. São Paulo: Edipro, 2009, p. 36. 75 COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. Estudos sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia e de Roma. Tradução: Edson Bini. 4 ed. São Paulo: Edipro, 2009, p. 73. 52 Ao longo da história, várias foram as justificativas encontradas para afastar a interferência de quem quer que seja. Estado ou particulares estranhos, não cabiam interferir na intimidade da vida familiar. Nos momentos em que se experimentou a simbiose entre família/religião; família/Estado, não havia relação de subordinação, devendo existir, antes, uma relação de certo respeito. Com o advento do Estado Liberal, ainda que as Constituições insistissem em considerar a família, a célula base do Estado, ocorreu a separação normativa, própria do espírito liberal e justificada pelo fato de integrar, a família, sobretudo a família matrimonializada, o ramo do direito privado. Assim, com a afirmação do individualismo, típica daquele contexto histórico e político, a família, como lar do indivíduo, ficava a salvo de qualquer interferência, tudo para preservar a autonomia conquistada nas codificações liberais, enquanto as constituições liberais se prestavam, somente, para limitar o poder do Estado76. Nas palavras de Tepedino, as constituições se reduziam a “um documento essencialmente político, um convite à atuação dos Poderes Públicos”,77que por sua vez, deveriam intervir minimamente na esfera privada. Esse modelo liberal foi substituído pelo Estado Social, caracterizado pela regulação constitucional da ordem econômica, como aconteceu a partir da Constituição de 1934. Tem-se início a superação daquele modelo de ordenamento que separava marcadamente a legislação constitucional da normatização civil como também, se inicia a superação do pensamento jurídico que separava, absolutamente, o interesse público, do que seria interesse privado. A Constituição Federal de 1988 abriga valores e positiva, assim, princípios que se voltam diretamente à proteção do ser humano enquanto pessoa, aproximando-se do cidadão enquanto titular de direitos fundamentais que não podem ser negados nas relações que envolverem o particular e o Estado, bem como, nas relações chamadas horizontais, inclusive nas relações de família. 76 LÔBO, Paulo. Entidades Familiares Constitucionalizadas: Para além do Numerus Clausus. Disponível em: http://jus.uol.com.br/revista/texto/2552/entidades-familiares-constitucionalizadas. Acesso em: 08 de Março de 2011. 77 BARROSO, Luis Roberto. A Constitucionalização do Direito e o Direito Civil. In: TEPEDINO, Gustavo. (org.) Direito Civil Contemporâneo. Novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo: Atlas, 2008 (p. 238-261), p. 241. 53 Paulo Lôbo78 reconhece que, tanto as normas de direito civil, como as normas de direito constitucional, estão presentes, constantemente, no cotidiano de cada pessoa, incidindo diariamente, nas relações onde se coloquem, como sujeitos de direitos ou deveres, aqueles que se relacionem também, como contratantes, parentes, proprietários, cônjuges, etc. Para Paulo Lôbo, apesar de superados diversos paradigmas, o antigo dualismo (normas civis e constitucionais) continua seduzindo o senso comum de muitos juristas. Tem-se, ainda, a força da tradição, que alimenta o discurso do isolamento do direito civil, pois seria um conhecimento acumulado de mais de dois milênios, desde os antigos romanos, e teria atravessado as vicissitudes históricas, mantendo sua função prático-operacional, notadamente no campo do direito ds obrigações 79. E se é assim, existindo, ainda, o espírito da tradição que afasta o direito civil de todos os demais ramos, quando se trata de direito de família, o conforto do conservadorismo parece falar mais alto, dificultando a compreensão de que é possível exigir respeito a direitos fundamentais, como também, impor o cumprimento de deveres fundamentais, ainda que versem sobre interesses puramente existenciais diretamente vinculados às relações familiares. Fabíola Albuquerque80, explica que a resistência se dá pelo fato de que a interferência do legislador constitucional recai sobre o espaço mais íntimo da pessoa, no entanto, explica que o leitmotiv da intervenção estatal, está no próprio dever do Estado de proteger a família, tudo para viabilizar a realização e desenvolvimento de seus integrantes. 78 LÔBO, Paulo. A Constitucionalização do Direito Civil Brasileiro. In: TEPEDINO, Gustavo (org.) Direito Civil Contemporâneo. Novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo: Atlas, 2008. (p. 18-28), p. 19. 79 LÔBO, Paulo. A Constitucionalização do Direito Civil Brasileiro. In: TEPEDINO, Gustavo (org.) Direito Civil Contemporâneo. Novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo: Atlas, 2008 (p. 18-28), p. 19. 80 ALBUQUERQUE, Fabíola Santos. Poder Familiar nas Famílias Recompostas e o art. 1.636 de CC/2002. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (org.) Afeto, Ética, Família e o Novo Código Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, (p. 161-179), p. 162 54 O que não se pode negar é que a constituição, hoje, se encontra no ápice do ordenamento jurídico, exercendo uma função de “filtro, pelo qual se deve ler o direito em geral”.81 A característica de superioridade da constituição, o atual papel dos princípios no ordenamento jurídico, a despatrimonialização e a repersonalização das relações civis, rompem o tabu da família impenetrável para abrir as portas, tanto ao Estado, como à sociedade, quando houver necessidade de proteger seus integrantes vulneráveis, sobretudo as crianças, adolescentes, mulheres e idosos que estejam sendo lesados em seus direitos fundamentais, por outros integrantes de sua família. O argumento que afasta a interferência do Estado, baseado na privacidade e na intimidade familiar, por serem também, direitos fundamentais, se enfraquece diante da mesma norma constitucional em que se alicerça, por expresso dever de perseguir a dignidade humana e proteger os vulneráveis, como se observa, a exemplo, no artigo 227. Muitos dos direitos fundamentais, presentes da Constituição Federal de 1988, se realizam no seio da família, no entanto, não se aprisionam nesse locus. Os direitos fundamentais, ainda que individuais, transcendem as pessoas de seus titulares, interessando a toda a comunidade, pois, o atual modelo político do país não se considera os indivíduos isolados como acontecia na política liberal. No que diz respeito às relações parentais do poder familiar, a doutrina portuguesa82 considera a relação triangular entre pai/mãe-filho que por sua vez, também dá forma à relação triangular com o Estado, devendo este, exercer controle sobre as famílias, através dos Tribunais, buscando realizar os interesses do menor. No entanto, a intervenção deve acontecer quando os pais agem (ou deixam de agir), manifestamente contra o menor, ou quando os pais não estiverem de acordo nas questões relevantes de interesse do menor. Também no Brasil, o Estado assume uma postura semelhante, confirmando a clara mudança de paradigmas no que tange às relações jurídicas do Poder Familiar, ressaltando os interesses dos menores e expondo ainda, o interesse público no bom 81 BARROSO, Luis Roberto. A Constitucionalização do Direito e o Direito Civil. In: TEPEDINO, Gustavo. (org.) Direito Civil Contemporâneo. Novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo: Atlas, 2008 (p. 238-261), p. 258. 82 RODRIGUES, Hugo Manuel Leite. Questões de Particular Importância no Exercício das Responsabilidades Parentais. Coimbra: Coimbra, 2011, p. 29. 55 desenvolvimento da personalidade das crianças e adolescentes brasileiros que, sendo partes no todo social, caminham para uma atuação independente, necessária ao equilíbrio da coletividade. 56 CAPÍTULO II SITUAÇÃO JURÍDICA E DIREITOS SUBJETIVOS EXISTENCIAIS NO PODER FAMILIAR 2.1 Situação Jurídica e Relação no Poder Familiar; 2.1.1 Situações Jurídicas Patrimoniais; 2.1.2 Situações Jurídicas Existenciais; 2.2 Direitos Subjetivos e Deveres no Poder Familiar; 2.3 Definindo os Direitos Subjetivos nas Relações Jurídicas do Poder Familiar com base na Teoria de Hohfeld; 2.4 Liberdades no Exercício do Poder Familiar; 2.5 Proteção Integral para a Concretização dos Interesses da Criança e do Adolescente; 2.6 Princípio do Melhor interesse da Criança e do Adolescente na interpretação do Poder Familiar Contemporâneo; 2.7 Definindo o Afeto enquanto Objeto de Relações Jurídicas de Poder Familiar; 2.7.1 A Afetividade como Princípio; 2.7.2 Do Valor ao Princípio; 2.7.3 Afeto e Deveres Jurídicos. 2.1 Situação Jurídica e Relação no Poder Familiar É possível afirmar que o direito encontra seu fundamento nas relações jurídicas intersubjetivas. Não haveria sentido falar em normas jurídicas se as pessoas não estivessem socialmente relacionadas. Até mesmo o direito de propriedade, aparentemente vinculativo de pessoa (titular) e coisa, encontra sua razão de ser, na existência dos outros sujeitos que integram o todo social e que estão proibidos de interferir desautorizadamente no domínio alheio. A experiência familiar é a primeira que o ser humano tem, de estar em face de outro. Os laços de família são, comumente, os mais fortes a vincular pessoas. São relações que, em sua maioria, escapam o critério da vontade, conferindo uma permanência obrigatória, seja por razões de ordem biológica ou por força de ordem jurídica, e se voltam para a satisfação dos mais diversos fins, existenciais e materiais, embora quase todos convirjam para a realização puramente pessoal. Embora seja possível elencar as mais variadas formas de relação entre parentes, interessa ao presente estudo, a relação jurídica entre pais e filhos na vigência do poder familiar. Neste sentido, seguindo a doutrina de Pontes de Miranda e considerando relação jurídica, a “relação inter-humana, a que a regra jurídica, incidindo sobre os fatos, torna 57 jurídica”83, entende-se que ser filho significa estar em uma relação fática onde a regra incide, tornando-a jurídica (relação de filiação-maternidade/paternidade)84. Como se constata na atual dinâmica familiarista, a forma como o direito regula as relações jurídicas nessa área, sofreu alterações significativas. A marca do patriarcado e da hierarquia assentada na prevalência dos interesses paternos perde significativamente a força, dando espaço a um sentido social e cultural, mais condizentes com os fundamentos de dignidade, igualdade e solidariedade que alicerçam os direitos mais fundamentais das pessoas. Nesse contexto, se faz urgente definir a atuação daqueles que integram as relações jurídicas do poder familiar para que, compreendendo suas posições e funções, seja possível conferir maior efetividade aos interesses merecedores de tutela, em cada caso concreto. Para uma análise mais acurada dos direitos e deveres que integram as relações do poder familiar atualmente, é necessário entender a situação jurídica em que se encontram pais e filhos. Isto porque a noção de relação jurídica está inserida na ideia de situação jurídica, na condição de espécie e gênero. De maneira diversa, Perlingieri85 compreende a relação jurídica como sendo o vínculo entre situações jurídicas, colocando estas últimas, na condição de elementos constitutivos da primeira, partindo, assim, da análise de cada sujeito individualmente para, depois, considera-os vinculados. Em sua abordagem sobre o tema, Marcos Mello apresenta a noção de situação jurídica em duas acepções. A primeira, em sentido lato, que “designa toda e qualquer consequência que se produz no mundo jurídico em decorrência de fato jurídico, englobando todas as categorias eficaciais, desde os mínimos efeitos à mais complexa das relações jurídicas”. A segunda acepção, em sentido estrito, abarca, “exclusivamente, os casos de eficácia jurídica em que não se concretiza uma relação jurídica. 86” Simplificadamente, Amaral apresenta as situações jurídicas como sendo os: 83 PONTES DE MIRANDA, Francisco. Tratado de Direito Privado. Parte Geral. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, t. I, p. 117. 84 PONTES DE MIRANDA, Francisco. Tratado de Direito Privado. Parte Geral. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, t. I, p. 117. 85 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução: Maria Cristina Di Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 115. 86 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico. Plano da Eficácia 1ª parte. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 80. 58 (...) conjuntos de direitos ou de deveres que se atribuem a determinados sujeitos, em virtude das circunstâncias em que eles se encontram ou das atividades que eles desenvolvem. Surgem como efeito de fatos ou atos jurídicos, e realizam-se como possibilidade de ser, pretender ou fazer algo, de maneira garantida, nos limites atributivos das regras de direito.87(grifos do autor) As situações jurídicas complexas comportam em seu âmago, a intersubjetividade vista aqui, no sentido de vinculação ou possibilidade de vinculação entre duas ou mais esferas jurídicas. Mas, nem todas as situações jurídicas complexas serão bi ou plurilaterais. Naquelas unilaterais, apesar desta necessária intersubjetividade, delas não resultam de imediato, relações jurídicas88, pois comportam eficácia limitada a uma esfera jurídica, apenas. É o caso, no exemplo de Marcos Mello 89, da oferta, inclusive ao público, cuja eficácia remete apenas, àquela esfera jurídica que exteriorizou a vontade negocial. A concepção de relação jurídica, conforme Amaral estaria vinculada à situação jurídica complexa multilateral, podendo ser conceituada como aquela que “se estabelece entre sujeitos, uns em posição de poder, e outros em correspondente posição de dever.”90 Para Marcos Mello91, essa correspectividade é um dos princípios fundamentais (entre a intersubjetividade e a essencialidade do objeto) a reger as relações jurídicas. Assim, apresenta o seguinte esquema representativo das relações jurídicas, aqui representadas pela letra R: 87 SUJEITO ATIVO R SUJEITO PASSIVO ↕ OBJETO ↕ DIREITO ↔ DEVER AMARAL, Francisco. Direito Civil – Introdução. 7 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 222. Aqui considerada a relação jurídica em sentido estrito, vez que, sendo todo o direito, relacional, guardando a sua própria razão de ser na coexistência humana, toda situação jurídica seria relação jurídica de forma ampla. Assim, por exemplo, as qualificações jurídicas como capacidade, só se justificam pela vivência das pessoas em face de outras. 89 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico. Plano da Eficácia 1ª parte. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 166. 90 AMARAL, Francisco. Direito Civil – Introdução. 7 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 195. 91 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico. Plano da Eficácia 1ª parte. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 173. 88 59 ↕ PRETENSÃO ↕ ↔ ↕ AÇÃO OBRIGAÇÃO ↕ ↔ SITUAÇÃO DO ACIONADO ↕ EXCEÇÃO ↕ ↔ SITUAÇÃO DO EXCETUADO O esquema apresentado por Marcos Mello, seguindo a diretriz de Pontes de Miranda é de extrema relevância para a compreensão dos elementos eficaciais das relações jurídicas, no entanto não se pode esquecer que algumas situações complexas vão se apresentar mais complexas ainda, como é o caso das relações jurídicas decorrentes do poder familiar. A própria denominação do instituto contribui para a confusão existente quanto às posições assumidas na relação jurídica. A palavra poder, mantida atualmente, ressalta a posição dos pais em relação aos filhos menores, conferindo uma falsa ideia de supremacia hierárquica, quando esse não é o telos contemporâneo do instituto. Considerando as relações jurídicas do poder familiar, inseridas no momento eficacial do fato jurídico92, se reconhece a dinamicidade do instituto. A estrutura do antigo pátrio poder não se adequa mais ao que se espera da relação entre pais e filhos em dias atuais. Quando a Constituição Federal expressa a prioridade absoluta dos interesses das crianças e adolescentes quanto à realização de seus direitos fundamentais, afasta qualquer interpretação contrária à ideia de que eles são, hoje, os principais sujeitos de direito do poder familiar e assim, juridicamente situados de maneira ativa. 92 Para Pontes de Miranda as relações jurídicas do Poder Familiar, ainda poderiam ser classificadas como relações intra-jurídicas, diferentemente das relações de parentesco que seriam fundamentais ou básicas. A distinção entre uma e outra consiste na ideia de que as relações básicas seriam a juridicização de relação, enquanto as outras seriam oriundas da eficácia do fato jurídico. PONTES DE MIRANDA, Francisco. Tratado de Direito Privado. Parte Geral. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, t. I, p. 120 a 123. 60 2.1.1 Situações Jurídicas Patrimoniais As relações jurídicas do poder familiar não são complexas apenas pela bilateralidade estruturante ou pela dificuldade em se definir as posições de seus sujeitos. Os interesses que animam os possíveis objetos desses tipos de relações, também sofreram significativas alterações na reconfiguração que fez do pátrio poder, o atual poder familiar. É certo que o fenômeno da repersonalização do direito privado coloca o ser humano no centro de interesse do ordenamento jurídico e é para a sua realização existencial que se deve voltar a atenção de todo aquele que se dedica ao estudo e à aplicação do direito. No entanto, isso não exclui a significativa importância dos bens materiais na vida das pessoas, inclusive considerando sua imprescindibilidade à manutenção da vida e à manutenção da sociedade. Assim é que durante o poder familiar, todos os direitos fundamentais, materiais ou imateriais, imaginados constitucionalmente e necessários à realização da dignidade humana, deverão ser garantidos às crianças e aos adolescentes, competindo primeiramente, aos pais, assegurar que sejam satisfeitos. Ainda que esteja claro que é na pessoa em si, que se concentram os fins do direito e, por isso mesmo, que os interesses existenciais ganham relevância em relação aos materiais, é inegável que o viés econômico também seja imprescindível à realização da personalidade dos sujeitos e assim, também, à satisfação daqueles interesses existenciais. Ocorre que, reconhecer o papel de devedores, dos pais, quanto aos gastos financeiros com alimentação, vestuário, mensalidades escolares de seus filhos, não causa estranhamento; no entanto, não é tão fácil admitir a existência de verdadeiros deveres, nas condutas necessárias e adequadas a garantir a construção e realização das personalidades de seus filhos, por se aproximem mais do aspecto emocional. Nas relações jurídicas entre pais e filhos, quando os interesses a serem realizados, forem materiais, parecem se revestir de um contorno jurídico mais definido. Todos os elementos do esquema anteriormente apresentado, nas lições de Marcos Mello estarão marcadamente presentes. Assim, por exemplo, na obrigação de prestar alimentos, temse, claramente, a presença do sujeito ativo e do passivo, de direito e dever, pretensão e obrigação, ação e situação do acionado, exceção e situação do excetuado. 61 Assim, no poder familiar, apresentam-se claramente, deveres de dar e de fazer, como já era, no sistema anterior, no entanto, entre as diferenças dos modelos, para além da atual igualdade entre os pais, no exercício do poder familiar, está a divisão de tarefas, que antes, concentrava os deveres de dar, sob a responsabilidade paterna, reservando o fazer, às mães. Atualmente, ainda se cobra mais o cuidado da mãe e o sustento material do pai, mas, a justificativa para isso, ainda é cultural e não mais, jurídica. 2.1.2 Situações Jurídicas Existenciais Enfatizando o aspecto atributivo da situação jurídica, embora ressaltando a relação entre sujeitos e objeto (res em sentido mais geral, que vai da parcela do mundo físico, passando pelos atos humanos até às qualificações morais e sociais), Torquato de Castro critica o idealismo presente em diversas tentativas de conceituar situação jurídica, o que fica evidenciado na definição, influenciada pela filosofia existencialista, de situação, que seria “a realidade do homem enquanto existência situada93” (grifo do autor). Em termos jurídicos, significando “a pura realidade existencial do homem, já visto como imerso nos fatos, já como sujeito, diante da ordem jurídica. 94” Assim, tanto as situações de fato como as situações jurídicas, seriam situações existenciais. A afirmação que insere no contexto existencial, toda e qualquer situação jurídica, ainda que voltada para os interesses puramente patrimoniais, serve, também, para ressaltar as circunstâncias do caso concreto a ser considerado, fugindo de uma abstração positivista superada. A percepção do caso concreto vai ser importante para, mais adiante, traçar o que pode ou não ser considerado como impossibilidade, em um sentido mais amplo, de cumprir com os deveres que se tenha, considerando a impossibilidade, como falta de capacidade financeira, mais facilmente percebida, como também, como ausência de capacidade emocional. Ainda que sejam consideradas, toda e qualquer situação jurídica, uma situação existencial, ainda é possível proceder com a classificação em direitos existenciais e patrimoniais, a depender se o conteúdo econômico do interesse a ser protegido, for 93 CASTRO, Torquato. Teoria da Situação Jurídica em Direito Privado Nacional: Estrutura, causa e título legitimário do sujeito. São Paulo: Saraiva, 1985, p. 53. 94 CASTRO, Torquato. Teoria da Situação Jurídica em Direito Privado Nacional: Estrutura, causa e título legitimário do sujeito. São Paulo: Saraiva, 1985, p. 53. 62 considerado principal, meramente instrumental ou ausente. Nas relações do poder familiar, os interesses a serem perseguidos, serão todos, quase absolutamente, existenciais, prevalecendo o caráter instrumental do conteúdo econômico na maioria dos direitos subjetivos que decorram daquelas relações jurídicas. Nesse sentido, afirma Perlingieri, que “um conceito exclusivamente patrimonialista não responde aos valores os quais inspiram um ordenamento moderno.95” Diante da relevância constitucional, voltada aos interesses existenciais, sobretudo a partir de uma principiologia que inicia no ideal de dignidade humana é até possível incluir certos interesses patrimoniais na categoria de situações jurídicas existenciais. “São (...) situações patrimoniais que por seu estreito vínculo com o livre desenvolvimento da pessoa, assumiram relevância existencial.96” Assim considerados a partir dos interesses, os direitos próprios do poder familiar, sejam eles patrimoniais ou não, deverão estar inseridos no conceito de situações jurídicas existenciais, tendo em vista que é para a realização da pessoa que eles se apresentam no poder familiar. Na realidade, as situações jurídicas devem ser consideradas como um corpo único composto por sujeitos em suas posições específicas e seus conjuntos de interesses sejam eles de qualquer natureza, desde que considerados relevantes, sérios e úteis pelo ordenamento jurídico nacional. Ainda assim, é necessário apresentar a tradicional classificação bipartida para, no mínimo, para mostrar a incoerência de se aceitar as relações jurídicas patrimoniais com seus elementos de direitos e deveres, pretensões e obrigações e titubear quando se trate de relações jurídicas existenciais, apenas por lhes faltar o conteúdo econômico e estarem, frequentemente, acompanhadas de forte carga emocional. Considerando a estrutura relacional e o reconhecimento jurídico dos interesses que buscam realizar, é fácil perceber que não assiste razão para uma percepção tão marcadamente distinta entre elas. Nas suas diversas possibilidades relacionais, a família é, para a doutrina atual, de vital importância, como local de realização da personalidade de seus integrantes. Com 95 Tradução livre para “Uma concezione esclusivamente patrimonialistica non responde ai valori ai quali s’ispira un ordinamento moderno”. PERLINGIERI, Pietro. Il Diritto Civile nella Legalità Constituzionale. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 1991, p. 318. 96 Tradução livre para “Vi sono (...) situazioni patrimoniali che, per lo stretto legame al libero sviluppo della persona, assumono rilevanza esistenziale PERLINGIERI, Pietro. Il Diritto Civile nella Legalità Constituzionale. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 1991, p. 318. 63 relação às crianças e adolescentes é ainda o ambiente necessário à construção e ao desenvolvimento de suas personalidades. Assim é nesse propósito que devem se concentrar os esforços dos pais/mães, para que seus filhos se desenvolvam de maneira plena. 2.2 Direitos Subjetivos e Deveres no Poder Familiar Considerando a mudança dos paradigmas que salientam na sociedade, os interesses dos vulneráveis, como também, o reconhecimento da realização da personalidade, como razão de ser das entidades familiares, compreende-se a mudança de perspectiva do poder familiar que, atualmente, encontra justificativa no melhor e superior interesse das crianças e adolescentes, enquanto vivenciam a fase de suas vidas que se volta, não apenas para a realização, mas antes, para a construção de suas personalidades. Não havendo dúvidas quando ao posicionamento das crianças e adolescentes como sujeitos de direito na relação jurídica de poder familiar, pretende-se mostrar que essa situação jurídica ativa significa, também, a titularidade de direitos subjetivos que correspondem a deveres jurídicos dos pais na persecução de seus interesses. A complexidade da vida contemporânea impõe uma reconfiguração dos direitos subjetivos, para acomodá-los em um ambiente jus-sócio-político democrático e solidário. Isso se torna possível a partir do momento em que se reconhecem nos direitos subjetivos, criações jurídicas que se voltam a cumprir determinadas funções, entre elas, evidenciar os interesses a serem tutelados, viabilizando a realização de seus titulares no âmbito da eficácia relacional. Para Eduardo Rabenhorst97, os direitos subjetivos consistem em um constructum e com tal afirmação, justifica o surgimento de tantas teorias na busca de esclarecer seu significado, cada uma delas considerando o cenário jurídico onde atuavam os autores que mais se destacaram nesse propósito. Historicamente, a noção de direito subjetivo está relacionada ao movimento liberal e democrático e surge com a finalidade de proteger os indivíduos da opressão e 97 RABENHORST, Eduardo R. Dignidade Humana e Moralidade Democrática. Brasília: Brasília Jurídica, 2001. p. 58 64 dos abusos do absolutismo estatal98. Como uma das características do Estado Liberal era a liberdade individual com amplos poderes conferidos pela codificação civil em face de um Estado mínimo, distante o suficiente para não interferir nas relações privadas, o papel da vontade ganha relevo ao ponto de ser, esta, considerada por grandes juristas, o substrato dos direitos subjetivos, como foi o caso de Savigny e Windscheid99. Pela teoria da vontade (willentheorie), de raiz germânica, direito subjetivo seria “o poder juridicamente protegido que exerce a vontade de uma pessoa sobre a outra”100. As críticas à teoria voluntarista, apesar de sua ampla aceitação ao longo do século XIX, passam da exclusão de algumas pessoas que não seriam capazes de expressar por si sós, suas vontades e estariam assim, impossibilitadas de “terem” tais direitos, como é o caso dos incapazes, até à impossibilidade de negar a existência de direitos subjetivos em algumas situações, ainda que não seja apresentada a vontade de exercê-los, como no caso do credor de uma determinada importância que não se disponha a cobrar do devedor a conduta correspondente. O não exercício do direito pela carência da vontade não poderia significar a ausência do direito101. Buscando superar a teoria anterior, estaria a ideia defendida por Ihering, de colocar o interesse juridicamente protegido e não a vontade, no centro de atenção e, assim, na essência dos direitos subjetivos (Interessendogma)102. Segundo a teoria do interesse, haveria dois elementos na composição dos direitos subjetivos, um substancial (vantagem ou benefício a ser atingido) e outro formal (proteção jurídica que assegura a realização daqueles benefícios e vantagens)103. Miguel Reale explica a relevância do interesse na teoria de Ihering, para quem, toda relação jurídica possui uma: (...) forma protetora, uma casca de revestimento e um núcleo protegido. A capa que reveste o núcleo é representada pela norma jurídica, ou melhor, pela proteção à ação, o que quer dizer, por aqueles remédios jurídicos que o Estado confere a todos para a defesa do que lhes é próprio. O núcleo é representado por algo que interessa ao 98 AMARAL, Francisco. Direito Civil – Introdução. 7 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 229. AMARAL, Francisco. Direito Civil – Introdução. 7 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 229. 100 RABENHORST, Eduardo R. Dignidade Humana e Moralidade Democrática. Brasília: Brasília Jurídica, 2001. p. 59. 101 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 1978, p. 250. 102 RABENHORST, Eduardo R. Dignidade Humana e Moralidade Democrática. Brasília: Brasília Jurídica, 2001. p. 60. 103 AMARAL, Francisco. Direito Civil – Introdução. 7 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 230. 99 65 indivíduo. O direito subjetivo, segundo Ihering, é esse interesse enquanto protegido104. A principal crítica lançada contra a teoria do interesse consistiu em apontar a confusão entre o conteúdo dos direitos subjetivos e seus fins, já que são considerados na combinação de dois elementos: um substancial, que é a própria vantagem em si, e outro formal, que é a sua proteção jurídica105. Apesar da seriedade da crítica à teoria do interesse protegido, não há como se confundir o conteúdo (essência) com a proteção que dele decorre, apesar de constituírem, ambos os elementos, a lógica dos direitos subjetivos. Por exemplo, o direito de propriedade se define pelos elementos que o integram que são os direitos de usar, gozar, dispor e reivindicar determinadas coisas. O direito de crédito se define pela exigibilidade de determinadas condutas do outro sujeito relacional e que correspondam ao interesse do credor. Em todos os casos, os direitos subjetivos corresponderão aos seus conteúdos, enquanto interesses que, por sua vez, estarão juridicamente protegidos com as respectivas ações possíveis para sua realização. Enquanto técnica jurídica, o maior desafio na compreensão dos direitos subjetivos na contemporaneidade está, tão somente, na sua contextualização, clamando que sejam adaptados ao momento histórico, econômico, jurídico e político da sociedade e assim, definindo quais sejam os interesses relevantes ao ponto de merecerem tutela jurídica. Lembrando que o princípio motor da dignidade humana impõe ainda, que se observem as desigualdades entre as diversas pessoas, considerando especiais, os interesses dos grupos vulneráveis. Sendo os direitos subjetivos, um constructum, é plenamente possível moldá-los adaptando-os de acordo com seus fins. A importância de se levar em consideração as teses contrárias, se encontra exatamente, em enxergar as falhas de construção para que, superando-as, permita o aperfeiçoamento da técnica. Por exemplo, no caso do positivismo sociológico, que negava os direitos subjetivos, impondo a observação dos fatos sociais, exatamente por salientar que a “contingência social que envolve o indivíduo”, terminou, contrariamente, por contribuir para a teoria dos limites dos direitos subjetivos, fazendo surgir as figuras jurídicas do 104 105 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 1978, p. 251- 252. AMARAL, Francisco. Direito Civil – Introdução. 7 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 230. 66 abuso do direito, da função social da propriedade e das limitações da ordem pública ao exercício da autonomia privada.”106 Outra corrente que buscava a negação dos direitos subjetivos, o positivismo normativista, também contribuiu para a compreensão de que os direitos subjetivos dependem dos direitos objetivos e isso não excluiria uma coexistência harmônica107. Alf Ross108, em seu Tû Tû, apresenta os direitos subjetivos como abstrações racionalizáveis, cumprindo o fim de vincular o fato jurídico ao seu consequente, bem como, de organizar o ordenamento jurídico, tornando-o mais ágil, por facilitar a percepção dos fatos e seus consequentes, vez que estariam ordenados por esses direitos subjetivos (tû tûs) que seriam os seus elos. Por mais surreal que pareça a apresentação dos direitos subjetivos em Alf Ross, é nela que se percebe uma das melhores definições de direitos subjetivos. Como já foi dito anteriormente, é preciso apenas, contextualização. O problema é que, sendo os direitos subjetivos, ficções jurídicas e permanecendo ainda, o tabu que envolve a família, afastando a interferência de terceiros, o que inclui o Estado, observa-se a influência da tradição na utilização desses conceitos. Assim, considerar a presença de direitos subjetivos em alguns momentos, implicaria inicialmente, admitir pretensão em certas searas das relações familiares, que por sua vez, traria o Estado para a intimidade do lar. Esse raciocínio tradicional contraria normas explícitas da Constituição Federal, a exemplo dos direitos das crianças e adolescentes, que não se limitam apenas, ao elenco do artigo 227, mas, ainda são fortalecidos pela atribuição de responsabilidades em deveres que recaem primeiramente, sobre a família, para a realização daqueles interesses. É inadmissível, no ambiente preparado pela Constituição Federal, afastar, do âmbito do poder familiar, a titularidade dos filhos menores, de verdadeiros direitos subjetivos existenciais, sobretudo porque se tratam de interesses tão relevantes que são prioritários, o que traduz da melhor maneira, a linha humanista do direito contemporâneo. 106 AMARAL, Francisco. Direito Civil – Introdução. 7 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 228. AMARAL, Francisco. Direito Civil – Introdução. 7 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 228. 108 ROSS, Alf. Tû-Tû. São Paulo: Quartier Latin, 2004. Passim. 107 67 2.3 Definindo os Direitos Subjetivos nas Relações Jurídicas do Poder Familiar com base na Teoria de Hohfeld Somado à dificuldade cultural, encontra-se o problema semântico para admitir a aplicação da técnica dos direitos subjetivos nas relações de família, especialmente, nas relações decorrentes do poder familiar. Isso porque a palavra direito serve a vários propósitos. Juridicamente, o termo serve para acomodar o direito objetivo em todas as modalidades normativas, bem como o direito subjetivo em todas as maneiras concebíveis. A língua inglesa ainda faz uma distinção entre o termo law, com que se nomeia o direito objetivo e right, para direito subjetivo. Ainda assim, persiste a dificuldade em definir o que, realmente, significa ter um direito. Uma das melhores contribuições para esclarecer o termo direito subjetivo em suas variadas possibilidades partiu do estudo do professor norte-americano Wesley Newcomb Hohfeld, que no início do século passado, no ano de 1913, escreveu o artigo intitulado Fundamental Legal Conceptions as apllied to Legal Reasoning, para, de maneira analítica, afirmar precisamente todas as significações da palavra direito, separando aquilo que é termo de uso comum e aqueles utilizados pelos operadores do direito. Também vale ressaltar que o estudo do professor Hohfeld não tentou unificar o conteúdo do direito subjetivo, nem buscou explicar sua natureza. Como na tradição analítica, sua teoria equilibra-se com outras de juristas que consideram os direitos subjetivos, entidades imaginárias com funções simplesmente diretivas ou técnicas, como foi o caso do realismo jurídico escandinavo representado pelo jus-filósofo anteriormente mencionado, Alf Ross109. Explica o autor que: A tendência para confundir ou misturar conceitos não-legais e legais consiste na ambiguidade e frouxidão de nossas terminologias jurídicas. A palavra “propriedade” fornece um notável exemplo. Tanto para os juristas como para os leigos, este termo não possui conotação definida ou estável. Às vezes, é empregado tanto para indicar o objeto físico até os direitos, privilégios, etc, a ele relacionados. Então, novamente, com uma discriminação muito maior e precisão – a palavra é usada para denotar o interesse jurídico (ou agregado de relações jurídicas), pertencentes a tal objeto físico. Frequentemente, acontece uma rápida e enganosa mudança de um sentido para 109 RABENHORST, Eduardo R. Dignidade Humana e Moralidade Democrática. Brasília:Brasília Jurídica, 2001. p. 64-65. 68 outro. Às vezes, também, o termo é utilizado em tal sentido “misturado”, como se para transmitir um significado não definitivo 110. O mérito de Hohfeld consistiu em distinguir quatro tipos de situações em que o termo direito subjetivo pode ser empregado: Direito (no sentido de pretensão), Privilégio, Poder e Imunidade, cumprindo esclarecer que sua teoria se aplica apenas às situações jurídicas que correspondam a relações jurídicas, não devendo ser empregada, por exemplo, naquelas situações simples ou complexas unilaterais. Para Hohfeld, tais situações possíveis de se experimentar um direito subjetivo ficam mais bem definidas a partir de um esquema que as relacione tanto com suas correlações, como com seus termos opostos, da seguinte forma111: Correlações Jurídicas: DIREITO (pretensão) ↔ DEVER PRIVILÉGIO ↔ NÃO DIREITO PODER ↔ SUJEIÇÃO IMUNIDADE ↔ INCOMPETÊNCIA Opostos Jurídicos: DIREITO (pretensão) ↔ NÃO DIREITO PRIVILÉGIO ↔ DEVER PODER ↔ INCOMPETÊNCIA IMUNIDADE ↔ SUJEIÇÃO O esquema de Hohfeld fica ainda mais claro, a partir da síntese feita por Adrian Sgarbi, referindo-se ao campo das correlações, utilizando os símbolos X e Y, para 110 “The tendency to confuse or blend non-legal and legal conceptions consists in the ambiguity and looseness of our legal terminology. The word “property” furnishes a striking example. Both with lawyers and with laymen this term has no definite or stable connotation. Sometimes it is employed to indicate the physical object to which various legal rights, privileges, etc., relate; then again – with far greater discrimination and accuracy – the word is used to denote the legal interest (or aggregate of legal relations) appertaining to such physical object. Frequently there is a rapid and fallacious shift from the one meaning to the other. At times, also, the term is used in such a “blended” sense as to convey no definite meaning whatever”. (Tradução livre). HOHFELD, Wesley Newcomb. Fundamental Legal Conceptions as apllied to Legal Reasoning-I. New Haven: Yale University Press, 1918, p. 28. 111 Jural Correlatives: right/duty; privilege/no-right; power/ liability; immunity/ disability. Jural Opposites: right/no-right; privilege/duty; power/disability; immunity/liability. HOHFELD, Wesley Newcomb. Fundamental Legal Conceptions as apllied to Legal Reasoning-I. New Haven: Yale University Press, 1918, p. 36. 69 significar os polos da relação jurídica e p, para determinar certo tipo de ato. Então se tem: a) (Direito-dever): se X tem um direito que Y deva p, o correlativo é que Y tem um dever de p diante de X; b) (Privilégio-não direito): se X tem a permissão de Y de fazer p, Y não tem o direito de impedir p; c) (Poder-sujeição): se X tem o poder de modificar a posição jurídica de Y quanto a p, a posição jurídica de Y é subordinada a de X quanto à p; d) (Imunidade-incompetência): se Y tem uma imunidade diante de X, X não tem um poder de modificar a posição jurídica de Y quanto à p. a) Ter direito-pretensão frente a alguém significa estar em posição de exigir algo de alguém. b) Ter um privilégio frente a alguém significa não estar sujeito a qualquer pretensão sua. Privilégio expressa aqui ausência de dever. c) Ter um poder frente a alguém significa possuir a capacidade jurídica (competência) de modificar a situação jurídica desse alguém. d) Ter uma imunidade frente a alguém significa que esse alguém não tem o poder normativo de alterar-lhe a situação jurídica, pois é incompetente normativamente para isso112. A contribuição de Hohfeld está em considerar outras situações jurídicas que correspondem ao direito subjetivo, para além da relação direito subjetivo/pretensão, apresentada no esquema de Marcos Mello, reproduzido no início deste capítulo. Assim, admitindo a vinculação entre direitos subjetivos e direitos objetivos e com a finalidade de apontar as possíveis situações jurídicas dos sujeitos integrantes do poder familiar (pais e filhos), devem ser analisadas algumas das regras de direito civil e constitucional, que regem essas relações para, partindo delas, chegar à conclusão de que, atualmente, não será possível negar a posição dos filhos como verdadeiros sujeitos de direito em face dos deveres parentais. Entende-se desnecessário, para este momento, realizar o exame das normas do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), vez que especializam as regras gerais apontadas pelos outros dois diplomas normativos. Ainda com base na doutrina de Hohfeld, interpretada por Sgarbi no viés da lógica jurídica, sendo as normas primárias, normas de conduta sobre as quais se assentam as qualificações elementares dessas condutas, cumprindo suas funções de estatuir o proibido, o obrigatório e o permitido, Sgarbi apresenta as seguintes representações para tornar evidentes tais inter-relações: O = Obrigatório; P = Permitido; Ph = Proibido; p = comportamento qualquer; ~ = negação. Assim: 112 SGARBI, Adrian. HOHFELD, Wesley Newcomb, 1879-1918. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (coord.) Dicionário de Filosofia do Direito. Rio Grande do Sul: Unisinos; Rio de Janeiro: Renovar. 2006, (p. 443-448), p. 445. 