UNIVERSIDADE DE MARÍLIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO Jornalismo Literário: Reflexões sobre uma abordagem alternativa ao fazer jornalístico. MARÍLIA/SP 2010 2 UNIVERSIDADE DE MARÍLIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO Jornalismo Literário: Reflexões sobre uma abordagem alternativa ao fazer jornalístico. CLODONEI COLOMBO FILHO Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Unimar, na área de concentração em Mídia e Cultura, como requisito para a obtenção do título de Mestre em Comunicação, sob a orientação da Prof ª. Drª. Rosangela Marçolla. MARÍLIA/SP 2010 3 Colombo Filho, Clodonei Jornalismo Literário: Reflexões sobre uma abordagem alternativa ao fazer jornalístico/ Clodonei Colombo Filho -- Marília: UNIMAR, 2010. 130f. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Curso de Comunicação da Universidade de Marília, Marília, 2010. 1. Jornalismo Literário 2. Cobertura Convencional 3. Processo Jornalístico I. Colombo Filho, Clodonei. CDD -070.4 4 Autor: Clodonei Colombo Filho Título: Jornalismo Literário: Reflexões sobre uma abordagem alternativa ao fazer jornalístico. Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Comunicação da Universidade de Marília, área de concentração Mídia e Cultura, sob a orientação da Profª Drª Rosângela Marçolla. Aprovado pela Banca Examinadora em 10/ 06 /2010. ______________________________________________________ Profª Drª Rosângela Marçolla Orientadora _______________________________________________________ Prof. Dr. Roberto Reis de Oliveira _______________________________________________________ Profª Dr. Deodoro Moreira 5 A Deus. 6 Agradecimentos A Deus, por ter me dado uma vida maravilhosa. À minha família, por acreditar em mim e me dar total apoio. Por me suportar nos muitos momentos de nervoso e por rir comigo nos raros momentos de descontração. Por entenderem (não sempre) que eu teria de ficar de fora dos almoços de domingo com os avós. E por não deixarem de me apoiar mesmo quando eu mesmo não me suportava. Aos meus avós, que chegaram a pensar que eu não gostava deles por faltar aos almoços de domingo. “Eu estava fazendo esse trabalho, vó!”. A Viviane, minha companheira que, como meus pais, me suportou nos muitos momentos de tensão. Aos meus professores de graduação, que me deram a base para chegar até aqui. Aos professores do mestrado, companheiros nessa caminhada difícil. Professor Dr.Roberto Reis de Oliveira. O que dizer? Chato! Você é um chato, Roberto! Mas também foi um dos melhores professores que já tive. Ético, honesto consigo e com seu trabalho, competente. Aprendi muito contigo. Professora Drª. Lucia Miranda. Fácil falar de ti, portuga! De uma simplicidade assustadora, amiga, companheira, apaixonada. Sim, apaixonada. Por sua profissão, por aqueles que estão a sua volta, pelos Maias (claro!), pela vida. Você me ensinou a encenar! Que absurdo! O que você não fez de bom aqui? A Drª Rosângela Marçolla, companheira desde a graduação. A mãe deste trabalho. Sem ela talvez eu nem teria conhecido o tema de meu estudo. O jeitão serene, muitooo tranqüilo, chega a preocupar. “No fim dá tudo certo. Se não der é porque não chegou no fim ainda” – ela sempre diz. Meus textos sempre estão bons né, professora? Sempre que chegava apavorado na faculdade com alguma questão do trabalho ela vinha com seu discurso mais do que otimista: “Calma, Nei. Oh, to gostando do trabalho hein! Continua assim”. Muito obrigado pela dedicação e confiança, professora. À professora Andréia, que me ajudou muito com as aulas de didática. Um exemplo de caráter e competência. 7 Aos colegas de graduação e mestrado, que fizeram parte dessa caminhada de alguma forma. A Luziá Ferreira, que gentilmente nos atendeu e possibilitou a entrevista com Caco Barcellos. Este a quem, aliás, devemos nossos sinceros agradecimentos. Enfim, a todos que confiaram em mim, me suportaram nos momentos (não raros) de tensão. Muito obrigado a todos! 8 “Almejas voar mas temes ficar tonto?” (Goethe) 9 Resumo Este trabalho faz um histórico descritivo do jornalismo literário. Mostra as principais características desse estilo de cobertura que teve seu ápice na década de 60, nos Estados Unidos. Evidencia as características do estilo de cobertura convencional, praticado por boa parte dos veículos de comunicação brasileiros. E, dessa forma, procura trazer reflexões concernentes ao processo jornalístico no intento de buscar possíveis melhorias para o fazer jornalístico. Realizamos ainda um estudo de caso das obras Rota 66 e O Abusado, de Caco Barcellos. Essa análise tem como objetivo apontar as principais características das narrativas do jornalista, além de nos ajudar a exemplificar parte do referencial teórico que utilizamos durante esse estudo. As reportagens presentes nos livros e também no programa Profissão Repórter (também comandado por Barcellos) nos mostra características que vão ao encontro da proposta do jornalismo literário e, portanto, é de suma importância para esse estudo. Palavras-chave: Jornalismo literário, cobertura convencional, processo jornalístico, Caco Barcellos. 10 Abstract This study is a descriptive history of literary journalism. Shows the main characteristics of this style of coverage that peaked in the 60s, the United States. Shows the characteristics of the conventional style of coverage, practiced by much of the media in Brazil. And thus, seeks to bring reflections concerning the journalistic process in an attempt to seek possible improvements to do journalism. We also performed a case study of the works Route 66 and the Abused, Caco Barcellos. This analysis aims to point out the main features of the narratives of the journalist, and helps us to illustrate part of the theoretical framework that we used during this study. The stories contained in books and on the program Profession Reporter (also led by Barcellos) shows features that go with the proposal of literary journalism, and thus is of paramount importance for this study. Keywords: literary journalism, covering conventional, journalistic process, Caco Barcellos. 11 Sumário Apresentação 12 CAPÍTULO I: Alguns apontamentos sobre o processo jornalístico na imprensa convencional 1. Propensão Humana em contar histórias 23 1.2. Lead e a fórmula piramidal 25 1.3. Entrevistas 31 1.4. Cenário 37 CAPÍTULO II: New Journalism e os pilares do Jornalismo Literário 2.1. Histórico e contexto 42 2.2. Descrição cena-a-cena e Diálogos 46 2.3. Simbolismo e Estilo próprio 49 2.4. Humanização 57 2.5. Imersão, exatidão de dados e fluxo de consciência 59 2.6. Pesquisa norte-americana 64 CAPÍTULO III: Novo Jornalismo no Brasil - Impresso 3.1. Passagem dos grandes escribas pelas páginas jornalísticas brasileiras 70 12 3.2. Influência da corrente norte-americana nas produções verde-amarelas: Realidade e Jornal da Tarde. 73 3.3. Revista Realidade na Guerra 80 3.4. Outros projetos 81 3.5. Livros 87 CAPÍTULO IV: Análise de conteúdo 4.1. Cláudio Barcelos de Barcelos: breve histórico e análise do livro Rota 66. 92 4.2. Abusado: o dono do morro Dona Marta 104 4.3. Profissão Repórter: histórico e elementos narrativos 111 4.4. O narrador no Profissão Repórter 115 Considerações finais 121 Referências __________________________________________________________ 123 Anexos_______________________________________________________________129 13 Apresentação O sujeito magro, quase careca, daqueles de poucos fios ao lado da cabeça, com uma barriga saliente e o pensamento no umbigo do mundo, tira a carteira do bolso e se identifica para o despachante. - Sou jornalista – diz. - Jornalista, é? - É, jornalista!!! - E por que o jornalista precisa de um despachante? - Quero fazer uma reportagem comparativa e preciso entrar em dois lugares muito diferentes. Você pode me ajudar? O despachante analisa a face amarela do homem à sua frente. Fixa os olhos na testa longa, umedecida, revelando a oleosidade da pele fina. Tenta adivinhar seus pensamentos, mas esbarra na concentração tibetana do jornalista, que devolve o olhar fixo com uma intensidade maior, quase fulminante, reservada apenas àqueles que acreditam ter uma missão a cumprir. - E a que lugares o amigo deseja ir? - Ao céu e ao inferno – respondeu o repórter. - Hummmmm!!! Não é tão difícil. As estradas parecem opostas, mas são paralelas. 14 Da gaveta da escrivaninha, o despachante puxa uma lista de formulários já carimbados e entrega-os ao repórter. Após o preenchimento, assina dois passes quase idênticos, grampeia os canhotos das fichas e coloca-os em plásticos transparentes. - Aqui estão os passes. São válidos para uma única entrada em cada local. Você sabe a quem procurar? - Sei- respondeu o jornalista. - Então, boa sorte. Com os documentos no bolso, o jornalista encaminha-se para o inferno. É recebido pelo Demônio em pessoa no portal de fogo que dá acesso ao local. Passa por um corredor estreito, vira à direita em uma pequena ante- sala e logo se depara com o salão principal, de tamanho infinito, onde estão milhões de pessoas. Ao analisar os habitantes daquele antro, repara na felicidade geral. Todos estão cantando, dançando e rindo à toa. Parecem gozar de boa saúde, não têm aborrecimentos, passam o dia em festas, não há ofensas, doenças, humilhações, inveja ou qualquer outro tipo de mazela. A paisagem é paradisíaca. Árvores frutíferas, cachoeiras, rios de água transparente, longos vales e montanhas. Um lugar fantástico, pensa, não fosse por um único detalhe: depois de um certo tempo, todos acabam morrendo de fome, já que os moradores do inferno têm os cotovelos invertidos e não podem levar comida até a boca. Sem conseguir tirar aquela imagem da cabeça, retira-se pela mesma porta por onde entrara. Intrigado e perplexo, segue viagem rumo ao céu, a segunda metade do itinerário de sua reportagem, imaginando a frustração que deve ser morrer de fome em lugar tão bonito como o inferno. Tudo por culpa dos cotovelos invertidos. Quando chega ao destino, passa pelo mesmo ritual. Entrega os documentos a São Pedro, que o conduz a um grande portão de nuvens. Passa 15 por um corredor estreito, vira à direita numa ante- sala e, novamente, depara-se com um salão infinito. Lá dentro, a surpresa: estava diante das mesmas pessoas, das mesmas paisagens, da mesma felicidade. No céu, assim como no inferno, todos riam, tinham saúde e também passavam o dia em festas. Da mesma forma, ali estavam as árvores frutíferas, os rios, os vales e as montanhas, como se fossem cópias do que vira na primeira parte de sua viagem. Passou, então, a observar os habitantes do céu e logo percebeu que eles também tinham os cotovelos invertidos. Pensou: - Aqui, eles também devem morrer de fome depois de um tempo. Estava errado. No céu, ninguém morre de fome, porque cada um leva a comida à boca do próximo na hora das refeições. E essa é a única coisa que o diferencia do inferno. Conhecida como fábula dos cotovelos, essa história, de procedência desconhecida, tem uma moral óbvia. Prega a solidariedade e a fraternidade. O problema é que isso nem sempre é percebido. Há uma cegueira ética afetando uma parcela da humanidade, cujos valores mais básicos estão sendo esquecidos ou substituídos pelos ideais de políticos e pela sociedade de consumo. A cidadania é um termo cada vez menos respeitado nesse país. No meio disso tudo entra também o jornalismo. O que deveria ser uma profissão ligada às causas da coletividade vem se transformando, salvo algumas exceções, em um palco de futilidades, exploração do grotesco e da espetacularização. O valor do ser humano, de suas vidas, emoções e fraquezas, deixaram de ter importância para boa parte dos veículos de comunicação no Brasil. O processo jornalístico atual tem como preceito a busca pela verdade absoluta dos fatos, além da busca pela objetividade e isenção do jornalista. E quais são os resultados dessa cobertura? Como estão nossas produções jornalísticas atualmente? Nosso estudo pretende buscar essas e outras respostas concernentes ao processo jornalístico atual. Para tanto traremos alguns exemplos de produções feitas pela imprensa 16 convencional – leia-se o jornalismo praticado com características industriais, tendo como base a fórmula piramidal e o lead - e também algumas publicações de estilo literário. Nosso objetivo é fazer um histórico descritivo sobre o jornalismo literário (JL) e tentar mostrar que o jornalismo precisa rever seus conceitos. A análise das obras Rota 66 e Abusado, de Caco Barcellos, tem o intuito de exemplificar e mostrar as características de produções de estilo literário. O jornalismo passa por um momento de forte crise. Muitas discussões são travadas para tentar dizer se o fim do jornal impresso é ou não possível e iminente. A obrigatoriedade do diploma de jornalista para a atuação profissional chegou a ser contestada e, pior, chegou-se a uma decisão de que não deveria ser mais exigido. Nossa pesquisa pretende mostrar que o fazer jornalístico deve ser repensado. Devemos lançar olhares mais atentos para nossos textos, nossa apuração, nossas entrevistas e, enfim, para tudo que envolve o processo jornalístico. O jornalismo literário passou a me chamar a atenção quando ainda estava na faculdade. Até o terceiro ano da graduação professores diziam que o texto jornalístico deveria contar com as respostas do lead ainda nos primeiros parágrafos e, posteriormente as informações deveriam ser dispostas em ordem decrescente de importância, ou seja, deveria estar na fórmula da pirâmide invertida. O texto deveria ser objetivo e nós (jornalistas) teríamos de buscar a verdade dos acontecimentos e trabalhar como mediador entre essas informações e o leitor. Em suma, aprendemos a “mecânica” do processo jornalístico. Também fomos avisados sobre os fatores mercadológicos que envolvem toda a atividade jornalística. Conheci o jornalismo literário no fim do terceiro ano de graduação, através da então recém chegada à Universidade, Rosangela Marçolla. De fala mansa, olhar atento e jeitão de mãezona, a professora conquistou a classe com suas histórias. Dizia-nos que o jornalista deveria ser um contador de histórias, que tinhamos que conversar com as pessoas com atenção aos detalhes, observar tudo o que cercava o ambiente dessa entrevista e, enfim, contar de uma maneira que envolvesse o leitor. Foi assim que passei a me interessar pelo JL. E dessa forma decidi que meu trabalho de conclusão de curso seguiria o estilo desse “novo jeito de fazer jornalismo”. Junto com meu colega, Ismael Rodrigo, decidi contar histórias de pessoas. Seus dramas, alegrias, tristezas, aflições, dificuldades. A experiência me mostrou, de maneira resumida, que o jornalista precisa ouvir mais, observar melhor, escrever com mais vontade, trazer 17 textos que instiguem o leitor e o mantenham acordado. Mostrou que o jornalismo de maneira geral está muito superficial. Para compor o arcabouço teórico de nosso trabalho utilizamos obras de autores como Edvaldo Pereira Lima e Cremilda Medina, além de algumas outras referências como Tom Wolfe, um dos expoentes da corrente norte-americana denominada New Journalism. Cremilda Medina identifica o que considera ser um dos graves erros praticados pelos veículos de comunicação: [...] enquanto insistirmos na competência do fazer, despojada de significado humano, pouco se avançará no diálogo possível numa sociedade em que impera a divisão, a grupalidade, a solidão. Se os meios são de comunicação, que se encare então o que é comunicar, interligar. O maior obstáculo é o dirigismo com que se executam as tarefas de comunicação social. Na maior parte das circunstâncias, o jornalista (comunicador) imprime o ritmo de sua pauta e até mesmo preestabelece as respostas; o interlocutor é conduzido a tais resultados. A caricatura deste fato se difunde por aí em entrevistas de televisão, cujo script é pré-moldado, ensaiado, ficando pouca margem para o entrevistado decidir qual o rumo de seu pensamento ou de seu comportamento. O que menos interessa é o modo de ser e o modo de dizer daquela pessoa. O que efetivamente interessa é cumprir a pauta que a redação de determinado veículo decidiu. (MEDINA apud LIMA, 2009, p.91) Pretendemos evidenciar que o mecanismo que se criou para a cobertura jornalística é ineficiente, ilusório. Que as produções restritas às fórmulas prontas de captação e edição são incapazes de traduzir com fidelidade toda a complexidade dos fatos. Faz parte de nossa pretensão com esse estudo tentar mostrar ainda quais são os resultados dessa cobertura que se adaptou às regras impostas pela industrialização. Queremos evidenciar a superficialidade encontrada diariamente em páginas de jornais. Mostrar que as produções jornalísticas precisam sofrer algumas alterações no seu modo de fazer. Precisa trazer atrativos para que o leitor se sinta instigado a ler. Diferenciais. Bons textos. Entrevistas livres de regras de como fazer. Tudo no intento de tornar jornais mais agradáveis e de resgatar seus leitores que, hoje, podem encontrar notícias rápidas e objetivas em suportes como a internet e a TV. Não temos a pretensão de execrar as produções ou veículos que utilizam a fórmula piramidal e o lead, pois entendemos que o uso dessas técnicas ainda são úteis e necessárias tendo 18 em vista que o jornalismo pode ser considerado como uma das pontas de um iceberg chamado Indústria Cultural. Nosso objetivo é evidenciar que as boas histórias trariam uma boa contribuição paras as páginas de jornais. Que serviriam como opção para os leitores buscarem um maior aprofundamento sobre determinado assunto e, em conseqüência disso, contribuiria para o aumento das vendas de jornais. Felipe Pena tece um comentário que vai ao encontro de nossa proposta e diz que essa mudança significa: [...] potencializar os recursos do Jornalismo, ultrapassar os limites dos acontecimentos cotidianos, proporcionar visões amplas da realidade, exercer plenamente a cidadania, romper as correntes burocráticas do lead, evitar os definidores primários e, principalmente, garantir perenidade e profundidade aos relatos. No dia seguinte, o texto deve servir para algo mais do que simplesmente embrulhar o peixe na feira. (PENA, 2006, p. 13) Voltando à fábula dos cotovelos, podemos imaginar que a atitude do jornalista convencional naquele ambiente seria a de se preocupar com dados referentes ao ambiente, alguns depoimentos dos responsáveis pelo céu e inferno e só. Depois esse jornalista traria essas informações de maneira objetiva e seca, num texto sem graça e pouco chamativo. O jornalista de estilo literário tentaria conversar com o maior número de pessoas possível. Buscaria informações de como é viver nesses lugares, quais os desafios, surpresas, tristezas, alegrias dessas pessoas. Observaria com atenção todos os detalhes dos locais. E depois contaria sobre todo o universo que conheceu de maneira detalhada, falando sobre os cheiros, sentimentos, enfim, percepções de jornalista e ser humano. Sim, jornalista também tem coração, alma. Chora, ri, se emociona. E isso não é “botar florzinha no texto”. Isso é contextualizar, trazer informações suficientes para que seu leitor possa refletir e chegar à conclusão de que morar no céu é melhor porque lá eles não morreriam. Isso é contribuir com a sociedade. Isso é jornalismo. Essa breve contextualização serve para mostrar o porquê de pesquisar o jornalismo literário, quando surgiu esse interesse, quais questões gostaríamos de responder durante esse trabalho. Essa pesquisa pretende lançar algumas questões sobre o fazer jornalístico atual, mostrar com teoria e exemplos práticos o que é o jornalismo literário, qual seu contexto histórico, algumas experiências com o estilo e, enfim, apresentar o que consideramos uma proposta ideal 19 para que busquemos um jornalismo com textos interessantes, comprometidos, e que ainda traga alguma contribuição social. Faremos também uma análise sobre os elementos literários nas narrativas dos livros Abusado: o dono do morro Dona Marta e Rota 66, de Caco Barcellos, no intento de exemplificar parte do referencial teórico que utilizaremos nesse estudo. Em suma, gostaríamos de apresentar o jornalismo literário como uma proposta de cobertura para que se revigore o jornalismo brasileiro. Você poderá ler nesse trabalho, por exemplo, o “mais amplo estudo sobre leitura de jornais já realizado nos Estados Unidos” promovido pelas instituições americanas American Society of Newspapers Editors (www.asne.org), entidade que congrega cerca de 900 editores-diretores de diários; a Newspaper Association of America (www.naa.org), organização das empresas editoras de jornais nos Estados Unidos e no Canadá, com mais de 2.000 jornais filiados, totalizando um negócio total de mais de US$ 57 bilhões; e o Media Management Center (www.mediamanagementcenter.org), da Universidade Northwestern. Acredito que esse estudo chamará sua atenção e, ainda, servirá para que tentemos confirmar nossa hipótese de que o jornalismo precisa ser repensado e precisa resgatar o valor das boas histórias. Queria então dividir com os leitores desse estudo um texto meu. Essa reportagem faz parte do livro-reportagem que junto com Ismael Rodrigo escrevi como trabalho de conclusão de curso, em 2007. O livro Nos Bastidores da Saúde Pública traz narrativas de dramas enfrentados por usuários e funcionários do Sistema Único de Saúde (SUS) na cidade de Marília. Mostra a história de pessoas comuns que dependem de um sistema precário e defasado. Conversamos com várias pessoas na porta de hospitais, postos de saúde e até mesmo em suas casas para tentar fazer um retrato do SUS. O livro está dividido em 14 pequenas reportagens. Não era nossa intenção fazer um aprofundamento maior dos casos, mas sim mostrar em pequenos fragmentos o drama de vários cidadãos. A experiência nos fez, sobretudo, perceber a importância de nossa profissão. Fez-me acreditar que deveria pesquisar maneiras para tornar o jornalismo ainda mais social, mais empolgante e atrativo. A narrativa a seguir traz o depoimento da trabalhadora Elaine Silva, e se tornou uma das prediletas da orientadora do trabalho, professora Rosangela Marçolla. Consigo imaginar Silva pegando esse trabalho e lendo sua história ali, depois de alguns anos: “Olha só, até que eu tô importante!” – diria ela. 20 “Nó-du-lo. Pode?!” Clodonei Colombo Filho Noite gelada do mês de julho, 8h30. O próximo cenário de entrevistas é um posto de saúde que atende durante as 24h do dia, em um bairro da zona norte. Barulho de sirene ao longe, ecoando. Levando ou trazendo vidas. Crianças e seus choros, de todos os tons, ficam na memória. Enfermeiras gritam os nomes dos próximos a serem atendidos sem demonstrar muita paciência na voz: Renata Oliveira...Renaaaata! Por ali, na sala de espera, mães acompanham um total de 13 crianças que choram e tentam dizer o que sentem. As mães sabem o que querem: “Aqui sempre falta médico, falta pediatra, clinico geral”. As crianças não se surpreendem com nossa presença. Não se entusiasmam. Estão “dodói”. Querem atendimento. Ali há mais de uma hora, a auxiliar de enfermagem bem vestida, de sapatos brancos impecavelmente limpos e cabelos bem arrumados se sentiu insegura em falar conosco sobre o assunto. “É a primeira vez que preciso ser atendida aqui e já estou esperando há um tempo considerável. Minha irmã sempre vem aqui e reclama que o atendimento é péssimo. Não posso falar muito com vocês sobre o SUS, pois trabalho como auxiliar de enfermagem em hospital público e tenho medo de me comprometer”. Os choros das crianças não cessam e as mães ficam apreensivas e impacientes. Dona Marilene acompanha a filha e a neta (a criança que está doente). A pequena Júlia, 3 anos, se aconchega no colo da avó. Os bancos frios da unidade revelam apenas mais um desconforto para esses pacientes. Julinha, como a chamamos para tentar animá-la, vomitou duas vezes nesse dia e já não tem no olhar o brilho que revela a alegria de ser criança. A mãe se sente penalizada, e lamenta: “Já vim aqui algumas vezes e não havia pediatra. Hoje chegamos e eles nos mandaram esperar. Eu não ligo de esperar, mas criança não pensa assim”. Durante a entrevista, a criança vomita próximo a nós. Inconformada, a mãe pede para que a menina seja atendida. A criança pede, impaciente: Vóóó, cadê o pai? E a resposta vem com a 21 voz paciente e calma da carinhosa avó: O papai tá trabalhando, filha. Mas já já nós vamos embora, tá? Fica boazinha! Alguns funcionários percebem nossa presença e, então, Júlia recebe atendimento. “O que está acontecendo, mãe? – pergunta a enfermeira. Do lado de fora do posto, mais espera e desânimo. Desolados, alguns percebem em nós a oportunidade para um desabafo. Ali o vento provoca o frio, lá dentro os funcionários, desmotivados, se encarregam de tal tarefa. “Somos tratados como bichos”, diz a trabalhadora Elaine da Silva, 28. Sentada em mais um banco frio, em um canto escuro do lado de fora do posto, Silva reclama do atendimento, falta de médicos, descaso de funcionários e dor, muita dor no dente. “Vim até aqui a semana passada para que a dentista arrancasse um dente que doía muito. Ela não conseguiu, disse que não tinha anestesia e , para piorar, machucou meu maxilar”. A jovem de moletom e touca, olhar alegre, olhos bem escuros e brilhantes, parece tentar se esconder da realidade em que vive. Do descaso com que é obrigada a conviver. Para sobreviver cata papéis pelas ruas da cidade de Marília há 8 anos. Nos conta das dificuldades da vida que leva no dia-a-dia. “Imagina você ficar o dia inteiro de baixo de chuva, sol e frio e ainda ganhar uma miséria no fim do mês. Não é fácil! Já tive sonhos de ser uma pessoa bem sucedida, mas não deu certo. Hoje trabalho o dia todo até sabe lá Deus que horas para manter meus 2 filhos. Mas tá difícil, porque com essa dor não estou comendo nem dormindo por mais de uma semana”. A trabalhadora lamenta o fato de o Brasil ser um país desigual, onde só os que têm condições financeiras para bancar um atendimento digno podem ter uma vida mais justa e feliz. “Os políticos sempre falam que vai haver melhorias na área da saúde, mas a única melhoria que acontece é nos bolsos deles, que enchem de dinheiro”. Comentamos com Silva o fato de uma parte dos impostos pagos pelos cidadãos serem destinados à saúde e, temos a resposta: “Hãnn!? Pagar IPTU? Para que? Já cansei de pagar 22 impostos, não pago mais. Não é justo, não vejo melhorias. Só descaso e tratamento diferenciado para quem tem dinheiro. A desigualdade chega a ser engraçada, pois o pobre quando tem câncer fala logo que está com a doença maldita e pronto. O rico? O rico não! Ele diz que está com ‘nódu-lo’. Pode?” Elaine Silva afirma desanimada que a saúde em Marília é um lixo. “Naquele HC (Hospital de Clínicas) você vê gente jogada no chão, sem atendimento. Pessoas de idade, crianças. Eu mesma tive meu neném no lado de fora do hospital, nos bancos frios que ficam na entrada. - O quê? – perguntamos, inconformados. - Ééé, meu filho! Só tive atendimento porque apareceu um homem meio maluco por lá, me viu naquela situação e foi buscar um médico aos puxões. Imagine o ânimo que uma cidadã tem de pagar seus impostos depois de acontecer uma coisa dessas”. Cansada e com fome, Silva nos diz que está há uma semana só tomando água e deixa uma mensagem para médicos e funcionários: “Gostaria que esses médicos aí se lembrassem do juramento que fizeram ao receber seu diploma. Eles são pagos para nos atender e se o salário não é o suficiente, que saiam, mas não nos tratem como animais” No fundo dos olhos brilhantes, percebemos uma esperança ainda viva.“Queria ser advogada ou, ao menos, ter um emprego digno, de vendedora de loja, por exemplo. Mas, às vezes, desanima, sabe?” 23 24 Capítulo I Alguns apontamentos sobre o processo jornalístico na imprensa convencional 1. Propensão Humana em contar histórias Neste primeiro capítulo pretendemos evidenciar alguns aspectos do processo jornalístico convencional, praticado por uma grande parcela dos veículos de comunicação brasileiros. Isso para que possamos mais adiante comparar o estilo convencional com a cobertura de estilo literário. Ao estudar o narrador na obra de Nikolai Leskov, Walter Benjamim (1985, p.201) parecia prever um dilema que afetaria também o mundo contemporâneo. O autor revela que o ato de narrar perde sua vitalidade no momento de exacerbação de uma prática cotidiana burocratizante e limitadora. Essa prática remete a uma sociedade urbana e industrial, onde surge também a indústria cultural e, com ela, a comunicação de massa, que desenvolve um padrão jornalístico de conteúdo racional e técnico, atrelando a eficiência da tecnologia à ânsia de gerar lucros. A informação ou a produção exagerada de textos noticiosos, que surge neste contexto, para Benjamin é um dos responsáveis pela morte das narrativas. [...] verificamos que com a consolidação da burguesia - da qual a imprensa, no alto capitalismo, é um dos instrumentos mais importantes – destacou-se uma forma de comunicação que, por mais antigas que fossem suas origens, nunca havia influenciado decisivamente a forma épica. Agora ela exerce essa influência. Ela é tão estranha à narrativa como o romance, mas é mais ameaçadora que o próprio romance. Essa nova forma de comunicação é a informação (1985, p. 202) (grifo nosso). Para Benjamim, a informação é um dos responsáveis pela morte das narrativas, pois assim como o romance não procede nem alimenta as histórias orais. Para Walter Benjamim a morte das narrativas é um fator preocupante, pois estas “tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa atividade pode consistir 25 seja num ensinamento moral, numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida - de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos” (1985, p.200). Edvaldo Pereira Lima (2009, p. 357-358) revela que um sério problema afeta as publicações jornalísticas no Brasil. Diz que, artificialmente, a imprensa convencional esqueceu-se da propensão humana de contar historias, dos relatos orais, das narrativas pictográficas e das conversas ao redor da fogueira em tempos imemoriais. Que o sistema criado pela imprensa racional vai à contramão de uma tendência humana de contar, ouvir e ler histórias. A arte de narrar faz parte de nosso cotidiano. Nossas ações e atitudes têm relação com tudo o que apreendemos com as histórias orais. Histórias como contos e fábulas foram preservadas oralmente pelo povo e são recontadas até hoje em diferentes contextos. Para Norval Baitello Júnior (1999, p. 37) esse ato intrínseco à vida humana: [...] significou e significa para o homem atribuir nexos e sentidos, transformando os fatos captados por sua percepção em símbolos mais ou menos complexos, vale dizer, em encadeamentos, correntes, associações de alguns ou de muitos elos sígnicos. As velhas e boas histórias as quais ouvimos com prazer serem contadas por nossos pais e avós também são usadas pela mídia. As notícias que nos chegam todas as manhãs são legitimações daquilo que já conhecemos. As histórias da tradição oral, praticadas outrora, servem atualmente, como modelo para a comunicação. Na verdade são trocados apenas os personagens e a forma como a história é narrada, pois o enredo permanece inalterado. Histórias de herói e vilão são constantes nas publicações e legitimam o que já ouvimos falar nas sagas, por exemplo. A estrutura dos telejornais também representa um exemplo para essa comparação. É comum que todo telejornal comece com notícias de tragédias e/ou mortes. E, ao final, o noticiário traga notícias sobre esporte ou cultura. São temas pesados e depois leves, representando os enredos de histórias com finais felizes como os vistos nos contos maravilhosos. As histórias de tradição oral permanecem, portanto, em nossas vidas. Porém, com novos enredos e, na contemporaneidade, com uma maneira artificial de compreender e narrar. Artificial a partir do momento em que as limitações impostas por regras de como fazer não permitem que se contemple de maneira ampla a complexidade dos fatos. 