R. Periodontia - Março 2008 - Volume 18 - Número 01 ENSAIOS CLÍNICOS MULTICÊNTRICOS: UMA REVISÃO DE LITERATURA Multi-center clinical trials: a literature review Flávia Sukekava1, Silvia Linard Marcelino1, Mariana Schutzer Ragghianti2, Luiz Antonio Pugliesi Alves de Lima3 RESUMO Ensaios clínicos multicêntricos são considerados o padrão ouro em pesquisa clínica. São extremamente úteis em pesquisa de doenças raras, na avaliação de novos fármacos e de novas terapias. Por atender comunidades distintas ao mesmo tempo coletando dados de diversas regiões geográficas, seus resultados podem ser interpretados como válidos para a população em geral. Apresentam como vantagem principal a redução no tempo de experimento porém são de alto custo e alta complexidade. Exigem a monitorização constante do desenvolvimento do protocolo, da coleta de dados e calibração constante dos pesquisadores participantes. UNITERMOS: ensaios clínicos, estudos multicêntricos. R Periodontia 2008;18:26-30. 1 Mestranda em Periodontia, FOUSP 2 Doutoranda em Periodontia, FOUSP 3 Professor Associado, Departamento de Estomatologia, Disciplina de Periodontia- FOUSP Recebimento: 27/07/07 - Correção: 15/10/07 - Aceite: 20/12/07 INTRODUÇÃO O ensaio clínico multicêntrico é um desenho de estudo no qual ocorre a condução simultânea e controlada de um mesmo protocolo em diversas instituições (Friedman, 1985, Imrey & Chilton, 1992, Morris 2000, Fedorov et al. 2004, Worthington, 2004, http://cancerweb.ncl.ac.uk/cgi-bin/ omd?multicenter+studies). Um dos principais objetivos para este desenho de estudo é a obtenção do tamanho ideal da amostra em um menor espaço de tempo (Friedman 1985, Gallo 2000, Morris 2000, Worthington 2004, Fedorov et al. 2004, Chuang et al. 2005) mas também é foco de atenção a obtenção de resultados em número expressivo de maneira rápida e a avaliação de variáveis em diversas amostras populacionais não relacionadas, permitindo dessa forma maior validação dos resultados (Morris 2000, Morris & Ochi, 2000, Fedorov et al. 2004, http:// cancer web.ncl.ac.uk/cgi-bin/ omd?multicenter+studies). Ensaios clínicos são usados desde a década de 40 quando Bradford Hill desenhou o ensaio clássico de estudo clínico controlado de anti-histamínicos, cortisona e estreptomicina (Hill, 1962, Worthington, 2004). Greenberg em 1959 propôs uma discussão geral da metodologia de estudos multicêntricos. 26 periomar2008rep03-04-09.pmd 26 4/9/2009, 5:09 PM R. Periodontia - 18(1):26-30 Desde a década de 60, há um aumento substancial no número de ensaios dessa natureza e de acordo com Imbrey & Chilton (1992) a metodologia geral de organização e condução de ensaios clínicos têm evoluído rapidamente a partir da década de 70 e especialmente a partir do advento da revista Ensaios Clínicos Controlados como resultado da conferência de 1977 do Instituto Nacional de Saúde (NIH). O primeiro ensaio clínico randomizado multicêntrico em Periodontia foi publicado por Goodson e colaboradores em 1991. Nesse trabalho foram apresentados resultados comparativos entre raspagem e alisamento corono-radicular e aplicação local de tetraciclina não associada ao tratamento convencional. Após este ensaio, diversos outros ensaios com o mesmo desenho têm sido executados e comprovaram o aumento do valor estatístico deste tipo de estudo (Imbrey & Chilton, 1992, Killoy, 2002). D’Agostino & Massaro (2004) discutem em sua revisão, a necessidade de maior compreensão, padronização e melhor desenvolvimento na condução dos ensaios clínicos em Odontologia. Sendo assim, esta revisão da literatura tem como objetivo esclarecer detalhes a respeito da complexidade da elaboração de desenhos de ensaios clínicos multicêntricos. Organização de ensaios clínicos Um grupo deve ser estabelecido como responsável na organização e supervisão das várias fases do estudo (planejamento, recrutamento de pesquisadores, calibração, treinamento, monitorização, análise de dados, execução dos manuscritos) nos vários centros de pesquisa. Este grupo organizado necessita ter autoridade para trabalhar efetivamente em todos os centros envolvidos (Friedman, 1985; Imbrey & Chilton, 1992). Para determinar a viabilidade de um estudo, o grupo organizado deve fazer uma busca e revisão completa da literatura. Com base nesta revisão, o tamanho da amostra e o número de centros participantes poderão ser calculados bem como a força/peso estatística/o do resultado de cada centro (Friedman 1985; Gallo 2000). A organização do grupo também tem que avaliar questões tais como o custo total, critérios de inclusão e exclusão e a presença de pesquisadores competentes. Muitas vezes, um estudo piloto é bastante útil em responder questões específicas importantes para o desenho e condução de um ensaio (Friedman, 1985). Ensaios clínicos multicêntricos requerem não somente centros clínicos para recrutar pacientes, mas também centros com atividades especializadas (execução e leitura de ensaios laboratoriais, raios X, distribuição de drogas para o estudo). É necessário um centro coordenador para auxiliar