UNIVERSIDADE DE MARÍLIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO
Jornalismo Literário: Reflexões sobre uma abordagem alternativa ao fazer jornalístico.
MARÍLIA/SP
2010
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UNIVERSIDADE DE MARÍLIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO
Jornalismo Literário: Reflexões sobre uma abordagem alternativa ao fazer jornalístico.
CLODONEI COLOMBO FILHO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Comunicação da Unimar, na área de concentração em Mídia e Cultura,
como requisito para a obtenção do título de Mestre em Comunicação, sob
a orientação da Prof ª. Drª. Rosangela Marçolla.
MARÍLIA/SP
2010
3
Colombo Filho, Clodonei
Jornalismo Literário: Reflexões sobre uma abordagem alternativa
ao fazer jornalístico/ Clodonei Colombo Filho -- Marília: UNIMAR,
2010.
130f.
Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Curso de Comunicação
da Universidade de Marília, Marília, 2010.
1. Jornalismo Literário 2. Cobertura Convencional 3. Processo
Jornalístico I. Colombo Filho, Clodonei.
CDD -070.4
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Autor: Clodonei Colombo Filho
Título: Jornalismo Literário: Reflexões sobre uma abordagem alternativa ao fazer jornalístico.
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Comunicação da Universidade de Marília,
área de concentração Mídia e Cultura, sob a orientação da Profª Drª Rosângela Marçolla.
Aprovado pela Banca Examinadora em 10/ 06 /2010.
______________________________________________________
Profª Drª Rosângela Marçolla
Orientadora
_______________________________________________________
Prof. Dr. Roberto Reis de Oliveira
_______________________________________________________
Profª Dr. Deodoro Moreira
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A Deus.
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Agradecimentos
A Deus, por ter me dado uma vida maravilhosa.
À minha família, por acreditar em mim e me dar total apoio. Por me suportar nos muitos
momentos de nervoso e por rir comigo nos raros momentos de descontração. Por entenderem
(não sempre) que eu teria de ficar de fora dos almoços de domingo com os avós. E por não
deixarem de me apoiar mesmo quando eu mesmo não me suportava. Aos meus avós, que
chegaram a pensar que eu não gostava deles por faltar aos almoços de domingo. “Eu estava
fazendo esse trabalho, vó!”. A Viviane, minha companheira que, como meus pais, me suportou
nos muitos momentos de tensão.
Aos meus professores de graduação, que me deram a base para chegar até aqui. Aos
professores do mestrado, companheiros nessa caminhada difícil.
Professor Dr.Roberto Reis de Oliveira. O que dizer? Chato! Você é um chato, Roberto!
Mas também foi um dos melhores professores que já tive. Ético, honesto consigo e com seu
trabalho, competente. Aprendi muito contigo.
Professora Drª. Lucia Miranda. Fácil falar de ti, portuga! De uma simplicidade
assustadora, amiga, companheira, apaixonada. Sim, apaixonada. Por sua profissão, por aqueles
que estão a sua volta, pelos Maias (claro!), pela vida. Você me ensinou a encenar! Que absurdo!
O que você não fez de bom aqui?
A Drª Rosângela Marçolla, companheira desde a graduação. A mãe deste trabalho. Sem
ela talvez eu nem teria conhecido o tema de meu estudo. O jeitão serene, muitooo tranqüilo,
chega a preocupar. “No fim dá tudo certo. Se não der é porque não chegou no fim ainda” – ela
sempre diz. Meus textos sempre estão bons né, professora? Sempre que chegava apavorado na
faculdade com alguma questão do trabalho ela vinha com seu discurso mais do que otimista:
“Calma, Nei. Oh, to gostando do trabalho hein! Continua assim”. Muito obrigado pela dedicação
e confiança, professora.
À professora Andréia, que me ajudou muito com as aulas de didática. Um exemplo de
caráter e competência.
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Aos colegas de graduação e mestrado, que fizeram parte dessa caminhada de alguma
forma. A Luziá Ferreira, que gentilmente nos atendeu e possibilitou a entrevista com Caco
Barcellos. Este a quem, aliás, devemos nossos sinceros agradecimentos.
Enfim, a todos que confiaram em mim, me suportaram nos momentos (não raros) de
tensão. Muito obrigado a todos!
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“Almejas voar mas temes ficar tonto?”
(Goethe)
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Resumo
Este trabalho faz um histórico descritivo do jornalismo literário. Mostra as principais
características desse estilo de cobertura que teve seu ápice na década de 60, nos Estados Unidos.
Evidencia as características do estilo de cobertura convencional, praticado por boa parte dos
veículos de comunicação brasileiros. E, dessa forma, procura trazer reflexões concernentes ao
processo jornalístico no intento de buscar possíveis melhorias para o fazer jornalístico.
Realizamos ainda um estudo de caso das obras Rota 66 e O Abusado, de Caco Barcellos.
Essa análise tem como objetivo apontar as principais características das narrativas do jornalista,
além de nos ajudar a exemplificar parte do referencial teórico que utilizamos durante esse estudo.
As reportagens presentes nos livros e também no programa Profissão Repórter (também
comandado por Barcellos) nos mostra características que vão ao encontro da proposta do
jornalismo literário e, portanto, é de suma importância para esse estudo.
Palavras-chave: Jornalismo literário, cobertura convencional, processo jornalístico, Caco
Barcellos.
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Abstract
This study is a descriptive history of literary journalism. Shows the main characteristics of
this style of coverage that peaked in the 60s, the United States. Shows the characteristics of the
conventional style of coverage, practiced by much of the media in Brazil. And thus, seeks to
bring reflections concerning the journalistic process in an attempt to seek possible improvements
to do journalism.
We also performed a case study of the works Route 66 and the Abused, Caco Barcellos.
This analysis aims to point out the main features of the narratives of the journalist, and helps us to
illustrate part of the theoretical framework that we used during this study. The stories contained
in books and on the program Profession Reporter (also led by Barcellos) shows features that go
with the proposal of literary journalism, and thus is of paramount importance for this study.
Keywords: literary journalism, covering conventional, journalistic process, Caco
Barcellos.
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Sumário
Apresentação
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CAPÍTULO I: Alguns apontamentos sobre o processo jornalístico na imprensa
convencional
1. Propensão Humana em contar histórias
23
1.2. Lead e a fórmula piramidal
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1.3. Entrevistas
31
1.4. Cenário
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CAPÍTULO II: New Journalism e os pilares do Jornalismo Literário
2.1. Histórico e contexto
42
2.2. Descrição cena-a-cena e Diálogos
46
2.3. Simbolismo e Estilo próprio
49
2.4. Humanização
57
2.5. Imersão, exatidão de dados e fluxo de consciência
59
2.6. Pesquisa norte-americana
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CAPÍTULO III: Novo Jornalismo no Brasil - Impresso
3.1. Passagem dos grandes escribas pelas páginas jornalísticas brasileiras
70
12
3.2. Influência da corrente norte-americana nas produções verde-amarelas: Realidade e
Jornal da Tarde.
73
3.3. Revista Realidade na Guerra
80
3.4. Outros projetos
81
3.5. Livros
87
CAPÍTULO IV: Análise de conteúdo
4.1. Cláudio Barcelos de Barcelos: breve histórico e análise do livro Rota 66.
92
4.2. Abusado: o dono do morro Dona Marta
104
4.3. Profissão Repórter: histórico e elementos narrativos
111
4.4. O narrador no Profissão Repórter
115
Considerações finais
121
Referências __________________________________________________________ 123
Anexos_______________________________________________________________129
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Apresentação
O sujeito magro, quase careca, daqueles de poucos fios ao lado da cabeça, com uma
barriga saliente e o pensamento no umbigo do mundo, tira a carteira do bolso e se identifica para
o despachante.
- Sou jornalista – diz.
- Jornalista, é?
- É, jornalista!!!
- E por que o jornalista precisa de um despachante?
- Quero fazer uma reportagem comparativa e preciso entrar em dois lugares muito
diferentes. Você pode me ajudar?
O despachante analisa a face amarela do homem à sua frente. Fixa os olhos na testa longa,
umedecida, revelando a oleosidade da pele fina. Tenta adivinhar seus pensamentos, mas esbarra
na concentração tibetana do jornalista, que devolve o olhar fixo com uma intensidade maior,
quase fulminante, reservada apenas àqueles que acreditam ter uma missão a cumprir.
- E a que lugares o amigo deseja ir?
- Ao céu e ao inferno – respondeu o repórter.
- Hummmmm!!! Não é tão difícil. As estradas parecem opostas, mas são paralelas.
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Da gaveta da escrivaninha, o despachante puxa uma lista de formulários já carimbados e
entrega-os ao repórter. Após o preenchimento, assina dois passes quase idênticos, grampeia os
canhotos das fichas e coloca-os em plásticos transparentes.
- Aqui estão os passes. São válidos para uma única entrada em cada local. Você sabe a
quem procurar?
- Sei- respondeu o jornalista.
- Então, boa sorte.
Com os documentos no bolso, o jornalista encaminha-se para o inferno. É recebido pelo
Demônio em pessoa no portal de fogo que dá acesso ao local. Passa por um corredor estreito, vira
à direita em uma pequena ante- sala e logo se depara com o salão principal, de tamanho infinito,
onde estão milhões de pessoas.
Ao analisar os habitantes daquele antro, repara na felicidade geral. Todos estão cantando,
dançando e rindo à toa. Parecem gozar de boa saúde, não têm aborrecimentos, passam o dia em
festas, não há ofensas, doenças, humilhações, inveja ou qualquer outro tipo de mazela. A
paisagem é paradisíaca. Árvores frutíferas, cachoeiras, rios de água transparente, longos vales e
montanhas. Um lugar fantástico, pensa, não fosse por um único detalhe: depois de um certo
tempo, todos acabam morrendo de fome, já que os moradores do inferno têm os cotovelos
invertidos e não podem levar comida até a boca.
Sem conseguir tirar aquela imagem da cabeça, retira-se pela mesma porta por onde
entrara.
Intrigado e perplexo, segue viagem rumo ao céu, a segunda metade do itinerário de sua
reportagem, imaginando a frustração que deve ser morrer de fome em lugar tão bonito como o
inferno. Tudo por culpa dos cotovelos invertidos. Quando chega ao destino, passa pelo mesmo
ritual. Entrega os documentos a São Pedro, que o conduz a um grande portão de nuvens. Passa
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por um corredor estreito, vira à direita numa ante- sala e, novamente, depara-se com um salão
infinito. Lá dentro, a surpresa: estava diante das mesmas pessoas, das mesmas paisagens, da
mesma felicidade.
No céu, assim como no inferno, todos riam, tinham saúde e também passavam o dia em
festas. Da mesma forma, ali estavam as árvores frutíferas, os rios, os vales e as montanhas, como
se fossem cópias do que vira na primeira parte de sua viagem. Passou, então, a observar os
habitantes do céu e logo percebeu que eles também tinham os cotovelos invertidos. Pensou:
- Aqui, eles também devem morrer de fome depois de um tempo. Estava errado. No céu,
ninguém morre de fome, porque cada um leva a comida à boca do próximo na hora das refeições.
E essa é a única coisa que o diferencia do inferno.
Conhecida como fábula dos cotovelos, essa história, de procedência desconhecida, tem
uma moral óbvia. Prega a solidariedade e a fraternidade. O problema é que isso nem sempre é
percebido. Há uma cegueira ética afetando uma parcela da humanidade, cujos valores mais
básicos estão sendo esquecidos ou substituídos pelos ideais de políticos e pela sociedade de
consumo. A cidadania é um termo cada vez menos respeitado nesse país.
No meio disso tudo entra também o jornalismo. O que deveria ser uma profissão ligada às
causas da coletividade vem se transformando, salvo algumas exceções, em um palco de
futilidades, exploração do grotesco e da espetacularização.
O valor do ser humano, de suas vidas, emoções e fraquezas, deixaram de ter importância
para boa parte dos veículos de comunicação no Brasil. O processo jornalístico atual tem como
preceito a busca pela verdade absoluta dos fatos, além da busca pela objetividade e isenção do
jornalista. E quais são os resultados dessa cobertura? Como estão nossas produções jornalísticas
atualmente?
Nosso estudo pretende buscar essas e outras respostas concernentes ao processo
jornalístico atual. Para tanto traremos alguns exemplos de produções feitas pela imprensa
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convencional – leia-se o jornalismo praticado com características industriais, tendo como base a
fórmula piramidal e o lead - e também algumas publicações de estilo literário.
Nosso objetivo é fazer um histórico descritivo sobre o jornalismo literário (JL) e tentar
mostrar que o jornalismo precisa rever seus conceitos. A análise das obras Rota 66 e Abusado, de
Caco Barcellos, tem o intuito de exemplificar e mostrar as características de produções de estilo
literário.
O jornalismo passa por um momento de forte crise. Muitas discussões são travadas para
tentar dizer se o fim do jornal impresso é ou não possível e iminente. A obrigatoriedade do
diploma de jornalista para a atuação profissional chegou a ser contestada e, pior, chegou-se a uma
decisão de que não deveria ser mais exigido.
Nossa pesquisa pretende mostrar que o fazer jornalístico deve ser repensado. Devemos
lançar olhares mais atentos para nossos textos, nossa apuração, nossas entrevistas e, enfim, para
tudo que envolve o processo jornalístico.
O jornalismo literário passou a me chamar a atenção quando ainda estava na faculdade.
Até o terceiro ano da graduação professores diziam que o texto jornalístico deveria contar com as
respostas do lead ainda nos primeiros parágrafos e, posteriormente as informações deveriam ser
dispostas em ordem decrescente de importância, ou seja, deveria estar na fórmula da pirâmide
invertida. O texto deveria ser objetivo e nós (jornalistas) teríamos de buscar a verdade dos
acontecimentos e trabalhar como mediador entre essas informações e o leitor. Em suma,
aprendemos a “mecânica” do processo jornalístico. Também fomos avisados sobre os fatores
mercadológicos que envolvem toda a atividade jornalística.
Conheci o jornalismo literário no fim do terceiro ano de graduação, através da então
recém chegada à Universidade, Rosangela Marçolla. De fala mansa, olhar atento e jeitão de
mãezona, a professora conquistou a classe com suas histórias. Dizia-nos que o jornalista deveria
ser um contador de histórias, que tinhamos que conversar com as pessoas com atenção aos
detalhes, observar tudo o que cercava o ambiente dessa entrevista e, enfim, contar de uma
maneira que envolvesse o leitor. Foi assim que passei a me interessar pelo JL. E dessa forma
decidi que meu trabalho de conclusão de curso seguiria o estilo desse “novo jeito de fazer
jornalismo”. Junto com meu colega, Ismael Rodrigo, decidi contar histórias de pessoas. Seus
dramas, alegrias, tristezas, aflições, dificuldades. A experiência me mostrou, de maneira
resumida, que o jornalista precisa ouvir mais, observar melhor, escrever com mais vontade, trazer
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textos que instiguem o leitor e o mantenham acordado. Mostrou que o jornalismo de maneira
geral está muito superficial.
Para compor o arcabouço teórico de nosso trabalho utilizamos obras de autores como
Edvaldo Pereira Lima e Cremilda Medina, além de algumas outras referências como Tom Wolfe,
um dos expoentes da corrente norte-americana denominada New Journalism.
Cremilda Medina identifica o que considera ser um dos graves erros praticados pelos
veículos de comunicação:
[...] enquanto insistirmos na competência do fazer, despojada de significado
humano, pouco se avançará no diálogo possível numa sociedade em que impera
a divisão, a grupalidade, a solidão. Se os meios são de comunicação, que se
encare então o que é comunicar, interligar. O maior obstáculo é o dirigismo com
que se executam as tarefas de comunicação social. Na maior parte das
circunstâncias, o jornalista (comunicador) imprime o ritmo de sua pauta e até
mesmo preestabelece as respostas; o interlocutor é conduzido a tais resultados. A
caricatura deste fato se difunde por aí em entrevistas de televisão, cujo script é
pré-moldado, ensaiado, ficando pouca margem para o entrevistado decidir qual o
rumo de seu pensamento ou de seu comportamento. O que menos interessa é o
modo de ser e o modo de dizer daquela pessoa. O que efetivamente interessa é
cumprir a pauta que a redação de determinado veículo decidiu. (MEDINA apud
LIMA, 2009, p.91)
Pretendemos evidenciar que o mecanismo que se criou para a cobertura jornalística é
ineficiente, ilusório. Que as produções restritas às fórmulas prontas de captação e edição são
incapazes de traduzir com fidelidade toda a complexidade dos fatos.
Faz parte de nossa pretensão com esse estudo tentar mostrar ainda quais são os resultados
dessa cobertura que se adaptou às regras impostas pela industrialização.
Queremos evidenciar a superficialidade encontrada diariamente em páginas de jornais.
Mostrar que as produções jornalísticas precisam sofrer algumas alterações no seu modo de fazer.
Precisa trazer atrativos para que o leitor se sinta instigado a ler. Diferenciais. Bons textos.
Entrevistas livres de regras de como fazer. Tudo no intento de tornar jornais mais agradáveis e de
resgatar seus leitores que, hoje, podem encontrar notícias rápidas e objetivas em suportes como a
internet e a TV.
Não temos a pretensão de execrar as produções ou veículos que utilizam a fórmula
piramidal e o lead, pois entendemos que o uso dessas técnicas ainda são úteis e necessárias tendo
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em vista que o jornalismo pode ser considerado como uma das pontas de um iceberg chamado
Indústria Cultural. Nosso objetivo é evidenciar que as boas histórias trariam uma boa
contribuição paras as páginas de jornais. Que serviriam como opção para os leitores buscarem um
maior aprofundamento sobre determinado assunto e, em conseqüência disso, contribuiria para o
aumento das vendas de jornais.
Felipe Pena tece um comentário que vai ao encontro de nossa proposta e diz que essa
mudança significa:
[...] potencializar os recursos do Jornalismo, ultrapassar os limites dos
acontecimentos cotidianos, proporcionar visões amplas da realidade, exercer
plenamente a cidadania, romper as correntes burocráticas do lead, evitar os
definidores primários e, principalmente, garantir perenidade e profundidade aos
relatos. No dia seguinte, o texto deve servir para algo mais do que simplesmente
embrulhar o peixe na feira. (PENA, 2006, p. 13)
Voltando à fábula dos cotovelos, podemos imaginar que a atitude do jornalista
convencional naquele ambiente seria a de se preocupar com dados referentes ao ambiente, alguns
depoimentos dos responsáveis pelo céu e inferno e só. Depois esse jornalista traria essas
informações de maneira objetiva e seca, num texto sem graça e pouco chamativo. O jornalista de
estilo literário tentaria conversar com o maior número de pessoas possível. Buscaria informações
de como é viver nesses lugares, quais os desafios, surpresas, tristezas, alegrias dessas pessoas.