26 Nas histórias preservadas pelo povo oralmente, as vivências humanas, sejam as derrotas, as vitórias, alegrias e tristezas, tinham valor para a composição de uma boa história. Essas narrativas trazem ensinamentos, conselhos, experiências, e ainda permitem que o leitor participe da narrativa, fazendo-o compreender e compartilhar com a vida dos personagens. Atualmente, a maneira como se percebe e se descreve as ações humanas sofre alterações significativas, que afetam diretamente o jornalismo. Os veículos de comunicação de hoje apenas se atentam para manter o leitor informado e a comunicação, de maneira quase absoluta, é usada apenas para gerar lucros. Pretendemos mostrar neste capítulo que a imprensa convencional deixou de contar boas histórias. Esqueceu-se, como bem lembrou Edvaldo Pereira Lima (2009, p. 357-358), de nossa propensão em contar histórias. E que atualmente pratica um estilo de jornalismo robotizado, mecânico, onde o jornalista deve seguir regras pré-estabelecidas e escrever seu texto no formato em que pedem os manuais de estilo e redação. 1.2. Lead e a fórmula piramidal Alguns pesquisadores tentam reunir informações para explicar a origem do Lead (do inglês conduzir) e do texto em forma de pirâmide invertida. O jornalista e professor Luiz Costa Pereira Júnior (2000) diz que o surgimento do atual modelo ocorreu durante a Guerra Civil dos Estados Unidos (1861-1865), como uma tentativa dos militares de superarem a falta de tecnologia da época. As transmissões via telégrafo não era tarefa fácil. Não raro as informações chegavam incompletas ao destinatário. Ficou estabelecido, portanto, que as principais informações sobre quaisquer fatos deveriam estar dispostas nos primeiros parágrafos. Dessa forma, no fim do texto ficariam apenas informações complementares, de modo que, se houvesse alguma falha, o principal já teria sido enviado. A paternidade do lead e da fórmula piramidal ficou para norte-americanos e ingleses. José Francisco Sánchez (1993), doutor em Jornalismo e diretor da Universidade de Navarra, na Espanha, atribui como fatores que contribuíram para a consolidação do lead, além da popularização do telégrafo e da Guerra Civil Americana, também o advento das agências de notícias. A Associated Press, primeira agência de notícias da história, passou a utilizar essa técnica com objetivo de driblar o alto custo do telégrafo e utilizar a tecnologia para unificar 27 coberturas em longas distâncias. Com o sucesso e a adesão de cada vez mais jornais - cada qual, na época, com suas linhas editoriais, interesses e ideologias muito bem demarcados-, a agência passou a estimular um texto mais conciso e neutro possível, no intuito de atingir o maior número de clientes. Para José Francisco Sánchez (1993), o modelo tornou-se hegemônico por pura imitação ou comodidade. Se os textos vinham assim das agências, para quê mudá-los? Logo surgiram outras justificativas para sua proliferação, como estímulo à imparcialidade, atenção aos fatos, mais informação em menos espaço, dentre outros (SANCHES, 1993). Leandro Marshall (2000, p.34-41) mostra que esse modelo é uma conseqüência direta e imediata da então emergente sociedade de massas e de consumo, que precisava criar antídotos contra a singularidade. Em suma precisava apagar as marcas da presença do jornalista nos textos, eliminando possíveis “humores” e “opiniões”. Era o início da tão defendida imparcialidade e objetividade absoluta. Dessa forma as produções jornalísticas passavam a ser essencialmente técnicas, visando as grandes vendagens e o lucro. Segundo Marshall: , [...] esta arquitetura da pirâmide invertida pode ser encontrada diariamente nas edições dos principais jornais mundiais, já que seu método é considerado praticamente como um processo único, elementar e indiscutível do fazer jornalístico. A pirâmide também tem sido a fórmula quase exclusiva de alfabetização jornalística utilizada pelas faculdades de jornalismo do mundo ocidental. Adorada e idolatrada mundialmente por professores funcionalistas, a pirâmide invertida constitui-se numa verdadeira bíblia para a catequização dos jornalistas, que perdem assim a perspectiva crítica do papel social do profissional da comunicação [...] O lead serve, assim, muito mais para esconder do que para revelar. Não estamos querendo dizer que o uso do lead e da pirâmide sejam totalmente equivocados. Ou então que deveria ser abolido de forma absoluta. Não. Essas ferramentas têm sua importância dentro de algumas coberturas jornalísticas. Esse método é essencial em alguns casos onde há necessidade de informar as pessoas com agilidade e alguma exatidão sobre eventos corriqueiros como, por exemplo, se haverá ou não greve de funcionários do transporte público, 28 previsão de chuva no feriado, informações sobre vias congestionadas, enfim, notícias que servem para manter o leitor informado sobre os acontecimentos recentes que o rodeiam. O que deve nos preocupar no papel de jornalistas, pesquisadores, ou estudantes de jornalismo é a maneira como alguns veículos de comunicação estão utilizando esse suporte, método ou técnica. Será que essa fórmula não está sendo usada tal qual um método infalível? Será que as empresas jornalísticas brasileiras já não estão viciadas no lead e na pirâmide? Se sim, o que esse uso demasiado tem causado a nossas produções? Voltemos então ao contexto histórico... Seguindo uma conhecida história de que “o que é bom para os norte-americanos também o deva ser para nós, brasileiros”, esse estilo de cobertura que Francisco José Bicudo Pereira Filho (2006), em texto publicado no site do Pluricom, classifica como camisa-de-força estilística e ideológica, desembarcou em território verde amarelo a partir da década de 50, tendo como responsáveis alguns nomes como Danton Jobim, Pompeu de Souza e Luiz Paulistano. O método foi implantado inicialmente no Diário Carioca seguido pela Tribuna da Imprensa, Última Hora e Jornal do Brasil, todos cariocas. O modelo só atingiu os diários paulistas a partir da década de 70, tendo seu ápice na década de 80, depois da concretização do “Projeto Folha de S. Paulo”. O projeto de um dos maiores jornais do país influenciou outros tantos periódicos, pois atingia os interesses da maior parte dos empresários do setor de comunicação. Ou seja, o projeto Folha se mostrou interessante e inteligente do ponto de vista mercadológico, pois se tratava de uma maneira de se ganhar mais dinheiro com menos investimentos. O jornalista participa pela manhã de uma reunião de pauta, recebe suas três, quatro ou cinco a serem cumpridas e sai às ruas. O processo jornalístico é mecânico. As pautas diárias contêm informações como pessoa a ser entrevistada, local, horário, perguntas a serem feitas e tamanho do texto a ser escrito. O profissional segue então para a cobertura sem perceber as muitas histórias em que ele quase tropeça nas ruas. Chega ao local marcado, pega seu caderninho e vai fazendo as perguntas que ali estão escritas. Em redações como estas não se dá importância para fatores como apuração, personagens, contextualização, relevância do fato para a sociedade, qualidade textual, etc. O importante é cumprir a pauta e escrever o texto respondendo às questões do lead. Para a empresa é isso que importa. Ter matérias seja com a qualidade que for, para poder vender seus anúncios. 29 Cremilda Medina aponta que dentro desse processo de produção da notícia alguns elementos importantes estão sendo tratados com certa indiferença. Medina: Nas rotinas de redação, momentos decisivos como as reuniões de pauta pecam por falta de domínio técnico-profissional. A opção de assuntos e a forma como tratá-los raramente é levada no grau de seriedade e aprofundamento que a situação exige. Assim, por exemplo, à falta de imaginação (criação), uma das fontes mais comuns de pauta é a seleção de assuntos já publicados em outros veículos. Uns jornais se pautam pelos outros num círculo vicioso, fechado e pobre. (apud LIMA, p. 69). E quem sai perdendo com esse tratamento inadequado? Quem é que tem de ler jornais quase idênticos todos os dias? Dulcília Schroeder Buitoni analisa o trabalho da imprensa brasileira nos dias atuais e destaca o processo de produção das notícias que estamos discutindo: O instrumental jornalístico é pobremente descrito e analisado nos manuais e livros que tratam da captação das informações. São indicações de práticas às vezes completamente ultrapassadas ou inadequadas ao contexto brasileiro, por serem quase todas copiadas de receituários norte-americanos. São modelos, pautas, listagens cristalizadas de práticas rotineiras e gastas. O mesmo acontece com a redação: apenas receitas de como escrever bem, normas gramaticais e de estilo. Encontra-se pouquíssima reflexão sobre o texto como reprodução da realidade: quando há, envereda pela análise ideológica repetindo, sem aprofundar, o mote de reforço do status quo. Não se acham análises de funcionalidade, por exemplo, de personalização ou não do narrador, do uso dos tempos verbais, do uso da descrição, do diálogo etc. (apud LIMA, 2009, p. 137) A preocupação com esse processo mecânico nas produções atinge um número considerável de estudiosos e pesquisadores da comunicação. O jornalista e pesquisador Wilson da Costa Bueno (2007), em artigo publicado originalmente no Portal da Imprensa e disponível no site da Faculdade Cásper Líbero, diz que a imprensa precisa resgatar o bom texto, pois “o nosso texto jornalístico é, em geral, chato, sem cor, sem sabor, sem som, uma coisa pasteurizada, tipo queijo que entra no BigMac (tem gente que acha que chuchu é assim, mas esse gosto de nada me 30 faz lembrar de aspargos).” Bueno diz ser essencial que se discuta essa decadência no jornalismo no meio profissional, nos cursos de jornalismo e entre os próprios leitores, pois caso isso não aconteça continuaremos com nossos textos com “cara de memorando e ata de reunião”. A busca incessante pela objetividade, imparcialidade e verdade absoluta dos fatos é a marca primordial do jornalismo convencional. O professor e pesquisador Jorge Kanehide Ijuim (2007) conta o que considera justificar esse fato: [...] A ciência decorrente da chamada Revolução Científica, pela atuação decisiva de Descartes, Bacon e Newton, a partir do século XVIII, nos fez acreditar na possibilidade de acumular verdades controladas. Seu rigor racionalizante – e racionalizador – acabou por definir certos ‘códigos socioculturais’ que, inconscientemente, determinam posturas, maneiras de pensar e agir. O pragmatismo das sociedades modernas mostra agilidade e disciplina na atuação do comunicador, através de regras do ‘como fazer’ [e como pensar]. Ao adotar a racionalidade da ciência para esse fazer, assume-se também uma visão de mundo que crê na concordância perfeita entre ‘o racional e a realidade’. Por isso, valorizando a experiência, o empirismo, do inteligível ao previsível e mensurável, institui a crença de que o jornalismo deva produzir verdades. Os manuais de redação e estilo “castram” a criatividade de alguns jornalistas e limitam o trabalho do profissional que tem de trabalhar como mediador entre os conflitos sociais e a sociedade, porém deve buscar a verdade dos fatos e se ater ao fato de ser objetivo. O jornalismo praticado sob tais preceitos pouco ou nada acrescenta para a sociedade, deixando, portanto, de ter sentido. O jornalismo brasileiro passa por uma forte crise devido a fatores como este. É crescente o processo de decadência de nossos jornais, que sofrem conseqüentemente com uma dinâmica progressiva de empobrecimento da linguagem e dos recursos narrativos que utiliza. A busca incessante pela objetividade e verdade absoluta precisa ser combatida para que, dessa forma, possamos ler jornais menos efêmeros e superficiais. Edvaldo Pereira Lima (2009) lembra que a periodicidade atrelada à construção da mensagem pela fórmula mais rápida – porém menos criativa - do texto pasteurizado nos elementos o que, quem, quando, onde, como e – nem sempre – por quê, com recorrência apenas a fontes legitimadas, são fatores não menos nocivos para um veículo de comunicação que queira deixar de ser meramente informativo além de buscar “escapar à ditadura draconiana da atualidade”. José Marques de Melo, em Lima (2009, p. 100), diz que: 31 Reduzida a uma dimensão meramente operacional – headline, lead, copy desk etc. - , a proposta da objetividade converteu-se em camisa de força para o desempenho profissional dos jornalistas. Na medida em que sua feição determinante passa a ser a economia de palavras, imagens e sons, o trabalho do jornalista burocratiza-se rapidamente. A burocratização de que fala Marques de Melo estende-se também para as entrevistas, que passam a sofrer com um visível dirigismo e pode ser constatada em entrevistas feitas ao vivo, na TV. As perguntas e respostas são previamente combinadas entre repórter e entrevistado. Tudo a fim de garantir o “bom trabalho” do repórter e a melhor desenvoltura do entrevistado enquanto tal. Não raro, quando o entrevistado resolve dar uma guinada no discurso pré-estabelecido, podemos perceber que o repórter se atrapalha, “perde o rumo”. Em “Entrevista: o diálogo possível”, a professora Cremilda Medina (1995, p. 6) diz que: Quando ocorre uma entrevista dirigida por um questionário estanque ou motivada por um entrevistador também fixado em suas idéias preestabelecidas (em geral, coincidentes com o questionário) ou no autoritarismo impositivo, o resultado frustra o receptor. Freqüentemente, um adolescente ou uma criança comenta, diante de uma dessas entrevistas em televisão: ‘O sujeito nem terminou o pensamento e o repórter cortou...’ Dulcília Buitoni( 2009, p. 90) reforça: Se não é aplicável o esquema de perguntas e respostas programadas, o repórter acha que não está diante de um fato jornalístico, pois não acredita que haja perguntas e respostas que ele não conheça. Só trabalha com narrativas fechadas e com probabilidades previamente conhecidas. Ora, essa improbabilidade de enxergar além do padrão aumenta muito a pobreza de conhecimento pertencente à notícia.(apud LIMA, 2009) O resultado desse processo limitador são textos pouco elaborados, com uma visão limitada da realidade em que a história se passa. A burocratização limita a visão do jornalista e conseqüentemente da sociedade, que encontra nas páginas dos jornais representações incompletas sobre os conflitos humanos. 32 1.3. Entrevistas Esse importante aliado para o fazer jornalístico é estudado por Cremilda Medina em Entrevista: o diálogo possível. A autora diz que a entrevista, quando utilizada como uma mera técnica para obtenção de respostas pré-pautadas não pode ser um braço da comunicação humana. Quando encarada como simples técnica “não atinge os limites possíveis da inter-relação, ou, em outras palavras, do diálogo” (1995, p. 5). A pesquisadora divide as entrevistas segundo duas tendências: a de espetacularização e a de compreensão. No primeiro grupo, que visa espetacularizar o ser humano, a autora encontra quatro subgêneros: o perfil do pitoresco de figuras olimpianas, no nível da caricatura humana, salientando traços sensacionalistas; o perfil do inusitado, que traz à tona, mesmo que algo forçadamente, aspectos exóticos do entrevistado; o perfil da condenação, ordenado de forma a julgar aprioristicamente o entrevistado, colocando-o de modo simplista na posição de réu ou vilão; o perfil da ironia ‘intelectualizada’, cuja finalidade é também realizar um julgamento aprioristicamente condenatório do entrevistado, só que dessa vez trabalhando num nível superior de sutileza (MEDINA, apud LIMA, 2009, p. 92). Nesse primeiro grupo encaixam-se programas como “Aqui e Agora”, “Cidade Alerta” e “Brasil Urgente”, além de muitos outros de caráter sensacionalista. Nesses programas priorizamse matérias que garantam boa audiência, mesmo que para isso seja necessário fazer a espetacularização à qual se refere Medina. No “Brasil Urgente”, por exemplo, o apresentador quando mostra algum caso da editoria de polícia, insiste em mostrar o rosto do acusado (mesmo que este ainda seja apenas ‘acusado’) e seus repórteres tentam forçar o entrevistado a assumir sua possível culpa ou envolvimento no crime. Falas como: “Mostra a cara desse vagabundo aí. Põe ele pra falar, vamos ouvir a voz desse sem vergonha!”. E, que importância esse tratamento tem na apuração e divulgação do fato? No segundo grupo, voltado para a tentativa de compreensão do ser humano, são apontados cinco subgêneros: a entrevista conceitual, em que o repórter busca conceitos, versando sobre diferentes temas, nos especialistas de cada área; a entrevista/enquete, na qual um único tema é privilegiado por uma pauta ou por questionários básicos aplicados a fontes selecionadas aleatoriamente; a 33 entrevista investigativa, apoiada na coleta de informações em off e em on (esta dá retaguarda àquela) e que está a serviço de matérias investigativas, de denúncia; a confrontação-polemização, materializada em forma de debate, mesa redonda, painel, simpósio ou seminário, em que fontes antagônicas ou divergentes são simultaneamente entrevistadas; o perfil humanizado, que se caracteriza pela abertura e proposta de compreensão ampla do entrevistado em vários aspectos, do histórico de vida ao comportamento, dos valores aos conceitos (apud LIMA, p. 92). Programas como o Profissão Repórter, por exemplo, se enquadram dentro desse grupo e, mais especificamente, no subgênero perfil humanizado, pois produz perfis que valorizam pessoas, busca diferentes ângulos de fatos retratados cotidianamente pela mídia e dá voz a personagens da vida real, à pessoas comuns. No subgênero confrontação-polemização encontram-se programas como “Roda Viva”, da TV Cultura. O programa reúne profissionais da imprensa e promove debates onde um entrevistado fica “cercado” por jornalistas respondendo questões de temas diversos como política, educação, saúde etc. Buitoni (1986, p.39) também traz algumas contribuições concernentes a essa discussão e enxerga nas histórias de vida, as entrevistas livres acompanhadas de observação participante, um bom aliado para o jornalismo. E diz: [...] uma entrevista de tipo aberto se define como história de vida uma vez que utiliza a vivência do entrevistado de maneira longitudinal, buscando encontrar padrões de relações humanas e percepções individuais, além de interpretações sobre a origem e o funcionamento dos fenômenos sociais. O resultado desse processo é uma visão detalhada e multiangular dos conflitos humanos, com atenção aos seus personagens, seus anseios, problemas, sentimentos, sua história. Esse é o jornalismo humanizado, comprometido, literário. Além da entrevista, a observação, outro instrumento de captação, merece algumas observações e traz também contribuições para o processo de produção jornalístico. Para Edvaldo Pereira Lima (2009, p. 45), esses processos de produção podem e devem ser melhorados, mas o vício resultante da prisão à periodicidade, ao ritmo curto, sôfrego, da imprensa cotidiana, é o grande entrave. 34 A grande-reportagem deve fugir do esquema cada vez mais rígido da produção industrial na imprensa. A observação intensa, demorada, torna-se, no geral, quase próxima do impraticável sob tais condições. De qualquer forma, grandes profissionais do jornalismo acabam, por intuição, experiência, vivência do dia-adia das coberturas, adquirindo habilidade elogiável na prática da observação. Com certeza, essa prática pode ser aperfeiçoada se, ao lado da experiência construída sob o suor e a urgência da captação imediata, acontecer uma absorção, pelos profissionais da imprensa, dos métodos e dos recursos utilizados pelas ciências sociais. Analisando o atual momento da imprensa cotidiana brasileira percebe-se que essa participação efetiva do profissional da comunicação acontece muito discretamente. A cobertura racional limita-se a informar e, para Dulcília Schroeder Buitoni (1986, p. 65) isto se dá, pois se perde a função da memória que, hoje, é utilizada apenas para organizar o passado cronologicamente. E “as riquezas pessoais e sociais da memória estão sendo substituídas pela informação mecânica”. Claro está, portanto, que o jornalismo precisa ser repensado e, inevitavelmente, os jornalistas precisam participar desse processo. Entretanto, o processo mercadológico no qual se inserem as empresas de comunicação acaba inibindo qualquer reação do profissional que ali trabalha. A padronização do jornalismo, ditado por regras dos manuais de redação e estilo, onde o jornalista deve se limitar a compor um texto seguindo modelos, barra qualquer tentativa de mudança. Para o professor Jorge Kanehide Ijuim (2006, p.11), a imprensa brasileira comete alguns equívocos que interferem diretamente nos resultados que os leitores encontram diariamente nas páginas dos jornais. São eles: A falta de entendimento de que narrar o cotidiano supõe compreender as ações humanas dos envolvidos no processo comunicativo; O papel do jornalismo (e do jornalista) não se restringe a informar, mas provocar reflexão, contribuir com a elevação de consciência; O processo jornalístico não se restringe às técnicas; estas são indissociáveis das dimensões éticas e estéticas. Ijuim diz que o jornalismo superficial e seco produzido pela maior parte dos veículos de comunicação com intuito de agilizar o processo empobreceu nosso “faro” do real. O autor, 35 entretanto, identificou em pesquisa realizada de 2003 a 2006 algumas atitudes que revelam uma possível mudança, luz no fim do túnel ou das páginas, para o jornalismo nos dias atuais. Uma delas pode ser identificada a partir do texto de João Pereira Coutinho. Um artigo com misto de preocupação e provocação, publicado em 8 de agosto de 2005, no site da Folha de S.Paulo. Coutinho diz que a “salvação” do jornalismo apenas dar-se-á quando forem enterradas a objetividade e a linguagem de laboratório. E argumenta: Eu não quero apenas fatos. Eu não quero a mera repetição de fatos que ouvi na noite anterior, disparados por uma boneca articulada no noticiário das oito. Eu quero saber o que existe por dentro dos fatos. Uma guerra, uma vitória? Eu quero saber quem são os derrotados, quem são os vitoriosos. Eu quero saber o que sentem os derrotados, o que sentem os vitoriosos. Como se portam e comportam. Eu quero ação e contradição. Palco. Iluminação. Eu quero ouvir. Eu quero ouvir gente a falar. Eu quero uma voz humana que, como Dante, seja capaz de descer às profundezas da nossa vida. E que regresse, ainda, para contar. (COUTINHO, 2005) O quase desabafo de Coutinho vai ao encontro do que pretende nos mostrar a crônica de José Castello, publicada no jornal O Estado de S. Paulo, no dia 5 de outubro de 1997, com o título “O repórter de três cabeças”. O texto também nos dá uma idéia de como funciona o processo de produção jornalística nas redações brasileiras. Tenho 20 anos e acabo de me tornar repórter policial. O chefe de redação, Sr. Azevedo, me convoca para minha primeira reportagem. Numa favela carioca, moradores ateiam fogo a um homem, acusado de matar a pauladas o filho adolescente. O assassino, com braços e tórax derretidos pelo fogo, ocupa um leito de hospital público, mas não corre risco de vida. Na favela, o coração destruído, sua mulher vela o filho morto. Vou primeiro ao morto. É um crime pequeno, um episódio na vida de gente comum. No barraco, encontro apenas um velho fotógrafo de A Notícia que – com frieza de um açougueiro experiente – escolhe as imagens mais repugnantes. “Meu marido é um cachorro”, a mulher grita. “Um bicho!” Olho o corpo do rapaz, lustroso como um boneco de cera, a cabeça enrolada em bandagens imundas, o rosto borrado por 36 placas roxas. “Ele matou meu filho por nada”, a mulher continua. “Matou como se fosse um rato”. Encho-me de ódio. Ao chegar ao hospital para ouvir o assassino, pois as normas do jornalismo exigem sempre os dois lados das histórias, trago o espírito arreganhado. Largado em uma enfermaria obscura, o homem parece uma sombra de homem. Uma nódoa na paisagem. “Por que o Sr. fez isso?”, pergunto, mal conseguindo encará-lo. O homem tem os olhos parados, como pérolas sujas esquecidas no fundo de uma gaveta, e não para de tremer. Insisto: “Por que?” Ele me olha e diz: “Ele me odiava porque eu sou só um lixeiro”. Ergo a voz e, em tom de reprimenda, digo que isso não é motivo suficiente para matar. O homem suspira. Depois diz: “Ele roubava meu dinheiro e, enquanto eu carregava lixo, ia para a cama com minha mulher”. Julgo ouvir um ruído vago, mas tenebroso, como se o teto da enfermaria começasse a desabar sobre mim. Não consigo dizer mais nada. Saio. Na redação, o Sr. Azevedo ordena: “Quero uma história violenta, que tenha início, meio e fim, pois precisamos de manchetes”. Sento-me para escrever. O esquema clássico do noticiário policial me pede uma narrativa reta, em que haja uma vítima, um assassino monstruoso e uma vítima infeliz. Começo a escrever, mas não posso avançar. Sinto-me tonto. Vou ao banheiro e vomito. De volta, escrevo uma primeira versão, a mais neutra que posso imaginar, em que os vários pontos de vista se entrelaçam. Ofereço-a ao Sr. Azevedo. Ele lê e diz: “O que é isso, um boletim de ocorrência? Quero uma história coerente, e não um relatório”. Volto para a máquina e escrevo, agora, três versões da reportagem. Ajo como um repórter que tivesse três cabeças. Na primeira, o homem é um cão danado que mata a pauladas um filho ingênuo e infeliz. Na segunda, é um homem fraco que enlouquece, manipulado pelo filho pervertido e pela mulher incestuosa. Tento uma terceira versão em que pai e filho são inocentes, fantoches nas mãos de uma megera. As três narrativas não cabem em uma história só e, no entanto, seria assim, na conjunção contraditória das três, que eu estaria mais próximo da verdade. Mas, eu descubro, ela é o que menos importa a meu chefe. O Sr. Azevedo, com ar agastado, vem me cobrar a reportagem. “Nossa hora estourou”, grita. Fecho os olhos, misturo as três páginas datilografadas, sorteio uma delas e, sem ver o resultado, entrego-a. O Sr. Azevedo lê e diz: “Agora sim a história faz sentido”. 37 Tomo o ônibus para casa. Levo no bolso as duas versões desprezadas. Amasso-as e jogo pela janela. Deixo que o vento do Aterro do Flamengo bata com força em meu rosto, castigandome. Tento respirar, ainda sem sucesso, pois é como se uma rolha de decepção me trancasse o peito. Não tenho coragem de ler o jornal no dia seguinte. Até hoje não sei qual de minhas três versões foi publicada. O texto de Castello evidencia o processo jornalístico e mostra que, afinal, o jornal é uma empresa que vende uma mercadoria: a notícia. Pudemos observar na crônica de Castello que o editor, Sr. Azevedo, pede para seu repórter uma notícia que dramatize, culpe alguém e absolva outro. Tudo no intento de vender mais exemplares e anúncios. A história que poderia chegar mais próximo da verdade não tem valor para o jornal. E, como percebe o jovem repórter na cobertura, a melhor versão para se contar com detalhes e fidedignidade essa história não caberia em um texto em forma de pirâmide. Sobre imparcialidade e objetividade, Medina (1986, p.43), diz que: [...] não se pode omitir também o real-imaginário do próprio repórter. A recomendação expressa de que ele se comporte objetivamente tapa o sol com a peneira. Por mais distanciamento que se imponha ao lidar com outro ser humano – o entrevistado -, não se evitará nunca a interferência do eu subjetivo do entrevistador, seja ele escudado na oposição de idéias ou no esforço para não se “perverter” pela simpatia que poderia invadi-lo. Essa ilusão objetiva cai por terra no primeiro momento da aproximação: ambos os oponentes, digamos assim, os protagonistas de uma ação convencionalmente feita de estocadas, entrarão em campo através de uma linguagem (verbal ou não-verbal), um modo de dizer, comprometida com o real-imaginário de cada um. Edvaldo Pereira Lima (2009, p. 100) diz que a neutralidade, imparcialidade ou verdade absoluta são impraticáveis já que se deve levar em conta os fatores pessoais que cada repórter carrega, tais como sua formação, sua cosmovisão, além, claro, dos ideais e dos planos econômicos da empresa em que esse profissional trabalha. Segundo Walter Benjamim (1985), o procedimento que pretende inibir o trabalho jornalístico passa a burocratizar o processo e, então, torna-se um dos fatores responsáveis pela morte das narrativas. 38 Em suma, o modelo praticado pela imprensa convencional inibe a criatividade do jornalista, por isso alguns buscam sua libertação nos livros-reportagem, onde veem a oportunidade de praticar o diálogo possível, participar efetivamente da história narrada, humanizar os relatos e, enfim, ter uma visão ampliada sobre os conflitos da vida real. “Nessas ocasiões, o jornalista-escritor atinge uma situação máxima de excelência no domínio da entrevista: a de tecedor invisível da realidade, que salta, vívida, das páginas para o coração, a mente e todo o aparato perceptivo do leitor”. (LIMA, 2009, p.107) 1.4. Cenário É importante pensar que o jornalismo e os órgãos de imprensa em geral são frutos de seu tempo. E analisando o atual momento vivido pelos meios de comunicação no Brasil percebemos que uma forte crise atormenta as publicações jornalísticas no país. Essa crise diz respeito principalmente à linguagem dos periódicos, quase todos presos a textos escritos sob fórmulas reguladoras e responsáveis por resultados desanimadores, como produções quase idênticas e enfadonhas. Em conseqüência desse e de outros fatores a imprensa vem sofrendo com a forte concorrência da TV e da Internet. Esses suportes que melhor se adequam ao tempo em que vivemos, onde há uma ânsia demasiada por novas informações a todo tempo, colocam em cheque as produções impressas. Pensar sobre esse assunto nos motivou a pesquisar e escrever sobre maneiras para melhorar nossas produções jornalísticas, tentar buscar respostas de como manter nossos leitores acordados e interessados no texto. O conteúdo do telejornal não muda muito daquilo que se lê pela Internet. Além das imagens, em alguns casos o telejornal faz um maior aprofundamento em um caso ou outro, uma reportagem especial , um comentário, etc. O que realmente importa disso tudo é que o leitor está informado sobre acontecimentos de todos os cantos do planeta e, agora sim, pode dormir tranqüilo. No outro dia, pela manhã... 