70 a) Pp = ~O ~p = ~Php b) ~Pp = O ~p = Php c) P ~p = ~Op = ~Ph ~p d) ~P ~p = Op =Ph ~p 113 Usando o esquema lógico acima, com o elenco de correlações de Hohfeld, tomem-se as regras do art. 1.634 do Código Civil que elencam as competências dos pais em relação à pessoa dos filhos, na vigência do Poder Familiar. O inciso I atribui-lhes a direção da criação e da educação dos filhos. Não se trata apenas de uma permissão, mas, de imposição de conduta que, se não for observada, poderá resultar em sanções civis e até, penais, caso incida o tipo penal, por exemplo, de abandono intelectual. Desta forma, para o inciso I, tem-se Op ou ~P ~p ou Ph ~p, restando claro que estamos diante de um dever jurídico que se correlaciona, então, ao direito subjetivo que situa os filhos como titulares de pretensões. O inciso II aponta a competência dos pais com relação a ter os filhos sob sua companhia e guarda. Também se tratando de um comportamento obrigatório o que pode ser constatado na ausência de liberdade de se agir de outro modo, sob pena inclusive, de responder criminalmente, por abandono de incapaz (art. 133 CP) ou, dependendo do caso, por entrega de filho menor a pessoa inidônea (art. 245 CP). Assim, Op ou ~P ~p ou Ph ~p. É possível argumentar que a convivência familiar, que é um direito dos filhos, inclusive merecendo capítulo próprio no título referente aos direitos fundamentais do ECA, também seja um direito dos pais. No entanto, enquanto os filhos são menores e, exatamente por isso, necessitem da proteção e do cuidado que viabilize um crescimento saudável, o caráter de dever dos pais ressaltará em prol dos interesses prioritários de seus filhos. Aqui, também então, têm-se os correspondentes direitos/pretensões dos filhos em face da conduta parental juridicamente devida. O inciso III atribui aos pais, autorizar ou negar autorização de casamento a seus filhos menores. Percebe-se aqui, que a alternatividade já aponta certa liberdade aos pais. Também não existe nenhuma consequência negativa para o descumprimento da conduta, no máximo, a ausência de autorização poderá ser suprida por um juiz 113 SGARBI, Adrian. HOHFELD, Wesley Newcomb, 1879-1918. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (coord.) Dicionário de Filosofia do Direito. Rio Grande do Sul: Unisinos; Rio de Janeiro: Renovar. 2006, (p. 443-448), p. 445. 71 competente. Assim, a conduta verificada nesta regra, se aproximará mais de uma permissão, ou seja Pp ou ~O ~p ou ~Ph ~p, conduzindo a uma situação de poder dos pais e a correspondente sujeição dos filhos. O inciso IV com a hipótese de qualquer dos pais nomearem tutor por testamento ou documento autêntico, caso o outro dos pais não lhe sobreviva, ou sobrevivendo, não possa exercer o poder familiar, também não irá além de uma conduta permitida representada por Pp ou ~O ~p ou ~Ph ~p, mais uma vez sujeitando os filhos a este poder dos pais, ainda que sempre, para o melhor interesse daqueles. O inciso V atribui aos pais a representação legal e a assistência de seus filhos menores, nos atos da vida civil. Havendo interesses dos menores em jogo, os pais não podem se furtar de representá-los ou assisti-los evitando que, futuramente, respondam pelos prejuízos causados por suas desídias. Assim, na proteção dos legítimos interesses dos filhos menores, estar-se-á diante de verdadeira obrigação para cumprir a imposição legal, representando-se, mais uma vez por Op ou P ~p ou Ph ~p e então, direito (pretensão) dos filhos correspondendo a mais um dever parental. O inciso VI pareceria inicialmente, um direito dos pais que estariam autorizados a reclamar seus filhos de quem ilegalmente os detenha. Se estivéssemos no campo dos direitos reais, poder-se-ia falar em direito de sequela, viabilizando a aproximação material necessária ao exercício das demais faculdades que compõem o direito de propriedade. Mas, o foco de interesse aqui não são coisas, são pessoas que se encontram no momento de merecerem a maior proteção possível. Assim, a conduta que a regra traça, não objetiva garantir os interesses dos pais, como acontece com relação ao proprietário, mas, sim dos filhos reclamados. Ainda pode-se afirmar que a companhia e guarda dos filhos é, antes, um dever dos pais no exercício do poder familiar. Dessa forma, note-se que o presente inciso complementa o inciso II já comentado, impondo assim, uma obrigação dos pais, de cuidado com seus filhos menores. Mais uma vez, será Op ou P ~p ou Ph ~p, assim, a situação dos filhos será de titulares de direito/pretensão, uma vez que será a situação correlacionada ao dever jurídico de seus pais, conforme o esquema de Hohfeld. O inciso VII autoriza os pais exigirem obediência e respeito de seus filhos, assim como impor-lhes os serviços próprios de sua idade e condição. Trata-se de liberdades conferidas pelo direito aos pais, ainda que atreladas ao dever de dirigir a criação e 72 educação de seus filhos, na busca do interesse destes. Dentro dos limites do melhor exercício do poder familiar, podem os pais, impor respeito a seus filhos menores da maneira que julgar conveniente considerando-se esta, a seara da relação jurídica cuja competência se restringe ao julgamento pessoal do pai e da mãe, inclusive por melhor conhecerem a personalidade de seus filhos, na condução de seus deveres. Assim, respeitando os interesses dos filhos menores, estar-se-á diante de uma permissão normativa representada por Pp ou ~O ~p ou ~Ph ~p na relação de poder/sujeição, quando se referir a relação entre pais e filhos e privilégio/não-direito quando for considerada a relação pais/Estado. A Constituição Federal deixa ainda mais clara a compreensão de que o Poder Familiar, tal como deve ser exercido atualmente, é composto mais por deveres parentais e seus correlatos direitos subjetivos filiais, do que por permissões que iriam conferir apenas poderes aos pais, aos quais ficariam apenas sujeitos, os filhos menores, ou ainda, privilégios dos pais, diante do não-direito do Estado de impedi-los de se conduzirem com uma liberdade que, talvez, não atendesse a verdadeira finalidade do instituto. A redação do texto constitucional não deixa dúvidas quanto ao que foi colocado acima, apresentando-se da seguinte maneira, quando se trate especificamente dos direitos das crianças e dos adolescentes: Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (grifo nosso) Da mesma maneira, impondo uma conduta obrigatória e recíproca de cuidado e proteção, entre pais e filhos, considerando o especial momento da infância e juventude, bem como a idade avançada dos pais, na maioridade de seus filhos, conforme prescreve o texto do art. 229: “Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”. 73 2.4 Liberdades no Exercício do Poder Familiar Interessante temática ao se referir às relações familiares, com maior ênfase nas relações entre pais e filhos, é a que trata das liberdades. Pode-se falar em liberdade no que se refere ao planejamento familiar, sendo inclusive, direito assegurado constitucionalmente114. Tanto faz a opção de não vir a ter filhos, como tê-los em quantidade reduzida, assim como abarcar o maior número possível em sua prole. Os métodos contraceptivos são permitidos no país, embora não se admita o abortamento fora das exceções do direito penal. Também as técnicas de reprodução assistida não encontram proibição legal, apenas restrições éticas. A adoção é uma opção, submetida à avaliação das condições favoráveis pelo Estado, observados requisitos objetivos e que favoreçam o melhor interesse dos menores. Assim é mais enfática a noção de liberdade, antes de ser estabelecido o vínculo parental. Depois, é principalmente na falta de opção que se deve arrimar essa e muitas outras modalidades de relações jurídicas familiares. Luíz Pondé, comentando os riscos das liberdades nas relações familiares, advoga pela necessidade de se manterem os vínculos, inclusive em rituais que ultrapassam o interesse jurídico. Para ele a manutenção da vida familiar, depende da falta de opção: Famílias se mantêm unidas apenas pela obrigação dos ritos do almoço de domingo ou da noite de Natal ou da Páscoa judaica. O amor nasce do peso do rito contínuo. Claro que pode haver rito e não haver amor, mas isso não implica que haja amor duradouro sem rito. O amor é frágil e sobrevive mal na realidade. A falta de escolha, normalmente é quem faz você permanecer até o fim115. Diante de tudo o que foi exposto, não resta dúvidas de que a liberdade não é a palavra de ordem nas relações entre pais e filhos, reguladas pelas normas do poder familiar. O conjunto normativo é composto, também, por regras que impõem condutas que se inobservadas, sem motivo relevante que justifique o descumprimento, resultarão consequências negativas para os devedores das condutas. 114 “Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...) § 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.” 115 PONDÉ, Luiz Felipe. Liberdade. In: Contra um Mundo Melhor. Ensaios do Afeto. São Paulo: Leya, 2010, p. 188. 74 No entanto, também é certo que é preciso deixar uma margem de conduta livre dentro do contorno das regras, inclusive para viabilizar a manutenção de laços e, não, correntes, unindo os membros de uma família, propiciando o cuidado e a delicadeza com que os parentes devem se tratar. A privacidade também é direito conferido à família, como direito constitucional fundamental assegurado a todos os seus integrantes, assim também, por imposição da regra de direito civil, expressa pelo art. 1.513 do CC116. No caso das relações entre pais e filhos, na abrangência das normas do poder familiar, existem interesses pessoais que extrapolam o interesse do grupo familiar, permitindo a interferência estatal, caso os interesses prioritários das crianças e adolescentes não estejam se realizando por condutas comissivas ou omissivas imputadas àqueles que, primeiramente, deveriam satisfazê-los, que são seus pais. Ocorre que, nem todas as vivências experimentadas nas relações entre pais e filhos, deverão merecer o rótulo de relações jurídicas. Ou, ainda, dentre os comportamentos necessários ao exercício do poder familiar, haverá aqueles que dependerão unicamente da conveniência julgada pelos pais, sendo as pessoas mais aptas a conhecerem as necessidades rotineiras de seus filhos. Pode-se afirmar, então, que a experiência familiar comporta em parte, verdadeiras relações jurídicas e por outro lado, relações sociais não juridicizadas e, portanto, afastadas da incidência das normas jurídicas. A liberdade, nesses casos, será razoável quando o objetivo final de qualquer relação jurídica, sobretudo as existenciais, é a concretização da dignidade humana. Amaral comenta o pensamento de Savigny, afirmando que: (...) nem todas as relações de homem a homem entram no domínio do direito, nem todas têm necessidade, nem todas são suscetíveis de serem determinadas por uma regra de tal gênero. Cabe, pois, distinguir três casos: ora a relação está inteiramente dominada por regras jurídicas, ora está somente em parte, ora escapa a elas por completo. A propriedade, o matrimônio e a amizade podem servir como exemplo dos três diferentes casos.117 116 “Art. 1.513. É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família.” 117 AMARAL, Francisco. Direito Civil – Introdução. 7 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 198. 75 A relação entre pais e filhos, também estaria, juntamente com o matrimônio, nesta forma intermediária, compreendendo tanto relações jurídicas como também, relações puramente sociais ou morais. Deve ser assim, até mesmo para que se favoreça a realização da personalidade de cada membro enquanto objetivo da vida familiar, no ideal de dignidade que também exige liberdade e respeito à privacidade. O risco que não se deseja correr, na interpretação das normas jurídicas familiares, sobretudo as que compõem o poder familiar, é de limitar a juridicidade das relações apenas quando estiverem presentes os interesses patrimoniais, afastando, por completo a noção de direitos e deveres nas relações familiares quando se tratem de interesses puramente existenciais, sob a antiga justificativa do respeito à intimidade familiar. Por tudo o que foi exposto no item anterior, não resta dúvidas que existem deveres jurídicos dos pais quanto à criação e educação de seus filhos menores e assim, em correspondência, o direito exigível destes de serem criados e educados. Educar, no entanto, é um dever amplo que não se resume, apenas, no pagamento de mensalidades escolares. A escolaridade é parte da formação pessoal, mas, não a torna completa. No entanto, competindo aos pais, dirigir a criação e educação, a eles deve ser assegurada certa liberdade no que se refere aos métodos que julgarem adequados. Assim, por sua vez, não deverão sofrer interferências por parte do legislador ou do Judiciário, as modalidades esportivas que deverão matricular seus filhos, também o horário da TV, a quantidade de legumes que se deve comer por dia, se vão seguir uma dieta restritiva de carne vermelha, a maneira de exigir obediência, etc. Os limites da liberdade relacional se encontram nos direitos de personalidade dos sujeitos cujos interesses prevalecem nas relações do poder familiar. Assim, ainda que diante de verdadeiros privilégios, face ao não direito do Estado intervir nesses hiatos de liberdade, é o dever jurídico de proteção integral, que será explicado na sequencia, voltado para a concretização dos interesses prioritários dos filhos, enquanto não atinjam a idade que lhes confira a autonomia, que deve dizer se estão ou não, sendo respeitadas as margens dessa liberdade. 76 2.5 Proteção Integral para a Concretização dos Interesses da Criança e do Adolescente Conforme visto, tanto os objetivos das normas do poder familiar como os limites das liberdades permitidas nas relações parentais, convergem para a noção de proteção integral e interesses prioritários das crianças e dos adolescentes. Essa parece ser a força motriz das relações entre pais e filhos, animada pela ideia de afetividade que será abordada ao final deste capítulo. Para compreender melhor o tema, faz-se necessário tecer uma breve abordagem dos caminhos percorridos, passando pelo reconhecimento internacional de que a infância e juventude merecem atenção especial, até a compreensão de seu alcance no ordenamento pátrio. É inegável que, durante muito tempo, as crianças e adolescentes não receberam a atenção compatível com o momento de vida que experimentavam. Já que foram, por muito tempo, vistos como adultos em miniatura,118 era comum vê-los inseridos no mercado de trabalho, assim como lançados a uma vida conjugal precoce e nada disso parecia escandalizar a sociedade, exatamente porque tudo isso era muito comum. Como o Brasil se trata de um país relativamente novo, pode-se afirmar que essa visão sobre a infância acompanhou quase toda a sua existência, considerando que a mudança de percepção com relação aos pequenos, somente ganha ênfase no século passado. No início do século XX, ainda eram comuns os casamentos na adolescência (principalmente para as meninas) e o trabalho infantil no comércio, nas atividades rurais e no âmbito doméstico. Foi no século passado que começou a ser traçado um novo olhar sobre a criança e o adolescente. A partir de uma percepção mais humanista, com ênfase nos direitos fundamentais, os períodos da infância e adolescência começam a ser percebidos como os momentos 118 “Na Idade Média não havia uma consciência da particularidade infantil, a criança era diferente do homem apenas no tamanho e na força, sentimento expresso nas representações infantis que colocavam a criança como um espelho miniaturizado do adulto. Foi no séc. XIV que se apresentou uma tendência na arte, iconografia e religião para exprimir a personalidade que se admitia existir nas crianças, o sentido poético e familiar que se atribuía a sua particularidade, mas somente nos sécs. XVI e XVII, nas camadas superiores da sociedade, que esse sentimento foi aflorado, sobretudo, no uso de um traje especial que distinguia a criança do adulto.” P. Ariès apud MEIRELLES, Rose Melo Vencelau. O Princípio do Melhor Interesse da Criança. In: MORAES, Maria Celina Bodin de. (coord.) Princípios do Direito CivilContemporâneo. Rio de janeiro: Renovar, 2006 (p. 459-493), p. 463. 77 mais especiais da formação pessoal e, por isso mesmo, faz-se necessário reconhecer sua vulnerabilidade para garantir a máxima proteção que necessitam. O século XX foi palco de grandes guerras, mas, também (e ainda, por causa disso) de relevantes discussões a respeito de temas que se voltavam à tutela dos direitos humanos. Entram em vigor normas importantes, com validade nacional ou abrangência internacional, com comandos voltados à proteção da criança e do adolescente. A Declaração de Genebra de 1924 foi o primeiro documento internacional a expor a necessidade de se conferir à criança e ao adolescente, uma proteção especial. No entanto, foi a partir do fim da 2ª Grande Guerra, com a criação da ONU, que temas como estes ganharam maior importância, sobretudo depois das barbaridades sofridas pela humanidade naquela guerra. A Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas de 1948, inspiradora de nossa constituição democrática nos direitos fundamentais nela elencados, recolocando a pessoa humana no centro de interesses do ordenamento, desautoriza qualquer postura que reduza a condição humana em relação à plenitude e dignidade que ela impõe. Em 1959, com a Declaração Universal de Direitos da Criança, da qual o Brasil é signatário, é apresentada uma série de princípios que devem orientar os Estados sobre a postura a ser adotada com relação à criança e ao adolescente no sentido de garantir-lhes, não apenas os direitos humanos dirigidos a todas as pessoas, mas, ainda outros especiais de sua condição. Nela se observa a proteção integral necessária ao seu melhor desenvolvimento físico e moral, reconhecendo seus interesses, como melhores e superiores.119 119 Como pode ser observado no texto dos princípios 2 (A criança gozará proteção social e ser-lhe-ão proporcionadas oportunidades e facilidades, por lei e por outros meios, a fim de lhe facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, de forma sadia e normal e em condições de liberdade e dignidade. Na instituição das leis visando este objetivo levar-se-ão em conta sobretudo, os melhores interesses da criança.); 7 (A criança terá direito a receber educação, que será gratuita e compulsória pelo menos no grau primário. Ser-lhe-á propiciada uma educação capaz de promover a sua cultura geral e capacitá-la a, em condições de iguais oportunidades, desenvolver as suas aptidões, sua capacidade de emitir juízo e seu senso de responsabilidade moral e social, e a tornar-se um membro útil da sociedade./Os melhores interesses da criança serão a diretriz a nortear os responsáveis pela sua educação e orientação; esta responsabilidade cabe, em primeiro lugar, aos pais./A criança terá ampla oportunidade para brincar e divertir-se, visando os propósitos mesmos da sua educação; a sociedade e as autoridades públicas empenhar-se-ão em promover o gozo deste direito); e 8 (A criança figurará, em quaisquer circunstâncias, entre os primeiros a receber proteção e socorro). Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Criança/declaracao-dos-direitos-da-crianca.html. Acesso em 26 de Julho de 2011. 78 A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança de 1989, ratificada pelo Brasil, através do Decreto nº 99.710/90, direcionando o país no caminho de garantir proteção integral à criança e ao adolescente. A regra ganha força de norma constitucional, por força do §3º, do artigo 5º da Constituição Federal de 1988 que estabelece que os Tratados e Convenções Internacionais, assinados pelo país, são equivalentes às emendas constitucionais. E não esgotando as normas de direito internacional que tratam da matéria, ainda pode ser citada a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José), ratificada pelo Brasil em 1922 (ver art. 19). A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 227, resume a essência do que as normas de direito internacional mencionadas estabelecem como o mínimo necessário para a compreensão da proteção integral da criança e do adolescente. Antônio Carlos G. da Costa120 explica a necessidade de uma proteção especial, pela vulnerabilidade da criança e do adolescente justificada, exatamente, pelo momento de vida que passam e que deve ser considerada pelos seguintes motivos, entre outros: a) a falta de conhecimento acerca dos direitos que possuem; b) a falta de meios para defender, por si sós esses direitos, frente às violações que decorram de transgressões e omissões; c) impossibilidade de arcar e suprir, por si sós, suas necessidades basilares; d) impossibilidade de responderem, como cidadãos, pelo cumprimento das leis, de deveres e obrigações, como adultos, exatamente por lhes faltar a maturidade física, emocional, intelectual e sociocultural. A ausência de qualidades que, espera-se, integre, sobretudo, uma personalidade adulta, decorre da pouca experiência, pelo pouco tempo de vida e não, apenas de condições sociais, econômicas ou de saúde. A fase é de formação e fortalecimento físico e moral, que não se alcança apenas com o avançar da idade, mas, a partir de um conjunto de experiências, a maioria delas, conduzidas pelos adultos com quem convive. O ser humano é, entre os animais, aquele que por mais tempo depende dos cuidados de outros da mesma espécie para poder ganhar autonomia e independência. A sua formação, que também deve ser uma formação social, depende da ajuda e do suporte daqueles que, presume-se, já tenham atingido a maturidade necessária para atuarem autonomamente diante dos desafios da vida. A proteção de toda criança e do adolescente deve ser integral e não pode se limitar, apenas, ao adolescente infrator, ao 120 Apud PEREIRA, Tânia da Silva. Direito da Criança e do Adolescente. Uma Proposta Interdisciplinar. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 25. 79 órfão, ao abandonado ou ao doente. Toda criança e adolescente tem o direito de ser auxiliado a se tornar um adulto equilibrado, saudável, sociável e feliz. Um dos maiores avanços do ordenamento jurídico foi o reconhecimento da criança e do adolescente como verdadeiros sujeitos de direito e não, apenas, objetos de direitos, sobretudo do pai, como figuravam há até poucos anos. Para Fabíola Albuquerque “há uma inversão no foco, quer dizer, os principais interessados no melhor exercício do poder familiar são os filhos, e não os pais.”121A afirmação, não apenas reconhece a mudança paradigmática, de objeto para sujeito de direitos, mas, ainda enfatiza que os interesses prevalecentes, por serem melhores, nas relações do poder familiar, são os dos filhos. Assim, existindo uma reciprocidade de direitos no instituto do poder familiar, diante do conflito, terão maior peso os interesses dos filhos em relação aos interesses dos pais. Ainda, não será a relação estabelecida entre os pais que irá definir os interesses e por causa destes, os direitos dos filhos. “A relação parental deve ser tratada à parte da relação conjugal, posto que se põe fim a esta, mas aquela permanece sob novos regramentos que devem atender, ao máximo, os princípios constitucionais do melhor interesse da criança e sua proteção integral e o da paternidade responsável.”122 2.6 Princípio do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente na Interpretação do Poder Familiar Contemporâneo Percebe-se que na ideia de proteção integral e por sua justificativa, está ainda inserido no ordenamento pátrio, o princípio do melhor interesse e, também, a noção de interesses prioritários ou superiores. O princípio do melhor interesse tem sua raiz no instituto inglês do Parens Patriae, prerrogativa do rei e da coroa, delegado no séc. XIV ao chanceler, tendo inicialmente, a finalidade de proteger as pessoas incapazes de maneira geral, como as crianças, os débeis, os loucos. No séc. XVIII, as cortes de chancelaria colocaram as crianças em 121 ALBUQUERQUE, Fabíola Santos. As Perspectivas e o Exercício da Guarda Compartilhada Consensual e Litigiosa. In: Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, v. 7, n. 31, ago/set 2005 (p. 19-30), p. 26. 122 OLIVEIRA, Catarina Almeida de; OLIVEIRA, Maria Rita de Holanda. O Novo Divórcio e seus Reflexos na Guarda e nas Visitas aos Filhos Menores do Casal. In: FERRAZ, Carolina Valença; LEITE, George Salomão; LEITE, Glauber Salomão (orgs.) O Novo Divórcio no Brasil. De acordo com a EC nº 66/2010. Salvador: JusPodivm, 2011 (p. 253-280), p. 278. 80 classificação distinta dos demais incapazes (loucos), o que levou a uma redefinição do Parens Patriae.123 O termo melhor interesse vem do inglês best interest e foi introduzido, como informa Tânia Pereira124, no ano de 1813 no julgamento do caso Commonwelth v. Addicks, da Corte da Pensilvania, em uma disputa de guarda de filho, em ação de divórcio originado pelo adultério da mulher. A corte entendeu que a conduta da mulher com relação ao seu marido, não tinha relação com a sua conduta enquanto mãe. Foi nessa época, ainda, que se viu inserida no país, a Tender Year Doctrine, posteriormente repensada, sobretudo a partir de cada caso concreto. O que torna o princípio do melhor interesse diferente do conteúdo da prioridade absoluta (termo constante da redação do art. 227 constitucional), uma vez que são termos distintos com conteúdos próprios, conforme Rose Vencelau, é que um diz respeito à qualidade e outro à quantidade. “Maior” é a qualidade do que excede outra, em duração, espaço, extensão, grandeza ou intensidade. “Melhor” é comparativo superlativo de bom, significa o que em termos comparativos é superior a tudo o mais, assim como aquilo de mais acertado e sensato.125 (...) assim, inicialmente, a superioridade do interesse da criança, se revela em situações nas quais é o interesse dela versus o de outrem que está em jogo, enquanto o melhor interesse da criança se manifesta em hipóteses onde o interesse da criança participa de uma escolha comparativa de opções.126 Como prioridade absoluta, entendem-se as situações constatáveis por critérios claros e objetivos, revestidos de uma natureza mais de regras do que de princípios, tendo em vista a imposição de condutas, como as apontadas no parágrafo único do art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente: Art. 4º (...) Parágrafo único. A garantia e prioridade compreende: a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; 123 PEREIRA, Tânia da Silva. Direito da Criança e do Adolescente. Uma Proposta Interdisciplinar. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 42. 124 PEREIRA, Tânia da Silva. Direito da Criança e do Adolescente. Uma Proposta Interdisciplinar. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 43. 125 MEIRELLES, Rose Melo Vencelau. O Princípio do Melhor Interesse da Criança. In: MORAES, Maria Celina Bodin de. (coord.) Princípios do Direito Civil-Contemporâneo. Rio de janeiro: Renovar, 2006 (p. 459-493), p. 470. 126 MEIRELLES, Rose Melo Vencelau. O Princípio do Melhor Interesse da Criança. In: MORAES, Maria Celina Bodin de. (coord.) Princípios do Direito Civil-Contemporâneo. Rio de janeiro: Renovar, 2006 (p. 459-493), p. 470. 81 c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude. Já o princípio do melhor interesse surgirá no momento do conflito, quando deverão ser ponderados os interesses em oposição, já estando atribuído àqueles pertencentes à criança e ao adolescente, maior peso em relação aos dos adultos, sobretudo quando disserem respeito ao que for necessário para garantir-lhes educação e desenvolvimento, bem como à promoção da estabilidade do lar, à superação de traumas, ao suprimento das necessidades morais, materiais, sociais e afetivas.127 2.7 Definindo o Afeto enquanto Conduta Imposta nas Relações Jurídicas de Poder Familiar128 Na última década, muitos juristas brasileiros, voltaram sua atenção ao tema do afeto nas relações familiares. Perigosamente, foram ultrapassados limites que separam o que vem a ser objeto de preocupação do Direito e o que vem a ser preocupação exclusiva de outras áreas afins, como a filosofia, a psicologia, a biologia. Não se quer com isso, negar a interdisciplinaridade que caracteriza todos os ramos do direito, sobretudo o direito de família. Não se pode separar absolutamente, as relações jurídicas familiares das emoções que compõem, inclusive, o substrato existencial constitucionalmente protegido. No entanto, apesar da aproximação temática, é preciso cuidado ao definir o que é objeto de discussão jurídica, distinguindo do que não lhe compete. Assim, ao tratar de um tema tão emocional nas relações parentais, o termo mais apropriado deveria ser afetividade, para que fosse evitado o risco de confundir a conduta afetiva com o sentimento de afeto. No entanto, será mantida a denominação afeto, pelo uso corrente nas atuais discussões jurídicas e, ainda, porque o termo também pode ser considerado amplamente, abarcando o afeto-conduta (afetividade), como será demonstrado adiante. 127 MEIRELLES, Rose Melo Vencelau. O Princípio do Melhor Interesse da Criança. In: MORAES, Maria Celina Bodin de. (coord.) Princípios do Direito Civil-Contemporâneo. Rio de janeiro: Renovar, 2006 (p. 459-493), p. 486. 128 OLIVEIRA, Catarina Almeida de. Refletindo o Afeto nas Relações de Família. Pode o Direito impor Amor? In: ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; OLIVEIRA, Catarina; ERHRARDT, Marcos (orgs) Famílias no Direito Contemporâneo. Estudos em Homenagem a Paulo Luiz Netto Lôbo. Salvador: JusPodivm, 2010, (p. 47- 67). 82 A maior parte das relações familiares é frequentemente, pautada por esse elo emocional que impulsiona as aproximações, a permanência, o cuidado, a sobrevivência. E isso não é privilégio apenas da espécie humana. Muitas outras espécies de animais se agrupam afetivamente e assim permanecem, muitas vezes, por toda vida. O afeto é parte da vida. E, apesar disso, para o direito, o tema foi deixado de lado por muito tempo. Afinal, a grande vedete, o patrimônio material, econômico, não tinha quase nada a ver com ele. Recentemente, o assunto vem ganhando espaço nas discussões sejam elas acadêmicas ou não. Hoje em dia, o afeto é tão importante para o direito que não é incomum a realização de encontros, colóquios, congressos, etc que se volte quase que exclusivamente, para sua análise. No Brasil, o Instituto de Direito de Família, IBDFAM, foi um dos maiores responsáveis por trazer o tema à baila. A interpretação atual, das regras que regulam o direito de família, não pode se afastar dessa tendência, uma vez que alguns tribunais já se manifestam favoráveis ao reconhecimento do afeto como objeto de interesse jurídico. Com a evidente repersonalização do direito privado, os interesses existenciais, marcadamente imateriais, ganham relevo, justificando o seguinte questionamento: pode o afeto se inserir nas relações jurídicas familiares, como um verdadeiro dever imposto, sobretudo, nas relações entre pais e filhos? E ainda: pode o afeto servir de base justificante dos interesses existenciais que estruturam os direitos subjetivos das crianças e adolescentes, enquanto filhos em relações jurídicas reguladas pelo poder familiar? São essas considerações que se buscará fazer em seguida, para que não restem dúvidas quanto ao que se deve entender como verdadeiros deveres jurídicos de afeto. 2.7.1 A Afetividade como Princípio Primeiro, cumpre esclarecer a pertinência de se falar em um princípio da afetividade. Nas inúmeras discussões jurídicas sobre o afeto, o tema tem sido tratado como princípio constitucional de direito de família, no entanto, como a Constituição Federal não trata, expressamente, do assunto, cabe investigar o seu papel na cena jurídica, ou seja, se é realmente um princípio constitucional, se princípio de direito de família ou, apenas, um valor jurídico. 83 Caso se verifique, realmente, sua condição de princípio, surge outro ponto a ser esclarecido: qual o seu conteúdo? Sim, porque apesar dos princípios não possuírem, por sua natureza e finalidade, rigidez de conteúdo (característica mais voltada às regras jurídicas), a afetividade enquanto tal, como tem sido utilizada na doutrina e na jurisprudência, tem apresentado uma abertura de tamanha dimensão que mais aponta para o desconhecimento dos operadores do direito do que para a que largueza de sua abrangência. Não se pode negar a presença marcante do afeto nas relações de família, sobretudo no atual contexto social, onde a liberdade tem sido mais exercida que outrora. Contudo, é urgente esclarecer que afetividade é essa que merece a preocupação do jurista, a partir da definição do seu objeto e do estabelecimento dos seus limites, para não correr o risco de ampliar ou restringir interpretações que possam afastar a realização da pessoa humana como titular de dignidade, uma vez que o afeto, em qualquer relação, ganha sentido na realização de quem pratica e de quem recebe. Com relação ao primeiro questionamento, se a afetividade é mesmo um princípio de direito de família, ou antes, um princípio constitucional de direito de família, a importância de se verificar parte da própria aplicabilidade hoje, dos princípios de direito, uma vez que, não sendo mais, como no contexto jusnaturalista, o norte abstrato, o direito ideal; também não se resumem como no contexto positivista, nas fontes subsidiárias129, às quais deveriam recorrer os aplicadores do direito, quando estivessem diante de lacunas da lei.130 Entende-se, atualmente, que os princípios são bases de complementação, informação, contextualização, norteadora das regras, como a alma que anima o corpo. Diversamente, entende-se que princípios e regras não sejam duas faces da mesma moeda, embora não estejam totalmente afastados. Humberto Ávila131, nessa linha, aponta algumas características distintivas entre eles, como a de não terem as mesmas propriedades, uma vez que as regras instituem deveres definitivos, que não podem ser superados por razões contrárias, sendo aplicadas ante a correspondência entre o conceito 129 Decreto-lei 4.657/42 (Lei de Introdução ao Código Civil), art.4º “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.” 130 MORAES, Maria Celina Bodin de. Princípios do Direito Civil Contemporâneo. São Paulo: Renovar, 2006. Apresentação. 131 ÁVILA, Humberto. Princípios, teoria dos. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (coord.) Dicionário de Filosofia do Direito. Rio Grande do Sul: Unisinos; Rio de Janeiro: Renovar. 2006, (p. 657-661), p. 658659. 84 normativo e o conceito do material fático, enquanto os princípios estabelecem deveres provisórios que, por sua vez, podem ser superados por razões contrárias e são aplicados após fazer uma ponderação valorativa entre razões colidentes. Ainda que seja adotada a opinião de que os princípios descrevem fins a dependerem da adoção de comportamentos132, eles mantêm crucial importância na contribuição para a decisão, por complementarem as regras. A Constituição Federal de 1988, explicitamente, aponta princípios aplicáveis às relações jurídicas de família, só para citar alguns exemplos: o Princípio da Dignidade Humana (art. 1º, III); o Princípio da Solidariedade (art. 3º, I); o Princípio da Igualdade (art. 5º, caput, art. 226, § 5º; art. 227, § 6º); o Princípio do Melhor Interesse do Menor, da Convivência Familiar (art. 227), entre outros. No entanto, não menciona, literalmente, a 'Afetividade'. Não parece que o fato de não participar da redação constitucional, signifique a sua exclusão do elenco principiológico, porquanto estaria como princípio implícito por “especializar os princípios da dignidade, solidariedade e da convivência familiar”.133 2.7.2 Do Valor ao Princípio A importante presença do afeto no pensamento jurídico dos dias de hoje, se dá a partir da significativa mudança na percepção e na vivência das famílias. Até bem pouco tempo, percebia-se a família, na proximidade de um casal heterossexual, vinculado pelos laços indissolúveis do matrimônio e a descendência proveniente desse enlace. A simbologia mental representativa da família, para muitos ainda hoje, é a desse agrupamento tradicional, portanto, casado. As razões que uniam e mantinham tais famílias eram diversas; o afeto entre os membros que as integravam era uma delas, todavia, sem o poder conferido pela liberdade de estar, sair, acolher, afastar, uma vez que o casamento era indissolúvel, a importância exagerada conferida ao patrimônio e a desigualdade entre filhos e entre homens e mulheres, conferiam razões para o estar junto que podiam coincidir ou não, com um sentimento de inclinação emocional pelo outro. Não há, nesse modelo formalizado, dificuldades em se enxergar a 132 ÁVILA, Humberto. Princípios, teoria dos. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (coord.) Dicionário de Filosofia do Direito. Rio Grande do Sul: Unisinos; Rio de Janeiro: Renovar. 2006, (p. 657-661), p. 660. 133 LÔBO, Paulo. Famílias. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 48. 85 família, pois o sangue e, principalmente, o documento, materializava a relação. Talvez existissem mais dificuldades para viver a família. Todavia, outras formas de vida conjunta já existiam há milênios, embora fossem ignoradas. Isso por causa de uma cegueira voluntária, em prol dos bons costumes e da paz social. Cegueira mais ou menos profunda de acordo com as conveniências de época e lugar. A pós-modernidade e, com ela, a fragmentação das regras lineares de conduta, viabilizou o descortinamento dessas famílias marginais. A liberdade de extinguir e criar núcleos familiares e, em alguns momentos, a independência, no sentido de não ser essencial o cumprimento de alguns papéis biologicamente e/ou culturalmente assinalados para a espécie humana dividida (até hoje) em gênero, pelos modelos masculino e feminino, vem clamar pela tutela de interesses materiais e existenciais para quem, até pouco tempo, era invisível ao Direito. Assim, retirado o invólucro da formalidade, emerge o afeto que passa a ser visto como aquilo que origina e mantém as famílias. Como o tema raramente preocupou o jurista no passado, agora motiva discussões acaloradas entre os estudiosos e aplicadores do Direito. Para Paulo Lôbo, foi revolucionária a mudança na concepção de família: de instituição natural e de direito divino (que justificava sua imutabilidade e indissolubilidade), para lugar de realização dos afetos. Assim, o afeto que antes era secundário, passa a ser “o único elo que mantém pessoas unidas nas relações familiares134”. Não restam dúvidas de que a afetividade é socialmente aceita como aquilo que justifica o surgimento e a manutenção das famílias e, em sendo assim, enraizado o entendimento de sua presença, ela será no mínimo, socialmente presumida. O reconhecimento jurídico de um valor social alça-o à condição de valor jurídico que, ao ser positivado, figura como princípio135. Paulo Lobo136 ensina que a afetividade nem é fato exclusivamente sociológico ou psicológico, nem é petição de princípio, mas, princípio mesmo, com fundamento 134 LÔBO, Paulo. Famílias. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 52. O projeto de Lei nº 2.285/07 – Estatuto das Famílias – em seu artigo 5º, expressamente, inclui a afetividade como princípio fundamental para sua interpretação e aplicação. 135 86 constitucional, conforme anteriormente mencionado, que especializa os princípios da dignidade e da solidariedade. Essa afirmação vem seguida de três fundamentos essenciais, encontrados na Constituição Federal de 1988: No artigo 226, § 4º137 e no artigo 227, §§ 5º e 6º138, que versam sobre a igualdade dos filhos independentemente de sua origem, inclusive na adoção, como escolha afetiva, como também no reconhecimento constitucional da entidade familiar existente na comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, incluindo os adotivos.139 2.7.3 Afeto e Dever Jurídico Tanto as regras quanto os princípios comportam conteúdos de direitos e deveres o que nos leva a questionar se a afetividade, em algum momento, pode ser objeto de ordem. A afetividade consiste, tão somente, no elo espontâneo que vincula pessoas, servindo, ainda, para ostentar a condição de família, ou é possível obrigar alguém a amar? Existe o direito ao afeto? Assim, existe o dever de afeto? Tal questionamento, de início, parece impertinente uma vez que a coerção volta-se para aquilo não é espontâneo, para aquilo que pode ser realizado, independentemente da vontade de quem se obriga. O dever de amar retira da ação, um elemento que lhe é essencial: a espontaneidade. É tão certo que, podemos afirmar consistir em senso-comum o pensamento aqui reproduzido nas palavras de André Comte-Sponville, de que “o dever 136 LÔBO, Paulo. O Princípio Jurídico da Afetividade na filiação. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=130. Acesso em: 10 de Maio de 2008. 137 “Art. 226. A família, base da sociedade tem especial proteção do Estado. (...) § 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.” 138 “Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (...) § 5º. A adoção será assistida pelo Poder Público, na forma da lei, que estabelecerá casos e condições de sua efetivação por parte de estrangeiros; § 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. 139 LÔBO, Paulo. O Princípio Jurídico da Afetividade na filiação. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=130. Acesso em: 10 de Maio de 2008. “A família recuperou a função que, por certo, esteve nas suas origens mais remotas: a de grupo unido por desejos e laços afetivos, em comunhão de vida. O princípio jurídico da afetividade faz despontar a igualdade entre irmãos biológicos e adotivos e o respeito a seus direitos fundamentais, além do forte sentimento de solidariedade recíproca que não pode ser perturbada pelo prevalecimento de interesses patrimoniais. É o salto à frente da pessoa humana nas relações familiares.” 87 é uma coerção (...), o dever é uma tristeza, ao passo que o amor é uma espontaneidade alegre.” 140 Por outro lado, Erich Fromm141 consegue ver no amar, uma arte cujo comprazimento dependeria do nível de maturidade alcançado e que, para sua prática, não se deveria pensar em técnicas, mas no desenvolvimento de uma personalidade disciplinada, com concentração, paciência e uma ‘preocupação suprema’ com o domínio dessa arte (assim como de qualquer arte). Na esteira desse pensamento, conclui-se que tais virtudes (disciplina, concentração, preocupação, fé), auxiliam na arte de amar, no sentido de lhe conferir a possibilidade de controle, permitindo interferir na dosagem do sentimento, para que possam ser objetivadas da forma mais saudável possível. De fato, a sociedade organizada exige do ser afetivo, que ele saiba controlar suas paixões, seus afetos. E é exatamente isso que justifica a existência de tantas normas que permitem, proíbem ou impõem as diversas condutas possíveis, consciente da presença de toda sorte de sentimentos em cada relação social e jurídica. Reconhecer, simplesmente, a presença do afeto nas famílias e aprender a conduzir o seu exercício, não resolve esses questionamentos. Domar o seu uso é uma coisa, fazêlo nascer é outra. Não se controla o nascimento de sentimentos como amor e ódio, o que dificulta sua presença como objeto de controle judicial. Então, o que foi exposto anteriormente, a respeito de ser descabido buscar o sentimento de afeto com o intuito de, através dele, perceber a entidade familiar, também não se pode pretender que o sentimento de afeto seja passível de surgir a partir de uma ordem do Estado. Nem se demonstram, puramente, os sentimentos, nem se ordena sua vinda. Para que se percebam e se comandem, também é necessário pensá-los de maneira objetiva, materializá-los na conduta. E isso não é fácil. Qual o afeto que pode ser realizado por força de uma ordem? 