Observaria com atenção todos os detalhes dos locais. E depois contaria sobre todo o universo que
conheceu de maneira detalhada, falando sobre os cheiros, sentimentos, enfim, percepções de
jornalista e ser humano. Sim, jornalista também tem coração, alma. Chora, ri, se emociona. E isso
não é “botar florzinha no texto”. Isso é contextualizar, trazer informações suficientes para que seu
leitor possa refletir e chegar à conclusão de que morar no céu é melhor porque lá eles não
morreriam. Isso é contribuir com a sociedade. Isso é jornalismo.
Essa breve contextualização serve para mostrar o porquê de pesquisar o jornalismo
literário, quando surgiu esse interesse, quais questões gostaríamos de responder durante esse
trabalho.
Essa pesquisa pretende lançar algumas questões sobre o fazer jornalístico atual, mostrar
com teoria e exemplos práticos o que é o jornalismo literário, qual seu contexto histórico,
algumas experiências com o estilo e, enfim, apresentar o que consideramos uma proposta ideal
19
para que busquemos um jornalismo com textos interessantes, comprometidos, e que ainda traga
alguma contribuição social.
Faremos também uma análise sobre os elementos literários nas narrativas dos livros
Abusado: o dono do morro Dona Marta e Rota 66, de Caco Barcellos, no intento de exemplificar
parte do referencial teórico que utilizaremos nesse estudo.
Em suma, gostaríamos de apresentar o jornalismo literário como uma proposta de
cobertura para que se revigore o jornalismo brasileiro. Você poderá ler nesse trabalho, por
exemplo, o “mais amplo estudo sobre leitura de jornais já realizado nos Estados Unidos”
promovido
pelas
instituições
americanas
American
Society
of
Newspapers
Editors
(www.asne.org), entidade que congrega cerca de 900 editores-diretores de diários; a Newspaper
Association of America (www.naa.org), organização das empresas editoras de jornais nos Estados
Unidos e no Canadá, com mais de 2.000 jornais filiados, totalizando um negócio total de mais de
US$ 57 bilhões; e o Media Management Center (www.mediamanagementcenter.org), da
Universidade Northwestern. Acredito que esse estudo chamará sua atenção e, ainda, servirá para
que tentemos confirmar nossa hipótese de que o jornalismo precisa ser repensado e precisa
resgatar o valor das boas histórias.
Queria então dividir com os leitores desse estudo um texto meu. Essa reportagem faz
parte do livro-reportagem que junto com Ismael Rodrigo escrevi como trabalho de conclusão de
curso, em 2007. O livro Nos Bastidores da Saúde Pública traz narrativas de dramas enfrentados
por usuários e funcionários do Sistema Único de Saúde (SUS) na cidade de Marília. Mostra a
história de pessoas comuns que dependem de um sistema precário e defasado. Conversamos com
várias pessoas na porta de hospitais, postos de saúde e até mesmo em suas casas para tentar fazer
um retrato do SUS. O livro está dividido em 14 pequenas reportagens. Não era nossa intenção
fazer um aprofundamento maior dos casos, mas sim mostrar em pequenos fragmentos o drama de
vários cidadãos. A experiência nos fez, sobretudo, perceber a importância de nossa profissão.
Fez-me acreditar que deveria pesquisar maneiras para tornar o jornalismo ainda mais social, mais
empolgante e atrativo.
A narrativa a seguir traz o depoimento da trabalhadora Elaine Silva, e se tornou uma das
prediletas da orientadora do trabalho, professora Rosangela Marçolla. Consigo imaginar Silva
pegando esse trabalho e lendo sua história ali, depois de alguns anos: “Olha só, até que eu tô
importante!” – diria ela.
20
“Nó-du-lo. Pode?!”
Clodonei Colombo Filho
Noite gelada do mês de julho, 8h30. O próximo cenário de entrevistas é um posto de
saúde que atende durante as 24h do dia, em um bairro da zona norte.
Barulho de sirene ao longe, ecoando. Levando ou trazendo vidas. Crianças e seus choros,
de todos os tons, ficam na memória. Enfermeiras gritam os nomes dos próximos a serem
atendidos sem demonstrar muita paciência na voz: Renata Oliveira...Renaaaata! Por ali, na sala
de espera, mães acompanham um total de 13 crianças que choram e tentam dizer o que sentem.
As mães sabem o que querem: “Aqui sempre falta médico, falta pediatra, clinico geral”. As
crianças não se surpreendem com nossa presença. Não se entusiasmam. Estão “dodói”. Querem
atendimento.
Ali há mais de uma hora, a auxiliar de enfermagem bem vestida, de sapatos brancos
impecavelmente limpos e cabelos bem arrumados se sentiu insegura em falar conosco sobre o
assunto. “É a primeira vez que preciso ser atendida aqui e já estou esperando há um tempo
considerável. Minha irmã sempre vem aqui e reclama que o atendimento é péssimo. Não posso
falar muito com vocês sobre o SUS, pois trabalho como auxiliar de enfermagem em hospital
público e tenho medo de me comprometer”.
Os choros das crianças não cessam e as mães ficam apreensivas e impacientes. Dona
Marilene acompanha a filha e a neta (a criança que está doente). A pequena Júlia, 3 anos, se
aconchega no colo da avó. Os bancos frios da unidade revelam apenas mais um desconforto para
esses pacientes. Julinha, como a chamamos para tentar animá-la, vomitou duas vezes nesse dia e
já não tem no olhar o brilho que revela a alegria de ser criança. A mãe se sente penalizada, e
lamenta: “Já vim aqui algumas vezes e não havia pediatra. Hoje chegamos e eles nos mandaram
esperar. Eu não ligo de esperar, mas criança não pensa assim”.
Durante a entrevista, a criança vomita próximo a nós. Inconformada, a mãe pede para que
a menina seja atendida. A criança pede, impaciente: Vóóó, cadê o pai? E a resposta vem com a
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voz paciente e calma da carinhosa avó: O papai tá trabalhando, filha. Mas já já nós vamos
embora, tá? Fica boazinha!
Alguns funcionários percebem nossa presença e, então, Júlia recebe atendimento.
“O que está acontecendo, mãe? – pergunta a enfermeira.
Do lado de fora do posto, mais espera e desânimo. Desolados, alguns percebem em nós a
oportunidade para um desabafo. Ali o vento provoca o frio, lá dentro os funcionários,
desmotivados, se encarregam de tal tarefa. “Somos tratados como bichos”, diz a trabalhadora
Elaine da Silva, 28.
Sentada em mais um banco frio, em um canto escuro do lado de fora do posto, Silva
reclama do atendimento, falta de médicos, descaso de funcionários e dor, muita dor no dente.
“Vim até aqui a semana passada para que a dentista arrancasse um dente que doía muito. Ela não
conseguiu, disse que não tinha anestesia e , para piorar, machucou meu maxilar”.
A jovem de moletom e touca, olhar alegre, olhos bem escuros e brilhantes, parece tentar
se esconder da realidade em que vive. Do descaso com que é obrigada a conviver. Para
sobreviver cata papéis pelas ruas da cidade de Marília há 8 anos. Nos conta das dificuldades da
vida que leva no dia-a-dia. “Imagina você ficar o dia inteiro de baixo de chuva, sol e frio e ainda
ganhar uma miséria no fim do mês. Não é fácil! Já tive sonhos de ser uma pessoa bem sucedida,
mas não deu certo. Hoje trabalho o dia todo até sabe lá Deus que horas para manter meus 2 filhos.
Mas tá difícil, porque com essa dor não estou comendo nem dormindo por mais de uma semana”.
A trabalhadora lamenta o fato de o Brasil ser um país desigual, onde só os que têm
condições financeiras para bancar um atendimento digno podem ter uma vida mais justa e feliz.
“Os políticos sempre falam que vai haver melhorias na área da saúde, mas a única melhoria que
acontece é nos bolsos deles, que enchem de dinheiro”.
Comentamos com Silva o fato de uma parte dos impostos pagos pelos cidadãos serem
destinados à saúde e, temos a resposta: “Hãnn!? Pagar IPTU? Para que? Já cansei de pagar
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impostos, não pago mais. Não é justo, não vejo melhorias. Só descaso e tratamento diferenciado
para quem tem dinheiro. A desigualdade chega a ser engraçada, pois o pobre quando tem câncer
fala logo que está com a doença maldita e pronto. O rico? O rico não! Ele diz que está com ‘nódu-lo’. Pode?”
Elaine Silva afirma desanimada que a saúde em Marília é um lixo. “Naquele HC (Hospital
de Clínicas) você vê gente jogada no chão, sem atendimento. Pessoas de idade, crianças. Eu
mesma tive meu neném no lado de fora do hospital, nos bancos frios que ficam na entrada.
- O quê? – perguntamos, inconformados.
- Ééé, meu filho! Só tive atendimento porque apareceu um homem meio maluco por lá,
me viu naquela situação e foi buscar um médico aos puxões. Imagine o ânimo que uma cidadã
tem de pagar seus impostos depois de acontecer uma coisa dessas”.
Cansada e com fome, Silva nos diz que está há uma semana só tomando água e deixa uma
mensagem para médicos e funcionários: “Gostaria que esses médicos aí se lembrassem do
juramento que fizeram ao receber seu diploma. Eles são pagos para nos atender e se o salário não
é o suficiente, que saiam, mas não nos tratem como animais”
No fundo dos olhos brilhantes, percebemos uma esperança ainda viva.“Queria ser
advogada ou, ao menos, ter um emprego digno, de vendedora de loja, por exemplo. Mas, às
vezes, desanima, sabe?”
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Capítulo I
Alguns apontamentos sobre o processo jornalístico na imprensa
convencional
1. Propensão Humana em contar histórias
Neste primeiro capítulo pretendemos evidenciar alguns aspectos do processo jornalístico
convencional, praticado por uma grande parcela dos veículos de comunicação brasileiros. Isso
para que possamos mais adiante comparar o estilo convencional com a cobertura de estilo
literário.
Ao estudar o narrador na obra de Nikolai Leskov, Walter Benjamim (1985, p.201) parecia
prever um dilema que afetaria também o mundo contemporâneo. O autor revela que o ato de
narrar perde sua vitalidade no momento de exacerbação de uma prática cotidiana burocratizante e
limitadora.
Essa prática remete a uma sociedade urbana e industrial, onde surge também a indústria
cultural e, com ela, a comunicação de massa, que desenvolve um padrão jornalístico de conteúdo
racional e técnico, atrelando a eficiência da tecnologia à ânsia de gerar lucros. A informação ou a
produção exagerada de textos noticiosos, que surge neste contexto, para Benjamin é um dos
responsáveis pela morte das narrativas.
[...] verificamos que com a consolidação da burguesia - da qual a imprensa, no
alto capitalismo, é um dos instrumentos mais importantes – destacou-se uma
forma de comunicação que, por mais antigas que fossem suas origens, nunca
havia influenciado decisivamente a forma épica. Agora ela exerce essa
influência. Ela é tão estranha à narrativa como o romance, mas é mais
ameaçadora que o próprio romance. Essa nova forma de comunicação é a
informação (1985, p. 202) (grifo nosso).
Para Benjamim, a informação é um dos responsáveis pela morte das narrativas, pois assim
como o romance não procede nem alimenta as histórias orais.
Para Walter Benjamim a morte das narrativas é um fator preocupante, pois estas “tem
sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa atividade pode consistir
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seja num ensinamento moral, numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida
- de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos” (1985, p.200).
Edvaldo Pereira Lima (2009, p. 357-358) revela que um sério problema afeta as
publicações jornalísticas no Brasil. Diz que, artificialmente, a imprensa convencional esqueceu-se
da propensão humana de contar historias, dos relatos orais, das narrativas pictográficas e das
conversas ao redor da fogueira em tempos imemoriais. Que o sistema criado pela imprensa
racional vai à contramão de uma tendência humana de contar, ouvir e ler histórias.
A arte de narrar faz parte de nosso cotidiano. Nossas ações e atitudes têm relação com
tudo o que apreendemos com as histórias orais. Histórias como contos e fábulas foram
preservadas oralmente pelo povo e são recontadas até hoje em diferentes contextos. Para Norval
Baitello Júnior (1999, p. 37) esse ato intrínseco à vida humana:
[...] significou e significa para o homem atribuir nexos e sentidos, transformando
os fatos captados por sua percepção em símbolos mais ou menos complexos,
vale dizer, em encadeamentos, correntes, associações de alguns ou de muitos
elos sígnicos.
As velhas e boas histórias as quais ouvimos com prazer serem contadas por nossos pais e
avós também são usadas pela mídia. As notícias que nos chegam todas as manhãs são
legitimações daquilo que já conhecemos. As histórias da tradição oral, praticadas outrora, servem
atualmente, como modelo para a comunicação. Na verdade são trocados apenas os personagens e
a forma como a história é narrada, pois o enredo permanece inalterado.
Histórias de herói e vilão são constantes nas publicações e legitimam o que já ouvimos
falar nas sagas, por exemplo. A estrutura dos telejornais também representa um exemplo para
essa comparação. É comum que todo telejornal comece com notícias de tragédias e/ou mortes. E,
ao final, o noticiário traga notícias sobre esporte ou cultura. São temas pesados e depois leves,
representando os enredos de histórias com finais felizes como os vistos nos contos maravilhosos.
As histórias de tradição oral permanecem, portanto, em nossas vidas. Porém, com novos
enredos e, na contemporaneidade, com uma maneira artificial de compreender e narrar. Artificial
a partir do momento em que as limitações impostas por regras de como fazer não permitem que
se contemple de maneira ampla a complexidade dos fatos.
26
Nas histórias preservadas pelo povo oralmente, as vivências humanas, sejam as derrotas,
as vitórias, alegrias e tristezas, tinham valor para a composição de uma boa história. Essas
narrativas trazem ensinamentos, conselhos, experiências, e ainda permitem que o leitor participe
da narrativa, fazendo-o compreender e compartilhar com a vida dos personagens. Atualmente, a
maneira como se percebe e se descreve as ações humanas sofre alterações significativas, que
afetam diretamente o jornalismo. Os veículos de comunicação de hoje apenas se atentam para
manter o leitor informado e a comunicação, de maneira quase absoluta, é usada apenas para gerar
lucros.
Pretendemos mostrar neste capítulo que a imprensa convencional deixou de contar boas
histórias. Esqueceu-se, como bem lembrou Edvaldo Pereira Lima (2009, p. 357-358), de nossa
propensão em contar histórias. E que atualmente pratica um estilo de jornalismo robotizado,
mecânico, onde o jornalista deve seguir regras pré-estabelecidas e escrever seu texto no formato
em que pedem os manuais de estilo e redação.
1.2. Lead e a fórmula piramidal
Alguns pesquisadores tentam reunir informações para explicar a origem do Lead (do
inglês conduzir) e do texto em forma de pirâmide invertida. O jornalista e professor Luiz Costa
Pereira Júnior (2000) diz que o surgimento do atual modelo ocorreu durante a Guerra Civil dos
Estados Unidos (1861-1865), como uma tentativa dos militares de superarem a falta de
tecnologia da época. As transmissões via telégrafo não era tarefa fácil. Não raro as informações
chegavam incompletas ao destinatário. Ficou estabelecido, portanto, que as principais
informações sobre quaisquer fatos deveriam estar dispostas nos primeiros parágrafos. Dessa
forma, no fim do texto ficariam apenas informações complementares, de modo que, se houvesse
alguma falha, o principal já teria sido enviado.
A paternidade do lead e da fórmula piramidal ficou para norte-americanos e ingleses. José
Francisco Sánchez (1993), doutor em Jornalismo e diretor da Universidade de Navarra, na
Espanha, atribui como fatores que contribuíram para a consolidação do lead, além da
popularização do telégrafo e da Guerra Civil Americana, também o advento das agências de
notícias. A Associated Press, primeira agência de notícias da história, passou a utilizar essa
técnica com objetivo de driblar o alto custo do telégrafo e utilizar a tecnologia para unificar
27
coberturas em longas distâncias. Com o sucesso e a adesão de cada vez mais jornais - cada qual,
na época, com suas linhas editoriais, interesses e ideologias muito bem demarcados-, a agência
passou a estimular um texto mais conciso e neutro possível, no intuito de atingir o maior número
de clientes. Para José Francisco Sánchez (1993), o modelo tornou-se hegemônico por pura
imitação ou comodidade.
Se os textos vinham assim das agências, para quê mudá-los? Logo surgiram
outras justificativas para sua proliferação, como estímulo à imparcialidade,
atenção aos fatos, mais informação em menos espaço, dentre outros
(SANCHES, 1993).
Leandro Marshall (2000, p.34-41) mostra que esse modelo é uma conseqüência direta e
imediata da então emergente sociedade de massas e de consumo, que precisava criar antídotos
contra a singularidade. Em suma precisava apagar as marcas da presença do jornalista nos textos,
eliminando possíveis “humores” e “opiniões”. Era o início da tão defendida imparcialidade e
objetividade absoluta. Dessa forma as produções jornalísticas passavam a ser essencialmente
técnicas, visando as grandes vendagens e o lucro. Segundo Marshall:
,
[...] esta arquitetura da pirâmide invertida pode ser encontrada diariamente nas
edições dos principais jornais mundiais, já que seu método é considerado
praticamente como um processo único, elementar e indiscutível do fazer
jornalístico. A pirâmide também tem sido a fórmula quase exclusiva de
alfabetização jornalística utilizada pelas faculdades de jornalismo do mundo
ocidental. Adorada e idolatrada mundialmente por professores funcionalistas, a
pirâmide invertida constitui-se numa verdadeira bíblia para a catequização dos
jornalistas, que perdem assim a perspectiva crítica do papel social do
profissional da comunicação [...] O lead serve, assim, muito mais para esconder
do que para revelar.
Não estamos querendo dizer que o uso do lead e da pirâmide sejam totalmente
equivocados. Ou então que deveria ser abolido de forma absoluta. Não. Essas ferramentas têm
sua importância dentro de algumas coberturas jornalísticas. Esse método é essencial em alguns
casos onde há necessidade de informar as pessoas com agilidade e alguma exatidão sobre eventos
corriqueiros como, por exemplo, se haverá ou não greve de funcionários do transporte público,
28
previsão de chuva no feriado, informações sobre vias congestionadas, enfim, notícias que servem
para manter o leitor informado sobre os acontecimentos recentes que o rodeiam.
O que deve nos preocupar no papel de jornalistas, pesquisadores, ou estudantes de
jornalismo é a maneira como alguns veículos de comunicação estão utilizando esse suporte,
método ou técnica. Será que essa fórmula não está sendo usada tal qual um método infalível?
Será que as empresas jornalísticas brasileiras já não estão viciadas no lead e na pirâmide? Se sim,
o que esse uso demasiado tem causado a nossas produções? Voltemos então ao contexto
histórico...