39 O que se encontra naquele jornal que você gosta de ler enquanto toma um cafezinho? As mesmas notícias! E, pior, tratadas da mesma maneira e, não raras vezes, copiadas de páginas da Internet. Do ponto de vista teórico e prático o jornalismo praticado sob tais condições torna-se um campo muitas vezes restrito a produções pouco atentas às práticas cotidianas e culturais da contemporaneidade. Dessa forma, o ato de narrar, burocratizado pelo convencionalismo do discurso, torna-se limitado e limitador. Além de tantos outros efeitos, esse padrão de comunicação, baseado em uma captação superficial do real e representado por um texto construído em forma de pirâmide invertida, em um lead sumário e com título também padronizado, não responde à demanda social. Pois, segundo Cremilda Medina, “esta pretende, através dos meios de comunicação, se identificar, compreender e participar do presente histórico em toda a sua dinâmica e complexidade” (2006, p. 4). Para agravar ainda mais a situação, começamos o ano de 2009 com uma discussão em pauta no STF (Supremo Tribunal Federal). A questão vem sendo discutida desde 2001 e teve como objetivo decidir se o diploma para exercício da profissão de jornalista deveria ou não ser obrigatório. A decisão aconteceu no dia 17 de junho deste ano. Por oito votos a um decretou-se que o diploma de jornalismo não é mais obrigatório para a exercer da profissão. Diante desse quadro nos surge uma pergunta: por que discutir a obrigatoriedade ou não do diploma nesse momento? Não é difícil pensar em uma resposta esclarecedora depois de nossa explanação a respeito do processo de produção jornalística na imprensa convencional atualmente. Ora, o mecanismo de produção de notícias baseado em um texto escrito em fórmula de pirâmide e atento apenas a responder questões básicas sobre o fato é mais do que justificativa para que se pense sobre a necessidade de alguém com nível de instrução superior para fazê-lo. Escrever uma matéria, hoje, está longe de ser uma tarefa de apurar, pesquisar, ouvir, entrevistar, pensar, criar, ousar e depois “brigar” com o texto, imaginando seus caminhos, suas linhas de condução. Não se pensa mais na melhor maneira e momento de apresentar uma idéia, na história ou no personagem, nas relações e interconexões entre os fatos e suas causas, em conseqüências e desdobramentos, no “abre” ou introdução da reportagem, de onde quero sair e aonde desejo chegar, qual a mensagem que se pretende passar, qual a margem de interlocução que deixamos para o leitor, como podemos criar e escrever sem que sejamos 40 autoritários ou donos da verdade. Não se pensa em coesão e articulação, em como saltar de um parágrafo a outro sem trancos ou rupturas de narrativa, em ritmo ou fluência, não se reserva espaço para a criatividade e a ousadia. (BICUDO, Pluricom, 2008) Fazer jornalismo, hoje, se levarmos em consideração o que foi discutido até aqui a respeito da superficialidade da cobertura e dos mecanismos criados com a chegada da fórmula piramidal e do lead, é tarefa fácil. Para que, então, alguém com diploma para fazê-lo? É claro que outras justificativas também foram apresentadas, porém acreditamos que esse fator foi essencial para que se chegasse a tal ponto. Antes de chegarmos ao fim deste primeiro capítulo gostaríamos de propor um exercício para tentarmos exemplificar de maneira objetiva a diferença entre uma cobertura convencional e outra humanizada, comprometida com a sociedade. Esse exercício foi proposto por Franklin Martins no livro Jornalismo Político, publicado em 2005, pela editora Contexto. O que prende mais a atenção do leitor e informa melhor? a) Uma notícia que comece assim: “Cerca de 250 pessoas morreram ontem na costa oriental da Guatemala, depois da passagem do furacão Flora, que varreu a região com ventos de mais de 150 Km por hora, deixando aproximadamente 50 mil desabrigados”? b) Ou outra que comece assim: “Maria Alonso passou a tarde de ontem procurando seus dois filhos, desaparecidos depois que o furacão Flora passou pela costa oriental da Guatemala, com ventos de mais de 250 Km por hora. Sua busca terminou no começo da noite, quando os bombeiros encontraram os corpos das crianças, soterrados nos escombros da pequena escola de San Cristobal. Ao reconhecer os filhos, Maria olhou para o céu...”? (2005, p. 111) O lado humano da matéria B certamente levaria o leitor até o fim da matéria, isso porque há uma identificação, participação dele com a narrativa. Essa relação que o autor consegue criar com o leitor aparece concretamente no texto quando se evidencia a importância dos personagens da história. No exemplo de Martins, a humanização fica clara quando o autor 41 opta por mostrar o drama de Maria Alonso na procura de seus filhos a evidenciar os números que envolveram a passagem do furacão Flora. A realidade de boa parte de nossa imprensa, porém, é outra. O leitor é deixado para segundo plano e não se sente instigado a ler. Mas esse cenário pode e tem que mudar. O que estamos tentando propor é que o jornalismo contemporâneo passa por uma indiscutível crise, sobretudo no impresso. A globalização tornou tudo muito rápido, próximo, superficial e efêmero. E o jornalismo parece “ter entrado na onda”. O valor do ser humano parece ter sido esquecido, como se este não fosse a parte essencial de qualquer fato. Nas matérias de jornais diários o que se evidencia são números, dados. Na cobertura de alguma tragédia, por exemplo, veículos brigam por furos, por novos números, esquecendo-se de evidenciar que esses números representam vidas de pessoas. A recorrência ao chamado fontismo também é outro fator importante para se destacar, pois desta maneira, ouvindo apenas especialistas, doutores, professores, etc., evidencia-se a exclusão daqueles que são ou deveriam ser os maiores protagonistas das matérias: as pessoas comuns. Essas, quando muito, ganham espaço para meia dúzia de palavras editadas e jogadas entre aspas. Mas, no meio dessa crise toda, é que se encaixa o jornalismo literário. A opção de cobertura humanizada, com textos diferenciados, nos parece ser um bom aliado para as produções do impresso, por exemplo, na concorrência com outros suportes como a TV e a Internet. Em um momento onde as problemáticas no discurso emperram o crescimento dos jornais, o estilo de cobertura que busca inspiração na literatura seria um diferencial importante para a o aumento nos campos quali e quantitativo. 42 43 CAPÍTULO II New Journalism e os pilares do Jornalismo Literário 2.1. Histórico e contexto Neste capítulo pretendemos adentrar um pouco mais em nossa proposta. Falar de Jornalismo Literário (J.L) e suas principais características. E, ainda, enfatizar as diferenças entre o estilo de cobertura convencional e o literário. Para tanto, utilizamos alguns exemplos práticos, boas histórias. Dessa maneira começaremos a evidenciar o estilo de cobertura que consideramos necessária e imprescindível para que o jornalismo possa vislumbrar dias melhores. Cobertura essa que a revista Realidade praticou durante os últimos anos da década de 60 e início dos anos 70, que alguns bons escritores de não-ficção utilizaram e utilizam para contar suas histórias. E falar de Jornalismo Literário sem ao menos dar uma “passadinha” pelos Estados Unidos seria uma idéia não muito acertada. Esse estilo de cobertura teve seu ápice na década de 1960, onde foi denominado New Journalism. O período é bastante sugestivo já que a população norteamericana enfrentava um período de grande transformação social, comportamental e ainda no plano artístico. Manifestações contra-culturais e hippies buscavam alternativas para mudar o estilo de vida. A juventude questionava tudo, experimentava opções alternativas e ousadas de vida, tais como liberação sexual, drogas, filosofia, rejeição ao serviço militar obrigatório etc. O cinema apresentou mudanças significativas em sua forma de expressão, passando a rejeitar as fórmulas hollywoodianas. E as artes e a música também sofreram alterações com os movimentos. Edvaldo Pereira Lima (2009, p. 193-194.) comenta sobre o momento vivido pelos norteamericanos dando-nos exemplos práticos: O psicodelismo grassava, e um desvairado professor da Califórnia desafia as autoridades para poder experimentar, sob certo controle científico, os efeitos do LSD. Timothy Leary. Bandos de drogados saíam em seus easy riders – alusão ao filme Sem destino, com Peter Fonda, Dennis Hoper e Jack Nicholson, lançando-o ao estrelato como o melhor personificador do anti-herói cínico, que substituía, para essa geração revisionista, os heróis canastrões de Hollywood, tipo John Wayne - , fazendo seus happenings. E jovens, para o horror dos tios e 44 pais e avôs que tinham honrado a bandeira do Tio Sam na luta contra o nazismo ou no embate do Pacífico, rasgavam seus certificados de convocação militar, desertavam para o Canadá, recusavam-se a combater no Vietnã. O New Journalism se apresenta neste cenário, tendo como uma de suas características a captação do real a partir de um mergulho de cabeça no sensual, no sensório, com intuito de recriar e reproduzir fielmente o que se passava na vida dos norte-americanos. A visibilidade que o jornalismo consegue nesse momento também se deve ao fato de os romancistas não terem se aproveitado de toda essa efervescência para compor seus livros. Para Tom Wolfe (2005, p. 51-53) o cenário não mobilizou os romancistas, pois estes tinham se afastado, desde após a Segunda Guerra, do instrumental adequado para a abordagem de todo esse fenômeno: o realismo social. Wolfe fala um pouco sobre o cenário e o presente deixado pelos romancistas aos jornalistas da época: Quando cheguei a Nova York no começo dos anos 60, não podia acreditar no cenário que via diante de mim. Nova York era um pandemônio com um grande sorriso. Entre as pessoas endinheiradas – e elas pareciam se multiplicar como moscas – era a época mais maluca, mais pirada desde os anos 20...um universo de cremosas gordinhas modernetes de 45 anos com olhos amendoados na tábua de miúdos da cara usando calças de cintura baixa, minissaias, olhos egípcios, as costeletas, as botas, as bocas-de-sino, as contas, dançando o watusi e o Funky Broadway, sacudindo, sorrindo e sacudindo até o amanhecer ou a desidratação, o que viesse primeiro. Então, os romancistas tinham tido a gentileza de deixar para os nossos rapazes um corpo de material bem bonzinho: toda a sociedade americana, na verdade. Só faltava saber se os escritores de revistas conseguiriam dominar, na não-ficção, as técnicas que deram tamanho poder ao romance do realismo social... E os jornalistas deram conta do recado. Aos poucos foram mostrando suas armas e textos bem escritos, fruto da imersão intensa no real, na vida das pessoas e personagens. Começaram em jornais como Herald Tribune, Daily News, The New York Times; alastraram-se para as revistas semanais como New York Herald Tribune, The New Yorker e Esquire; e chegaram ao estrelato narrativo com a publicação de livros como, por exemplo, A Sangue Frio. A obra de Truman Capote foi a de maior sucesso. Lançado em 1966, o livro revela as investigações do jornalista sobre a chacina de uma família de fazendeiros do meio-oeste americano; Além de outros títulos 45 como O exército da noite, de Norman Mailer, Dez dias que abalaram o mundo, de John Reed, O Reino e o Poder: uma história do novayorkino, de Gay Talese. Para se opor à cobertura jornalística refém de fatos e verdades, a corrente do new journalism desafia os padrões pré-estabelecidos e propõe um resgate à tradição do jornalismo humanizado. Edvaldo Pereira Lima (2009, p.191) , diz que o período foi bastante oportuno. Era a chance “que o jornalismo poderia ter para se igualar, em qualidade narrativa, à literatura”. Para isso Lima diz que era essencial que o jornalismo sofisticasse seu instrumental de expressão e elevasse seu potencial de captação do real. Tudo isso sem perder sua especificidade. E o new journalism se encarregou de dar uma boa ajuda para que isso se realizasse. O New Journalism conseguiu fazer nessa última metade do século XX um resgate da tradição do jornalismo literário. Tom Wolfe, considerado por alguns autores como o pai da corrente (que ele se recusa a chamar de movimento), revela em The New Journalism (1973) que não há outra forma de retratar o real senão com cor, vivacidade, presença, inserção do jornalista na pele de seus personagens, sentindo e reproduzindo todas as emoções do ambiente. Para Wolfe (1973, p. 26-27) o jornalismo passa por uma excitação artística nesse período. E o momento vivido pelo mundo e, sobretudo pelos americanos nessa época, foi responsável por essa excitação, trazendo para a comunicação um jornalismo mais dinâmico, ousado, expressivo e aprofundado. A sociedade passou, então, a conhecer e a entender a vida das pessoas durante esse período a partir de um jornalismo revigorado, com narrativas de histórias reais. Aqui estava uma safra de jornalistas que tinha a cara-de-pau de se meter em qualquer recinto, até nas sociedades fechadas, e agarrar-se como desesperados à vida. Um maravilhoso maníaco chamado John Sack convenceu o exército a deixá-lo integrar uma companhia de infantaria em Fort Dix, a companhia M, da 1ª Brigada de Treinamento de Infantaria Avançada – não como recruta, mas como repórter – e passar todo o treinamento com eles e depois ir para o Vietnã, e para a batalha. O resultado foi um livro chamado M (que apareceu primeiro em Squire), um Catch 22 de não ficção, e, no meu entender, o melhor de qualquer gênero publicado sobre a guerra. George Plimpton foi treinar com um time de futebol (americano) profissional, o Detroit Lions, no papel de um repórter que jogava na posição de quarto-zagueiro, morava com os jogadores, treinava com eles e finalmente disputou de fato uma partida para eles – tudo para escrever Paper Lion. Assim como o livro de Capote (A sangue frio) Paper Lion foi lido 46 por todo tipo de gente e talvez tenha sido o maior impacto literário de qualquer escrito sobre esportes desde os contos de Ring Lardner. Mas o prêmio mais cobiçado dos escritores free-lancers daquele ano foi para um obscuro jornalista da Califórnia chamado Hunter Thompson, que se “enturmou” com os Anjos do Inferno por dezoito meses – como repórter, não como integrante, o que teria sido mais seguro – a fim de escrever Hell’s Angels: the strange and terrible saga of the outlow motorcycle gang. Os anjos fizeram o último capítulo por ele, ao deixarem-no meio morto de pancada numa estalagem a cinqüenta milhas de Santa Rosa. Por todo o livro, Thompson buscara o insight psicológico que resumisse tudo o que ele havia visto, o aperçu único e dourado, e enquanto jazia no chão cuspindo sangue e dentes, o que procurava há muito veio-lhe num brilhante instantâneo do coração das trevas: Exterminem os brutos! Na busca da melhor maneira para realizar a cobertura de todos os acontecimentos da época os jornalistas norte-americanos usaram como fonte inspiradora o realismo social e alguns de seus instrumentos de captação, utilizados outrora por Balzac, Fielding, Smollett, Gogol e Dickens. Para Wolfe (2005, p. 53-54), os jornalistas aprenderam do nada, por intuição, experiência e erro, as técnicas que deram ao romance realista seu poder único, “conhecido entre outras coisas como seu ‘imediatismo’, sua ‘realidade concreta’, seu ‘envolvimento emocional’, sua qualidade ‘absorvente’ ou ‘fascinante’”. O básico era a construção cena-a-cena, contar a história passando de cena para cena e recorrendo o mínimo possível à mera narrativa histórica. Daí os feitos de reportagem às vezes extraordinários que os novos jornalistas empreendiam: para poder testemunhar de fato as cenas da vida das outras pessoas no momento em que ocorriam – registrando o diálogo completo, o que constituía o recurso número 2. Os escritores de revista, assim como os primeiros romancistas, aprenderam por tentativa e erro algo que desde então tem sido demonstrado em estudos acadêmicos: especificamente, que o diálogo realista envolve o leitor mais completamente do que qualquer outro recurso. Ele também estabelece e define o personagem mais depressa e com mais eficiência do que qualquer outro recurso. (Dickens tem um jeito de fixar o personagem em nossa mente de modo que se tem a sensação de que ele descreveu cada milímetro de sua aparência – e, quando a gente se dá o trabalho de voltar atrás, descobre que na verdade ele se desincumbiu da descrição física em duas ou três frases, o resto conseguiu no diálogo.) Os jornalistas trabalhavam o diálogo em sua mais plena e mais completamente reveladora forma no mesmo momento em que os romancistas o eliminavam, usando o diálogo de maneiras cada vez mais crípticas, estranhas e curiosamente abstratas. 47 O jornalismo desta época mostrava, acima de tudo, a presença e o envolvimento do repórter com a história narrada. O objetivo era inovar, despersonalizar. Cada reportagem era como uma história dos mais completos contos, marcada e recriada a partir de impressões, pontos de vista, descrição de comportamentos, de estados psicológicos e, tudo isso reunido em uma narrativa que fica a meio caminho entre a narrativa ficcional e a narrativa jornalística. 2.2. Descrição cena-a-cena e Diálogos Um texto de Gay Talese, autor norte-americano, exemplifica o que Wolfe comenta sobre construção de cenas e diálogos. O texto versa sobre um momento na vida do ex-campeão mundial de peso-pesado, Joe Louis. A matéria mostra num primeiro momento Louis chegando de viagem. E termina narrando a cena onde a segunda mulher do boxeador, Rose Morgan, assiste em casa, com amigos e o atual marido, ao tape da luta entre Louis e Billy Conn. Parte 1 “Oi, doçura!” Joe Louis chamou a esposa, localizando-a esperando por ele, no aeroporto de Los Angeles. Ela sorriu, caminhou em sua direção e estava para espichar-se sobre os pés para beijá-lo – mas parou, de repente. “Joe”, disse ela, “Cadê sua gravata?” “Ah, docinho”, disse ele, dando de ombros, “passei a noite toda fora em Nova York e não tive tempo...” “A noite toda!”, interrompeu ela. “Quando você está aqui, tudo o que faz é dormir, dormir, dormir”. “Docinho”, disse Joe Louis com um sorriso cansado, “sou um véio”. “Sim”, concordou ela, “mas quando você vai para Nova York tenta ser jovem de novo”. Parte 2 Rose parecia entusiasmada em ver Joe no auge da forma e toda vez que um murro de Louis golpeava Conn, ela fazia “Pann!” (soco). “Pann” (soco). “Pann!” (soco). Billy Conn impressionava bem, na luta, mas, quando a tela anunciou o assalto 13, alguém disse: “É aqui que Conn vai cometer seu erro, vai querer sair na força bruta pra cima do Joe Louis”. O marido de Rose ficou quieto, saboreando seu scotch. 48 Quando os golpes combinados de Joe começaram a encaixar, Rose começou, “Pann! Paann!”, e então o corpo pálido de Conn começou a cair no tablado. Billy Conn começou lentamente a se levantar. O juiz contava. Suspendeu uma perna, depois as duas, depois já estava de pé – mas o juiz o forçou de volta. Era tarde demais. E então, pela primeira vez, do fundo da sala, subindo, como em ondas crescentes, desde as felpudas almofadas do sofá, surge a voz do atual marido – esta droga de Joe Louis outra vez. “Acho que o Conn levantou a tempo”, disse, “mas o juiz não o deixou continuar”. Rose Morgan não disse nada – apenas tomou o resto de sua bebida. (apud. LIMA, 2009, p.202) O texto de Talese é fruto de uma observação intensa, com mergulho do repórter no contexto do fato, da descrição de detalhes como o soco no ar da ex-esposa (Pann!), da presença efetiva dos diálogos dos personagens (“Oi, docinho!”). Talese consegue levar-nos até os personagens, apresentar-nos a eles e nos fazer participar da história. Não é difícil buscar na memória elementos que facilitem a compreensão da cena, que nos possibilitem remontar passo a passo os acontecimentos dessa história. E neste texto o que nos ajuda a chegar à melhor compreensão da história é o diálogo intenso que encontramos ali. O JL busca o resgate de narrativas desse âmbito nas publicações jornalísticas do cotidiano. Não queremos dizer com nosso estudo que os jornais de maneira geral devam adotar o jornalismo literário em totalidade nas suas edições. Propomos, porém, que busquem alguns espaços para que a reportagem volte a figurar nas principais páginas das publicações brasileiras. Algumas histórias merecem e necessitam de uma cobertura mais atenta às pessoas envolvidas no fato, ao ambiente em que isso se passa, às conseqüências que isso pode causar e, nem sempre, o repórter vai conseguir ficar imune, pois irá viver na pele os muitos conflitos humanos. Ainda sobre a importância da descrição de cenas e diálogos, Tom Wolfe (2005, p. 78) lembra-nos que o impresso, diferente do cinema e do teatro, trata-se de um meio indireto, que não cria imagens ou emoções, mas trabalha (ou deveria) com o estímulo das memórias do leitor. Por exemplo, escritores que descrevem cenas de bebedeira raramente tentam descrever o estado da bebedeira em si. Eles contam com o fato de o leitor já ter 49 estado bêbado em algum momento da vida. Dizem apenas: “Fulano estava bêbado – e, bem, você sabe como é. É importante destacar que descrições muito detalhadas podem se anular. Wolfe diz que os escritores tendem a fornecer apenas um esboço de desenho animado sobre seus personagens. No livro ‘Um dia na vida de Ivan Denisovitch’, Alexander Soljeinitsin fala: “Ivã Grande, um sargento alto, magro, de olhos pretos. A primeira vez que se via a cara dele era de meter medo...”.Ou: “Havia um ar de vazio na cara amassada e sem pêlos do tártaro”. (id.) Pronto. Isso é tudo o que o escritor-jornalista precisa descrever sobre seu personagem. O resto ficará a cargo do leitor que, feito o convite, busca recursos em suas memórias para completar o rosto do general. Tom Wolfe (2005, p. 79) revela ainda que essa tarefa básica de estimular as memórias do leitor tem vantagens “únicas e bastante maravilhosas”. Se os estudiosos do cérebro estiverem certos, a memória humana parece ser feita de um conjunto de dados significativos – ao contrário do que pretendia aquela teoria mecanicista mais antiga, de que ela era composta de dados sem sentido atribuído pela mente. [...] A memória de uma pessoa é, aparentemente, composta de milhões desses conjuntos, que funcionam com o mesmo princípio de um retrato falado. (2005, p. 79) Como exemplo podemos citar um texto de Jorge Caldeira sobre a final da Copa do Mundo de 2002. O texto consegue como poucos estimular nossa memória, e por isso temos a impressão de viajar junto com o autor. E serve para esclarecer uma dúvida constante entre os menos esclarecidos sobre o tema: é possível utilizar o estilo de cobertura literário para diversas editorias, inclusive no esporte. Veja: Oliver Kahn começa seu movimento para defender o chute de Rivaldo. Abaixase para encaixar a bola no corpo. Mas ela não segue exatamente a trajetória imaginada pelo goleiro alemão: apesar da distância, aquele chute era traiçoeiro mesmo para um homem acostumado a repetir o gesto milhares de vezes. A bola 50 vem baixa,sem tocar o solo. Encontra o corpo de Kahn a meio caminho do chão; em vez de bater contra o peito, escapa do braço e toca no braço esquerdo do goleiro; foge lentamente da tentativa desesperada de sua mão esquerda para contê-la. Enquanto o corpo completa sua queda inexorável, apenas seus olhos podem subir, e o que eles vêem faz sua face adquirir uma expressão de desespero. A imagem de Ronaldo cresce rápido, correndo na direção da bola que rola lentamente após escapar de seu controle. A partir daí, segue-se uma rotina implacável: ele tenta reordenar seus movimentos o mais depressa possível, ganhando o impulso que puder na fração de segundo em que a gravidade completa seu trabalho de mandá-lo ao chão, para tentar cobrir algum espaço do chute. Mas está apenas no início do caminho quando o centroavante toca a bola para dentro do gol, aos 22 minutos do segundo tempo. ( CALDEIRA, 2002, p. 9) O texto de Caldeira é também um misto de criatividade e beleza. Mostra ainda que é possível ser criativo, escrever bons textos, em qualquer editoria do jornalismo, seja em esportes, cultura, política ou outras. Mostra que as boas histórias estão por aí, em todo lugar. Basta o jornalista estar atento para apurá-las e contá-las. 2.3. Simbolismo e Estilo próprio A descrição dos personagens da história, o registro de gestos, hábitos, maneiras, costumes, peças de decoração e vestuário, modos de comportamento, são detalhes não menos importantes para a composição de textos envolventes, que prendem o leitor. O recurso do uso de detalhes simbólicos nos ajudam a identificar o status de vida de um personagem, por exemplo. Wolfe (2005, p. 55-56) conta que Balzac fazia o uso de símbolos de maneira a atrair os leitores, inseri-los na história. Eis o que Balzac fazia sempre e sempre. Antes de apresentar o leitor a monsieur e madame Marneffe em pessoa (n’A prima Bette), ele o leva à sala dos dois e realiza uma autópsia social: “A mobília coberta de veludo de algodão desbotado, as estatuetas de gesso fingindo bronze florentinos, o candelabro mal entalhado com seus anéis de vidro moldado, o tapete, uma pechincha cujo preço baixo se explicou tarde demais na quantidade de algodão que contém, agora visível a olho nu – tudo na sala, até as cortinas (que mostravam que a bela aparência de damasco de lã dura apenas três anos)”. 51 Os jornalistas dessa época de ouro do jornalismo norte-americano conseguiram atrair seus leitores para as páginas de jornais e revistas, pois saiam à caça de boas histórias, passavam dias, semanas ou meses com seus personagens e compunham seus textos usando todos esses recursos advindos do realismo social. E botavam ali uma pitada de seu estilo próprio. Uns abusavam dos diálogos, outros de descrições, alguns (como Wolfe) do uso de pontos de exclamação, enfim, tudo no intento de chamar a atenção do leitor. Veja o início de uma matéria de Tom Wolfe, por exemplo: “He-e-e-e-e-e-e-e-e-e-e-e-e-e-e-e-e-e-e-e-e-e-e-e-e-e-e-e-eriiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii”, gritam as presidiárias da Casa de Detenção de Mulheres de Greenwich Village quando lá embaixo, no cruzamento conhecido como Céu dos Loucos, passam os rapazes. (2005, p. 240) Que leitor consegue “passar batido” por um texto que começa assim? Wolfe conta que as presidiárias costumavam gritar para os rapazes que passavam na rua, em frente ao presídio. E gritavam todos os nomes masculinos que podiam imaginar – Bob!, Joe!, Jack!, Jimmy! – até acharem o nome certo e o tal cara olhar para cima e responder. Para o autor, o período também permitiu essas inovações e variações com estilos diferentes de escrita, já que não chamava muita atenção dos jornalistas mais conservadores que não admitiam tais inovações no campo jornalístico. O espaço que conseguiam (os jornalistas) para tais façanhas eram os suplementos dominicais, onde não se tinha muita obrigação de seguir os padrões do jornalês americano. É claro que a qualidade dos textos e das reportagens em geral também está ligada ao repertório de cada jornalista. Porém, guardadas as devidas proporções, com um pouco de ousadia e criatividade é possível compor textos com qualidades semelhantes a estes ou, ao menos, melhores do que os encontrados na imprensa diária. Em suma, o new journalism adequou alguns recursos para compor um texto jornalístico confluente com a literatura e a realidade. Obtinha-se a valorização do ponto de vista de quem estava diretamente ligado e envolvido com os movimentos desse período, dando, assim, voz a quem a imprensa racionalista nega. Os “novos jornalistas” primavam pela observação intensa, próxima. Partiam a campo e vivenciavam junto com seus personagens todos os movimentos contra culturais da época. Mergulhavam de corpo e alma nos conflitos humanos e voltavam para contar em um texto com 52 sabor, cor, cheiro. Botavam em seus textos mais do que respostas de perguntas como O que? Quem? Quando? Onde? Por quê? Como?. Traziam respostas que ajudavam seus leitores a viajar junto no texto, como, por exemplo, Com que roupa?, Em que contexto?, Quais os hábitos dos personagens da história? Como estes se relacionam com seus filhos e funcionários?, etc. E para mostrar essa realidade da maneira mais fidedigna possível “topavam qualquer parada”. Quando queriam mostrar como era a vida de um gari de Nova York, por exemplo, passavam a trabalhar como tal. Para descrever a vida de bombeiros nas cidades mais movimentadas dos Estados Unidos ingressavam na corporação. Edvaldo Pereira Lima (2009, p. 195) lembra que “à objetividade da captação linear, lógica, somava-se a subjetividade impregnada de impressões do repórter, imerso da cabeça aos pés”. Tudo no intento de reportar melhor, de dar motivos para o leitor ficar grudado nas páginas de sua reportagem até o fim. Atrelado a isso, somava-se o estilo de cada jornalista. Que cada qual a sua maneira tentavam brindar seus leitores com bons textos. Tom Wolfe (2005, p. 23-24) nos mostra que desde o início do new journalism alguns bons jornalistas já demonstravam que era possível mudar a cara dos jornais do país. O Herald Tribune contratou Breslin (Jimmy) para fazer uma coluna local “divertida”, que ajudasse a compensar um pouco o peso da página editorial, paralisando vendedores de roncos como Walter Lippmann e Joseph Alsop. As colunas de jornal tinham passado a ser um exemplo clássico da teoria de que as organizações tendem a promover as pessoas aos seus próprios níveis de incompetência. A prática normal era dar ao sujeito uma coluna como prêmio por grandes serviços prestados como repórter. Dessa maneira, podiam perder um bom repórter e ganhar um mau escritor. O arquétipo do colunista de jornal era Lippmann. Durante 35 anos, Lippman parecia não fazer nada além de ingerir o Times todas as manhãs, ruminá-lo ponderosamente durante alguns dias e depois metodicamente defecá-lo na forma de uma gota de papa na testa de diversas centenas de milhares de leitores de outros jornais nos dias seguintes. Que eu me lembre, a única forma de reportagem que motivava Lippman era o ocasional tapete vermelho da visita de um chefe de Estado, durante a qual tinha a oportunidade de sentar em poltronas engalanadas, em salas com lambris, para engolir as mentiras oficiais da celebridade em pessoa, em vez de lê-las no Times. Porém, não tenho a intenção de tomar Lippman como exemplo. Ele só fazia o que se esperava dele... De qualquer modo, Breslin fez uma descoberta revolucionária. Descobriu que era possível um colunista efetivamente sair do prédio, ir para a rua e fazer uma reportagem com suas próprias e legítimas pernas. Breslin ia ao editor de Cidade e perguntava que matérias e que tarefas estavam entrando, escolhia uma, saía, deixava o prédio, cobria a história como repórter e escrevia a respeito em sua coluna. Se a matéria era grande sua coluna começava na página 1 em vez de começar dentro. 53 O que Wolfe nos mostra é que essa época foi mesmo um período bastante interessante para o jornalismo. Foi um período em que alguns bons jornalistas conseguiram se sobressair, mostrar o que poderiam fazer de bom para seus leitores. Foi um momento de boas inovações. Revela ainda que fazer um bom jornalismo depende muito da vontade do próprio jornalista, deste querer sair às ruas de olhos atentos, garimpar e contar boas histórias. E histórias é o que não faltam. Wolfe usa Jimmy Breslin e Walter Lippmann para exemplificar dois perfis de jornalistas, um que considera o jornalista ideal (Breslin) e outro que qualifica como “vendedor de roncos”. Wolfe (2005, p. 25) conta sobre um de seus jornalistas preferidos, Jimmy Breslin. Fala de sua infinita capacidade de sair às ruas pela manhã, voltar as quatro da tarde e escrever textos, não raro, muito bons. “Nunca vi um homem que conseguisse escrever tão bem com um prazo diário”. Veja agora um texto de Breslin, onde o jornalista conta sobre a condenação por extorsão de um chefão caminhoneiro chamado Antony Provenzano. Perceba a preocupação do autor dessa narrativa com os detalhes: Não parecia uma manhã ruim, de modo algum. O chefão, Tony Provenzano, que é um dos maiorais do Sindicato dos Caminhoneiros, andava de um lado para outro no corredor externo de um tribunal federal em Newark, com um sorrisinho no rosto, brincando com uma piteira branca entre os dedos. “O dia hoje está bom para pescar”, disse Tony. “A gente devia sair e pegar um anzol.” Então esticou um pouco as pernas e foi até um sujeito grandão, chamado Jack, que estava de terno cinza. Tony estendeu a mão esquerda de forma a jogar um anzol para esse tal de Jack. O grande anel de diamante no dedinho de Tony relampejou à luz que entrava pelas janelas altas do corredor. Tony então girou e deu um soco no ombro de Jack com a mão direita. “Sempre no ombro”, riu um dos sujeitos no corredor. “Tony está sempre batendo no ombro de Jack”.