140 COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 241. Na mesma obra, nas páginas 242 e 243, completa o pensamento, afirmando o seguinte: “Só necessitamos de moral em falta de amor, repitamos, e é por isso que temos tanta necessidade de moral! É o amor que comanda, mas o amor faz falta: o amor comanda em sua ausência e por essa própria ausência. É o que o dever exprime ou revela, o dever que só nos constrange a fazer aquilo que o amor, se estivesse presente, bastaria, sem coerção, para suscitar”. 141 FROMM, Erich. A Arte de Amar. Tradução: Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia, 1960. Passim. 88 A pergunta inicia com qual, porque o afeto, sendo raio de amor, se projeta de maneiras diferentes, dependendo do tipo de relação sobre a qual ele incide. Algumas vezes exigindo certo retorno, outras vezes de maneira incondicional, algumas vezes desejo, outras vezes não. Externa-se, por vezes instintivamente, por outras, cheio de razão (ainda que se diga que razão e emoção moram em casas separadas, muitas vezes, se visitam). Haveria, apenas, um tipo de afetividade com vários matizes, ou seriam coisas diferentes? Isso porque a pluralidade de famílias aponta para afetividades (sentimento/justificante) diferentes. A afetividade do casal (heterossexual ou não) é diferente da afetividade entre pais e filhos, entre irmãos, etc. O certo é que a afetividade, como expressão do amor, é o que se espera fazer parte de qualquer relação familiar. No entanto, como ensina Leloup 142, pode-se imaginar o amor como uma escada composta por degraus correspondendo a seus vários níveis, analisados de forma ascendente, a partir de tipos apresentados pelos gregos. Em artigo publicado no âmbito da paróquia do bairro do Espinheiro, na cidade do Recife, o frade carmelita Geraldo de Araújo Lima143, inicia a curiosa distinção entre três manifestações filosóficas do amor, apontados nos verbos Erao (Eros); Fileo (Filia) e Agapao (Agape), despertando a curiosidade acadêmica que resulta nos comentários abaixo. Platão, no Banquete144, nos brinda com um texto, mais sob a forma de narrativa do que diálogo, onde alguns convidados do banquete de Ágaton: Fedro, Pausânias, Erixímaco, Aristófanes, o próprio Ágaton, Sócrates e, por fim, Alcibíades, discorrem sobre o amor. O amor-desejo: Eros. O filósofo grego busca, em todo o texto, apresentar o Eros de maneira moralmente aceitável na Polis, uma vez que justifica o amor erótico entre rapazes. Em uma primeira interpretação, essa forma de amar volta-se para o desejo pelo outro, na identidade ou diversidade de sexos, sendo, assim, a atração sexual, impulso natural e instintivo. No entanto, ao interpretar o discurso de Sócrates, o mais importante da obra, que aponta o amor (eros) como o amor por aquilo que se deseja e que, ao mesmo tempo, lhe 142 LELOUP, Jean-Yves. O Corpo e seus Símbolos. Uma Antropologia Essencial. 15 ed. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 78. 143 LIMA, Geraldo de Araújo. Amor – Um Presente de Grego. In A Partilha. Jornal da Paróquia do Coração Eucarístico de Jesus do Espinheiro. Ano 09, n 94, fev. Recife: Nagrafil, 2009, p. 3-4. 144 PLATÃO. O Banquete. Tradução: Maria Teresa Schiappa de Azevedo. Lisboa: Edições 70, 1991. Passim. Platão ainda aborda o tema amor no Lísis e no Fedro. 89 seja faltoso, André Comte-Sponville145 estende esse sentimento para outras situações onde o objetivo sexual encontra-se, plenamente, descartado. Desde que haja o desejo por aquilo que lhe falte. Como no caso do pai que deseja um filho que ainda não existe. Depois, ao tê-lo, substitui este eros paterno que se dirige a um filho sonhado, pelo amor experimentado por causa de um filho real. Ressalte-se que, este eros paterno, no exemplo de Comte-Sponville, não desaparece com o nascimento do filho. “Ninguém se liberta sem mais nem menos de Platão ou de Eros”146, pois o desejo permanece mirando o futuro, que é o que ainda não se viveu, o que falta agora. Seguindo a ideia de Sócrates e considerando esse amor como, essencialmente, o desejo de alguém por aquilo que lhe falte, incluindo o desejo sexual, ainda assim, podese conceber que, com o amadurecimento, educação e regras impositivas, essa paixão possa ser controlada, domada e até, inibida. O que não se harmoniza com o seu conteúdo é a ideia de que o Eros pode ser originado por um dever. Por mais que haja esforço em tentar fazê-lo surgir, sua subjetividade, naturalidade e espontaneidade, afastam a razão do seu mecanismo propulsor. Assim como a fome. Philia, expressão da amizade que Aristóteles distingue em três tipos: a) a que se baseia na virtude (benevolência recíproca), que seria a amizade perfeita; b) a que tem base no interesse e c) a que se baseia no agradável. Para o estagirita, a primeira seria a perfeita, pelo fato de ser, também, útil e agradável. 147 Ora, se para Aristóteles, a amizade perfeita se baseia na virtude (benevolência recíproca), ousamos afirmar que, até essa forma de afeto, volta-se em sua origem, para a natureza, ainda que possa, a razão, atuar para complementá-la. A amizade surge da afinidade entre as pessoas por ela vinculadas. Talvez seja o amor 'não absurdo', do questionamento feito por Bauman 148 ao abordar a dificuldade de amar o próximo, porque diz respeito a amar alguém tão parecido conosco a ponto de amar nele, o ideal de nós mesmos. 145 COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes. 2007, p. 265-266. 146 COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes. 2007, p. 266. 147 Apud ORTEGA, Francisco. Amizade. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (coord.) Dicionário de Filosofia do Direito. Rio Grande do Sul: Unisinos; Rio de Janeiro: Renovar. 2006, (p. 38-43), p. 39. 148 BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido. Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p. 97. 90 Storghé poderia ser entendido como ternura, harmonia, “uma maneira de harmonizar o seu ser com o ser do outro”149. Aproxima-se do amor natural entre familiares: dos pais para com seus filhos e dos filhos para com seus pais. Todavia, para se falar nesse amor é necessário que as pessoas que o experimentam, se vejam como partes que integram uma mesma família. Não tem a conotação sexual do Eros, não dizendo respeito ao desejo de alguém por aquilo que lhe falte, como no exemplo acima, que toca no desejo do pai pelo filho que ainda não tenha (e que na verdade, só será pai com o nascimento desse filho). Também não seria simplesmente, o amor pelos entes reais da família, os entes vivos, atualmente existentes – que poderia se tratar da etapa anterior, da amizade, Philia. Storghé vem a ser o sentimento que vincula a família e independe de qualquer merecimento. Existirá esse amor onde houver o reconhecimento emocional do outro enquanto família, assim, também subjetivo, natural e limitado a algumas pessoas. Outra manifestação, ou nível, do amor é o Ágape, que expressa o amor Cristão e é despojado de interferências terrenas e efêmeras. Dirige-se a tudo e a todos, sem porquês nem para quês. Não se pretende prazer, nem utilidade, nem agradar a si próprio. É o amor de entrega plena. “Amar não a partir de sua carência, mas amar a partir de sua plenitude”150. Não se pretende tecer aqui, nenhum discurso de tom religioso, no entanto, é necessário passar pelo assunto, quando se aventura a trabalhar esse tema, porque o que mais esclarece o ágape é a ordem cristã de “amar uns aos outros”. Percebe-se, aqui, que se tem um dever de amor. E não dirigido a uma(s) pessoa(s) específica(s), mas, a toda a coletividade humana que habita a Terra. Assim, deve-se amar, pelo Ágape, o filho, o amigo, o objeto de desejo, da mesma maneira como se deve amar o estranho que nunca lhe foi apresentado. Ou mais difícil ainda, o criminoso que lhe tenha lesado ou a alguém querido. Aquele que agir assim, conforme Bauman: "rompe a couraça dos impulsos, ímpetos e predileções 'naturais', assume uma posição que se afasta da natureza, que é contrária a esta, e se torna o ser 149 LELOUP. Jean-Yves. O Corpo e seus Símbolos. Uma Antropologia Essencial. 15 ed. Petrópolis: Vozes. 2008, p. 80. 150 LELOUP, Jean-Yves. O Corpo e seus Símbolos. Uma Antropologia Essencial. 15 ed. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 82. 91 não natural que, diferentemente das feras (e, na realidade, dos anjos, como apontou Aristóteles), os seres humanos são”.151 Aplicando-se à família, verifica-se o dever de amar o companheiro, quando aquele agir corretamente ou quando houver deslize. Deve-se amar o filho esperado da mesma forma que se deve amar o indesejado. Ágape, como na encíclica do Papa Bento XVI152, guarda identidade com Caritas153, que, para Ortega, apresenta um sentido de “amor comunitário num sentido amplo e nunca amor singular, particular.154” Leloup155 também aponta a mesma etimologia para 'graça' ou 'gratuidade'. É o amor mais bonito de todos, porque é desprendido. Não se olha a quem, nem se deseja nada em troca. E é menos comum que os outros, porque “só sabemos amar a nós mesmos ou a nossos próximos, porque nossos desejos são egoístas, quase sempre, enfim, porque nos vemos confrontados não apenas com nossos próximos, que amamos, mas com próximos, que não amamos”156. Observando o sentido da palavra caridade no dicionário, encontra-se, entre outros, que é “ato pelo qual se beneficia o próximo, esp. os pobres e desprotegidos; Disposição favorável em relação a alguém em situação de inferioridade (física, moral, social etc)”157. Percebe-se que esse nível de amor, sai da subjetividade e encontra-se no agir com cuidado, respeito e afeto para com aqueles que carecem. Quem é caridoso, é solidário. E como conceito de solidariedade, temos: “compromisso pelo qual as pessoas se obrigam umas às outras e cada uma delas a 151 BAUMAN, Zygmunt. Amor Liquido. Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p. 98. - ainda neste local, explica o autor que amar o próximo é “o ato fundador da humanidade. Também é a passagem decisiva do instinto de sobrevivência para a moralidade”. 152 Deus Caritas est – primeira carta encíclica do Papa Bento XVI. 153 “O gr. usa o termo eros, philia e ágape e seus cognatos para designar o amor (...) Ágape ou Agapam, menos frequentes no gr. profano, possivelmente por esta razão, foram escolhidos para designar a idéia cristã única e original do amor o NT. Também em vernáculo, a palavra “caridade” é usada para mostrar o caráter único deste amor, e é empregada na maioria das versões da Bíblia para traduzir ágape e agapam.” McKENZIE, John L. Amor. In: Dicionário Bíblico. 5 ed. São Paulo: Paulus, 1984, p. 35. 154 ORTEGA, Francisco. Amizade. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (coord.) Dicionário de Filosofia do Direito. Rio Grande do Sul: Unisinos; Rio de Janeiro: Renovar. 2006, (p. 38-43), p. 41. 155 LELOUP, Jean-Yves. O Corpo e seus Símbolos. Uma Antropologia Essencial. 15 ed. Petrópolis: Vozes. 2008, p. 82. 156 COMTE-SPONVILLE, André. O Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 286. 157 HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 627. 92 todas.”158 Como se vê, a solidariedade, também remete a um compromisso com o intuito de favorecer o outro. Ocorre que, diferentemente da caridade, na solidariedade, haverá reciprocidade no comprometimento. É clara a relação de proximidade entre caridade e solidariedade, sendo que na segunda, temos acrescentado o caráter de reciprocidade. Note-se que, ambas as definições, não comportam sentimentos, mas, condutas159. Se a afetividade especializa os princípios da solidariedade e da dignidade160, assim, finalmente, encontramos que tipo de afetividade figura como direito e dever. É a que depende mais do braço, do ombro e da razão do que do coração. Seguindo esse raciocínio, o reconhecimento jurídico do afeto, nada mais é do que o reconhecimento jurídico de uma conduta solidária, que pode ou não, estar acompanhada de bons sentimentos. Assim como um dano moral pode apresentar por consequência, a dor, não sendo sua ausência, descaracterizadora do dano indenizável, a solidariedade pode estar antecedida pelo afeto (sentimento), ou não. Sentir dor, tristeza, amor, afeto, está fora do controle das pessoas. A ação é escolha. Cooperar é efetivar afeto, ainda que não se sinta afeto. Ao confundir a afetividade que pode ser realizada, independentemente do sentimento que se tenha, com aquelas outras expressões do amor (eros, philia, e até storghé), corre-se o risco de afastar da proteção do Judiciário, situações que tenham esse princípio como cerne, como por exemplo, o abandono afetivo, o que justificaria o argumento contrário de que a lei não pode obrigar ninguém a amar. Pode sim. Objetivamente. 158 HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 2.602. 159 “Para o amor “ágape” não importa o que uma pessoa faça ou deixe de fazer, não importa o modo como nos tratem, ou se nos injuriam ou ofendem. Em nós sempre estará a possibilidade de amá-la, que não consiste em sentir algo por ela, mas sim em fazer algo em seu favor, prestar-lhe algum serviço, oferecerlhe nossa ajuda, mesmo que não nos sintamos bem, afetivamente falando. O amor “ágape” não consiste no afetivo, mas, no efetivo.” LIMA, Geraldo de Araújo. Amor – Um Presente de Grego. In: A Partilha. Jornal da Paróquia do Coração Eucarístico de Jesus do Espinheiro. Ano 09, n 94, fev. Recife: Nagrafil, 2009, p. 4. 160 LÔBO, Paulo. Famílias. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 48. 93 CAPÍTULO III IMPERATIVIDADE NORMATIVA NA TUTELA DOS DIREITOS EXISTENCIAIS 3.1 Influências Culturais, Naturais e Religiosas na Definição Jurídica de Família e a Dificuldade de Separar Tradição, Fé, Instinto e Razão; 3.2 Deveres ou Faculdades. Distinção Necessária entre Comandos e Conselhos em Bobbio; 3.3 Identificando as Obrigações Civis nas Relações Jurídicas do Poder Familiar; 3.3.1 Prestações Debitórias nas Relações Parentais; 3.3.1.1 Conteúdo Econômico da Prestação Debitória; 3.3.1.2 Repersonalização do Direito das Obrigações; 3.3.1.3 Interesse Puramente Moral e o Reconhecimento da Prestação Debitória Desprovida de Conteúdo Econômico. 3.4 Inserção de Normas Obrigacionais nas Relações de Família 3.1 Influências Culturais, Naturais e Religiosas na Definição Jurídica de Família e a Dificuldade de Separar Tradição, Fé, Instinto e Razão O maior obstáculo para quem se aventura no estudo das normas que regem as relações de família, a fim de compreender nelas a noção jurídica de responsabilidade, está exatamente, em identificá-las como relações jurídicas. Isto por causa da forte carga de cultura social e religiosa que as acompanham. Some-se a isto, a inegável necessidade biológica de agrupamento para fins de preservação e continuidade, que caracteriza a maioria das espécies vivas do planeta, mostrando que a ideia de família antecede ao próprio direito. Assim misturadas, cultura, fé e natureza, tem-se frágil qualquer definição jurídica que pretenda oferecer, tanto um conceito de família como suas finalidades e efeitos, sobretudo a responsabilidade familiar. Culturalmente, os interesses patrimoniais prevaleceram por anos, no ordenamento jurídico brasileiro. Basicamente, o direito se ocupava do patrimônio das pessoas, competindo à religião e à ética, a ocupação com o que fosse espiritual, existencial, puramente pessoal ou transcendental, ideias fortalecidas em nossa cultura, por atribuições de papéis sociais diferentes em razão do gênero, e a consequente e injusta desigualdade entre homens e mulheres, justificada por argumentos que estabeleciam tais funções, baseados na natureza de cada gênero. Assim, enfatiza-se a função provedora masculina, desde os tempos em que o alimento vinha da luta pela caça, até as formas admitidas pelas regras do jogo do capitalismo contemporâneo, sendo ainda, o homem, para o direito, o protagonista da 94 família. Para a mulher, restava a função acolhedora, sempre ligada à ideia de procriação e cuidados com os filhos, a família e a casa. Seria uma personagem mais romântica ou divina, do que jurídica. Desta maneira, é viável pensar em responsabilidade jurídica masculina, já que seus deveres são principalmente materiais, enquanto os deveres femininos estariam mais voltados para os afetos e o cuidado, para interesses sem preço. Portanto, os papéis de cada gênero, já se encontravam desenhados desde a ideia milenar de patriarcado, que chega aos nossos dias transformado, mas, não, superado. No Brasil, por ter sofrido forte influência do cristianismo europeu e, ainda, pela afetividade que caracteriza os povos latinos, torna-se evidente a presença de interesses e condutas emocionais em quase todas as relações familiares, mas daí a considerar os interesses imateriais como direitos cuja eficácia passa pelo reconhecimento de uma pretensão e da existência de garantias processuais, existe uma grande distância. Sobretudo quando se pretende conferir tecnicidade ao que é, principalmente, (ainda que não, unicamente) emoção. Entendê-los como objeto de certas normas jurídicas não é fácil, principalmente porque sendo estas artificiais, ao tentarem racionalizar algumas condutas, contrariam o que é instinto. Mas, não é isso, também, que se busca nos processos civilizatórios? Domar os instintos para garantir a convivência social e racional? Inclusive, hoje, fala-se muito em valores, mas, não seria mais apropriado cultivar as virtudes? Luiz Pondé161 lembra que, para os gregos, na filosofia antiga, eram nas virtudes que eles pensavam, considerando, sempre, o esforço para controlar vontades e os desejos em nome de uma conduta, tida como mais apropriada. Assim, ser corajoso, combatendo seus medos; ser trabalhador, combatendo sua preguiça; ser justo, combatendo a crueldade e a indiferença para com os sofrimentos alheios, ser generoso, combatendo o próprio egoísmo; ser responsável, combatendo seu desejo de se omitir. O ser humano é o único animal que pode racionalizar seus instintos, suas emoções, controlando-as em nome de um bem maior e, então, o argumento acima encontrar-se-ia esvaziado. Enquanto se sabe que os instintos podem ser domados, embora o Brasil seja um Estado laico, a influência da religião ainda é muito forte no país. E tem um agravante: enquanto existe autorização para, com o uso da razão, transpor tendências animalescas 161 PONDÉ, Luiz Felipe. O Gosto da Culpa. In Contra um Mundo Melhor. Ensaios do Afeto. São Paulo: Leya, 2010 (p. 60-65), p. 64. 95 naturais, no que se refere à ordem divina, por se tratar de imperativo e não de genética, deve ser obedecida. E a razão não seria argumento que pudesse contrariá-la, pois pautada na fé. O Brasil é um estado laico e uma nação cristã. Considerando nação, o “povo com determinadas características comuns, como a religião, a língua, a cultura, os laços históricos, a etnia, etc., fazendo parte de uma realidade sociológica”162 – pode-se afirmar a paradoxal coexistência de dogmas religiosos com o regime democrático. Embora os ensinamentos do Cristo tenham sido, sempre, no sentido da inclusão e da responsabilidade incluída na ideia de conduta amorosa para com o próximo. É tão forte a influencia religiosa na ideia de família que, ainda hoje, embora o Estado reconheça como casamento, apenas o civil, o costume volta-se para os rituais religiosos ressaltando a sua primazia social em relação ao outro tipo, que resta reduzido ao cumprimento das formalidades estritamente necessárias, no âmbito dos cartórios. A ideia religiosa de sacralidade do casamento confere um poder ao instituto, que se estende à sua forma civil em nossa sociedade, de tal maneira, que, socialmente, é preciso que haja a celebração religiosa e o status civil, conferindo uma moralidade ao casal, como se fosse menor a reputação de qualquer outra forma de união. Ainda hoje, apesar do reconhecimento constitucional da existência de outras entidades familiares merecedoras de proteção e dignidade, é comum ouvir de casais que coabitam na informalidade, que são “casados”, como se o casamento fosse a senha para garantir a aceitação social, na antiga concepção de “legitimação”, hoje desnecessária e ilegal. Companheiros se intitulam de “marido” e “esposa” para os amigos, principalmente nas regiões mais influenciadas pela religião, deixando ainda mais clara, a ideia social, ressaltada no bordão repetido à exaustão, pelo povo que considera “casado, aquele que bem vive”. A importância jurídica, por muito tempo deferida ao casamento civil, por ser imitação do sacramento religioso, foi de tal maneira que era comum, sobretudo na codificação anterior, ver os interesses do instituto prevalecendo sobre os interesses dos membros que compunham aquela família e, também, de terceiros. Ainda que se tratasse de interesses de grupos, hoje conhecidos por “vulneráveis”, como crianças, adolescentes, mulheres e idosos. 162 AGRA, Walber de Moura. Manual de Direito Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 70. 96 A confusão entre sacramento e instituição civil, entre objeto de interesse de normas religiosas e jurídicas, ajudou a fortalecer a ideia de que ao direito, competia se preocupar com os interesses patrimoniais, garantindo primeiro, a continuidade da família institucionalizada e só depois, os interesses patrimoniais de cada membro que a integrasse. Por fim, garantidos os interesses econômicos, poderia o direito se preocupar com outros interesses, ainda que puramente existenciais, todavia, de maneira residual, afinal, o Estado não poderia interferir naquilo que seria da competência de Deus. O problema é que, quando surge o espaço em que a fé permite a interferência da razão, o ser humano garante a sua permanência em zona de conforto, voltando a usar a retórica de sua natureza animal, justificando as tendências de ordem biológica, que organizam os papéis sociais, por gênero, feminino e masculino. Sendo certo que a natureza equipou o ser humano com a razão, pelo mesmo motivo que equipou o touro com chifres e o escorpião com veneno, ou seja, para se defender dos predadores,163esta mesma razão pode ser usada, estrategicamente, para persuadir de sua permanente condição animal, de sua supremacia em face da natureza ou até, para criar características naturais como se fossem verdades imutáveis. Assim, é possível que o ser humano escolha argumentos que justifiquem sua condição animal, ressaltando os aspectos naturais para a sua conveniência e se afastem quando queiram, para criar um universo particular e artificial desde que seus interesses clamem pelo reconhecimento da superioridade de um ser dotado de um poder inexistente nos demais seres vivos e que, por isto mesmo, o torna apartado de uma estrutura natural, permitindo colocá-la a seu serviço, já que, naquela sua concepção, não a integraria. O ser humano, então, por ser social, cria normas que permitam a convivência, construindo estruturas novas a partir de suas necessidades. Foi assim, construindo suas regras, justificando como mais conveniente ou supostamente apropriado, que surgiu a diferença entre sexo e gênero. Um biológico e imutável, o outro artificial transitório164. 163 “O intelecto como um meio para a conservação do indivíduo, desdobra suas forças mestras no disfarce: pois este é o meio pelo qual os indivíduos mais fracos, menos robustos, se conservam, aqueles aos quais está vedado travar uma luta pela existência de chifres ou presas aguçadas”. NIETZSCHE, Friedrich. Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-moral. In: Obras Incompletas – Coleção Os Pensadores. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 45. 164 “Faz igualmente parte do equipamento básico de gente esclarecida o facto óbvio de se distinguir entre “sex” (sexo) e “gender” (gênero). Os dois conceitos chegaram a nós vindos do movimento feminista americano: aí, “sex” designa o sexo biológico, ao passo que “gender” se refere aos papéis socialmente atribuídos ao “homem” e à “mulher” em função do sexo biológico. Esta distinção tem em atenção a 97 Com os papéis estruturados em bases diversas, porém sólidas, o lugar de cada um no cenário social é definido de modo a confundir o adquirido com o inato. Daí se falar em natureza feminina e masculina e esperar de cada representante do gênero, que cumpra seu papel, não se exigindo (até por aceitação das verdades), aquilo que lhes fuja à competência. Apesar de todo o esforço das feministas e do reconhecimento jurídico da igualdade em direitos e deveres, entre homens e mulheres, ainda existe certa aceitação social para o pai que negligencia os filhos, que não convive, que não quer saber. Por outro lado, não é verdade que o mesmo se afirme com relação ao abandono materno. A imagem social da mulher/mãe é a do amor incondicional enquanto o afeto paterno é conquistado. E obviamente, ao se falar em amor, levando-se em conta apenas, seu viés emocional, este não pode ser reduzido à uma atividade imposta, como dever a cumprir. Como expressão da natureza, deve ser espontâneo, involuntário. Socialmente, ainda hoje, se espera do pai, a garantia material da família, assim, cumprida essa parte, o que fizer a mais, será acréscimo benevolente de sua função. Juridicamente, não é difícil enquadrar a responsabilidade de alguém, na obrigação de garantir economicamente o grupo. Tratando-se de interesses patrimoniais, a parcela artificial da relação parental insere a família na necessidade de integrar o sistema capitalista de troca de bens necessários à vida e ao conforto das pessoas, pelo dinheiro. Não se questiona se é pertinente obrigar alguém a prestar alimentos, ao mesmo tempo em que choca a muitos, a ideia da convivência familiar por imposição externa, com força coercitiva. A convivência estaria naquela esfera incondicionada ou conquistada do amor, que tem origem na natureza animal do ser humano, que por sua vez, é obra divina e que deve ser experimentada pelo natural extinto gregário em obediência a preceitos religiosos. É a retórica do exercício natural da função feminina. Contrariando essas verdades culturais, encontra-se em nosso ordenamento, uma série de normas que regulam as relações familiares, com o objetivo de assegurar, também, interesses imateriais, não econômicos, com a garantia constitucional de merecerem proteção especial do Estado, sobretudo quando se tratam de interesses de vulneráveis, como crianças e adolescentes, centro de atenção desta tese, ressaltando a seguinte realidade: o sexo biológico é o que é, mas, os papéis sociais são invenções culturais que também poderiam ser diferentes”. SCHWANITZ, Dietrich. Cultura. Tudo o que é preciso saber. Tradução: Lumir Nahodil. 8 ed. Lisboa: Dom Quixote, 2007, p. 398. 98 existência de verdadeiros deveres jurídicos dos pais, de forma igual, e não apenas, papéis sociais dirigidos pela natureza de cada um, se masculino ou feminino. Nessa linha, o artigo 227 da Constituição Federal impõe: Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Ainda na Constituição Federal, encontra-se o art. 229, estabelecendo o dever dos pais quanto a assistir, criar e educar os filhos menores, assim como o dever dos filhos maiores de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade. Na lei 8069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), encontram-se diversas normas que apontam a responsabilidade da família e da comunidade social, governamental ou não, pela satisfação de interesses também imateriais, de seus filhos, crianças e adolescentes. Entre elas, encontramos o art. 4º, que se aproxima do mandamento constitucional: Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Como centro de atenção desta tese, os direitos existenciais da criança e do adolescente, na constância do poder familiar são mais do que claramente direitos. Ainda para os que questionam a posição dos filhos menores, nas relações jurídicas do poder familiar, se estaria resumida à sujeição, apenas, é o próprio ECA que afasta essa interpretação, na redação de seu artigo 15, que os nomina, expressamente, por sujeitos de direito165. Mais expressivo ainda, ficam os direitos existenciais, no capítulo II, título III do ECA, ao trazer uma série de artigos referentes ao direito à convivência familiar e 165 “Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis”. 99 comunitária166, principalmente por ser, a convivência familiar, direito e meio realizador da personalidade de seus membros. Para os menores, a convivência familiar necessária para a realização de suas personalidades, ganha proporção maior por se tratar, mesmo, do momento de construção dessa personalidade, no sentido de (a)firmá-la para que possa surgir o ser social que, espera-se, atuará equilibradamente na comunidade. 3.2 Deveres ou Faculdades. Distinção Necessária entre Comandos e Conselhos em Bobbio Superado o problema inicial, considerando a inclusão, no ordenamento jurídico, dos deveres jurídicos voltados à satisfação de interesses imateriais da criança e do adolescente, resta saber o seguinte: qual a força das normas que ditam comportamentos que se voltam para satisfazer interesses não econômicos? Existe um vínculo jurídico que confere obrigatoriedade para os sujeitos que integrem as relações jurídicas previstas em tais normas? Ou trata-se de conselhos, social ou moralmente vinculativos, mas, não exigíveis por mecanismos jurídicos? Qual o grau de liberdade das pessoas, em uma relação familiar, diante das normas existentes nos textos jurídicos nacionais, tendo em vista a ênfase do aspecto existencial e imaterial em tais interesses, combinado com o direito à intimidade familiar com a mínima (mas, não nula) intervenção do Estado? Para responder tais perguntas, é importante analisar alguns aspectos das normas já mencionadas, com o propósito de afirmar sua juridicidade, bem como a sua força. Ainda que não restem dúvidas, quanto a serem normas jurídicas, nem todas as normas jurídicas consistem em comandos, portanto impõe-se apontar, aqui, entre várias distinções 166 “Art. 19. Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes.” “Art. 20. Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.” “Art. 21. O poder familiar será exercido, em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe, na forma do que dispuser a legislação civil, assegurado a qualquer deles o direito de, em caso de discordância, recorrer à autoridade judiciária competente para a solução da divergência.” “Art. 22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.” “Art. 23. A falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do poder familiar.” “Art. 24. A perda e a suspensão do poder familiar serão decretadas judicialmente, em procedimento contraditório, nos casos previstos na legislação civil, bem como na hipótese de descumprimento injustificado dos deveres e obrigações a que alude o art. 22.” 100 apontadas por Bobbio167, para definir os contornos das normas morais, sociais, religiosas, técnicas e jurídicas, suas importantes observações realizadas, partindo da ideia de Hobbes, no capítulo vigésimo quinto de seu Leviatã, acerca do que diferencia os comandos dos conselhos. Seguem as considerações de Bobbio acerca das distinções apontadas por Hobbes, às quais, somam-se, nesta investigação, às considerações a respeito das normas brasileiras sobre a parentalidade. O primeiro argumento hobbesiano, destacado por Bobbio168, diz respeito ao sujeito ativo. Para que se fale em comando, o sujeito ativo deveria ser dotado de uma autoridade para fazê-lo, ao passo que esta inexiste para aquele que aconselha. O conselho seria dado por aquele a quem não se permite reclamar do direito de aconselhar. No caso das normas em análise, verifica-se a autoridade do poder constituinte e do legislativo federal a quem foi conferido, pela sociedade representada, o poder de ditar condutas. Bobbio169 critica o argumento, lembrando que, no campo do direito, também se aconselha, assim, para exercer tal poder consultivo, é necessária a existência de tal autoridade, ainda que particular. Ainda não sendo suficiente para definir o caráter das normas existenciais que integram o conjunto normativo do poder familiar, se comandos ou conselhos, outro argumento hobbesiano é levantado por Bobbio, desta vez, quanto ao conteúdo. Os comandos vinculam pela vontade manifestada pela autoridade superior, já os conselhos, vinculam pela sensatez de seu conteúdo. Assim, haveria obrigação de seguir os comandos, existindo ou não, bom senso no que eles dirijam e, assim, nas palavras do jurista italiano: “os comandos, por serem confiados ao prestígio de uma vontade superior, podem destinar-se a qualquer pessoa, os conselhos apenas às pessoas de bom senso”170. Antes de concluir tratar-se, para os sujeitos passivos das normas de direito parental, de deveres jurídicos ou ainda, obrigações jurídicas, conferindo-lhes exigibilidade, não se pode fugir às consequências presentes no texto do Código Civil 167 BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010, BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010, 169 BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010, 170 BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010, 168 p. 15-181. p. 89. p. 90. p. 89. 101 (arts. 1.635 ao 1.638), assim como do ECA (art. 24), no que pertine às possibilidades de suspensão ou perda do poder familiar, quando da inobservância daquelas normas. Desta maneira, não se espera o cumprimento das condutas ali previstas por questão de bom senso, mas, de obediência à vontade superior, sob pena de sofrer as consequências indicadas para o caso. O terceiro argumento trabalhado por Bobbio estaria na diferença quanto à pessoa do destinatário. Para o comando, o destinatário estaria obrigado a cumpri-lo, o que não acontece em relação ao conselho, quando o destinatário tem a faculdade de segui-lo. Com relação a este argumento, admitindo-se o dever de cumprir o que está disposto nas normas que regulam o poder familiar, precisa-se estabelecer a distinção entre dever e obrigação. Considerando a necessidade de obedecer ao que está dirigido pelas normas jurídicas que regulam o poder familiar, ainda que, no mínimo, para evitar as consequências que podem ser suspensão ou perda daquele poder, poder-se-ia tratar de obrigação, considerada em sentido mais amplo, ou estar-se-ia diante daquele sentido restrito às normas de direito obrigacional? O quarto argumento é quanto ao fim, sendo o comando voltado para o interesse de quem ordena, ao passo que o conselho volta-se para o interesse do aconselhado. Bobbio critica este argumento, enxergando a coerência da afirmação referente ao conselho, no entanto, enxergando uma falsidade quanto ao interesse no comando, ressaltando que “seria realmente ingênuo acreditar que as leis sejam emanadas apenas no interesse público, mas, seria demasiado malicioso acreditar que sejam emanadas apenas no interesse daqueles que detêm o poder supremo”171. O quinto e último argumento, quanto às consequências. O mal que resultar do cumprimento de um comando é de responsabilidade daquele que impôs o comando, por sua vez, o mal que resultar do cumprimento de um conselho é de responsabilidade do aconselhado. 171 BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 90. 102 3.3 Identificando as Obrigações Civis nas Relações Jurídicas do Poder Familiar O Ordenamento Jurídico Brasileiro tem finalidades muito claras, apresentadas pela Constituição Federal em seus artigos iniciais, que tratam dos fundamentos, princípios e objetivos da República Federativa do Brasil. Toda norma jurídica deve ter por base, porque também é seu fim, a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). Deve objetivar, entre outros fins ali expostos, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I) e a promoção do bem de todos, livres de preconceitos e discriminações (art. 3º, IV). Com a resposta constitucional do que se espera da sociedade brasileira e a razão que norteia as normas jurídicas do país, percebe-se o lugar de destaque em que se encontram, atualmente, os interesses existenciais, antes esquecidos por uma cultura que sempre enfatizou os valores patrimoniais, principalmente em países com grande disparidade na distribuição de renda e dirigidos por elites mais econômicas que intelectuais, como é o caso do nosso. Essa mudança de paradigma revolve diversos conceitos e ideias que foram construídos para uma realidade que se voltava mais para interesses econômicos do que existenciais e hoje, negar a força desses direitos existenciais seria negar a própria Constituição Federal. A questão é que, mudar paradigmas não é tão simples a ponto de se resolver com a substituição de algumas regras (como se isso já não comportasse sua complexidade), mas, vai além, atingindo o cerne da própria teoria do direito privado. E não basta apenas reconhecer que não cabe mais a aplicação de alguns conceitos e institutos que já tiveram seu valor no passado e que, hoje, não conseguem mais resolver os problemas contemporâneos. É preciso se preocupar com aquilo que vai tomar seu lugar, seja na adequação do que já existia à nova realidade ou na criação de novos modelos. No caso do Direito das Obrigações, a dificuldade se encontra em definir sua abrangência, tendo em vista se tratar de normas que se inserem em um conjunto mais amplo e que recebe o mesmo nome. Assim, temos o gênero “obrigações”, abrigando espécies de mesmo nome, como as obrigações reguladas pelos princípios e regras que compõem o Direito das Obrigações. O uso de um mesmo nome para designar coisas diferentes ainda não seria um maior problema se não se tratasse do uso de uma mesma denominação para, 103 confusamente e ao mesmo tempo, significar o continente e parte do conteúdo. Pontes de Miranda,172 ao definir Direito das Obrigações, ressalta que já se restringe tanto o que se conhece por obrigações, excluindo as que não se enquadram naquela definição, que seria melhor se houvesse dado outro nome àquele conjunto de normas. O termo “obrigação” serve para designar toda conduta entendida como necessária ao convívio social e considerada um verdadeiro comando, ainda que se trate de imposição jurídica, social, moral, religiosa ou de trato social.173 Ainda que diferentes em razões, amplitude e eficácia, todas essas normas podem ser nominadas de “obrigações”174. Para distinguir a obrigação jurídica nesta pluralidade de tipos, Pontes de Miranda175 apresenta como um dos critérios de verificação, o fato de que as jurídicas obrigam “alguém” e as demais obrigam “todos”, ressaltando a estrutura pessoal da relação jurídica obrigacional. Ao mesmo tempo, lembra que nem todas as relações jurídicas de estrutura pessoal integram o direito das obrigações. Também por esta razão, Pontes de Miranda reconhece a artificialidade do conceito e alerta para o cuidado que se deve ter no trato do artificial para que não sejamos, por essa característica, enganados. Na possibilidade de haver enganos pela definição insuficiente que decorre da artificialidade dos conceitos, Fernando Noronha176 enfatiza a necessidade de bem definir as relações jurídicas obrigacionais, dentro dessa acepção mais ampla, porque situações muito parecidas não trarão as mesmas consequências, exatamente por participarem de estratos distintos do mesmo gênero obrigacional, como por exemplo, a hospedagem em um hotel e o recebimento de um amigo querido ou de um parente para passar uns dias em casa, ou ainda, o serviço turístico e a gentileza de indicar caminhos ou sugerir passeios a alguém, apenas com a finalidade de ser socialmente educado. 172 PONTES DE MIRANDA, Francisco. Tratado de Direito Privado. Parte Geral. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971, t. XXII, p.7. 173 NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações 1. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 109-110. 174 “É na acepção amplíssima de obrigação, igual a dever que se pode dizer que o serviço militar é obrigação (jurídica) de todo brasileiro, que o Cristão tem a obrigação (moral) de socorrer os necessitados e ainda a obrigação (de trato social) de se comportar segundo as regras de decoro e boa educação”. NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações 1. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 5. 175 PONTES DE MIRANDA, Francisco. Tratado de Direito Privado. Parte Geral. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971, t. XXII, p.8. 176 NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações 1. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 6. 104 Para Bobbio177, uma das maneiras de identificar uma norma como jurídica, se dá pelo modo como ela é acolhida por aquele a quem se destina que, por sua vez, deve estar convencido da sua obrigatoriedade e, portanto, age com a necessidade de fazê-lo. Tercio Ferraz178, ao explicar a norma jurídica pelo viés da comunicação, enxerga essa “necessidade” de cumprimento, pela confirmação da relação de autoridade que se estabelece no segundo nível de comunicação, ou seja, no cometimento.179 Para que isso aconteça, conforme o autor tem que se considerarem três hipóteses: na primeira, a relação é confirmada pela obediência àquilo que se prescreveu; na segunda, a relação é confirmada, paradoxalmente, pela rejeição da conduta prescrita, uma vez que, para negá-la é preciso reconhecê-la; na terceira, pela desconfirmação da ordem, através de uma postura ostensivamente contrária ao comando, exatamente por não enxergá-lo como tal. A última hipótese não deve ser esperada, quando a norma for jurídica, exatamente pelo fato de ter sido emanada a ordem, por uma autoridade respaldada, ou seja, confirmada por terceiros não partícipes da relação (consenso social), institucionalizando tal autoridade em seu mais alto grau, prevalecendo (tal consenso social) sobre qualquer outro consenso.180 O problema que se pretende enfrentar, no entanto, não se restringe ao reconhecimento do caráter jurídico de algumas normas que regulam as relações de parentalidade, mas, de saber se elas podem se enquadrar naquele conceito restrito de obrigação que integra o “direito das obrigações.” Isso porque não se pode negar a existência de conceitos distintos entre dever jurídico, sujeição e ônus. 177 BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 143. FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. Técnica, Decisão, Dominação. 2 ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 109-110. 