Seguindo uma conhecida história de que “o que é bom para os norte-americanos também
o deva ser para nós, brasileiros”, esse estilo de cobertura que Francisco José Bicudo Pereira Filho
(2006), em texto publicado no site do Pluricom, classifica como camisa-de-força estilística e
ideológica, desembarcou em território verde amarelo a partir da década de 50, tendo como
responsáveis alguns nomes como Danton Jobim, Pompeu de Souza e Luiz Paulistano. O método
foi implantado inicialmente no Diário Carioca seguido pela Tribuna da Imprensa, Última Hora e
Jornal do Brasil, todos cariocas.
O modelo só atingiu os diários paulistas a partir da década de 70, tendo seu ápice na
década de 80, depois da concretização do “Projeto Folha de S. Paulo”. O projeto de um dos
maiores jornais do país influenciou outros tantos periódicos, pois atingia os interesses da maior
parte dos empresários do setor de comunicação. Ou seja, o projeto Folha se mostrou interessante
e inteligente do ponto de vista mercadológico, pois se tratava de uma maneira de se ganhar mais
dinheiro com menos investimentos.
O jornalista participa pela manhã de uma reunião de pauta, recebe suas três, quatro ou
cinco a serem cumpridas e sai às ruas. O processo jornalístico é mecânico. As pautas diárias
contêm informações como pessoa a ser entrevistada, local, horário, perguntas a serem feitas e
tamanho do texto a ser escrito. O profissional segue então para a cobertura sem perceber as
muitas histórias em que ele quase tropeça nas ruas. Chega ao local marcado, pega seu caderninho
e vai fazendo as perguntas que ali estão escritas.
Em redações como estas não se dá importância para fatores como apuração, personagens,
contextualização, relevância do fato para a sociedade, qualidade textual, etc. O importante é
cumprir a pauta e escrever o texto respondendo às questões do lead. Para a empresa é isso que
importa. Ter matérias seja com a qualidade que for, para poder vender seus anúncios.
29
Cremilda Medina aponta que dentro desse processo de produção da notícia alguns
elementos importantes estão sendo tratados com certa indiferença.
Medina:
Nas rotinas de redação, momentos decisivos como as reuniões de pauta pecam
por falta de domínio técnico-profissional. A opção de assuntos e a forma como
tratá-los raramente é levada no grau de seriedade e aprofundamento que a
situação exige. Assim, por exemplo, à falta de imaginação (criação), uma das
fontes mais comuns de pauta é a seleção de assuntos já publicados em outros
veículos. Uns jornais se pautam pelos outros num círculo vicioso, fechado e
pobre. (apud LIMA, p. 69).
E quem sai perdendo com esse tratamento inadequado? Quem é que tem de ler jornais
quase idênticos todos os dias?
Dulcília Schroeder Buitoni analisa o trabalho da imprensa brasileira nos dias atuais e
destaca o processo de produção das notícias que estamos discutindo:
O instrumental jornalístico é pobremente descrito e analisado nos manuais e
livros que tratam da captação das informações. São indicações de práticas às
vezes completamente ultrapassadas ou inadequadas ao contexto brasileiro, por
serem quase todas copiadas de receituários norte-americanos. São modelos,
pautas, listagens cristalizadas de práticas rotineiras e gastas. O mesmo acontece
com a redação: apenas receitas de como escrever bem, normas gramaticais e de
estilo. Encontra-se pouquíssima reflexão sobre o texto como reprodução da
realidade: quando há, envereda pela análise ideológica repetindo, sem
aprofundar, o mote de reforço do status quo. Não se acham análises de
funcionalidade, por exemplo, de personalização ou não do narrador, do uso dos
tempos verbais, do uso da descrição, do diálogo etc. (apud LIMA, 2009, p. 137)
A preocupação com esse processo mecânico nas produções atinge um número
considerável de estudiosos e pesquisadores da comunicação. O jornalista e pesquisador Wilson da
Costa Bueno (2007), em artigo publicado originalmente no Portal da Imprensa e disponível no
site da Faculdade Cásper Líbero, diz que a imprensa precisa resgatar o bom texto, pois “o nosso
texto jornalístico é, em geral, chato, sem cor, sem sabor, sem som, uma coisa pasteurizada, tipo
queijo que entra no BigMac (tem gente que acha que chuchu é assim, mas esse gosto de nada me
30
faz lembrar de aspargos).” Bueno diz ser essencial que se discuta essa decadência no jornalismo
no meio profissional, nos cursos de jornalismo e entre os próprios leitores, pois caso isso não
aconteça continuaremos com nossos textos com “cara de memorando e ata de reunião”.
A busca incessante pela objetividade, imparcialidade e verdade absoluta dos fatos é a
marca primordial do jornalismo convencional. O professor e pesquisador Jorge Kanehide Ijuim
(2007) conta o que considera justificar esse fato:
[...] A ciência decorrente da chamada Revolução Científica, pela atuação
decisiva de Descartes, Bacon e Newton, a partir do século XVIII, nos fez
acreditar na possibilidade de acumular verdades controladas. Seu rigor
racionalizante – e racionalizador – acabou por definir certos ‘códigos
socioculturais’ que, inconscientemente, determinam posturas, maneiras de
pensar e agir. O pragmatismo das sociedades modernas mostra agilidade e
disciplina na atuação do comunicador, através de regras do ‘como fazer’ [e
como pensar]. Ao adotar a racionalidade da ciência para esse fazer, assume-se
também uma visão de mundo que crê na concordância perfeita entre ‘o racional
e a realidade’. Por isso, valorizando a experiência, o empirismo, do inteligível ao
previsível e mensurável, institui a crença de que o jornalismo deva produzir
verdades.
Os manuais de redação e estilo “castram” a criatividade de alguns jornalistas e limitam o
trabalho do profissional que tem de trabalhar como mediador entre os conflitos sociais e a
sociedade, porém deve buscar a verdade dos fatos e se ater ao fato de ser objetivo. O jornalismo
praticado sob tais preceitos pouco ou nada acrescenta para a sociedade, deixando, portanto, de ter
sentido.
O jornalismo brasileiro passa por uma forte crise devido a fatores como este. É crescente
o processo de decadência de nossos jornais, que sofrem conseqüentemente com uma dinâmica
progressiva de empobrecimento da linguagem e dos recursos narrativos que utiliza.
A busca incessante pela objetividade e verdade absoluta precisa ser combatida para que,
dessa forma, possamos ler jornais menos efêmeros e superficiais. Edvaldo Pereira Lima (2009)
lembra que a periodicidade atrelada à construção da mensagem pela fórmula mais rápida – porém
menos criativa - do texto pasteurizado nos elementos o que, quem, quando, onde, como e – nem
sempre – por quê, com recorrência apenas a fontes legitimadas, são fatores não menos nocivos
para um veículo de comunicação que queira deixar de ser meramente informativo além de buscar
“escapar à ditadura draconiana da atualidade”.
José Marques de Melo, em Lima (2009, p. 100), diz que:
31
Reduzida a uma dimensão meramente operacional – headline, lead, copy desk
etc. - , a proposta da objetividade converteu-se em camisa de força para o
desempenho profissional dos jornalistas. Na medida em que sua feição
determinante passa a ser a economia de palavras, imagens e sons, o trabalho do
jornalista burocratiza-se rapidamente.
A burocratização de que fala Marques de Melo estende-se também para as entrevistas, que
passam a sofrer com um visível dirigismo e pode ser constatada em entrevistas feitas ao vivo, na
TV. As perguntas e respostas são previamente combinadas entre repórter e entrevistado. Tudo a
fim de garantir o “bom trabalho” do repórter e a melhor desenvoltura do entrevistado enquanto
tal. Não raro, quando o entrevistado resolve dar uma guinada no discurso pré-estabelecido,
podemos perceber que o repórter se atrapalha, “perde o rumo”. Em “Entrevista: o diálogo
possível”, a professora Cremilda Medina (1995, p. 6) diz que:
Quando ocorre uma entrevista dirigida por um questionário estanque ou
motivada por um entrevistador também fixado em suas idéias preestabelecidas
(em geral, coincidentes com o questionário) ou no autoritarismo impositivo, o
resultado frustra o receptor. Freqüentemente, um adolescente ou uma criança
comenta, diante de uma dessas entrevistas em televisão: ‘O sujeito nem terminou
o pensamento e o repórter cortou...’
Dulcília Buitoni( 2009, p. 90) reforça:
Se não é aplicável o esquema de perguntas e respostas programadas, o repórter
acha que não está diante de um fato jornalístico, pois não acredita que haja
perguntas e respostas que ele não conheça. Só trabalha com narrativas fechadas
e com probabilidades previamente conhecidas. Ora, essa improbabilidade de
enxergar além do padrão aumenta muito a pobreza de conhecimento pertencente
à notícia.(apud LIMA, 2009)
O resultado desse processo limitador são textos pouco elaborados, com uma visão
limitada da realidade em que a história se passa. A burocratização limita a visão do jornalista e
conseqüentemente da sociedade, que encontra nas páginas dos jornais representações incompletas
sobre os conflitos humanos.
32
1.3. Entrevistas
Esse importante aliado para o fazer jornalístico é estudado por Cremilda Medina em
Entrevista: o diálogo possível. A autora diz que a entrevista, quando utilizada como uma mera
técnica para obtenção de respostas pré-pautadas não pode ser um braço da comunicação humana.
Quando encarada como simples técnica “não atinge os limites possíveis da inter-relação, ou, em
outras palavras, do diálogo” (1995, p. 5).
A pesquisadora divide as entrevistas segundo duas tendências: a de espetacularização e a
de compreensão.
No primeiro grupo, que visa espetacularizar o ser humano, a autora encontra
quatro subgêneros: o perfil do pitoresco de figuras olimpianas, no nível da
caricatura humana, salientando traços sensacionalistas; o perfil do inusitado, que
traz à tona, mesmo que algo forçadamente, aspectos exóticos do entrevistado; o
perfil da condenação, ordenado de forma a julgar aprioristicamente o
entrevistado, colocando-o de modo simplista na posição de réu ou vilão; o perfil
da ironia ‘intelectualizada’, cuja finalidade é também realizar um julgamento
aprioristicamente condenatório do entrevistado, só que dessa vez trabalhando
num nível superior de sutileza (MEDINA, apud LIMA, 2009, p. 92).
Nesse primeiro grupo encaixam-se programas como “Aqui e Agora”, “Cidade Alerta” e
“Brasil Urgente”, além de muitos outros de caráter sensacionalista. Nesses programas priorizamse matérias que garantam boa audiência, mesmo que para isso seja necessário fazer a
espetacularização à qual se refere Medina. No “Brasil Urgente”, por exemplo, o apresentador
quando mostra algum caso da editoria de polícia, insiste em mostrar o rosto do acusado (mesmo
que este ainda seja apenas ‘acusado’) e seus repórteres tentam forçar o entrevistado a assumir sua
possível culpa ou envolvimento no crime. Falas como: “Mostra a cara desse vagabundo aí. Põe
ele pra falar, vamos ouvir a voz desse sem vergonha!”. E, que importância esse tratamento tem na
apuração e divulgação do fato?
No segundo grupo, voltado para a tentativa de compreensão do ser humano, são
apontados cinco subgêneros: a entrevista conceitual, em que o repórter busca
conceitos, versando sobre diferentes temas, nos especialistas de cada área; a
entrevista/enquete, na qual um único tema é privilegiado por uma pauta ou por
questionários básicos aplicados a fontes selecionadas aleatoriamente; a
33
entrevista investigativa, apoiada na coleta de informações em off e em on (esta
dá retaguarda àquela) e que está a serviço de matérias investigativas, de
denúncia; a confrontação-polemização, materializada em forma de debate, mesa
redonda, painel, simpósio ou seminário, em que fontes antagônicas ou
divergentes são simultaneamente entrevistadas; o perfil humanizado, que se
caracteriza pela abertura e proposta de compreensão ampla do entrevistado em
vários aspectos, do histórico de vida ao comportamento, dos valores aos
conceitos (apud LIMA, p. 92).
Programas como o Profissão Repórter, por exemplo, se enquadram dentro desse grupo e,
mais especificamente, no subgênero perfil humanizado, pois produz perfis que valorizam
pessoas, busca diferentes ângulos de fatos retratados cotidianamente pela mídia e dá voz a
personagens da vida real, à pessoas comuns.
No subgênero confrontação-polemização encontram-se programas como “Roda Viva”, da
TV Cultura. O programa reúne profissionais da imprensa e promove debates onde um
entrevistado fica “cercado” por jornalistas respondendo questões de temas diversos como
política, educação, saúde etc.
Buitoni (1986, p.39) também traz algumas contribuições concernentes a essa discussão e
enxerga nas histórias de vida, as entrevistas livres acompanhadas de observação participante, um
bom aliado para o jornalismo. E diz:
[...] uma entrevista de tipo aberto se define como história de vida uma vez que
utiliza a vivência do entrevistado de maneira longitudinal, buscando encontrar
padrões de relações humanas e percepções individuais, além de interpretações
sobre a origem e o funcionamento dos fenômenos sociais.
O resultado desse processo é uma visão detalhada e multiangular dos conflitos humanos,
com atenção aos seus personagens, seus anseios, problemas, sentimentos, sua história. Esse é o
jornalismo humanizado, comprometido, literário.
Além da entrevista, a observação, outro instrumento de captação, merece algumas
observações e traz também contribuições para o processo de produção jornalístico. Para Edvaldo
Pereira Lima (2009, p. 45), esses processos de produção podem e devem ser melhorados, mas o
vício resultante da prisão à periodicidade, ao ritmo curto, sôfrego, da imprensa cotidiana, é o
grande entrave.
34
A grande-reportagem deve fugir do esquema cada vez mais rígido da produção
industrial na imprensa. A observação intensa, demorada, torna-se, no geral,
quase próxima do impraticável sob tais condições. De qualquer forma, grandes
profissionais do jornalismo acabam, por intuição, experiência, vivência do dia-adia das coberturas, adquirindo habilidade elogiável na prática da observação.
Com certeza, essa prática pode ser aperfeiçoada se, ao lado da experiência
construída sob o suor e a urgência da captação imediata, acontecer uma
absorção, pelos profissionais da imprensa, dos métodos e dos recursos utilizados
pelas ciências sociais.
Analisando o atual momento da imprensa cotidiana brasileira percebe-se que essa
participação efetiva do profissional da comunicação acontece muito discretamente. A cobertura
racional limita-se a informar e, para Dulcília Schroeder Buitoni (1986, p. 65) isto se dá, pois se
perde a função da memória que, hoje, é utilizada apenas para organizar o passado
cronologicamente. E “as riquezas pessoais e sociais da memória estão sendo substituídas pela
informação mecânica”.
Claro está, portanto, que o jornalismo precisa ser repensado e, inevitavelmente, os
jornalistas precisam participar desse processo. Entretanto, o processo mercadológico no qual se
inserem as empresas de comunicação acaba inibindo qualquer reação do profissional que ali
trabalha. A padronização do jornalismo, ditado por regras dos manuais de redação e estilo, onde o
jornalista deve se limitar a compor um texto seguindo modelos, barra qualquer tentativa de
mudança. Para o professor Jorge Kanehide Ijuim (2006, p.11), a imprensa brasileira comete
alguns equívocos que interferem diretamente nos resultados que os leitores encontram
diariamente nas páginas dos jornais. São eles:
A falta de entendimento de que narrar o cotidiano supõe compreender as ações
humanas dos envolvidos no processo comunicativo;
O papel do jornalismo (e do jornalista) não se restringe a informar, mas provocar
reflexão, contribuir com a elevação de consciência;
O processo jornalístico não se restringe às técnicas; estas são indissociáveis das
dimensões éticas e estéticas.
Ijuim diz que o jornalismo superficial e seco produzido pela maior parte dos veículos de
comunicação com intuito de agilizar o processo empobreceu nosso “faro” do real. O autor,
35
entretanto, identificou em pesquisa realizada de 2003 a 2006 algumas atitudes que revelam uma
possível mudança, luz no fim do túnel ou das páginas, para o jornalismo nos dias atuais.
Uma delas pode ser identificada a partir do texto de João Pereira Coutinho. Um artigo
com misto de preocupação e provocação, publicado em 8 de agosto de 2005, no site da Folha de
S.Paulo. Coutinho diz que a “salvação” do jornalismo apenas dar-se-á quando forem enterradas a
objetividade e a linguagem de laboratório. E argumenta:
Eu não quero apenas fatos. Eu não quero a mera repetição de fatos que ouvi na
noite anterior, disparados por uma boneca articulada no noticiário das oito. Eu
quero saber o que existe por dentro dos fatos. Uma guerra, uma vitória? Eu
quero saber quem são os derrotados, quem são os vitoriosos. Eu quero saber o
que sentem os derrotados, o que sentem os vitoriosos. Como se portam e
comportam. Eu quero ação e contradição. Palco. Iluminação. Eu quero ouvir. Eu
quero ouvir gente a falar. Eu quero uma voz humana que, como Dante, seja
capaz de descer às profundezas da nossa vida. E que regresse, ainda, para contar.
(COUTINHO, 2005)
O quase desabafo de Coutinho vai ao encontro do que pretende nos mostrar a crônica de
José Castello, publicada no jornal O Estado de S. Paulo, no dia 5 de outubro de 1997, com o
título “O repórter de três cabeças”. O texto também nos dá uma idéia de como funciona o
processo de produção jornalística nas redações brasileiras.
Tenho 20 anos e acabo de me tornar repórter policial. O chefe de redação, Sr. Azevedo,
me convoca para minha primeira reportagem. Numa favela carioca, moradores ateiam fogo a um
homem, acusado de matar a pauladas o filho adolescente.
O assassino, com braços e tórax derretidos pelo fogo, ocupa um leito de hospital público,
mas não corre risco de vida. Na favela, o coração destruído, sua mulher vela o filho morto.
Vou primeiro ao morto. É um crime pequeno, um episódio na vida de gente comum. No
barraco, encontro apenas um velho fotógrafo de A Notícia que – com frieza de um açougueiro
experiente – escolhe as imagens mais repugnantes.
“Meu marido é um cachorro”, a mulher grita. “Um bicho!” Olho o corpo do rapaz,
lustroso como um boneco de cera, a cabeça enrolada em bandagens imundas, o rosto borrado por
36
placas roxas. “Ele matou meu filho por nada”, a mulher continua. “Matou como se fosse um
rato”.
Encho-me de ódio. Ao chegar ao hospital para ouvir o assassino, pois as normas do
jornalismo exigem sempre os dois lados das histórias, trago o espírito arreganhado. Largado em
uma enfermaria obscura, o homem parece uma sombra de homem. Uma nódoa na paisagem. “Por
que o Sr. fez isso?”, pergunto, mal conseguindo encará-lo. O homem tem os olhos parados, como
pérolas sujas esquecidas no fundo de uma gaveta, e não para de tremer. Insisto: “Por que?” Ele
me olha e diz: “Ele me odiava porque eu sou só um lixeiro”. Ergo a voz e, em tom de reprimenda,
digo que isso não é motivo suficiente para matar.