(apud WOLFE, 2005, p. 25-26) A matéria segue nessa batida, com algumas pessoas bajulando o chefão Tony Provenzano, enquanto o sol explode em seu anel de diamante no dedinho. Dentro do tribunal, porém, a história começa a mudar. O juiz passa-lhe um sermão daqueles de dar nó na garganta e o chefão, agora, sua no lábio superior. O juiz o condena a sete anos de prisão. Provenzano fica a girar o anel no dedinho. Breslin, então, encerra a matéria com uma cena onde o jovem promotor do caso come escalopes fritos e salada de frutas num bandeijão. “Em suas mãos nada cintilava. O sujeito 54 que afundou Tony Provenzano nem ao menos tem um anel de diamante no dedinho”. (WOLFE, 2005, p. 25-26) O texto de Breslin tem aparência de conto e, melhor, é história da vida real. Essa era a grande vantagem que os novos jornalistas conquistaram em relação aos romancistas depois que começaram a incorporar recursos da literatura em seus textos: contavam com o fato de escreverem sobre fatos reais. Histórias reais com características de textos romanescos. Voltando ao texto de Breslin, percebe-se a riqueza de detalhes que compõe a narrativa. O sol adentrando às janelas e explodindo no anel de diamante no dedinho do chefão. Essa descrição de Breslin é o seu convite a nós, leitores. O convite para que busquemos em nossa memória que tipo de pessoa usa um anel de diamante. Para que criemos nosso Tony Provenzano e entremos com ele na história. E mais. Por que ele fecha dizendo que o jovem promotor que afundou Tony nem ao menos usava um anel de brilhantes no dedinho? Dizia Walter Benjamim (1985, p. 200) que as narrativas “tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa atividade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida - de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos”. (1985, p.200) E o que a história de Breslin nos ensina? Simples: “de nada serve ter um anel de brilhantes e puxa-sacos ao seu lado te bajulando, pois caso você não cumpra a lei pode ser mandado para cadeia até mesmo por um jovem promotor.” Edvaldo Pereira Lima (2009, p. 379) diz: O simbolismo ajuda a consolidar na mente do leitor a síntese, a imagem, o sentido de um acontecimento, pois se vale do discurso poético, do código visual. Os significados que não estão evidentes pelos fatos eu preciso ter tirocínio para entender, mesmo que o meu protagonista não consiga verbalizar. Wolfe (2005, p.26) conta que Breslin criou o hábito de chegar ao local da cobertura muito antes do evento principal, a fim de: [...] coletar material por tras das câmeras, o jogo da sala de maquiagem, que lhe permitia criar personagens. Parte de seu modus operandi era colher detalhes “romanescos”, os anéis, a transpiração, os socos no ombro, e ele fazia isso com mais habilidade que a maioria dos romancistas. 55 O jornalismo precisa de textos que tenham essas características, que levem o leitor a imaginar uma cena, várias. No jornalismo impresso então, mais ainda. Para termos um exemplo, pense em uma estrofe de qualquer música que você goste muito. Qualquer uma... Consegue cantá-la se necessário? Pois bem, agora tente lembrar uma frase inteira de algum livro que você também admire muito... Mesmo que consiga, é mais difícil, não é? Os jornalistas precisam, portanto, compor textos como música. Arte mesmo. No impresso, por se tratar de um meio indireto, essa tarefa é ainda mais urgente. E, para tanto, pode fazer o uso do simbolismo, a partir da utilização, por exemplo, de metáforas. Afinal, como já diziam os antigos mestres chineses: “uma imagem vale mais que mil palavras”. Em 1975 acontece uma importante luta de boxe em Kinshasa, capital do Zaire, envolvendo um dos lutadores mais famosos de todos os tempos, o campeão mundial Muhammad Ali, e o atual campeão da categoria peso-pesado na época, George Foreman. Muhammad Ali já não está em sua melhor fase, já que teve seu direito de exercer a profissão cassado havia alguns anos e, agora, voltava aos ringues. Foreman, também negro e alguns anos mais jovem defende o título de campeão que Ali almeja. Muitos jornalistas partem para a cobertura da luta que era considerada a “luta do século”. E entre esses está Norman Mailer, um dos expoentes do new journalism. A “briga” se resume em: um jovem campeão mundial querendo mostrar a que veio contra o grandalhão, e já não na melhor das condições físicas, que busca em sua experiência de 20 anos como lutador, elementos que o levem à vitória. Outro destaque e, talvez um dos mais surpreendentes, é Mailer, com sua observação impecável e minuciosa. O jornalista faz o uso de metáforas com extrema categoria em seu texto, nos ajudando a imaginar a luta. Vale a pena ver um bom pedaço deste texto: Para comemorar, atingiu Foreman com mais um direto de direita. Ao longo das fileiras da imprensa, uma exclamação saltava de um lado a outro: “Ele está batendo de direita”. Fazia sete anos que Ali não socava com tal eloqüência. Campeões não mandam diretos de direita a outros campeões. Não no primeiro assalto. Esse é o golpe mais difícil e mais perigoso. Difícil de administrar e perigoso para quem o usa. Em quase 56 todas as posições, a mão direita precisa deslocar-se mais do que a esquerda, no mínimo trinta centímetros a mais. Boxeadores lidam com centímetros. No tempo gasto para a mão direita atravessar aquele espaço adicional, alarmes soam no oponente, contra-ataques se iniciam. O adversário se esquiva por sob a direita e arranca a cabeça do outro com a esquerda. De modo que não é com freqüência que bons lutadores coloquem a direita à frente quando enfrentam outro bom boxeador. Não no primeiro round. Eles esperam. Preservam a mão direita. É o símbolo de sua autoridade, pronto para punir a esquerda que chega devagar demais. Joga-se a direita por cima de um jab; bloqueia-se um gancho de esquerda com o antebraço direito e devolve o golpe num direto. São máximas clássicas do boxe. Todo comentarista de boxe as conhece. É de tais princípios que extraem suas interpretações. São bons engenheiros em Indianápolis, mas Ali está a caminho da Lua. Diretos de direita! Meus Deus! No minuto seguinte, Ali usou contra Foreman uma combinação rara como plutônio: o punho direito em riste, seguido de um gancho aberto de esquerda. Spring-zing! Fizeram aqueles socos, um raio na cabeça, outro raio na cabeça: a cada vez, Foreman arremetia numa fúria assassina, era agarrado pelo pescoço e girado. Cada vez que era atingido, a ameaça que representava se tornava mais palpável. Embora os golpes o enlouquecessem, não o estavam enfraquecendo. A essa altura, outro lutador já estaria cambaleando. Foreman meramente pareceu ainda mais destrutivo. Suas mãos não perderam a velocidade, suas mãos pareciam tão rápidas quanto as de Ali (exceto quando era atingido) e em seu rosto desenvolviase um apetite assassino. Há anos não era tratado com tanta falta de respeito. Não se via mais o George amável das entrevistas coletivas. Havia clareza em sua vida. Ele iria desmembrar Ali. À medida que ia sendo atingido e agarrado, atingido e agarrado, um novo medo se espalhou pelas cadeiras do ringue. Foreman era espantoso. Àquela altura Ali já o acertara com cerca de quinze bons golpes na cabeça e não tinha sido atingido uma única vez. O que aconteceria quando finalmente Foreman conseguisse pegar Ali? Nenhum Peso-Pesado conseguiria manter a velocidade daqueles golpes, não durante mais catorze rounds. Mas o primeiro não tinha sequer terminado. No último minuto, tendo forçado Ali e estando junto a ele, Foreman afastou-se e enviou um uppercut de direita por entre as luvas de Ali, e depois mais um. O segundo atravessou o topo da cabeça de Ali como uma lança. Os olhos de Ali se elevaram consternados e ele segurou o braço direito de Foreman com o seu esquerdo, apertou-o, agarrou-se. Mesmo com o braço seguro, Foreman ainda estava disposto a enviar sua boa direita de novo, o que fez. Quatro direitas pesadas e só meio abafadas, contundentes como os golpes desferidos contra o saco, duas 57 contra a cabeça, depois duas no corpo, chocando-se contra Ali mesmo seguro por este, e era evidente que os socos estavam doendo. Ali saiu das cordas no abraço mais determinado de sua vida, as duas luvas presas atrás da nuca de Foreman. Os brancos dos olhos de Ali exibiam o aspecto vidrado de um soldado em combate que acaba de ver um braço desmembrado voar pelo céu após uma explosão. Que tipo de monstro era aquele? (1998, p. 157-158) O uso de metáforas serve para que tenhamos idéia de intensidade, impacto, pois trabalha com conteúdos imagéticos. No texto de Mailer, por exemplo, os socos viram raios na cabeça, o lutador se transforma em monstro, o olhar do boxeador passa a ser como o olhar de um soldado em um campo de batalha. Serve para que tenhamos uma melhor noção daquilo que o autor quer expressar. Edvaldo Pereira Lima (2009, p. 383) diz que o uso de recursos como esse são essenciais em textos narrativos. E justifica dizendo que estes contêm mais do que palavras, contêm ainda: [...] sinais artificiais de um código, a língua, organizado de uma maneira previamente convencionada para que possamos nos comunicar – e traços gráficos. Contêm cores, sabores, impressões, dimensões espaciais – largura, altura, profundidade - , objetos, volumes. Pensamentos. Emoções. Por isso o fazem vibrar. Por isso sensibilizam o seu sistema nervoso, estimulam sua mente, tocam suas entranhas. Quando fazem com habilidade, você se interessa. Você se encanta. Você é seduzido. Você aceita o convite, embarca na viagem. E lê o texto com prazer. Até o fim. O autor de jornalismo deve fazer isso, afinal de contas a vida real é cheia de imagens, sons, cores, vibrações, cheiros. O jornalista deve perceber tudo à sua volta e contar com um texto que consiga prender seu leitor. O que não é tarefa das mais fáceis, já que nós humanos tendemos a ser bastante dispersos. Mas os textos com recursos como os que apresentamos anteriormente conseguem cumprir essa árdua tarefa. 2.4. Humanização 58 É disso que estamos falando. Jornalismo com sabor, conteúdo, ensinamento. Fruto de uma observação intensa, caprichosa. Jornalismo de dar gosto de ler. O texto do jornalista mexicano David Martín nos traz um belo exemplo de cobertura humana, compromissada, com participação ativa dos personagens desta história: Novembro apenas começava. Sem sentir, Juana Otiz despediu Irineo naquela manhã de outono de 1983. Chamavam a Irineo Marin de El Chaguo, porque era natural de Chahuites, Oaxaca, onde foi bóia-fria até que alguém lhe disse que ‘pegar peixe’ era uma forma simples de sair da miséria. Mudou-se para Puerto Madero, em Chiapas, onde conheceu Juana e onde certamente saiu da miséria... Naquela manhã soprava o ‘sul’, fresco e talvez demasiadamente cedo, quando os barcos dos pescadores de tubarão já saíam do porto, rápidos, abrindo estrias com ondas de espuma. El Chaguo havia tido dois dias excelentes de trabalho, 800 e 950 quilos de tubarão, e com isso poderia ajuntar para a entrada numa geladeira, que tanto queria Juana Ortiz de Marin. Pilotava a Conti I, a todo vapor. Dizem que Juana compreendeu tudo desde o momento que percebeu o cheiro de gás. Estava em casa, uma choça de varas e folhas de palmeiras, de quatro por cinco metros, aquela mesma tarde, preparando merenda: peixe frito, feijão, moendo café; quando o cheiro de gás disparou-lhe um suspiro de terror: o vento havia apagado a chama do fogareiro, um pé de vento que a golpeou e fugiu, como estendendo um músculo; e Juana já estava, de pronto, caminhando para a barra do novo porto. Escurecia, as rajadas açoitavam com grãos de areia, a tormenta desatara-se. Em pouco tempo agruparam-se as mulheres, mães e esposas de um punhado de homens que em alto-mar enfrentavam a súbita tempestade. Olhavam-se com a pobre luz do crepúsculo, depois olhavam para o horizonte plúmbeo; porque tudo o que podiam fazer nesta quinta-feira, 3 de novembro, no que restava do dia, era olhar; olhar a bofetada do vento que se intrometia nas anáguas da própria noite.. Chus Pinón Rodas e seu pai Florentino consolavam as mulheres, davam-lhes ânimo; não tinham podido sair do porto, aquela manhã, uma avaria no motor. “Não vão se afundar todos”, dizem que Florentino Pinón disse, com seus anos de experiência, e tinha razão. Antes do amanhecer voltou o primeiro barco, com três tripulantes: um deles devia ser náufrago. E logo outros dois, e outro, e outros três... homens mudos que pisavam o solo, com veneração inaudita. Saiu o sol, haviam regressado muitas das 76 lanchas. Juana Ortiz dois meses de casada tinha quando, sem mais, inaugurou sua viuvez com uma lágrima. (CAMPO, 1987, p. 187) Se a cobertura deste fato fosse realizada pela imprensa convencional, a riqueza literária deste texto não poderia existir. Para exemplificar, vejamos como ficaria este texto nos moldes da imprensa cotidiana: 59 Uma tempestade em alto-mar matou mais de 40 pescadores no último dia três de novembro. Os trabalhadores de Puerto Madero, Chiapas, pescavam tubarões nesta região do México e alguns deixaram esposa e filhos. Outros perderam suas embarcações, fonte de sustendo das muitas famílias que moram na pequena cidade. Florentino Pinón, um dos poucos pescadores a não participar da pescaria nesse dia devido a uma pane no motor de seu barco, disse que tempestades como esta não são comuns nesta época do ano... Claro está que a primeira narrativa exige maior dedicação do jornalista e do veículo para o qual ele trabalha. Porém, as publicações teriam qualidades não alcançadas pela imprensa tradicional, tais como à composição do texto, a apuração rigorosa (imprescindível no trabalho jornalístico), a humanização e a inserção do leitor no fato narrado. O texto do mexicano David Martín consegue estimular as memórias do receptor, criar imagens mentais que os conduzem a um melhor entendimento e interesse pelo texto. Como vimos, o texto de Martín preza pela humanização, por mostrar a realidade de pessoas comuns em suas diferentes vidas. Edvaldo Pereira Lima (2009, p. 359) diz que esse importante pilar do jornalismo literário é essencial já que: Queremos antes de tudo descobrir o nosso semelhante em sua dimensão humana real, com suas virtudes e franquezas, grandezas e limitações. Precisamos lançar um olhar de identificação e projeção humana da nossa própria condição nos nossos semelhantes, sejam celebridades ou pessoas do cotidiano. A humanização é um fator importante para a cobertura jornalística, pois não trata os seres humanos como fontes, mas sim como personagens, protagonistas de histórias da vida real. O jornalista literário sai às ruas em busca de histórias de pessoas de todo o tipo. Ouve sobre suas vitórias e derrotas, alegrias e tristezas. E depois conta sobre esse universo com um texto vibrante, levando seus leitores à reflexão. O leitor encontra na narrativa elementos que o ajudam a refletir sobre sua própria vida, sobre os conflitos da humanidade. Para Edvaldo Pereira Lima (2009, p. 138), as narrativas jornalísticas devem captar um conjunto de acontecimentos no intento de envolver o leitor de forma a conduzi-lo a um novo patamar de compreensão do mundo e, ainda, de si mesmo, pelo espelho que encontra nos seus semelhantes retratados pelo relato. E a narrativa de estilo literário permite esta reflexão do leitor a 60 partir do espelho que cita Lima, pois valoriza a participação dos personagens da vida real. Abre espaço para o diálogo possível onde a vida deste agente é contada por ele num espaço amplo. A composição do texto de cunho literário se torna outro atrativo para o leitor, na medida em que torna possível a utilização de funções de linguagem como a expressiva, a conativa e a poética, enquanto o texto da imprensa cotidiana utiliza apenas a função referencial. Em suma, o texto de estilo literário pode utilizar elementos narrativos importados da literatura como diálogos, descrições e fluxo de consciência, a fim de deixar o texto mais agradável para a leitura. Na imprensa cotidiana a limitação imposta pelo processo racional impede que isso ocorra. 2.5. Imersão, exatidão de dados e fluxo de consciência O propósito central dessa trupe dos anos sessenta era buscar a compreensão dos conflitos sociais. E para cumprir esse objetivo não havia melhor coisa a fazer se não ir para as ruas para ouvir, sentir, pegar, cheirar, enfim, mergulhar de cabeça no ambiente de vivência dos personagens da história para “compreender suas motivações, seus valores, a origem possível de determinadas atitudes, a conseqüência de uma postura.” (LIMA, 2009, p. 377) Com o new journalism, é verdade, muitas vezes a imersão do repórter foi muito radical, extrapolando limites. Como o caso do jornalista Hunter Thompson, que se “enturmou” com os Anjos do Inferno (um grupo de motoqueiros) por dezoito meses para contar sobre seus hábitos e acabou se machucando quando, em um belo dia, os integrantes do grupo lhe deram uma surra. Mas a imersão não precisa ser radical assim. Um texto de George St. George, citado por Edvaldo Pereira Lima em Páginas Ampliadas, 2009, exemplifica nossa reflexão. A reportagem conta de uma situação engraçada e peculiar que acontece numa região remota da Ásia Central: Atravessamos o riacho e iniciamos a subida da encosta do outro lado. Na minha montaria, começava a sentir-me tão à vontade quanto um verdadeiro djigit, ou seja, um rude montador de iaques. Nós havíamos percorrido uns 100 metros (digo ‘nós’, mas na verdade o animal era o único encarregado da viagem, pois eu nem sequer sabia o que fazer com a corda) quando, de repente, sem aviso prévio o iaque mudou bruscamente de atitude. Deu uma violenta guinada para frente e para baixo, e eu me estatelei no chão. Por um momento, fiquei atordoado. Ao levantar-me, tremendo, vi meu iaque comendo calmamente um tufo de capim. Então, entendi o que o motorista havia dito. Sendo um animal ruminante, capaz 61 de armazenar alimento para mastigá-lo mais tarde, o iaque não perde a oportunidade de encher a boca. Eu faria provavelmente o mesmo, se fosse iaque. - Mais uns dois ou três anos e você montará como um verdadeiro djigit - disseme o motorista. – Todos caem nas primeiras dez, vinte, trinta vezes. (apud LIMA, 2009, p. 126) A intenção de George não é apenas contar seu passeio, mas a partir disto mostrar a cultura dessa região da Ásia, conhecer os djigits, seus costumes e crenças. Além das impressões do próprio repórter, constam ali os diálogos dele com os nativos desta região, o que nos dá uma dimensão daquele povo. Para isso é imprescindível que o repórter entre de cabeça na vida de seus personagens, tente captar tudo o que percebe ser essencial para contar a história de vida de seus personagens. Os novos jornalistas tinham a vantagem na cobertura também por estarem sempre muito próximos aos seus personagens, podendo assim observar muitas atitudes desses, relatar diálogos completos e extensos, passar a compreender até alguns pensamentos dos protagonistas da história. Essa proximidade permite que o autor de jornalismo literário mergulhe no mundo vivido por seus personagens, compreenda suas ações e volte para contar com um texto rico. Wolfe (2005, p. 203-205) escreveu um texto sobre o escritor Ken Kesey, um dos adeptos até os ossos aos movimentos contraculturais norte-americanos. O autor de Um estranho no ninho - que ficaria conhecido mais tarde com a versão do cinema estrelada por Jack Nicholson – havia sido condenado a cinco anos de prisão por posse de maconha e, então, se escondera no México. Mas, paranoicamente, Kesey via policiais por todo o lado em seu encalço. Tom Wolfe conseguiu, a partir de entrevistas com o escritor, com seus colegas de fuga, por consultas a cartas que Kesey escrevera a um amigo e ainda aos “tapes” que o próprio escritor gravara de si mesmo no esconderijo, trabalhar o fluxo de consciência aliado ao uso do ponto de vista convencional - em terceira pessoa. O texto faz parte de seu livro The eletric Kool- aid acid test, e nos mostra a importância de se “grudar” ao seu personagem e só soltar quando tiver extraído dele elementos suficientes para compreender e contar sua história. Veja alguns trechos do fluxo de consciência: Mexa o rabo, Kesey. Mova-se. Suma. Dê no pé se manda desapareça desintegre-se. Corra. Rrrrrrrrrrrum rumrumrumrumrum ou nós vamos ter uma tardia reprise mexicana de cena no telhado de São Francisco e sentar 62 aqui com o motor girando e ver fascinados os tiras subindo uma vez mais pra vir pegá você: ELES ACABAM DE ABRIR A PORTA LÁ EMBAIXO, ESQUADRINHADOR DE ROTOR, ASSIM VOCÊ TEM 45 SEGUNDOS, PRESUMINDO QUE ELES SEJAM LENTOS E SORRATEIROS E SEGUROS DO QUE FAZEM. Kesey está sentado num pequeno quarto, no andar superior da última casa na praia, 80 dólares ao mês, na baía cor azul de paraíso Bandarias, em Puerto Vallarta, na costa oeste do México, estado de Jalisco, a um passo das desleixadas folhagens verdes da selva, onde floresce vicejante vaporosa lascívia babuínica de paranóia. Kesey senta-se neste raquítico quartinho superior com os cotovelos sobre a mesa e o antebraço segurando perpendicularmente na palma da mão um espelhinho, de modo que antebraço e espelho são assim como o suporte de um grande retrovisor lateral de um caminhão e portando ele pode olhar para fora da janela e vê-los mas eles não podem vê-lo: VAMOS LÁ, HOMEM, VOCÊ PRECISA DE UMA CÓPIA DO ROTEIRO PARA VER COMO ESTE FILME CONTINUA? VOCÊ TEM 40 SEGUNDOS PARA ELES PEGAR VOCÊ. Um Volkswagen passa na rua para lá e para cá, por nenhuma razão do mundo, exceto pelo fato de que eles estão obviamente trabalhando com os operários de araque da linha telefônica fora da janela e eles assobiam: AÍ VÊM ELES OUTRA VEZ! Assobiam do jeito bóia-fria cabeça-lenta parda mexicana nenhuma razão do mundo, exceto que eles estão de tocaia, com o Volkswagen. Agora um sedã bronze se aproxima pela rua, sem a placa comum, mas com uma chapa branca – exatamente com a chapa da prisão – polícia e dois caras sem paletó dentro, ambos de camisas brancas, portanto não são prisioneiros. UM OLHOU PARA TRÁS! SE VOCÊ ESTIVESSE ASSISTINDO TUDO ISSO NO CINEMA VOCÊ SABE QUAL SERIA SUA REAÇÃO COM A BOCA CHEIA DE PIPOCA NA TERCEIRA FILA: “O QUE MAIS VOCÊ QUER, SEU PATETA! SE MANDA DAÍ...” Mas ele acaba de jogar cinco dexedrinas no estômago e o velho motor está girando e rodando bem eufórico fascinado e um homem não pode abandonar este aconchegante porto na baía azul de paraíso de Bandarias com um riacho legal de fogo veloz nas veias. É uma pitoresca cenazinha de tocaia que vê no espelho de mão. Ele pode incliná-lo e ver seu próprio rosto carregado pelo esforço incliná-lo – um sinal! – um pombo, gordo e macio, mergulha sob o sol minguado para dentro de um buraco num dos postes; lar. MAIS CAMINHÕES DE TELEFONE! DOIS ASSOBIOS ALTOS DESTA VEZ – POR NENHUMA RAZÃO DO MUNDO EXCETO PARA VIR PEGAR VOCÊ. VOCÊ TEM 35 SEGUNDOS. (apud WOLFE, 2009) 63 Esse instrumento de captação foi altamente criticado por jornalistas mais conservadores e céticos, que diziam que os diálogos e os fluxos de consciência poderiam ser facilmente inventados. Wolfe negava as acusações e alegava que os críticos estavam aquém do que criticavam. Mas essa discussão é relativa, já que a falta de ética no jornalismo pode ocorrer também nas redações tradicionais. A virtude do novo jornalismo está relacionada ao fato de esses jornalistas buscarem tudo o que os jornalistas convencionais buscavam para suas matérias e algo a mais. Buscavam diferenciais que contribuíam na compreensão do fato por parte de seus leitores. Outro pilar desse estilo criativo de cobertura jornalística é a exatidão e precisão de dados. Pois como em qualquer estilo de matéria jornalística o texto literário precisa estar ancorado em dados, precisa informar, e para isso precisa trazer elementos que nos levem a acreditar na verossimilhança da matéria. E o JL faz isso com criatividade e de uma forma bem mais agradável para o leitor. Veja nesse exemplo de Gay Talese, em Fama & Anonimato: Uma senhora carnuda, com uma sacola de Macy’s numa das mãos e a mão de seu filho na outra esperava impaciente no balcão de cachorroquente da Nedick’s. Então olhou para o filho e perguntou: “O que você quer, Marvin?” “Hambúrguer”, respondeu ele “Leve um cachorro-quente”, disse ela. “Eu quero hambúrguer”, ele gritou Plaft! Ela deu com a bolsa na cabeça dele.Ele gritou, mas ela insistiu: “Coma um cachorro-quente”. Marvin levou um cachorro-quente. Ninguém na Nedick’s prestou atenção; estavam todos ocupados em se empanturrar; além do mais, esse tipo de perturbação acontece quase todo dia na Nedick’s, na Thirty-Fourth Street com a Broadway – a barraquinha de cachorro-quente mais movimentada do mundo. Todo dia, como observou o sr. Kyle, 300 mil pessoas passam por aquela esquina. E 8 mil vão (ou são empurrados) até a Nedick’s, onde passam uns quatro minutos engolindo uma média de setecentos hambúrgueres, mil xícaras de café, 5 mil cachorros-quente e 5500 refrescos de laranja. A Nedick’s ocupa apenas 93 metros quadrados de terreno, e fica na esquina da R.H Macy’s. “Mas a gente sempre diz que a Macy’s fica perto da Nedick’s”, diz o presidente da cadeia Nedick’s, Lewis H. Phillips. A barraquinha de cachorro-quente prospera naquela esquina desde 1947, o faturamento anual é estimado em 400 mil dólares, com refrescos de 64 laranja a dez centavos, cachorros-quentes a vinte e hambúrgueres a quarenta. Dia e noite, ouve-se o tilintar das caixas registradoras, salsichas giram nos espetos, a laranjada jorra nos copos e o ar fica saturado de ansiedade e do chiado da carne de porco, em meio a diálogos rápidos entre fregueses e balconistas. “Pois não, senhorita?”, pergunta a garçonete. “Hambúrguer”, diz a freguesa. “Hambúrguer!”, grita a garçonete para o cozinheiro. “Hambúrguer saindo!”, grita de volta. “Copos!”, avisa o lavador de pratos à garçonete. (2004, p. 93-94) Como outra matéria jornalística, esta de Talese contém uma boa quantidade de dados. A diferença está na forma como estas informações foram dispostas para o leitor. O trabalho jornalístico se alia à criatividade e ousadia do autor de jornalismo literário e o resultado são textos mais saborosos para o leitor. Textos diferenciados para que ele se sinta instigado a permanecer ali até o fim da matéria. Talese abusa também dos diálogos, outro fator importante e valorizado nesse estilo de cobertura, pois “diálogos tendem a ser envolventes ou atraentes para o leitor” (WOLFE, 2005, p. 33). Acreditamos que os elementos apresentados até aqui sejam suficientes para nos ajudar a compreender um pouco sobre o que é o jornalismo literário, quais são seus principais pilares (humanização, imersão, uso de diálogos e símbolos como metáforas, estilo próprio, voz autoral). Que tenhamos trazido alguns bons exemplos do emprego desses elementos em textos jornalísticos, ajudando-nos, assim, a termos uma idéia da diferença entre a cobertura humanizada proposta pelo jornalismo literário e o estilo convencional, praticado pela imprensa racional cotidiana. 2.6. Pesquisa norte-americana Não queremos dizer com nosso estudo que o lead e a fórmula piramidal devam ser banidos das páginas dos jornais brasileiros. Mas sim que as publicações sejam revistas e que as boas histórias voltem a fazer parte de nossas publicações. Pensamos que as reportagens em série 65 seriam um bom caminho para tentar brindar os leitores com algo diferenciado, algo a mais, complementar. E possivelmente provocaria um aumento nas vendas, pois os leitores se sentiriam instigados a comprar as próximas edições daquele jornal para ler a continuação daquela história. Também no sentido de evidenciar as falhas cometidas pelos veículos de comunicação as instituições americanas American Society of Newspapers Editors (www.asne.org), entidade que congrega cerca de 900 editores-diretores de diários; a Newspaper Association of America (www.naa.org), organização das empresas editoras de jornais nos Estados Unidos e no Canadá, com mais de 2.000 jornais filiados, totalizando um negócio total de mais de US$ 57 bilhões; e o Media Management Center (www.mediamanagementcenter.org), da Universidade Northwestern, realizaram o “mais amplo estudo sobre leitura de jornais já realizado nos Estados Unidos” (Readership Institute In: LIMA, 2005). Edvaldo Pereira Lima (2005) publicou, em uma série de artigos sobre experiências americanas com narrativas em jornais, todas as informações sobre essa pesquisa. O texto está disponível no site da ABJL (Academia Brasileira de Jornalismo Literário). E devido à importância dos resultados dessa pesquisa para nosso estudo, resolvemos publicá-la na íntegra. As três instituições se uniram para um ataque de fôlego ao problema, lançando um programa de cinco anos de duração. Para viabilizar as iniciativas, criaram, juntas, o Readership Institute (www.readershisp.org), realizando como primeiro grande projeto o “Impact Study”, no ano 2000, cuja principal meta é propor, a partir de uma criteriosa pesquisa de campo, medidas para aumentar a leitura dos jornais. Os pesquisadores selecionaram cem diários de cobertura geral de diferentes tamanhos e condições de mercado. Mas adotam como padrão mínimo tiragem de 10 mil exemplares, deixando de fora, porém, tanto veículos de circulação nacional quanto jornais especializados. Nos Estados Unidos e Canadá, examinaram mais de 74 mil matérias publicadas e entrevistaram mais de 37 mil consumidores, entre leitores e não-leitores de jornais. A primeira constatação da pesquisa: 85% da população adulta norteamericana lê jornais. O comportamento de leitura varia do grau máximo – leitura intensa e diária – ao ocasional, considerando-se a freqüência, o tempo e a intensidade (critério baseado no número de matérias lidas e na leitura completa ou não das mesmas). Cruzando todos esses critérios, tendo como foco o jornal contemplado como referência para a pesquisa com seus leitores, os analistas acabaram classificando os leitores em oito categorias: “leitores completos” (21% da 66 amostra, significando os que atingem marcas altas em todos os critérios da pesquisa); e, no outro extremo, os “domingueiros leves” (7% da amostra), pessoas que só lêem jornais nos domingos, mesmo assim apenas parcialmente. A partir dos demais resultados – que não estão disponibilizados publicamente -, o estudo aponta oito itens estratégicos para melhorar a leitura dos jornais, conquistar leitores e mantê-los fiéis: 1. aumentar o conteúdo editorial de potencial de crescimento; 2. tornar o jornal mais fácil de ler e de navegar; 3. elevar a qualidade dos serviços de atendimento ao cliente; 4. destacar matérias locais de interesse específico; 5. melhorar o conteúdo publicitário; 6. construir uma marca corporativa relevante para os leitores; 7. promover o conteúdo editorial do dia e futuro; 8. edificar uma cultura corporativa construtiva e sintonizada com o leitor (Readership Institute In: LIMA, 2005). Os dois primeiros critérios são essencialmente importantes para a ratificação de nossa pretensão com este trabalho, pois mostra o aumento do interesse e importância de narrativas de estilo literário. E como revela o artigo de análise do Readership Institute, o “The Value of Feature-style Writing”, o estudo fez uma descoberta provocante: O estilo narrativo aumenta a satisfação do leitor na cobertura de uma variedade grande de áreas, incluindo-se entre elas a política, os esportes, a ciência, a saúde, o lar e a gastronomia. Além disso, uma boa quantidade de matérias no estilo narrativo melhora a percepção da marca por parte do consumidor, tornando o jornal mais fácil de ler. ( id.) O estudo das instituições norte-americanas também contemplou o modo de escrita das matérias estudadas. Constatou que 69% delas foram escritas no formato “piramidal”, 12% no formato opinativo e 18% no estilo narrativo. O estudo sugere, ainda, que os jornais utilizem mais o estilo narrativo na composição de suas matérias. E justifica: Embora a pirâmide invertida seja apropriada para a maioria das matérias, há evidências fortes de que o aumento de matérias narrativas traz uma série ampla de benefícios. Por exemplo, jornais que escrevem mais matérias de política no estilo narrativo obtêm maior satisfação dos leitores quanto à cobertura da área. Considerando que apenas 5% das matérias de política são escritas no estilo narrativo, até mesmo uma única matéria semanal a mais nesse estilo produziria grande diferença... 