179 “Ao examinarmos a noção de norma-comunicação, verificamos que, ao comunicar-se, o homem o faz em dois níveis: o relato, isto é, a mensagem que emanamos (sentar-se) e o cometimento, a mensagem que emana de nós, ou seja, a simultânea determinação da relação entre os comunicadores (“por favor, sentemse” ou “sentem-se!”). É nesta relação que se localiza o caráter prescritivo das normas. É nela que se pode descobrir o caráter prescritivo jurídico.” FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. Técnica, Decisão, Dominação. 2 ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 108. 180 O reconhecimento de uma autoridade institucionalizada que normatiza as relações, não faz retroagir à ideia de uma aplicação subsidiária dos princípios, colocando equivocadamente, as regras em uma posição hierarquicamente superior no cenário jurídico, mas, no reconhecimento de um positivismo contemporâneo, com princípios e regras integrando o corpo de normas jurídicas, reconhecidas como tais, pelo Estado, enquanto autoridade legitimada para fazê-lo, tanto no momento de elaboração, como nos de interpretação e aplicação de tais normas. 178 105 Pode-se dizer, brevemente, do ensinamento de Orlando Gomes181, que o dever jurídico consiste na necessidade que é imposta a todos de observar as normas (qualquer uma, não se limitando a um grupo de normas específico) que integram o ordenamento jurídico, sob pena de, não cumprindo, suportar uma sanção. A sujeição, por sua vez, está ligada à noção de direitos potestativos, consistindo nas consequências jurídicas que decorrem do exercício regular de tais direitos. Por ônus jurídico entende-se tratar da necessidade de agir de certa maneira, a fim de realizar interesses próprios. Para definir, então, obrigação, em seu sentido restrito, diversos autores usam do recurso da limitação, restringindo às circunstâncias que abriguem apenas interesses patrimoniais ou, ainda, limitando-se às fontes, tão somente, negociais. No entanto, ainda que existam divergências entre os diversos autores com relação ao aspecto patrimonial ou existencial da prestação debitória, assim também quanto às fontes que originam obrigações em seu conceito restrito, o certo é que todos os conceitos coincidem em apresentar um elemento verdadeiramente essencial para a compreensão dessas relações jurídicas: a pretensão do credor. Parece acertado dizer que, ainda que sejam relevantes outros elementos que integrem o conceito, o direito do sujeito ativo de exigir o cumprimento da prestação e a necessidade jurídica do sujeito passivo de agir conforme tal exigência consiste na principal característica que diferencia as obrigações reguladas pelo Direito das Obrigações e as demais obrigações ainda que juridicamente consideradas e, por isso, também capazes de produzir consequências conhecidas pelo Direito. Considerando as relações jurídicas abrigadas pelo Poder Familiar, a mudança do nome (que antes era Pátrio Poder) já sugere a significativa alteração em seu conteúdo, sem, contudo, fazer jus às verdadeiras mudanças que se operaram no cerne de tais estruturas relacionais, modificando toda a essência dos elementos que as integram. Dos sujeitos ao conteúdo, passando pelos interesses que se busca tutelar, à força de comando para as ações necessárias visando a atingir tais interesses. Na realidade, apesar do reconhecimento social e jurídico da importância da família na realização da personalidade de seus integrantes, ainda é preciso sedimentar que tal personalidade é construída e, não apenas, realizada, nos primeiros anos de vida, 181 GOMES, Orlando. Obrigações. 17 ed. Atualização: Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 11-12. 106 momento em que estão vinculados pais e filhos, pelas normas do Poder Familiar, exatamente para propiciar tais interesses recíprocos, no entanto, com maior ênfase nos interesses das crianças e adolescentes, exatamente pelo momento de formação de suas personalidades, que é por sua vez, a razão de existência de tal instituto. Em Portugal, com a L. 61/2008, as relações jurídicas equivalentes ao nosso Poder familiar, passam a ser chamadas de Responsabilidades Parentais, substituindo a anterior denominação “Poder Paternal”, apontando de maneira muito mais clara, a profunda mudança, sobretudo por entender os menores como sujeitos de direito, assim como da “supremacia da função de cuidado (pelos progenitores) sobre sua função de representação, afastando-se assim, a ideia de que se trata simplesmente, de um poder”.182 Ainda que a nova denominação portuguesa receba críticas 183 de alguns autores, por não se limitar, o instituto, apenas às responsabilidades dos pais que tem, também, direitos de exigência, o que faria com que denominações do tipo “Cuidado Parental”, se adequasse melhor, o termo “Responsabilidades Parentais” segue a denominação adotada por instrumentos de direito internacional, “designadamente a Recomendação nº R(84)4 do Conselho da Europa sobre as responsabilidades parentais.”184 Não sendo possível negar, no modelo brasileiro, o forte caráter de responsabilidade dos pais quanto às condutas impostas pela legislação pátria, depreende-se responder se tais responsabilidades consistem em necessidades jurídicas de cumprimento das ações ali elencadas. Se assim for, deverão ser dotados de exigibilidade, os sujeitos ativos para quem se voltam os principais interesses justificadores de tais condutas. Como essencial ao que se entende por obrigação civil, regulada pelo Direito das Obrigações, presente em todo e qualquer conceito sobre o tema, soa razoável que a exigibilidade (a pretensão) deva participar da nova estrutura relacional do poder 182 RODRIGUES, Hugo Manuel Leite. Questões de Particular Importância no Exercício das Responsabilidades Parentais. Coimbra: Coimbra, 2011, p. 20. 183 “As autoras (M.C. Taborda Simões/ Rosa Martins/ MD Formosinho) referem ainda que expressão “responsabilidades parentais”, apesar de ser defendida por outros autores e por instrumentos de direito internacional, não é a mais adequada, pois os pais não têm apenas responsabilidades relativamente aos filhos mas, possuem também, um ‘dever de exigência’”. RODRIGUES, Hugo Manuel Leite. Questões de Particular Importância no Exercício das Responsabilidades Parentais. Coimbra: Coimbra, 2011, p. 22. 184 RODRIGUES, Hugo Manuel Leite. Questões de Particular Importância no Exercício das Responsabilidades Parentais. Coimbra: Coimbra, 2011, p. 26. 107 familiar, do contrário, restaria esvaziado o discurso constitucional de prioridade, ou melhor, interesse que se volta para a concretização do principio fundante da dignidade, em fase essencial para construção do amplo equilíbrio individual e social da pessoa humana. Para sedimentar a ideia de que é possível utilizar as normas do direito obrigacional nas relações de poder familiar, deve-se, ainda, voltar o olhar para as condutas-objeto, a fim de compreendê-las enquanto prestações exigíveis e assim, garantir verdadeiramente, a tutela dos interesses perseguidos. 3.3.1 Prestações Debitórias nas Relações Parentais Como o direito é retórico, para entender a prestação na contemporaneidade, é preciso traçar uma comparação entre o que se entendia como tal, sobretudo no início do século XX, quando entra em vigor o Código Civil de 1916, sendo a sociedade brasileira da época, patriarcal e patrimonialista, e a interpretação e significância traduzida pelos doutrinadores pós Constituição Federal de 1988. Ainda que tenha se passado menos de 1 século, foram os últimos 100 anos, significativos para as principais transformações das relações humanas em seus aspectos morais, sociais, religiosos e jurídicos, o que não significa, necessariamente, no caso das normas jurídicas, a substituição de alguns textos de lei, mas, da mudança interpretativa amparada pelos princípios que, hoje, cumprem função mais ativa, otimizando o conteúdo das regras. Basicamente, a prestação consiste na conduta comissiva ou omissiva, a ser realizada pelo devedor objetivando satisfazer o(s) interesse(s) do credor. É o objeto da relação jurídica obrigacional185, para onde apontam os direitos creditórios. Na realidade, o que vai mesmo caracterizar a prestação, como objeto de uma relação obrigacional, é a necessidade jurídica de seu cumprimento, tendo em vista que o titular do crédito, poderá, com apoio do aparato legal do Estado, exigir tal conduta, a fim de ter seus interesses, satisfeitos. Nem todo dever se converte em obrigação, 185 “Objeto da relação obrigacional é a prestação, isto é, o ato ou omissão do devedor.” GOMES, Orlando. Obrigações. 17 ed. Atualização: Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 21. “Objeto da obrigação é uma prestação, e esta sempre constitui um fato humano, uma atividade do homem, uma atuação do sujeito passivo”. Clóvis Beviláqua apud PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Atualização: Guilherme Calmon. 22 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 18. 108 quando, do outro lado, houver um direito subjetivo a ele vinculado e é exatamente por isso que se reconhece a existência de deveres jurídicos e obrigações jurídicas em sentidos, embora parecidos, distintos. Assim, o conceito de prestação debitória, deverá apresentar a sua exigibilidade como parte de sua estrutura, sendo assim, prestação debitória exigível. E é exatamente aqui, que se encontram as mais fortes resistências por parte de muitos doutrinadores, em considerar os interesses existenciais, geradores da força dessa exigibilidade integrante do conceito de qualquer relação jurídica obrigacional, em sentido estrito. É também aqui, que se encontra o principal argumento de resistência à confirmação das condutasobjeto do poder familiar como prestações debitórias e assim, exigíveis. A base da negativa se afirma em desconsiderar as prestações que não abriguem interesses econômicos, mas, puramente morais, como objeto de regulação por parte do direito das obrigações. Mas, como já se viu esse pensamento é típico de um modelo liberal e ultrapassado, que só enxergava a pertinência de prestações patrimoniais para as obrigações jurídicas, cabendo as demais prestações, às outras esferas obrigacionais como as morais, sociais e religiosas. Outra característica da prestação debitória, ao lado de sua exigibilidade, é o fato de ser essencial para a satisfação do interesse do credor,186 ou seja, o direito do credor só será realizado pela atuação do devedor que se comporta conforme a prestação impõe. Trata-se, o crédito, de direito subjetivo que só se cumpre (embora exista), dependendo da atuação, ou melhor, da conduta comissiva ou omissiva do outro e, por isso, sua essencialidade. 3.3.2 Conteúdo Econômico da Prestação Debitória Apesar de não existir, na legislação pátria, a exigência expressa do caráter econômico na prestação debitória, como acontece na legislação italiana que apresenta no art. 1.174 de seu Código Civil a regra: “A prestação que forma o objeto das obrigações, deve ser suscetível de valoração econômica e deve corresponder a um interesse também patrimonial do credor.”187, nem tampouco, apresente expressamente, a 186 NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações 1. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 95. Tradução livre para “La prestazione che forma oggetto dell’obbligazione deve essere suscettibile de valutazione econômica e deve corrispondere a un interesse, anche non patrimoniale, del creditore.” 187 109 permissão que contraria a norma italiana, como é o caso do art. 398 do Código Civil de Portugal, que dispõe: “(...); 2. A prestação não necessita de ter valor pecuniário; mas deve corresponder a um interesse do credor, digno de protecção legal” 188, é certo que o caráter econômico da prestação sempre esteve presente na definição dos elementos que integram as relações jurídicas obrigacionais. A razão para ser assim, parece advir da noção de garantia, que acompanha as relações obrigacionais e que recaem, necessariamente, no patrimônio econômico do devedor. Isso porque não se pode admitir que ele responda com a sua pessoa, evitando sua “coisificação” ao ser reduzido a objeto de segurança da obrigação189. Nos dias atuais, com a tutela, constitucionalmente assegurada, da integridade física e da liberdade de ir e vir, somente sobre o patrimônio econômico do devedor poderá recair a garantia das obrigações. A solução encontrada no ordenamento jurídico, para assegurar os interesses do credor, induz o pensamento de que bens materiais e dinheiro só poderiam substituir prestações que também fossem patrimonialmente valoradas. É assim que Caio Mário190 defende sua posição pela patrimonialidade das prestações debitórias. Para ele, poderiam ser levantados, em defesa de sua tese, dois argumentos: o primeiro, no sentido de que, se a lei estabelece a possibilidade de converter a prestação em equivalente pecuniário (perdas e danos), caso ocorra o inadimplemento, resta claro que a prestação, ainda que não lhe seja fixado um valor, o tem implicitamente. O segundo argumento tem por base a ideia de que a pecuniariedade da prestação, torna mais clara a diferença entre as obrigações em sentido técnico, daqueles deveres que são indiferentes ao direito, como por exemplo, o dever de fidelidade conjugal. ITÁLIA.Il Codice Civile. Disponível em: http://www.jus.unitn.it/cardozo/obiter_dictum/codciv/Lib4.htm, Acesso em 18 de julho de 2011. 188 PORTUGAL. Código Civil. Disponível em: http://www.portolegal.com/CodigoCivil.html. Acesso em 18 de julho de 2011. 189 Shakespeare abordou o tema em sua obra, criando o personagem de Antônio que, para ajudar seu amigo Bassanio, em um empréstimo junto ao judeu Shylock, que viabilizaria conquistar uma donzela, se oferece como fiador, colocando 1 libra de sua própria carne como garantia. SHAKESPEARE, William. The Merchant of Venice. In: The Complete Works of William Shakespeare. New York: Gramercy Books, 1990, p. 203-228. Saindo da ficção, encontramos em nossas raízes culturais/jurídicas, a lei das XXII tábuas, permitindo, em sua tábua terceira, que o devedor inadimplente, depois de preso (liberdade), fosse, ainda, exposto em praça pública (reputação), e se ainda não houvesse o pagamento da(s) dívida(s), a lei autorizava sua morte seguida de esquartejamento (vida). Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/12tab.htm. Acesso em: 29 de Abril de 2012. 190 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Atualização: Guilherme Calmon. 22 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 22-23. 110 Posição parecida com a de Caio Mário, tem Ruggiero, que afirma que o que não se deve confundir é interesse com prestação. Para ele, independente do caráter econômico ou não, do interesse, a prestação, necessariamente deve apresentar conteúdo patrimonial. Isso por que, se assim não fosse: (...) faltaria ao interesse do credor a possibilidade concreta de se exercer, na falta de cumprimento, sobre o patrimônio do devedor e, por outro lado, incluir-se-ia no conceito jurídico da obrigação, uma série de obrigações que, posto que contraindo-se todos os dias na vida social, nunca ninguém pensou em fazer valer mercê da coação judicial.191 Paulo Lôbo192, na primeira versão de seu livro de obrigações, admitia o interesse puramente moral na prestação, no entanto admitia que esta última devesse ser suscetível de valorização econômica, apesar de reconhecer o posicionamento diverso, em Pontes de Miranda, como será visto adiante. 3.3.3 Repersonalização do Direito das Obrigações Apesar de fazer parte da temática da Constitucionalização do Direito Civil, poucos autores aprofundam o estudo do fenômeno da repersonalização no âmbito do direito das obrigações. Paulo Lobo é um desses poucos autores que se dedicam ao estudo da centralização da pessoa nas razões (logos) do direito obrigacional contemporâneo. Ainda vivendo um período de transição, já que são séculos de tradição patriarcal e patrimonial, não é tão fácil incluir e salientar interesses não econômicos, neste ramo que sempre foi, e ainda é, marcadamente, patrimonializado. Para o autor, o processo de constitucionalização do direito privado, no caso específico do direito das obrigações, consiste em elevar ao plano constitucional, os princípios fundamentais desse ramo do direito, ficando vinculada, a interpretação das regras obrigacionais, de acordo com as diretrizes constitucionais. E isso vale, tanto para o cidadão quanto para o Estado. Assim, a proteção dos vulneráveis, a equivalência material, a boa-fé e a solidariedade, seriam exemplos daquilo que devem integrar e 191 RUGGIERO, Roberto de. Instituições de Direito Civil. Tradução: Paulo Bernasse. 6 ed. Campinas: Bookseller, 1999, p. 49. 192 LÔBO, Paulo. Direito das Obrigações. Brasília: Brasília Jurídica, 1999, p. 16. 111 nortear as relações obrigacionais, tudo baseado no princípio antecedente, da dignidade humana. A patrimonialização das relações obrigacionais, no sentido de primazia, é incompatível como os valores fundados na dignidade da pessoa humana, adotados pelas Constituições modernas, inclusive pela brasileira (art. 1º, II). A repersonalização reencontra a trajetória da longa história da emancipação humana, no sentido de repor a pessoa humana como centro do Direito Civil, ficando o patrimônio a seu serviço. O direito das obrigações, ainda que essencialmente voltado às relações econômicas da pessoa, tem relação com essa função instrumental, além de estar conformado aos princípios e valores constitucionais que a protegem. 193 Apesar de ser mais compreensível verificar a presença do fenômeno da repersonalização, na interpretação de algumas normas de direito de família, já que é no contexto familiar que se desenvolve e realiza a personalidade de seus integrantes, isso não significa dizer que a prevalência dos interesses que se voltem às pessoas enquanto tais, não se verifique nas normas regulatórias de relações jurídicas tradicionalmente patrimonializadas. A repersonalização acontece em todo direito privado, implicando também observá-la no direito obrigacional, principalmente, após o reconhecimento constitucional do patrimônio jurídico existencial (direitos da personalidade) que, ao ser violado, dá origem à obrigação de indenizar, ressaltando a tutela da pessoa em sua personalidade, mesmo que inexista qualquer perda de ordem econômica em seu patrimônio jurídico. Percebe-se, assim, que não se pode mais afastar a dignidade humana dos ideais de justiça, impondo que a pessoa percebida como ser social e não mais, como o indivíduo que dava suporte as ideias liberais, tenha protegido os seus interesses econômicos porque estes também fazem parte do projeto existencial constitucionalmente perseguido e, não apenas, pelo interesse material isolado que não condiz com uma sociedade que se pretenda justa e solidária. Assim, com a mudança de paradigmas, a partir da noção de repersonalização, a limitação de interesses que engessa o direito das obrigações no ambiente patrimonialista tradicional, não se adequa ao pensamento contemporâneo de justiça, devendo ser revisitado e interpretado sob a iluminação dos princípios constitucionais, sobretudo observando a concretização dos direitos fundamentais que irradiam da ideia de dignidade humana. 193 LÔBO. Paulo. Direito Civil. Obrigações. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 17. 112 3.3.4 Interesse Puramente Moral e o Reconhecimento da Prestação Debitória Desprovida de Conteúdo Econômico Com a relocação da pessoa no centro do ordenamento, considerada enquanto integrante da sociedade e cuja dignidade deve ser protegida como princípio republicano, surge a urgência de repensar as técnicas jurídicas que se voltavam, tradicionalmente e exclusivamente, para os interesses econômicos, para acomodar os interesses existenciais que foram alçados ao grau de maior importância no ordenamento brasileiro. Essa releitura passa, necessariamente, pelo direito das obrigações. De acordo com Pontes de Miranda, não é necessário o requisito da patrimonialidade para que uma prestação seja considerada uma prestação debitória regulada pelo direito das obrigações. Inclusive, ainda que tenha feito tal afirmação décadas passadas, enfatiza não ser a única voz nesse sentido. Conforme o autor, a tese que advoga pela existência de prestações puramente morais, já seria aceita de maneira indiscutível na sociedade. Em suas palavras: “Longe vai o tempo em que se não atendia ao interesse somente moral da prestação, em que se dizia que a prestação tinha de ser patrimonial”194. Pelo fato de ainda se discutir, décadas depois, a pertinência do conteúdo moral das prestações debitórias, soa estranha a forma enfática como Pontes de Miranda afirmava o seu posicionamento. É inegável a vanguarda do jurista alagoano, que parecia antever que as ideias que hoje estão em construção, rumam para as definições previamente expostas em suas obras. A esperança de ver reconhecidas, de maneira inconteste, as afirmações acima apresentadas, decorre da incoerência de pensar diferente, contrariando a tutela de interesses puramente morais, sobretudo quando temos, na Constituição Federal de 1988, a dignidade da pessoa humana, como um dos fundamentos da República e, por força disso, o reconhecimento e a garantia dos vários direitos fundamentais, primordialmente existenciais. Ainda, a tutela dos direitos não econômicos que decorrem da personalidade no Código Civil (arts. 11 ao 21), a extensão dessa tutela, no que couber, às pessoas jurídicas (art. 52), a definição de ação ou omissão que gera dano exclusivamente moral, 194 PONTES DE MIRANDA, Francisco. Tratado de Direito Privado. Parte Geral. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971, t. XXII, p.40. 113 como ato ilícito (art. 186), a reparabilidade dos danos causados por ato ilícito (art. 927), etc. É perfeitamente possível encontrar interesses não econômicos, seja no momento patológico, de lesão ao patrimônio imaterial, como também, no exercício da autonomia privada, ao participar de negócios jurídicos, como por exemplo a contratação de um professor de violão para o fim exclusivo de realizar-se, pessoalmente, em uma experiência puramente agradável. O interesse, no entanto, não é o ponto controvertido da discussão, tendo em vista que a grande maioria dos autores reconhece a possibilidade de protegê-lo, desde que seja útil, relevante e digno de tutela. A proteção do Estado não lhe seria negada, ainda que na ausência de qualquer conteúdo econômico. Não é difícil aceitar o interesse moral na prestação, mas, o conteúdo exclusivamente moral da prestação debitória. A crítica de Pontes de Miranda, conforme exposto no item anterior, recai no argumento da necessidade da patrimonialidade na prestação, justificado pela garantia do adimplemento, que recai no patrimônio econômico do devedor. Para ele, a ressarcibilidade do dano sofrido pelo credor e causado pelo descumprimento da prestação a que estava obrigado, conduz ao comprometimento de seu patrimônio em execução forçada, o que não caberia para outros deveres jurídicos, exatamente por não serem considerados estes deveres, obrigações em sentido estrito. No entanto, reconhecer o conteúdo da prestação, a partir da responsabilidade civil, não tem sentido, uma vez que lança mão da indenização como ato de justiça, na fórmula: “se há inadimplemento, ressarce-se, pois há ressarcibilidade”, propiciando, na verdade, uma inversão, tornando “prius o posterius: se não há ressarcibilidade, não houve obrigação”.195 Outro argumento de resistência, desta vez, criticado por Fernando Noronha consiste em considerar a dificuldade, para o credor, de provar que tais obrigações sejam verdadeiramente jurídicas e não se tratem de obrigações de outras naturezas, como por exemplo, aquelas sociais196, como se a dificuldade para provar, subtraísse a juridicidade da norma. É indiscutível, hoje em dia, a pertinência da indenização para os danos sofridos pela pessoa, ainda que inexistam prejuízos de ordem econômica, mas, tão somente em 195 PONTES DE MIRANDA, Francisco. Tratado de Direito Privado. Parte Geral. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971, t. XXII, p. 41. 196 NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações 1. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 43. 114 sua esfera moral. Ainda assim, Caio Mário, defendendo a patrimonialidade da prestação, alega que o fato de o direito reconhecer a indenizabilidade do dano moral, não significaria outra coisa que não, não ser indiferente ao ilícito, ainda que dele decorram prejuízos tão somente morais. Para ele, a indenização como ressarcimento pecuniário, não precisa seguir uma equivalência valorativa em relação ao bem jurídico ofendido, “antes da fixação da prestação, não existia um fato econômico, da mesma forma que antes da criação voluntária de uma relação obrigacional, podia não existir”.197 Não se pode discordar que o Estado não se deve omitir diante de qualquer ilícito, sob a alegação de que o interesse lesado não tinha valor econômico, no entanto, não parece sensata a afirmação de que a indenização deverá ser sempre, pecuniária. A patrimonialidade não está no cerne da ideia de indenização, no entanto, a utilização dessa palavra induz a esse pensamento, já que significa “tornar indene”, ou seja, “tornar sem dano”, ou ainda, voltar ao estado quo ante, o que é possível quando aquilo que se perdeu é reposto por ser substituído por outro equivalente ou pela quantia em dinheiro, que corresponda ao seu valor subtraído. Aplicar uma indenização, neste sentido, sendo o dano, moral, seria impossível, primeiro pela infungibilidade do bem lesado (vida, honra, liberdade, reputação, etc.), depois, pela ausência de valor econômico que justifique cobrir com o pagamento de uma indenização em dinheiro. O que se chama de indenização, no dano moral, deveria se chamar apenas reparação, pois significa uma maneira de compensar a vítima, a partir de uma resposta que, ao mesmo tempo signifique “punição” e “desestímulo” para o ofensor, não restando abandonada, a vítima, ao vazio de ver seu direito impunemente ferido, por ser valorado unicamente, pela dignidade. Um exemplo esclarecedor, levantado por Fernando Noronha198, para provar a existência de prestações puramente morais, a partir de um dano moral, está no caso de alguém, que tenha maculado a reputação e a imagem alheia, por lançar inverdades em público, poder sofrer uma condenação que o obrigue a se retratar, também em público. Percebe-se, claramente, a plausibilidade desta resposta, assim como a total ausência de qualquer conteúdo econômico na reparação, esvaziando o argumento que justifica a 197 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Atualização: Guilherme Calmon. 22 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 22-23. 198 NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações 1. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 43. 115 necessidade de patrimonialização das prestações debitórias pelo fato de que a responsabilidade civil e as garantias serão, necessariamente, econômicas. Ressalte-se que as obrigações civis de conteúdo moral, não se limitam ao momento da reparação dos danos, devendo ainda, serem reconhecidas como tais, no momento de garantir que direitos sejam satisfeitos, pela exigibilidade das condutas necessárias para tanto, evitando inclusive, se chegar ao extremo da condenação em perdas e danos. O ordenamento jurídico brasileiro fornece uma série de mecanismos processuais que podem, perfeitamente, ser utilizados para conferir eficácia às normas geradoras de direitos existenciais, buscando assegurar o cumprimento de prestações não adimplidas, e ainda possíveis e úteis para o titular de tais direitos, como por exemplo, a multa cominatória, que é aplicada, não por força de uma patrimonialidade da prestação, mas, para conferir força à ordem. Fernando Noronha199 comungando tal pensamento lembra que hoje, além da condenação à indenização, o direito oferece outros recursos, como por exemplo: a execução específica; a realização do fato por terceiro; a multa cominatória. Assim, jogase por terra qualquer tentativa de afirmar a impossibilidade de utilização de formas de coerção jurídica para os casos em que a prestação debitória não seja avaliável pecuniariamente. Negar a utilização de meios como esse, para exigir o cumprimento das condutas necessárias à realização dos direitos existenciais juridicamente conhecidos e tutelados, é negar a evolução mais importante que a humanidade ousou iniciar neste último século, elevando os direitos humanos (ou direitos fundamentais) ao mais alto grau de importância quando da aplicação dos direitos. Tirar a pretensão, negando a exigibilidade de tais prestações, restringindo a tutela, apenas ao direito de ver reparados os danos quando sofridos e caso venham a ser reconhecidos como perdas indenizáveis, significam reduzi-los a uma condição de desimportância injusta e inconstitucional, uma vez que desprovidos de qualquer eficácia. Em seu mais recente livro de Obrigações, Paulo Lobo200 já não afirma a necessidade de se conferir patrimonialidade à prestação. Antes, apresenta vários argumentos baseados em juristas de escol como Pontes de Miranda, Karl Larenz e 199 200 NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações 1. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 41-42. LÔBO. Paulo. Direito Civil. Obrigações. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 63-64. 116 Antunes Varela, no sentido de mostrar a realidade contemporânea brasileira, mais próxima, quanto ao tema, do ordenamento português, do que do italiano. Para Pontes de Miranda, “no sistema jurídico brasileiro, não se pode introduzir a regra jurídica italiana. Se a prestação é lícita, não se pode dizer que não há obrigação (=não se irradiou) se a prestação não é suscetível de valoração”.201 Fernando Noronha202 lembra ainda, que existem inúmeros exemplos de negócios jurídicos com prestações debitórias sem valoração econômica, como por exemplo: a procuração para inscrição em concurso, ou ainda, a obrigação de restituir álbum com velhas fotos de família, que esteja em poder de alguém, em razão de empréstimo; a obrigação constante em alguns condomínios, de não permitir que, ali, sejam criados animais, etc. O que importa, para caracterizar uma prestação como objeto de obrigação, é saber se o direito é, ou não, digno de tutela, “não é o fato de as obrigações normalmente dizerem respeito a necessidades econômicas que impedirá a aplicação das respectivas normas para atender a necessidades afetivas e outras, mesmo quando não exista uma contraprestação, nem se tenha fixado uma cláusula penal.”203 3.4 Inserção de Normas Obrigacionais nas Relações de Família Ainda que se supere o problema de admitir no direito das obrigações, em seu sentido estrito, as relações jurídicas que abriguem interesses e prestações debitórias não econômicas, isso não seria suficiente para incluir os direitos existenciais originados do direito de família, na técnica do direito creditório, apesar da relevância de tais interesses. Ainda pesa sobre o direito brasileiro e sua interpretação, a cultura do passado, que tutelava, principalmente, a instituição da família, sobretudo a matrimonializada e era patriarcal e patrimonialista, exercendo uma influência tão forte e impregnada, que pensar em mudanças ou intervenções, equivocadamente gera mais insegurança do que conforto. 201 PONTES DE MIRANDA, Francisco. Tratado de Direito Privado. Parte Geral. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971, t. XXII, p.41. 202 NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações 1. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 44. 203 NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações 1. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 45. 117 O próprio Fernando Noronha, apesar de toda a defesa quanto à pertinência das prestações debitórias puramente morais, classifica o direito das obrigações como o “ramo do direito que regula o processo social de produção e distribuição de bens e prestação de serviços”,204limitando a relação jurídica obrigacional à presença de um credor, com interesse sempre passível de ser classificado em expectativas originadas em negócios jurídicos; interesse na reparação de danos e, por fim, interesse na reversão para seu patrimônio, daquilo que foi acrescido indevidamente no patrimônio de outrem, quando deveria estar no dele.205 Seguindo este raciocínio, o direito das obrigações regularia situações decorrentes de negócios jurídicos, da responsabilidade civil e do enriquecimento sem causa. Paulo Lôbo também expõe sua opinião neste sentido, afirmando que: No âmbito do direito privado, as obrigações de direito de família não correspondem aos pressupostos das obrigações em sentido estrito, especialmente as de caráter genuinamente pessoais, como os deveres comuns dos cônjuges ou os deveres dos pais em relação aos filhos; até mesmo as obrigações alimentares entre parentes, ou entre cônjuges ou companheiros, ainda que de caráter econômico, refogem às fontes reconhecidas do direito das obrigações, porque dizem respeito diretamente à tutela jurídica das pessoas206. O argumento de que as obrigações de direito de família não se confundem com as regras do direito das obrigações, por se voltarem diretamente à tutela jurídica das pessoas, nega o reconhecimento já sedimentado no ordenamento jurídico brasileiro, do instituto da responsabilidade civil por dano moral, principalmente, quando se considera o dano moral, a violação a direitos de personalidade, conforme ensina o mesmo autor207. Outro argumento, também muito utilizado, para justificar que as normas do direito das obrigações não se aplicam às relações de família, é o que aponta, na própria legislação civil, consequências específicas, para os casos de descumprimento dos deveres jurídicos típicos daquelas relações, como por exemplo, no poder familiar, conforme prescreve o artigo 1.638, o descumprimento dos deveres parentais, pode acarretar inclusive, a própria perda do poder, por decisão judicial, desde que verificadas as hipóteses previstas em seus incisos e que consistem: 1. no castigo imoderado 204 NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações 1. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 08. NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações 1. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 21. 206 LÔBO. Paulo. Direito Civil. Obrigações. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 25. 207 LÔBO. Paulo. Dano Moral e Direitos da Personalidade. Disponível em: http://jus.uol.com.br/revista/texto/4445/danos-morais-e-direitos-da-personalidade Acesso em 21 de julho de 2011. 205 118 aplicado no filho infanto-adolescente; 2. no abandono, 3; em atos praticados, contrários à moral e aos bons costumes e, por fim, 4; na reiterada reincidência de práticas justificantes de outras medidas, entre elas, a suspensão do poder familiar e que estão apresentadas no texto do art. 1637 do Código Civil, cuja redação é a seguinte: Art. 1.637. Se o pai, ou a mãe, abusar de sua autoridade, faltando aos deveres a eles inerentes ou arruinando os bens dos filhos, cabe ao juiz, requerendo algum parente, ou o Ministério Público, adotar a medida que lhe pareça reclamada pela segurança do menor e seus haveres, até suspendendo o poder familiar, quando convenha. Parágrafo único. Suspende-se igualmente o exercício do poder familiar ao pai ou à mãe condenados por sentença irrecorrível, em virtude de crime cuja pena exceda a dois anos de prisão. Considerar, por consequência do descumprimento dos deveres parentais, apenas a suspensão ou a perda do poder familiar, retirando o direito de, antes de tais medidas, exigir o cumprimento das condutas impostas pela lei civil, não somente, enfraquece a essência dos deveres parentais, como, também, esvazia os direitos dos filhos crianças e/ou adolescentes, ainda que a Constituição Federal fale em prioridade absoluta na satisfação dos interesses juridicamente reconhecidos como necessários na formação da personalidade destes. Manter o raciocínio jurídico tradicional pode significar a comodidade para pais irresponsáveis, afastando o sentido de efeito negativo, tendo em vista que ao perderem o poder familiar, esses maus pais e mães estarão, na verdade sendo “alforriados”, liberados de encargos que não querem assumir, consistindo a sanção, contraditoriamente, em um benefício para aqueles que descumprem seus deveres. Essa maneira de organizar o direito, ainda confere maior ênfase na situação jurídica dos pais, encobrindo os próprios interesses dos filhos, ajudando a manter a confusão quanto à própria definição de PODER familiar, imbuído, ainda, do espírito de um Pátrio Poder que já devia estar morto, mas, prova-se bem vivo. A prevalência, em algumas circunstâncias, dos direitos dos pais sobre os interesses dos filhos no poder familiar, fica muito clara quando da aplicação destas sanções que ainda são mantidas na normativa do direito civil, como as mais graves consequências do descumprimento das funções parentais. Considerando as relações do poder familiar com ênfase no poder paterno/materno, a privação destes poderes, realmente, surtiria o efeito desagradável da falta. No entanto, a noção contemporânea de 119 família, impõe um poder familiar que enfatize os deveres e as responsabilidades parentais na realização dos interesses prioritários dos filhos menores e assim, a manutenção quase que exclusiva daquelas sanções, significaria, antes, a liberação do munus que interessa a toda a sociedade, sendo ainda, um prêmio para aqueles que negligenciam seus filhos, crianças e adolescentes. Argumentar que é mais saudável para a formação equilibrada da criança e do adolescente, o afastamento desses “maus pais”, não deixa de ser pertinente, é claro. No entanto, não pode servir para tirar, nas circunstâncias que lhes forem favoráveis, a pretensão que fortalece e permite a tutela de seus direitos, exigindo que seus pais cumpram suas funções, sobretudo a partir da convivência familiar, já que é somente na proximidade, que se viabiliza o cumprimento dos demais deveres parentais. Também não parece adequado afirmar que os instrumentos jurídicos próprios do direito obrigacional, não cabem nas relações de família, pois seria desconsiderar a própria legislação civil e processual civil vigente. Veja-se nas regras do código civil, no que se refere ao poder familiar, a presença do inciso I do artigo 1.634, que impõe o dever dos pais, de dirigir a criação e educação de seus filhos. Considerando o aspecto material necessário ao desempenho desse mister, junta-se o artigo 1.694, que determina que os parentes (e também, os cônjuges e companheiros) têm o dever de prestar alimentos àqueles que necessitem para viver, com base em sua condição social, inclusive para atender necessidades educacionais. Lembrando, ainda, dos recentes alimentos gravídicos da Lei 11.804/2008, percebe-se que os procedimentos cabíveis para o exercício da pretensão nesses casos, não são outros, que não, os decorrentes do direito das obrigações. Faz prova ainda, que o tema é inserido no direito das obrigações, apesar de se tratarem de relações de família, o fato de que a regra jurídica que regula o instituto da “compensação” (Livro I da parte especial do Código Civil, art. 373, inciso II), reconhecendo a natureza creditória dos alimentos, afasta a utilização de tal forma indireta de adimplemento, tão somente por causa de sua natureza relevante, vez que se volta a garantir a sobrevivência do credor e por isso, devem ser adimplidos diretamente. Ressalte-se que o Código Civil, neste tema, não limita o tipo de crédito, sendo então, considerado de maneira geral, incluindo tanto os alimentos decorrentes da responsabilidade civil, como aqueles decorrentes do direito de família. 120 Diante da relevância do direito a alimentos, a garantia legal de que o crédito será realizado, está na possibilidade de acionar o devedor, valendo-se da execução forçada, regulada pelo atual Código de Processo Civil, nos artigos 732 a 735, existindo, como meio de conferir força à ordem, a possibilidade de prisão do devedor, pelo prazo que vai de 1 (um) a três (meses), em caso de não pagamento e nem escusas (artigo 733, § 1º do CPC), além da possibilidade de ser privado de seu patrimônio penhorável. A prisão do devedor de alimentos está, também, presente no art. 5º da Constituição Federal de 1988, em seu inciso LXVII e não corresponde a uma forma de punição pelo descumprimento de seu dever de alimentar. Não é satisfativa para o credor que continua no seu direito de seguir exigindo a prestação necessária para a manutenção de sua vida. A prisão, nos casos de dívidas de alimentos, serve como mecanismo utilizado para forçar o cumprimento da prestação devida e não paga, como fica claro na leitura do § 2º do artigo 733 do CPC: “o cumprimento da pena não exime o devedor do pagamento das prestações vencidas e vincendas.”208 Diante do que foi exposto, não é possível dizer que não se tratam de obrigações em seu sentido mais técnico, originadas em relações jurídicas próprias do direito de família. Todos os elementos estão presentes: crédito, dívida, prestação, vínculo jurídico, pretensão e, necessariamente, obrigação. Contrariando grande parte da doutrina acerca das fontes de obrigações, os alimentos devidos em razão das relações de família, principalmente aquelas decorrentes do poder familiar, não decorrem de negócios jurídicos, como também não correspondem às hipóteses de responsabilidade civil ou de enriquecimento sem causa. Assim, presentes todos os elementos, só não se consideram verdadeiras obrigações, por questão de vontade, ou falta dela. Fernando Noronha, ainda que se mantenha fiel às fontes apontadas em seu livro (negócios jurídicos, responsabilidade civil e enriquecimento sem causa), não nega a aplicação de suas regras no âmbito das relações de família, esclarecendo sua 208 No momento de redação desta tese (19/10/2011), tramitava no Congresso Nacional o projeto de alteração do Código de Processo Civil, encontrando-se na Câmara dos Deputados, depois de sofrer diversas alterações no texto original, por parte do Senado Federal, onde tinha a numeração de PL 166/2010. Com relação ao tema, nas alterações do relatório geral do Senado, está mantida a prisão civil do devedor de alimentos, com a seguinte redação: “art. 514. No cumprimento de sentença que condena ao pagamento de prestação alimentícia ou de decisão interlocutória que fixa alimentos, o juiz mandará intimar pessoalmente o devedor para, em três dias, efetuar o pagamento das parcelas anteriores ao início da execução e das que se vencerem no seu curso, provar que o fez ou justificar a impossibilidade de efetuá-lo. § 1º Se o devedor não pagar, nem se escusar, o juiz decretar-lhe-á a prisão pelo prazo de um a três meses. § 2º O cumprimento da pena não exime o devedor do pagamento das prestações vencidas e vincendas. § 3º Paga a prestação alimentícia, o juiz suspenderá o cumprimento da ordem de prisão”. 