O homem suspira. Depois diz: “Ele roubava meu dinheiro e, enquanto eu carregava lixo,
ia para a cama com minha mulher”. Julgo ouvir um ruído vago, mas tenebroso, como se o teto da
enfermaria começasse a desabar sobre mim. Não consigo dizer mais nada. Saio.
Na redação, o Sr. Azevedo ordena: “Quero uma história violenta, que tenha início, meio e
fim, pois precisamos de manchetes”.
Sento-me para escrever. O esquema clássico do noticiário policial me pede uma narrativa
reta, em que haja uma vítima, um assassino monstruoso e uma vítima infeliz. Começo a escrever,
mas não posso avançar. Sinto-me tonto. Vou ao banheiro e vomito.
De volta, escrevo uma primeira versão, a mais neutra que posso imaginar, em que os
vários pontos de vista se entrelaçam. Ofereço-a ao Sr. Azevedo. Ele lê e diz: “O que é isso, um
boletim de ocorrência? Quero uma história coerente, e não um relatório”.
Volto para a máquina e escrevo, agora, três versões da reportagem. Ajo como um repórter
que tivesse três cabeças. Na primeira, o homem é um cão danado que mata a pauladas um filho
ingênuo e infeliz. Na segunda, é um homem fraco que enlouquece, manipulado pelo filho
pervertido e pela mulher incestuosa. Tento uma terceira versão em que pai e filho são inocentes,
fantoches nas mãos de uma megera.
As três narrativas não cabem em uma história só e, no entanto, seria assim, na conjunção
contraditória das três, que eu estaria mais próximo da verdade. Mas, eu descubro, ela é o que
menos importa a meu chefe.
O Sr. Azevedo, com ar agastado, vem me cobrar a reportagem. “Nossa hora estourou”,
grita. Fecho os olhos, misturo as três páginas datilografadas, sorteio uma delas e, sem ver o
resultado, entrego-a. O Sr. Azevedo lê e diz: “Agora sim a história faz sentido”.
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Tomo o ônibus para casa. Levo no bolso as duas versões desprezadas. Amasso-as e jogo
pela janela. Deixo que o vento do Aterro do Flamengo bata com força em meu rosto, castigandome. Tento respirar, ainda sem sucesso, pois é como se uma rolha de decepção me trancasse o
peito. Não tenho coragem de ler o jornal no dia seguinte. Até hoje não sei qual de minhas três
versões foi publicada.
O texto de Castello evidencia o processo jornalístico e mostra que, afinal, o jornal é uma
empresa que vende uma mercadoria: a notícia. Pudemos observar na crônica de Castello que o
editor, Sr. Azevedo, pede para seu repórter uma notícia que dramatize, culpe alguém e absolva
outro. Tudo no intento de vender mais exemplares e anúncios. A história que poderia chegar mais
próximo da verdade não tem valor para o jornal. E, como percebe o jovem repórter na cobertura,
a melhor versão para se contar com detalhes e fidedignidade essa história não caberia em um
texto em forma de pirâmide.
Sobre imparcialidade e objetividade, Medina (1986, p.43), diz que:
[...] não se pode omitir também o real-imaginário do próprio repórter. A
recomendação expressa de que ele se comporte objetivamente tapa o sol com a
peneira. Por mais distanciamento que se imponha ao lidar com outro ser humano
– o entrevistado -, não se evitará nunca a interferência do eu subjetivo do
entrevistador, seja ele escudado na oposição de idéias ou no esforço para não se
“perverter” pela simpatia que poderia invadi-lo. Essa ilusão objetiva cai por terra
no primeiro momento da aproximação: ambos os oponentes, digamos assim, os
protagonistas de uma ação convencionalmente feita de estocadas, entrarão em
campo através de uma linguagem (verbal ou não-verbal), um modo de dizer,
comprometida com o real-imaginário de cada um.
Edvaldo Pereira Lima (2009, p. 100) diz que a neutralidade, imparcialidade ou verdade
absoluta são impraticáveis já que se deve levar em conta os fatores pessoais que cada repórter
carrega, tais como sua formação, sua cosmovisão, além, claro, dos ideais e dos planos
econômicos da empresa em que esse profissional trabalha.
Segundo Walter Benjamim (1985), o procedimento que pretende inibir o trabalho
jornalístico passa a burocratizar o processo e, então, torna-se um dos fatores responsáveis pela
morte das narrativas.
38
Em suma, o modelo praticado pela imprensa convencional inibe a criatividade do
jornalista, por isso alguns buscam sua libertação nos livros-reportagem, onde veem a
oportunidade de praticar o diálogo possível, participar efetivamente da história narrada,
humanizar os relatos e, enfim, ter uma visão ampliada sobre os conflitos da vida real. “Nessas
ocasiões, o jornalista-escritor atinge uma situação máxima de excelência no domínio da
entrevista: a de tecedor invisível da realidade, que salta, vívida, das páginas para o coração, a
mente e todo o aparato perceptivo do leitor”. (LIMA, 2009, p.107)
1.4. Cenário
É importante pensar que o jornalismo e os órgãos de imprensa em geral são frutos de seu
tempo. E analisando o atual momento vivido pelos meios de comunicação no Brasil percebemos
que uma forte crise atormenta as publicações jornalísticas no país. Essa crise diz respeito
principalmente à linguagem dos periódicos, quase todos presos a textos escritos sob fórmulas
reguladoras e responsáveis por resultados desanimadores, como produções quase idênticas e
enfadonhas.
Em conseqüência desse e de outros fatores a imprensa vem sofrendo com a forte
concorrência da TV e da Internet. Esses suportes que melhor se adequam ao tempo em que
vivemos, onde há uma ânsia demasiada por novas informações a todo tempo, colocam em cheque
as produções impressas.
Pensar sobre esse assunto nos motivou a pesquisar e escrever sobre maneiras para
melhorar nossas produções jornalísticas, tentar buscar respostas de como manter nossos leitores
acordados e interessados no texto.
O conteúdo do telejornal não muda muito daquilo que se lê pela Internet. Além das
imagens, em alguns casos o telejornal faz um maior aprofundamento em um caso ou outro, uma
reportagem especial , um comentário, etc. O que realmente importa disso tudo é que o leitor está
informado sobre acontecimentos de todos os cantos do planeta e, agora sim, pode dormir
tranqüilo. No outro dia, pela manhã...
39
O que se encontra naquele jornal que você gosta de ler enquanto toma um cafezinho? As
mesmas notícias! E, pior, tratadas da mesma maneira e, não raras vezes, copiadas de páginas da
Internet.
Do ponto de vista teórico e prático o jornalismo praticado sob tais condições torna-se um
campo muitas vezes restrito a produções pouco atentas às práticas cotidianas e culturais da
contemporaneidade. Dessa forma, o ato de narrar, burocratizado pelo convencionalismo do
discurso, torna-se limitado e limitador.
Além de tantos outros efeitos, esse padrão de comunicação, baseado em uma captação
superficial do real e representado por um texto construído em forma de pirâmide invertida, em
um lead sumário e com título também padronizado, não responde à demanda social. Pois,
segundo Cremilda Medina, “esta pretende, através dos meios de comunicação, se identificar,
compreender e participar do presente histórico em toda a sua dinâmica e complexidade” (2006, p.
4).
Para agravar ainda mais a situação, começamos o ano de 2009 com uma discussão em
pauta no STF (Supremo Tribunal Federal). A questão vem sendo discutida desde 2001 e teve
como objetivo decidir se o diploma para exercício da profissão de jornalista deveria ou não ser
obrigatório. A decisão aconteceu no dia 17 de junho deste ano. Por oito votos a um decretou-se
que o diploma de jornalismo não é mais obrigatório para a exercer da profissão.
Diante desse quadro nos surge uma pergunta: por que discutir a obrigatoriedade ou não
do diploma nesse momento?
Não é difícil pensar em uma resposta esclarecedora depois de nossa explanação a respeito
do processo de produção jornalística na imprensa convencional atualmente. Ora, o mecanismo de
produção de notícias baseado em um texto escrito em fórmula de pirâmide e atento apenas a
responder questões básicas sobre o fato é mais do que justificativa para que se pense sobre a
necessidade de alguém com nível de instrução superior para fazê-lo.
Escrever uma matéria, hoje, está longe de ser uma tarefa de apurar, pesquisar,
ouvir, entrevistar, pensar, criar, ousar e depois “brigar” com o texto, imaginando
seus caminhos, suas linhas de condução. Não se pensa mais na melhor maneira e
momento de apresentar uma idéia, na história ou no personagem, nas relações e
interconexões entre os fatos e suas causas, em conseqüências e desdobramentos,
no “abre” ou introdução da reportagem, de onde quero sair e aonde desejo
chegar, qual a mensagem que se pretende passar, qual a margem de interlocução
que deixamos para o leitor, como podemos criar e escrever sem que sejamos
40
autoritários ou donos da verdade. Não se pensa em coesão e articulação, em
como saltar de um parágrafo a outro sem trancos ou rupturas de narrativa, em
ritmo ou fluência, não se reserva espaço para a criatividade e a ousadia.
(BICUDO, Pluricom, 2008)
Fazer jornalismo, hoje, se levarmos em consideração o que foi discutido até aqui a
respeito da superficialidade da cobertura e dos mecanismos criados com a chegada da fórmula
piramidal e do lead, é tarefa fácil. Para que, então, alguém com diploma para fazê-lo? É claro
que outras justificativas também foram apresentadas, porém acreditamos que esse fator foi
essencial para que se chegasse a tal ponto.
Antes de chegarmos ao fim deste primeiro capítulo gostaríamos de propor um exercício
para tentarmos exemplificar de maneira objetiva a diferença entre uma cobertura convencional e
outra humanizada, comprometida com a sociedade.
Esse exercício foi proposto por Franklin Martins no livro Jornalismo Político, publicado
em 2005, pela editora Contexto.
O que prende mais a atenção do leitor e informa melhor?
a) Uma notícia que comece assim: “Cerca de 250 pessoas morreram
ontem na costa oriental da Guatemala, depois da passagem do furacão
Flora, que varreu a região com ventos de mais de 150 Km por hora,
deixando aproximadamente 50 mil desabrigados”?
b) Ou outra que comece assim: “Maria Alonso passou a tarde de ontem
procurando seus dois filhos, desaparecidos depois que o furacão Flora
passou pela costa oriental da Guatemala, com ventos de mais de 250 Km
por hora. Sua busca terminou no começo da noite, quando os bombeiros
encontraram os corpos das crianças, soterrados nos escombros da pequena
escola de San Cristobal. Ao reconhecer os filhos, Maria olhou para o
céu...”? (2005, p. 111)
O lado humano da matéria B certamente levaria o leitor até o fim da matéria, isso
porque há uma identificação, participação dele com a narrativa. Essa relação que o autor
consegue criar com o leitor aparece concretamente no texto quando se evidencia a importância
dos personagens da história. No exemplo de Martins, a humanização fica clara quando o autor
41
opta por mostrar o drama de Maria Alonso na procura de seus filhos a evidenciar os números
que envolveram a passagem do furacão Flora.
A realidade de boa parte de nossa imprensa, porém, é outra. O leitor é deixado para
segundo plano e não se sente instigado a ler. Mas esse cenário pode e tem que mudar.
O que estamos tentando propor é que o jornalismo contemporâneo passa por uma
indiscutível crise, sobretudo no impresso. A globalização tornou tudo muito rápido, próximo,
superficial e efêmero. E o jornalismo parece “ter entrado na onda”. O valor do ser humano
parece ter sido esquecido, como se este não fosse a parte essencial de qualquer fato. Nas
matérias de jornais diários o que se evidencia são números, dados. Na cobertura de alguma
tragédia, por exemplo, veículos brigam por furos, por novos números, esquecendo-se de
evidenciar que esses números representam vidas de pessoas. A recorrência ao chamado
fontismo também é outro fator importante para se destacar, pois desta maneira, ouvindo apenas
especialistas, doutores, professores, etc., evidencia-se a exclusão daqueles que são ou deveriam
ser os maiores protagonistas das matérias: as pessoas comuns. Essas, quando muito, ganham
espaço para meia dúzia de palavras editadas e jogadas entre aspas.
Mas, no meio dessa crise toda, é que se encaixa o jornalismo literário. A opção de
cobertura humanizada, com textos diferenciados, nos parece ser um bom aliado para as
produções do impresso, por exemplo, na concorrência com outros suportes como a TV e a
Internet. Em um momento onde as problemáticas no discurso emperram o crescimento dos
jornais, o estilo de cobertura que busca inspiração na literatura seria um diferencial importante
para a o aumento nos campos quali e quantitativo.
42
43
CAPÍTULO II
New Journalism e os pilares do Jornalismo Literário
2.1. Histórico e contexto
Neste capítulo pretendemos adentrar um pouco mais em nossa proposta. Falar de
Jornalismo Literário (J.L) e suas principais características. E, ainda, enfatizar as diferenças entre
o estilo de cobertura convencional e o literário. Para tanto, utilizamos alguns exemplos práticos,
boas histórias. Dessa maneira começaremos a evidenciar o estilo de cobertura que consideramos
necessária e imprescindível para que o jornalismo possa vislumbrar dias melhores. Cobertura essa
que a revista Realidade praticou durante os últimos anos da década de 60 e início dos anos 70,
que alguns bons escritores de não-ficção utilizaram e utilizam para contar suas histórias.
E falar de Jornalismo Literário sem ao menos dar uma “passadinha” pelos Estados Unidos
seria uma idéia não muito acertada. Esse estilo de cobertura teve seu ápice na década de 1960,
onde foi denominado New Journalism. O período é bastante sugestivo já que a população norteamericana enfrentava um período de grande transformação social, comportamental e ainda no
plano artístico. Manifestações contra-culturais e hippies buscavam alternativas para mudar o
estilo de vida. A juventude questionava tudo, experimentava opções alternativas e ousadas de
vida, tais como liberação sexual, drogas, filosofia, rejeição ao serviço militar obrigatório etc. O
cinema apresentou mudanças significativas em sua forma de expressão, passando a rejeitar as
fórmulas hollywoodianas. E as artes e a música também sofreram alterações com os movimentos.
Edvaldo Pereira Lima (2009, p. 193-194.) comenta sobre o momento vivido pelos norteamericanos dando-nos exemplos práticos:
O psicodelismo grassava, e um desvairado professor da Califórnia desafia as
autoridades para poder experimentar, sob certo controle científico, os efeitos do
LSD. Timothy Leary. Bandos de drogados saíam em seus easy riders – alusão
ao filme Sem destino, com Peter Fonda, Dennis Hoper e Jack Nicholson,
lançando-o ao estrelato como o melhor personificador do anti-herói cínico, que
substituía, para essa geração revisionista, os heróis canastrões de Hollywood,
tipo John Wayne - , fazendo seus happenings. E jovens, para o horror dos tios e
44
pais e avôs que tinham honrado a bandeira do Tio Sam na luta contra o nazismo
ou no embate do Pacífico, rasgavam seus certificados de convocação militar,
desertavam para o Canadá, recusavam-se a combater no Vietnã.
O New Journalism se apresenta neste cenário, tendo como uma de suas características a
captação do real a partir de um mergulho de cabeça no sensual, no sensório, com intuito de
recriar e reproduzir fielmente o que se passava na vida dos norte-americanos.
A visibilidade que o jornalismo consegue nesse momento também se deve ao fato de os
romancistas não terem se aproveitado de toda essa efervescência para compor seus livros. Para
Tom Wolfe (2005, p. 51-53) o cenário não mobilizou os romancistas, pois estes tinham se
afastado, desde após a Segunda Guerra, do instrumental adequado para a abordagem de todo esse
fenômeno: o realismo social.
Wolfe fala um pouco sobre o cenário e o presente deixado pelos romancistas aos
jornalistas da época:
Quando cheguei a Nova York no começo dos anos 60, não podia acreditar no
cenário que via diante de mim. Nova York era um pandemônio com um grande
sorriso. Entre as pessoas endinheiradas – e elas pareciam se multiplicar como
moscas – era a época mais maluca, mais pirada desde os anos 20...um universo
de cremosas gordinhas modernetes de 45 anos com olhos amendoados na tábua
de miúdos da cara usando calças de cintura baixa, minissaias, olhos egípcios, as
costeletas, as botas, as bocas-de-sino, as contas, dançando o watusi e o Funky
Broadway, sacudindo, sorrindo e sacudindo até o amanhecer ou a desidratação, o
que viesse primeiro.
Então, os romancistas tinham tido a gentileza de deixar para os nossos rapazes
um corpo de material bem bonzinho: toda a sociedade americana, na verdade. Só
faltava saber se os escritores de revistas conseguiriam dominar, na não-ficção, as
técnicas que deram tamanho poder ao romance do realismo social...
E os jornalistas deram conta do recado. Aos poucos foram mostrando suas armas e textos
bem escritos, fruto da imersão intensa no real, na vida das pessoas e personagens. Começaram em
jornais como Herald Tribune, Daily News, The New York Times; alastraram-se para as revistas
semanais como New York Herald Tribune, The New Yorker e Esquire; e chegaram ao estrelato
narrativo com a publicação de livros como, por exemplo, A Sangue Frio. A obra de Truman
Capote foi a de maior sucesso. Lançado em 1966, o livro revela as investigações do jornalista
sobre a chacina de uma família de fazendeiros do meio-oeste americano; Além de outros títulos
45
como O exército da noite, de Norman Mailer, Dez dias que abalaram o mundo, de John Reed, O
Reino e o Poder: uma história do novayorkino, de Gay Talese.
Para se opor à cobertura jornalística refém de fatos e verdades, a corrente do new
journalism desafia os padrões pré-estabelecidos e propõe um resgate à tradição do jornalismo
humanizado.
Edvaldo Pereira Lima (2009, p.191) , diz que o período foi bastante oportuno. Era a
chance “que o jornalismo poderia ter para se igualar, em qualidade narrativa, à literatura”. Para
isso Lima diz que era essencial que o jornalismo sofisticasse seu instrumental de expressão e
elevasse seu potencial de captação do real. Tudo isso sem perder sua especificidade. E o new
journalism se encarregou de dar uma boa ajuda para que isso se realizasse.
O New Journalism conseguiu fazer nessa última metade do século XX um resgate da
tradição do jornalismo literário. Tom Wolfe, considerado por alguns autores como o pai da
corrente (que ele se recusa a chamar de movimento), revela em The New Journalism (1973) que
não há outra forma de retratar o real senão com cor, vivacidade, presença, inserção do jornalista
na pele de seus personagens, sentindo e reproduzindo todas as emoções do ambiente.