67 [...] Além de aumentar a satisfação do leitor com relação à cobertura de áreas especializadas, o estilo narrativo também melhora a percepção positiva da marca. Os jornais que apresentam um número maior de matérias narrativas são vistos como mais honestos, divertidos, inteligentes, presentes e mais afinados com os valores dos leitores... [...] As mulheres, em particular, respondem bem ao estilo narrativo. Essa preferência é mais do que simplesmente um desejo de vê-lo em matérias de áreas específicas como moda, saúde e viagem. Os jornais que incorporam o estilo narrativo em uma variedade grande de áreas de cobertura são os que mais se beneficiam da percepção da marca - (id) (grifo nosso). No que tange à questão de o jornal ser mais fácil de ler, outro artigo indica que não basta apenas mudar a diagramação ou disposição dos textos. Diz ser necessário escrever mais matérias com temas como saúde, lar, gastronomia, moda e viagem, além de disponibilizar informações a fim de buscar interação do leitor com o assunto. A constatação mais importante do ponto de vista de nosso entendimento de que as publicações jornalísticas são superficiais, porém, é a que diz que os jornais deveriam utilizar mais matérias com estilo narrativo do que as de estilo piramidal em suas edições. Pois: O modo de escrita provou-se um importante meio de aumento da satisfação do leitor com relação a áreas específicas de conteúdo editorial, assim como de crescimento da percepção da marca. Os jornais que incorporam o estilo narrativo em uma variedade de áreas temáticas são vistos como mais fáceis de ler. (Readership Institute In: LIMA, 2005). Os estudos mostraram, também, que o público americano quer se identificar mais com as produções jornalísticas e, por isso, gostariam de ver nos jornais mais histórias de pessoas comuns, que vivem em sua região ou cidade. Acreditamos que o JL deva ser empregado não em totalidade nas publicações, mas como um aliado para o aprofundamento de temas que mereçam maior atenção dos veículos. Um outro artigo também disponibilizado por Lima (2005), de autoria de Warren Watson, produzido para a American Society of Newspaper Editors – entidade que congrega os editores de jornais americanos, em 1999, mostra que: Narrativas despertam o interesse do leitor – e ajudam a vender jornais. 68 Narrativas possibilitam contar histórias complicadas, permitindo aos leitores descobrirem os sentidos de suas vidas. Narrativas têm um profundo e positivo efeito sobre a motivação nas redações. (id) E, ainda, destaca a opinião de alguns editores de jornais que passaram a utilizar o JL em suas publicações: “O leitor vai arranjar tempo de sobra para ler o jornal, sim, se dermos a ele algo de fato saboroso para ler” - comenta um editor, combatendo a velha “crença” de que o leitor não tem tempo (e não gosta) para ler. A narrativa proporciona, para os jornais, a tão almejada conectividade com o leitor, conforme relato de outro editor: “A narrativa é uma forma natural de contar as coisas, que habita a nossa consciência [...] (id) Essas afirmações são fundamentais para minimizar o que se ouve muito nas redações de jornais brasileiros sobre o tempo e a disposição do leitor em ler. Há um pré-conceito muito grande por parte de alguns jornalistas mais conservadores que dizem que o leitor “não gosta de ler” ou “não tem tempo para ler”. Se a história for boa o leitor vai arranjar um tempinho para ler. Mas se for uma simples notícia que ele possivelmente já está cansado de ouvir...E vale lembrar que as matérias de estilo literário não precisam ser necessariamente grandes, muito extensas. O que “regula” o tamanho da matéria é a sua relevância para a sociedade. Sendo assim, é possível escrever matérias narrativas em pouco espaço. Propomos, portanto, o uso do jornalismo literário para publicações de reportagens semanais. Com histórias de vida e assuntos que hoje não são lidos pela maioria dos leitores de jornal como política e economia. As histórias de vida proporcionariam uma identificação dos leitores com os personagens da vida real. E os temas como política e economia poderiam trazer reflexões do ponto de vista prático, com intenção de criar uma maior compreensão por parte das pessoas que não tem tanto conhecimento sobre essas áreas. O que realmente motiva nosso estudo é o interesse por histórias que valorizem o lado humano dos conflitos sociais. Portanto, tentamos evidenciar a importância do resgate das narrativas de qualidade dentro das publicações brasileiras, entendendo que o jornalista deve ser mais que reprodutor de meias verdades. Deve ser um contador de histórias. 69 70 CAPÍTULO III Novo Jornalismo no Brasil - Impresso 3.1. Passagem dos grandes escribas pelas páginas jornalísticas brasileiras Jornalismo e literatura andam juntos há alguns anos. Autores renomados como Machado de Assis, Manoel Antônio de Almeida, José de Alencar e Gonçalves Dias encontraram na época 71 pioneira do jornalismo (1850) um meio de subsistência e aprimoramento de seu talento literário. Há na verdade uma intersecção, uma aproximação e uma afastamento, “em particular desde a etapa histórica em que a imprensa ganha sua feição moderna, industrial, a partir da última metade do século XIX” (LIMA, 2009, p. 173). Para Edvaldo Pereira Lima (2009 p. 174) a literatura e a imprensa confundem-se até os primeiros anos do século XX. A arte literária se fez presente nas publicações de folhetins e suplementos literários da época. “É como se o veículo jornalístico se transformasse numa indústria periodizadora da literatura da época. Esse aspecto divulgador, oportunidade inovadora de chegar à coletividade, é o fator que atrai os escritores”. Nelson Werneck Sodré (1977, p. 334), resume: Os homens de letras buscavam encontrar no jornal o que não encontravam no livro: notoriedade, em primeiro lugar; um pouco de dinheiro, se possível. O Jornal do Comércio pagava as colaborações entre 30 e 60 mil réis; o Correio da Manhã, a 50. Bilac e Medeiros de Albuquerque, em 1907, tinham ordenados mensais, pelas crônicas que faziam para a Gazeta de Notícias e O País, respectivamente; em 1906, Adolfo Araújo oferecia 400 mil réis por mês a Alphonsus de Guimarães para ser redator de A Gazeta, em São Paulo. Essa breve explanação é importante para lembrar que o envolvimento entre jornalismo e literatura já acontecia antes mesmo de a corrente do new journalism aparecer. Nesse período, porém, as produções nem sempre tinham a preocupação de retratar fatos da vida real. A ficção, portanto, estava presente em algumas produções da época, o que não acontece na década de sessenta com o new journalism, onde o foco das produções foram as histórias reais. A partir da virada do século XIX para o XX o Brasil passa por um momento de transformações. A modernização de sua Capital Federal culminou em algumas mudanças em vários aspectos na vida dos brasileiros, inclusive no jornalismo. A reportagem começa a traçar sua independência da literatura. Euclides da Cunha e João do Rio destacam-se nas produções de fôlego desse período. Cunha lança Os Sertões, em 1902, obra que fora publicada originalmente em 1897 em forma de reportagens pelo jornal O Estado de S. Paulo. E conta a ação do exército na destruição do arraial de Canudos, no interior do Nordeste. A obra de Euclides da Cunha transformou-se em um divisor de águas para o jornalismo brasileiro e ficou marcada pela intensa 72 observação e presença do autor na cobertura dos fatos. Para Edvaldo Pereira Lima (2009, p. 212213) o sucesso se dá pois Cunha vai cobrir o conflito: [...] levando na bagagem uma qualidade que o diferenciaria essencialmente dos demais concorrentes: a habilidade para situar um evento no contexto que o cerca, demonstrando para o leitor o sentido mais profundo do que retrata. Mas a ótica do autor alarga-se também em torno dos espaços e das condições imediatas que cercam o conflito, revelando um cuidado de documentação que será típico aos bons repórteres de profundidade do futuro. O forte da cobertura de Euclides da Cunha também estava na contextualização dos fatos. O autor tenta oferecer aos seus leitores comparações ou raciocínios paralelos a outras guerras do mesmo tipo, para tentar levá-lo à reflexão e compreensão da mensagem. Os Sertões veio para mostrar uma nova possibilidade de tratamento jornalístico. De uma cobertura que alia os recursos literários com a captação de fatos da vida real. E o autor cumpriu muito bem o seu papel. O trabalho de João do Rio tem características um tanto quanto distintas do de Euclides da Cunha. João do Rio- pseudônimo de João Paulo Alberto Coelho Barreto, ou só Paulo Barretotraz uma contribuição importante para a comunicação social factual, pois seu trabalho é essencialmente jornalístico. E tratava de assuntos sociais com sentido de urgência. Suas séries de reportagens começam a ser publicadas na Gazeta de Notícias e em seguida chegam aos livros, com uma linha de temas que o preocupam. Cremilda Medina (1978, p. 69) conta sobre o trabalho desse pioneiro: Religiões do Rio, Almas encantadoras das ruas, Vida vertiginosa, Cinematógrafo, Os dias passam, livros que reúnem as reportagens de Paulo Barreto, oferecem, no meio de certos artificialismos estilísticos e imperfeições técnicas, aquilo que caracteriza o jornal moderno – infomações. Os tipos sociais observados representam a tendência de humanização tão explorada pela reportagem atual; a descrição de costumes e de situações sociais inauguram a reportagem de contexto; de passagem, alguns traços retrospectivos do fato narrado levariam, mais tarde, à reportagem de reconstituição histórica. A marca que os trabalhos de João do Rio deixou fica caracterizado pela humanização dos relatos e, ainda, pela coleta de informações por meio de entrevistas e a descrição de cenas. 73 Mas essa relação entre a imprensa e a literatura se enfraquece em determinado momento e, para Nelson Werneck Sodré (1977, p. 339), existem alguns responsáveis por este fato, sobretudo o capitalismo: [...] é essa mesma causa que começa a exigir alterações na imprensa. Tais alterações serão introduzidas lentamente, mas acentuam-se sempre a tendência ao declínio do folhetim, substituído pelo colunismo e, pouco a pouco, pela reportagem; a tendência para a entrevista, substituindo o simples artigo político, a tendência para o predomínio da informação sobre a doutrinação, o aparecimento de temas antes tratados como secundários, avultando agora, e ocupando espaço cada vez maior , os policiais com destaque, mas também os esportivos e os mundanos. Aos homens de letra, a imprensa impõe, agora, que escrevam menos elaborações assinadas sobre assuntos de interesse restrito do que o esforço para se colocarem em condições de redigir objetivamente reportagens, entrevistas, noticias. Esse período de ligação entre jornalismo e literatura, porém, rendeu bons frutos. Para os literários a experiência da captação do real, e para os jornalistas uma amostra de como melhor trabalhar com as palavras. Com o New Journalism surge a expectativa de unir essas experiências em narrativas da vida real. Para Lima era a chance de o jornalismo se igualar à literatura em termos de qualidade narrativa, porém sem perder sua especificidade. Em suma, teria de rever seus instrumentos de expressão e elevar seu potencial de captação do real. 3.2. Influência da corrente norte-americana nas produções verde-amarelas: Realidade, Jornal da Tarde. Isso significa que podemos dizer que já se praticava o jornalismo literário antes mesmo da chegada da corrente norte americana (new journalism). Com alguma diferença como o contexto em que se passa o new journalism, que é bastante sugestivo, conforme já mencionamos no capítulo anterior. A década de sessenta, portanto, ficou marcada como o ápice desse estilo de cobertura jornalística. Foi um período que ainda foi responsável por entusiasmar produções semelhantes ao redor do mundo. 74 No Brasil o novo jornalismo influenciou algumas produções jornalísticas como, por exemplo, a revista Realidade e o Jornal da Tarde, ambos lançados em 1966. Realidade se tornou uma marco histórico para a reportagem no Brasil, consagrando alguns bons jornalistas como José Hamilton Ribeiro. Realidade surge num período marcado por mudanças no Brasil. O país saíra há pouco dos “50 anos em 5 de Juscelino”, experimentava novas expressões artísticas como a Bossa Nova e o Cinema Novo, a indústria automobilística já se implantara e, ainda, tínhamos a nova Capital Federal. Em geral, o mundo sofria alterações significativas. Além da continuidade da Guerra Fria, o movimento hippie e a liberação sexual são fatores que contribuíram para as mudanças. E, claro, a audiência brasileira queria compreender todos os acontecimentos. Edvaldo Pereira Lima (2009, p. 274), comenta: Realidade abre-se para o Brasil e para o mundo com uma proposta de cobertura ambiciosa. Realiza mês a mês, em suas edições, a construção somativa de um novo mapa da realidade contemporânea, onde aparentemente não há preconceito na seleção de pautas. Realidade ajuda o leitor a descobrir o Brasil em suas múltiplas facetas nos diversos campos da atividade econômica, da produção artística, da existência social, do comportamento humano, da condição religiosa, da disputa política, da arena esportiva. Seus objetos de abordagem situam-se no centro mesmo da realidade das elites – a visão política de Carlos Lacerda, como atuam politicamente deputados e senadores, as tendências afigurativas, objetistas e extremistas das artes plásticas de vanguarda -, mas também envolvem os que vivem na periferia do sistema social – os mineiros do carvão de Santa Catarina, os salineiros do Rio Grande do Norte, os menores abandonados de Recife e os dois jovens que tentam salvá-los, as prostitutas da metrópole. A revista seguiu o mesmo caminho dos novos jornalistas norte-americanos. Os jornalistas foram para os centros dos conflitos humanos, participavam ativamente da realidade social, observavam, ouviam, captavam. E depois desse trabalho não se viam amarrados por regras de manuais. Ficavam livres para compor seus textos da maneira que achavam necessária e agradável aos leitores. No intuito de mostrar a “realidade de perto” alguns jornalistas experimentaram experiências inéditas em suas vidas. José Hamilton Ribeiro trabalhou como bombeiro em uma fábrica para mostrar a vida de jovens operários. Alberto Libânio arriscou-se como universitário em Belo Horizonte para tentar descrevê-los. Lara Mowikow trabalhou como recepcionista para 75 retratar a vida de jovens bancários. Narciso Kalili foi ajudante de agrônomo para tentar contar a vida dos jovens camponeses. Os textos de Realidade variavam de acordo com o estilo de cada jornalista. A narração ora se dava em terceira pessoa ora em primeira. Alguns textos primavam pela descrição detalhada do cenário e outros enfatizavam o movimento da ação. Alguns, porém, usavam todos esse elementos, como o texto de José Carlo Marão: - João! Tou com a dor, João. É hoje. João Pereira sentiu que era verdade. À meia noite, conseguiu sair da terceira e procurou um tripulante. À meia noite e quinze, Manuel, o enfermeiro de bordo, ex-enfermeiro da FEB, entrou na terceira classe, olhou Luzia e levou-a para a enfermaria. Toda viagem acontece isso. Dá sorte nascer a bordo. À uma hora da manhã, nasceu, sem despesas de parto, o filho de João e Luzia, que se chamou Ivan Augusto, homenagem ao navio. (apud. LIMA, 2009, p. 233) As reportagens de Realidade primavam pela qualidade narrativa. Davam cor, vida, sabor, cheiro, para os fatos da vida real. Para Edvaldo Pereira Lima os bons resultados se devem ao fato de que a revista “compreendeu o conceito moderno da linguagem jornalística”. E trazia em suas composições não apenas o signo verbal, mas também o icônico. Não para enfeitar o texto, mas para dar fidedignidade e gosto à narrativa. Com a raiva crescendo, punho no ar, mão fechada, um homem xinga o outro: - Refrigerado! Aquele responde, pronto, num escárnio: - Um, dois, três. Galo é freguês! Faz mais de uma semana que a cidade, dia a dia, vem esquentando pelos jornais, pelo rádio, pela televisão e pela boca do povo nas ruas, uma velha rixa, a maior de Belo Horizonte. Essa raiva explodirá domingo à tarde. Até lá, todos se preparam: - Gaa-lô! ... [...] O menino estudante, catorze anos, conhecido no colégio pelo apelido de “Cruzeirense”, estava contente da vida, passando por um grupo de atleticanos. Agitou a bandeira azul e branca e gritou: - Aí, cachorrada! Não viu nada, um tiro o pegou, caiu sem sentido. Sangrava muito no pescoço, foi levado ao Hospital do Pronto-Socorro e operado. Salvou-se. Duas horas depois, lúcido, perguntou com aflição: - Quem ganhou? (ANTONIO, 1968, Realidade III, 32) 76 Os textos de Realidade não tinham uma marca única. Ali cada repórter tinha a liberdade de empregar seu estilo próprio, que poderia variar de acordo com a exigência da matéria. A revista tinha também como característica mostrar os bastidores de acontecimentos da vida real. Assim como faz hoje o programa Profissão Repórter com relação a mostrar os bastidores dos trabalhos, a revista mostrava como se faziam as novelas, como se passava a preparação de um telejornal, o dia-a-dia de trabalhadores da construção civil, os treinamentos de campeões de boxe na academia. E se difere das demais coberturas convencionais também por “dar voz” a quem geralmente se nega nas produções jornalísticas racionais. Fala do candomblé e da parteira, do torcedor da arquibancada e do jogador de sinuca, mas também dá voz ao cardiologista e ao cientista, ao indigenista e ao matemático moderno. Avança para o terreno da moral em mutação – “Sou padre e quero casar”, “Sou mãe solteira e me orgulho disso” -, desvenda quem são nossos semelhantes em suas complexidades individuais (LIMA, 2009, p. 225). Realidade produz perfis humanizados e não se prende aos fatos do cotidiano. Busca mostrar o contexto em que eles ocorrem. Dessa forma, não se interessa apenas em falar sobre a queda do dólar ou da bolsa de valores, mas em mostrar como isso afeta a vida de pessoas comuns. Edvaldo Pereira Lima (2009, p. 227) escreve algumas das características que considera ser fator chave para o sucesso da revista: “As matérias científicas, que se revelam um considerável esforço para traduzir, em linguagem acessível ao público, temas complexos como energia nuclear, oftalmologia, genética.” Como pudemos observar na pesquisa norte-americana realizada pelo Readership Institute e apresentada no capítulo anterior, essa é uma característica importante para tornar o jornal mais agradável e fácil de ler. Releia o trecho em que a pesquisa revela isso: “O modo de escrita provouse um importante meio de aumento da satisfação do leitor com relação a áreas específicas de conteúdo editorial, assim como de crescimento da percepção da marca” (Readership Institute In: LIMA, 2005). As enquetes e pesquisas de opinião, visando mapear tendências do comportamento público. Por exemplo, o pensamento do brasileiro sobre a educação sexual motiva um questionário com 17 perguntas, que recebe 24 mil respostas, das quais 10% tabuladas como amostra, com apoio do Instituto de Estudos Sociais e Econômicos. (LIMA, 2009, p. 227) 77 Essas pesquisas têm como objetivo conhecer o público para o qual se está escrevendo, e servem de base para se pensar em pautas para as edições da revista. Atualmente a imprensa cotidiana brasileira faz muitos pré-julgamentos sobre a opinião do leitor. Dizem que este não gosta de ler, não tem tempo. Mas como chegam a tais respostas? As edições especiais, nas quais todas as baterias da revista concentram-se numa abordagem extensa de um mesmo tema básico, sob vários ângulos, construída com reportagens articuladas. Em janeiro de 1967 saía o número especial sobre a mulher , resultando num considerável panorama sobre a emancipação da mulher na nossa sociedade; a edição foi parcialmente apreendida pelo Juizado de Menores de São Paulo, dando margem a uma longa disputa de bastidores e revelando como era tacanha e míope a moral da época. A edição constava dos resultados de uma pesquisa sobre o pensamento da mulher, de uma matéria especulativa sobre a superioridade feminina, de um texto científico sobre a fecundação, de um ensaio fotográfico sobre o amor de mãe, de uma entrevista com a atriz Ítala Nandi, de uma reportagem sobre consultoria sentimental, de três perfis humanos (a parteira, a mãe de santo, a executiva), do depoimento de uma mãe solteira e do debate, entre duas mulheres, sobre o sexo antes do casamento. (LIMA, 2009, p. 227, 228) As características dessa cobertura feita por Realidade tem muitas semelhanças com os trabalhos do jornalista Caco Barcellos, seja no comando do Profissão Repórter ou em seus livros. A intenção da cobertura com estilo literário é mostar diferentes ângulos sobre um assunto, tendo como foco as ações de pessoas comuns, humanos. Assuntos que muitas vezes a imprensa cotidiana já “cobriu”, porém sem explorar todas as possibilidades que a história carrega. Mais adiante faremos uma análise de conteúdo das obras de Barcellos para tentar comprovar o que estamos propondo. As pesquisas e leituras que realizamos para este estudo nos mostraram que a superficialidade de boa parte das produções jornalísticas brasileiras atualmente, abre espaço para produções como a de Realidade e do Profissão Repórter, que se preocupam com o contexto e com os personagens da vida real. E a ideia parece agradar ao público. Realidade, por exemplo, tem seu primeiro piloto em novembro de 1965, com apenas cinco mil exemplares. Mas passa a crescer de maneira 78 significativa quando começam a sair suas edições regulares. Lima (2009, p. 223) mostra os números dessa curva ascendente de Realidade: O número 1 sai em abril de 1966 com 251250 exemplares, para surpresa da própria Abril, esgota-se em três dias e a capa – Pelé sorridente com um chapéu da guarda real britânica, alusão à Copa do Mundo que se realizaria naquele ano, o Brasil candidato ao tri-campeonato – é reproduzida em página inteira pela Paris Match. O número 2 sai com 281.517 exemplares, também tem tiragem esgotada. O 3 vende a tiragem total de 354.030 exemplares; façanha até então considerada impossível. O quarto já está em 404.060, o quinto cresce para 470 mil, e por aí segue até que o número 11, em fevereiro de 1967, bate novo recorde: 505.300 exemplares. O projeto editorial e a liberdade que tinham os jornalistas para comporem seus textos garantiram boa parte do sucesso da revista. É verdade que os textos não chegaram a atingir o grau de experimentalismo ousado que conseguiram os jornalistas norte-americanos com o new journalism com o uso, por exemplo, do fluxo de consciência, que mostramos no último capítulo. Mas os jornalistas procuravam imprimir em seus textos todas as sensações possíveis a partir de uma observação intensa de seus personagens. Como na América do Norte, os jornalistas de Realidade, cada um com seu estilo próprio, procura experimentar novos tons estéticos em seus textos, buscando dar cor, sabor, cheiro, sons, ritmo, para as reportagens. “Cada um manipulava como lhe aprouvesse os elementos da artesania literária emprestados à escritura do real contemporâneo”(LIMA, 2009, p. 230). Veja o estilo do texto do jornalista Roberto Freire: No edifício em construção, o trabalho logo seria interrompido para o almoço. Fora fria e cinzenta aquela manhã de maio em São Paulo. Agora o sol já prometia aparecer. Mas o grupo de operários não se dava conta de nada disso, assentando seus tijolos sem muito entusiasmo, no andar térreo da obra. De repente, ouviram alguma coisa quebrando lá em cima e levantaram as cabeças. Mas não viram nada, pois seus olhos se encheram de areia. Ao lado, um baque e um gemido. Limpando os olhos, puderam ver no chão o corpo do companheiro estendido, a cabeça esfacelada e coberta de sangue misturado à areia. Perto dele, um balde tombado. (FREIRE, 1968, Realidade III, 28.) Roberto Freire, autor deste texto cujo título é “Zerbini quase tira o coração de José”, opta por narrar em terceira pessoa, onisciente. Já Narciso Kalili e Odacir de Mattos em “Existe 79 preconceito de cor no Brasil”, publicada em 1967 na 19º edição de Realidade, preferem escrever em primeira pessoa, mostrando sua presença no ambiente narrado: Pouco depois das cinco da manhã, chegamos a Belém. Íamos ficar no Hotel Grão Pará, o melhor da cidade. Eu me hospedaria com Mamprim, Odacir, sozinho. Nosso motorista, um caboclo de bigodes, foi nos mostrando a cidade. Falou muito, ofereceu-nos distrações noturnas e eu perguntei se em Belém havia muitos pretos: - Aqui, negro tem pouco. E os que têm, a gente não gosta. Estão espalhados nessas construções como pedreiros. São gente muito ruim. Alguns escolhem presenciar o acontecimento, viver a realidade de perto: De repente o alarme começa a tocar, insistente. São três e meia da manhã. Um elemento da Segurança abre a porta, avisa que soldados estão chegando, pode haver confusão, pede calma. Demonstrar medo não fica bem, um estudante imita voz de caipira para brincar: - Daqui a pouco ó nóis tudo preso. Ninguém ri. - Quantos soldados estão lá embaixo? Da janela de vidro do hotel, um estudante finge contar. Vinte, cinquenta, cem... Todos os que ainda estavam deitados se levantam, correm para a janela e veem a rua deserta lá embaixo, o vento balançando as árvores. - Isso é hora de brincar? – Reclamam do estudante na janela. (SOARES, 1968, Realidade III, 29.) Apesar da qualidade da cobertura ser infinitamente superior ao da imprensa convencional as matérias da revista não se estendem em demasia, com algumas exceções de matérias que chegavam a cinco, seis ou sete páginas. Suas matérias focalizam a ação dos personagens da vida real. Tentam levar seus leitores junto do texto para que, dessa forma, ele possa entender seus significados e tirar suas conclusões. Edvaldo Pereira Lima (2009, p. 235) destaca que o sucesso de Realidade também se deve ao fato de a revista ter compreendido o conceito moderno da linguagem jornalística. E, assim, “utilizava não apenas o signo verbal, mas também o iconico”. E o fazia não para enfeitar o texto, e sim para estimular as memórias do leitor a fim de que ele consiga visualizar as cenas narradas no texto. 80 Convém destacar que a periodicidade mensal da revista também era um fator favorável à cobertura intensa, de qualidade. Pois, assim como os novos jornalistas norte-americanos, os de Realidade dispunham de um tempo importante e necessário para entrarem na vida de seus personagens, misturar-se a eles, viver suas vitórias e derrotas, afim de captar tudo o que se exige de um jornalista convencional e algo a mais. O sucesso de Realidade também tem relação com a opção de retratar a vida de pessoas comuns. Mostrar como se passavam a vida de pessoas anônimas em suas vitórias e derrotas. Revelar acontecimentos que levassem à reflexão, que contribuísse para a vida social. Narciso Kalili mostra na edição de número dez, em janeiro de 1967, como se davam os partos feitos por parteiras, muito comuns em tempos passados. O título da reportagem é “Nasceu”. - Dona Odila, a senhora quer ir depressa lá em casa? Acho que está na hora. Por favor, vamos logo. O homem torcia as mãos, seu olhar suplicava. Ele não conhecia a parteira, mas se sentiu confiante logo que a viu: o rosto redondo e corado, tão corado que na cidade é conhecida como Vermelha, os olhos claros e o ar determinado dos que estão acostumados a mandar. Dona Odila tirou um dos braços da cintura, apoiou-se no batente da porta, enquanto esfregava os dedos do pé descalço na perna, disse com simpatia, apesar da voz brusca: - Calma. Quem é a tua mulher? - É a Preta lá do loteamento do Salton. - A filha daquela velha que veio encomendar o parto na semana passada? Como é mesmo o nome da velha? - A Presotto. - Isso. Espera aí que já vamos. Veio de carro? - Está esperando lá fora... [...] José parou. Não entendia bem o que estava acontecendo. Aproximou-se da porta, perguntando à parteira: - Preta está bem? - Ótima e pronta para outra. Só então ele estendeu os braços para a filha. Olhou-a, encostou-a em seu rosto, puxou a touca para olhar os cabelos e sorriu. Riu ainda mais quando dona Odila brincou, lembrando que falhara da previsão: - Se não quiser levo embora. Eu mesmo fico com uma guria tão linda. E então? - Essa é minha, dona Odila. Minha filha. - Tua só não! Dá aqui a menina pra tua mulher ver! (Revista Realidade, Ano I, Número 10, Janeiro de 1967.) 81 As narrativas de Realidade mostravam diferentes estilos. O uso da primeira pessoa, por exemplo, ora é dominante, ora é acessório. Os diálogos extensos davam agilidade aos textos. E o leitor era conduzido, então, por uma narrativa que parecia uma novela ou um conto curto. 3.3. Revista Realidade na Guerra A cobertura durante a guerra exigiu dos repórteres uma percepção e uma forma de construção textual diferente do praticado pela imprensa racionalista (cotidiana). O relato a partir do uso do lead e do texto escrito sobre o molde da pirâmide invertida não daria conta de transmitir de maneira fiel os acontecimentos do conflito. Pois, mais que informar, o importante naquele momento era contar as histórias das vivências de combatentes, civis e mesmo dos profissionais da imprensa naquele ambiente tão “amargo”. A revista Realidade mandou para cobrir o conflito da Segunda Guerra o repórter José Hamilton Ribeiro, que escreveu uma matéria que nos permite exemplificar o que acabamos de dizer sobre a cobertura intensa. Ribeiro descreve uma de suas experiências mais marcantes na carreira, onde perde uma perna em uma mina no campo de batalha. O texto serve também para termos uma idéia de como esse relato ficaria extremamente frio se fosse escrito baseado na fórmula piramidal. No último dia de sua permanência no Vietnã, José Hamilton Ribeiro participou de uma patrulha feita pela Companhia Delta, da Primeira Divisão de Cavalaria do Exército Americano. A trilha por onde caminhava era famosa pelas minas terrestres e tinha o nome de "Estrada sem Alegria". Ele estava ao lado do fotógrafo Keisaburo Shimamoto, que registrou as imagens publicadas por Realidade, e do soldado americano Henry (destacado para acompanhá-lo). Quando todos escutaram uma explosão, 20 metros à frente, correram para ver o que acontecia. Ribeiro descreveu: Observando a movimentação de todos em direção aos feridos, por um momento me passou pela cabeça a certeza de que o terreno entre a minha posição e a dos feridos, já tão fartamente pisado, não podia ter mais mina nenhuma. Com a máquina em posição de ataque, corri para os feridos, Henry ao meu lado. A 82 cinco metros do local, vejo uma bota com um pé dentro, minando sangue. Penso sem querer pensar: – Isso é que é pé frio! Ouço uma explosão fantástica. É um tuimmm interminável que me atravessa os ouvidos de um para o outro lado, dá-me uma sensação de grandiosidade. Sintome no ar, voando [...] Um segundo após me vejo no chão, sentado. A cortina de fumaça se esgarçou e vi aproximar-se de mim Shimamoto, o fotógrafo japonês. Pergunto-lhe: – Shima, você está bem? Sem responder, ele continuou caminhando para mim. Foi aí que senti a perna esquerda. Os músculos repuxaram para a coxa com tal intensidade que eu não me equilibrava sentado. Para não cair, rodopiava sobre mim mesmo, em círculos e aos saltos. Instintivamente, levei as duas mãos para ‘acalmar’ a minha perna esquerda, e foi então que a vi em pedaços. O jornalismo brasileiro foi brindado com textos valiosos e com qualidades de conto como este até os fins de 1969, quando a editora Abril já focaliza suas atenções para um novo projeto, a revista Veja. 3.4. Outros projetos Depois do falecimento do projeto Realidade pouco se criou em termos de produções de narrativas literárias no Brasil. As grandes reportagens voltam a figurar no país a partir da década de 90, com produções de livros-reportagem, publicados por autores como Caco Barcellos e Zuenir Ventura. Também nessa década, Eliane Brum encontra espaço na Gazeta Zero Hora para publicar uma coluna com reportagens de estilo literário, a fim de mostrar a vida de pessoas comuns. Brum apresenta na coluna “A vida que ninguém vê” um estilo de cobertura que rompe padrões. A jornalista mergulha na realidade de pessoas desconhecidas, observa, participa e depois volta para “o outro mundo” para dividir as experiências no intento de provocar reflexões. Os personagens retratados nas reportagens de Eliane Brum certamente passariam despercebidos pela ótica da imprensa convencional, pois estes fazem maior uso de fontes oficiais. Mas ganharam força com a proposta de Marcelo Rech (diretor da gazeta Zero Hora na época da publicação da coluna). Em 2007, no primeiro Seminário de Jornalismo Literário, promovido pela ABJL (Academia Brasileira de Joarnalismo Literário), Rech afirmou que acreditava muito na idéia de contar boas histórias nos jornais diários. E disse ainda que a Zero Hora aumentou 83 consideravelmente suas vendas depois que começou a utilizar matérias de cunho literário em suas publicações. Eliane Brum assumiu um estilo incomum no jornalismo, descartando a neutralidade e participando ativamente das histórias que narrava e, segundo a autora, a idéia agradou ao público: Foram os leitores que enxergaram a coluna e apontaram para onde eu estava olhando. Toda semana desembarcavam e-mails e cartas contando sobre vidas próprias, vidas de outros, desacontecimentos, não-fatos, antinotícias, anonimatos. Tudo absolutamente extraordinário. (BRUM, 2006, p. 188) A boa aceitação das matérias de Brum por parte de leitores de um jornal diário é um fator que nos motiva a propor essa discussão. Por que não oferecer ao leitor matérias com propostas diferentes das de estilo convencional, oferecidas por boa parte dos veículos de comunicação? Por que não mostrar “a vida que ninguém vê” a partir dos personagens marginais da vida real? Por que não dar voz àqueles que a imprensa convencional nega? O jornalista e escritor João Antonio (1976, p. 146), um dos expoentes do projeto Realidade e ganhador de alguns prêmios Esso de Jornalismo, defende: O caminho é claro e, também por isso, difícil – sem grandes mistérios e escolas. Um corpo-a-corpo com a vida brasileira. Uma literatura que se rale nos fatos e não que rele neles. Nisso, a sua principal missão – ser a estratificação da vida de um povo e participar da melhoria e da modificação desse povo. Corpo-a-corpo. A briga é essa. Ou nenhuma. Em uma de suas mais conhecidas reportagens, Eliane Brum nos traz elementos que vão ao encontro do que diz Antônio. No texto O Sapo, o personagem principal é um homem que pede esmolas no centro de Porto Alegre. Mas além desse caráter marginal do homem, a forma como a jornalista escolhe para contar sobre esse personagem é que nos chama a atenção: O mais incrível é que o Sapo estava ali havia 30 anos. E há mais de uma década nos cruzávamos na Rua da Praia. Minha cabeça no alto, a dele no rés-do-chão. Eu mirando seu rosto. Ele, os meus pés. Só dias atrás tive a coragem de me agachar e nivelar nossos olhares, subvertendo a regra do jogo de que ambos participávamos. Não nos reconhecemos. Descobri que o nome dele é Alverindo. 