o desenho e manejo dos ensaios e para coletar e analisar dados vindos de todos os outros centros. Mesmo que os centros especializados e clínicos estejam na mesma instituição, é fundamental que estes sejam compostos por equipes distintas, de maneira a garantir o cegamento dos examinadores (Friedman, 1985). Obviamente, experiência em ensaios clínicos é uma característica desejável para os investigadores, mas não é crucial para o sucesso geral. A seleção do centro coordenador é de máxima importância, pois este será responsável por implementar o esquema de randomização, executar atividades dos ensaios, coletar, monitorizar, editar e analisar dados. O coordenador do centro necessita estar em constante comunicação com todos os outros centros. Sua equipe deve ter peritos em áreas como bioestatística, tecnologia de computação, epidemiologia, odontologia e capacidade para responder imediatamente aos problemas do ensaio (Friedman, 1985; Morris 2000; D´Agostino & Massaro, 2004). É preferível para a organização do grupo envolver investigadores que estejam engajados ao estudo durante todo seu desenvolvimento. Mais do que apresentar o protocolo final para os investigadores é recomendado que seja dado a eles tempo para discutir e se necessário modificar o desenho do estudo. Permitindo aos pesquisadores participantes contribuir com suas próprias idéias e ter uma oportunidade de participar do desenho do estudo. Qualquer mudança no desenho precisa ser cuidadosamente examinada para garantir que os objetivos básicos e capacidade de execução não sejam alterados. Isso se aplica particularmente a modificações do critério de inclusão dos indivíduos (Friedman, 1985), pois muitas vezes os critérios de exclusão podem vir a se tornar menos rígidos dada a dificuldade em se atingir o número mínimo de participantes voluntários. Estrutura organizacional Esta deve ser estabelecida com áreas claras de responsabilidade e linhas de autoridade com as seguintes equipes de trabalho: Conselho de Plano de Ação e Monitorização de Dados, Comitê Guia, Reunião de Investigadores. Conselho de Plano de Ação e Monitorização de Dados: a função de monitorar e acompanhar a evolução dos ensaios clínicos pode ser dever único do responsável pelo estudo, ou pesquisador principal. Com o estabelecimento dos conselhos, este corpo científico passa a reportar tanto para o organizador do grupo bem como para o responsável pelo estudo (que podem ser separados ou a mesma pessoa) a monitorização periódica, análise dos dados variáveis de resposta e avaliação de desempenho dos centros (Friedman, 1985; Imbrey & Chilton, 1992; Morris 2000; D´Agostino & 27 periomar2008rep03-04-09.pmd 27 4/9/2009, 5:09 PM R. Periodontia - 18(1):26-30 Massaro, 2004). Este conselho deve ser independente dos pesquisadores envolvidos ou de qualquer responsável pelo ensaio. Em diversos estudos muticêntricos as funções do conselho têm sido separadas por dois comitês independentes ou por um comitê associado a um subcomitê. O uso de dois grupos, um para revisar dados e o outro para aconselhar os problemas de plano de ação, tem a vantagem teórica de prover revisões adicionais. O coordenador deve apresentar os dados tabulados, gráficos e análises apropriadas para o comitê de plano de ação e monitorização de dados para que este faça a revisão. Um dos membros desse conselho deve ser da área estudada, com conhecimentos em metodologia de ensaio clínico e em bioestatística. A responsabilidade ética deste comitê é justificada por garantir a segurança dos voluntários participantes do estudo e também em estudos duplo-cego para que os investigadores individuais não tenham consciência dos grupos designados (Friedman, 1985; Morris 2000). Comitê Guia: em estudos maiores esse comitê proporciona direcionamento científico para o estudo em um nível operacional. Seus membros são retirados do corpo de pesquisadores participantes do ensaio. Os subcomitês são freqüentemente estabelecidos para garantir ao estudo maior cooperação, controle de qualidade, classificação das respostas variáveis e descrição das diretrizes dos planos de ação para então reportá-los ao Comitê Guia. Atividades de monitorização diária do ensaio, elaboração de memorandos ou artigos científicos, podem ser tomadas por um pequeno subgrupo entre os encontros do Comitê Guia e questões de maior relevância devem ser discutidas com os pesquisadores (Friedman, 1985). Morris (2000) exemplifica detalhadamente as ações praticadas por todos os comitês e comissões em seu estudo a respeito da eficácia e eficiência de implantes osseointegrados. Neste estudo foram instalados mais de 2.900 implantes, em 32 centros de pesquisa durante 5 anos. Reunião de Investigadores: este comitê representa todos os centros participantes de um ensaio. Em estudos menores, esta reunião deve se igualar em importância e responsabilidades ao Comitê Guia. O objetivo dos encontros dos investigadores é mantê-los familiarizados com o progresso do estudo, providenciar oportunidades para treinamento e calibração da equipe (Friedman, 