Para Wolfe (1973, p. 26-27) o jornalismo passa por uma excitação artística nesse período.
E o momento vivido pelo mundo e, sobretudo pelos americanos nessa época, foi responsável por
essa excitação, trazendo para a comunicação um jornalismo mais dinâmico, ousado, expressivo e
aprofundado. A sociedade passou, então, a conhecer e a entender a vida das pessoas durante esse
período a partir de um jornalismo revigorado, com narrativas de histórias reais.
Aqui estava uma safra de jornalistas que tinha a cara-de-pau de se meter em
qualquer recinto, até nas sociedades fechadas, e agarrar-se como desesperados à
vida. Um maravilhoso maníaco chamado John Sack convenceu o exército a
deixá-lo integrar uma companhia de infantaria em Fort Dix, a companhia M, da
1ª Brigada de Treinamento de Infantaria Avançada – não como recruta, mas
como repórter – e passar todo o treinamento com eles e depois ir para o Vietnã, e
para a batalha. O resultado foi um livro chamado M (que apareceu primeiro em
Squire), um Catch 22 de não ficção, e, no meu entender, o melhor de qualquer
gênero publicado sobre a guerra. George Plimpton foi treinar com um time de
futebol (americano) profissional, o Detroit Lions, no papel de um repórter que
jogava na posição de quarto-zagueiro, morava com os jogadores, treinava com
eles e finalmente disputou de fato uma partida para eles – tudo para escrever
Paper Lion. Assim como o livro de Capote (A sangue frio) Paper Lion foi lido
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por todo tipo de gente e talvez tenha sido o maior impacto literário de qualquer
escrito sobre esportes desde os contos de Ring Lardner. Mas o prêmio mais
cobiçado dos escritores free-lancers daquele ano foi para um obscuro jornalista
da Califórnia chamado Hunter Thompson, que se “enturmou” com os Anjos do
Inferno por dezoito meses – como repórter, não como integrante, o que teria sido
mais seguro – a fim de escrever Hell’s Angels: the strange and terrible saga of
the outlow motorcycle gang. Os anjos fizeram o último capítulo por ele, ao
deixarem-no meio morto de pancada numa estalagem a cinqüenta milhas de
Santa Rosa. Por todo o livro, Thompson buscara o insight psicológico que
resumisse tudo o que ele havia visto, o aperçu único e dourado, e enquanto jazia
no chão cuspindo sangue e dentes, o que procurava há muito veio-lhe num
brilhante instantâneo do coração das trevas: Exterminem os brutos!
Na busca da melhor maneira para realizar a cobertura de todos os acontecimentos da
época os jornalistas norte-americanos usaram como fonte inspiradora o realismo social e alguns
de seus instrumentos de captação, utilizados outrora por Balzac, Fielding, Smollett, Gogol e
Dickens. Para Wolfe (2005, p. 53-54), os jornalistas aprenderam do nada, por intuição,
experiência e erro, as técnicas que deram ao romance realista seu poder único, “conhecido entre
outras coisas como seu ‘imediatismo’, sua ‘realidade concreta’, seu ‘envolvimento emocional’,
sua qualidade ‘absorvente’ ou ‘fascinante’”.
O básico era a construção cena-a-cena, contar a história passando de cena para
cena e recorrendo o mínimo possível à mera narrativa histórica. Daí os feitos de
reportagem às vezes extraordinários que os novos jornalistas empreendiam: para
poder testemunhar de fato as cenas da vida das outras pessoas no momento em
que ocorriam – registrando o diálogo completo, o que constituía o recurso
número 2. Os escritores de revista, assim como os primeiros romancistas,
aprenderam por tentativa e erro algo que desde então tem sido demonstrado em
estudos acadêmicos: especificamente, que o diálogo realista envolve o leitor
mais completamente do que qualquer outro recurso. Ele também estabelece e
define o personagem mais depressa e com mais eficiência do que qualquer outro
recurso. (Dickens tem um jeito de fixar o personagem em nossa mente de modo
que se tem a sensação de que ele descreveu cada milímetro de sua aparência – e,
quando a gente se dá o trabalho de voltar atrás, descobre que na verdade ele se
desincumbiu da descrição física em duas ou três frases, o resto conseguiu no
diálogo.) Os jornalistas trabalhavam o diálogo em sua mais plena e mais
completamente reveladora forma no mesmo momento em que os romancistas o
eliminavam, usando o diálogo de maneiras cada vez mais crípticas, estranhas e
curiosamente abstratas.
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O jornalismo desta época mostrava, acima de tudo, a presença e o envolvimento do
repórter com a história narrada. O objetivo era inovar, despersonalizar. Cada reportagem era
como uma história dos mais completos contos, marcada e recriada a partir de impressões, pontos
de vista, descrição de comportamentos, de estados psicológicos e, tudo isso reunido em uma
narrativa que fica a meio caminho entre a narrativa ficcional e a narrativa jornalística.
2.2. Descrição cena-a-cena e Diálogos
Um texto de Gay Talese, autor norte-americano, exemplifica o que Wolfe comenta sobre
construção de cenas e diálogos. O texto versa sobre um momento na vida do ex-campeão mundial
de peso-pesado, Joe Louis. A matéria mostra num primeiro momento Louis chegando de viagem.
E termina narrando a cena onde a segunda mulher do boxeador, Rose Morgan, assiste em casa,
com amigos e o atual marido, ao tape da luta entre Louis e Billy Conn.
Parte 1
“Oi, doçura!” Joe Louis chamou a esposa, localizando-a esperando por
ele, no aeroporto de Los Angeles.
Ela sorriu, caminhou em sua direção e estava para espichar-se sobre os
pés para beijá-lo – mas parou, de repente.
“Joe”, disse ela, “Cadê sua gravata?”
“Ah, docinho”, disse ele, dando de ombros, “passei a noite toda fora em
Nova York e não tive tempo...”
“A noite toda!”, interrompeu ela. “Quando você está aqui, tudo o que faz
é dormir, dormir, dormir”.
“Docinho”, disse Joe Louis com um sorriso cansado, “sou um véio”.
“Sim”, concordou ela, “mas quando você vai para Nova York tenta ser
jovem de novo”.
Parte 2
Rose parecia entusiasmada em ver Joe no auge da forma e toda vez que
um murro de Louis golpeava Conn, ela fazia “Pann!” (soco). “Pann”
(soco). “Pann!” (soco).
Billy Conn impressionava bem, na luta, mas, quando a tela anunciou o
assalto 13, alguém disse:
“É aqui que Conn vai cometer seu erro, vai querer sair na força bruta pra
cima do Joe Louis”. O marido de Rose ficou quieto, saboreando seu
scotch.
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Quando os golpes combinados de Joe começaram a encaixar, Rose
começou, “Pann! Paann!”, e então o corpo pálido de Conn começou a cair
no tablado.
Billy Conn começou lentamente a se levantar. O juiz contava. Suspendeu
uma perna, depois as duas, depois já estava de pé – mas o juiz o forçou de
volta. Era tarde demais.
E então, pela primeira vez, do fundo da sala, subindo, como em ondas
crescentes, desde as felpudas almofadas do sofá, surge a voz do atual
marido – esta droga de Joe Louis outra vez.
“Acho que o Conn levantou a tempo”, disse, “mas o juiz não o deixou
continuar”.
Rose Morgan não disse nada – apenas tomou o resto de sua bebida. (apud.
LIMA, 2009, p.202)
O texto de Talese é fruto de uma observação intensa, com mergulho do repórter no
contexto do fato, da descrição de detalhes como o soco no ar da ex-esposa (Pann!), da presença
efetiva dos diálogos dos personagens (“Oi, docinho!”). Talese consegue levar-nos até os
personagens, apresentar-nos a eles e nos fazer participar da história. Não é difícil buscar na
memória elementos que facilitem a compreensão da cena, que nos possibilitem remontar passo a
passo os acontecimentos dessa história. E neste texto o que nos ajuda a chegar à melhor
compreensão da história é o diálogo intenso que encontramos ali.
O JL busca o resgate de narrativas desse âmbito nas publicações jornalísticas do
cotidiano. Não queremos dizer com nosso estudo que os jornais de maneira geral devam adotar o
jornalismo literário em totalidade nas suas edições. Propomos, porém, que busquem alguns
espaços para que a reportagem volte a figurar nas principais páginas das publicações brasileiras.
Algumas histórias merecem e necessitam de uma cobertura mais atenta às pessoas
envolvidas no fato, ao ambiente em que isso se passa, às conseqüências que isso pode causar e,
nem sempre, o repórter vai conseguir ficar imune, pois irá viver na pele os muitos conflitos
humanos.
Ainda sobre a importância da descrição de cenas e diálogos, Tom Wolfe (2005, p. 78)
lembra-nos que o impresso, diferente do cinema e do teatro, trata-se de um meio indireto, que não
cria imagens ou emoções, mas trabalha (ou deveria) com o estímulo das memórias do leitor.
Por exemplo, escritores que descrevem cenas de bebedeira raramente tentam
descrever o estado da bebedeira em si. Eles contam com o fato de o leitor já ter
49
estado bêbado em algum momento da vida. Dizem apenas: “Fulano estava
bêbado – e, bem, você sabe como é.
É importante destacar que descrições muito detalhadas podem se anular. Wolfe diz que os
escritores tendem a fornecer apenas um esboço de desenho animado sobre seus personagens.
No livro ‘Um dia na vida de Ivan Denisovitch’, Alexander Soljeinitsin fala: “Ivã
Grande, um sargento alto, magro, de olhos pretos. A primeira vez que se via a
cara dele era de meter medo...”.Ou: “Havia um ar de vazio na cara amassada e
sem pêlos do tártaro”. (id.)
Pronto. Isso é tudo o que o escritor-jornalista precisa descrever sobre seu personagem. O
resto ficará a cargo do leitor que, feito o convite, busca recursos em suas memórias para
completar o rosto do general.
Tom Wolfe (2005, p. 79) revela ainda que essa tarefa básica de estimular as memórias do
leitor tem vantagens “únicas e bastante maravilhosas”.
Se os estudiosos do cérebro estiverem certos, a memória humana parece ser feita
de um conjunto de dados significativos – ao contrário do que pretendia aquela
teoria mecanicista mais antiga, de que ela era composta de dados sem sentido
atribuído pela mente.
[...] A memória de uma pessoa é, aparentemente, composta de milhões desses
conjuntos, que funcionam com o mesmo princípio de um retrato falado. (2005,
p. 79)
Como exemplo podemos citar um texto de Jorge Caldeira sobre a final da Copa do Mundo
de 2002. O texto consegue como poucos estimular nossa memória, e por isso temos a impressão
de viajar junto com o autor. E serve para esclarecer uma dúvida constante entre os menos
esclarecidos sobre o tema: é possível utilizar o estilo de cobertura literário para diversas editorias,
inclusive no esporte. Veja:
Oliver Kahn começa seu movimento para defender o chute de Rivaldo. Abaixase para encaixar a bola no corpo. Mas ela não segue exatamente a trajetória
imaginada pelo goleiro alemão: apesar da distância, aquele chute era traiçoeiro
mesmo para um homem acostumado a repetir o gesto milhares de vezes. A bola
50
vem baixa,sem tocar o solo. Encontra o corpo de Kahn a meio caminho do chão;
em vez de bater contra o peito, escapa do braço e toca no braço esquerdo do
goleiro; foge lentamente da tentativa desesperada de sua mão esquerda para
contê-la. Enquanto o corpo completa sua queda inexorável, apenas seus olhos
podem subir, e o que eles vêem faz sua face adquirir uma expressão de
desespero. A imagem de Ronaldo cresce rápido, correndo na direção da bola que
rola lentamente após escapar de seu controle. A partir daí, segue-se uma rotina
implacável: ele tenta reordenar seus movimentos o mais depressa possível,
ganhando o impulso que puder na fração de segundo em que a gravidade
completa seu trabalho de mandá-lo ao chão, para tentar cobrir algum espaço do
chute. Mas está apenas no início do caminho quando o centroavante toca a bola
para dentro do gol, aos 22 minutos do segundo tempo. ( CALDEIRA, 2002, p. 9)
O texto de Caldeira é também um misto de criatividade e beleza. Mostra ainda que é
possível ser criativo, escrever bons textos, em qualquer editoria do jornalismo, seja em esportes,
cultura, política ou outras. Mostra que as boas histórias estão por aí, em todo lugar. Basta o
jornalista estar atento para apurá-las e contá-las.
2.3. Simbolismo e Estilo próprio
A descrição dos personagens da história, o registro de gestos, hábitos, maneiras,
costumes, peças de decoração e vestuário, modos de comportamento, são detalhes não menos
importantes para a composição de textos envolventes, que prendem o leitor. O recurso do uso de
detalhes simbólicos nos ajudam a identificar o status de vida de um personagem, por exemplo.
Wolfe (2005, p. 55-56) conta que Balzac fazia o uso de símbolos de maneira a atrair os leitores,
inseri-los na história.
Eis o que Balzac fazia sempre e sempre. Antes de apresentar o leitor a monsieur
e madame Marneffe em pessoa (n’A prima Bette), ele o leva à sala dos dois e
realiza uma autópsia social: “A mobília coberta de veludo de algodão desbotado,
as estatuetas de gesso fingindo bronze florentinos, o candelabro mal entalhado
com seus anéis de vidro moldado, o tapete, uma pechincha cujo preço baixo se
explicou tarde demais na quantidade de algodão que contém, agora visível a
olho nu – tudo na sala, até as cortinas (que mostravam que a bela aparência de
damasco de lã dura apenas três anos)”.
51
Os jornalistas dessa época de ouro do jornalismo norte-americano conseguiram atrair seus
leitores para as páginas de jornais e revistas, pois saiam à caça de boas histórias, passavam dias,
semanas ou meses com seus personagens e compunham seus textos usando todos esses recursos
advindos do realismo social. E botavam ali uma pitada de seu estilo próprio. Uns abusavam dos
diálogos, outros de descrições, alguns (como Wolfe) do uso de pontos de exclamação, enfim,
tudo no intento de chamar a atenção do leitor.
Veja o início de uma matéria de Tom Wolfe, por exemplo:
“He-e-e-e-e-e-e-e-e-e-e-e-e-e-e-e-e-e-e-e-e-e-e-e-e-e-e-e-eriiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii”,
gritam as presidiárias da Casa de Detenção de Mulheres de Greenwich Village
quando lá embaixo, no cruzamento conhecido como Céu dos Loucos, passam os
rapazes. (2005, p. 240)
Que leitor consegue “passar batido” por um texto que começa assim? Wolfe conta que as
presidiárias costumavam gritar para os rapazes que passavam na rua, em frente ao presídio. E
gritavam todos os nomes masculinos que podiam imaginar – Bob!, Joe!, Jack!, Jimmy! – até
acharem o nome certo e o tal cara olhar para cima e responder. Para o autor, o período também
permitiu essas inovações e variações com estilos diferentes de escrita, já que não chamava muita
atenção dos jornalistas mais conservadores que não admitiam tais inovações no campo
jornalístico. O espaço que conseguiam (os jornalistas) para tais façanhas eram os suplementos
dominicais, onde não se tinha muita obrigação de seguir os padrões do jornalês americano.
É claro que a qualidade dos textos e das reportagens em geral também está ligada ao
repertório de cada jornalista. Porém, guardadas as devidas proporções, com um pouco de ousadia
e criatividade é possível compor textos com qualidades semelhantes a estes ou, ao menos,
melhores do que os encontrados na imprensa diária.
Em suma, o new journalism adequou alguns recursos para compor um texto jornalístico
confluente com a literatura e a realidade. Obtinha-se a valorização do ponto de vista de quem
estava diretamente ligado e envolvido com os movimentos desse período, dando, assim, voz a
quem a imprensa racionalista nega.
Os “novos jornalistas” primavam pela observação intensa, próxima. Partiam a campo e
vivenciavam junto com seus personagens todos os movimentos contra culturais da época.
Mergulhavam de corpo e alma nos conflitos humanos e voltavam para contar em um texto com
52
sabor, cor, cheiro. Botavam em seus textos mais do que respostas de perguntas como O que?
Quem? Quando? Onde? Por quê? Como?. Traziam respostas que ajudavam seus leitores a viajar
junto no texto, como, por exemplo, Com que roupa?, Em que contexto?, Quais os hábitos dos
personagens da história? Como estes se relacionam com seus filhos e funcionários?, etc. E para
mostrar essa realidade da maneira mais fidedigna possível “topavam qualquer parada”. Quando
queriam mostrar como era a vida de um gari de Nova York, por exemplo, passavam a trabalhar
como tal. Para descrever a vida de bombeiros nas cidades mais movimentadas dos Estados
Unidos ingressavam na corporação. Edvaldo Pereira Lima (2009, p. 195) lembra que “à
objetividade da captação linear, lógica, somava-se a subjetividade impregnada de impressões do
repórter, imerso da cabeça aos pés”. Tudo no intento de reportar melhor, de dar motivos para o
leitor ficar grudado nas páginas de sua reportagem até o fim.
Atrelado a isso, somava-se o estilo de cada jornalista. Que cada qual a sua maneira
tentavam brindar seus leitores com bons textos. Tom Wolfe (2005, p. 23-24) nos mostra que
desde o início do new journalism alguns bons jornalistas já demonstravam que era possível
mudar a cara dos jornais do país.
O Herald Tribune contratou Breslin (Jimmy) para fazer uma coluna local
“divertida”, que ajudasse a compensar um pouco o peso da página editorial,
paralisando vendedores de roncos como Walter Lippmann e Joseph Alsop. As
colunas de jornal tinham passado a ser um exemplo clássico da teoria de que as
organizações tendem a promover as pessoas aos seus próprios níveis de
incompetência. A prática normal era dar ao sujeito uma coluna como prêmio por
grandes serviços prestados como repórter. Dessa maneira, podiam perder um
bom repórter e ganhar um mau escritor. O arquétipo do colunista de jornal era
Lippmann. Durante 35 anos, Lippman parecia não fazer nada além de ingerir o
Times todas as manhãs, ruminá-lo ponderosamente durante alguns dias e depois
metodicamente defecá-lo na forma de uma gota de papa na testa de diversas
centenas de milhares de leitores de outros jornais nos dias seguintes. Que eu me
lembre, a única forma de reportagem que motivava Lippman era o ocasional
tapete vermelho da visita de um chefe de Estado, durante a qual tinha a
oportunidade de sentar em poltronas engalanadas, em salas com lambris, para
engolir as mentiras oficiais da celebridade em pessoa, em vez de lê-las no
Times. Porém, não tenho a intenção de tomar Lippman como exemplo. Ele só
fazia o que se esperava dele...