84 Ele soube que me chamo Eliane. Contou-me que os amigos o conhecem por “seu Vico”, e o povo da rua por Sapo. Por causa da eterna posição lambendo com a barriga as pedras da rua. Contei-lhe que sou jornalista e escreveria sobre ele. E então apertamos as mãos (...) (BRUM, 2006, p. 60). As matérias de Brum primam pela observação intensa e não utiliza um modelo único de linguagem para a composição dos textos. A jornalista utiliza sua percepção apurada de repórter para discernir em qual momento deve usar uma linguagem mais descontraída ou não e, dessa forma, não torna a linguagem de seus textos um ritual. Brinca com vários estilos de textos e linguagens, a fim de comunicar melhor. Faz uso demasiado dessa liberdade de estilo que é iminente ao jornalismo literário e, assim, não faz de seus textos amontoados de palavras enfadonhas e pasteurizadas. Observação. Reparem no cuidado de Eliane Brum na matéria a seguir. Percebam a riqueza dos detalhes e o quanto isso valoriza o texto e nos dá uma maior dimensão daquilo que a autora quer contar. Você já reparou nos olhos das pessoas na rua? Muitas têm pupilas opacas e, juntos com os ombros voltados para dentro, arqueados como se carregasse uma canga de boi, esculpem a imagem de uma infelicidade crônica, venenosa e que mata devagar. Têm olhos de seca, olhos assassinados. Porque os olhos são os primeiros a morrer. E as ruas estão cheias de moribundos. Quando aparece alguém de olhos brilhantes, dá vontade de parar, pedir licença e intimar: o que você está escondendo atrás destas pestanas? Dona Maria tem olhos brilhantes. Maria Alicia Freitas, 55 anos, dez filhos, onze netos e um bisneto, tem olhos brilhantes. Sabe por quê? Porque dona Maria tem um sonho. Descobriu que tinha aos nove anos e conseguiu realizá-lo aos 55. Sim, porque sonhos não se encontram em prateleiras, não basta atirar o cartão de crédito no balcão e sair com um debaixo do braço. Sonhos são touros xucros. Tem de pegar à unha. É isso ou ficar pelos cantos exercitando a autocomiseração, chapinhando na apatia. Dona Maria tem olhos brilhantes porque corre atrás do seu. E desde então, deu para ficar com os olhos em facho, por aí, alumiando o caminho [...] (BRUM, 2006. p. 132). O estilo ousado e inovador de Brum e sua coluna agradaram, além do público, a crítica. Em 1999 a jornalista ganha o Prêmio Esso de Jornalismo – Regional Sul de Jornalismo. E em 2006, com 23 das 46 reportagens reunidas no livro homônimo à coluna, conquistou o cobiçado Prêmio Jabuti, na categoria livro-reportagem. 85 Outros dois projetos merecem destaque em nosso estudo: o da revista Piauí (originalmente o nome é grafado em letras minúsculas) e o da revista Brasileiros. A revista Piauí foi lançada em 2006 durante a Festa Literária Internacional de Parati (FLIP) pelo documentarista João Moreira Salles e o editor Luiz Schwarcz. A publicação conta com um projeto ousado e pretensioso. Não se trata de uma revista de cultura ou opinião, mas de reportagens com histórias de vida. A revista tem tiragem mensal de 62 mil exemplares (dado relativo a julho de 2008) e tem nesses números motivos para comemorar, pois em abril de 2007 a tiragem era de 35 mil exemplares. O lançamento de Piauí foi antecipado por um texto provocativo e bem humorado que circulou para assinates da editora, a Abril. O texto bem elaborado nos remete à nossa discussão sobre o fazer jornalístico. Alguns trechos: [...] piauí será uma revista para quem gosta de ler. Para quem gosta de histórias com começo, meio e fim. Como não se inventou nada melhor do que gente (apesar de inúmeras exceções, vide... deixa pra lá), a revista contará histórias de pessoas. De mulheres e homens de verdade. Ela pretende relatar como pessoas vivem, amam e trabalham, sofrem ou se divertem, como enfrentam problemas e como sonham. piauí partirá sempre da vida concreta. O formato grande fará com que se encontre bastante coisa para ler e ver em piauí. Para que ela dure um mês nas mãos dos leitores. Para que as reportagens e narrativas terminem quando o assunto terminar, em vez de ficarem espremidas porque o espaço acabou. O tamanho maior favorecerá a inventividade, possibilitará a publicação de imagens reveladoras sem perda de nuances e detalhes. Ela dará importância ao que, por ignorado, é tido como insignificante. Tratará de achar novidades no que, por esquecido, parece velho ou ultrapassado. A revista não será ranzinza nem chata. (PIAUÍ, 2006). A revista traz como característica uma linguagem rebuscada e, talvez, até limitadora do ponto de vista dos receptores. Mas ainda assim representa uma opção de cobertura de qualidade, e que tem o humano no eixo de suas narrativas. Brasileiros, lançada em julho de 2007, também se destaca por praticar um jornalismo que não se deixa limitar. Abandona a recorrência demasiada ao fontismo e traz personagens como fio condutor de suas narrativas. Aqui o jornalista assume o papel de contador de histórias, envolvido e submerso da cabeça aos pés com a história a ser narrada. 86 Como já mencionamos em alguns momentos desse estudo, o tema jornalismo literário, literatura de não-ficção, narrativas da vida real, etc., vem sendo discutido e estudado por vários pesquisadores e profissionais da comunicação. A ABJL (Academia Brasileira de Jornalismo Literário), por exemplo, foi iniciativa dos jornalistas-professores Edvaldo Pereira Lima, Sergio Vilas Boas, Celso Falaschi e Rodrigo Stucchi, que há anos estudam e praticam o Jornalismo Literário no país. A Academia conta com um curso de pós graduação (latu senso) e já formou mais de 200 especialistas em JL. E além dessa preocupação com a especialização de profissionais, a ABJL criou em setembro de 2003 o portal Texto Vivo, site que conta com um acervo de narrativas de estilo literário, artigos conceituais a respeito, fotos. O site traz textos de alunos, ex-alunos e colaboradores em geral. A iniciativa faz uso inteligente da internet que, tem um custo relativamente baixo e grande potência no alcance, para incentivar a produção e leitura de narrativas bem elaboradas e que tenha como eixo central de suas atenções o ser humano. Os textos publicados no portal são carregados de características literárias e estilos diferenciados. No texto “Unidas para Sempre”, de Dani Costa, por exemplo, podemos notar o uso de diálogos e a imersão da repórter na história. Vejamos um trecho: - Vocês estão vendo? Conseguem visualizar? Ouvem esse barulho, ó. Um coração. Os batimentos vêm de apenas um coração. Deixa eu ver mais... Hum... O fígado também é o mesmo e acho que a bexiga é única... Mas não é possível ver bem, a bexiga eu fico na dúvida... O que posso dizer é que eles têm um mesmo coração, e isso é crítico, mas o estado geral de saúde é estável. Os batimentos têm força. São seus filhos e estão bem. O aspecto daquela gestante arrepiada de frio na moderna sala de ultrassom me tirava a fala. A enorme barriga de apenas três meses abrigava bebês siameses. Esse é um resumo simplório, uma forma de dizer que aquilo existiu e era simples de entender: gêmeos unidos. Dois corpinhos colados pelo tórax e abdômen. Uma gestação que foge à regra de todas as outras. A explicação vem na seqüência das informações prestadas sobre a divisão de um único coração. - Isso não é genético e nem é uma má-formação ocorrida por qualquer coisa que você tenha feito. Isso é uma má divisão embrionária. Os embriões não se separaram. Isso é raro; isso é raro - diz o médico. (COSTA, 2009. disponível em: textovivo.com) Costa não esconde o fato de estar ali, presente na sala do ultrassom. E não esconde também o que sente: “me tirava a fala”. Porque jornalista literário não precisa se esconder, pode mostrar a cara e dizer “eu estava ali, presenciei de perto e aquilo me marcou!”. Não faz como boa 87 parte dos jornalistas convencionais que tem de se esconder em falas como: “conforme analisa o doutor ‘fulano’”, ou “segundo o economista ‘beltrano’”. Dani Costa usa a fala do médico para trazer os dados de sua reportagem. Contextualiza e entrega para o leitor fazer sua reflexão. Nesse outro texto extraído do site Texto Vivo, podemos notar que a jornalista responsável pelo texto impõe em sua narrativa um ritmo musical, a fim de melhor expressar o que observou na matéria sobre um grupo de dançarinos com deficiência. O título da matéria é “Dançando sobre rodas” e a habilidade em contar como música da jornalista Viviane Pascoal Dantas nos chama a atenção. Observe: Hip... O movimento lateral do quadril parece definir a batida da música, não o contrário. Hop... o corpo salta, os braços ágeis cortam o ar, traçando linhas imaginárias. Cabeça, pescoço, ombros, braços e mãos, perfeitamente coordenados, compõem uma seqüência de movimentos marcantes e quebrados, não por acaso chamado de break. No som, ritmo e poesia (rythm-and-poetry, ou apenas, rap). Na pista, os dançarinos acompanhavam o desenho dos pés e das rodas sobre o chão. Sim, nem só com pernas e saltos se faz o traçado da dança. Também as rodas de borracha se enchem de ritmo e poesia quando conduzidas por jovens que ousaram transformar suas limitações em arte, mudando assim, a forma como viam a si mesmos e como eram vistos. Sob a coordenação e o olhar atento do professor Mark Van Loo, pernas e rodas compõem uma unidade harmônica, onde as diferenças se completam como luz e sombra, corpo e mente, letra e música. Juntos, andantes e cadeirantes formavam o grupo “Perfeito”. Sentada perto do som, com o caderninho de anotações aberto sobre as pernas e o gravador ao lado do corpo, eu estava sobre o efeito hipnótico da música e da dança que se desenvolvia à minha frente. Só consegui sair dele quando a música parou (DANTAS, 2009. disponível em: textovivo.com.br). A narrativa envolve o leitor e soa como música em seus ouvidos, por isso tende a chamar a atenção, agradá-lo e , dessa forma fazer com que ele permaneça ali até o fim da matéria. 3.5. Livros O mercado editorial também vem crescendo no Brasil com a publicação de vários livroreportagens. Uma das inciciativas é a coleção Jornalismo Literário, da Editora Companhia das Letras que, desde 2002, publica obras do estilo no país. Boa parte dos títulos tem origem norte- 88 americana. Até meados de 2008 os títulos da coleção eram: Berlim (Joseph Roth), Chico Mendes: Crime e Castigo (Zuenir Ventura); Dentro da Floresta: Perfis e Outros Escritos da Revista The New Yorker (David Remnick); Filme (Lilian Ross); Hiroshima (John Hersey); Imperador: A Queda de um Autocrata (Ryszard Kapuscinski); A Milésima Segunda Noite da Avenida Paulista (Joel Silveira); Na Pior em Paris e Londres (George Orwell); A Sangue Frio (Truman Capote); O Segredo de Joe Gould (Joseph Mitchell), O Super-Homem vai ao Supermercado (Norman Mailer); A Vida como Performance (Kenneth Tynan); Fama & Anonimato (Gay Talese); Radical Chique e o Novo Jornalismo (Tom Wolfe); e o Livro das Vidas, uma seleção de obituários do jornal The New York Times organizada pelo jornalista Matinas Suzuki. Temos ainda algumas produções independentes como Abusado: o dono do morro Dona Marta, de Caco Barcellos; A vida que ninguém vê e O olho da rua, de Eliane Brum; Jornalistas Literários: narrativas da vida real por novos autores brasileiros, uma coletânea de reportagens feitas por alunos da ABJL e organizadas pelo professor Sergio Vilas Boas. Ainda sobre o estilo literário temos algumas obras conceituais como Páginas Ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura; de Edvaldo Pereira Lima; e Jornalismo Literário, de Felipe Pena. O livro-reportagem funciona como uma válvula de escape para os profissionais da imprensa convencional que queiram superar limites, ultrapassar barreiras, contextualizar e contar boas histórias. A necessidade de ser objetivo, além de escrever um texto baseado em fórmulas prontas, condições pré-estabelecidas para quem se arrisque a ser jornalista em empresas convencionais de comunicação como jornal impresso, TV e rádio, leva jornalistas de maior fôlego a fugir para as páginas de livros. A alternativa surge como uma boa proposta para o aprofundamento de temas relevantes e se faz válida, pois o jornalismo praticado com interesses comerciais dificulta a visão ampla dos fatos. Edvaldo Pereira Lima (1998, p. 10) comenta sobre a importância da reportagem: O jornalismo desenvolveu, ao longo do tempo, uma forma de mensagem mais rica, cujo teor procura redimensionar a realidade sob um horizonte de perspectivas onde não raro existem várias dimensões dessa mesma realidade. Essa forma é a reportagem, que nos casos mais felizes oferece, em torno do núcleo frio que marca a face árida de um acontecimento, todo um contexto embelezado pela dimensão humana, pela tradução viva do ambiente onde ocorrem os fatos, pela explicação de suas causas, pela indicação dos rumos que poderá tomar. 89 Os resultados das reportagens escritas em livros são, geralmente, muito bons, haja vista a quantidade de prêmios destinados ao gênero reportagem. Rota 66 e O Abusado, são exemplos próximos, mas ainda temos um bom montante de obras que receberam prêmios importantes, como A vida que ninguém vê, de Eliane Brum, premiada em 2007. Mas, diferente de países como os Estados Unidos, por exemplo, pensamos que o Brasil e sobretudo as empresas de comunicação deste país não fazem o aproveitamento que poderiam fazer de obras importantes como estas. Só para exemplificar e tentar esclarecer o que queremos dizer com essa afirmação, pensemos em dois casos ocorridos nos EUA: Hiroshima, de John Hersey e A sangue Frio, de Truman Capote. O livro de Hersey traz histórias de vida de seis sobreviventes ao bombardeio que atingiu a cidade japonesa de Hiroshima. A reportagem é considerada até hoje por críticos especializados como a mais brilhante reportagem de todos os tempos. A revista The New Yorker quebrou sua tradição editorial e em 31 de agosto de 1946 publicou uma única matéria em toda a edição. O período da publicação é bastante sugestivo, pois nessa época ainda reinava um silêncio acerca das conseqüências da rendição do Japão na Segunda Guerra. No entanto, a edição de trezentos mil exemplares, restrita apenas a Nova York, esgotou-se em poucas horas. Eduardo Belo (2006, p. 127-128) conta sobre a grande procura e sobre o diferencial que os americanos encontravam naquela reportagem: A New Yorker recebeu inúmeros pedidos de reimpressãoe nem sempre foi capaz de atendê-los. Exemplares ou cópias eram vendidos com ágio de mais de 13.000%, sendo negociados por até US$ 20, numa época em que a revista custava US$ 0,15 nas bancas. Outras publicações interessaram-se pela reedição do texto, em caráter nacional. A rede ABC e a BBC, de Londres, transmitiram a leitura da reportagem no rádio, na íntegra. A matéria de Hersey deu, pela primeira vez, a dimensão humana dos acontecimentos. Após um ano inteiro de textos que travavam a explosão nuclear como um evento estatístico – morte de 130 mil pessoas no período de três meses após o bombardeio, destruição de casas numa área superior a 30 Km² -, as vítimas até então sem rosto acabavam de ganhar uma identidade. O que Hersey se propôs a fazer foi uma contextualização desses dados. Ao invés de dizer que morreram 130 mil, foi buscar 6 pessoas que presenciaram a morte de algumas delas para contar. E a partir de uma apuração rigorosa e participante, pôde recontar o que aconteceu no dia das explosões com a ajuda de seus personagens. 90 A situação do dr. Fuji, do dr. Kanda e do dr. Machi – e, por extensão, da maioria dos médicos de Hiroshima – logo após a explosão, com seus consultórios e hospitais construídos, seu equipamento disperso, seus próprios corpos incapacitados me diferentes graus, explica por que tantos feridos não receberam cuidados e por que morreram tantos cidadãos que podiam ter sido salvos. Dos 150 médicos existentes em Hiroshima, 65 estavam mortos e os restantes se encontravam, na maioria, feridos. Das 1780 enfermeiras, 1654 estavam igualmente mortas ou impossibilitadas de agir. No hospital da Cruz Vermelha, o maior da cidade, apenas seis médicos, de uma equipe de trinta, e dez enfermeiras, dentre mais de duzentas, tinham condições de trabalhar. O dr. Sasaki era o único médico desse hospital que escapara ileso. Depois da explosão, ele correra para buscar ataduras num depósito onde, como no restante do prédio, reinava o caos – frascos de remédios tinham caído das prateleiras e se espatifado, ungüentos mancharam as paredes, instrumentos se esparramaram por todo canto. O dr. Sasaki pegou algumas bandagens e um frasco de mercurocromo que estava intacto e medicou o cirurgião-chefe. Em seguida, saiu pra o corredor e cuidou dos pacientes, médicos e enfermeiras que ali se achavam. Estava enxergando tão mal que se apoderou dos óculos de uma enfermeira ferida – embora lhe proporcionassem uma correção apenas medíocre da visão eram melhores que nada. (Acabaria usando-os por mais de um mês.) (HERSEY, 2002, p. 30-31) O livro de Hersey oferece ao leitor um quadro contextualizado dos acontecimentos que envolvem a vida de pessoas comuns. Ultrapassa os limites da imprensa convencional e orienta com profundidade. Mas será que um livro como este seria bem aproveitado aqui no Brasil? Ou seria barrado por discursos do tipo: “o leitor não gosta de ler” ou “o leitor não tem tempo para ler”? Mais tarde, em 1965, Truman Capote tomou o mesmo rumo de Hersey e foi apurar com profundidade o caso de um assassinato que lera em um jornal diário. Pegou as informações básicas sobre o fato e foi dar voz aos personagens da história. E voltou para contar em forma de romance. Sim, o autor da reportagem que também foi publicada inicialmente em uma revista, considera seu livro como um romance de não ficção. O certo é que a narrativa humanizada de Capote também ficou marcada como exemplo de bom jornalismo, de aprofundamento. Cumpriu a função de informar e preencheu o vazio deixado pelas publicações periódicas. Todas as iniciativas são preciosas e importantes para que se busque uma melhora nas produções jornalísticas brasileiras que, hoje, estão carentes de boas histórias. A batalha é árdua, mas a vitória é possível. Por isso, produções como as da revista Realidade devem ser lembradas e 91 discutidas sempre, para que pensemos no jornalismo que andamos praticando hoje, no Brasil. E para que possamos pensar assim, em alternativas para manter nossos leitores acordados! 92 Capítulo IV 93 Caco Barcelos: Rota 66, Abusado, Profissão Repórter: análise dos elementos narrativos 4.1. Cláudio Barcelos de Barcelos: breve histórico e análise de conteúdo. Nesse último capítulo apresentamos um histórico descritivo sobre os trabalhos realizados pelo jornalista Caco Barcellos. É de nosso interesse mostrar, a partir de uma análise de conteúdo, que as características principais dos trabalhos de Barcellos vão ao encontro do que propõe o jornalismo literário. Faremos, portanto, uma desfragmentação de alguns trechos de seus dois livros mais vendidos, Rota 66 (que apontou em detalhes a ação dos matadores da ROTA da PM de SP) e Abusado (em que conta a história do Comando Vermelho pela ótica do traficante Marcinho VP, morto pouco depois da publicação do livro), e que lhe custaram anos de árdua investigação e sérios boatos sobre juras de morte. O programa Profissão Repórter também terá seu espaço nessa discussão. Por trás do rosto de aparentes 40 e poucos anos, talvez justificados pela opção de ser adepto à uma dieta macrobiótica e não fazer uso de álcool e drogas, está um dos melhores jornalistas do país. Aos 60 anos, Caco Barcellos traz na mochila um currículo invejável. Gaúcho de origem modesta, Barcellos trabalha desde cedo. Foi com o trabalho de taxista que conseguiu sobreviver e pagar a faculdade quando jovem. Na carreira de jornalista começou trabalhando no jornal Folha da Manhã, de um grupo gaúcho. Lançou-se ao mundo num trabalho como freelancer durante a guerrilha setentista na Nicarágua. A cobertura da guerra é motivo para boas e más lembranças. De boa o seu primeiro livro, Nicarágua: a Revolução das Crianças.. E de má, o momento em que foi refém dos sandinistas. Trabalhou em revistas como Veja e IstoÉ antes de entrar para a TV, onde ganharia mais fama e dinheiro. Na TV Globo sua carreira já dura 20 anos, divididos entre alguns trabalhos como correspondente internacional e participação em importantes programas da emissora como o Globo Repórter, Fantástico e Jornal Nacional. 94 Amante da cobertura de maior aprofundamento, Caco Barcellos fala, em entrevista ao autor, sobre a importância desse gênero para o processo jornalístico: “Pela via da reportagem você consegue explicar os acontecimentos, não simplesmente retratá-los. A reportagem é importante para que você possa levar para seu público um melhor entendimento sobre a realidade. A maior virtude da reportagem é que ela vai além do simples registro do fato”. Barcellos recebeu em 2003 e 2005 o prêmio de melhor correspondente, promovido pelo site “Comunique-se”. Nos anos de 2006 e 2008, em premiação do mesmo site, foi eleito o melhor repórter da televisão brasileira. Ainda em 2008, recebeu o Prêmio Especial das Nações Unidas, como um dos cinco jornalistas que mais se destacaram, nos últimos 30 anos, na defesa dos direitos humanos no Brasil. Prêmio este que encontra justificativa na apresentação do livro Rota 66, onde Narciso Kalili escreve: Caco Barcellos é um jornalista que tem lado. Aliás, lado que ele, desde o começo da carreira, no Rio Grande do Sul, nunca escondeu. Um lado que continua o mesmo —o dos mais fracos, o das vítimas. Ele não está sozinho neste lado do jornalismo. Caco segue o exemplo de gente daqui e de fora, que não se aquece na própria vaidade nem proclama uma visão cínica de mundo, quase sempre um horizonte que não vai além do próprio umbigo. [...] Porque Caco Barcellos é um jornalista que está do lado da maioria. O lado dos desgraçados, dos miseráveis. Gente sem privilégios, indefesa, e para quem o trabalho de jornalistas como Caco Barcellos ou Donald Wood representa a porta de entrada em direção à vida. (KALILI in: BARCELLOS, 1997, p. 3.) Para Edvaldo Pereira Lima (2009, p. 369), o leitor não espera encontrar em uma narrativa um discurso de “verdade absoluta”, “mas sim uma leitura individual, marcada pela experiência própria do autor, seu modo de captar e expressar a realidade, sua interação com os personagens da história.” Pois: O autor não é um mero compilador de dados, esforçado moleque de recados que transmite as versões dos fatos moldados conforme os interesses de suas fontes, nem se esconde, submisso, por trás das afirmações dos especialistas. [...] Autor de jornalismo literário tem nome, rosto, corpo cabeça, tronco, membros. Tem nome e coração. Pensa e sente. É um estudioso constante da realidade. Interpreta, avalia, busca unir os fios da compreensão que unem ações, pessoas, ambientes. Tem virtudes e defeitos. (LIMA, 2009, p.369) 95 Por vários momentos em suas narrativas Caco Barcellos evidencia seu envolvimento com a história e seus personagens. E dessa forma permite que seu leitor viva, mesmo que simbolicamente, aquela experiência. E isso não significa ser parcial, se é que imparcialidade é possível no jornalismo. Significa mostrar para o leitor aquilo que suas observações de jornalista e contador de histórias puderam subtrair dos cenários das narrativas. Significa mostrar que estava ali, participando, ouvindo, observando. Significa presença. Perceba essa participação nesse trecho do livro Rota 66: Na caça aos assaltantes, os policiais vasculham casa por casa prendendo e interrogando suspeitos 24 horas por dia. São mais de cem PMs auxiliados por agentes da Polícia Federal, uma parceria de métodos iguais aos dos tempos recentes da repressão política. Durante a semana fui testemunha de cenas de injustiça, abuso de poder, covardia. Minha reação me trouxe problemas de todos os lados. Um deles foi com o próprio fotógrafo, um profissional experiente em cobertura policial. - Os soldados estão invadindo o barraco aos pontapés e tu não estás fotografando. Por que não? - Porque não é importante. Cuide do seu trabalho que eu cuido do meu, tá legal? - Como não. Deixastes de registrar uma invasão a domicílio. Isto é crime. - Crime foi o assassinato do major. - Se um dia fizerem isso na tua casa, vais gostar também? - Casa não é barraco. Isso aqui é esconderijo de bandido, vale tudo. Fiquei ainda mais irritado quando o fotógrafo deixou de documentar a cena seguinte: mulheres e crianças chorando enquanto os soldados saíam do quintal do barraco puxando três homens pelos cabelos. Os suspeitos são levados ao compartimento de presos da viatura. O fotógrafo só resolve fotografá-los quando eles já estão por trás da porta gradeada. O chefe dos PMs também é fotografado. O sargento — que à noite vira juiz do futebol do xadrez — faz pose para a máquina. Adora ser fotografado, odeia entrevistas. (BARCELLOS, 1997, p. 2324) Para Edvaldo Pereira Lima (2009, p. 371) a voz autoral significa que “o leitor aceita a diversidade que marca as diferenças entre diversos autores.” E essa diversidade é o que o atrai. A possibilidade de encontrar ali as impressões detalhadas daquele repórter que ele (leitor) considera polêmico, irreverente ou irônico, por exemplo, chama a atenção de quem está lendo a história. E o jornalismo literário permite o uso desse estilo próprio, onde o autor pode deixar sua marca, sua assinatura. Tudo no intento de agradar o leitor, fazê-lo ficar ali, lendo a história contada (2009, p. 371). 96 A voz autoral permite que o autor veja o mundo com olhar diferenciado, livre de condições que castram seu poder de criação, observe o contexto da história e conte também suas impressões. E essa singularidade individual “transmite à obra um toque de exclusividade que a diferencia, valorizando-a” (LIMA,2009, p. 369). É claro que o autor também não pode se esquecer de que qualquer texto jornalístico deve informar, deve conter elementos da realidade que o tornem verossímil. São os dados que irão dar o suporte para a narrativa. Que dará a permissão para o autor lançar suas percepções sobre o fato narrado. Veja como Barcellos faz para dar o suporte necessário para sua narrativa: No processo de checagem, já havíamos encontrado nos registros da Polícia Civil mais 276 casos de vítimas envolvidas em processos agora na área da Grande São Paulo, dentro do universo dos 2.303 inocentes mortos na capital. Assim, o cruzamento das duas fontes judiciárias nos permite afirmar com segurança: se em um total de 3.523 vítimas da PM por nós identificadas 1.496 eram criminosas — o que representa 42,6 por cento — os outros 57,4 por cento nunca haviam praticado crimes na Grande São Paulo. Identificamos 2.027 inocentes assassinados pelos matadores da PM. Em relação aos policiais militares, o cruzamento das duas fontes judiciárias também revela fatos inusitados. Na seleção dos dez PMs com maior número de vítimas registradas em nosso Banco de Dados, pelo menos um deles tem uma história coerente com a sua fama de matador de bandidos. Quinto colocado na nossa lista dos dez mais, o tenente Wanderley Mascarenhas de Souza tem seu nome envolvido em 34 assassinatos. Nossa pesquisa mostra que a maioria das suas vítimas não era inocente, fato que nos chamou a atenção. (BARCELLOS, 1997, p. 155) A exatidão e precisão de dados também são marcas primordiais nos textos de Barcellos. Mas o modo como essas informações são apresentadas ao leitor é bastante diferente do modo praticado pela imprensa convencional. Antes de expor os dados, o autor apresenta uma cena, conta um episódio, como a perseguição de três rapazes na narrativa a seguir: A primeira rajada atinge o pára-lama traseiro direito do Fusca, que completa a manobra cavalo-de-pau. Para se proteger, Noronha encolhe o corpo, baixa o máximo que pode a cabeça, até o ponto em que garanta um mínimo de visibilidade à sua frente. Continua usando o extremo da aceleragem. Passa pela rua Antilhas. No final da rua Uruguai, o Fusca é atingido por nova rajada de balas e vai perdendo velocidade ao entrar na Venezuela. O ruído da metralhadora supera o dos motores, acorda os moradores do Jardim América. Ao ouvir os tiros, dona Eliani Aparecida de Castro salta da cama, assustada. Entra no quarto ao lado, onde dorme a enfermeira, que já está acordada, tentando ver pela janela o que está acontecendo [...] 