1985) e discutir assuntos pertinentes ao bom desenvolvimento do protocolo de pesquisa. Estudos multidisciplinares necessitam de uma estrutura cuidadosamente organizada pois a presença de pesquisadores de áreas diversas podem trazer benefícios bem como também causar problemas. Qualidade do estudo Ensaios multicêntricos devem tentar manter o padrão de qualidade semelhante ao obtido em ensaios cuidadosamente conduzidos em um único centro. Para que a qualidade seja mantida deve-se dar ênfase ao treinamento e calibração. É importante que as equipes de todos os centros entendam as definições dos protocolos (Friedman, 1985; Morris & Ochi, 2000). As diferenças no desempenho de um centro para o outro, assim como entre indivíduos de um mesmo centro, podem ser minimizadas pelo treinamento, calibração e monitorização (Friedman, 1985; Morris & Ochi, 2000) ou mesmo serem antecipadas por cálculos matemáticos que prevêem a influência deletéria de variáveis nos centros (Gallo 2000; Fedorov et al. 2004; Dragalin & Fedorov, 2006). Os encontros da reunião de investigadores direcionam o sucesso do ensaio porque eles fornecem oportunidades de discutir problemas em comum e revisar corretamente meios de coletar dados e completar os formulários do estudo (Friedman, 1985). A monitorização cuidadosa de cada centro tem como objetivo identificar centros que apresentam desempenho aquém do esperado. Em todos os ensaios clínicos, o recrutamento de indivíduos é difícil. Em um ensaio clínico cooperativo existe uma oportunidade para alguns centros clínicos compensarem o desempenho inadequado dos outros (Friedman, 1985; Morris & Ochi, 2000), Gallo (2000), Fedorov et al. (2004) e Dragalin & Fedorov (2006) mostram cálculos estatísticos e matemáticos capazes de antecipar a segurança dos dados fornecidos por diversos centros em função das variáveis testadas, tamanho e número de centros e de participantes voluntários. Morris & Ochi (2000), em seu estudo multicêntrico prospectivo de 5 anos, relaciona a influência da experiência dos pesquisadores em diferentes centros e a taxa de sobrevivência em implantes osseointegrados. Os autores realçaram a importância da comunicação constante entre os centros participantes para que sempre haja calibração entre os pesquisadores. Os resultados mostraram que as menores taxas de sucesso estavam nos centros com pesquisadores de menor experiência ao início do estudo. CONSIDERAÇÕES FINAIS Estudos multicêntricos permitem aos pesquisadores com interesses e habilidades similares trabalharem juntos em um mesmo problema. Este tipo de ensaio clínico é uma ferramenta importante para avaliar o tratamento de doenças raras, a inter-relação existente entre doenças como doença periodontal e diabetes mellitus, doença periodontal e pneumonia nosocomial, estudar a influência do meio ambiente e 28 periomar2008rep03-04-09.pmd 28 4/9/2009, 5:09 PM R. Periodontia - 18(1):26-30 da cultura sobre o processo saúde-doença e também é considerado o padrão ouro para avaliar a eficácia terapêutica em pesquisa odontológica (Morris 2000; Morris & Ochi, 2000; Lamster & Lalla, 2001; Scannapieco et al. 2003; Chuang et al. 2005). Para a realização desses ensaios clínicos os investigadores devem estar cientes das dificuldades potenciais inerentes a este tipo de ensaio. Isto é particularmente verdadeiro para ensaios maiores devido ao tamanho da amostra, complexidade e grande número de investigadores com diversos interesses e experiências. É responsabilidade do centro de coordenação manter contato freqüente com todos os outros centros, da mesma forma o inverso de todos os centros para o centro de coordenação. Os líderes do estudo também precisam manter contato com os vários centros e comitês, monitorando de maneira próxima a condução do ensaio (Friedman 1985; Morris 2000; Morris & Ochi, 2000). Além da manutenção da estrutura organizacional o custo é uma preocupação em ensaios multicêntricos. Os gastos podem ser racionalizados já na fase de planejamento visan- do reduzir o número de ensaios laboratoriais e simplificar a coleta de dados. Outro aspecto importante a ser observado é a constância no enfoque principal do ensaio porque, se muitas variáveis forem acrescentadas aleatoriamente, o objetivo inicial pode não ser alcançado (Friedman 1985; D´Agostino & Massaro, 2004). ABSTRACT Multi-center clinical trials are considered the gold standard in clinical research. They are extremely useful in research of rare diseases, new drugs and therapies evaluation. Their results can be generalized because the experiments are executed in different geographycal regions. The main advantage is reduction of the time needed for completion of the study but they have high costs and complexities. Trials demand constant monitoring to protocol development, data collection and constant calibration of the investigators. UNITERMS: clinical trials, multicentric studies REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1- Chuang SK, Hatch JP, Rugh J, Dosdon TB. 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