121 compreensão através da categoria “Obrigações não Autônomas”, que seriam aquelas que surgem em e por causa de relações jurídicas de outras naturezas. Assim “nascem no seio de relações jurídicas preexistentes, não obrigacionais, só existindo em função dessas relações”.209 Essa classificação guarda uma boa lógica, tendo em vista as peculiaridades do direito de família, sobretudo diante do envolvimento existencial e afetivo que as relações de família suscitam. No entanto, não negando a utilização de procedimentos e mecanismos obrigacionais para o exercício da pretensão, apenas confirma a tese que ora se levanta. Ainda é possível ir além. No que diz respeito aos Direitos das Crianças e Adolescentes, não seria correto limitá-los apenas, ao âmbito de abrangência do direito de família. Obviamente, que são direitos que se realizam primeiramente, a partir dessas relações, até porque as próprias condições de incapacidade e vulnerabilidade trazem a necessidade de serem superadas com o auxílio daqueles que tem maiores condições de percebê-los. E presume-se que as pessoas mais próximas de uma criança, e por isso, aptas a exercerem tal função, sejam seus próprios pais. Por isso, a inserção de tais relações nas regras e princípios de direito de família, mas, sem esquecer a especialidade que resultou em um estatuto próprio, como a Lei 8069/90, conhecido por Estatuto da Criança e do Adolescente. Pode-se afirmar que os interesses das crianças e adolescentes, como pessoas que são também, filhos de alguém, inserem-se com mais propriedade da temática dos direitos humanos do que propriamente, dos direitos de família. A discussão se mantém no âmbito familiarista, mais em razão do local onde tais interesses se realizam do que mesmo, da essencialidade de tais direitos. 209 NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações 1. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 412. 122 CAPÍTULO IV CONVIVÊNCIA FAMILIAR COMO DIREITO E MEIO REALIZADOR DOS INTERESSES EXISTENCIAIS NO PODER FAMILIAR. 4.1 Convivência Familiar para Construção e Realização da Personalidade. 4.2 Convivência Familiar como Direito Fundamental. 4.3 Conflito de Interesses Fundamentais. 4.4 Ponderação de Interesses nas Relações Jurídicas Parentais. 4.5 Guarda Compartilhada como Garantia de Convivência. 4.6 Mediação. A Força do Diálogo. 4.1. Convivência Familiar para Construção e Realização da Personalidade Diante de tudo o que foi abordado nos capítulos anteriores, a partir da adoção da técnica dos direitos subjetivos, é inegável a posição relacional dos filhos menores, como titulares de pretensões nas relações parentais decorrentes do poder familiar, opondo-se à superada ideia de mera sujeição, conforme acontecia na interpretação das regras do antigo pátrio poder. Às pretensões dos filhos correspondem deveres jurídicos para os pais, em igualdade, que objetivam a boa formação de pessoas saudáveis nos diversos aspectos, seja social, físico e também, emocional. A lógica de uma maior responsabilidade imputada aos pais justifica-se na proximidade e na força do peculiar vínculo que existe entre eles e seus filhos, até porque se trata de um vínculo central, que reflete no surgimento dos demais vínculos familiares. Pelo aspecto central e primeiro, gerador de família, as relações parentais são reguladas de maneira especializada, nas regras do poder familiar, não implicando, contudo, no afastamento da importância de outros vínculos familiares. Sérgio Resende de Barros210 entende que o direito de família é o mais humano dos direitos, exatamente por dizer respeito às mais íntimas relações humanas, assim, onde o humano mais se experimenta. Dessa maneira, considerados na formatação de direitos humanos exercidos na família, a Constituição Federal impõe, pela norma do art. 227, a responsabilidade na realização dos interesses das crianças e adolescentes, à família (em sentido amplo), à sociedade e ao Estado. Aos pais, conforme exposto, em razão da especial relação que justifica o 210 BARROS, Sérgio Resende de. Direitos Humanos da Família: dos Fundamentais aos Operacionais. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coord.) Afeto, Ética, Família e o Novo Código Civil. Belo Horizonte: Del Rey, IBDFAM, 2004 (p. 607-620), p. 607. 123 poder familiar, por força do art. 229, compete a responsabilidade imediata de cuidados para com seus filhos. A noção jurídica de família estendida, considerando a importância dos avós, tios, primos, ressalta o papel da afetividade, somente possível na proximidade, indispensável para a formação e realização das pessoas e, assim, a iniciar qualquer abordagem acerca do direito/dever de convivência familiar, esta deve ser compreendida em sua maneira mais abrangente, não se limitando à relação entre pais e filhos. Se a família é o lugar de realização pessoal, o meio será pela convivência. Princípios constitucionais como solidariedade e afetividade, considerados metas a serem cumpridas, só guardam sentido nas relações humanas. Como os vínculos familiares têm na ideia de permanência, uma característica que independe, inclusive, da vontade, a convivência parece ser, inicialmente, uma circunstância natural, no entanto, sendo regulada pelo ordenamento jurídico, por sua importante função na manutenção do equilíbrio social. A convivência familiar passa a ser, também, uma circunstância cultural e jurídica. Ainda com o devido reconhecimento de sua importância, não é fácil conviver em uma sociedade cada vez mais complexa. A velocidade com que as coisas acontecem, trazendo com elas, necessidades também urgentes, segue minando a noção de durabilidade nas relações, conflitando com a permanência que marca a maioria dos laços familiares. A escassez de tempo dedicado ao outro enfraquece os laços, conduzindo à fluidez dos amores cada vez mais líquidos, na expressão utilizada por Bauman211. Nas relações de família, aquilo que seria naturalmente ou culturalmente esperado, como a proximidade, a solidariedade, o cuidado e o afeto, passa a merecer atenção secundária, pois, a cada um, é prioritário suprir as próprias carências, sempre em busca de uma (re)construção de suas vidas que não para de se transformar. Ao mesmo tempo, o reconhecimento jurídico da dignidade humana, da igualdade material e da solidariedade, ressalta a vulnerabilidade de algumas pessoas, considerando as circunstâncias vivenciadas, colocando-as em posição de dependência em relação a outras. Na presença de vulneráveis, os aspectos jurídicos ressaltam em relação à própria 211 BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido. Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. Passim. 124 natureza, para que os interesses mais fundamentais daquelas pessoas estejam protegidos e sejam garantidos. No modelo jurídico brasileiro, considerando o instituto do Poder Familiar, os pais são os primeiros responsáveis pela convivência, até porque não é possível cumprir os deveres parentais sem a proximidade necessária. Por outro lado, também serão os pais, titulares do direito de conviver com seus filhos, tanto para que possam cumprir seus deveres parentais, como ainda, para que sejam realizadas suas próprias personalidades. Nem ao pai, nem à mãe será permitido, por seu desejo apenas, praticar a exclusividade que aliena, estando cada um, obrigado a facilitar a convivência de seus filhos com o outro, de preferência de maneira equilibrada em uma igualdade quantitativa (em tempo) e qualitativa (em convívio), assim como também, viabilizar a convivência de seus filhos com os demais membros da família estendida. A convivência é o cerne da própria experiência de família e, portanto, essencial a qualquer modelo de entidade familiar, inclusive para fins de reconhecimento jurídico da existência de alguns vínculos. No passado, o nome e o patrimônio econômico eram considerados o centro gravitacional da instituição familiar, marcadamente, na figura do casamento, mas, atualmente, com o fenômeno da repersonalização, a dignidade humana é alçada à condição de maior valor a ser perseguido, considerando cada indivíduo como parte do todo social e salientando os interesses mais humanos e, com eles, a necessária tutela jurídica do que seja existencial. O caráter existencial da família, ou seja, a própria vivência familiar, é tão mais importante do que os interesses econômicos ou as vinculações genéticas, que foi a percepção dela, pelo mundo jurídico, que trouxe à baila nos últimos anos, toda a discussão acerca da afetividade e sua influência no ordenamento nacional. Diante da nova maneira de compreender família, torna-se perfeitamente pertinente a afirmação de que, sobretudo a partir da Constituição Federal de 1988, a família deixa de ser considerada uma instituição, que valia por si só e por isso, merecia absoluta proteção do Estado, para ser vista como instrumento, funcionalizada para promover a personalidade de seus membros.212 212 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Família, Guarda e Autoridade Parental. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 29. No mesmo sentido, TEPEDINO, Gustavo. A Disciplina Jurídica da Filiação, na Perspectiva Civil-Dogmática. In: Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2008 (p. 473-518), p. 125 A convivência familiar, hoje também direito de família, representa bem esse caráter existencial, ressaltando a vivência das relações familiares, tomando lugar do antigo modelo estático institucional, bem ilustrado pela família nuclear do século XIX. No conceito oferecido por Paulo Lôbo, a convivência familiar consiste na “relação afetiva diuturna e duradoura entretecida pelas pessoas que compõem o grupo familiar, em virtude de laços de parentesco ou não, no ambiente comum”. 213 Além de identificar a convivência como fato de família, o autor também aponta a convivência como direito de família, lembrando que a Convenção dos Direitos da Criança, no art. 9.3, nos casos em que os pais são separados, aponta o direito de “manter regularmente relações pessoais e contato direto com ambos, a menos que isso seja contrário ao interesse maior da criança”214. O Estatuto da Criança e do Adolescente, expressamente, aponta a convivência como direito, até porque é a partir dela que se concretizam os principais interesses das crianças e adolescentes, merecendo lugar de destaque no capítulo III do Titulo II que, por sua vez, aponta a fundamentalidade dos direitos regulados nos capítulos que o integram. Perpassando o poder familiar, a convivência é o instrumento para o exercício dos deveres parentais e assim, a proximidade que permite acompanhar os filhos e ser exemplo de conduta, dirigir a educação e criar, vai ser necessária para exercer o munus que é o próprio poder familiar. Sem convivência, somente os aspectos patrimoniais poderão ser realizados, contrariando desta maneira, toda a nova hermenêutica do direito de família a partir da orientação constitucional e tornando improváveis os objetivos que justificam o próprio instituto do poder familiar. Graças aos avanços tecnológicos, é possível manter a convivência, ainda que exista uma distância física separando pais e filhos. Com o auxílio, sobretudo da internet, quase sempre haverá um recurso virtual servindo para aproximar pessoas, não sendo mais possível a alegação da distância física para que a convivência não se realize. 509, onde afirma que “a imagem da “família-instituição”, assim delineada, dá lugar à família funcionalizada à formação e ao desenvolvimento da personalidade de seus componentes, nuclear, democrática, protegida na medida em que cumpra o seu papel educacional, e na qual o vínculo biológico e a unicidade patrimonial são aspectos secundários.” 213 LÔBO, Paulo. Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 52. 214 LÔBO, Paulo. Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 52-53. 126 4.2. Convivência Familiar como Direito Fundamental O art. 227 da Constituição Federal de 1988 elenca a convivência familiar enquanto direito, sendo possível considerá-la um direito fundamental, assim como os demais que constam do mesmo enunciado normativo, ainda que expressamente, o termo não esteja mencionado. Para Ana Carolina Teixeira, o artigo 227 seria mesmo, o “berço, por natureza, dos direitos fundamentais do menor”215. Segundo Marmelstein, “juridicamente, somente são direitos fundamentais aqueles valores que o povo (leia-se: o poder constituinte) formalmente reconheceu como merecedores de uma proteção normativa especial, ainda que implicitamente” 216. Não basta, entretanto, constar da redação constitucional para se considerar um direito fundamental. Na explicação de Robert Alexy217, para que um enunciado constitucional seja considerado disposição de direito fundamental, faz-se necessário observar a associação de elementos substanciais e estruturais que assim o apontem, aqueles que constituem e fundamentam o próprio Estado. Deste modo, para Alexy, “dizer que um direito constitui o fundamento do próprio Estado é expressar uma definição substancial”218 No caso da constituição alemã, base da teoria de Alexy, considerando-se o Estado Liberal, apenas o grupo de direitos individuais de liberdade fazem parte dos fundamentos do Estado. Assim, em seu sentido estrito, direitos fundamentais seriam aqueles que tivessem tal estrutura (dos direitos individuais de liberdade). Ao mesmo tempo em que apresenta essa teoria, Alexy, aponta seus inconvenientes, principalmente porque restringe os direitos fundamentais, a uma determinada concepção de Estado que não se garante ser a mesma concepção da Constituição Alemã. Desse modo, sugere que melhor do que basear o conceito de norma de direito fundamental, em critérios substanciais e/ou estruturais é “vinculá-lo a um 215 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Família, Guarda e Autoridade Parental. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 81. 216 MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2009, p.19. 217 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução: Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 66. 218 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução: Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 66. 127 critério formal relativo à sua positivação”219, assim, são disposições de direitos fundamentais, todas aquelas que estiverem abrigadas no capítulo sob o título “Dos Direitos Fundamentais”. A Constituição Federal de 1988, além de reconhecer no Brasil, um Estado Democrático de Direito, fundamentado na soberania, cidadania, dignidade humana, nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e também no pluralismo político (art. 1º), traça ainda, uma direção mais social, podendo-se verificar nos objetivos fundamentais elencados em seu art. 3º: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia do desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização, assim como a redução das desigualdades sociais e regionais e, ainda, a promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. No texto constitucional nacional, pode se verificar as diferenças entre a estrutura liberal sobre a qual está baseada a teoria de Alexy e a estrutura do Estado Brasileiro, que conforma, por isso, seu próprio critério de fundamentalidade. Mas, conforme orientação de Alexy, também será possível saber se um direito é fundamental, pelo critério formal de verificação, partindo da positivação constitucional. O Brasil positiva como direitos fundamentais, as normas contidas nos artigos 5º ao 17 estendendo esta compreensão, às normas contidas em outros enunciados, por força do parágrafo 2º do mesmo art. 5º, naquilo que Alexy chama, segundo denominação atribuída a Friedrich Klein, de “disposições periféricas associadas”220. George Marmelstein orienta a identificação dos direitos fundamentais, naqueles positivados constitucionalmente, com embasamento ético que se firme na dignidade da pessoa humana. Em suas palavras: Os direitos fundamentais são normas jurídicas, intimamente ligadas à ideia de dignidade da pessoa humana e de limitação de poder, positivadas no plano constitucional de determinado Estado Democrático de Direito que, por sua importância axiológica, fundamentam e legitimam todo o ordenamento jurídico. 221 219 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução: Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 68. 220 Friedrich Klein apud ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução: Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 68. 221 MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 20. 128 É mesmo possível afirmar que o legislador constituinte preferiu dispor os direitos fundamentais, sobretudo os do artigo 5º, de maneira mais geral, retomando em outros locais, conteúdos mais especializados, principalmente quando se relacionem à dignidade de vulneráveis a exemplo das crianças, adolescentes e idosos. Para Ana Carolina Teixeira, os direitos fundamentais também se encontram em enunciados postos em diplomas diversos que especializem os comandos constitucionais, como é o caso do Estatuto da Criança e do Adolescente. Não há dúvidas de que os arts. 3º, 4º, 5º e 6º do Estatuto da Criança e do Adolescente também traduzem normas de direitos fundamentais. (...) os direitos fundamentais não se esgotam no catálogo constitucional (Título II), bem como em dispositivos esparsos do texto da Carta Magna, por força da norma aberta, esculpida no art. 5º, § 2º CF/88.222 Por força desses argumentos, não havendo dúvidas de que a convivência familiar se trata de um direito, o seu caráter de fundamentalidade passa a ser inquestionável, pois que se encontra regulado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, no capítulo III do título II que recebe, pertinentemente, o título “Dos Direitos Fundamentais”. É assim, exatamente, por especializar o conteúdo do art. 227 constitucional. Outro questionamento que pode ser levantado é com relação à eficácia horizontal dos direitos fundamentais. O tema tem sido exaustivamente abordado pela doutrina, podendo ser considerada, tranquilamente, a possibilidade de vinculação de particulares, mas, apenas por excesso de zelo, faz-se necessário apresentar alguns argumentos utilizados para esse entendimento. Segundo Wilson Steinmetz, os fundamentos que servem de base argumentativa para tal vinculação, excetuando-se para aqueles cujos destinatários sejam exclusivamente os poderes públicos, são: 1. o Princípio da supremacia da constituição, que unifica materialmente o ordenamento jurídico pátrio; 2. a dimensão objetiva dos direitos fundamentais, sendo princípios que se projetam sobre todo o ordenamento jurídico; 3. o princípio da dignidade da pessoa; 4. o princípio da solidariedade e 5. o princípio da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais.223 222 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Família, Guarda e Autoridade Parental. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 80-81. 223 STEINMETZ, Wilson. Princípio da Proporcionalidade e Atos de Autonomia Privada Restritivos e Direitos Fundamentais. In: SILVA, Virgílio Afonso da (Org.). Interpretação Constitucional. 1 ed. 2 tiragem. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 25. 129 Os direitos fundamentais justificam-se, não apenas pelas liberdades públicas, significando o dever de o Estado se abster de violar os direitos humanos, mas antes, no dever do Estado defendê-los ativamente de agressões e ameaças, ainda que sejam provenientes de terceiros particulares.224 Na tese defendida por Andrea Galiza225, baseada em sólida doutrina, mas, principalmente, na análise de decisões do Supremo Tribunal Federal, conclui-se que é perfeitamente possível considerar a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, com a solução dos conflitos existentes nas relações jurídico-privadas, por decisões fundadas exclusivamente em direito constitucional, não sendo necessário em muitos casos, recorrer às normas de direito civil. No caso de ocorrer o conflito entre direitos fundamentais de particulares, caberá ao decisor aplicar a técnica da ponderação que será abordada logo adiante. 4.3 Conflitos de Interesses Existenciais Fundamentais Embora no passado, os interesses patrimoniais tenham merecido destaque no ordenamento jurídico, inclusive para o direito de família, figurando em posição de primazia em relação a outros, o presente aponta para os interesses existenciais como centro maior de interesses a serem tutelados e garantidos, principalmente por força de sua base alicerçada na dignidade da pessoa humana. A família, sendo o primeiro agrupamento capaz de realizar tais interesses e que no passado, tinha a importância jurídica voltada para a instituição do casamento civil, afirma agora, a posição privilegiada de locus de realização da dignidade humana, ressaltando a importância de seus membros, que passam a figurar no núcleo justificante da proteção jurídica, não importando mais a maneira como tenha sido constituída. Simbolicamente, é possível ilustrar um centro onde estão as pessoas e os direitos inerentes a esta condição, e um contorno onde gravitam todos os demais direitos, incluídos os patrimoniais, que objetivam realizar o mais plenamente possível, aqueles interesses centrais. A afirmação de que uma das principais funções das entidades familiares, aquela que justifica a proteção jurídica, é a realização (aqui também entendida, a formação) da 224 Cf. SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. Passim. 225 GALIZA, Andrea Karla Amaral de. Direitos Fundamentais nas Relações entre Particulares. Teoria e Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Belo Horizonte: Fórum, 2011. Passim. 130 personalidade de seus integrantes, aproxima e até confunde os interesses pessoais realizados em família com a própria noção de direitos humanos, assim então, de direitos fundamentais e, mais restritamente, de direitos da personalidade já solidamente reconhecidos e tutelados pelo ordenamento jurídico nacional. O Código Civil de 2002 caracteriza os direitos da personalidade em sua intransmissibilidade e irrenunciabilidade. Paulo Lôbo226 complementa lembrando que são, ainda, imprescritíveis, inexpropriáveis, indisponíveis e vitalícios. Caso não fosse assim, não seria possível sequer, cogitar em dignidade, como realidade concretizável. Cada indivíduo, ao nascer com vida e já por isso, adquire um conjunto de direitos, independentemente de qualquer manifestação de vontade em auferi-los ou de vinculação a relações jurídicas. São direitos inerentes à condição de pessoa, baseados na dignidade humana, portanto, apresentando precedência sobre os demais. O conteúdo de direitos humanos dos direitos da personalidade227 os confere a prerrogativa de serem principalmente garantidos e perseguidos. Por cada um, por todos e para todos. A principal base de fundamentação jurídica dos direitos da personalidade é a própria Constituição Federal, abrigando ainda, os direitos humanos reconhecidos pela comunidade internacional. Em se tratando de relacionamentos familiares, por se voltarem à essência do humano em ambiente social, pela estreita e quase sempre permanente vinculação muitas vezes, não opcional, e pela forte carga emocional que carregam são cenários propícios ao nascimento dos conflitos. Somada a isso, a complexidade das relações humanas, sociais e culturais, propiciada pelo século XXI e que nas sociedades democráticas e ocidentais, ainda viabiliza que, na “esfera mais íntima da experiência humana”228, encontrem-se vínculos que relacionam filhos de dois, três ou mais pares de pais diferentes229, onde a ideia de 226 LÔBO, Paulo. Direito Civil. Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 140. Ainda que se estendam, no que for cabível, às pessoas jurídicas (art. 52 do Código Civil), isto não enfraquece a base humanista daqueles direitos. Na realidade, o legislador pretendeu conferir às pessoas jurídicas, direitos não econômicos e vinculou-os aos direitos da personalidade pela coincidência de conteúdo puramente moral (neste sentido, não econômico). 228 BARCELLOS, Ana Paula de. Alguns Parâmetros Normativos para a Ponderação Constitucional. In: BARROSO, Luis Roberto (org.) A Nova Interpretação Constitucional: Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 3 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. (p. 49-118), p. 51. 229 BARCELLOS, Ana Paula de. Alguns Parâmetros Normativos para a Ponderação Constitucional. In: BARROSO, Luis Roberto (org.) A Nova Interpretação Constitucional: Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 3 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. (p. 49-118), p. 51. 227 131 casal não se restringe, exclusivamente, à heterossexualidade e onde a primazia do invólucro formal dá lugar à centralização da pessoa e seus mais fundamentais interesses. Assim e paradoxalmente, com a implantação de uma democracia familiar em uma humanidade que ainda não atingiu o grau civilizatório ideal, os conflitos permanecem constantes e, quanto mais complexas forem as relações, maior a vulnerabilidade dos envolvidos, ressaltando a urgência protetiva. O acesso ao judiciário como direito fundamental, pelo exercício do direito de petição, objetivando tutelar direitos diante da lesão ou ameaça de lesão é garantia constitucional brasileira que poderia deixar de fora, os interesses mais essenciais à condição do humano. Por isso mesmo, também, a noção de responsabilidade tem merecido destaque, pela imposição de limites às condutas e assim, ao exercício dos direitos, para que a plenitude de uns não corresponda ao injusto prejuízo de outros. A necessária responsabilidade, que se pode considerar respaldada, também, no princípio da solidariedade, restringe por si só, e em certo modo, o direito fundamental à liberdade. De outra maneira, não seria possível viver em sociedade. A família é o primeiro laboratório social que se vive e é nela que (espera-se) as crianças aprendem a se relacionar, controlando seus desejos no aprendizado da vida compartilhada. Nesse momento de crescimento e formação, a falta de experiência de vida e a necessidade de apreendê-la, assim como, a total dependência de adultos que os guiem rumo a um futuro saudável, a urgência de construir uma sociedade composta por pessoas estruturadas que tenham condições de realizar seus principais objetivos, justificam o télos das normas constitucionais que impõem o melhor interesse e a proteção integral das crianças e adolescentes. Nas relações parentais, juridicamente especializadas nas normas do poder familiar, é da lógica contemporânea que pais e filhos sejam titulares de direitos subjetivos, ressaltando para as crianças e adolescentes, a qualidade de direitos fundados na pretensão e relacionados a deveres de condutas dos pais na realização dos interesses, primordialmente, dos filhos que, assim, prevalecem e devem ser realizados à integralidade. Diferentemente do que acontece nas relações jurídicas negociais cujo interesse patrimonial é destacado e é norteado por regras exclusivamente jurídicas, onde os conflitos são mais claros e, por isso, mais facilmente solucionáveis, quando estes se 132 instalam nas relações de família, vários interesses jurídicos e não jurídicos se misturam e isso obriga os profissionais envolvidos a desenvolverem uma sensibilidade necessária à capacidade de conhecer direitos fortemente influenciados pela cultura, religião, costumes e normalmente, impregnados de uma violenta carga emocional. Conforme já foi dito, a responsabilidade que marca as relações sociais e jurídicas da contemporaneidade entra em choque com a noção de liberdade, ao impor limites às condutas, prevendo consequências negativas para os que causarem prejuízos às pessoas, ainda que exclusivamente morais. Ao mesmo tempo, a liberdade é inserida como princípio jurídico norteador do direito de família, que reconhece o direito, tanto de iniciar como de dissolver entidades familiares, com base na vontade. A liberdade não restringe sua força apenas às relações de conjugalidade e companheirismo, sendo ainda, inegável sua influência nas relações parentais, pois é nela que está apoiado o direito ao planejamento familiar. Ocorre que a liberdade no planejamento familiar tem por objetivo, também, viabilizar a paternidade/maternidade responsável, com a presunção de que é mais facilmente realizada, quando as relações se iniciam espontaneamente. Assim, liberdade e responsabilidade se unem para que os interesses existenciais dos filhos e também, dos pais, se realizem. Nesse jogo de equilíbrio entre a liberdade e a responsabilidade, com a contribuição de todos os elementos não jurídicos que exercem influência nas relações familiares, inclusive nas relações parentais, são comuns os momentos em que o conflito se instala. É aqui que surge, atualmente, a importância do intérprete, para que o ordenamento possa garantir a segurança jurídica necessária, em face da complexidade que marca os dias de hoje. Para Ana Paula Barcellos, a consequência pragmática mais visível diante da complexidade das relações é a “ampliação quantitativa e qualitativa do espaço reservado à interpretação jurídica e ao intérprete.”230 É a partir da interpretação e do domínio das técnicas de ponderação, observados os critérios objetivos necessários para afastar a arbitrariedade, que os interesses 230 BARCELLOS, Ana Paula de. Alguns Parâmetros Normativos para a Ponderação Constitucional. In: BARROSO, Luis Roberto (org.) A Nova Interpretação Constitucional: Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 3 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. (p. 49-118), p. 50. 133 existenciais, movimentando direitos fundamentais podem alcançar eficácia, ainda que o conflito esteja instalado em relações vinculativas de particulares. 4.4 Ponderação de Interesses nas Relações Jurídicas Parentais O importante papel da interpretação é salientado no momento em que ocorre o choque de interesses, a fim de que a solução encontrada assegure e fortaleça os direitos fundamentais. Para garantir a necessária segurança jurídica, é imperioso, então, que sejam utilizados critérios objetivos que afastem o excesso de subjetividade e a escassez de fundamentação técnica que propicia a arbitrariedade e o descrédito do judiciário, sobretudo para tratar de questões de maior relevância existencial. Como as normas que regulam o poder familiar têm forte conteúdo existencial e que se referem a todos os sujeitos envolvidos, ao se instalar o conflito, a solução só poderá partir da utilização de técnicas de interpretação e de ponderação de interesses. A aplicação da técnica da subsunção, apenas, não é mais suficiente para garantir a tutela de direitos tão complexos e que se apresentam em interesses tão peculiares para cada caso concreto. Inicialmente, para a boa utilização da técnica da ponderação, é necessário que se faça a distinção entre princípios e regras. Segundo Alexy231, a distinção entre esses tipos de normas jurídicas se apresenta, marcadamente, nos momentos em que ocorre a colisão entre princípios e o conflito entre regras. O conflito entre regras ocorre quando, em caso de aplicação isolada de duas regras, isso acarretar resultados inconciliáveis entre si, gerando dois juízos concretos de dever-ser jurídico contraditórios. Daí, em razão de uma estrutura mais definitiva das regras, só seria possível solucionar de duas maneiras: ou se insere na regra uma cláusula de exceção, a fim de eliminar o conflito, ou uma delas deverá ser considerada inválida232. No caso de colisão de princípios, a solução será diversa, devendo um dos princípios ceder à realização do outro, o que é possível por sua estrutura, não implicando em invalidade, mas considerando, no caso concreto, a precedência de uma norma em relação à outra. 231 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução: Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 91- 92. 232 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução: Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 92. 134 Segundo os pressupostos da teoria dos princípios, não se pode falar nem em declaração de invalidade de um deles, nem em instituição de uma cláusula de exceção. O que ocorre quando dois princípios colidem – ou seja, preveem consequências jurídicas incompatíveis para um mesmo ato, fato ou posição jurídica – é a fixação de relações condicionadas de precedência.233 No que pertine à possibilidade de entrarem em conflito, princípios e regras, na análise de Ana Paula de Barcellos234, estas terão precedência em relação àqueles. Apesar de parecer uma afirmação contraditória diante da importância atualmente conferida aos princípios, considerando seu forte componente valorativo, a afirmação de Ana Paula de Barcellos justifica-se na própria distinção estrutural entre princípios e regras. Para a autora, o conteúdo das regras descrevem comportamentos, definindo os efeitos determinados e específicos que pretende produzir no mundo dos fatos, não se preocupando diretamente com as finalidades de tais condutas. Contrariamente, os princípios estabelecem os objetivos, fins ideais, metas políticas que pretendam realizar, sem definir as condutas para tanto235. Conforme definição de Alexy236, princípios são mandamentos de otimização, que podem por isso, ser caracterizados pela possibilidade de realização em graus variáveis. Já as regras são normas que serão sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Com base nesse raciocínio, as regras não poderão ser ponderadas, pois isto implicaria em sua não aplicação, não sendo possível “aplicar mais ou menos uma regra”237, o que explica sua precedência quando conflitarem com princípios. Outro parâmetro adotado por Ana Paula de Barcellos traz a preferência dos direitos fundamentais sobre as demais disposições normativas, justificada pela clara 233 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais. Conteúdo Essencial, Restrições e Eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 50. 234 BARCELLOS, Ana Paula de. Alguns Parâmetros Normativos para a Ponderação Constitucional. In: BARROSO, Luis Roberto (org.) A Nova Interpretação Constitucional: Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 3 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. (p. 49-118), p. 69-83. 235 BARCELLOS, Ana Paula de. Alguns Parâmetros Normativos para a Ponderação Constitucional. In: BARROSO, Luis Roberto (org.) A Nova Interpretação Constitucional: Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 3 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. (p. 49-118), p. 71. 236 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução: Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 90- 91. 237 BARCELLOS, Ana Paula de. Alguns Parâmetros Normativos para a Ponderação Constitucional. In: BARROSO, Luis Roberto (org.) A Nova Interpretação Constitucional: Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 3 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. (p. 49-118), p. 77. 135 opção que a Constituição Federal de 1988 fez pela “centralidade da dignidade humana e, como uma sua decorrência direta, dos direitos fundamentais.”238 Assim, direitos fundamentais terão primazia, ao entrarem em conflito com outros direitos que não se firmem, primordialmente, na dignidade humana. Os interesses dos filhos menores, tutelados pelas normas do poder familiar, são basicamente, interesses que animam os direitos mais fundamentais, tratando-se de verdadeiros direitos humanos realizados primeiramente no âmbito das famílias e sob a responsabilidade destas, de maneira mais imediata a partir de condutas imputadas aos pais. Como essas condutas só poderão ser realizadas através da convivência familiar, esta será ainda, direito e dever fundamental de família, conforme já foi aqui, abordado. O conflito mais presente nas relações parentais se dá entre o direito fundamental à convivência familiar e o direito fundamental à liberdade. No Brasil, nos casos que envolvem interesses de menores, não será difícil aplicar a técnica da ponderação. Como mandamentos de otimização, deverão ser considerados três princípios constitucionais, para que se aplique a prevalência dos direitos das crianças e dos adolescentes, são eles: o princípio do melhor interesse, o direito (com conteúdo principiológico) fundamental à proteção integral e o princípio da paternidade/maternidade responsável. Ainda que na teoria, possa ressaltar a impertinência de considerar tal conflito, já que não se pode falar, propriamente, de direito à liberdade quando se está submetido ao dever de conduta, na prática, ainda é forte a cultura, sobretudo machista, que “autoriza” a liberação, normalmente do homem, da execução de suas responsabilidades paternas, principalmente, quando os filhos não são frutos de relação afetiva e atual entre seus pais. A confusão entre responsabilidade, afetividade e sentimentos também ajuda a fortalecer essa pseudoliberdade sob o argumento de que ninguém está obrigado a amar, inserindo equivocadamente, todo o conteúdo existencial do poder familiar em um sentimento involuntário. Às vezes, o direito fundamental à convivência familiar vai ceder, não porque deva prevalecer a liberdade dos pais, mas, pela constatação de que o convívio possa ferir, no caso concreto, os princípios balizadores do melhor interesse e da proteção integral das 238 BARCELLOS, Ana Paula de. Alguns Parâmetros Normativos para a Ponderação Constitucional. In: BARROSO, Luis Roberto (org.) A Nova Interpretação Constitucional: Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 3 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. (p. 49-118), p. 109. 136 crianças e adolescentes. A impossibilidade de convivência imputada a um dos genitores, ainda assim, não desobrigará da responsabilidade que é, também, do Estado e de toda a sociedade. 4.5 Guarda Compartilhada como Garantia de Convivência Muitas vezes, a dificuldade de convívio entre pais e filhos tem origem na ruptura da vivência afetiva do casal e na falta de discernimento quanto à percepção de que se tratam de diferentes tipos de relações jurídicas. A confusão que se instala, frequentemente, entre a relação de um genitor com o outro e dos genitores com os filhos, dificulta o cumprimento dos deveres parentais e afasta a realização dos interesses mais fundamentais dos filhos. Também, a rapidez dos encontros e a fluidez fática dos vínculos, tão comuns nos dias de hoje, podem contribuir para que o contato entre pais e filhos seja cada vez menor. Não é raro que encontros eventuais formem vínculos permanentes de co-parentalidade, trazendo para os envolvidos, deveres que impõem uma proximidade que não havia sido planejada, momento em que a responsabilidade deve se sobrepor ao afeto, sentimento que poderia ter sido o nascedouro e o esteio de todas as relações familiares que surgem quando um ser humano nasce. Nesses casos, o exercício das funções parentais pode configurar mais um fardo do que um prazer, o que explica muitos afastamentos. Já foi dito aqui, que os direitos das crianças e adolescentes enquanto integrantes de relações jurídicas do poder familiar são direitos humanos inicialmente realizados na família e viabilizados pela família, nas figuras do pai e da mãe. Como esses direitos comportam interesses de conteúdo econômico (patrimonial) e não econômico (existencial), alguns serão alcançados exitosamente por meio do acesso às coisas e outros, a maioria, apenas por meio da vivência. Assim, as obrigações de cunho exclusivamente patrimonial prescindem da comunicação e da proximidade física, no entanto, não há como cumprir com as obrigações existenciais em um distanciamento absoluto ou com uma proximidade mínima. Como reflexo dos anseios da sociedade e objetivando o equilíbrio relacional, diante da constatação da possibilidade de existirem casais que não coabitem e que estejam vinculados tão somente, pelos filhos em comum, o legislador encontrou fórmulas que se adequaram a alguns momentos da experiência social e que, exatamente 137 pela experiência, como pelas mudanças no próprio ordenamento jurídico, a exemplo da força e do atual papel dos princípios constitucionais, precisam ser revisados para que possam garantir o melhor interesse dos menores. Inicialmente, com a lei que autorizou o divórcio no Brasil, na década de 70, entendeu-se que os filhos menores deveriam ficar sob a guarda unilateral da mãe, quando sobre ela, não recaísse a culpa pela dissolução da estrutura matrimonial da família. A preferência pela figura materna tem justificativas biológicas, sobretudo nas primeiras idades dos filhos, dependentes do aleitamento para garantir um crescimento mais saudável, bem como justificativas culturais, entendendo o papel feminino de docilidade, ternura e inclinação ao cuidado, construído no cenário patriarcal já comentado, e totalmente adequado à melhor companhia de seus filhos enquanto não atingissem a idade adulta. A ideia de que a mulher teria uma natureza mais afetiva e caseira, impõe a ela a responsabilidade emocional na criação de seus filhos, enquanto ao homem, competia cumprir o seu papel de provedor, agora dos filhos e do lar dos filhos, sendo um problema menor, a convivência limitada às visitas à prole, normalmente em dias e horários determinados em decisão judicial. Com a inserção da mulher no mercado de trabalho, assumindo cargos e funções relevantes de comando, como se constata atualmente, na própria presidência da república, participando assim, ativamente, da vida extradoméstica, assim também, com uma maior participação dos homens no cotidiano da família, poderia se esperar igual divisão de tarefas e responsabilidades nos cuidados com a prole. No entanto, em nosso país, apesar de uma democracia constituída em princípios que ressaltam a dignidade humana, como a igualdade, continuam prevalecendo as decisões judiciais que concedem a guarda unilateral às mães com visitações dos pais. É possível, até, que o caso concreto, excepcionalmente, indique essa modalidade de guarda como a ideal para garantir os interesses dos filhos menores, no entanto, continuar a tomá-la por regra pode gerar o problema de repetir padrões de comportamentos que se chocam com as conquistas principiológicas da constituição vigente, como a perpetuação de uma cultura machista que agride hoje, tanto as mulheres quanto os próprios homens, já que muitas vezes são afastados do direito/dever de acompanhar emocionalmente e rotineiramente os seus filhos. Também é possível que, para as crianças e adolescentes, a restrição do acesso aos pais, limitando-se às visitas em dias e horas estabelecidos, seja uma decisão a lhes tolher direitos e subtrair 138 possibilidades de realização pessoal, contrariando assim, o principal objetivo do poder familiar. Os princípios constitucionais, como normas jurídicas que não são subsidiárias às regras, apontam que o caminho do ordenamento brasileiro, em questão de parentalidade, deve ser outro. Se não pode existir discriminação em razão de gênero, devendo-se garantir a igualdade entre homens e mulheres enquanto sujeitos de direito, e assim, também responsáveis material e existencialmente quanto às pessoas dos filhos, a rotina de se manter o modelo de guarda unilateral e feminina, como padrão, e não por fundamentação suficiente para considera-la a melhor opção, é preconceituosa, injusta e inadequada. Se do caso concreto, for concluído que a melhor opção será pela guarda unilateral, devem ser levados em consideração, aspectos que transcendem o sexo, verificados objetivamente como melhores condições para exercê-la, devendo ser observados os seguintes critérios, inseridos em enunciados normativos do Código Civil pela Lei 11.698/2008 e que são: “I – afeto com relação ao genitor e ao grupo familiar; II – saúde e segurança; III – educação” (incisos do § 2º do art. 1.583 do Código Civil). O ideal, no entanto, para a melhor concretização dos interesses dos filhos, prevalecendo a dignidade humana e a igualdade entre pai e mãe, será o compartilhamento das responsabilidades naquilo que o legislador chamou de guarda compartilhada. A Lei 11.698/2008, que esclareceu os critérios objetivos para a guarda unilateral e veio, na realidade, inserir a modalidade compartilhada no ordenamento jurídico nacional, esclarece a diferença entre os dois tipos de guarda em texto recepcionado no caput do art. 1.583 do Código Civil que dispõe: Art. 1.583 (...) § 1º. Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua (art. 1.584, § 5º) e, por guarda compartilhada a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns. Sílvio Neves Baptista ajuda a compreender melhor o significado da guarda compartilhada (ou conjunta), já que parece que o legislador se refere à segunda de maneira a, aparentemente, confundi-la com o próprio instituto do poder familiar, apontando dois diferentes tipos de guarda. Em suas palavras: 139 É importante estabelecer a distinção entre guarda jurídica, ou guarda propriamente, e guarda física ou companhia. Enquanto a guarda jurídica consiste no dever de cuidar, proteger, controlar e vigiar o menor, a guarda física é a custódia material ou fática do filho, é, numa palavra, ter o filho em sua companhia 239. Não se confundindo com outra modalidade de guarda, que seria a alternada (com denominação autoexplicativa), que não é, na maioria das vezes, indicada por profissionais de outras especialidades, como psicólogos e psicanalistas, a guarda compartilhada não realça a posse, mas, a convivência compartilhada, viabilizada pelo livre acesso dos filhos a seus pais, ainda que sua residência esteja fixada, exclusivamente, no domicílio de apenas um deles. Obviamente, para que a guarda seja compartilhada dessa maneira, é preciso que exista a máxima cooperação entre os pais, portanto, maturidade e consciência de que se trata de uma maneira mais adequada de viabilizar o crescimento saudável de seus filhos em todos os níveis que se espera. Também é óbvio que nem sempre a relação pacífica espontânea será possível, por isso alguns autores, a exemplo de Rolf Madaleno240 entenderem que a modalidade de guarda compartilhada não poderá ser forçada em sentença judicial, ainda que não exista vedação legal para tanto. O pensamento apresentado pelo autor gaúcho contraria a regra literalmente expressa no Código Civil, com a redação da Lei 11.698/2008 que autoriza o juiz a decretar a guarda compartilhada, para atender às necessidades específicas do filho ou em decorrência da distribuição de tempo necessário para o convívio com seus pais (art. 1.584, II), assim como impõe que, sempre que for possível, seja aplicada a guarda compartilhada, ainda que não exista acordo entre os pais no que pertine a guarda de seus filhos (art. 1.584, § 2º). Também é correto afirmar que a medida deve ser aplicada, quando não houver oposição, ainda que inexista um acordo de compartilhamento e, sempre que necessário, partir de uma percepção que não se limite ao campo do direito, devendo ser ouvidas as opiniões de outros especialistas, como psicólogos e/ou assistentes sociais para que aumente a probabilidade do acerto decisório na busca da proteção integral dos filhos. 239 BAPTISTA, Silvio Neves. Guarda Compartilhada: (breves comentários aos arts. 1.583 e 1.584 do Código Civil, alterados pela lei nº 11.698 de 13 de Junho de 2008). Recife: Bagaço, 2008, p. 28. 240 MADALENO, Rolf Hanssen. Direito de Família em Pauta. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 92 140 O rumo poderá ser outro, obviamente, quando se constatar a impossibilidade de aplicação da guarda compartilhada pelos mais diversos motivos que podem variar do aspecto geográfico, por exemplo, quando o pai ou mãe morar distante, em outra cidade, estado ou até país, assim como a partir de aspectos emocionais, à existência de uma relação turbulenta entre os pais, marcada por fortes e insuperáveis sentimentos negativos. No entanto, isso não significa que na construção de uma decisão judicial, face à ausência de espontaneidade entre os pais, não deva o juiz, primeiro, buscar perceber as reais chances de manter intacto o direito fundamental à convivência familiar, concretizando o interesse na guarda compartilhada. Seguindo a orientação constitucional que no art. 227 imputa à família, à sociedade e ao Estado, a responsabilidade de assegurar às crianças e aos adolescentes, entre outros, o direito à convivência familiar, a finalidade da lei 11.698/2008 não se limita a inserir no ordenamento jurídico brasileiro, a modalidade da guarda compartilhada, mas também, impõe que seja ela, a regra praticada no melhor interesse dos filhos. Neste sentido, a orientação de Belmiro Welter: A regra geral será sempre a concessão da guarda compartilhada, independentemente de haver acordo entre os pais, uma vez que está em jogo, em causa, em discussão, o direito fundamental do filho à convivência integral e absoluta com ambos os pais, e somente por exceção poderá ser deferida a guarda unilateral ou suspenso o direito de convivência entre pais e filhos, mediante prévia comprovação de que essa decisão é mais favorável à filiação241. Também nesse sentido, Fabíola Albuquerque entende que a guarda compartilhada deve ser a regra, independentemente de acordo entre os pais, já que a nova ordem “impõe uma postura prospectiva do juiz, não condicionada a nenhuma situação prévia e ideal acordada pelos pais. Afinal, não é a conveniência dos pais que deve orientar a definição da guarda, mas, o interesse do filho.”242 241 WELTER, Belmiro Pedro. Teoria Tridimensional do Direito de Família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 206. 242 ALBUQUERQUE, Fabíola Santos. As Perspectivas e o Exercício da Guarda Compartilhada Consensual e Litigiosa. In: Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, v. 07, n. 31, Ago/Set. 2005. (p. 19-30), p. 29. 141 4.6 Mediação. A Força do Diálogo A atual complexidade das relações familiares, que gera as controvérsias que ainda hoje levantam a necessidade de se compreender os limites e as possibilidades de incidência das normas jurídicas, embasando as ações de seus integrantes e autorizando a intervenção do Estado, também permite que os conflitos sejam trabalhados em outros campos, às vezes mais aptos a aproximar do equilíbrio que tanto se almeja. Isto porque existe uma pluralidade de elementos que compõem as relações familiares, não se esgotando nos elementos jurídicos. Essa mesma razão que explica o surgimento e a intensidade dos conflitos, pode também, apontar as maneiras de evitá-los, solucioná-los, ou melhor, transformá-los. Diante da pluralidade de fatores que influenciam a vivência familiar, a socióloga Maryvone David-Jougneau classifica a família em níveis que podem ser assim apresentados: Nível somático; Nível psicológico e metapsicológico dos afetos, dos desejos, das motivações e das funções - o nível do sujeito do desejo; Nível psicossocial do exercício dos papéis; Nível econômico; Nível sociojurídico da repartição dos direitos e deveres – sujeito de Direito243. Esta é, também, a razão pela qual persistem as dúvidas acerca de qual profissional poderá conduzir a família ao equilíbrio, quando o conflito se instalar em suas relações. Os variados elementos que embora diferentes, se entrelaçam na realização da personalidade dos integrantes da família, como os afetos (sentimentos), a afetividade (conduta), as responsabilidades, a culpa, a existencialidade, a patrimonialidade, entre outros, traduzem interesses para diversas especialidades diferentes e instalam a confusão que movimenta o debate, exigindo a sensibilidade e o conhecimento profissional que aponta até onde cada um pode intervir. É muito comum, alerta Giselle Groeninga, que as famílias levem seus impasses “aos escritórios de advocacia, que tendem a lhes dar um tratamento de modo a 243 Apud GROENINGA, Giselle Câmara. Mediação Interdisciplinar – Um Novo Paradigma. In: Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, v. 08, n. 40, Fev/Mar. 2007. (p. 152170), p. 162. 142 enquadrá-los na moldura legal, tentando transformar o subjetivo em objetivo, o que pode acabar por mutilar ou dar um valor inadequado para os aspectos emocionais.”244 Não se devem subestimar os problemas decorrentes de um enquadramento inadequado que termina, muitas vezes, por agravar o conflito ao contrário do equilíbrio pretendido. Tal afirmação não é contraditória em relação aos objetivos desta tese, mas antes, reconhece que, apesar de cabível e eficaz, o uso das regras de direito obrigacional deve ser considerado medida extrema, aplicada quando não for possível realizar os interesses dos filhos menores por outros modos mais espontâneos. O que se busca ressaltar é a importância do bom senso do casal parental no exercício de seus papéis jurídicos, uma vez que devem exercer funções compartilhadas e que envolvem interesses com forte carga emocional, sendo ainda, essenciais para a vida de seus filhos. Conforme já foi dito, por envolver os mais diversos sentimentos, não são raros os problemas de convivência que acompanham as famílias, se instalando, frequentemente, o conflito. Em face disso, torna-se urgente que a sociedade retome a importância das virtudes, combatendo os vícios e aprimorando as condutas. Na maioria dos conflitos familiares, o equilíbrio é normalmente retomado, ao se restabelecer a comunicação entre seus membros, sendo essa a principal função da mediação. A mediação interdisciplinar, já que existem níveis diferentes nas relações de família, busca atender o propósito de transformar o conflito, por meio da comunicação viabilizada pelo mediador e através dela, pela liberdade dos mediandos decidirem no diálogo, os rumos que irão tomar. É importante que não se confunda mediação com conciliação. Existem dois modelos de mediação, um europeu, francês e outro norte-americano. Águida Barbosa245 explica que o primeiro, francês, objetiva aprimorar a prestação jurisdicional, priorizando o qualitativo, enquanto a vertente norte-americana objetiva desafogar o judiciário, ressaltando o aspecto quantitativo. Assim, o modelo norte-americano privilegia a 244 GROENINGA, Giselle Câmara. Mediação Interdisciplinar – Um Novo Paradigma. In: Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, v. 08, n. 40, Fev/Mar. 2007. (p. 152170), p. 161. 245 BARBOSA, Águida Arruda. Estado da Arte da Mediação Familiar Interdisciplinar no Brasil. In: Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, v. 08, n. 40, Fev/Mar. 2007. (p. 140-151), p. 141-142. 143 negociação, no conceito de resolução de conflitos enquanto o modelo europeu conceitua a mediação como instrumento de transformação do conflito. Para os conflitos familiares, parece mais adequada a utilização de uma mediação que siga os parâmetros europeus, sobretudo o francês, a fim de que o caminho escolhido, parta do diálogo facilitado (e não imposto) por um terceiro, entre os sujeitos envolvidos. É mais fácil cumprir aquilo que for determinado pelos próprios mediandos, a partir da abertura do diálogo, do que os acordos que na maioria das vezes, são firmados pela pressão externa de um conciliador ou de um juiz. Quando se trata de problemas familiares, muitas vezes, acordos e decisões judiciais terminam por agravar os conflitos e, talvez por isso, sejam frequentemente, desobedecidos. Para Gustavo Andrade, “a mediação promove uma reflexão sobre o valor positivo do conflito, o que faz com que seus partícipes, sob a atitude equidistante do mediador, libertem-se de sua carga destrutiva, que se lhes apresenta como uma situação intransponível.”246 Assim, quando os conflitos atingirem interesses existenciais, parece mais adequada, embora não obrigatória, a utilização da técnica da mediação, antecedendo qualquer outra medida judicial. A mediação é a maneira mais apta a resgatar as responsabilidades e a autoria das vidas dos envolvidos no conflito, para que não deleguem mais “a uma instância que lhes imponha uma decisão judicial, distante das características específicas daquele sistema familiar.”247 A mediação vai cumprir a sua finalidade quando a comunicação for restabelecida, significando um passo importante no processo civilizatório das relações familiares, não apenas por impedir que o conflito chegue ao judiciário, o que muitas vezes não será possível, mas, por contribuir com a construção do verdadeiro sentido de sociedade que se experimenta, em primeiro lugar, no âmbito doméstico. É preciso estimular a cultura que dignifica aqueles que conseguem resolver seus problemas, de maneira justa e lícita, sem precisar levá-los ao judiciário, considerando 246 ANDRADE, Gustavo. Mediação Familiar. In: ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; OLIVEIRA, Catarina; ERHRARDT, Marcos (orgs) Famílias no Direito Contemporâneo. Estudos em Homenagem a Paulo Luiz Netto Lôbo. Salvador: JusPodivm, 2010, (p. 491 a 509), p. 506. 247 DAHAN, Jocelyne, apud BARBOSA, Águida Arruda. História da Mediação. Resposta à Necessária Abordagem Interdisciplinar do Direito de Família. In: Psicanálise e Direito. São Paulo: SBPSP, p. 25. 144 esta última, uma medida extrema que deve ser evitada, sobretudo para preservar o máximo possível, a integridade de vulneráveis, como são as crianças e adolescentes. 145 CAPÍTULO V INADIMPLEMENTO E RESPONSABILIDADE 5.1 Inadimplemento nas Obrigações Parentais; 5.1.1 Alienação Parental; 5.1.2 Multa Diária; 5.2 Pressupostos de Responsabilidade; 5.2.1 Dano Moral Indenizável; 5.2.2 Perda da Chance; 5.3 A Retórica no Superior Tribunal de Justiça. 5.1 Inadimplemento nas Obrigações Parentais Tradicionalmente, as obrigações são classificadas em obrigações de dar (coisa certa, coisa incerta), dar de volta (restituir coisa certa), fazer e não fazer. O objeto da relação obrigacional é a conduta do devedor e é sobre ela que repousa o direito subjetivo do credor, mesmo na tendência atual de cooperação mútua que impõe responsabilidades recíprocas para se chegar a um objetivo comum. Transcendendo a conduta do devedor, realiza-se o interesse do credor, que anseia o resultado que poderá ser o acesso à coisa, a concretização ou a não realização do fato. Já se explicou no capítulo III, que é perfeitamente plausível, a presença de interesses puramente morais (no sentido de serem “não econômicos”), movimentando as relações obrigacionais e impulsionando, inclusive, prestações debitórias, também puramente morais. Normalmente, as prestações debitórias que se referem à entrega de coisas que tenham valor econômico, também estarão motivadas por interesses econômicos; no entanto, essas afirmações não podem servir como uma fórmula absoluta, tendo em vista que é muito comum a obrigação de indenizar pecuniariamente, prejuízos exclusivamente morais, entre outras possibilidades. No que diz respeito às obrigações de fazer e não fazer, interesses e prestações puramente morais são frequentes, já que dizem respeito a fatos e não coisas. É sobre elas que se encontra o centro de interesse desta tese, já que nas relações parentais do poder familiar, a maior parte dos direitos subjetivos ali presentes, se referem a pretensões dos filhos menores, voltadas ao fazer ou não fazer de seus pais, tendo por objetivo prioritário, a construção de suas personalidades, com o equilíbrio necessário para que possam atuar de maneira autônoma e sadia na sociedade, interessando, por isso, não somente a cada indivíduo isoladamente, mas também, à própria sociedade. 146 No enquadramento das relações obrigacionais parentais, com todos os elementos constitutivos presentes (sujeito ativo e sujeito passivo, vínculo jurídico e conduta obrigada (prestação), com ou sem valor econômico correspondente), não seria possível afastar as normas jurídicas que regulam o inadimplemento das obrigações sob o argumento de que se trata de relações familiares, por uma questão de incoerência com o atual cenário que ressalta a importância dos direitos humanos e a necessidade imperiosa de vê-los tutelados. Inadimplemento, em linhas gerais, se trata do descumprimento da prestação a que se estava obrigado, permanecendo o devedor, comprometido em suportar as consequências negativas de sua omissão, tal qual a obrigação de pagar perdas e danos, juros, correção monetária e honorários advocatícios, conforme a regra do art. 389 do Código Civil248. Também será equiparado ao inadimplemento, embora se trate de coisa diferente, a mora, ou seja, o atraso no cumprimento da prestação devida. Diante da mora do devedor, também lhe será exigido o pagamento das perdas e danos, juros, atualização monetária e honorários advocatícios (art. 395 do Código Civil249), contudo, como ainda há possibilidade e interesse na prestação, continuará o devedor, obrigado a cumpri-la, ao mesmo tempo em que suporta as consequências de sua mora. Logicamente, a abrangência das consequências negativas no descumprimento das obrigações, sejam elas de dar, fazer ou não fazer, dependerão das circunstâncias consideradas em cada caso concreto. Assim, haverá obrigação de pagar perdas e danos quando, do inadimplemento, resultar prejuízo ao credor, material e/ou moral. Os prejuízos deverão ser comprovados, cabendo a presunção, quando se tratarem de danos morais, a partir da verificação do suporte fático, conforme se explicará mais adiante, bem como na existência de cláusula penal para as obrigações negociais. Essa última não interessa à abordagem deste trabalho. Da mesma maneira, juros e correção monetária serão aplicados nas obrigações econômicas, quando forem elas principais e à prestação descumprida corresponder um 248 “Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.” 249 “Art. 395. Responde o devedor pelos prejuízos a que sua mora der causa, mais juros, atualização dos valores monetários segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.” 147 preço, bem como na prestação secundária, de responsabilidade civil, sendo a indenização, pecuniária. Da mesma maneira, honorários de advogados serão exigidos a partir do momento em que a tutela dos interesses violados for defendida por este tipo de profissional. Conclui-se com isto, que nem todas as consequências do inadimplemento, seja ele absoluto ou relativo, deverão ser aplicadas concomitantemente se não houver justificativas plausíveis, que não se resumem ao fato de ter ocorrido o descumprimento da prestação. As consequências do inadimplemento serão mais graves do que as da mora, isso porque, diante do atraso no cumprimento da prestação, ainda existirá para o credor, a possibilidade de ver seu interesse realizado, o que não acontece no inadimplemento, que pressupõe a impossibilidade de cumprimento da prestação, ou a falta de interesse do credor, para quem a prestação, caso seja cumprida posteriormente, não teria mais utilidade. Com relação à impossibilidade, Orlando Gomes250 afirma a importância de considerá-la em seu conceito jurídico e não, lógico. Para o autor, no conceito lógico, a impossibilidade deve ser avaliada em termos absolutos e assim, a prestação não será cumprida quando não puder ser realizada de maneira nenhuma. Considerar a impossibilidade, apenas nesses casos, traria inconvenientes muitas vezes intransponíveis, pois, o dever de prestar não deverá obrigar o devedor para além do razoável. Orlando Gomes ressalta a preferência do ordenamento, no sentido de considerar a impossibilidade pelo conceito jurídico e não, lógico, assim, “também se deve admitir como impossível, a prestação cujo cumprimento exija do devedor esforço extraordinário e injustificável.”251 Apesar dessa preferência, Orlando Gomes alerta da insegurança que a flexibilidade do conceito jurídico pode trazer e, assim, justifica o elenco pelo qual o conceito jurídico deverá ser considerado. Assim, “conforme o ensinamento de Hedemann, compreendem-se no conceito jurídico de impossibilidade: a) a 250 GOMES, Orlando. Obrigações. Atualização: Edvaldo Brito. 17 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 176. 251 GOMES, Orlando. Obrigações. Atualização: Edvaldo Brito. 17 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 176. 148 impossibilidade jurídica stricto sensu; b) a inexibilidade econômica; c) a inexibilidade psíquica.”252 (grifos do autor). No caso das obrigações decorrentes do poder familiar, torna-se mais rigorosa a análise das impossibilidades, porque o esforço do devedor deverá ser maior, tendo em vista se tratar de interesses diretamente voltados à vida e à dignidade de pessoas vulneráveis. Assim, sempre que houver descumprimento voluntário dos deveres inerentes ao poder familiar, além de existir a possibilidade de suspensão e perda do poder familiar, como consequência de direito de família, a concretização da dignidade humana, assim, a tutela dos direitos fundamentais e o próprio sentido de permanência dos vínculos parentais, também impõem a utilização de outros procedimentos jurídicos para assegurar o cumprimento dos deveres que realizam os direitos mais essenciais, como são aqueles que viabilizam a pessoa humana, e também, a permissão jurídica para que prejuízos causados pela violação negativa de tais deveres sejam eles econômicos ou existenciais, sejam reparados. Como se percebe normalmente, a temática do inadimplemento transita com mais ênfase pela abordagem das violações negativas, daí o questionamento se, no direito de família, seria aplicável a modalidade de violação positiva das obrigações. De matriz alemã, a violação positiva não trata, propriamente, de inadimplemento, mas, de “adimplemento insatisfatório, ou seja, que ocorreu, mas, não satisfez o credor.”253 Não parece coerente aplicar, da mesma forma que se observa em relações jurídicas obrigacionais de outros tipos, a teoria da violação positiva, nas relações de família, sobretudo nas relações parentais, principalmente em nome da proteção dos espaços onde a norma jurídica não incide e nem deve incidir. Conforme já trabalhado no capítulo II as relações parentais se encontram em local intermediário, nem totalmente dominado por normas jurídicas e nem, absolutamente, vazio delas. E na incidência de normas originadoras de direitos subjetivos, pode-se estar diante daqueles que Hohfeld classifica como privilégios, contrapondo-se aos não direitos do Estado. Ainda, os deveres parentais são comandados por normas principiológicas que estabelecem metas a serem alcançadas, não se especificando em detalhes, as condutas para se chegar a elas, 252 GOMES, Orlando. Obrigações. Atualização: Edvaldo Brito. 17 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 177. 253 LÔBO, Paulo. Direito Civil – Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 263. 149 deixando aberto, um espaço de liberdade comportamental, a critério dos atores da relação, desde que alcancem os objetivos traçados pelo ordenamento. Conforme já mencionado no capítulo II, os limites desses privilégios, estão estabelecidos na própria necessidade jurídica de garantir, plenamente, a formação e a realização dos direitos mais fundamentais das pessoas dos filhos, como também, na própria Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente, no Código Civil, no Código Penal e nas demais normas nacionais e internacionais, que digam respeito às crianças, adolescentes e direitos humanos. 5.1.1 Alienação Parental Quando, nas relações parentais, se pensa em descumprimento dos deveres do poder familiar, com mais frequência, se imagina a figura do abandono material e/ou moral, este último conhecido pela denominação abandono afetivo. Ocorre que, nem todo afastamento significa abandono e, muitas vezes, o genitor que está ausente é, também, vítima de um comportamento moral e juridicamente reprovável, por parte do outro genitor ou de pessoas diversas. A utilização de algumas normas de direito material e processual, próprias do direito obrigacional, podem perfeitamente resolver conflitos deste tipo, evitando a majoração dos prejuízos, muitas vezes irreparáveis, sobretudo quando existenciais. Não sendo mais possível afirmar que as normas de direito das obrigações só se aplicam para questões patrimoniais, ainda assim, na prática, é como mais se observam. No entanto, o ânimo do ordenamento brasileiro que antes era, principalmente, patrimonialista, agora é humanista e, assim, a interpretação de seus comandos não pode mais ser conduzida por uma lógica que não se adequa à atual realidade. Como já se disse, nem sempre o afastamento entre pais e filhos decorre de uma omissão voluntária por parte daquele(s) que estão distantes, mas, de um odioso comportamento pouco racional e mais motivado por impulsos vingativos, normalmente (mas, não exclusivamente) por parte de um dos genitores, transformando os filhos em instrumentos de agressão contra o outro, numa clara confusão entre o relacionamento do casal e o relacionamento parental. 150 Acontecimentos como esses, que poderiam se limitar a problemas íntimos familiares, vão despertar o interesse de profissionais e acadêmicos desde meados dos anos 80, a partir dos estudos do psiquiatra americano Richard Gardner e a sua descrição do que vem a ser a síndrome da alienação parental (parental alienation syndrom), doença decorrente da programação de uma criança para rejeitar e odiar o seu genitor. Desta forma, verificam-se problemas distintos: a alienação propriamente, e a síndrome que dela decorre. Para Gardner, a síndrome decorre de dois fatores: (1) pela programação (lavagem cerebral) da criança por um dos genitores para denegrir a imagem do outro e (2) pela contribuição do próprio filho, no sentido de apoiar a campanha do genitor alienador, de difamação do genitor alienado,254 no entanto, não é tão simples identificá-la. Na prática, a alienação parental é mais frequente quando acontece o divórcio, mas, nada impede que seja exercitada durante a relação conjugal ou ainda, quando os pais mantenham outros tipos de vínculos. Quando se está diante de relacionamentos imbuídos de fortes emoções negativas (sobretudo frustração e ciúmes), salientam-se mecanismos de defesa que, frequentemente, direcionam pessoas ao conflito, muitas vezes, de forma mais instintiva do que racional. Se a emoção embota a razão, na maioria das vezes, nem os próprios envolvidos estarão conscientes do uso que fazem de suas crianças para atingir o outro e assim, na confusão entre alienação e abandono, será comum a alegação de um dos pais, de que foi alienado, contraposta pela alegação contrária, fundada em abuso e negligência. Em meio a tudo isso, ficam os filhos carentes de convivência e cuidados e, também, vulneráveis a problemas psicológicos irreversíveis, já que não há retorno ao tempo em que deveria ter sido diferente e, também, pela dificílima reconstrução posterior, de uma figura parental, sem a vivência da parentalidade no tempo em que ela mais se evidencia e se faz necessária que é na infância e na juventude. É preciso muita prudência do aplicador do direito, ao lidar com temas delicados como abandono e alienação, pois uma decisão equivocada pode agravar o que já era 254 “(1) programming ("brainwashing") of the child by one parent to denigrate the other parent, and (2) self-created contributions by the child in support of the alienating parent's campaign of denigration against the alienated parent”. CARLSON, Steven. Disponível em: http://www.childcustodycoach.com/pas.html. Acesso em 11 de Março de 2012. 151 trágico, tratando a vítima como agressor e, ao puni-lo, aumentar os prejuízos, tanto do genitor como (e principalmente), dos filhos alienados. Gardner oferece critérios de distinção entre o que ele chama de abuse-neglect (abuso-negligência) e que abrange abusos físicos, abusos sexuais e negligência e a alienação parental, que também é um tipo de abuso emocional mais permanente e principalmente, infundada. Para o psiquiatra norte-americano, devem ser observados os sintomas apresentados pela criança para buscar a diferença entre a alienação e o justo afastamento em razão de abuso-negligência. Nos casos em que realmente, está acontecendo a alienação parental, devem ser observadas as oito manifestações que seguem: (1) campanha de difamação; (2) razões fracas, frívolas ou absurdas de reprovação; (3) falta de ambivalência; (4) fenômeno do “pensador independente”; (5) apoio reflexivo ao genitor alienador no conflito parental; (6) ausência de culpa a respeito da crueldade e/ou exploração do genitor alienado; (7) presença de cenários emprestados e (8) extensão da animosidade aos amigos e/ou família estendida do genitor alienado255. No que tange aos sintomas primários de uma desordem decorrente de stress póstraumático, que pode ser o caso de abusos físicos e sexuais, seriam principalmente, os seguintes: (1) preocupação com o trauma; (2) revivências episódicas e flashbacks; (3) dissociação; (4) despersonalização; (5) fuga da realidade e entorpecimento psíquico; (6) dessensibilização para recreações e jogos de fantasia; (7) sonhos traumático-específicos; (8) medo de pessoas que lembram o abusador; (9) hipervigilância e/ou frequentes reações de sobressalto; (10) fuga de casa ou do local do abuso; (11) visão pessimista do futuro256. 255 Tradução livre para “(1) Campaign of denigration; (2) Weak, frivolous, or absurd rationalizations for the deprecation; (3) Lack of ambivalence; (4) The "independent thinker" phenomenon; (5) Reflexive support of the alienating parent in the parental conflict; (6) Absence of guilt over cruelty to and/or exploitation of the alienated parent; (7) Presence of borrowed scenarios; (8) Spread of the animosity to the friends and/or extended family of the alienated parent”. GARDNER, Richard A. Differentiating Between Parental Alienation Syndrome and Bona Fide Abuse-Neglect. Disponível em: http://www.fact.on.ca/Info/pas/gardnr99.htm. Acesso em 11 de Março de 2012. 256 Tradução livre para “(1) Preoccupation with the trauma; (2) Episodic reliving and flashbacks; (3) Dissociation; (4) Depersonalization; (5) Derealization and psychic numbing; (6) Recreational desensitization and fantasy play; (7) Trauma-specific dreams; (8) Fear of people who resemble the alleged abuser; (9) Hypervigilance and/or frequent startle reactions; (10) Running away from home or the site of the abuse; (11) Pessimism about the future”. GARDNER, Richard A. Differentiating Between Parental Alienation Syndrome and Bona Fide Abuse-Neglect. Disponível em: http://www.fact.on.ca/Info/pas/gardnr99.htm. Acesso em 11 de Março de 2012. 152 Graciela Medina257 salienta que, na avaliação das situações vivenciadas, sempre deve ser considerado os interesses superiores das crianças, de maneira tal que, caso realmente, se verifique que o exercício da parentalidade, acarreta riscos à integridade, à saúde psicofísica ou moral do menor, deve ser interrompida a comunicação. Do contrário, deve se buscar minimizar os danos, pela viabilização da convivência com o genitor alienado e pela responsabilização do genitor alienante. Para o direito, a alienação parental, por si só, ainda que não resulte em sua síndrome, já é ato ilícito violador de direitos fundamentais, pois não é necessário que se chegue a uma desordem psíquica, para seja considerado o dano. Este já está presente pela privação do convívio que é direito fundamental. Mas, ainda assim, será necessária a participação técnica de outros profissionais, sobretudo psicólogos e psiquiatras, ainda que não seja para constatar a instalação da síndrome, mas, para auxiliar na observação do comportamento dos pais, que também irão revelar se existe alienação parental ou justo afastamento em razão de abusos. Um comportamento frequente de pais culpados, seja por serem alienadores ou abusadores, é a falta de cooperação quanto aos exames que devem ser realizados por profissionais imparciais. Normalmente, os pais que são, também, vítimas, são mais cooperativos quanto à apuração das verdades, pois buscam afastar a violência e imputar responsabilidades a quem caiba, no interesse de seus filhos menores258. Outro critério de verificação, apenas para exemplificar, é a credibilidade dos pais. Tanto os alienadores, como os abusadores-negligenciadores, tendem, por suas culpas (ainda que achem que estão agindo corretamente) a cometer enganos, seja por apresentar contradições, bem como por apresentar argumentações fracas e insustentáveis259. 257 “Sin embargo, no es un derecho absoluto, pues – en la materia prima – el interés superior del niño, de manera tal que si su ejercicio pone en riesgo la integridad o salud psicofísica o moral del menor, la comunicación deberá ser interrumpida. Y es que aquí el bien jurídico protegido es la salud psicofísica de los hijos menores, aspecto que debe ser evaluado tanto para fomentar el ejercicio del derecho de visitas del padre no conviviente como para impedirlo.” MEDINA, Graciela. Daños em el Derecho de Familia. 2 ed. Santa Fe: Rubinzal-Culzoni, 2008 , p. 594. 258 GARDNER, Richard A. Differentiating Between Parental Alienation Syndrome and Bona Fide Abuse-Neglect. Disponível em: http://www.fact.on.ca/Info/pas/gardnr99.htm. Acesso em 11 de Março de 2012. 259 GARDNER, Richard A. Differentiating Between Parental Alienation Syndrome and Bona Fide Abuse-Neglect. Disponível em: http://www.fact.on.ca/Info/pas/gardnr99.htm. Acesso em 11 de Março de 2012. 153 Nos casos de alienação parental, os danos serão suportados pelos filhos e pelos familiares alienados, seja o genitor ou outros parentes de sua família estendida; como se tratam de graves prejuízos existenciais, toda cautela será pouca, pois, apesar de difícil reparação, isto não deve significar exclusão de responsabilidades, pois, a compensação poderá e deverá vir de alguma forma sob pena de se cometer mais omissões sobre fatos tão graves, estimulando o comportamento odioso e ferindo o mais importante princípio constitucional, que é a dignidade humana. No Brasil, a alienação parental é regulada pela Lei nº 12.318/2010 e seu conceito apresentado em seu art. 2º, assim como, o elenco exemplificativo das principais ações produtoras de alienação. Art. 2o Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este. Parágrafo único. São formas exemplificativas de alienação parental, além dos atos assim declarados pelo juiz ou constatados por perícia, praticados diretamente ou com auxílio de terceiros: I - realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor no exercício da paternidade ou maternidade; II - dificultar o exercício da autoridade parental; III - dificultar contato de criança ou adolescente com genitor; IV - dificultar o exercício do direito regulamentado de convivência familiar; V - omitir deliberadamente ao genitor informações pessoais relevantes sobre a criança ou adolescente, inclusive escolares, médicas e alterações de endereço; VI - apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente; VII - mudar o domicílio para local distante, sem justificativa, visando a dificultar a convivência da criança ou adolescente com o outro genitor, com familiares deste ou com avós. O art. 3º da mesma lei260 indica uma posição que autoriza tudo o que já foi exposto neste trabalho. A alienação parental é ato ilícito, praticado através do descumprimento de obrigações do poder familiar, consistentes em fazer e não fazer, violando o direito fundamental de convivência familiar de crianças e adolescentes, que deveria ser viabilizada, primeiro, por seus pais, não apenas para que eles realizem tal direito fundamental, mas também, outros que só se concretizarão por este meio. 260 “Art. 3o A prática de ato de alienação parental fere direito fundamental da criança ou do adolescente de convivência familiar saudável, prejudica a realização de afeto nas relações com genitor e com o grupo familiar, constitui abuso moral contra a criança ou o adolescente e descumprimento dos deveres inerentes à autoridade parental ou decorrentes de tutela ou guarda.” 154 O abuso moral cometido contra as crianças e adolescentes, vítimas de alienação parental, agride diretamente os direitos existenciais vinculados às suas personalidades, até porque se trata de afastar deles, o direito a ter essa personalidade bem formada, função que compete a ambos os pais e que só pode ser cumprida através da convivência. Quanto ao genitor alienado, também é clara a sua condição de vítima, atingida em seus direitos de personalidade. Além da violação à integridade psíquica, à dignidade, à liberdade, muitos outros direitos podem ser atingidos. Sendo a família, local de realização da personalidade, a partir do momento em que, pela alienação, o genitor se vê impedido de vivenciar sua família, na relação com seus filhos, sua personalidade em todos os seus interesses a ela inerentes, estará suscetível a danos muitas vezes, irreversíveis. Durante a prática da alienação parental, o genitor alienado fica impedido de cumprir com as suas obrigações parentais, sendo por isso, também prejudicado, de maneira semelhante ao que acontece em outras relações obrigacionais onde o devedor encontra obstáculos ao seu adimplemento por causa de condutas injustas do credor (mora credendi261.). Nestes casos, ainda que a síndrome da alienação parental já tenha se instalado e o próprio filho passe a rejeitar a convivência com seu pai (ou mãe), a conduta obstativa do cumprimento dos deveres parentais por parte do genitor alienado, ainda seria imputada ao genitor guardião que é também, representante legal do titular do direito subjetivo agredido. 5.1.2 Multa Cominatória No direito creditório, para as obrigações de fazer e não fazer é comum ver aplicada, juntamente ao comando que impõe a execução de tais obrigações, uma multa cominatória262, também chamada de astreintes, que tem por finalidade conferir força à 261 Mora Accipiendi ou Credendi “O embaraço que o credor opõe à solutio da outra parte compara-se ao retardamento do devedor, e a mora de um equipara-se à do outro. A recusa do credor é requisito conceitual dela. O retardamento injustificado no recebimento equivale à recusa, não podendo o devedor que quer solver o débito suportar-lhe as consequências.” PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil – Teoria Geral das Obrigações. 22 ed. Atualização: Guilherme Calmon Nogueira de Gama. Rio de Janeiro: Forense, 2009. v. 2, p. 298. 262 Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento (...) § 4o O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para o cumprimento do 155 ordem, já que existem liberdades individuais asseguradas pela Constituição Federal, que impedem qualquer outro tipo de constrangimento que interfira na integridade psicofísica do devedor. A multa cominatória tem a finalidade de exercer uma pressão no devedor no sentido de fazê-lo obedecer ao comando, cumprindo sua obrigação e inibindo a conduta ilícita, evitando o quanto antes, suportar o ônus financeiro da aplicação das astreintes. Apesar de ser um encargo financeiro, a multa cominatória não se confunde com a reparação dos prejuízos que ainda poderá ser suportada pelo devedor em atraso. Ela exerce um papel fundamental para que a prestação seja cumprida e, com isso, os interesses que a animam, sejam realizados. Na explicação de Rolf Madaleno, acerca da tutela antecipada (art. 273) e inibitória (art. 461, §§ 1º ao 5º), estas “são tutelas objetivando garantir ou apressar o cumprimento de direito substancial, em que a tutela inibitória tem por finalidade impedir a prática, a continuação ou a repetição do ilícito.”263 Tais medidas podem consistir em mecanismos ideais para inibir, conter e afastar conflitos de família, tendo em vista que o forte teor emocional, normalmente presente, impede, muitas vezes, que posturas mais racionais sejam tomadas, inclusive as que dizem respeito à obediência da ordem judicial. No amplo raio de ação da jurisdição familista, de mouro ouvidos tomam o lugar da razão; prevalece a insana vingança que caça amores já não mais acessíveis; seus personagens estão psicologicamente desassociados da logica compreensão, que compele as pessoas a atenderem ao comando judicial, e nesse quadro dos fatos a ordem judicial vira mero conselho, quase sempre ignorado. Resistências geram tumulto afetivo, e a reiterada desobediência agride o senso comum, apontando assim para as astreintes, que talvez carreguem em sua gênese a força mandamental capaz de reorientar os rumos dos processos e de restabelecer uma razoável pacificação familiar.264 Os interesses vivenciados na família, sobretudo para as crianças e adolescentes, via de regra, são aqueles mais superiores, como a vida digna e tudo o que melhor a fundamente. E esses interesses que devem ser prioritários, são realizados, primeiramente, a partir de comportamentos obrigatórios imputados ao pai e à mãe do menor, possuindo mesmo, caráter de munus. Assim, quando aqueles deveres parentais forem voluntariamente, descumpridos, seja por negligência e abusos, seja pela preceito. BRASIL, Código de Processo Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5869.htm. Acesso em: 20 de Março de 2012. 263 MADALENO, Rolf. Direito de Família em Pauta. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 32. 264 MADALENO, Rolf. Direito de Família em Pauta. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 46. 