De qualquer modo, Breslin fez uma descoberta revolucionária. Descobriu que
era possível um colunista efetivamente sair do prédio, ir para a rua e fazer uma
reportagem com suas próprias e legítimas pernas. Breslin ia ao editor de Cidade
e perguntava que matérias e que tarefas estavam entrando, escolhia uma, saía,
deixava o prédio, cobria a história como repórter e escrevia a respeito em sua
coluna. Se a matéria era grande sua coluna começava na página 1 em vez de
começar dentro.
53
O que Wolfe nos mostra é que essa época foi mesmo um período bastante interessante
para o jornalismo. Foi um período em que alguns bons jornalistas conseguiram se sobressair,
mostrar o que poderiam fazer de bom para seus leitores. Foi um momento de boas inovações.
Revela ainda que fazer um bom jornalismo depende muito da vontade do próprio jornalista, deste
querer sair às ruas de olhos atentos, garimpar e contar boas histórias. E histórias é o que não
faltam. Wolfe usa Jimmy Breslin e Walter Lippmann para exemplificar dois perfis de jornalistas,
um que considera o jornalista ideal (Breslin) e outro que qualifica como “vendedor de roncos”.
Wolfe (2005, p. 25) conta sobre um de seus jornalistas preferidos, Jimmy Breslin. Fala de
sua infinita capacidade de sair às ruas pela manhã, voltar as quatro da tarde e escrever textos, não
raro, muito bons. “Nunca vi um homem que conseguisse escrever tão bem com um prazo diário”.
Veja agora um texto de Breslin, onde o jornalista conta sobre a condenação por extorsão
de um chefão caminhoneiro chamado Antony Provenzano. Perceba a preocupação do autor dessa
narrativa com os detalhes:
Não parecia uma manhã ruim, de modo algum. O chefão, Tony Provenzano, que
é um dos maiorais do Sindicato dos Caminhoneiros, andava de um lado para
outro no corredor externo de um tribunal federal em Newark, com um sorrisinho
no rosto, brincando com uma piteira branca entre os dedos.
“O dia hoje está bom para pescar”, disse Tony. “A gente devia sair e pegar um
anzol.”
Então esticou um pouco as pernas e foi até um sujeito grandão, chamado Jack,
que estava de terno cinza. Tony estendeu a mão esquerda de forma a jogar um
anzol para esse tal de Jack. O grande anel de diamante no dedinho de Tony
relampejou à luz que entrava pelas janelas altas do corredor. Tony então girou e
deu um soco no ombro de Jack com a mão direita.
“Sempre no ombro”, riu um dos sujeitos no corredor. “Tony está sempre batendo
no ombro de Jack”.(apud WOLFE, 2005, p. 25-26)
A matéria segue nessa batida, com algumas pessoas bajulando o chefão Tony Provenzano,
enquanto o sol explode em seu anel de diamante no dedinho. Dentro do tribunal, porém, a
história começa a mudar. O juiz passa-lhe um sermão daqueles de dar nó na garganta e o chefão,
agora, sua no lábio superior. O juiz o condena a sete anos de prisão. Provenzano fica a girar o
anel no dedinho. Breslin, então, encerra a matéria com uma cena onde o jovem promotor do caso
come escalopes fritos e salada de frutas num bandeijão. “Em suas mãos nada cintilava. O sujeito
54
que afundou Tony Provenzano nem ao menos tem um anel de diamante no dedinho”. (WOLFE,
2005, p. 25-26)
O texto de Breslin tem aparência de conto e, melhor, é história da vida real. Essa era a
grande vantagem que os novos jornalistas conquistaram em relação aos romancistas depois que
começaram a incorporar recursos da literatura em seus textos: contavam com o fato de
escreverem sobre fatos reais. Histórias reais com características de textos romanescos.
Voltando ao texto de Breslin, percebe-se a riqueza de detalhes que compõe a narrativa. O
sol adentrando às janelas e explodindo no anel de diamante no dedinho do chefão. Essa descrição
de Breslin é o seu convite a nós, leitores. O convite para que busquemos em nossa memória que
tipo de pessoa usa um anel de diamante. Para que criemos nosso Tony Provenzano e entremos
com ele na história. E mais. Por que ele fecha dizendo que o jovem promotor que afundou Tony
nem ao menos usava um anel de brilhantes no dedinho?
Dizia Walter Benjamim (1985, p. 200) que as narrativas “tem sempre em si, às vezes de
forma latente, uma dimensão utilitária. Essa atividade pode consistir seja num ensinamento
moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida - de qualquer
maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos”. (1985, p.200) E o que a história de
Breslin nos ensina? Simples: “de nada serve ter um anel de brilhantes e puxa-sacos ao seu lado te
bajulando, pois caso você não cumpra a lei pode ser mandado para cadeia até mesmo por um
jovem promotor.”
Edvaldo Pereira Lima (2009, p. 379) diz:
O simbolismo ajuda a consolidar na mente do leitor a síntese, a imagem, o
sentido de um acontecimento, pois se vale do discurso poético, do código visual.
Os significados que não estão evidentes pelos fatos eu preciso ter tirocínio para
entender, mesmo que o meu protagonista não consiga verbalizar.
Wolfe (2005, p.26) conta que Breslin criou o hábito de chegar ao local da cobertura muito
antes do evento principal, a fim de:
[...] coletar material por tras das câmeras, o jogo da sala de maquiagem, que lhe
permitia criar personagens. Parte de seu modus operandi era colher detalhes
“romanescos”, os anéis, a transpiração, os socos no ombro, e ele fazia isso com
mais habilidade que a maioria dos romancistas.
55
O jornalismo precisa de textos que tenham essas características, que levem o leitor a
imaginar uma cena, várias. No jornalismo impresso então, mais ainda. Para termos um exemplo,
pense em uma estrofe de qualquer música que você goste muito. Qualquer uma... Consegue
cantá-la se necessário? Pois bem, agora tente lembrar uma frase inteira de algum livro que você
também admire muito...
Mesmo que consiga, é mais difícil, não é? Os jornalistas precisam, portanto, compor
textos como música. Arte mesmo. No impresso, por se tratar de um meio indireto, essa tarefa é
ainda mais urgente. E, para tanto, pode fazer o uso do simbolismo, a partir da utilização, por
exemplo, de metáforas. Afinal, como já diziam os antigos mestres chineses: “uma imagem vale
mais que mil palavras”.
Em 1975 acontece uma importante luta de boxe em Kinshasa, capital do Zaire,
envolvendo um dos lutadores mais famosos de todos os tempos, o campeão mundial Muhammad
Ali, e o atual campeão da categoria peso-pesado na época, George Foreman. Muhammad Ali já
não está em sua melhor fase, já que teve seu direito de exercer a profissão cassado havia alguns
anos e, agora, voltava aos ringues. Foreman, também negro e alguns anos mais jovem defende o
título de campeão que Ali almeja.
Muitos jornalistas partem para a cobertura da luta que era considerada a “luta do século”.
E entre esses está Norman Mailer, um dos expoentes do new journalism. A “briga” se resume em:
um jovem campeão mundial querendo mostrar a que veio contra o grandalhão, e já não na melhor
das condições físicas, que busca em sua experiência de 20 anos como lutador, elementos que o
levem à vitória.
Outro destaque e, talvez um dos mais surpreendentes, é Mailer, com sua observação
impecável e minuciosa. O jornalista faz o uso de metáforas com extrema categoria em seu texto,
nos ajudando a imaginar a luta. Vale a pena ver um bom pedaço deste texto:
Para comemorar, atingiu Foreman com mais um direto de direita. Ao
longo das fileiras da imprensa, uma exclamação saltava de um lado a
outro: “Ele está batendo de direita”. Fazia sete anos que Ali não socava
com tal eloqüência. Campeões não mandam diretos de direita a outros
campeões. Não no primeiro assalto. Esse é o golpe mais difícil e mais
perigoso. Difícil de administrar e perigoso para quem o usa. Em quase
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todas as posições, a mão direita precisa deslocar-se mais do que a
esquerda, no mínimo trinta centímetros a mais. Boxeadores lidam com
centímetros.
No tempo gasto para a mão direita atravessar aquele espaço adicional,
alarmes soam no oponente, contra-ataques se iniciam. O adversário se
esquiva por sob a direita e arranca a cabeça do outro com a esquerda. De
modo que não é com freqüência que bons lutadores coloquem a direita à
frente quando enfrentam outro bom boxeador.
Não no primeiro round. Eles esperam. Preservam a mão direita. É o
símbolo de sua autoridade, pronto para punir a esquerda que chega
devagar demais. Joga-se a direita por cima de um jab; bloqueia-se um
gancho de esquerda com o antebraço direito e devolve o golpe num
direto. São máximas clássicas do boxe.
Todo comentarista de boxe as conhece. É de tais princípios que extraem
suas interpretações. São bons engenheiros em Indianápolis, mas Ali está a
caminho da Lua. Diretos de direita! Meus Deus!
No minuto seguinte, Ali usou contra Foreman uma combinação rara como
plutônio: o punho direito em riste, seguido de um gancho aberto de
esquerda. Spring-zing! Fizeram aqueles socos, um raio na cabeça, outro
raio na cabeça: a cada vez, Foreman arremetia numa fúria assassina, era
agarrado pelo pescoço e girado. Cada vez que era atingido, a ameaça que
representava se tornava mais palpável. Embora os golpes o
enlouquecessem, não o estavam enfraquecendo. A essa altura, outro
lutador já estaria cambaleando. Foreman meramente pareceu ainda mais
destrutivo.
Suas mãos não perderam a velocidade, suas mãos pareciam tão rápidas
quanto as de Ali (exceto quando era atingido) e em seu rosto desenvolviase um apetite assassino.
Há anos não era tratado com tanta falta de respeito. Não se via mais o
George amável das entrevistas coletivas. Havia clareza em sua vida. Ele
iria desmembrar Ali. À medida que ia sendo atingido e agarrado, atingido
e agarrado, um novo medo se espalhou pelas cadeiras do ringue. Foreman
era espantoso. Àquela altura Ali já o acertara com cerca de quinze bons
golpes na cabeça e não tinha sido atingido uma única vez. O que
aconteceria quando finalmente Foreman conseguisse pegar Ali? Nenhum
Peso-Pesado conseguiria manter a velocidade daqueles golpes, não
durante mais catorze rounds.
Mas o primeiro não tinha sequer terminado. No último minuto, tendo
forçado Ali e estando junto a ele, Foreman afastou-se e enviou um
uppercut de direita por entre as luvas de Ali, e depois mais um. O
segundo atravessou o topo da cabeça de Ali como uma lança. Os olhos de
Ali se elevaram consternados e ele segurou o braço direito de Foreman
com o seu esquerdo, apertou-o, agarrou-se.
Mesmo com o braço seguro, Foreman ainda estava disposto a enviar sua
boa direita de novo, o que fez. Quatro direitas pesadas e só meio
abafadas, contundentes como os golpes desferidos contra o saco, duas
57
contra a cabeça, depois duas no corpo, chocando-se contra Ali mesmo
seguro por este, e era evidente que os socos estavam doendo.
Ali saiu das cordas no abraço mais determinado de sua vida, as duas luvas
presas atrás da nuca de Foreman. Os brancos dos olhos de Ali exibiam o
aspecto vidrado de um soldado em combate que acaba de ver um braço
desmembrado voar pelo céu após uma explosão. Que tipo de monstro era
aquele? (1998, p. 157-158)
O uso de metáforas serve para que tenhamos idéia de intensidade, impacto, pois trabalha
com conteúdos imagéticos. No texto de Mailer, por exemplo, os socos viram raios na cabeça, o
lutador se transforma em monstro, o olhar do boxeador passa a ser como o olhar de um soldado
em um campo de batalha. Serve para que tenhamos uma melhor noção daquilo que o autor quer
expressar.
Edvaldo Pereira Lima (2009, p. 383) diz que o uso de recursos como esse são essenciais
em textos narrativos. E justifica dizendo que estes contêm mais do que palavras, contêm ainda:
[...] sinais artificiais de um código, a língua, organizado de uma maneira
previamente convencionada para que possamos nos comunicar – e traços
gráficos. Contêm cores, sabores, impressões, dimensões espaciais – largura,
altura, profundidade - , objetos, volumes. Pensamentos. Emoções. Por isso o
fazem vibrar. Por isso sensibilizam o seu sistema nervoso, estimulam sua mente,
tocam suas entranhas. Quando fazem com habilidade, você se interessa. Você se
encanta. Você é seduzido. Você aceita o convite, embarca na viagem. E lê o
texto com prazer. Até o fim.
O autor de jornalismo deve fazer isso, afinal de contas a vida real é cheia de imagens,
sons, cores, vibrações, cheiros. O jornalista deve perceber tudo à sua volta e contar com um texto
que consiga prender seu leitor. O que não é tarefa das mais fáceis, já que nós humanos tendemos
a ser bastante dispersos. Mas os textos com recursos como os que apresentamos anteriormente
conseguem cumprir essa árdua tarefa.
2.4. Humanização
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É disso que estamos falando. Jornalismo com sabor, conteúdo, ensinamento. Fruto de uma
observação intensa, caprichosa. Jornalismo de dar gosto de ler. O texto do jornalista mexicano
David Martín nos traz um belo exemplo de cobertura humana, compromissada, com participação
ativa dos personagens desta história:
Novembro apenas começava. Sem sentir, Juana Otiz despediu Irineo naquela
manhã de outono de 1983. Chamavam a Irineo Marin de El Chaguo, porque era
natural de Chahuites, Oaxaca, onde foi bóia-fria até que alguém lhe disse que
‘pegar peixe’ era uma forma simples de sair da miséria. Mudou-se para Puerto
Madero, em Chiapas, onde conheceu Juana e onde certamente saiu da miséria...
Naquela manhã soprava o ‘sul’, fresco e talvez demasiadamente cedo, quando os
barcos dos pescadores de tubarão já saíam do porto, rápidos, abrindo estrias com
ondas de espuma. El Chaguo havia tido dois dias excelentes de trabalho, 800 e
950 quilos de tubarão, e com isso poderia ajuntar para a entrada numa geladeira,
que tanto queria Juana Ortiz de Marin. Pilotava a Conti I, a todo vapor.
Dizem que Juana compreendeu tudo desde o momento que percebeu o cheiro de
gás. Estava em casa, uma choça de varas e folhas de palmeiras, de quatro por
cinco metros, aquela mesma tarde, preparando merenda: peixe frito, feijão,
moendo café; quando o cheiro de gás disparou-lhe um suspiro de terror: o vento
havia apagado a chama do fogareiro, um pé de vento que a golpeou e fugiu,
como estendendo um músculo; e Juana já estava, de pronto, caminhando para a
barra do novo porto. Escurecia, as rajadas açoitavam com grãos de areia, a
tormenta desatara-se. Em pouco tempo agruparam-se as mulheres, mães e
esposas de um punhado de homens que em alto-mar enfrentavam a súbita
tempestade. Olhavam-se com a pobre luz do crepúsculo, depois olhavam para o
horizonte plúmbeo; porque tudo o que podiam fazer nesta quinta-feira, 3 de
novembro, no que restava do dia, era olhar; olhar a bofetada do vento que se
intrometia nas anáguas da própria noite.. Chus Pinón Rodas e seu pai Florentino
consolavam as mulheres, davam-lhes ânimo; não tinham podido sair do porto,
aquela manhã, uma avaria no motor. “Não vão se afundar todos”, dizem que
Florentino Pinón disse, com seus anos de experiência, e tinha razão. Antes do
amanhecer voltou o primeiro barco, com três tripulantes: um deles devia ser
náufrago. E logo outros dois, e outro, e outros três... homens mudos que pisavam
o solo, com veneração inaudita.
Saiu o sol, haviam regressado muitas das 76 lanchas. Juana Ortiz dois meses de
casada tinha quando, sem mais, inaugurou sua viuvez com uma lágrima.
(CAMPO, 1987, p. 187)
Se a cobertura deste fato fosse realizada pela imprensa convencional, a riqueza literária
deste texto não poderia existir. Para exemplificar, vejamos como ficaria este texto nos moldes da
imprensa cotidiana:
59
Uma tempestade em alto-mar matou mais de 40 pescadores no último dia três de
novembro. Os trabalhadores de Puerto Madero, Chiapas, pescavam tubarões nesta região do
México e alguns deixaram esposa e filhos. Outros perderam suas embarcações, fonte de sustendo
das muitas famílias que moram na pequena cidade. Florentino Pinón, um dos poucos pescadores
a não participar da pescaria nesse dia devido a uma pane no motor de seu barco, disse que
tempestades como esta não são comuns nesta época do ano...
Claro está que a primeira narrativa exige maior dedicação do jornalista e do veículo para o
qual ele trabalha. Porém, as publicações teriam qualidades não alcançadas pela imprensa
tradicional, tais como à composição do texto, a apuração rigorosa (imprescindível no trabalho
jornalístico), a humanização e a inserção do leitor no fato narrado. O texto do mexicano David
Martín consegue estimular as memórias do receptor, criar imagens mentais que os conduzem a
um melhor entendimento e interesse pelo texto. Como vimos, o texto de Martín preza pela
humanização, por mostrar a realidade de pessoas comuns em suas diferentes vidas. Edvaldo
Pereira Lima (2009, p. 359) diz que esse importante pilar do jornalismo literário é essencial já
que:
Queremos antes de tudo descobrir o nosso semelhante em sua dimensão
humana real, com suas virtudes e franquezas, grandezas e limitações.
Precisamos lançar um olhar de identificação e projeção humana da nossa
própria condição nos nossos semelhantes, sejam celebridades ou pessoas
do cotidiano.
A humanização é um fator importante para a cobertura jornalística, pois não trata os seres
humanos como fontes, mas sim como personagens, protagonistas de histórias da vida real. O
jornalista literário sai às ruas em busca de histórias de pessoas de todo o tipo. Ouve sobre suas
vitórias e derrotas, alegrias e tristezas. E depois conta sobre esse universo com um texto vibrante,
levando seus leitores à reflexão. O leitor encontra na narrativa elementos que o ajudam a refletir
sobre sua própria vida, sobre os conflitos da humanidade.
Para Edvaldo Pereira Lima (2009, p. 138), as narrativas jornalísticas devem captar um
conjunto de acontecimentos no intento de envolver o leitor de forma a conduzi-lo a um novo
patamar de compreensão do mundo e, ainda, de si mesmo, pelo espelho que encontra nos seus
semelhantes retratados pelo relato. E a narrativa de estilo literário permite esta reflexão do leitor a
60
partir do espelho que cita Lima, pois valoriza a participação dos personagens da vida real. Abre
espaço para o diálogo possível onde a vida deste agente é contada por ele num espaço amplo.