97 [...] Os policiais militares foram treinados pelo Exército a usar metralhadoras, em 1969, com o objetivo de combater guerrilheiros. Mas, quatro anos depois, vencida a guerrilha, continuam usando armamento pesado durante o patrulhamento regular da cidade. Contra outro tipo de inimigo. Agora o alvo das metralhadoras é geralmente jovem da periferia, muitas vezes desarmados. De 73 até 75, os soldados foram autorizados pelos seus comandantes a metralhar pelo menos 109 vezes contra pessoas da zona pobre da cidade, suspeitas de serem criminosas. O exame de cada caso revela que eles acionam o gatilho de duas formas: disparando tiros intermitentes, igual ao revólver, ou na posição de rajada. Em ambas as posições, a metralhadora só é acionada quando a prioridade é considerada máxima, como no caso dos três rapazes do Fusca azul. A perseguição da Rota 66 mostra que, na concepção de policiais mal orientados, prioridade máxima pode ser estabelecida através de uma simples desconfiança (BARCELLOS, 1997, p. 25). E “depois que os disponibiliza, volta ao dinamismo do lugar, atiçando nossa imaginação, fazendo nosso pensamento imagético construir uma seqüência visual, levemente sonora, do que ocorre ali” (LIMA, 2009, p. 357). Esse modo de expor as informações é mais um atrativo para o leitor, que pode acompanhar os dados relativos àquele fato e ainda ler uma história bem contada. Durante todo o livro o leitor se depara com um volume grande de informações e, em entrevista ao autor, Caco Barcellos contou como faz para lidar com esse material sem deixar que a história se perca: Esse é o sofrimento do processo: tornar o material todo em uma história atraente e não um relatório sem começo, meio e fim, ou repetitivo. Às vezes você tem até que eliminar histórias, pois se elas forem todas contadas você corre o risco de aborrecer o leitor, porque ninguém gosta de ler histórias repetitivas. E, dependendo da circunstância, é muito grave a repetição de histórias do ponto de vista da realidade. E do ponto de vista da narrativa isso também é ruim, pois você acaba não conseguindo contar a história da melhor maneira e aborrece o leitor. Então é um processo sofrível, de muitas tentativas e erros. E não tem como ser diferente. Eu escrevo no mínimo umas 200 vezes cada história até achar que ela está mais interessante, com expectativa de segurar o leitor comigo até o fim. O livro Rota 66 custou a Barcellos mais de cinco anos de investigação e lhe rendeu o prêmio Jabuti de jornalismo em 1993, além de mais 8 prêmios de direitos humanos. A obra denuncia a ação da Policia Militar (PM) de São Paulo no período entre 1970 e 1992. As atenções do livro são focalizadas para as operações praticadas pela ROTA (Rondas Ostensivas Tobias 98 Aguiar). Barcellos criou um banco de dados que reúne informações de boletins de ocorrências, notas de jornais (o jornalista optou por pesquisar o jornal Notícias Populares, devido ao estilo da cobertura desse veículo), relatórios do Instituto Médico Legal (IML), arquivos do Cartório da Justiça Militar e, claro, entrevistas com personagens envolvidos nas histórias, como parentes das vítimas feitas pela PM. Em entrevista ao Observatório da Imprensa (2003) Caco Barcellos fala da importância da reportagem e da necessidade de os jornalistas irem às ruas, aos lugares onde as histórias se passam: [...] eu acho que a imprensa está bem servida de analistas e especialistas em violência, embora muitos deles nunca tenham tido oportunidade, ou vontade, de conhecer de perto os lugares sobre os quais emitem opinião. A reportagem precisa recuperar o espaço perdido, no mínimo para se corrigir uma distorção: a de se falar demais dos personagens envolvidos com violência sem se conhecer a fundo suas histórias. O livro traz, além das informações, histórias de vida que contribuem para sustentação dos dados. E essas histórias são dispostas para o leitor a partir de uma narrativa híbrida, onde Barcellos trabalha tomando por base alguns elementos da literatura. No início da obra o jornalista narra uma cena que conta de uma perseguição feita pela polícia a três rapazes que estavam em um Fusca. Essa história inicial serve também como eixo condutor para o restante da obra. Veja alguns trechos: A Veraneio cinza nunca esteve tão perto. A 200, 300 metros, 15 segundos. A sirene parece o ruído de um monstro enfurecido. Os faróis piscam sem parar. O farolete portátil de 5 mil watts lança luzes no retrovisor de todos os carros à frente. Os motoristas, assustados, abrem caminho com dificuldade por causa do trânsito movimentado nesta madrugada de quarta-feira, no Jardim América. A Veraneio, com manobras bruscas, vai chegando perto, cada vez mais perto do três homens do Fusca azul. Eles estão na Maestro Chiafarelli e têm à frente uma parede de automóveis à espera do sinal verde para o cruzamento da avenida Brasil. O motorista do Fusca azul, Francisco Noronha, sem tirar o pé do acelerador, reduz da quarta marcha para a terceira, em seguida para a segunda, e, ao girar o volante à esquerda, a roda dianteira bate no canteiro divisor de pista. Sem perder o controle, imediatamente ele gira à direita e segue em direção à calçada oposta. Sobe o meio fio. Quase atropela um grupo de jovens, que tenta proteção junto ao muro. Ao desviar deles, por sorte, bate com a traseira em um poste na esquina. O Fusca se alinha sobre a calçada da Brasil, com a frente apontada à direita, que está livre para a fuga. — Atenção, tigrão. Prioridade rua Maestro Chiafarelli. É Maestro 99 Chiafarelli, QSL, tigrão? A prioridade agora é Maestro Chiafarelli. Três elementos Fusca azul. QSL. QSL, tigrão? Câmbio. Os cinqüenta tigres estão espalhados pela cidade, cinco em cada uma das dez Veraneios cinza. Tão logo ouvem a ordem da Central de Operações, via rádio, começam a voar baixo em direção ao Jardim América (BARCELLOS, 1997, p. 4). A descrição cena a cena estabelece uma proximidade com o leitor, trazendo-o para dentro da narrativa. Essa construção é o momento onde o autor busca pintar, em palavras, um quadro daquilo que vê e descobre sobre o ambiente e os personagens envolvidos na história. Para essa construção o autor pode fazer o uso de símbolos como as metáforas. Nesse trecho que acabamos de ler, Barcellos diz: “Tão logo ouvem a ordem da Central de Operações, via rádio, começam a voar baixo em direção ao Jardim América”. A expressão “voar baixo” é usada para melhor expressar o que o autor quer dizer, para que o leitor possa visualizar e então compreender a situação. Caco Barcellos faz uso da descrição também para apresentar os personagens de sua história. Não apenas para que o leitor construa uma imagem física da pessoa retratada, mas também para que tenha uma idéia do status de vida desse personagem, por exemplo. No trecho a seguir, Barcellos consegue nos dar uma idéia das características físicas e pessoais do personagem Noronha. A descrição de suas roupas de grife, por exemplo, nos faz entender que o garoto possivelmente tem um padrão de vida elevado. Noronha, aos 17 anos, é uma unanimidade. As garotas adoram o jeito, o charme do skatista radical. Inquieto, irreverente, às vezes rebelde. Não é exatamente um rapaz bonito: 1,68 metro de altura, ombros largos, corpo de atleta; cabelos castanhos e crespos, longos e despenteados, sempre repartidos ao meio e a barba por fazer. Lara lembra da roupa que ele usava naquele dia em que o namoro começou. Calça Lee surrada com várias etiquetas cobrindo as partes puídas, camiseta Hang Ten, tênis AlI Star. Não por coincidência, a mesma dessa noite acrescida de um suéter de cashmere. Um uniforme rebelde, americanizado. Uma moda estrategicamente fora de moda, sucesso entre as garotas. Motivo do comentário irônico da namorada: - O, meu! Você deve ficar hoooras em frente ao espelho se produzindo pra parecer que odeia se produzir. - Pára com isso, Larinha. O meu jeito é assim mesmo: largadão, não estou nem aí com a moda (BARCELLOS, 1997, p. 6). Caco Barcellos também usa outro recurso presente nas composições de jornalismo literário: o fluxo de consciência. Trata-se de um elemento imprescindível para a descrição de 100 cenas que possivelmente o autor da obra não tenha acompanhado. Esse recurso é alcançado a partir de exaustivas entrevistas com personagens envolvidos e de todo tipo de informações que se possa garimpar e reunir. Vejamos como foi o desfecho dessa narrativa envolvendo a fuga de Francisco Noronha, Carlos Ignácio de Medeiros – o Pancho-, e Augusto Junqueira, todos estudantes de famílias de classe média. As lanternas do freio permanecem apagadas como sempre estiveram. Mas na esquina da Argentina com rua Alasca, de repente, as luzes vermelhas se acendem na traseira do Fusca, ao mesmo tempo em que se ouve o ruído de pneus no asfalto. Algo de grave deve estar acontecendo com Francisco Noronha. Provavelmente ferido, ele não consegue vencer a curva de 90 graus. O carro aponta em um ângulo de 45 e pára no momento em que o pára-lama dianteiro esquerdo colide contra o poste em frente ao número 66 da Alasca. Pancho abre a porta e sai rápido, gritando em desespero. No lado oposto, Noronha abandona o volante, deixa o motor funcionando. Ao sair do Fusca, ergue os braços, põe as mãos sobre a cabeça. Augusto continua no carro, rosto grudado no vidro, sangrando. - Não atirem! O grito desesperado de apelo é ouvido pela empregada doméstica da mansão da esquina, 685 da rua Argentina. Lygia de Almeida Queiroz, de 51 anos, foi acordada pelo barulho da perseguição, mas continua na cama. Pensa em levantar para sair à rua, mas tem medo. Deitada no quarto escuro, imagina através dos ruídos o que pode estar acontecendo lá fora. A Veraneio breca bem no meio da esquina, a 9 metros do Fusca. As quatro portas são abertas ao mesmo tempo. Viram escudo dos três PMs armados de revólver. Francisco de Paula, o motorista Cláudio Cândido e o comunicador Antônio Sória apóiam os braços esticados no encosto das janelas. O sargento Felício e o cabo Martínez, metralhadora na altura da cintura, se afastam para os lados do carro. Apontam na mesma direção do facho de luz, que provoca cegueira e pavor nos rapazes. Eles usam as mãos para proteger os olhos da iluminação, tentar enxergar alguma coisa. O máximo que eles podem ver, na posição que estão agora, são os cinco pontos de fogo das armas que começam a disparar contra eles. (BARCELLOS, 1997, p. 28-29) Essa história narrada por Barcellos é uma de suas várias tentativas de mostrar a incoerência dos trabalhos dos policiais da ROTA. Segundo o jornalista, os matadores da polícia de São Paulo além de matarem suspeitos violam os locais do crime numa tentativa de impossibilitar investigações que, possivelmente, provariam as brutalidades cometidas pelos policiais. Instantes depois do assassinato, ao chegar à esquina da Argentina com a Alasca, o oficial da Rota-Comando, tenente Nepomuceno, de 21 anos, se revela um profissional totalmente despreparado para a função. Os corpos dos rapazes estão 101 sendo arrastados do Fusca para o compartimento de presos da Rota 17, numa violação do local do crime que deveria ser totalmente preservado. Os PMs da Rota 66 encenam um gesto humanitário, uma tentativa de salvar a vida dos rapazes providenciando transporte ao hospital mais próximo. O tenente não só deixa de impedir a irregularidade como participa da encenação. Basta contar os tiros que atingiram o carro para se concluir que a intenção dos PMs não era a de evitar a morte dos rapazes. Os dois pára-brisas estão estilhaçados, os vidros da janela do motorista e o lateral traseiro também. São 21 marcas de bala, a maioria na parte superior do Fusca, o que indica a vontade de matar. Os ferimentos nos corpos são ainda mais reveladores. O sangue escorre por 23 perfurações de balas, a maior parte em regiões vitais, como o coração e a cabeça. A pressa em socorrer só ocorre, de fato, na retirada dos corpos do local do crime. A caminho do hospital, ao contrário, a velocidade dos policiais militares é de lesma (BARCELLOS, 1997, p. 35). As pesquisas de Caco Barcellos revelam ainda que o caso da Rota 66 que acabamos de ler não ocorre com tanta freqüência, pois as vítimas da vez faziam parte da minoria rica do país. Na grande maioria dos casos, segundo apurou Barcellos, os mais perseguidos pela polícia são os menos favorecidos. Barcellos mostra ainda alguns casos em que policiais foram processados e julgados inocentes pelos tribunais da própria instituição. O que o motiva ainda mais a escrever sobre o tema. A impunidade pode ser resumida em mensagens de congratulações emitidas por comandantes da polícia aos seus matadores e subordinados. Barcellos busca essa informação e dispõe ao leitor. "Nossos parabéns e que continue sempre demonstrando grau de eficácia cada vez maior por parte da Rota e de seus componentes a fim de que o nome da mesma e do 1° Batalhão Tobias de Aguiar se localize mais profundamente na coletividade tão ansiosa por dias mais tranqüilos em sua existência." (Secretário do 19° Batalhão,10/3/75) Informações como estas contribuem para que o autor conte a história da maneira que considera mais fiel aos fatos, e sem correr o risco de emitir muitas opiniões. As informações servem para isso, ancorar a narrativa, amparar o autor que, inegavelmente tem sua opinião sobre aquilo, porém não a pode dizer abertamente, afinal ele tem de ser imparcial. Outro fator que merece destaque deste livro de Caco Barcellos é a contextualização, ou a maneira como o autor da narrativa dispõe as informações para o seu leitor. Basicamente, a maneira de contar. Barcellos consegue criar uma proximidade entre o leitor e a história que está 102 contando. O texto tem características que facilitam a compreensão além de tornar agradável a leitura até mesmo em pontos onde o que mais se lê são dados. Alguns armários sem porta mostravam grandes garrafas de vidro com pedaços de corpos mergulhados em formol. Mãos. Pés. Cabelos. Fetos deformados. Olhos. Muitos vidros cheios de olhos flutuantes. Álbuns e mais álbuns com fotografias de cadáveres em todos os estágios de putrefação. Livros de capa preta. Velhos instrumentos um dia usados nos exames de necropsia. Cadeiras quebradas. Pedaços de macas. Máquinas de escrever emperradas. Apontei o centro da sala, para mostrar ao diretor o motivo de meu interesse. Uma montanha de pastas e papéis velhos cobertos de pó. Ele sabia muito bem do que se tratava. - Documentos usados no transporte de cadáveres. O que você pretende achar aí? — perguntou o diretor com curiosidade, talvez por me julgar um pesquisador excêntrico. - Estou fazendo uma pesquisa sobre morte por causa violenta na cidade. Tenho certeza de que essa documentação vai ajudar muito — respondi torcendo, por prudência, parte da verdade ao diretor, embora ele se mostrasse gentil e com vontade de ajudar. - Nunca pensei que um repórter pudesse se interessar por isso... - Há loucos para tudo, diretor. - Quantos dias você pretende ficar aqui? - Quantos forem necessários. - Bem, isso depende do período de abrangência da sua pesquisa. Abrange quantos dias, semanas... - São anos, doutor. Quero examinar todos os documentos desde 1970. - Não acredito. São mais de 60 mil documentos por ano. Você terá que contratar uma centena de auxiliares ou então se despeça da família e se mude para cá com cama e tudo — brincou o diretor. - Quando posso começar? - A sala é sua. Você será o primeiro e certamente o último a mexer nessa poeira toda... Convém usar máscara de papel. Insalubridade, hein! — ele advertiu. (BARCELLOS, 1997, p. 73) Aqui o uso de diálogos também colabora para que o texto ganhe uma certa leveza e para a ampliação da compreensão do fato narrado. Do trabalho do repórter vale destacar a observação intensa, possível apenas a partir de uma imersão no ambiente em que se passa a história. A partir dessa descrição, feita logo no início do capítulo, a inserção de dados e informações mais técnicas “caem melhor”. O leitor não sente o impacto de muitas informações e nada de contextualização. O texto escrito assim ganha forma de romance, mas com histórias da vida real. 103 Em entrevista ao autor, Barcellos falou sobre as características de seus textos, sobre o uso de diálogos, da observação intensa, da descrição cena a cena, imersão, humanização, digressão, etc. O jornalista contou sobre a importância desses elementos para a narrativa jornalística: Eles são essenciais. Em síntese, se o livro for de não ficção ou ficção, de reportagem ou não, o importante é que o texto seja elegante, agradável e, que atraia o leitor para a história que você quer contar. Essas técnicas são importantes para tornar a leitura prazerosa. Quando eu estou apurando uma reportagem eu já estou pensando em como vou contar essa história. Que elementos vou usar para contar melhor. Os diálogos, Poe exemplo, são fundamentais. Então eu apuro pra reconstituir os diálogos. Há quem confunda ou chame o jornalismo literário de fantasia. Absolutamente não! Embora existam algumas pessoas que façam. Eu não faço. Eu escrevo baseado na verdade que eu consigo apurar, pensando nessas técnicas todas pra tornar a história mais agradável. A qualidade do texto é fundamental pra você prender o leitor na sua história. Barcellos, em certos momentos de sua narrativa, faz uso da digressão, que Edvaldo Pereira Lima (2009, p. 245) diz ser: Uma espécie de rápida reflexão do autor sobre o que está contando. Ele interrompe momentaneamente a narrativa para apresentar um tópico paralelo ou complementar que merece atenção, sem o qual o leitor talvez não tenha em mãos informação suficiente para compreender o que está acontecendo, na história sendo contada. Depois, volta à narrativa, dando-lhe continuidade. Essa ferramenta pode apresentar algumas variações e ser usada para trazer informações históricas, política, social, humana. Tudo no intento de ampliar a compreensão do leitor sobre o que está sendo contado. No exemplo a seguir, Caco Barcellos “interrompe a perseguição” para trazer informações sobre a vida pessoal de um dos rapazes perseguidos pela polícia. O importante é que essa informação serve para que o autor nos dê uma idéia do comportamento de seu personagem em sua vida cotidiana. À espera do inimigo, o motorista da Rota 66 acelera muito, sem movimentar o carro, ainda parado no meio da pista. Ao lado dele, no banco dianteiro, o comandante da equipe, sargento José Felício Soares, tem uma metralhadora sobre o colo. Atrás, entre dois PMs, está o soldado Antônio Sória. Ele se apóia 104 no encosto do banco da frente, avança o corpo o máximo que pode para ver melhor a cena. Sória é o comunicador da Rota 66. — Só dá pra ver dois. O passageiro está usando um chapelão. O motorista é cabeludo, deve ser maconheiro, QSL? Meliante cabeludo, QSL? Está vindo pra cima de nós! É agora, Copom, vamos pegar, Copom! Duas horas antes de cruzar com os homens da Rota 66, os longos cabelos do menor Francisco Noronha estavam entre as mãos da namorada, Lara Jamra, que os acariciava enquanto ele fazia o que mais gostava na vida: namorar em um passeio noturno de carro, em baixa velocidade, ouvindo Yes, Pink Floyd, Led Zeppelin pelas ruas arborizadas da cidade universitária. Namoro monossilábico. De vez em quando, um ou outro baixa o volume do som, para poder ser ouvido. - Que baraaato, Larinha! O namoro já dura três meses, tempo suficiente para Lara entender que o significado dessa expressão de Noronha é amplo. Pode representar qualquer coisa relacionada ao prazer de estarem juntos. Um elogio ao som, aos carinhos, à bela noite, aos momentos de curtição sem palavras. Observadora sensível, Lara gosta de interpretar o silêncio do namorado como um sinal de quem está muito de bem com a vida e amando a companheira. De tempos em tempos, ela também se declara apaixonada. Bem ao jeito que Noronha gosta de ouvir: – Que legaaal, meu!! (BARCELLOS, 1997, p. 5) Conhecer melhor os personagens da história contada ajuda o leitor a criar uma identificação com os envolvidos, se aproximar do fato narrado, se prender e querer ir até o fim. É como nas novelas, onde criamos uma identificação com algum personagem e então vamos até o fim dessa narrativa para descobrir como sua história termina. A seguir passaremos a analisar o livro Abusado, onde continuaremos discutindo a importância da reportagem e da cobertura de estilo literário. O estudo do segundo livro do autor pretende evidenciar a importância da imersão do repórter na realidade sobre a qual pretende contar, do uso de diálogos e voz autoral, além de outros elementos presentes nas coberturas de estilo literário. Mostraremos quais são os caminhos percorridos pelo repórter em busca da melhor compreensão da vida real. 4.2. Abusado: o dono do morro Dona Marta O último livro lançado por Caco Barcellos apresenta algumas semelhanças com o Rota 66. Porém traz uma narrativa melhor elaborada e uma participação mais intensa daqueles de 105 quem ele decide contar a história. No entanto, Barcellos mantém “seu lado”. Decide subir o morro Dona Marta, no Rio de janeiro, para contar a história das pessoas que moram ali e, sobretudo, de uma quadrilha liderada pelo traficante Marcinho VP (que na obra é cunhado como Juliano VP), um dos líderes do Comando Vermelho (facção criminosa do Rio de Janeiro que compete com o Terceiro Comando na briga por mais pontos de vendas de drogas). O jornalista consegue conquistar a confiança do dono do morro, Marcinho VP, e passa a investigar e observar a vida de seus moradores. Barcellos diz não acreditar que os leitores não gostam de ler ou que não dispõe de duas ou três horas para dedicar à leitura. Fala ainda sobre a carência de reportagens nas publicações jornalísticas em geral: [...] a vendagem dos livros de reportagem ou de não ficção provam que o leitor gosta muito de reportagem, gosta muito de ter conhecimentos mais aprofundados sobre os acontecimentos. Se não fosse assim os livros seriam um fracasso. E as editoras estão sempre procurando escritores de não ficção, jornalistas. E acredito que isso acontece porque os jornais e as revistas abandonaram a reportagem de maior fôlego, deixando uma lacuna grande nas bancas e as editoras estão se aproveitando disso. Na televisão, por exemplo, os programas de reportagens são muito bem sucedidos do ponto de vista da audiência, o que prova que as pessoas estão carentes desse tipo de trabalho jornalístico. Se você observar a programação da TV é recheada de programas jornalísticos baseados em entrevistas, opinião, bate papo, e pouquíssimos programas de reportagem. (entrevista ao autor) O livro Abusado segue trazendo características que vão ao encontro da proposta do jornalismo literário. Em mais um exemplo de voz autoral e também com objetivo de mostrar para o leitor como foi parte de seu trabalho, Caco Barcelos conta na terceira parte do livro (Adeus às armas) como foi um dos encontros com o traficante dono do morro. No ponto final, eu e o missionário Kevin já éramos aguardados por uma jovem, de uns 15 anos de idade, que nos levou até o alto do morro e nos deixou à sombra de uma árvore. Juliano chegou minutos depois. Parecia ter pressa de voltar para o lugar de onde viera. Fomos objetivos. - Tenho uma proposta. Quero que você escreva um livro sobre a história da minha vida. O missionário Kevin e outras pessoas já haviam me falado desse projeto de Juliano. Já refletira um pouco sobre a idéia e resolvi recusá-la por princípios. Interpretei que o desejo dele era de um livro que fizesse a sua defesa pessoal ou 106 algo que legitimasse a sua trajetória no crime, como se fosse derivada apenas do processo de exclusão social que sofrera. O outro motivo para recusar a proposta era mais sério, e de imediato falei para Juliano: - O problema de um livro desse é a conseqüência da notoriedade. - Não entendi. - Como você prefere ser chamado? De traficante, de criminoso... - Bandido. Bandido! - Lembra do Lúcio Flávio, do Meio-Quilo, do Bolado, do Brasileirinho? - Lembro. Lembro. - E o que acontece com os bandidos no Brasil quando ficam mais conhecidos? Alguns são presos e tudo bem. Mas muitos são mortos. Não quero ser instrumento da morte de ninguém. Juliano reagiu indignado com a minha franqueza. - Que isso, cara? Tira essa palavra da sua boca, isso nunca vai acontecê comigo disse ele enquanto fazia três vezes o sinal-da-cruz com a mão. (BARCELLOS, 2003, p. 451-452) Na continuação do diálogo Juliano mostra sua preocupação com a vida do filho. De maneira até contraditória diz não querer que o filho siga os seus passos. Nesse próximo trecho é importante notar que Caco Barcellos opta por usar travessão nos diálogos, além de manter a fala literal dos personagens de sua história. Isso nos mostra a intenção em dar espaço amplo para aqueles a quem a imprensa convencional geralmente nega. - Minha contraproposta é um livro sobre a tua quadrilha inteira, acho que a sociedade precisa conhecer melhor a vida de vocês. - Isso dá mais que um livro. Dá vários! - Topo fazer um! - Mas por que não sobre a minha vida? Tenho muita história, cara. Quero que um dia meu filho ponha na idéia que esse bagulho do tráfico é foda. - Que idade ele tem? - Doze, tá na idade foda! - Você tem medo que ele siga o exemplo do pai? - Muito, muito. Isso não pode acontecê de jeito nenhum. - Por que você não escreve? - disse eu. - Sô muito ocupado, cara. É muito bagulho pra tomá conta. - Mas agora você é um foragido, aproveita o tempo... - Não tem clima. Começamos fazendo o teu, depois eu dô um jeito de fazê o meu. (2003, p. 452) Em Abusado, Barcellos rompe barreiras e conceitos pré-estabelecidos e convencionados. Não limita sua pesquisa à busca por dados documentais ou à recorrência às fontes autorizadas. O 107 livro rompe padrões de compreensão, busca o novo, o diferencial, prima por detalhes que ajudem o leitor a ampliar sua visão de mundo. Portanto, diferente de muitos veículos da imprensa convencional não reduz o real com uma visão estereotipada e sensacionalista. Amplia sua observação para evitar vícios como a simplificação da imagem “mocinho e bandido”, estabelecida muitas vezes pela imprensa convencional e onde os policiais ficam com o papel de mocinho. Em entrevista à revista Trip, em 5 de fevereiro de 2009, Caco Barcellos falou sobre a cobertura exagerada que alguns veículos de comunicação fazem e os cuidados para não cair nessa armadilha: Ver o noticiário vespertino dá a impressão de que tem um tiroteio em cada esquina. Alguns veículos sim. Mas em relação aos últimos 20 anos, hoje o assunto é tratado com nobreza. Repórteres de talento, com contexto, estatística adequada. Uma palavra fora de moda, mas atualíssima e necessária, é contexto. Se você põe as coisas dentro de um contexto, você não corre esse risco de falar de maneira exagerada de uma coisa que não tem relevância pública. [...] procuro buscar mais o contexto, as nuances. Tudo sempre é muito complexo quando envolve gente. O pai alcoólatra geralmente é um cara generoso. Bebe e perde o equilíbrio (NOGUEIRA, 2009). Essa fala de Barcellos evidencia outra característica importante de seus trabalhos: a busca pela compreensão. Morin (2000, p. 100), diz que “a compreensão não desculpa nem acusa: pede que se evite a condenação peremptória, irremediável, como se nós mesmo nunca tivéssemos conhecido a fraqueza nem cometido erros. Se soubermos compreender antes de condenar, estaremos no caminho das relações humanas”. A compreensão é um dos propósitos do jornalismo literário, pois tem caráter duradouro, educativo, além de poder proporcionar uma consulta prolongada. Portanto, a efemeridade inerente ao jornalismo convencional não atinge esse estilo de cobertura. Sobre esse assunto, Edvaldo Pereira Lima (2009, p.366), mostra-nos alguns pontos divergentes entre a cobertura convencional e de estilo literário e lembra que: Compreender é diferente de explicar. A explicação adota geralmente uma visão unilateral, verticalizada, de cima para baixo, reducionista. Mostra o mundo sob uma óptica única ou de pouca abertura. Já a compreensão busca exibir o mundo sob perspectivas diversificadas. Mais do que isso, ilumina as conexões entre conteúdos aparentemente desconectados. Interliga dados, mostra sentidos, perspectivas. Faz, nos bons casos de jornalismo literário, com que o leitor 108 perceba o que tem a ver, com sua própria vida, tudo aquilo que está lendo. Idealmente o jornalista literário não julga ou opina panfletariamente sobre um assunto. Busca evitar preconceitos, assim como leituras rígidas da realidade. Tenta ultrapassar os estereótipos, levando a compreensão de uma situação por inteiro, iluminado-a sob diferentes ópticas. A narrativa de Barcellos nos traz uma visão multiangular dos conflitos humanos. Em Abusado, o jornalista passa anos visitando o morro carioca para nos dar uma idéia da vida dos moradores desse local. E o faz com propriedade. Contextualiza, observa e busca detalhes. Depois volta e nos conta a partir de uma narrativa que parece conto. O Águia fez o trajeto dos helicópteros que partem da lagoa Rodrigo de Freitas para mostrar aos turistas, por mil dólares a hora, os lugares de beleza exuberante do Rio de Janeiro. Passou primeiramente pela praia de Ipanema voando baixo, chamando a atenção da multidão à beira-mar. Subiu para 300 metros e contornou à direita no Leblon, onde o piloto costumava flagrar mulheres semi nuas tomando banho de sol nas coberturas dos prédios. Aos poucos foi subindo em direção ao Cristo Redentor. [...] Ninguém viu seus inimigos chegarem silenciosos pelo céu. Só perceberam quando os primeiros tiros disparados do ar atingiram o chão do Tortinho. - Dum! Dum! Dum!Dum! Dum! Um dos tiros acertou a cabeça de Binha, que caiu de bruços com o rosto sobre a marmita de comida. Teve morte instantânea. O Águia tinha se aproximado do morro por trás da montanha. Bem perto da Pedra do Xangô, o piloto desacelerou o motor para diminuir ao máximo o ruído. Só depois de contornar a grande pedra voltou a acelerar. Os atiradores estavam nas portas laterais abertas. Sentados sobre chapas de aço blindadas, com as pernas para fora, portavam fuzis de longo alcance. Os alvos dos primeiros disparos foram os meninos que corriam para todos os lados do Tortinho. Todos correram em direção ao beco que levava à área dos barracos, menos Nein, o primeiro a ser ferido. (BARCELLOS, 2003, p. 543-544) Nesse trecho aparece mais uma característica do texto de Abusado: o uso de onomatopéias. A narrativa segue em ritmo de romance, com histórias de vários moradores do local como os “chuveirinhos” (responsáveis por consertar os encanamentos perfurados pelas balas nas trocas de tiros) e os aviões (responsáveis por levar e trazer avisos ou carregamentos de drogas). Barcellos (2003, p. 458) conta que além das entrevistas com os personagens da favela Dona Marta fez pesquisas em documentos como notícias de jornais e boletins da Polícia para 109 confrontar as informações que recebia de moradores e traficantes do morro. Pois, segundo ele, muitas histórias poderiam ter sido inventadas ou exageradas. Como marca de boa parte de seus trabalhos, Caco Barcellos faz uso do fluxo de consciência para poder dar mais vida e dinamismo à narrativa. A partir da investigação minuciosa, pôde mostrar detalhes relevantes e garantir a “boa amarração” do texto. Era a cela mais quente do presídio, daí o apelido Havaí. Um retângulo de oito metros quadrados, com dois de largura e quatro de comprimento, onde estavam amontoados 28 detentos, 29 com Juliano. A única ventilação vinha de uma abertura estreita e gradeada no alto da parede do fundo. Antes do carcereiro abrir a porta feita de barras de ferro paralelas, ele sentiu o cheiro de suor e urina que vinha lá de dentro. Mesmo assim se animou: qualquer coisa agora era melhor do que ser o alvo das barbáries dos carrascos. Já sabia que a chegada ao xadrez era sempre um momento tenso, imprevisível, cheio de ameaças subliminares, mas Juliano estava confiante na receptividade. Sempre ouviu dizer que quem era odiado pela polícia tinha respeito redobrado na cadeia. Por isso acreditava que as marcas de tortura por todo o corpo seriam a melhor credencial, dispensariam outra forma de apresentação. Nos códigos dos prisioneiros, garantiriam solidariedade imediata. A porta formada por barras paralelas de ferro foi aberta pelo carcereiro e Juliano avançou três passos à frente, dois à direita e parou. Era estratégico se acomodar na “praia”, a área mais próxima da saída e a das mais indesejadas. A pior de todas era a do banheiro, o “boi”, usado em caso de extrema lotação do xadrez. Resolveu esperar o final do dia para ver como o pessoal se organizava na distribuição do espaço exíguo. Eram 29 homens num lugar planejado para acomodar no máximo oito. Lá no fundo alguns descansavam deitados lado a lado na forma de valete em posições invertidas, a cabeça de um próxima aos pés do que estava deitado ao lado.