156 colocação de obstáculos à convivência dos filhos com seu outro genitor e familiares, se ainda existir a possibilidade de reversão do quadro para que os interesses dos filhos sejam realizados, a partir do resgate das condutas devidas, é totalmente adequada, a utilização desta técnica processual de tutela inibitória. E ainda que persistam os argumentos contrários à aplicação das regras de direito das obrigações nas relações de família, sustentados em certo apego à tradição, ainda assim, são seriam suficientes para afastar a utilização da multa cominatória, tendo em vista que estas se aplicam a todos os deveres jurídicos, com ênfase nas prestações de fato. A tutela inibitória integra, inclusive, a parte geral do Código de Processo Civil, o que já aponta a sua aplicação nos deveres jurídicos em geral, incluindo as causas de família265. No mesmo sentido, Eduardo Talamini afirma que “o sistema de tutelas, estabelecido a partir do art. 461, não se limita às obrigações propriamente ditas. Estende-se a todos os deveres jurídicos cujo objeto seja um fazer ou um não fazer.”266 Especificamente, quanto aos direitos da criança e adolescente, as astreintes são previstas e reguladas em legislação própria, que é a Lei 8.069/90 – ECA, o que fortalece a ideia de que a interpretação que autoriza a multa cominatória nas relações de família, incluindo as relações parentais, merece respeito. Assim dispõe o art. 213: Art. 213. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao adimplemento. § 1º Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou após justificação prévia, citando o réu. § 2º O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando prazo razoável para o cumprimento do preceito. § 3º A multa só será exigível do réu após trânsito em julgado da sentença favorável ao autor, mas será devida desde o dia em que se houver configurado o descumprimento. Rolf Madaleno ressalta que a importância da multa cominatória nas relações parentais, vai além de suas finalidades imediatas, servindo ainda, para evitar que outras medidas judiciais mais traumáticas, sejam tomadas, como por exemplo, a busca e apreensão de menor. 265 MIGUEL FILHO, Raduan. O Direito/Dever de Visitas, Convivência Familiar e Multas Cominatórias. In: Família e Dignidade Humana – Anais V Congresso Brasileiro de Direito de Família. Belo Horizonte: IBDFAM, 2006, (p. 811-818). p. 815. 266 Apud MADALENO, Rolf. Direito de Família em Pauta. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 36. 157 (...) palco de inesgotáveis traumas contra indefesas e desprotegidas crianças – subtraídas a fórceps por uma ordem judicial do convívio afetivo do genitor não guardião, que se descurou do tempo de permanência permitida ao salutar exercício do seu amor parental, tisnado por cenas dantescas e traumáticas de indescritível e dispensável violência processual.267 Para Raduan Filho, a multa cominatória ainda vai apresentar um caráter ético, por “romper a resistência insana e ímproba do devedor, que além de causar, com seu ato, prejuízo ao credor, desrespeita o Estado-Juiz ao querer impor a perpetuação de sua inadimplência.” 268 Outro aspecto importante na aplicação da tutela inibitória nas relações de família consiste em evitar que as obrigações descumpridas sejam convertidas, de logo, em perdas e danos, já que mais traumáticas. Assim, também, valem por viabilizar o adimplemento das prestações que são, principalmente em família, mais importantes do que a indenização269. 5.2 Responsabilidade Civil nas Relações Parentais Muito tem sido publicado, nos últimos anos, acerca da pertinência em se aplicar as regras de responsabilidade civil nas relações de família e as opiniões a respeito, não são uniformes, embora já se perceba uma tendência para aceitá-la sem maiores problemas, desde que não se trate de violação ao direito de afeto, tendo em vista a frequente confusão entre sentimento e conduta, conforme abordado no capítulo II. A família, em suas acepções amplas e restritas, abarca um considerável número de relações existenciais que, por suas peculiaridades, vão conduzindo os valores sociais no 267 MADALENO, Rolf. Direito de Família em Pauta. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 47. MIGUEL FILHO, Raduan. “O Direito/Dever de Visitas, Convivência Familiar e Multas Cominatórias” in Família e Dignidade Humana – Anais V Congresso Brasileiro de Direito de Família. Belo Horizonte: Ibdfam, 2006, (pp. 811-818). p. 817. 269 “No âmbito do Direito de Família, donde pela própria peculiaridade do litígio e da causa em disputa, confrontamos com querelas em que a indenização em pecúnia tem menos importância do que o adimplemento da obrigação assumida. A aplicação do disposto nos arts. 461 e 461-A representam de certa forma, se não a solução, pelo menos grande ajuda par a solução dos conflitos familiares.” MIGUEL FILHO, Raduan. O Direito/Dever de Visitas, Convivência Familiar e Multas Cominatórias. In: Família e Dignidade Humana – Anais V Congresso Brasileiro de Direito de Família. Belo Horizonte: IBDFAM, 2006, (p. 811-818). p. 814-815. 268 158 sentido de aceitar ou não, a aplicação de regras que, por muito tempo, eram exclusivas de relações jurídicas puramente econômicas. Sobre o tema, embora um sem número de circunstâncias possa ser analisado, não se vai aqui, perquirir a responsabilidade civil entre casais, a menos que seja o casal parental, pois no momento, interessa apenas, a responsabilidade civil entre aqueles que estejam vinculados pelas normas do poder familiar, naquilo que autoriza e baliza a aplicação desta medida extrema. Roberto Paulino270 pondera que, para considerar a responsabilidade civil nas relações de família (e então, nas relações parentais), a primeira coisa que se faz necessária, é a refletir a compatibilidade entre a aplicação da teoria de reparação de danos e a repersonalização, enquanto uma das características mais marcantes do direito de família contemporâneo. A afirmação é coerente porque, sendo a pessoa, o centro principal de interesse do ordenamento jurídico brasileiro e sendo a família, o local onde mais se experimenta a personalidade, antes de se tomar qualquer medida negativa contra seus integrantes, deve-se buscar preservar a dignidade de cada um dos envolvidos e a manutenção dos laços de afeto, mesmo que os acontecimentos, facilmente possam ser enquadrados nas hipóteses previstas pela norma jurídica, para originar os deveres de reparação. Na verdade, alerta Roberto Paulino, o grande desafio é “evitar que o interesse econômico se infiltre em situações existenciais, como outrora.”271 Por outro lado, não se pode pensar em preservar o existencial, negando a tutela de direitos violados, apenas se tratam de causas familiares ou, ainda, porque são danos sem correspondência econômica. Isso significaria, perigosamente, um retorno ao tempo em que eram negadas indenizações por dano moral, sob o argumento ultrapassado de que a “dor não teria preço”, que poderia ser substituído aqui, por “o amor não tem preço.” Outro argumento muito utilizado por aqueles que defendem a incompatibilidade entre direito de família e responsabilidade civil, é o da preservação da unidade familiar. 270 ALBUQUERQUE JUNIOR, Roberto Paulino. Ensaio Introdutório sobre a teoria da Responsabilidade Civil Familiar. In: ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; OLIVEIRA, Catarina; ERHRARDT, Marcos (orgs.) Famílias no Direito Contemporâneo. Estudos em Homenagem a Paulo Luiz Netto Lôbo. Salvador: JusPodivm, 2010, (p. 397-428), p. 398. 271 ALBUQUERQUE JUNIOR, Roberto Paulino. Ensaio Introdutório sobre a teoria da Responsabilidade Civil Familiar. In: ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; OLIVEIRA, Catarina; ERHRARDT, Marcos (orgs.) Famílias no Direito Contemporâneo. Estudos em Homenagem a Paulo Luiz Netto Lôbo. Salvador: JusPodivm, 2010, (p. 397-428), p. 398. 159 Assim, por exemplo, um filho que processe seu pai para que lhe indenize a privação da convivência e dos cuidados que deveria ter recebido, estaria terminando de vez, com qualquer hipótese remota de reaproximação e assim, com qualquer chance de uma convivência sadia com seu genitor(a). Diante de tais argumentos, Graciela Medina272 questiona que tipo de unidade familiar seria essa, quando um filho tem de procurar a justiça para ser assim considerado? Ou, ainda, que unidade familiar seria essa, quando os danos sofridos pelo filho sejam decorrentes da negligência ou do dolo de seu genitor? Na verdade, ainda existe uma forte interferência da cultura patriarcal, hierarquizada e institucionalizada nas famílias contemporâneas e, sob a justificativa da proteção da unidade familiar, as pessoas terminam por servir mais àqueles valores ultrapassados do que à dignidade de seus membros. Sabe-se que aquilo que para o Direito comum, é uma regra geral, isto é, de que todo dano gera um interesse legítimo que tem por meta principal, seu ressarcimento, no Direito de Família, parece temperado, diminuído por um desejo tácito, que ronda todo o sistema, de que esse ressarcimento seja afastado com o fim de favorecer a unidade familiar273. Para Maria Celina Moraes274, a dificuldade existente em se admitir ações de reparação de danos entre pessoas de uma mesma família se dá porque, normalmente, os conflitos chegam ao judiciário, quando os laços que justificam essas relações se rompem e em uma sociedade que teve durante muito tempo, um casamento indissolúvel em uma base machista e onde os filhos costumavam reverenciar e respeitar seus pais, mesmo depois de atingirem a maioridade, provocar o judiciário para buscar compensação de prejuízos contra seus familiares, sobretudo pai ou cônjuge, seria impensável. Seria quase herético. 272 “de qué unidad familiar estamos hablando cuando fue el hijo quien debió concurrir ante la justicia a efectos de quedar emplazado como tal, o cuando fue el hijo el que sufrió el daño por el accionar ya sea negligente o doloso de los padres”. MEDINA, Graciela. Daños em el Derecho de Familia. 2 ed. Santa Fe: Rubinzal-Culzoni, 2008, p. 524. 273 Tradução livre para “Así se há dicho que lo que en el Derecho común resulta regla general, esto es, que todo daño genera un interés legítimo que procura como meta principal su ressarcimento, en el Derecho de Familia aparece atemperado, minorado por un deseo tácito, que ronda todo el sistema, de que ese ressarcimento sea postergado en aras de favorecer la unidad familiar.” MEDINA, Graciela. Daños em el Derecho de Familia. 2 ed. Santa Fe: Rubinzal-Culzoni, 2008, p. 524 274 MORAES, Maria Celina Bodin de. Deveres Parentais e Responsabilidade Civil. In: Revista Brasileira de Direito de Família. v. 7. n. 31. Ago-set. Porto Alegre: Síntese. 2005 (p. 39-74), p 46. 160 Depois da entrada do divórcio no ordenamento pátrio, os membros de uma família passaram a se relacionar de maneira mais igualitária e livre e “o rompimento ou o afastamento acentuado nas relações familiares gera a distância imprescindível e o ambiente necessário para a propositura de ações reparatórias”275. Graciela Medina276 ressalta ainda, a incoerente contradição, no estado de Oregon, Estados Unidos, por admitir o abandono como delito, ao mesmo tempo em que se afasta a tutela dos interesses reparatórios civis pelo mesmo motivo. No Brasil, acontece da mesma maneira. Existem os crimes de abandono material e intelectual de filho menor, previstos no Código Penal Brasileiro, (arts. 244-247) e ao mesmo tempo, são frequentes as negativas de responsabilidade civil por abandono moral, ainda que diante de tais hipóteses. Admitindo a responsabilidade civil nas relações de família, Roberto Paulino sugere que seja feito um enquadramento quanto ao tipo de responsabilidade a ser aplicada. Considerando que a responsabilidade civil pode ser classificada em negocial e extra negocial e não sendo, nenhuma das duas, apropriada para reparar danos produzidos na família, deve ser criada uma terceira modalidade de responsabilidade civil, que leve em consideração as peculiaridades dos casos, bem como os princípios de direito de família. 277 Na verdade, o que o autor sugere é que, nos conflitos de família, seja alterado o eixo norteador da técnica de reparação de danos, para que exista uma preocupação maior com a proteção da vítima do que com a punição do ofensor. Ainda, apresenta a inadequação da técnica de subsunção, tradicionalmente utilizada pelos positivistas e que justificou, em nome de uma almejada precisão, o máximo detalhamento dos elementos de responsabilidade que deveriam estar contidos no suporte fático. Não obstante, a subsunção continuar apropriada para os casos mais simples, são os hard cases que movimentam os conflitos familiares, sobretudo quando envolvem crianças e adolescentes. Nestes casos mais difíceis, é necessário que se utilize a técnica da 275 MORAES, Maria Celina Bodin de. Deveres Parentais e Responsabilidade Civil. In: Revista Brasileira de Direito de Família. v. 7. n. 31. Ago-set. Porto Alegre: Síntese. 2005 (p. 39-74), p 47. 276 MEDINA, Graciela. Daños em el Derecho de Familia. 2 ed. Santa Fe: Rubinzal-Culzoni, 2008, p. 528. 277 ALBUQUERQUE JUNIOR, Roberto Paulino. Ensaio Introdutório sobre a teoria da Responsabilidade Civil Familiar. In: ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; OLIVEIRA, Catarina; ERHRARDT, Marcos (orgs.) Famílias no Direito Contemporâneo. Estudos em Homenagem a Paulo Luiz Netto Lôbo. Salvador: JusPodivm, 2010, (p. 397-428), p. 403. 161 ponderação, com a aplicação direta dos princípios e considerando as peculiaridades de cada caso278. 5.2.1 Alguns Pressupostos de Responsabilidade Ainda que a tendência contemporânea seja a de mitigar os filtros de reparação, denominação utilizada por Anderson Schreiber279 para os elementos que deveriam estar presentes no suporte fático da responsabilidade civil e, ainda que se considere admitir uma cláusula geral de responsabilidade civil, a utilização da técnica da ponderação precisará ser casuística, o que torna impossível e perigoso lançar mão, apenas, de um valor de responsabilidade e assim, continuará sendo necessário apontar alguns pressupostos, não para exigir da vítima que os prove, pois na maioria dos casos, estarão presumidos na própria lógica dos fatos, mas, para servirem de base na análise da prevalência (ponderação) entre interesses lesados e interesses lesivos. O primeiro pressuposto seria a conduta lesiva antijurídica, que será demonstrada pelo descumprimento voluntário dos deveres parentais. O negligente afastamento de seus filhos enquanto crianças ou adolescentes, privando-os da convivência e de todos os cuidados, que são frutos do exercício da parentalidade seria o primeiro exemplo de conduta ilícita a ilustrar o tópico. Mas, o elenco exemplificativo pode se estender por outras práticas, a exemplo da alienação parental, já abordada neste capítulo; também a prática de abusos físicos, emocionais e sexuais, entre outros. A falta de reconhecimento também pode ser considerada um ilícito originador do dever de reparar prejuízos e isso porque o primeiro direito a se considerar nas relações entre pais e filhos é o próprio direito de ‘ser filho’ e a partir dele, experimentar todos os demais direitos a essa condição inerentes. Obviamente, como já foi mencionada, a falta de reconhecimento, como as demais condutas lesivas, deve ter sido voluntária. Graciela Medina lembra que: (...) o filho tem um direito constitucional e supranacional, que lhe é outorgado pela convenção de Direitos da Criança, a conhecer sua realidade biológica, a ter uma 278 ALBUQUERQUE JUNIOR, Roberto Paulino. Ensaio Introdutório sobre a teoria da Responsabilidade Civil Familiar. In: ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; OLIVEIRA, Catarina; ERHRARDT, Marcos (orgs.) Famílias no Direito Contemporâneo. Estudos em Homenagem a Paulo Luiz Netto Lôbo. Salvador: JusPodivm, 2010, (p. 397-428), p. 415- 423. 279 SCHREIBER, Anderson. Novos Paradigmas de Responsabilidade Civil: da erosão dos filtros de reparação à diluição dos danos. São Paulo: Atlas, 2007. Passim. 162 filiação, e para ter uma filiação paterna extramatrimonial, precisa do reconhecimento do progenitor varão, já que a mãe não pode atribuir-lhe a paternidade.280 Outro pressuposto, muito comum na responsabilidade civil clássica, recaía na figura da culpa, assim considerada, de maneira ampla, contendo o dolo e a culpa em sentido estrito. Enfraquecida na técnica contemporânea de reparação de danos, este fator de atribuição, nas relações parentais, não precisa de comprovação, restando demonstrada pela voluntariedade da conduta reprovável. Neste sentido, Orlando Gomes ensina que “não pode haver dúvida quanto ao caráter culposo de todo inadimplemento voluntário.”281 A técnica da responsabilidade civil contemporânea em sua finalidade de reparar prejuízos, focando a atenção na vítima e não, no ofensor, se revela mais objetiva, afastando o elemento moral ou psicológico que consiste na culpa. No entanto, não se pode esquecer que em relações parentais, o pleno discernimento é necessário para o cumprimento dos deveres impostos pelo poder familiar, de tal maneira que, em sua falta, deve ser nomeado um tutor que assegure os interesses e a proteção integral das crianças e adolescentes. Excepcionalmente e, por isso, não contrariando a técnica mais atual de responsabilidade civil, havendo descumprimento de deveres parentais, para suportar a responsabilidade, o autor dos danos deve ser capaz de discernir as consequências negativas de seus atos. Assim, ainda que não deva recair sobre as vítimas de abandono, o ônus de provar a consciência da conduta lesiva de seus pais, a tese da não culpa, poderá ser utilizada para afastar a responsabilidade, em casos como, por exemplo, o de desconhecimento da existência do vínculo paterno-filial, justificando o não reconhecimento, a doença mental, a alienação parental, etc. Outro pressuposto de responsabilidade corresponde ao nexo de causalidade, como a relação de causa e efeito, que deve existir entre a conduta ilícita e o dano indenizável. Nos exemplos que acabaram de ilustrar as hipóteses de ausência de culpa, também estão contidas justificativas para a alteração do nexo causal, possibilitando que se reconheça a autoria das ofensas, naquele genitor que aliena, assim também naquele que omite ou 280 Tradução livre para “Es que el hijo tiene un derecho constitucional y supra nacional, otorgado por la convención sobre los Derechos del Niño, a conocer su realidad biológica, a tener una filiación, y para tener una filiación paterna extramatrimonial requiere del reconocimiento del progenitor varón, ya que la madre no puede atribuirle la paternidad” MEDINA, Graciela. Daños em el Derecho de Familia. 2 ed. Santa Fe: Rubinzal-Culzoni, 2008, p. 151. 281 GOMES, Orlando. Obrigações. Atualização: Edvaldo Brito. 17 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 173. 163 distorce verdades para evitar que seja descoberta a verdadeira paternidade de seu filho. No caso do abandono é preciso considerar o seu caráter patrimonial e existencial, não afastando a postura que fere o ordenamento jurídico, lesando bens jurídicos tuteláveis e não econômicos, apenas porque se continua a pagar os alimentos. Assim como orientam as regras do direito das obrigações, será possível afastar a responsabilidade civil quando se estiver diante de motivo de força maior ou caso fortuito, mesmo porque rompe o nexo de causalidade entre o dano e uma ação ou omissão daquele que se pretende responsabilizar. 5.2.2 Dano Moral Indenizável A responsabilidade civil nas relações parentais, por decorrerem de violações a direitos que se dirigem, principalmente, à formação e realização da personalidade de crianças e adolescentes, por isso, vulneráveis, frequentemente vai dizer respeito à reparação de danos morais e, por mais que se admita a reparação desses tipos de danos no Brasil, inclusive considerando o seu caráter substancial de lesão a direitos fundamentais não econômicos,282diante de algumas circunstâncias, o tema ainda sofrerá o preconceito originado pela sombra de uma cultura patrimonialista que insiste em pairar sobre o ordenamento jurídico nacional. Mas, não sendo um privilégio cultural do Brasil, danos morais também sofrem hostilidade por parte da doutrina, em países de forte tradição na matéria, como é o caso da França, e o receio será, eminentemente, o mesmo: o perigo da banalização dos prejuízos não econômicos283. O medo de tornar a reparabilidade dos danos morais, algo desimportante, parece advir mais da falta de conhecimento sobre o tema do que mesmo, do perigo de sua proliferação. Ainda é muito comum confundir sentimentos negativos com a lesão não 282 Constituição Federal de 1988. “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; (...) X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.” 283 “La réparation du préjudice moral ne cesse de se heurter à l'hostilité d'une partie de la doctrine. L'admission par la jurisprudence du principe selon lequel tout préjudice mérite réparation, quelle que soit sa nature, devait nécessairement aboutir à une prolifération des prejudices moraux réparables”. BACACHE-GIBEILI, Mireille. Droit Civil. Les Obligations, La Responsabilité Civile Extracontractuelle. Paris: Economica, 2007, t. 5, p. 378. 164 econômica, talvez pela ausência de materialidade, na maioria dos casos, que induz a misturar a ofensa com suas consequências. Ora, a subtração de valores econômicos do patrimônio de pessoas físicas, vai originar para elas, sentimentos negativos como raiva, angústia, tristeza, vergonha, etc., mas, estes sentimentos serão decorrências do dano e não se confundem com ele. Da mesma, maneira, para as pessoas físicas que sofrem lesões em bens jurídicos não passíveis de serem medidos em dinheiro, como por exemplo, direitos de personalidade, o sofrimento emocional vai ser uma consequência natural, mas, também não deve ser tomado o efeito, pela lesão. No passado, era muito comum o uso de argumentos que advogavam pela impossibilidade de indenizar danos morais, principalmente na consideração de ser indecente a ideia de se conferir preço à dor. Hoje, exatamente por saber não ser a dor, o dano, não se admite mais esse tipo de raciocínio. Inclusive, já é pacífico o entendimento de que pessoas jurídicas podem sofrer danos morais284 e, por serem abstrações, obviamente não se encontrarão nelas, quaisquer tipos de sentimentos, positivos ou negativos. Dano moral é prejuízo não econômico, decorrente de agressão a bens jurídicos relevantes, sérios, úteis, mas, sem correspondência monetária. A difícil, às vezes impossível reparação do bem jurídico ferido, não pode ser o motivo que justifique a ausência de uma resposta para a vítima. Essa abordagem já foi amplamente debatida e afastada pela doutrina, não servindo mais, nos dias atuais, como argumentação plausível em sede de responsabilidade civil por dano moral. Assim, existe direito à reparação dos prejuízos não econômicos, expressamente reconhecido na Constituição Federal, bem como no Código Civil285 e, nesses casos, a indenização não precisará, necessariamente, ser pecuniária, podendo ser oferecida in natura quando o tipo de prejuízo comportar. De outro modo, quando for impossível desfazer o dano, voltando ou aproximando-se do estado anterior, a indenização pecuniária ganhará sentido por não deixar a vítima sem resposta, numa espécie de compensação pela sanção que o ofensor suporte, que se não serve para recompor o patrimônio lesado, serve para 284 STJ – “Súmula 227. A pessoa jurídica pode sofrer dano moral” Código Civil. “Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei; (...) Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito; Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. (...) Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.” 285 165 desestimular uma nova conduta semelhante, tanto por parte de quem estiver sendo responsabilizado, assim como por toda a sociedade. Também não deve ser obstáculo à reparabilidade dos danos morais, a dificuldade de apresentar provas concretas de sua existência, pois esses prejuízos se provam in re ipsa loquitur ou em inglês the thing speaks for itself, significando que os fatos demonstrados irão apresentar os danos que deles decorram. O art. 227 da Constituição Federal elenca alguns dos direitos subjetivos que compõem o patrimônio jurídico de todas as crianças e adolescentes e que estarão vulneráveis à lesão, quando houver descumprimento dos deveres parentais durante a vigência do poder familiar, exatamente pelo fato de tais deveres se voltarem à realização desses interesses. São eles, os direitos à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Também o direito de não ser negligenciado, discriminado, explorado ou tratado com violência, crueldade e opressão. Nenhum desses interesses possui valor econômico correspondente e todos eles, quando feridos, merecerão uma reparação que lhes seja compatível, se não in natura, ao menos pecuniária pelos motivos já expostos. Negar a reparação dos danos morais causados pelos pais a seus filhos é contrariar, injustificadamente, todo o ordenamento brasileiro, em suas regras e princípios. 5.2.3 Perda de uma Chance como Dano Indenizável Outra categoria de dano que tem sido considerada, tanto pela doutrina como pela jurisprudência, é a chamada “perda de uma chance.” A discussão ganhou corpo a partir de uma decisão do STJ286, referente a um conflito iniciado no programa de perguntas e respostas veiculado pelo SBT – Sistema Brasileiro de Telecomunicação, chamado Show do Milhão. A ação foi movida por uma participante do programa, que pleiteava indenização por danos materiais e morais em decorrência de ter desistido de responder a última pergunta que valia R$ 500.000,00. A questão consistia em informar, a partir da constituição vigente, em quanto do território brasileiro recaíam os direitos dos índios; ocorre que a constituição do país não apresenta a resposta, o que justificou a desistência 286 STJ, Ac.unân.4aT., REsp.788.459/BA, rel. Min. Fernando. Gonçalves, j.8.11.05, DJU 13.3.06, p.334 166 da participante, assim como o erro da empresa responsável pelo programa, que se baseou na Enciclopédia Barsa para formular a pergunta. Na decisão, a empresa foi condenada a pagar R$ 125.000,00 à participante do programa, quantia correspondente a 1/4 da chance que ela teria de acertar, considerando a existência de quatro respostas alternativas na pergunta de meio milhão. Assim, a decisão nem se arrimou em danos materiais, pois a chance de oferecer uma resposta errada, caso tivesse tentado, também existia; nem em danos morais, pela dificuldade de identificar bens jurídicos não econômicos agredidos. Para Cristiano Chaves287, trata-se mesmo, do surgimento de uma nova modalidade de dano no cenário jurídico, o que, conforme ele, não o surpreende, principalmente porque o Direito de Responsabilidade Civil, submetido ao garantismo constitucional, reflete no reconhecimento de novas situações como merecedoras de tutela jurídica especial, fazendo aparecer novos institutos e categorias e conforme seu conceito, “tratase de uma modalidade autônoma e específica de dano, caracterizada pela indenizabilidade decorrente da subtração da oportunidade futura de obtenção de um benefício ou de evitar um prejuízo.”288 Algumas situações próprias das relações parentais podem apontar para essa categoria de dano, inclusive podendo-se refletir, a partir dele, em prejuízos materiais e/ou morais. Exemplificando, Graciela Medina289 ressalta a perda material que decorre da falta de reconhecimento da paternidade, que priva o filho do aporte financeiro por parte do genitor omisso, subtraindo-lhe a chance de ter uma vida financeiramente menos limitada. As obrigações próprias do poder familiar competem ao pai e à mãe, não estando nenhum deles, liberado de seu dever de assistência material, pelo fato do outro cobrir sozinho, as necessidades dos filhos. É claro que, existindo a vinculação jurídica de parentalidade, a situação financeira de cada um dos genitores pode definir as suas 287 FARIAS, Cristiano Chaves de. A Teoria da Perda de uma Chance Aplicada ao Direito de Família: Utilizar com Moderação. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coord.) Família e Solidariedade – Teoria e Prática do Direito de Família. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. (p. 67-84), p. 68. 288 FARIAS, Cristiano Chaves de. A Teoria da Perda de uma Chance Aplicada ao Direito de Família: Utilizar com Moderação. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coord.) Família e Solidariedade – Teoria e Prática do Direito de Família. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. (p. 67-84), p. 70. 289 “ Dentro del daño material tambíén se ubica la perdida de chance que se da por ejemplo cuando el menor por esfuerzo materno cubra sus necessidades mínimas, pero la falta de reconocimiento le priva del aporte paterno que le hubiese dado la “chance” cierta de lograr una mejor asistencia, una vida sujeta a menos restricciones y un mayor desarrollo en todos sus aspectos”. MEDINA, Graciela. Daños em el Derecho de Familia. 2 ed. Santa Fe: Rubinzal-Culzoni, 2008, p. 154. 167 contribuições, mas, o não reconhecimento voluntário não deve servir de alforria para o genitor que se omite, fundamentando-se a partir da ausência de vínculo jurídico somado à cobertura material por parte do genitor que cuida ou por parte de outro familiar. Em casos como estes, a perda de uma chance como dano, poderia bem ser aplicado. A chance de ter ou não mais tranquilidade material. Por outro lado, muitas vezes não há reconhecimento de filhos exatamente porque suas existências são desconhecidas. Não é incomum encontrar mulheres que escondem por anos, às vezes por toda a vida, a paternidade de seus filhos, privando-os de conhecer e conviver com seus pais e demais parentes a eles relativos. Cristiano Chaves identifica, em casos como esses, a possibilidade de admitir como perda de uma chance, o dano injusto causado pela privação da convivência paterno/filial com todas as consequências psicológicas que ela implica.290Em hipóteses como essas, perde o filho, a chance de ter um pai e perde o pai, a chance de ter um filho. Muitas outras circunstâncias poderão ser consideradas geradoras de danos por perda de chances, como por exemplo, a alienação parental e o abandono voluntário, no entanto, é preciso ter muita cautela na manipulação de algumas figuras jurídicas, principalmente quando a temática, apesar de aceita, ainda não foi amplamente discutida doutrinariamente. Muito ainda há o que avançar, mas, considerar os deveres parentais como obrigações em seu sentido mais técnico e a possibilidade de aplicar a responsabilidade civil por descumprimento dessas obrigações, já é um grande e importante primeiro passo. 5.3 A Retórica no Superior Tribunal de Justiça É possível refletir sobre a capacidade do direito produzir verdades. Se o principal instrumento de trabalho do operador do direito seja ele advogado, juiz, professor, promotor, etc., é a capacidade argumentativa, as verdades passam a ser tudo aquilo que os argumentos mais fortes provocarem em efeitos persuasivos no maior número de pessoas. 290 FARIAS, Cristiano Chaves de. A Teoria da Perda de uma Chance Aplicada ao Direito de Família: Utilizar com Moderação. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coord.) Família e Solidariedade – Teoria e Prática do Direito de Família. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. (p. 67-84), p. 73. 168 Muito já se avançou em termos de conquistas jurídicas para um Estado Democrático de Direito, fundamentado na dignidade da pessoa humana, no entanto, ainda é preciso sedimentar o conhecimento acerca da importância dos direitos existenciais, bem como defini-los na medida do possível, evitando que argumentos fracos, esvaziem interesses fortes, como tem acontecido na prática de alguns tribunais. A entrada do abandono afetivo no cenário jurídico, tanto por causa de sua denominação emocional, como também, por sua abrangência que implica em rompimentos de alguns paradigmas centenários e outros milenares, provocou uma inquietação em toda a comunidade jurídica que, confusa, algumas vezes não sabe pedir, outras vezes, não consegue decidir. A ênfase na temática do abandono afetivo, quando se sabe que existem outras possibilidades de violação de direitos existenciais nas relações parentais, deve-se ao fato de que foi essa a mais polêmica discussão a despertar o interesse das pessoas quanto aos direitos existenciais nas relações jurídicas entre pais e filhos. Toda a discussão tem início em 2004, quando a mídia veiculou três casos de pessoas que, sentindo-se abandonadas por seus pais, buscaram amparo jurídico, resultando em decisões polêmicas acerca da reparabilidade de prejuízos advindos da falta de afeto.291 Não somente nos meios jurídicos e acadêmicos, mas, em todas as esquinas, indagações acerca da “moralidade” dos pedidos eram feitas, uma vez que o pagamento do afeto não dado, ou seja, a mercantilização do afeto seria contrária ao que se espera, natural e culturalmente, das relações entre pais e filhos. Mais ainda, a negligência paterna ou materna, teria relevância em outro plano (moral, religioso, etc.) que não, o jurídico. Um desses casos, o de Minas Gerais, chegou ao Superior Tribunal de Justiça e a decisão foi no sentido de não conhecer o direito a uma reparação pecuniária, por não identificar no caso, o ato ilícito que origina a responsabilidade civil292. O Ministro Fernando Gonçalves, autor do voto vitorioso, foi seguido por mais três ministros que compõem a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que entenderam corretas as razões 291 Ago/2003 – Comarca de Capão da Canoa; Abril/2004 – 7ª Câmara Cível do TAMG e Jun/2004 – 31ª Vara Cível da Comarca de São Paulo. 292 Superior Tribunal de Justiça. 4ª Turma. Recurso Especial nº 757411-MG. Relator: Ministro Fernando Gonçalves. Decisão por maioria. Brasília, 29/11/2005. DJ de 27/03/2006, p. 299. 169 ali apontadas. Apenas o Ministro Barros Monteiro apresentou posicionamento diferente.293. Com o objetivo de mostrar como o desconhecimento da matéria e a interferência de outros fatores, como a cultura e a religião, podem ser obstáculos ao fortalecimento dos direitos mais fundamentais que as crianças e adolescentes possuem, será analisado retoricamente, o voto do Ministro Fernando Gonçalves. A abordagem não será defensiva, assim, não se espera refutar os argumentos ali expostos, mas, apenas descobrir e ressaltar os elementos persuasivos ali presentes e que vem sendo replicados em outras decisões. A pertinência do trabalho justifica-se, no entendimento de que a retórica não está resumida à arte (tekhné) do discurso persuasivo, ao saber escolher, dispor e apresentar argumentos aptos a levar o auditório a aderir à ideia do escritor/orador (retórica estratégica). Reboul294 aponta que, ao lado da função persuasiva, também temos as funções heurísticas, pedagógicas e hermenêutica, o que também não é suficiente para esgotar todo o conteúdo e fins da retórica295. Para facilitar a identificação dos elementos persuasivos no voto do ministro Fernando Gonçalves, os parágrafos estão analisados um a um, apresentando-se destacados pelo itálico e por parênteses. Assim, logo após a transcrição de cada trecho 293 Observe trecho do voto vencido: “Como se sabe, na norma do art. 159 do Código Civil de 1916, está subentendido o prejuízo de cunho moral, que agora está explícito no Código novo. Leio o art. 186: "Aquele que por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito ou causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.Ministro Barros Monteiro (Superior Tribunal de Justiça. 4ª Turma. Recurso Especial nº 757411-MG. Relator: Ministro Fernando Gonçalves. Decisão por maioria. Brasília, 29/11/2005. DJ de 27/03/2006, p. 299). 294 REBOUL, Olivier. Introdução à Retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. XVII –XXII. 295 Ballweg ensina, a partir de Nietzche, que a retórica apresenta um significado multifacetado. Apresenta ao leitor, as retóricas material, prática e analítica ampliando seu conteúdo, e assim, justificando a primeira frase de seu trabalho: “Da retórica nenhum direito escapa.” BALLWEG, Ottmar. Retórica Analítica e Direito. In: Revista Brasileira de Filosofia. Instituto Brasileiro de Filosofia. v XXXIX, fasc 163. SP, jul/ Ago/ Set. 1991, p.175-184. Com relação a esses conteúdos, Adeodato expõe de forma bastante didática: “Com olhos modernos, pode-se perceber o emprego do termo “retórica” em três sentidos básicos. 1. As retóricas materiais consistem na própria linguagem, o meio de significações, contextual em que vivem as sociedades humanas; a retórica material é o “fato lingüístico”, a experiência e a descrição compreensível dos eventos, a própria condição humana de significar por intermédio do discurso. Essa retórica material é a realidade mesma, as “realidades que vivemos”, constituindo o campo de estudo da retórica prática e da retórica analítica. 2. As retóricas práticas ensinam como proceder diante da retórica material, as técnicas e experiências eficientes para agir – ou seja: compreender, argumentar, persuadir, decidir, em suma, viver no mundo e nele influir estrategicamente -, englobando, por exemplo, a retórica como oratória. 3. A retórica analítica é o estudo dos outros dois níveis, em uma dupla abstração, buscando sistematizar e compreender as relações entre as retóricas materiais e práticas, sob uma perspectiva epistemológica.” ADEODATO, João Maurício. O Silogismo Retórico (Entimema) na Argumentação Judicial. In: Ética e Retórica. Para uma teoria da dogmática jurídica. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p 332. 170 do discurso, estarão indicados os principais argumentos, entimemas e exemplos que alcançaram sucesso ao persuadir a maioria dos julgadores da 4ª Turma, em 2005. Não se pode deixar de afirmar que, esse tipo de estudo também cumpre uma função heurística, uma vez que, através dele, se constata a realidade que Sobota expõe, de que “a prática jurídica não é governada nem pelas premissas maiores nem por normas instrumentais”, mas antes, pelo que chamou de ‘regularidades’ que consistem em ‘padrões’, o que difere de ‘estruturas’ ou ‘regras’296. Para Adeodato, o estudo do entimema ajuda a verificar que a decisão jurídica não é produzida por normas gerais. Antes, estas servem de justificativa para aquilo que já foi escolhido pelo julgador, diante do caso concreto, como o mais próximo do justo297. No entanto, para compreender o que está exposto até então, é necessário tecer breves comentários, retomando algumas considerações acerca da responsabilidade civil, sobretudo do entendimento atual do que vem a ser dano moral e o que significa abandono afetivo. A denominação abandono afetivo é, atualmente, responsável pelas diversas opiniões que divergem quanto à possibilidade jurídica (ou possibilidade moral) de reparação dos danos daí advindos, bem como quanto à possibilidade jurídica (ou possibilidade moral) da interferência do Estado na intimidade do ambiente familiar, ditando regras acerca de como agir naquela esfera incontrolável das emoções (ou da falta delas). A polêmica gira em torno do termo afetivo, sugerindo algo que pertence ao mundo das emoções do qual o jurista não faz parte. Ocorre que, quando se fala em abandono afetivo, na realidade quer se mostrar, na relação pai/mãe-filho, o descumprimento de deveres imateriais apontados, tanto na Constituição como no Código Civil, como conteúdo do Poder Familiar. Assim, o abandono afetivo consistiria na omissão em agir como pai e mãe, cujas condutas normalmente, vêm acompanhadas de forte carga emocional. Na verdade, como já restou explicado anteriormente, o termo mais adequado 296 SOBOTA, Katharina. Não Mencione a Norma. Disponível em: http://www.esmape.com.br/esmape/index2.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=137&Itemid =99999999. Acesso em: 12 de Agosto de 2008. 297 ADEODATO, João Maurício. O Silogismo Retórico (Entimema) na Argumentação Judicial. In: Ética e Retórica. Para uma teoria da dogmática jurídica. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p 342. 171 seria abandono moral, causador de dano moral, assim, prejuízos existenciais e não econômicos. Danos morais não são mais novidades no ordenamento jurídico brasileiro. Embora durante muito tempo, tenha sido discutida a sua pertinência. Conforme já apresentado neste capítulo, as razões contrárias à sua indenizabilidade voltavam-se, sobretudo, para as suas naturais consequências: dor, vergonha, angústia, frustração. Como não se admite conferir preço à dor, não seria aceitável qualquer reparação pecuniária, por ser incompatível com o prejuízo. Não cabe, agora, discorrer sobre o caminho percorrido até chegar ao reconhecimento jurídico do conceito, da importância e da aplicabilidade das regras de responsabilidade civil aos prejuízos não materiais. Mas, para melhor entender o documento (voto do ministro), objeto da análise retórica, é prudente repetir, para lembrar, ainda que brevemente, do que se tratam tais prejuízos. Dano moral, sendo o prejuízo sofrido pela pessoa natural ou jurídica em sua esfera de interesses imateriais, conduz à identificação entre o patrimônio lesado e os direitos de personalidade.298 Tomando como ponto de partida, os princípios constitucionais da dignidade, da solidariedade, da igualdade e o princípio implícito da afetividade299, bem como o que dispõem os artigos constitucionais: 5º, V e X300 e 227, caput301; e ainda os artigos 186302 298 LÔBO, Paulo. Dano Moral e Direitos da Personalidade. Disponível em: http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=4445. Acesso em: 09 ago. 2004. 299 A afetividade nem é fato exclusivamente sociológico ou psicológico, nem é petição de princípio, mas, princípio mesmo, com fundamento constitucional, conforme anteriormente mencionado, que especializa os princípios da dignidade e da solidariedade. LÔBO, Paulo Luiz Netto. O Princípio Jurídico da Afetividade na Filiação. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=130. Acesso em: 10 de Maio de 2008. 300 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; (...)X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.” 301 “Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” 302 “Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.” 