A composição do texto de cunho literário se torna outro atrativo para o leitor, na medida
em que torna possível a utilização de funções de linguagem como a expressiva, a conativa e a
poética, enquanto o texto da imprensa cotidiana utiliza apenas a função referencial. Em suma, o
texto de estilo literário pode utilizar elementos narrativos importados da literatura como diálogos,
descrições e fluxo de consciência, a fim de deixar o texto mais agradável para a leitura. Na
imprensa cotidiana a limitação imposta pelo processo racional impede que isso ocorra.
2.5. Imersão, exatidão de dados e fluxo de consciência
O propósito central dessa trupe dos anos sessenta era buscar a compreensão dos conflitos
sociais. E para cumprir esse objetivo não havia melhor coisa a fazer se não ir para as ruas para
ouvir, sentir, pegar, cheirar, enfim, mergulhar de cabeça no ambiente de vivência dos
personagens da história para “compreender suas motivações, seus valores, a origem possível de
determinadas atitudes, a conseqüência de uma postura.” (LIMA, 2009, p. 377) Com o new
journalism, é verdade, muitas vezes a imersão do repórter foi muito radical, extrapolando limites.
Como o caso do jornalista Hunter Thompson, que se “enturmou” com os Anjos do Inferno (um
grupo de motoqueiros) por dezoito meses para contar sobre seus hábitos e acabou se machucando
quando, em um belo dia, os integrantes do grupo lhe deram uma surra. Mas a imersão não precisa
ser radical assim.
Um texto de George St. George, citado por Edvaldo Pereira Lima em Páginas Ampliadas,
2009, exemplifica nossa reflexão. A reportagem conta de uma situação engraçada e peculiar que
acontece numa região remota da Ásia Central:
Atravessamos o riacho e iniciamos a subida da encosta do outro lado. Na minha
montaria, começava a sentir-me tão à vontade quanto um verdadeiro djigit, ou
seja, um rude montador de iaques. Nós havíamos percorrido uns 100 metros
(digo ‘nós’, mas na verdade o animal era o único encarregado da viagem, pois eu
nem sequer sabia o que fazer com a corda) quando, de repente, sem aviso prévio
o iaque mudou bruscamente de atitude. Deu uma violenta guinada para frente e
para baixo, e eu me estatelei no chão. Por um momento, fiquei atordoado. Ao
levantar-me, tremendo, vi meu iaque comendo calmamente um tufo de capim.
Então, entendi o que o motorista havia dito. Sendo um animal ruminante, capaz
61
de armazenar alimento para mastigá-lo mais tarde, o iaque não perde a
oportunidade de encher a boca. Eu faria provavelmente o mesmo, se fosse iaque.
- Mais uns dois ou três anos e você montará como um verdadeiro djigit - disseme o motorista. – Todos caem nas primeiras dez, vinte, trinta vezes. (apud
LIMA, 2009, p. 126)
A intenção de George não é apenas contar seu passeio, mas a partir disto mostrar a cultura
dessa região da Ásia, conhecer os djigits, seus costumes e crenças. Além das impressões do
próprio repórter, constam ali os diálogos dele com os nativos desta região, o que nos dá uma
dimensão daquele povo. Para isso é imprescindível que o repórter entre de cabeça na vida de seus
personagens, tente captar tudo o que percebe ser essencial para contar a história de vida de seus
personagens.
Os novos jornalistas tinham a vantagem na cobertura também por estarem sempre muito
próximos aos seus personagens, podendo assim observar muitas atitudes desses, relatar diálogos
completos e extensos, passar a compreender até alguns pensamentos dos protagonistas da
história. Essa proximidade permite que o autor de jornalismo literário mergulhe no mundo vivido
por seus personagens, compreenda suas ações e volte para contar com um texto rico.
Wolfe (2005, p. 203-205) escreveu um texto sobre o escritor Ken Kesey, um dos adeptos
até os ossos aos movimentos contraculturais norte-americanos. O autor de Um estranho no ninho
- que ficaria conhecido mais tarde com a versão do cinema estrelada por Jack Nicholson – havia
sido condenado a cinco anos de prisão por posse de maconha e, então, se escondera no México.
Mas, paranoicamente, Kesey via policiais por todo o lado em seu encalço. Tom Wolfe conseguiu,
a partir de entrevistas com o escritor, com seus colegas de fuga, por consultas a cartas que Kesey
escrevera a um amigo e ainda aos “tapes” que o próprio escritor gravara de si mesmo no
esconderijo, trabalhar o fluxo de consciência aliado ao uso do ponto de vista convencional - em
terceira pessoa. O texto faz parte de seu livro The eletric Kool- aid acid test, e nos mostra a
importância de se “grudar” ao seu personagem e só soltar quando tiver extraído dele elementos
suficientes para compreender e contar sua história. Veja alguns trechos do fluxo de consciência:
Mexa o rabo, Kesey. Mova-se. Suma. Dê no pé se manda desapareça
desintegre-se. Corra. Rrrrrrrrrrrum rumrumrumrumrum ou nós vamos ter
uma tardia reprise mexicana de cena no telhado de São Francisco e sentar
62
aqui com o motor girando e ver fascinados os tiras subindo uma vez mais
pra vir pegá você:
ELES ACABAM DE ABRIR A PORTA LÁ EMBAIXO,
ESQUADRINHADOR DE ROTOR, ASSIM VOCÊ TEM 45
SEGUNDOS, PRESUMINDO QUE ELES SEJAM LENTOS E
SORRATEIROS E SEGUROS DO QUE FAZEM.
Kesey está sentado num pequeno quarto, no andar superior da última casa
na praia, 80 dólares ao mês, na baía cor azul de paraíso Bandarias, em
Puerto Vallarta, na costa oeste do México, estado de Jalisco, a um passo
das desleixadas folhagens verdes da selva, onde floresce vicejante
vaporosa lascívia babuínica de paranóia. Kesey senta-se neste raquítico
quartinho superior com os cotovelos sobre a mesa e o antebraço
segurando perpendicularmente na palma da mão um espelhinho, de modo
que antebraço e espelho são assim como o suporte de um grande
retrovisor lateral de um caminhão e portando ele pode olhar para fora da
janela e vê-los mas eles não podem vê-lo:
VAMOS LÁ, HOMEM, VOCÊ PRECISA DE UMA CÓPIA DO
ROTEIRO PARA VER COMO ESTE FILME CONTINUA? VOCÊ
TEM 40 SEGUNDOS PARA ELES PEGAR VOCÊ.
Um Volkswagen passa na rua para lá e para cá, por nenhuma razão do
mundo, exceto pelo fato de que eles estão obviamente trabalhando com os
operários de araque da linha telefônica fora da janela e eles assobiam:
AÍ VÊM ELES OUTRA VEZ!
Assobiam do jeito bóia-fria cabeça-lenta parda mexicana nenhuma razão
do mundo, exceto que eles estão de tocaia, com o Volkswagen. Agora um
sedã bronze se aproxima pela rua, sem a placa comum, mas com uma
chapa branca – exatamente com a chapa da prisão – polícia e dois caras
sem paletó dentro, ambos de camisas brancas, portanto não são
prisioneiros.
UM OLHOU PARA TRÁS!
SE VOCÊ ESTIVESSE ASSISTINDO TUDO ISSO NO CINEMA
VOCÊ SABE QUAL SERIA SUA REAÇÃO COM A BOCA CHEIA DE
PIPOCA NA TERCEIRA FILA: “O QUE MAIS VOCÊ QUER, SEU
PATETA! SE MANDA DAÍ...”
Mas ele acaba de jogar cinco dexedrinas no estômago e o velho motor
está girando e rodando bem eufórico fascinado e um homem não pode
abandonar este aconchegante porto na baía azul de paraíso de Bandarias
com um riacho legal de fogo veloz nas veias. É uma pitoresca cenazinha
de tocaia que vê no espelho de mão. Ele pode incliná-lo e ver seu próprio
rosto carregado pelo esforço incliná-lo – um sinal! – um pombo, gordo e
macio, mergulha sob o sol minguado para dentro de um buraco num dos
postes; lar.
MAIS CAMINHÕES DE TELEFONE! DOIS ASSOBIOS ALTOS
DESTA VEZ – POR NENHUMA RAZÃO DO MUNDO EXCETO
PARA VIR PEGAR VOCÊ. VOCÊ TEM 35 SEGUNDOS. (apud
WOLFE, 2009)
63
Esse instrumento de captação foi altamente criticado por jornalistas mais conservadores e
céticos, que diziam que os diálogos e os fluxos de consciência poderiam ser facilmente
inventados. Wolfe negava as acusações e alegava que os críticos estavam aquém do que
criticavam. Mas essa discussão é relativa, já que a falta de ética no jornalismo pode ocorrer
também nas redações tradicionais. A virtude do novo jornalismo está relacionada ao fato de esses
jornalistas buscarem tudo o que os jornalistas convencionais buscavam para suas matérias e algo
a mais. Buscavam diferenciais que contribuíam na compreensão do fato por parte de seus leitores.
Outro pilar desse estilo criativo de cobertura jornalística é a exatidão e precisão de dados.
Pois como em qualquer estilo de matéria jornalística o texto literário precisa estar ancorado em
dados, precisa informar, e para isso precisa trazer elementos que nos levem a acreditar na
verossimilhança da matéria. E o JL faz isso com criatividade e de uma forma bem mais agradável
para o leitor. Veja nesse exemplo de Gay Talese, em Fama & Anonimato:
Uma senhora carnuda, com uma sacola de Macy’s numa das mãos e a
mão de seu filho na outra esperava impaciente no balcão de cachorroquente da Nedick’s.
Então olhou para o filho e perguntou:
“O que você quer, Marvin?”
“Hambúrguer”, respondeu ele
“Leve um cachorro-quente”, disse ela.
“Eu quero hambúrguer”, ele gritou
Plaft! Ela deu com a bolsa na cabeça dele.Ele gritou, mas ela insistiu:
“Coma um cachorro-quente”.
Marvin levou um cachorro-quente.
Ninguém na Nedick’s prestou atenção; estavam todos ocupados em se
empanturrar; além do mais, esse tipo de perturbação acontece quase todo
dia na Nedick’s, na Thirty-Fourth Street com a Broadway – a barraquinha
de cachorro-quente mais movimentada do mundo.
Todo dia, como observou o sr. Kyle, 300 mil pessoas passam por aquela
esquina.
E 8 mil vão (ou são empurrados) até a Nedick’s, onde passam uns quatro
minutos engolindo uma média de setecentos hambúrgueres, mil xícaras de
café, 5 mil cachorros-quente e 5500 refrescos de laranja. A Nedick’s
ocupa apenas 93 metros quadrados de terreno, e fica na esquina da R.H
Macy’s. “Mas a gente sempre diz que a Macy’s fica perto da Nedick’s”,
diz o presidente da cadeia Nedick’s, Lewis H. Phillips.
A barraquinha de cachorro-quente prospera naquela esquina desde 1947,
o faturamento anual é estimado em 400 mil dólares, com refrescos de
64
laranja a dez centavos, cachorros-quentes a vinte e hambúrgueres a
quarenta. Dia e noite, ouve-se o tilintar das caixas registradoras, salsichas
giram nos espetos, a laranjada jorra nos copos e o ar fica saturado de
ansiedade e do chiado da carne de porco, em meio a diálogos rápidos
entre fregueses e balconistas.
“Pois não, senhorita?”, pergunta a garçonete.
“Hambúrguer”, diz a freguesa.
“Hambúrguer!”, grita a garçonete para o cozinheiro.
“Hambúrguer saindo!”, grita de volta.
“Copos!”, avisa o lavador de pratos à garçonete. (2004, p. 93-94)
Como outra matéria jornalística, esta de Talese contém uma boa quantidade de dados. A
diferença está na forma como estas informações foram dispostas para o leitor. O trabalho
jornalístico se alia à criatividade e ousadia do autor de jornalismo literário e o resultado são
textos mais saborosos para o leitor. Textos diferenciados para que ele se sinta instigado a
permanecer ali até o fim da matéria. Talese abusa também dos diálogos, outro fator importante e
valorizado nesse estilo de cobertura, pois “diálogos tendem a ser envolventes ou atraentes para o
leitor” (WOLFE, 2005, p. 33).
Acreditamos que os elementos apresentados até aqui sejam suficientes para nos ajudar a
compreender um pouco sobre o que é o jornalismo literário, quais são seus principais pilares
(humanização, imersão, uso de diálogos e símbolos como metáforas, estilo próprio, voz autoral).
Que tenhamos trazido alguns bons exemplos do emprego desses elementos em textos
jornalísticos, ajudando-nos, assim, a termos uma idéia da diferença entre a cobertura humanizada
proposta pelo jornalismo literário e o estilo convencional, praticado pela imprensa racional
cotidiana.
2.6. Pesquisa norte-americana
Não queremos dizer com nosso estudo que o lead e a fórmula piramidal devam ser
banidos das páginas dos jornais brasileiros. Mas sim que as publicações sejam revistas e que as
boas histórias voltem a fazer parte de nossas publicações. Pensamos que as reportagens em série
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seriam um bom caminho para tentar brindar os leitores com algo diferenciado, algo a mais,
complementar. E possivelmente provocaria um aumento nas vendas, pois os leitores se sentiriam
instigados a comprar as próximas edições daquele jornal para ler a continuação daquela história.
Também no sentido de evidenciar as falhas cometidas pelos veículos de comunicação as
instituições americanas American Society of Newspapers Editors (www.asne.org), entidade que
congrega cerca de 900 editores-diretores de diários; a Newspaper Association of America
(www.naa.org), organização das empresas editoras de jornais nos Estados Unidos e no Canadá,
com mais de 2.000 jornais filiados, totalizando um negócio total de mais de US$ 57 bilhões; e o
Media Management Center (www.mediamanagementcenter.org), da Universidade Northwestern,
realizaram o “mais amplo estudo sobre leitura de jornais já realizado nos Estados Unidos”
(Readership Institute In: LIMA, 2005).
Edvaldo Pereira Lima (2005) publicou, em uma série de artigos sobre experiências
americanas com narrativas em jornais, todas as informações sobre essa pesquisa. O texto está
disponível no site da ABJL (Academia Brasileira de Jornalismo Literário).
E devido à importância dos resultados dessa pesquisa para nosso estudo, resolvemos
publicá-la na íntegra.
As três instituições se uniram para um ataque de fôlego ao problema,
lançando um programa de cinco anos de duração. Para viabilizar as
iniciativas, criaram, juntas, o Readership Institute (www.readershisp.org),
realizando como primeiro grande projeto o “Impact Study”, no ano 2000,
cuja principal meta é propor, a partir de uma criteriosa pesquisa de
campo, medidas para aumentar a leitura dos jornais.
Os pesquisadores selecionaram cem diários de cobertura geral de
diferentes tamanhos e condições de mercado. Mas adotam como padrão
mínimo tiragem de 10 mil exemplares, deixando de fora, porém, tanto
veículos de circulação nacional quanto jornais especializados. Nos
Estados Unidos e Canadá, examinaram mais de 74 mil matérias
publicadas e entrevistaram mais de 37 mil consumidores, entre leitores e
não-leitores de jornais.
A primeira constatação da pesquisa: 85% da população adulta norteamericana lê jornais. O comportamento de leitura varia do grau máximo –
leitura intensa e diária – ao ocasional, considerando-se a freqüência, o
tempo e a intensidade (critério baseado no número de matérias lidas e na
leitura completa ou não das mesmas).
Cruzando todos esses critérios, tendo como foco o jornal contemplado
como referência para a pesquisa com seus leitores, os analistas acabaram
classificando os leitores em oito categorias: “leitores completos” (21% da
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amostra, significando os que atingem marcas altas em todos os critérios
da pesquisa); e, no outro extremo, os “domingueiros leves” (7% da
amostra), pessoas que só lêem jornais nos domingos, mesmo assim
apenas parcialmente.
A partir dos demais resultados – que não estão disponibilizados
publicamente -, o estudo aponta oito itens estratégicos para melhorar a
leitura dos jornais, conquistar leitores e mantê-los fiéis: 1. aumentar o
conteúdo editorial de potencial de crescimento; 2. tornar o jornal mais
fácil de ler e de navegar; 3. elevar a qualidade dos serviços de
atendimento ao cliente; 4. destacar matérias locais de interesse específico;
5. melhorar o conteúdo publicitário; 6. construir uma marca corporativa
relevante para os leitores; 7. promover o conteúdo editorial do dia e
futuro; 8. edificar uma cultura corporativa construtiva e sintonizada com
o leitor (Readership Institute In: LIMA, 2005).
Os dois primeiros critérios são essencialmente importantes para a ratificação de nossa
pretensão com este trabalho, pois mostra o aumento do interesse e importância de narrativas de
estilo literário. E como revela o artigo de análise do Readership Institute, o “The Value of
Feature-style Writing”, o estudo fez uma descoberta provocante:
O estilo narrativo aumenta a satisfação do leitor na cobertura de uma variedade
grande de áreas, incluindo-se entre elas a política, os esportes, a ciência, a saúde,
o lar e a gastronomia. Além disso, uma boa quantidade de matérias no estilo
narrativo melhora a percepção da marca por parte do consumidor, tornando o
jornal mais fácil de ler. ( id.)
O estudo das instituições norte-americanas também contemplou o modo de escrita das
matérias estudadas. Constatou que 69% delas foram escritas no formato “piramidal”, 12% no
formato opinativo e 18% no estilo narrativo.
O estudo sugere, ainda, que os jornais utilizem mais o estilo narrativo na composição de
suas matérias. E justifica:
Embora a pirâmide invertida seja apropriada para a maioria das matérias, há
evidências fortes de que o aumento de matérias narrativas traz uma série ampla
de benefícios. Por exemplo, jornais que escrevem mais matérias de política no
estilo narrativo obtêm maior satisfação dos leitores quanto à cobertura da área.
Considerando que apenas 5% das matérias de política são escritas no estilo
narrativo, até mesmo uma única matéria semanal a mais nesse estilo produziria
grande diferença...
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[...] Além de aumentar a satisfação do leitor com relação à cobertura de áreas
especializadas, o estilo narrativo também melhora a percepção positiva da
marca. Os jornais que apresentam um número maior de matérias narrativas são
vistos como mais honestos, divertidos, inteligentes, presentes e mais afinados
com os valores dos leitores...
[...] As mulheres, em particular, respondem bem ao estilo narrativo. Essa
preferência é mais do que simplesmente um desejo de vê-lo em matérias de
áreas específicas como moda, saúde e viagem. Os jornais que incorporam o
estilo narrativo em uma variedade grande de áreas de cobertura são os que
mais se beneficiam da percepção da marca - (id) (grifo nosso).
No que tange à questão de o jornal ser mais fácil de ler, outro artigo indica que não basta
apenas mudar a diagramação ou disposição dos textos. Diz ser necessário escrever mais matérias
com temas como saúde, lar, gastronomia, moda e viagem, além de disponibilizar informações a
fim de buscar interação do leitor com o assunto.