(BARCELLOS, 2003, p.153-154) Depois de apresentar os detalhes sobre aquela cela apertada, mostrando medidas e objetos que ali estavam, Barcellos revela também os diálogos que aconteceram após a chegada de Juliano à cela. Os diálogos têm o objetivo de situar o leitor naquele ambiente que está sendo narrado, mostrar como são os comportamentos daqueles personagens. Com isso cria-se uma proximidade com ele (leitor), levando-o a continuar lendo a matéria. - Gostei disso aí que você tá usando - disse um homem de bermudas, baixo, musculoso, que estava em pé ao lado de Juliano, e tão próximo que nem dava para ver o rosto dele. Juliano olhou para a tampa de alumínio acreditando que a sua colher improvisada estivesse despertando curiosidade. Não estava. O segundo comentário soou como uma ordem. 110 - Gostei desse teu cordão. Vô curti esse bagulho no meu pescoço - disse o suposto chefe do xadrez. - Bacana mesmo! - respondeu Juliano sem levantar a cabeça, demonstrando maior interesse na comida que ainda não havia provado. - Qual é, você ainda não entendeu? Passa logo esse cordão, cara - gritou o estranho, já irritado. Juliano pôs o prato de comida no chão e tão logo se levantou ficou cara a cara com o estranho, que já imaginava ser o chefão do xadrez ou alguém sob as ordens dele. Os outros presos se afastaram para assistir à briga que parecia inevitável. - Seguinte, cara. Você não acha melhor a gente queimar um baseado e mudar de assunto? - sugeriu Juliano. - Olha só, isso aí é a marca de paz e amor, não é? Tu é chegado, malandro? Poe no meu pescoço, põe. - Posso tirar do meu pescoço, não, cara. Eu fiz uma promessa, tá entendendo? disse Juliano, ainda procurando convencê-lo a mudar de idéia. - Que promessa, caralho? - Uma mina, uma gata. Ela fez eu jurar que só daria esse cordão pra quem chupar meu pau melhor do que ela chupou. Vai encarar? A ousadia de Juliano surpreendeu o provocador, que se calou, e provocou gargalhadas gerais, inclusive do chefão. Ele afastou os dois que se posicionavam para a troca de socos e se apresentou ao novato. - Gostei de ver, na moral! Eu sou o responsa, Bira do 37. - Juliano, com todo o respeito (BARCELLOS, 2003, p. 154-155). Para Edvaldo Pereira Lima (2009, p.107), a entrevista em livro desponta como “uma expressão em si, dotada de individualidade, força, tensão, drama, esclarecimento, emoção, razão, beleza”. E a partir daí nasce a possibilidade do diálogo possível, a aproximação entre entrevistado e entrevistador defendido por Cremilda Medina (1986) e, que só é possível no livro, pois não existe uma pauta fechada para inibir a criatividade do jornalista. Por outro lado, Caco Barcellos, em entrevista ao Observatório da Imprensa, lembra que é necessário ter cautela na cobertura de histórias como a de Abusado: A apuração de crimes, se feita de forma superficial é muito simples, sobretudo no morro onde o pessoal geralmente fala muito, inclusive de coisas que não fizeram. Falam para impressionar. Reproduzir esses relatos, sem o confronto das informações e investigação mais apurada, seria irresponsabilidade. Prefiro ser chamado de cauteloso a ser acusado de praticar sensacionalismo, com a justificativa de ter conquistado algum depoimento gravado como se fosse uma verdade absoluta. Sem dúvida foi a apuração mais difícil de meus quase 30 anos de experiência. Peneirar o volume impressionante de informações contraditórias deu tanto trabalho quanto o de convencê-los a me confiar as suas histórias. (Observatório da Imprensa, 2003) 111 O livro que hoje é leitura obrigatória para quem quer fazer o vestibular em algumas faculdades como a Cásper Líbero, por exemplo, rendeu a Caco Barcellos mais um prêmio Jabuti. E mostra a violência sobre uma ótica até então desconhecida: a dos traficantes e moradores de uma favela. Barcellos expõe sem espetacularizar, como faz boa parte da imprensa convencional brasileira. Seus relatos fogem do sensacionalismo e deixa que os julgamentos sejam feitos por quem deve ou deveria fazê-lo sempre: os leitores. Barcellos conta que a cobertura de estilo literário e a reportagem seriam importantes para melhorar as produções jornalísticas brasileiras. Perguntado sobre a influência da superficialidade da cobertura nas discussões sobre o fim do jornal impresso, Barcellos respondeu: Os jornais impressos estão mal, porque eles estão querendo competir com a Internet, com a televisão. Eles estão querendo chegar primeiro nos acontecimentos e eles são veiculados com 24 horas de atraso. Portanto, é impossível chegar antes. Eles deviam esquecer disso, dessa coisa superficial, ligeira, rápida, sintética e passar a explicar a história, dar uma visão mais ampla para o seu leitor. Ao invés de contar primeiro, eles deveriam preferir contar melhor. É a única saída (Entrevista ao autor). Caco diz ainda que a reportagem é o produto mais caro do jornalismo e, por isso, não recebe tanta atenção das empresas de comunicação. E, além disso, o profissional também precisa ser um apaixonado por coberturas de maior fôlego, já que construir uma reportagem não é tarefa das mais fáceis. A reportagem “custa caro e dá trabalho, e tem gente que prefere o mais fácil. Eu, por exemplo, fico embaixo de uma ponte noite e dia esperando o trem passar, pois naquele momento pode acontecer alguma coisa. Se não passar tudo bem, estou feliz porque tive ali uma experiência curiosa. Tem gente que acha isso um absurdo” (entrevista ao autor). 4.3. Profissão Repórter: histórico e elementos narrativos No programa Profissão Repórter Caco Barcellos estende a característica de seus trabalhos com os livros para a TV. O objetivo do programa também é contar histórias sob a ótica de pessoas comuns. O projeto vem garantindo a vida de narrativas de qualidade na televisão 112 brasileira e começou a ser exibido no ano de 2006, em um quadro dentro do Fantástico (programa em formato de revista eletrônica, da Rede Globo). Em entrevista para o site de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, em janeiro de 2007, Barcellos falou, entre outros assuntos, sobre como surgiu a idéia do programa. Caco: Há dez anos tenho o projeto de fazer reportagem com vários olhares simultâneos, e ao mesmo tempo revelar os bastidores do trabalho, os erros e os acertos, as dúvidas, as questões éticas. O jovem ali é um detalhe, não secundário, mas um detalhe. Não é um projeto focado em novos talentos, e sim na reportagem. Não há nada de novo no projeto. Trata-se de uma coisa muito antiga: o valor da reportagem, que está esquecida nas grandes redações (diponível em: www.facasper.com.br). Barcellos revela assim traços importantes para definirmos o narrador do programa. Diz que o objetivo de seu projeto é mostrar olhares multifacetados sobre o fato narrado além de alguns lances dos bastidores. E, para tanto, traz o jovem como seu interlocutor, como alguém que irá servir como mediador entre a sua vontade como narrador e o fato em si. A partir de junho de 2008 o programa passou a ter seu próprio espaço. E agradou. A média de ibope do programa é de 21 pontos (segundo assessoria da Rede Globo), o que se torna bastante significativo considerando-se o horário em que é exibido - terças-feiras, 23h30. O programa não trata de assuntos totalmente desconhecidos pela mídia e pelo público. O diferencial é o tratamento dado aos fatos. Além de oferecer ao telespectador diferentes ângulos da mesma notícia, as matérias do Profissão Repórter revelam o fator humano da cobertura. 113 O contrato do programa com a emissora foi prorrogado e o Profissão Repórter continua em 2010. As principais características do jornalismo literário, como imersão, humanização, digressão, uso intenso de diálogos, voz autoral e observação, estão presentes na maioria das narrativas do programa. Outras duas características da cobertura literária, incorporados no programa, são a imersão e a voz autoral. Os repórteres inserem-se no contexto da história a ser narrada, participam de alguma maneira no cotidiano dos personagens desta, ficam com eles em momentos bons e também nos difíceis. Tudo no intento de compreender melhor os conflitos humanos e ampliar a visão dos telespectadores. E, importante, sem pieguice. Os temas são variados. As vezes polêmicos como “A indústria do sexo”; as vezes dramáticos como “À espera de um coração”; outras vezes comuns, mas não menos importantes, como “As enchentes de Santa Catarina”. E a intenção é desvendar quem são nossos semelhantes em suas complexidades individuais, sejam vitórias ou derrotas, alegrias e tristezas. Sobre mostrar diferentes ângulos, no programa exibido em dezembro de 2008, sobre as enchentes em Santa Catarina, por exemplo, os profissionais se dividiram em dois grupos: um comandado por Barcellos e seu cinegrafista e outro com uma repórter e dois repórteres cinematográficos. Caco Barcellos se juntou aos militares do exército brasileiro e foi acompanhar o trabalho de buscas. A outra equipe acompanhou um personagem até a sua casa para mostrar os danos causados pela chuva. Mostrou imagens com detalhes da destruição da cidade de Itajaí e como as pessoas estavam lidando com o acontecimento. 114 Em entrevista ao blog do jornalista Gabriel Hamilko, em outubro de 2009, Caco Barcellos fala do diferencial do programa, além de enfatizar a imersão dos repórteres nas coberturas: É essencial que eles se envolvam nas histórias e mergulhem em cada edição do programa, pois se é para apenas fazer entrevista, rapidinhas com as pessoas, já temos isso no jornalismo. Nós temos que fazer algo que é diferente do que já está no ar, então optamos pela profundidade. Têm histórias que acompanhamos por sete meses, um exemplo é o programa sobre os assassinatos na favela de Nilópolis, onde uma jovem morreu por uma bala perdida, e os moradores revoltados incendiaram um ônibus, fechando o acesso da comunidade (Hamilko, 2009). No exemplo da cobertura das enchentes de Santa Catarina, como lembramos anteriormente, o assunto da cobertura não foi diferente do noticiado por outros programas ou veículos de comunicação. A diferença se deve ao fato de que nas publicações convencionais o foco das matérias estava voltado para o número de mortos, casas destruídas, quantidade de pessoas desabrigadas, enfim, fez-se uma cobertura com caráter de espetacularização da notícia. O Profissão Repórter procurou pessoas, famílias, crianças e “deu voz” a essas pessoas, mostrou seus sentimentos, anseios, crenças. O diferencial é a humanização, o espaço e a atenção que os personagens daquela história receberam. O trabalho dos repórteres em certos momentos parece até secundário. Para Dulcília Buitoni esse fator é muito importante para as narrativas jornalísticas, pois: As falas das pessoas não podem ficar subordinadas somente ao ritmo do tempo industrial. A indústria do tempo, o tempo da indústria: onde a narração que significa, onde a narração fica? As histórias e as vidas de homens, mulheres e crianças precisam de narrações não determinadas pelo tempo. No jornalismo, o tempo determina a narração. Já as ficções jogam com o tempo, mas as histórias e as vidas não precisam apenas de ficção. Precisam também de relatos verídicos que tenham a marca do tempo, embora não sejam por ele estritamente determinados (BUITONI apud LIMA, 2009, p.136). Sobre humanização, Barcellos falou ao jornalista Hamilko (2009) que “quando você trabalha com o lado humano dos personagens, aumenta sua chance de envolver o telespectador na 115 história que você quer contar. Quando você escolhe tal personagem, ela é representativa no universo que você pretende trabalhar”. O fato de o programa mostrar também os bastidores da notícia revela não só erros e falhas dos repórteres, mas também suas decisões e emoções, evidenciando o fator de imersão do jornalista na história narrada. Barcellos: Os bastidores das reportagens que mostramos no programa variam de acordo com a barreira que encontramos no caminho. Se forem barreiras mais cinematográficas, iremos mostrar. Mas tem que ser um bastidor com um conteúdo importante e que leve o público a participar com a gente das escolhas que fazemos durante aquele processo. Queremos expor mais isso no programa, mais do que um errinho engraçado. Isto é até secundário. (disponível em: www.oglobo.globo.com) Caco seleciona cenas dos bastidores que não só mexam com o público, trazendo-o para a história, mas que o ajudem (enquanto narrador) a contar da forma que considera ideal. Em suma o narrador é quem seleciona o que parece contribuir para a história que ele quer contar, porém cria a sensação de incluir o receptor no processo de escolha de alguns elementos que irão compor sua narrativa. Essa identificação é o cerne do processo comunicativo deste programa, e é o que traz o seu telespectador para dentro da história. Diferente da cobertura convencional, o estilo literário preza pela humanização. Não se preocupa em informar primeiro, dar o “furo” da notícia. O mais importante é informar melhor, oferecer ao leitor ou telespectador um maior aprofundamento sobre o tema, possibilitando que sua visão também seja ampla. O programa ilustrado ao lado foi exibido em 2009 e contou histórias de pessoas que vivem em lugares distantes dos centros urbanos. Na cena, Caco Barcellos conversa com moradores da Serra do Cafundó –CE. 116 A humanização das narrativas no Profissão Repórter representa outro fator importante para a criação de uma identificação por parte dos receptores com o fato narrado. O resgate da boa reportagem proposto por Caco Barcellos e sua equipe de oito jovens jornalistas é importante para a vida das boas histórias. 4.4. O narrador no Profissão Repórter O narrador é considerado como o agente responsável por contar a história. Lúcia de Miranda Moreira lembra que “o exercício narrativo do contar a história, organizando-a, selecionando/editando, enfim, é um papel compartilhado por diversos operadores de linguagem” (MOREIRA, 2005, p. 31). Portanto temos de nos atentar, por exemplo, com o olhar do câmera e dos editores. Moreira conta que nas narrativas audiovisuais a imagem é um elemento peculiar e exige um narrador específico e com funções idênticas às do narrador literário. Para a pesquisadora essa especificidade do narrador que mostra se deve ao fato de o estilo do diretor estar presente nas ações deste profissional. No programa Profissão Repórter o perfil de Caco Barcellos transparece no conteúdo das matérias. A investigação, imersão e humanização são características de boa parte dos trabalhos de Barcellos, como no exemplo de seu último livro, Abusado. No programa, o câmera, que chamaremos de narrador/mostrador, também é um jovem jornalista. E mais: a câmera ora está com um integrante da equipe ora com outro, possibilitando-nos ver o mesmo fato por diferentes pontos de vista. Considerado por autores renomados como Vitor Manoel de Aguiar e Silva como um elemento de suma importância na elaboração do discurso narrativo, o ponto de vista no Profissão Repórter é um fator que recebe atenção especial do autor do programa. Devido a esse fato de os repórteres se revezarem com a câmera e os microfones, cria-se um entrosamento e a convicção para o receptor e para os próprios profissionais de que eles são um só, ou estão no mesmo nível. Na reportagem sobre as enchentes em Santa Catarina, a repórter Taís Itaqui conversa com o câmera, Michael Fox, e pede: “olha aquele homem, filma ali, Michael”; e em outro caso: “olha aquele cavalo, nem consegue andar direito!”. O uso de duas câmeras cria ainda uma semelhança 117 com as gravações de documentários, onde um câmera filma outro em determinados momentos, a fim de mostrar também os bastidores da gravação que, no Profissão Repórter é um dos objetivos. A equipe segue sempre com dois repórteres cinematográficos. A idéia é ter uma visão ampla do cenário onde a história se passa, para que o telespectador possa ter em mãos elementos suficientes para a compreensão do fato. A utilização desse recurso permite, ainda, mostrar os bastidores do trabalho. O trabalho em conjunto contribui, ainda, na busca pela contextualização. A observação intensa, inerente à cobertura de estilo literário, passa a ser dupla e, tem como resultado uma visão ainda mais ampla daquela realidade. Barcellos conta ao jornalista Hamilko (2009) sobre a importância da contextualização no programa: De extrema importância, pois é a chave do bom jornalismo. Você pode enganar o telespectador só falando verdades se você não contextualizar. Se acontecer um crime e você não diz que ele é resultado de um processo de 40 anos de atividade, você está ocultando algo, explorando somente os aspectos negativos dessa fatalidade. Às vezes, na comunidade ao lado, o mesmo crime aconteceu 50 vezes, só que divulgar vai contra os interesses de um determinado prefeito, deputado ou outro político, deixando de informar. Isso é falta de contextualização, tornando o noticiário sensacionalista. Esse é o contexto da informação que o programa tenta passar. 118 Voz autoral. Nas narrativas do programa os repórteres dividem com o telespectador suas emoções, sensações com determinados acontecimentos ou histórias. Ao lado a jovem repórter se emociona ao reencontrar a mãe de um menino que foi salvo por homens do corpo de bombeiros em praia do Rio de Janeiro. Na ocasião do afogamento a repórter pôde acompanhar o drama do resgate e, meses depois, voltou a reencontrar a família do menino salvo. A cobertura de estilo literário permite o uso da voz autoral por entender que o leitor também espera encontra ali as impressões do repórter. Os repórteres participam também de outros dois processos característicos de um narrador audiovisual e, especificamente, o narrador de reportagens: a discussão de pauta e a edição das matérias. Notamos ainda que o repórter pode ser caracterizado como narrador onisciente, pois conta a história em terceira pessoa e, às vezes, se permite certas intromissões narrando em primeira pessoa. Na matéria sobre Santa Catarina, Taís Itaqui diz: “Essa é a coisa mais impressionante que já vi na minha vida”. O envolvimento afetivo dos repórteres não é escondido, portanto, no programa. Esse fato contribui para a intenção do narrador em evidenciar a cobertura humanizada do fato e revela a voz autoral e a imersão dos jornalistas. O tipo de narrador presente no Profissão Repórter se assemelha ao que Walter Benjamim (1985) classifica como clássico, pois dá ao ouvinte a oportunidade de um intercâmbio de experiências. Para Benjamim (1985, p. 200), a narrativa não deve estar “interessada em transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada como uma informação ou um relatório”. A narrativa é narrativa “porque ela mergulha a coisa na vida do narrador para depois 119 retirá-la dele”. Diz ainda que narrativa deve conter um ensinamento moral ou prático ou, ainda, uma norma de vida. Digressão. Como um flash back, muito comum em filmes, esse recurso é o momento onde o autor “interrompe” a narrativa para trazer uma informação paralela ao assunto. Como vimos anteriormente, essa ferramenta contribui para a compreensão do leitor/telespectador, que tem a possibilidade de conhecer detalhes importantes para o entendimento do contexto em que a história está inserida. Na imagem ao lado uma edição do Jornal Nacional traz informações adicionais para a reportagem sobre ruídos, exibida em 2009. Todo o trabalho com características tão peculiares dos jornalistas do Profissão Repórter derivam do perfil de Caco Barcellos e, portanto, o classificamos como o autor/narrador do programa que, baseado nas constatações de Moreira (2005) “significa aquele que ‘faz progredir’, que ‘faz produzir e crescer’, ‘aquele que está na origem de algo”. Em alguns lances durante o programa esse fato é evidenciado. Quando, por exemplo, Barcellos assiste com os jovens repórteres suas matérias, aponta falhas, acertos, possíveis soluções para que, desta forma, os repórteres voltem às ruas e terminem efetivamente a reportagem. Caco Barcellos faz as narrativas progredirem com suas “dicas”, ordena os fatos da maneira que considera ideal para narrar a história, e ainda sai às ruas para fazer sua parte como repórter. O programa começa com uma escalada apresentando os diferentes ângulos da cobertura do dia. Essa “chamada” inicial deixa clara a condução de Barcellos que, na passagem da abertura, 120 aproveita para lembrar o propósito do programa com seu slogan: “os bastidores da notícia, os desafios da reportagem”. Barcellos analisa o trabalho dos repórteres, opina e comanda o processo de construção da reportagem. Na imagem ao lado o repórter tira dúvidas para o fechamento de sua matéria. Barcellos indica o melhor caminho e a narrativa vai se construindo a partir das dicas do experiente jornalista. A análise do narrador no programa Profissão Repórter nos parece oferecer grande contribuição para nosso estudo. A intenção foi evidenciar a estrutura narrativa das matérias e enfatizar o processo de produção das reportagens no programa. O estilo de cobertura das reportagens vai ao encontro da proposta do JL, prezando pela observação intensa, a humanização dos relatos, a imersão; por isso a idéia de trazer também essa análise para nosso estudo. 121 Considerações finais 122 Chegando ao fim dessa etapa nos fica a impressão de ter dado um importante passo rumo a uma contribuição na luta pelo bom jornalismo. Queremos lembrar que não foi de nosso interesse execrar as publicações jornalísticas convencionais, como em certos momentos do estudo possa parecer. Entendemos que as publicações ancoradas pela fórmula piramidal ainda sejam necessárias para o jornalismo, haja vista a velocidade com que as informações nos chegam atualmente. Entretanto, é importante lembrar que o jornalismo figura como uma das pontas de um iceberg chamado Industria Cultural. Entretanto, acreditamos na proposta do Jornalismo Literário, onde as produções humanizadas e detalhadas figuram como eixo condutor de narrativas que resgatam a importância da reportagem, das produções de fôlego. E nos parecem agradar também aos leitores. Baseados nessa ideia tentamos mostrar nesse estudo um pouco das principais características desse estilo, seu contexto e seus melhores momentos e, ainda, mostrar os resultados dessas produções. Enxergamos nas histórias de pessoas comuns um bom aliado sobretudo para as produções impressas do jornalismo que, hoje, atravessam uma forte crise provocada pela concorrência desigual de veículos como a TV e a Internet. E tentamos mostrar algumas produções norte americanas e brasileiras que utilizaram o estilo literário em suas produções e tiveram bons resultados, como forma de comprovar nossa hipótese de que o jornalismo carece de boas histórias. Tentamos trazer para nossa pesquisa alguns exemplos que ocorreram em diferentes momentos da história. Começando em 1960, com o New Journalism, se estendendo até o fim dessa década com a revista Realidade e, chegando aos dias mais atuais, com a coluna “a vida que ninguém vê”, de Eliane Brum, a revista Piauí e Brasileiros e, ainda, com o programa Profissão Repórter, na TV. Essa foi uma tentativa de evidenciar que o jornalismo literário não foi um evento apenas de uma época, mas sim um aliado que sempre trouxe bons resultados para as empresas de comunicação através da valorização do ser humano e das boas histórias em todos os momentos em que figurou como parte das produções jornalísticas. No intento de evidenciar e exemplificar todo o arcabouço teórico que utilizamos durante os primeiros capítulos desse estudo para falar sobre os principais pilares do jornalismo literário, fazemos uma análise de conteúdo de dois livros de Caco Barcellos (Rota 66 e Abusado). 123 Mostramos as características das narrativas do jornalista que também comanda o programa Profissão Repórter e emprega ali todo seu perfil de contador de histórias. A entrevista com o jornalista, possível após muito esforço, contribui para reafirmar o que propomos durante o estudo. Acreditamos que nosso estudo tenha buscado trazer algumas contribuições para o jornalismo de maneira geral. Pensar em maneiras para melhorar as produções jornalísticas é sempre importante. O debate sobre maneiras de contribuir para a sociedade e agradar aos leitores é essencial, seja no campo acadêmico ou profissional. E foi esse nosso intuito. REFERÊNCIAS 124 ANTÔNIO, João. “É uma revolução”. Ano III, ed. 32 (1968). 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VILAS BOAS, Sergio (org.). Jornalistas literários: narrativas da vida real por novos autores brasileiros. São Paulo: Summus, 2007. WOLFE, Tom. Radical Chique e o Novo Jornalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. _________. The New Journalism. Nova York, Harper & Row, 1973. Sites consultados: Observatório da Imprensa. Entrevista com Caco Barcellos, 2003. disponível em: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/al170620031.htm acesso em: 10/9/2008. Blog Gabriel Hamilko. Entrevista com Caco Barcellos, 2009. Disponível em: http://bloghamilko.blogspot.com/2009/10/os-bastidores-da-noticia-uma-entrevista.html acesso em 02/04/2010. 129 Anexos Entrevista feita com o Caco Barcellos, em 29 de abril de 2010. Clodonei Colombo: O senhor sempre defendeu e praticou um jornalismo de maior fôlego. Qual a importância da reportagem para o jornalismo? Caco Barcellos: Pela via da Reportagem você consegue explicar os acontecimentos, não simplesmente retratá-los. A reportagem é importante para que você possa levar para seu público um melhor entendimento sobre a realidade. A maior virtude da reportagem é que ela vai além do simples registro do fato. C.C: Muitos jornalistas dizem que atualmente os leitores querem muita informação em pouco tempo. Alguns dizem que o brasileiro não gosta de ler ou que não dispõe de 2 ou 3 horas para dedicar à leitura. Você concorda? Até que ponto a superficialidade da cobertura convencional desmotiva o leitor? C.B: Discordo disso, porque a vendagem dos livros de reportagem ou de não ficção provam que o leitor gosta muito de reportagem, gosta muito de ter conhecimentos mais aprofundados sobre os acontecimentos. Se não fosse assim os livros seriam um fracasso. E as editoras estão sempre procurando escritores de não ficção, jornalistas. E eu acho que isso acontece porque os jornais e as revistas abandonaram a reportagem de mais fôlego e isso deixou uma lacuna grande nas bancas e as editoras estão se aproveitando disso. Na televisão os programas de reportagens são muito bem sucedidos do ponto de vista da audiência, o que prova que as pessoas estão carentes desse tipo de trabalho jornalístico. Se você observar a programação da TV é recheada de programas jornalísticos baseados em entrevistas, opinião, bate papo, e pouquíssimos programas de reportagem. C.C: A revista Realidade é lembrada como exemplo de bom jornalismo. Trazia em suas matérias histórias de pessoas comuns. E fez sucesso com isso. Mas, levando em consideração a velocidade das informações, seria possível que um projeto como Realidade tivesse sucesso atualmente? C.B: Acho que sim. Ela teve várias fases. E a fase que considero a melhor é a de quando eles retratavam a vida de brasileiros anônimos e retratados de uma maneira contextualizada, não simplesmente contando a história pela história.Tinha um contexto ali que representava uma unidade nacional. E acho que caso seja feita dessa maneira, não histórias isoladas que digam a respeito ao universo de muita gente, que seja relacionada com aquilo que as pessoas estão 130 vivendo, se identificando com as suas histórias, acho que são atuais. Conheço algumas reportagens que foram feitas lá atrás e que são atualíssimas. C.C: Em minha dissertação faço uma análise de dois de seus livros (Rota 66 e O Abusado). Escolhi analisar seu trabalho por encontrar ali muitas características que vão ao encontro da proposta do jornalismo literário, como o uso de diálogos, a digressão, humanização, imersão, construção cena a cena, observação intensa, etc. Comente, por favor, sobre a importância do uso desses recursos nos textos jornalísticos. C.B: Você observou muito bem esses aspectos que destacou, pois eles são essenciais. Em síntese se o livro for de não ficção ou ficção, de reportagem ou não, o importante é que o texto seja elegante, agradável, que atraia o leitor para a história que você quer contar. Então essas técnicas são importantes para tornar a leitura agradável. Quando eu estou apurando uma reportagem eu estou pensando em como vou contar essa história. E os diálogos, por exemplo, são fundamentais. Então eu apuro para reconstituir os diálogos. Há quem confunda ou chame o jornalismo literário de fantasia. Absolutamente não! Embora exista algumas pessoas que façam. Eu não faço. Eu escrevo baseado na verdade que eu consigo apurar, pensando nessas técnicas todas pra tornar a história mais agradável. A qualidade do texto é fundamental pra você prender o leitor na sua história. C.C: O jornalismo impresso passa por momentos difíceis. O fim do jornal impresso chega a ser discutido. Isso se deve à superficialidade da cobertura? O senhor acredita que a reportagem possa ajudar a mudar esse cenário? C.B: Sim. Os jornais impressos estão mal, porque eles estão querendo competir com a Internet, com a televisão. Eles estão querendo chegar primeiro nos acontecimentos e eles são veiculados com 24 horas de atraso. Então é impossível chegar antes. Eles deviam esquecer disso, dessa coisa superficial, ligeira, rápida, sintética e passar a explicar a história, dar uma visão mais ampla para o seu leitor. Ao invés de contar primeiro, eles deveria preferir contar melhor. É a única saída. C.C: Nos seus dois livros podemos notar que o senhor gosta de trabalhar com um volume grande de informações, entrevistas. E sua narrativa é muito bem construída ou “amarrada”, como costumamos dizer. Como lidar com um volume grande de informações sem deixar que a história se perca, ou fique desinteressante em certos momentos? C.B: Esse é o sofrimento do processo: tornar o material todo em uma história atraente e não um relatório sem começo, meio e fim, ou repetitivo. Às vezes você tem até que eliminar histórias, porque se elas forem todas contadas você corre o risco de aborrecer o leitor, pois ninguém gosta de ler histórias repetitivas. E, dependendo da circunstância, é muito grave a repetição de histórias do ponto de vista da realidade. E do ponto de vista da narrativa isso também é ruim, pois você acaba não conseguindo contar a história da melhor maneira e aborrece o leitor. Então é um processo sofrível, de muitas tentativas e erros. E não tem como ser diferente. Eu escrevo no mínimo umas 200 vezes cada história até achar que ela está mais interessante, com expectativa de segurar o leitor comigo até o fim. 131 C.C: A maioria dos prêmios do jornalismo vão para reportagens, matérias de maior fôlego. O Profissão Repórter é exemplo disso. Por quê esse gênero não é melhor aproveitado ou mais usado pelos veículos de comunicação? C.B: Isso envolve, primeiro, custos. Pois o produto mais caro do jornalismo é a reportagem. Cada passo que você dá fora da redação você está gastando dinheiro. E é mais trabalhoso. É muito mais simples fazer uma entrevista de 15 minutos e ocupar aquele espaço grande na televisão. Usar uma série de entrevistas, que você pode fazer em uma tarde. E a reportagem é um outro universo, você vai ter que provar que aquelas entrevistas são verdadeiras. E às vezes esse processo demora muito. Então isso custa caro e dá trabalho, e tem gente que prefere o mais fácil. Eu, por exemplo, fico embaixo de uma ponte noite e dia esperando o trem passar, pois naquele momento pode acontecer alguma coisa. Se não passar tudo bem, estou feliz porque tive ali uma experiência curiosa. Tem gente que acha isso um absurdo. Então você tem que ser apaixonado pela reportagem pra tocar pra frente sem medir sacrifícios.