172 e 927, caput303, do Código Civil, torna fácil a percepção quanto à relação entre a conduta ilícita do abandono afetivo (ou abandono moral) e o dano moral indenizável. No entanto, o Superior Tribunal de Justiça, em 2005 pensava diferente. E por maioria. Não menos pelo mérito do poder de persuasão do documento que agora, passa a ser analisado. O autor do texto analisado é o Ministro Fernando Gonçalves que atuou como relator do Recurso Especial nº 757411-MG em 29 de novembro de 2005. O colegiado reuniu-se na 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça e era composto pelos Ministros Aldir Passarinho Junior, Jorge Scartezzini e César Asfor Rocha, que acompanharam o voto do relator. O voto vencido coube ao Ministro Barros Monteiro. O discurso pertence ao gênero judiciário e por se dirigir a um auditório especializado, utiliza, preferencialmente, raciocínios silogísticos (entimemas). A maior parte dos argumentos baseia-se no logos, no entanto, percebe-se o recurso eventual ao pathos. A análise restringe-se ao voto do ministro por entender ser o local onde está presente o maior número de elementos persuasivos do trabalho jurídico de decidir e partirá de cada parágrafo, apresentados em itálico e entre parênteses, para poder destacar do estilo dos comentários. Segue-se a análise retórica do primeiro voto vencedor no Superior Tribunal de Justiça acerca do abandono afetivo: (A questão da indenização por abandono moral é nova no Direito Brasileiro. Há notícia de três ações envolvendo o tema, uma do Rio Grande do Sul, outra de São Paulo e a presente, oriunda de Minas Gerais, a primeira a chegar ao conhecimento desta Corte. A demanda processada na Comarca de Capão da Canoa-RS foi julgada procedente, tendo sido o pai condenado, por abandono moral e afetivo da filha de nove anos, ao pagamento de indenização no valor correspondente a duzentos salários mínimos. A sentença, proferida em agosto de 2003, teve trânsito em julgado, vez que não houve recurso do réu, revel na ação. Cumpre ressaltar que a representante do Ministério Público que teve atuação no caso entendeu que "não cabe ao Judiciário 303 “Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a reparálo.” 173 condenar alguém ao pagamento de indenização por desamor", salientando não poder ser a questão resolvida com base na reparação financeira). Neste primeiro parágrafo do acórdão, percebe-se, logo no início, um argumento dissociativo. Como visto na introdução desse trabalho, o dano moral não tem em sua substância, a dor, mas, a violação de interesses imateriais, sobretudo dos direitos correspondentes à condição de pessoa. O que a doutrina tem chamado de abandono afetivo é a abstenção de cumprimento, por parte do pai ou da mãe, dos deveres que decorrem do poder familiar e se referem aos direitos existenciais do filho. Assim, frustrando-se tais interesses, tratando-se de filho menor, é provável que alguns direitos da personalidade sejam atingidos, como a integridade psíquica, por exemplo, ou até mesmo a reputação (honra objetiva, imagem atributo), perante as outras crianças da escola. Quando o Ministro, em seu voto, inicia argumentando ser o abandono afetivo, novo no Direito Brasileiro, busca dissociar as conseqüências deste ato, dos danos morais. Desta forma, desviando, o discurso, do tema que já está sedimentado no Direito Pátrio, abre-se o espaço necessário para que o logos e o pathos, sobretudo, cumpram seu papel de alicerçar a persuasão. No texto, há ainda, o uso, embora discreto, da metonímia, método que evita aborrecer o auditório com um discurso técnico enfadonho. Quando diz “...a primeira a chegar ao conhecimento da Corte...”, na realidade, não é a Corte que conhece o caso, mas os Julgadores da Corte, no entanto, a construção utilizada, garante a elegância da exposição, como parte da eloqüência.304 Neste momento, o Ministro utiliza um elemento intratextual que serve de apoio como “argumento de autoridade”305, assim, prova pelo ethos, que se trata da citação do representante do Ministério Público, aquilo que vai ser a conclusão deste voto. (O Juízo da 31ª Vara Cível do Foro Central de São Paulo-SP, a seu turno, condenou um pai a indenizar sua filha, reconhecendo que, conquanto fuja à razoabilidade que um filho ingresse com ação contra seu pai, por não ter dele recebido afeto, "a paternidade não gera apenas deveres de assistência material, e que além da guarda, portanto independentemente dela, existe um dever, a cargo do pai, de ter o filho em sua companhia".) 304 A elocução, no sistema retórico de matriz aristotélica, consiste na “parte do discurso, que trata do bom estilo”. IORIO FILHO, Rafael Mário. Retórica. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (coord.) Dicionário de Filosofia do Direito. São Leopoldo: Unisinos; Rio de Janeiro: Renovar, 2006. (p. 723-726), p. 724. 305 REBOUL, Olivier. Introdução à Retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 157. 174 O segundo parágrafo do voto analisado apóia-se no exemplo ocorrido em São Paulo, a partir da utilização, mais uma vez, do recurso intratextual da citação. Desta vez, com a finalidade de enfraquecer o argumento contrário à sua tese. Ao indicar que não é razoável pedir indenização por abandono afetivo contra um pai, é razoável reconhecer que o direito de pedir, existe. Ou seja, a ratio legis, na qual se apóia um entendimento contrário à negação da pretensão do filho, não seria razoável nesse caso. Para Reboul306, a contradição (no caso, não é razoável / é razoável) é rara na argumentação por impossibilitar a prova, vez que toca o absurdo. No entanto, no presente discurso, incita-se a confusão entre razoabilidade e racionalidade, apontando um valor diferente para a regra que impõe a obrigação dos pais assistirem os filhos, para além de suas necessidades materiais.307 (A matéria é polêmica e alcançar-se uma solução não prescinde do enfrentamento de um dos problemas mais instigantes da responsabilidade civil, qual seja, determinar quais danos extrapatrimoniais, dentre aqueles que ocorrem ordinariamente, são passíveis de reparação pecuniária. Isso porque a noção do que seja dano se altera com a dinâmica social, sendo ampliado a cada dia o conjunto dos eventos cuja repercussão é tirada daquilo que se considera inerente à existência humana e transferida ao autor do fato. Assim situações anteriormente tidas como "fatos da vida", hoje são tratadas como danos que merecem a atenção do Poder Judiciário, a exemplo do dano à imagem e à intimidade da pessoa.) Ao enfatizar o caráter polêmico da matéria, apontando uma solução complexa, a partir do enfrentamento de um dos problemas mais instigantes, o escritor/orador exagera por meio do uso do advérbio superlativo relativo de superioridade, com a finalidade de expor sua razão, todavia provando a partir do pathos. Sendo o tema instigante, o auditório se vê envolvido, emocionalmente, para resolver o conflito. Apesar de o discurso judiciário fundar-se principalmente, no logos, a emoção lançada para quem se pretende persuadir, embota a razão naquilo que se pretende ocultar. 306 REBOUL, Olivier. Introdução à Retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 168. “Ambas as palavras, racional e razoável, derivam do mesmo substantivo. Ambas significam uma conformidade com a razão, mas, raramente interagem; uma sugere uma dedução em conformidade com as regras da racionalidade lógica, mas não necessariamente razoável. Todavia, uma concessão pode ser denominada razoável. Não podemos nos esquecer: uma decisão racional pode não ser razoável e viceversa.” MANELI, Mieczyslaw. A Nova Retórica de Perelman. Filosofia e Metodologia para o século XXI. São Paulo: Manole, 2004, p. 28. 307 175 Outro elemento persuasivo que se destaca no parágrafo analisado é o paradigma, ou melhor, a mudança de paradigma no que diz respeito àquilo que determina o que seja dano indenizável ou, simplesmente, fatos da vida. Ao exemplificar pela violação à imagem ou à intimidade, o ministro enfatiza que fatos da vida variam de importância, de acordo com a dinâmica social. Por outro lado, de forma oculta, entimemática, conduz à possibilidade de, imprudentemente, incluir outros fatos da vida, que não foram alçados, ainda, ao patamar valorativo de interesse juridicamente tutelável308. Por esta afirmação, seria a premissa maior: O conceito de dano varia com a dinâmica social que inclui ou exclui fatos da vida de seu contexto. Premissa menor: abandono afetivo é fato da vida. Conclusão: logo, abandono afetivo pode ou não ser dano indenizável. Concluindo pela possibilidade, de maneira reticente, o ministro lança para o auditório a responsabilidade de resolver a questão da pertinência ou impertinência de se incluir o abandono afetivo, como fonte de obrigação. A técnica de uma conclusão reticente procura aflorar, naqueles que recebem a mensagem, a busca dos lugarescomum (topoi) em relação ao tema, que vão confirmar a verossimilhança daquilo que vai se decidir. Assim, sedimenta-se a cumplicidade entre o autor do discurso e o auditório que o apóia. (Os que defendem a inclusão do abandono moral como dano indenizável reconhecem ser impossível compelir alguém a amar, mas afirmam que "a indenização conferida nesse contexto não tem a finalidade de compelir o pai ao cumprimento de seus deveres, mas atende duas relevantes funções, além da compensatória: a punitiva e a dissuasória. (Indenização por Abandono Afetivo, Luiz Felipe Brasil Santos, in ADV Seleções Jurídicas, fevereiro de 2005). Nesse sentido, também as palavras da advogada Cláudia Maria da Silva: "Não se trata, pois, de "dar preço ao amor"– como defendem os que resistem ao tema em foco 308 “Assim, propugna-se o uso da tópica, mas sem olvidar da dogmática, posto que o uso exclusivo daquela techné poderia conduzir a uma problematização excessiva, de modo que não se alcançaria uma resposta aos problemas submetidos ao crivo dos juristas”. COSTA FILHO, Venceslau Tavares. Tópicos de Direito Civil. Recife: Nossa Livraria, 2007, p 60. “O termo tópica tem a sua origem na expressão grega topos, que corresponde ao lócus latino e ao lugar comum em língua portuguesa. A tópica se associa a uma retomada do pensamento da Antiguidade, sobretudo aristotélico, que propunha a adoção de um raciocínio fundado na solução de problemas. Em seus Tópicos, Aristóteles discute a arte da disputa, que se insere no contexto dos raciocínios dialéticos, que são resultado de proposições formadas por opiniões aceitas, a partir da contraposição de argumentos”. MENDONÇA, Paulo Roberto S. Tópica. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (coord.) Dicionário de Filosofia do Direito. São Leopoldo: Unisinos; Rio de Janeiro: Renovar, 2006. (p. 826-829), p. 828. 176 tampouco de "compensar a dor"propriamente dita. Talvez o aspecto mais relevante seja alcançar a função punitiva e dissuasória da reparação dos danos, conscientizando o pai do gravame causado ao filho e sinalizando para ele, e outros que sua conduta deve ser cessada e evitada, por reprovável e grave.” (Descumprimento do Dever de Convivência Familiar e Indenização por Danos à Personalidade do Filho, in Revista Brasileira de Direito de Família, Ano VI, n° 25 – Ago-Set 2004)) Esses dois parágrafos guardam identidade ao apresentarem duas citações com o mesmo objetivo: antecipar os argumentos contrários, a fim de viabilizar que o autor, posteriormente, volte-se contra eles. É muito comum, quando se pretende proceder por esse método estratégico, se recorrer a uma figura de argumento, prolepse, de difícil definição, por confundir-se com a própria noção de argumento309. A escolha de trazer dois discursos externos confere maior credibilidade à idéia de que esses são, realmente, os contra-argumentos de sua tese. Assim, fica mais fácil destruí-los. Em ambas as citações, os autores admitem que a indenização não seria o instrumento pelo qual a relação pai-filho seria resgatada. Seguem afirmando que uma condenação pecuniária não compensaria a dor do abandono, nem se adequaria a recompor patrimônio lesado, uma vez que o amor não tem preço. Pode-se dizer, então, que correspondem a argumentos do desperdício às avessas310. A intenção será persuadir que devem ser evitadas as decisões que originem condutas que não resultam em nenhum benefício para qualquer das partes. Posteriormente, apontam as reais funções da indenização nos casos em que os pais descumprem os deveres de guarda e educação, decorrentes do poder familiar: a função punitiva e a pedagógica. 309 Para Reboul, seriam exemplos de prolepse: Dizer-nos que... Objetar-se-á que... REBOUL, Olivier. Introdução à Retórica. São Paulo: Martins Fontes, p. 135. Já Perelman, classifica a prolepse (ou antecipação – praesumptio) como figura de escolha “quando visa insinuar que há motivo de substituir uma qualificação que poderia ter levantado objeções por outra” – PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTSTYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação: A Nova Retórica. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 197. 310 O verdadeiro sentido do argumento do desperdício “consiste em dizer que, uma vez que já se começou uma obra, que já se aceitaram sacrifícios que se perderiam em caso de renúncia à empreitada, cumpre prosseguir na mesma direção. Essa é a justificação fornecida pelo banqueiro que continua a emprestar ao seu devedor insolvente, esperando, no final das contas, ajudá-lo a sair do aperto”. PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação: A Nova Retórica. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, p. 317-318. 177 De maneira a afastar a idéia de um conceito maior de norma jurídica e, ainda, limitando-se a uma das várias regras que podem incidir sobre o caso, segue o discurso do ministro311. (No caso de abandono ou do descumprimento injustificado do dever de sustento, guarda e educação dos filhos, porém, a legislação prevê como punição a perda do poder familiar, antigo pátrio-poder, tanto no Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 24, quanto no Código Civil, art. 1638, inciso II. Assim, o ordenamento jurídico, com a determinação da perda do poder familiar, a mais grave pena civil a ser imputada a um pai, já se encarrega da função punitiva e, principalmente, dissuasória, mostrando eficientemente aos indivíduos que o Direito e a sociedade não se compadecem com a conduta do abandono, com o que cai por terra a justificativa mais pungente dos que defendem a indenização pelo abandono moral.) Aqui, novamente, o ministro recorre ao exagero para persuadir que a perda do poder familiar, por ser a mais grave pena civil a ser imputada a um pai é o bastante par atingir toda e qualquer finalidade pedagógica. Este tipo de argumento, conforme Reboul,312 seria daqueles classificados como de terceiro tipo (argumentos que fundamentam a estrutura do real), tendo em vista que só se afirma que algo é mais, em relação à outra coisa com que se compare, no caso, outras possíveis punições imputáveis a um pai, como por exemplo, o dever de indenizar os prejuízos causados na esfera imaterial. Exatamente o argumento fraco dos dois parágrafos antecedentes do acórdão. No entanto, encontra-se escondido o real papel do poder familiar no atual contexto. Com os princípios constitucionais do direito de família, que tendem a resgatar a importância das pessoas que integram tais unidades de vivência, conferindo-lhes, sobretudo dignidade e igualdade, o conteúdo daquilo que, antes, era chamado de pátrio poder, deixa de ser voltado para o pai, senhor das decisões, direitos e autoridade e voltase para o filho, pessoa em formação e vulnerável. Assim, o hoje chamado poder familiar, é constituído de regras que sujeitam os pais nos deveres de proteção, 311 “Para que o adversário aceite uma tese, devemos apresentar-lhe também a contrária e deixar que ele escolha, ressaltando essa oposição com estridência, de modo que ele, se não quiser ser contraditório, tenha de se decidir pela nossa tese que, em comparação à outra, se mostra muito mais provável (...)” Estratagema 13 – Alternativa Forçada. SHOPENHAUER, Artur. Como Vencer um Debate sem Precisar ter Razão. Tradução: Daniela Caldas e Olavo de Carvalho. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003, p. 145. 312 REBOUL, Olivier. Introdução à Retórica. São Paulo: Martins Fontes, p. 183. 178 manutenção, educação, convívio, etc. com o objetivo de moldar o ser social saudável que vai conviver, por si só, com os demais. Certamente, o autor do discurso conhece o conteúdo das regras e princípios de direito de família que estão em vigor atualmente, no entanto, toca no pathos do auditório que, possivelmente, é composto por pais ou avôs, para quem, a perda de qualquer vinculação jurídica com seus filhos, pareceria antes, uma tragédia. No entanto, com base em uma reflexão mais racional que emocional, conclui-se que, para aquele que abandona voluntariamente, seu filho, a perda do poder familiar será como uma remissão de dívidas. Mais uma vez, prova-se que a estrutura do entimema viabiliza as omissões necessárias para, estrategicamente, levar o auditório a concluir pelo razoável nas situações gerais. (Por outro lado, é preciso levar em conta que, muitas vezes, aquele que fica com a guarda isolada da criança transfere a ela os sentimentos de ódio e vingança nutridos contra o ex-companheiro, sem olvidar ainda a questão de que a indenização pode não atender exatamente o sofrimento do menor, mas também a ambição financeira daquele que foi preterido no relacionamento amoroso.) Nesse trecho do discurso, transmite-se a ideia de incompatibilidade entre o que está apresentado como causa de pedir e a real intenção do autor da ação. O topos que aceita o natural e consequente sentimento que inclina para a vingança diante de uma injustiça, evidencia a dualidade aparência/realidade, para concluir que a ambição ou a raiva e não, a carência existencial, motivaram o pedido313. (No caso em análise, o magistrado de primeira instância alerta, "De sua vez, indica o estudo social o sentimento de indignação do autor ante o tentame paterno de redução do pensionamento alimentício, estando a refletir, tal quadro circunstancial, propósito pecuniário incompatível às motivações psíquicas noticiadas na Inicial (fls. 74) (...) Tais elementos fático-probatórios conduzem à ilação pela qual o tormento experimentado pelo autor tem por nascedouro e vertedouro o traumático processo de separação judicial vivenciado por seus pais, inscrevendo-se o sentimento de angústia dentre os consectários de tal embate emocional, donde inviável inculpar-se 313 Reboul explicita o esquema dissociativo do par aparência/realidade, da seguinte forma: “Termo 1: Ser aparente, imediato, conhecido diretamente./Termo 2: Ser real, critério de valor e de verdade do termo 1” – REBOUL, Olivier. Introdução à Retórica. São Paulo: Martins Fontes, p. 190. 179 exclusivamente o réu por todas as idiossincrasias pessoais supervenientes ao crepúsculo da paixão."(fls. 83)). Novamente, recorre a um suporte externo, que sugere concluir pelo método post hoc, propter hoc.314 Assim, deduz-se que depois do pai pedir redução da pensão alimentícia que vinha pagando ao filho e por causa disso, este pleiteia em juízo, indenização por abandono afetivo. A finalidade, portanto, seria vingar-se do pai, reagindo ao intento paterno. O argumento, além de provar pelo logos, ainda apela ao pathos, pois sabe-se que a vingança é odiosa. O texto do magistrado citado encontra-se recheado de figuras de sentido metafórico (nascedouro, vertedouro, crepúsculo), que não serão analisadas nesse trabalho, uma vez que se pretende manter a atenção voltada para a redação desenvolvida pelo ministro Fernando Gonçalves. (Ainda outro questionamento deve ser enfrentado. O pai, após condenado a indenizar o filho por não lhe ter atendido às necessidades de afeto, encontrará ambiente para reconstruir o relacionamento ou, ao contrário, se verá definitivamente afastado daquele pela barreira erguida durante o processo litigioso? Quem sabe admitindo a indenização por abandono moral não estaremos enterrando em definitivo a possibilidade de um pai, seja no presente, seja perto da velhice, buscar o amparo do amor dos filhos (...) Os parágrafos 9º e 10º da decisão sugerem o dilema: caso o pai seja condenado a indenizar seu filho, isso resolveria ou agravaria o problema? Trata-se aqui, de um argumento de direção que, mais uma vez, utiliza o recurso do exagero, para concluir que o afeto do pai, carência que justifica o pedido de reparação por parte do filho, seria totalmente afastado em caso de condenação. A vitória do filho apagaria a mínima centelha de possibilidade de poder conquistá-lo. E o termo utilizado 314 Para os filósofos/humoristas Tom Cathcart e Dan Klein, “o livro Freakonomics aponta montes dessas falácias, principalmente no âmbito da paternidade. Um pai diz: ‘meu filho é inteligente porque eu tocava Mozart para ele quando ele estava no útero’ quando, na verdade, não existe nenhuma correlação entre as duas coisas. O mais provável é que o moleque seja esperto porque tem pais que ouviam Mozart (isto é, eram cultos e, portanto, provavelmente inteligentes). CATHCART, Tom; KLEIN, Dan. Platão e um Ornitorrinco entram num Bar...A Filosofia explicada com Senso de Humor. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, p. 226-227. 180 no parágrafo 10º, em definitivo, exclui por completo, a hipótese de que o resultado pudesse ser diferente. O Ministro Fernando Gonçalves utiliza a metáfora: como se fosse “uma barreira erguida durante o processo litigioso” e a hipérbole “enterrando em definitivo”, para reforçar a ideia do preferível (é preferível evitar a ruptura dos possíveis afetos, afastando a decisão que manda o pai entregar ao filho, uma soma em dinheiro, a título de compensação). O argumento do preferível é um dos elementos necessários ao acordo firmado com os seus interlocutores.315 Apela ao pathos ao remeter o tema ao futuro, na ideia de uma velhice frágil do pai, invertendo os papéis, colocando o pai em uma situação de necessidade no que tange ao amparo do filho. Agora, convenientemente, distrai o auditório, desviando a sua atenção para que a prova que pretenda fixar (no momento, conforme acabamos de ver, aproximando-se mais do pathos) – é esse o papel da digressão316 na construção do discurso persuasivo. Para tanto, o ministro insere no texto, uma parte do conto "Para o aniversário de um pai muito ausente", de Jayme Vita Roso, que mostra o drama de uma mulher que foi abandonada afetivamente pelo pai e, no entanto, não se mostra vingativa. Antes, expressa a paciência que ainda lhe cabe da espera desse pai “não aproveitado”.317 (Por certo um litígio entre as partes reduziria drasticamente a esperança do filho de se ver acolhido, ainda que tardiamente, pelo amor paterno. O deferimento do pedido, não atenderia, ainda, o objetivo de reparação financeira, porquanto o amparo 315 “A fim de atingir tal “adesão” do público, devemos levar em consideração não somente o “espírito” ou a “atitude” geral de um determinado país, sociedade ou qualquer outra audiência limitada, mas também seus sentimentos complexos, combinados e até contraditórios.” MANELI, Mieczyslaw. A Nova Retórica de Perelman. Filosofia e Metodologia para o século XXI. São Paulo: Manole, 2004, p. 80. 316 Digressão (parekbasis), “momento de ‘relaxamento’, trecho móvel, ‘destacável’, como diz Roland Barthes, que se pode colocar em qualquer momento do discurso, mas de preferência entre a confirmação e a peroração”. REBOUL, Olivier. Introdução à Retórica. São Paulo: Martins Fontes, p. 59. 317 "O Corriere della Sera, famoso matutino italiano, na coluna de Paolo Mieli, que estampa cartas selecionadas dos leitores, de tempos em tempos alguma respondida por ele, no dia 15 dejunho de 2002, publicou uma, escrita por uma senhora da cidade de Bari, com o título "Votos da filha, pelo aniversário do pai". Narra Glória Smaldini, como se apresentou a remetente, e escreve: "Caro Mieli, hoje meu pai faz 67 anos. Separou-nos a vida e, no meu coração, vivo uma relação conflitual, porque me considero sua filha ´não aproveitada´. Aos três anos fui levada a um colégio interno, onde permaneci até a maioridade. Meu pai deixara minha mãe para tornar a se casar com uma senhora. Não conheço seus dois outros filhos, porque, no dizer dele, a segunda mulher ´não quer misturar as famílias´. Faz 30 anos que nos relacionamos à distância, vemo-nos esporadicamente e presumo que isso ocorra sem que saiba a segunda mulher. Esperava que a velhice lhe trouxesse sabedoria e bom senso, dissipando antigos rancores. Hoje, aos 39 anos, encontro-me ainda a esperar. Como meu pai é leitor do Corriere, peço-lhe abrigar em suas páginas meus cumprimentos para meu pai que não aproveitei." 181 nesse sentido já é providenciado com a pensão alimentícia, nem mesmo alcançaria efeito punitivo e dissuasório, porquanto já obtidos com outros meios previstos na legislação civil, conforme acima esclarecido.) Chega-se, agora, ao ponto que, no sistema retórico, é conhecido por peroração. Agora, o autor do discurso, após utilizar de vários argumentos, busca despertar a indignação do auditório, confundindo os interlocutores acerca do que se trata a pretensão do autor. Enfatiza, alicerçado no pathos e, novamente, recorrendo ao exagero, a preocupação em manter ou viabilizar o vínculo afetivo-familiar entre pai e filho, quando não é disso que se trata o interesse exposto pelo autor da ação. Amplia o argumento da finalidade da reparação, para desviá-la, mais uma vez, da pretensão do filho. Inclusive, tal recurso é apontado no primeiro estratagema da dialética erística de Schopenhouer318. (Nesse contexto, inexistindo a possibilidade de reparação a que alude o art. 159 do Código Civil de 1916, não há como reconhecer o abandono afetivo como dano passível de indenização.) (Diante do exposto, conheço do recurso e lhe dou provimento para afastar a possibilidade de indenização nos casos de abandono moral). Diante do exposto, pode-se afirmar que a dogmática não é o único recurso utilizado pelo julgador para construir sua decisão. Como se percebe, o uso dos entimemas permite concluir que a tópica exerce um papel relevante no trabalho do julgador. O que pode, inclusive, não significar segurança jurídica, vez que, se os argumentos se baseiam em cláusulas abertas, a serem preenchidas pelos topoi, ainda que reclamem valores sociais sedimentados, podem servir para lastrear uma decisão arbitrária que, ao incidir casuisticamente, não garante a estreita aproximação da justiça. Até porque, é possível questionar o que vem a ser justiça. E a resposta, vai depender dos argumentos. 318 SHOPENHAUER, Artur. Como Vencer um Debate sem Precisar ter Razão. Tradução: Daniela Caldas e Olavo de Carvalho. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003. p. 124. 182 5.4 Amar é Faculdade, Cuidar é Dever. O Reconhecimento do Abandono Afetivo no Superior Tribunal de Justiça Depois de sete anos do primeiro julgamento sobre a matéria, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, o abandono afetivo, como dano moral indenizável, tem o seu reconhecimento no âmbito daquela corte. A frase que intitula esta abordagem, “amar é faculdade, cuidar é dever”, integra o voto da Ministra Nancy Andrighi, que, em 24 Abril de 2012, resultou vitorioso no julgamento do REsp. nº 1159242/SP, pela 3ª Câmara do STJ. A decisão foi no sentido de obrigar um pai ao pagamento de indenização no valor de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais) à sua filha, em decorrência do abandono afetivo sofrido por ela, ao longo de sua infância e adolescência. Contra os argumentos apresentados pela ministra Andrighi, foi apresentado, apenas, um voto divergente, o do ministro Massami Uyeda, que restou vencido319. Não obstante o histórico do STJ, em decisões contrárias à tese da indenizabilidade do abandono afetivo, com base em argumentos semelhantes aos que foram retoricamente analisados nesta tese, constantes do voto do ministro Fernando Gonçalves, já que serviu de paradigma para o julgamento, pela mesma 4ª Turma daquela Corte, em 2009, do REsp 514350 / SP320, tendo, dessa vez, por relator, o ministro Aldir Passarinho que em seu voto, também considerou o abandono afetivo, incapaz de gerar reparação pecuniária. Naturalmente, a argumentação foi seguida pelos demais ministros integrantes daquela turma, incluindo o ministro Fernando Gonçalves, autor do voto pioneiro no STJ. No caso que originou o mais recente julgado, a autora, inicialmente, processou o pai que a tinha reconhecido como filha, de maneira forçada e tardiamente, alegando abandono material e afetivo. Não obtendo êxito em primeira instância, recorreu ao TJSP que por sua vez, reformou a decisão de primeiro grau, para condenar o pai a indenizar sua filha, no montante de R$ 415.000,00 (quatrocentos e quinze mil reais). Em sede de Recurso Especial, no STJ, o pai se muniu dos paradigmas decisórios anteriores, ressaltando o argumento de que a única consequência cabível, para os casos de reconhecimento do abandono afetivo, com previsão na legislação civil brasileira, 319 Disponível em: http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=105567. Acesso em 02 de maio de 2012. 320 Disponível em: http://www.stj.gov.br/SCON/pesquisar.jsp?b=ACOR&livre=abandono afetivo. Acesso em 02 de maio de 2012. 183 seria a perda do poder familiar. Como relatora no julgamento do referido recurso, o voto da ministra Andrighi, modificou a orientação anterior do STJ, para entender, finalmente, que o abandono afetivo gera, sim, obrigação de indenizar, por se tratar de claro e grave dano moral causado por omissão no cumprimento dos deveres parentais. Percebe-se que agora, em meados de 2012, ganha força, a plausibilidade dos argumentos centrais desta tese, que são, em sua maioria, coincidentes com a base fundante do voto da ministra. O voto apresentado pela ministra Nancy Andrighi segue um modelo de organização que divide suas principais ideias em três partes. Na primeira, a ministra apresenta o seu posicionamento no sentido de reconhecer a existência de dano moral nas relações familiares, a despeito de toda uma cultura que insiste em blindar as famílias contra a interferência do Estado, assim como, pela mistura de elementos subjetivos e objetivos que insistem em negar interesses legítimos, pela dificuldade de separar a ideia de danos concretos dos sentimentos peculiares às relações de família, na frágil argumentação que nem mais serve à teoria do dano, de que haveria imoralidade em se conferir preço aos sentimentos. Até porque não se tratam de sentimentos, mas, de condutas devidas. (...) Muitos, calcados em axiomas que se focam na existência de singularidades na relação familiar – sentimentos e emoções –, negam a possibilidade de se indenizar ou compensar os danos decorrentes do descumprimento das obrigações parentais a que estão sujeitos os genitores. Contudo, não existem restrições legais à aplicação das regras relativas à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar, no Direito de Família. Ao revés, os textos legais que regulam a matéria (art. 5º, V e X da CF e arts. 186 e 927 do CC-02) tratam do tema de maneira ampla e irrestrita, de onde é possível se inferir que regulam, inclusive, as relações nascidas dentro de um núcleo familiar, em suas diversas formas.321 Na segunda parte, a ministra apresenta os elementos de responsabilidade civil, que justificam a imputação do dever de reparar os danos, ao recorrente, mas, antes de entrar na fundamentação jurídica adotada, mais uma vez, busca afastar os elementos intangíveis que naturalmente integram as relações familiares, como os sentimentos e emoções, viabilizando uma análise mais técnica das relações jurídicas. Por isso, devem 321 Disponível em: http://www.flaviotartuce.adv.br/jurisprudencias/201205021525150.votonancy_abandonoafetivo.pdf. Acesso em: 02 de maio de 2012. 184 ser considerados critérios objetivos de verificação daqueles vínculos para que se tenha mais claro, o conjunto de direitos e deveres que a eles correspondam. (...) No entanto, a par desses elementos intangíveis, é possível se visualizar, na relação entre pais e filhos, liame objetivo e subjacente, calcado no vínculo biológico ou mesmo autoimposto – casos de adoção – para os quais há preconização constitucional e legal de obrigações mínimas. (...) Sob esse aspecto, indiscutível o vínculo não apenas afetivo, mas também legal que une pais e filhos, sendo monótono o entendimento doutrinário, de que entre os deveres inerentes ao poder familiar, destacam-se o dever de convívio, de cuidado, de criação e educação dos filhos, vetores que, por óbvio, envolvem a necessária transmissão de atenção e o acompanhamento do desenvolvimento sócio-psicológico da criança.322 Percebe-se que a ministra, neste momento, já utiliza a palavra obrigação, remetendo à sua categoria mais estrita e técnica, para se referir àquilo que a doutrina e a jurisprudência ainda insistem em chamar de deveres jurídicos, permitindo, assim, à sua conveniência, conduzir os efeitos de muitos fatos jurídicos, ora às consequências do inadimplemento, enquanto descumprimento de condutas exigíveis e, portanto, obrigadas; ora às consequências específicas de outras modalidades de deveres, excluindo a utilização dos instrumentos próprios do direito obrigacional, como tinha acontecido até então, com certa frequência com relação aos deveres jurídicos parentais. No que pertine aos elementos de responsabilidade civil, com ênfase na ilicitude do ato (nos casos de abandono, a conduta negativa) e na culpa, na sua modalidade principal de negligência, a ministra reconhece o dever de cuidado, que não precisa estar acompanhado do sentimento de cuidado, próprio de quem ama. Inclusive, o reconhecimento do valor jurídico do cuidado impõe que o desvelo com a prole não pode mais ser secundário na criação dos filhos, sendo, não apenas importante, mas, essencial à formação da personalidade das crianças e adolescentes. Neste sentido: Vê-se hoje, nas normas constitucionais, a máxima amplitude possível e, em paralelo, a cristalização do entendimento, no âmbito científico, do que já era empiricamente percebido: o cuidado é fundamental para a formação do menor e do adolescente; ganha o debate contornos mais técnicos, pois não se discute mais a mensuração do intangível – o amor – mas, sim, a verificação do cumprimento, descumprimento ou parcial cumprimento de uma obrigação legal: cuidar. 323 322 Disponível em: http://www.flaviotartuce.adv.br/jurisprudencias/201205021525150.votonancy_abandonoafetivo.pdf. Acesso em: 02 de maio de 2012. 323 Disponível em:http://www.flaviotartuce.adv.br/jurisprudencias/201205021525150.votonancy_abandonoafetivo.pdf. Acesso em: 02 de maio de 2012. 185 Ainda na segunda parte de seu voto, ainda que a ministra Andrighi, ressalte os sentimentos negativos resultantes da conduta de abandono afetivo, fica clara a sua interpretação no sentido de considerá-los, não apenas, meras consequências de um dano, mas, o próprio dano, configurado na lesão ao direito à integridade psíquica, de maneira grave, injusta e irreversível. Quanto à necessidade de se provar o dano moral, a ministra também reconhece que os fatos já são suficientes para provar a lesão, restando para tais categorias de prejuízos não econômicos, a característica de serem verificados in re ipsa. Esse sentimento íntimo que a recorrida levará, ad perpetuam, é perfeitamente apreensível e exsurge, inexoravelmente, das omissões do recorrente no exercício de seu dever de cuidado em relação à recorrida e também, de suas ações que privilegiaram parte de sua prole em detrimento dela, caracterizando o dano in re ipsa e traduzindo-se, assim, em causa eficiente à compensação.324 A terceira e última parte do voto vencedor da ministra Nancy Andrighi, foi apenas no sentido de considerar exagerado o valor da condenação atribuída pelo TJSP, no montante de R$ 415.000,00 (quatrocentos e quinze mil reais), reduzindo a indenização para R$ 200.000,00 (duzentos mil reais); Todavia, para tanto, não expôs nenhum critério objetivo que justificasse o arbitramento do atual valor, como compensação do dano moral sofrido. No entanto, muito se avançou no caminho que conduz à concretização dos objetivos humanistas mais nobres almejados pelo modelo jurídico nacional atual. 324 Disponível em:http://www.flaviotartuce.adv.br/jurisprudencias/201205021525150.votonancy_abandonoafetivo.pdf. Acesso em: 02 de maio de 2012. 186 CONCLUSÃO A palavra que melhor define a temática desta tese é responsabilidade. Em um sentido mais amplo do que o dever de reparar danos. Por responsabilidade se entende a aptidão para responder pelas obrigações, através do cumprimento dos deveres da maneira como se espera que estes sejam cumpridos, não se limitando apenas, à conduta espontânea porque ela, antes, poderá ser judicialmente exigida. A responsabilidade parental, partindo da observação de uma natural postura de cuidado que se espera dos pais em relação a seus filhos, tendo em vista que também sustenta essas relações de família, uma forte base cultural, natural e religiosa, se confunde em alguns momentos, com o sentimento de afeto tão comum entre pessoas que integram uma mesma família. No entanto, para o direito, continua ressaltado o caráter mais objetivo da relação, para salientar a conduta afetiva independentemente do sentimento de afeto que a revista. Durante muito tempo, a função de cuidar ficou ao encargo quase exclusivo das mulheres, pelo perfil desenhado pela história que as definiu como pessoas mais capacitadas aos assuntos domésticos. À mulher, competia garantir o conforto espiritual doméstico em seu papel de cuidar da casa, do marido e dos filhos. O modelo patriarcal reservou aos homens, o ambiente externo, na função de prover o lar e a prole, garantindo o conforto material necessário a uma vida digna. Esse modelo patriarcal, que marcou quase toda a história da humanidade e perdurou até recentemente, inicia sua decadência muito antes das revoluções francesa e industrial. No entanto, foi a partir delas que se acelera o processo de inserção da mulher, não apenas no mercado de trabalho, mas, também, na vida autônoma que redesenha aos poucos, seu papel em casa e fora dela. No Brasil, a inserção na Constituição Federal, dos princípios da dignidade humana, da solidariedade e da igualdade, entre outros de matiz, também, humanista e democrático, com a importância conferida pelo constituinte, impõe que se redesenhem alguns modelos jurídicos para que o espírito constitucional anime suas relações. Tal foi o caso do pátrio poder que transitou para o atual modelo denominado poder familiar, marcado pela igual responsabilidade do pai e da mãe, na construção e realização da personalidade de seus filhos, enquanto viverem o momento que o ordenamento jurídico 187 reservou como de especial e prioritária atenção, enquanto reconhecida a importância existencial dos futuros atores sociais, na vulnerabilidade de sua infância e de sua adolescência. A afetividade, enquanto conduta imposta pelas normas do poder familiar é definida pelos deveres jurídicos dos pais, objetivando satisfazer os interesses existenciais dos filhos que, hoje, vêm recebendo uma atenção pioneira na história do ordenamento jurídico brasileiro. A autoridade parental que, no modelo anterior, ressaltava a sujeição dos filhos ao poder dos pais, em uma relação mais verticalizada, hoje se apresenta como um munus para a concretização de interesses que transcendem o caráter particular das relações domésticas, considerando os interesses dos filhos, enquanto crianças e adolescentes, verdadeiros direitos humanos, primeiramente experimentados na família, mas, de responsabilidade desta, da sociedade e do Estado. Considerando o elenco dos deveres jurídicos dos pais, que corresponde aos direitos subjetivos dos filhos, na modalidade de pretensões, percebe-se que os interesses centrais a serem realizados, se voltam para a personalidade dos filhos, para que existencialmente, se cumpra o objetivo de dignidade humana, de onde se desdobram outros objetivos humanistas, também superiores. Os direitos patrimoniais, constantes das relações do poder familiar, também se voltam para a construção e realização da personalidade das crianças e adolescentes, tendo assim e também, uma base mais existencial do que econômica. A base para o exercício do poder familiar é a convivência familiar. Além de direito fundamental, de titularidade de todos os integrantes da família, é através dela que se possibilita o cuidado necessário à formação da pessoa. O pagamento de alimentos não exime o pai ou a mãe do dever de conviver, assim como a convivência não exime do dever de prover o sustento material. São deveres que se complementam para a satisfação de interesses essenciais e, por isso, superiores. Não obstante inexistir conteúdo econômico na maior parte dos direitos subjetivos que integram as relações jurídicas parentais, a relevância dos interesses que abrigam, justifica a tutela do Estado para a garantia de se verem realizados, até porque, os direitos existenciais das crianças e adolescentes são também, de responsabilidade do Estado, conforme normativa constitucional. 188 As regras do direito das obrigações, apesar de se voltarem com mais frequência, à satisfação de interesses econômicos, não excluem a possibilidade de abrigarem, tanto alguns interesses puramente morais, como também, prestações debitórias sem nenhum conteúdo econômico, desde que sérias e úteis, justificando a conduta exigível. Ainda assim, a garantia dos titulares das pretensões, continua a recair sobre o patrimônio econômico do devedor, tendo em vista que o ordenamento pátrio não autoriza as garantias que recaiam sobre a pessoa do devedor, para não ferir também, seus direitos mais fundamentais. O desdobramento patrimonial que pode tomar a responsabilidade parental, quando do descumprimento dos deveres parentais, tem por meta, primeiro, conferir eficácia às normas que regem o poder familiar, a partir da utilização da tutela inibitória. Depois, em sede de responsabilidade civil, diante da impossibilidade de cumprimento dos deveres parentais, por fatos imputados aos pais que irão suportar a indenização, a medida extrema tem um caráter pedagógico e, ainda, compensatório. Não para que se recomponha o patrimônio jurídico lesado, tendo em vista que os interesses existenciais atingidos não se recompõem, mas, para que a conduta ilícita não seja premiada pela ausência de uma resposta mais enérgica do que apenas, a perda do poder familiar, que pode, por sua vez, soar em um tom libertador, penalizando exclusivamente, a vítima, em seu momento de vida mais vulnerável. Apesar de ser um tema ainda controvertido, com decisões contrárias, inclusive no STJ, a tendência deverá ser de conferir a devida importância à responsabilidade parental. O recentíssimo voto da ministra Nancy Andrighi vem provar que o objeto de estudo desta tese não se trata de um floreio intelectual, mas, antes, de uma abordagem coerente acerca de um tema sério e útil o bastante para merecer especial atenção do Direito. 189 REFERÊNCIAS ADEODATO, João Maurício. O Silogismo Retórico (Entimema) na Argumentação Judicial. In: Ética e Retórica. Para uma teoria da dogmática jurídica. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2007. AGRA, Walber de Moura. Manual de Direito Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. ALBUQUERQUE, Fabíola Santos. Poder Familiar nas Famílias Recompostas e o art. 1.636 de CC/2002. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (org.) Afeto, Ética, Família e o Novo Código Civil. 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