A constatação mais importante do ponto de vista de nosso entendimento de que as
publicações jornalísticas são superficiais, porém, é a que diz que os jornais deveriam utilizar mais
matérias com estilo narrativo do que as de estilo piramidal em suas edições.
Pois:
O modo de escrita provou-se um importante meio de aumento da satisfação do
leitor com relação a áreas específicas de conteúdo editorial, assim como de
crescimento da percepção da marca. Os jornais que incorporam o estilo narrativo
em uma variedade de áreas temáticas são vistos como mais fáceis de ler.
(Readership Institute In: LIMA, 2005).
Os estudos mostraram, também, que o público americano quer se identificar mais com as
produções jornalísticas e, por isso, gostariam de ver nos jornais mais histórias de pessoas comuns,
que vivem em sua região ou cidade.
Acreditamos que o JL deva ser empregado não em totalidade nas publicações, mas como
um aliado para o aprofundamento de temas que mereçam maior atenção dos veículos. Um outro
artigo também disponibilizado por Lima (2005), de autoria de Warren Watson, produzido para a
American Society of Newspaper Editors – entidade que congrega os editores de jornais
americanos, em 1999, mostra que:
Narrativas despertam o interesse do leitor – e ajudam a vender jornais.
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Narrativas possibilitam contar histórias complicadas, permitindo aos leitores
descobrirem os sentidos de suas vidas.
Narrativas têm um profundo e positivo efeito sobre a motivação nas redações.
(id)
E, ainda, destaca a opinião de alguns editores de jornais que passaram a utilizar o JL em
suas publicações:
“O leitor vai arranjar tempo de sobra para ler o jornal, sim, se dermos a ele algo
de fato saboroso para ler” - comenta um editor, combatendo a velha “crença” de
que o leitor não tem tempo (e não gosta) para ler. A narrativa proporciona, para
os jornais, a tão almejada conectividade com o leitor, conforme relato de outro
editor: “A narrativa é uma forma natural de contar as coisas, que habita a nossa
consciência [...] (id)
Essas afirmações são fundamentais para minimizar o que se ouve muito nas redações de
jornais brasileiros sobre o tempo e a disposição do leitor em ler. Há um pré-conceito muito
grande por parte de alguns jornalistas mais conservadores que dizem que o leitor “não gosta de
ler” ou “não tem tempo para ler”. Se a história for boa o leitor vai arranjar um tempinho para ler.
Mas se for uma simples notícia que ele possivelmente já está cansado de ouvir...E vale lembrar
que as matérias de estilo literário não precisam ser necessariamente grandes, muito extensas. O
que “regula” o tamanho da matéria é a sua relevância para a sociedade. Sendo assim, é possível
escrever matérias narrativas em pouco espaço.
Propomos, portanto, o uso do jornalismo literário para publicações de reportagens
semanais. Com histórias de vida e assuntos que hoje não são lidos pela maioria dos leitores de
jornal como política e economia. As histórias de vida proporcionariam uma identificação dos
leitores com os personagens da vida real. E os temas como política e economia poderiam trazer
reflexões do ponto de vista prático, com intenção de criar uma maior compreensão por parte das
pessoas que não tem tanto conhecimento sobre essas áreas.
O que realmente motiva nosso estudo é o interesse por histórias que valorizem o lado
humano dos conflitos sociais. Portanto, tentamos evidenciar a importância do resgate das
narrativas de qualidade dentro das publicações brasileiras, entendendo que o jornalista deve ser
mais que reprodutor de meias verdades. Deve ser um contador de histórias.
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CAPÍTULO III
Novo Jornalismo no Brasil - Impresso
3.1. Passagem dos grandes escribas pelas páginas jornalísticas brasileiras
Jornalismo e literatura andam juntos há alguns anos. Autores renomados como Machado
de Assis, Manoel Antônio de Almeida, José de Alencar e Gonçalves Dias encontraram na época
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pioneira do jornalismo (1850) um meio de subsistência e aprimoramento de seu talento literário.
Há na verdade uma intersecção, uma aproximação e uma afastamento, “em particular desde a
etapa histórica em que a imprensa ganha sua feição moderna, industrial, a partir da última metade
do século XIX” (LIMA, 2009, p. 173).
Para Edvaldo Pereira Lima (2009 p. 174) a literatura e a imprensa confundem-se até os
primeiros anos do século XX. A arte literária se fez presente nas publicações de folhetins e
suplementos literários da época. “É como se o veículo jornalístico se transformasse numa
indústria periodizadora da literatura da época. Esse aspecto divulgador, oportunidade inovadora
de chegar à coletividade, é o fator que atrai os escritores”.
Nelson Werneck Sodré (1977, p. 334), resume:
Os homens de letras buscavam encontrar no jornal o que não encontravam no
livro: notoriedade, em primeiro lugar; um pouco de dinheiro, se possível. O
Jornal do Comércio pagava as colaborações entre 30 e 60 mil réis; o Correio da
Manhã, a 50. Bilac e Medeiros de Albuquerque, em 1907, tinham ordenados
mensais, pelas crônicas que faziam para a Gazeta de Notícias e O País,
respectivamente; em 1906, Adolfo Araújo oferecia 400 mil réis por mês a
Alphonsus de Guimarães para ser redator de A Gazeta, em São Paulo.
Essa breve explanação é importante para lembrar que o envolvimento entre jornalismo e
literatura já acontecia antes mesmo de a corrente do new journalism aparecer. Nesse período,
porém, as produções nem sempre tinham a preocupação de retratar fatos da vida real. A ficção,
portanto, estava presente em algumas produções da época, o que não acontece na década de
sessenta com o new journalism, onde o foco das produções foram as histórias reais.
A partir da virada do século XIX para o XX o Brasil passa por um momento de
transformações. A modernização de sua Capital Federal culminou em algumas mudanças em
vários aspectos na vida dos brasileiros, inclusive no jornalismo. A reportagem começa a traçar
sua independência da literatura. Euclides da Cunha e João do Rio destacam-se nas produções de
fôlego desse período. Cunha lança Os Sertões, em 1902, obra que fora publicada originalmente
em 1897 em forma de reportagens pelo jornal O Estado de S. Paulo. E conta a ação do exército
na destruição do arraial de Canudos, no interior do Nordeste. A obra de Euclides da Cunha
transformou-se em um divisor de águas para o jornalismo brasileiro e ficou marcada pela intensa
72
observação e presença do autor na cobertura dos fatos. Para Edvaldo Pereira Lima (2009, p. 212213) o sucesso se dá pois Cunha vai cobrir o conflito:
[...] levando na bagagem uma qualidade que o diferenciaria essencialmente dos
demais concorrentes: a habilidade para situar um evento no contexto que o
cerca, demonstrando para o leitor o sentido mais profundo do que retrata. Mas a
ótica do autor alarga-se também em torno dos espaços e das condições imediatas
que cercam o conflito, revelando um cuidado de documentação que será típico
aos bons repórteres de profundidade do futuro.
O forte da cobertura de Euclides da Cunha também estava na contextualização dos fatos.
O autor tenta oferecer aos seus leitores comparações ou raciocínios paralelos a outras guerras do
mesmo tipo, para tentar levá-lo à reflexão e compreensão da mensagem. Os Sertões veio para
mostrar uma nova possibilidade de tratamento jornalístico. De uma cobertura que alia os recursos
literários com a captação de fatos da vida real. E o autor cumpriu muito bem o seu papel.
O trabalho de João do Rio tem características um tanto quanto distintas do de Euclides da
Cunha. João do Rio- pseudônimo de João Paulo Alberto Coelho Barreto, ou só Paulo Barretotraz uma contribuição importante para a comunicação social factual, pois seu trabalho é
essencialmente jornalístico. E tratava de assuntos sociais com sentido de urgência. Suas séries de
reportagens começam a ser publicadas na Gazeta de Notícias e em seguida chegam aos livros,
com uma linha de temas que o preocupam. Cremilda Medina (1978, p. 69) conta sobre o trabalho
desse pioneiro:
Religiões do Rio, Almas encantadoras das ruas, Vida vertiginosa,
Cinematógrafo, Os dias passam, livros que reúnem as reportagens de Paulo
Barreto, oferecem, no meio de certos artificialismos estilísticos e imperfeições
técnicas, aquilo que caracteriza o jornal moderno – infomações. Os tipos sociais
observados representam a tendência de humanização tão explorada pela
reportagem atual; a descrição de costumes e de situações sociais inauguram a
reportagem de contexto; de passagem, alguns traços retrospectivos do fato
narrado levariam, mais tarde, à reportagem de reconstituição histórica.
A marca que os trabalhos de João do Rio deixou fica caracterizado pela humanização dos
relatos e, ainda, pela coleta de informações por meio de entrevistas e a descrição de cenas.
73
Mas essa relação entre a imprensa e a literatura se enfraquece em determinado momento
e, para Nelson Werneck Sodré (1977, p. 339), existem alguns responsáveis por este fato,
sobretudo o capitalismo:
[...] é essa mesma causa que começa a exigir alterações na imprensa. Tais
alterações serão introduzidas lentamente, mas acentuam-se sempre a tendência
ao declínio do folhetim, substituído pelo colunismo e, pouco a pouco, pela
reportagem; a tendência para a entrevista, substituindo o simples artigo político,
a tendência para o predomínio da informação sobre a doutrinação, o
aparecimento de temas antes tratados como secundários, avultando agora, e
ocupando espaço cada vez maior , os policiais com destaque, mas também os
esportivos e os mundanos. Aos homens de letra, a imprensa impõe, agora, que
escrevam menos elaborações assinadas sobre assuntos de interesse restrito do
que o esforço para se colocarem em condições de redigir objetivamente
reportagens, entrevistas, noticias.
Esse período de ligação entre jornalismo e literatura, porém, rendeu bons frutos. Para os
literários a experiência da captação do real, e para os jornalistas uma amostra de como melhor
trabalhar com as palavras.
Com o New Journalism surge a expectativa de unir essas experiências em narrativas da
vida real. Para Lima era a chance de o jornalismo se igualar à literatura em termos de qualidade
narrativa, porém sem perder sua especificidade. Em suma, teria de rever seus instrumentos de
expressão e elevar seu potencial de captação do real.
3.2. Influência da corrente norte-americana nas produções verde-amarelas: Realidade,
Jornal da Tarde.
Isso significa que podemos dizer que já se praticava o jornalismo literário antes mesmo da
chegada da corrente norte americana (new journalism). Com alguma diferença como o contexto
em que se passa o new journalism, que é bastante sugestivo, conforme já mencionamos no
capítulo anterior. A década de sessenta, portanto, ficou marcada como o ápice desse estilo de
cobertura jornalística. Foi um período que ainda foi responsável por entusiasmar produções
semelhantes ao redor do mundo.
74
No Brasil o novo jornalismo influenciou algumas produções jornalísticas como, por
exemplo, a revista Realidade e o Jornal da Tarde, ambos lançados em 1966. Realidade se tornou
uma marco histórico para a reportagem no Brasil, consagrando alguns bons jornalistas como José
Hamilton Ribeiro.
Realidade surge num período marcado por mudanças no Brasil. O país saíra há pouco dos
“50 anos em 5 de Juscelino”, experimentava novas expressões artísticas como a Bossa Nova e o
Cinema Novo, a indústria automobilística já se implantara e, ainda, tínhamos a nova Capital
Federal. Em geral, o mundo sofria alterações significativas. Além da continuidade da Guerra Fria,
o movimento hippie e a liberação sexual são fatores que contribuíram para as mudanças. E, claro,
a audiência brasileira queria compreender todos os acontecimentos. Edvaldo Pereira Lima (2009,
p. 274), comenta:
Realidade abre-se para o Brasil e para o mundo com uma proposta de cobertura
ambiciosa. Realiza mês a mês, em suas edições, a construção somativa de um
novo mapa da realidade contemporânea, onde aparentemente não há preconceito
na seleção de pautas. Realidade ajuda o leitor a descobrir o Brasil em suas
múltiplas facetas nos diversos campos da atividade econômica, da produção
artística, da existência social, do comportamento humano, da condição religiosa,
da disputa política, da arena esportiva. Seus objetos de abordagem situam-se no
centro mesmo da realidade das elites – a visão política de Carlos Lacerda, como
atuam politicamente deputados e senadores, as tendências afigurativas, objetistas
e extremistas das artes plásticas de vanguarda -, mas também envolvem os que
vivem na periferia do sistema social – os mineiros do carvão de Santa Catarina,
os salineiros do Rio Grande do Norte, os menores abandonados de Recife e os
dois jovens que tentam salvá-los, as prostitutas da metrópole.
A revista seguiu o mesmo caminho dos novos jornalistas norte-americanos. Os jornalistas
foram para os centros dos conflitos humanos, participavam ativamente da realidade social,
observavam, ouviam, captavam. E depois desse trabalho não se viam amarrados por regras de
manuais. Ficavam livres para compor seus textos da maneira que achavam necessária e agradável
aos leitores.
No intuito de mostrar a “realidade de perto” alguns jornalistas experimentaram
experiências inéditas em suas vidas. José Hamilton Ribeiro trabalhou como bombeiro em uma
fábrica para mostrar a vida de jovens operários. Alberto Libânio arriscou-se como universitário
em Belo Horizonte para tentar descrevê-los. Lara Mowikow trabalhou como recepcionista para
75
retratar a vida de jovens bancários. Narciso Kalili foi ajudante de agrônomo para tentar contar a
vida dos jovens camponeses.
Os textos de Realidade variavam de acordo com o estilo de cada jornalista. A narração ora
se dava em terceira pessoa ora em primeira. Alguns textos primavam pela descrição detalhada do
cenário e outros enfatizavam o movimento da ação. Alguns, porém, usavam todos esse
elementos, como o texto de José Carlo Marão:
- João! Tou com a dor, João. É hoje.
João Pereira sentiu que era verdade. À meia noite, conseguiu sair da
terceira e procurou um tripulante. À meia noite e quinze, Manuel, o
enfermeiro de bordo, ex-enfermeiro da FEB, entrou na terceira classe,
olhou Luzia e levou-a para a enfermaria. Toda viagem acontece isso. Dá
sorte nascer a bordo. À uma hora da manhã, nasceu, sem despesas de
parto, o filho de João e Luzia, que se chamou Ivan Augusto, homenagem
ao navio. (apud. LIMA, 2009, p. 233)
As reportagens de Realidade primavam pela qualidade narrativa. Davam cor, vida, sabor,
cheiro, para os fatos da vida real. Para Edvaldo Pereira Lima os bons resultados se devem ao fato
de que a revista “compreendeu o conceito moderno da linguagem jornalística”. E trazia em suas
composições não apenas o signo verbal, mas também o icônico. Não para enfeitar o texto, mas
para dar fidedignidade e gosto à narrativa.
Com a raiva crescendo, punho no ar, mão fechada, um homem xinga o outro:
- Refrigerado!
Aquele responde, pronto, num escárnio:
- Um, dois, três. Galo é freguês!
Faz mais de uma semana que a cidade, dia a dia, vem esquentando pelos jornais,
pelo rádio, pela televisão e pela boca do povo nas ruas, uma velha rixa, a maior
de Belo Horizonte. Essa raiva explodirá domingo à tarde. Até lá, todos se
preparam:
- Gaa-lô! ...
[...] O menino estudante, catorze anos, conhecido no colégio pelo apelido de
“Cruzeirense”, estava contente da vida, passando por um grupo de atleticanos.
Agitou a bandeira azul e branca e gritou: - Aí, cachorrada!
Não viu nada, um tiro o pegou, caiu sem sentido. Sangrava muito no pescoço,
foi levado ao Hospital do Pronto-Socorro e operado. Salvou-se. Duas horas
depois, lúcido, perguntou com aflição:
- Quem ganhou? (ANTONIO, 1968, Realidade III, 32)
76
Os textos de Realidade não tinham uma marca única. Ali cada repórter tinha a liberdade
de empregar seu estilo próprio, que poderia variar de acordo com a exigência da matéria. A
revista tinha também como característica mostrar os bastidores de acontecimentos da vida real.
Assim como faz hoje o programa Profissão Repórter com relação a mostrar os bastidores dos
trabalhos, a revista mostrava como se faziam as novelas, como se passava a preparação de um
telejornal, o dia-a-dia de trabalhadores da construção civil, os treinamentos de campeões de boxe
na academia. E se difere das demais coberturas convencionais também por “dar voz” a quem
geralmente se nega nas produções jornalísticas racionais.
Fala do candomblé e da parteira, do torcedor da arquibancada e do jogador de
sinuca, mas também dá voz ao cardiologista e ao cientista, ao indigenista e ao
matemático moderno. Avança para o terreno da moral em mutação – “Sou padre
e quero casar”, “Sou mãe solteira e me orgulho disso” -, desvenda quem são
nossos semelhantes em suas complexidades individuais (LIMA, 2009, p. 225).
Realidade produz perfis humanizados e não se prende aos fatos do cotidiano. Busca
mostrar o contexto em que eles ocorrem. Dessa forma, não se interessa apenas em falar sobre a
queda do dólar ou da bolsa de valores, mas em mostrar como isso afeta a vida de pessoas
comuns.
Edvaldo Pereira Lima (2009, p. 227) escreve algumas das características que considera ser
fator chave para o sucesso da revista: “As matérias científicas, que se revelam um considerável
esforço para traduzir, em linguagem acessível ao público, temas complexos como energia
nuclear, oftalmologia, genética.”
Como pudemos observar na pesquisa norte-americana realizada pelo Readership Institute
e apresentada no capítulo anterior, essa é uma característica importante para tornar o jornal mais
agradável e fácil de ler. Releia o trecho em que a pesquisa revela isso: “O modo de escrita provouse um importante meio de aumento da satisfação do leitor com relação a áreas específicas de conteúdo
editorial, assim como de crescimento da percepção da marca” (Readership Institute In: LIMA, 2005).
As enquetes e pesquisas de opinião, visando mapear tendências do
comportamento público. Por exemplo, o pensamento do brasileiro sobre a
educação sexual motiva um questionário com 17 perguntas, que recebe 24 mil
respostas, das quais 10% tabuladas como amostra, com apoio do Instituto de
Estudos Sociais e Econômicos. (LIMA, 2009, p. 227)
77
Essas pesquisas têm como objetivo conhecer o público para o qual se está escrevendo, e
servem de base para se pensar em pautas para as edições da revista. Atualmente a imprensa
cotidiana brasileira faz muitos pré-julgamentos sobre a opinião do leitor. Dizem que este não
gosta de ler, não tem tempo. Mas como chegam a tais respostas?
As edições especiais, nas quais todas as baterias da revista concentram-se numa
abordagem extensa de um mesmo tema básico, sob vários ângulos, construída
com reportagens articuladas. Em janeiro de 1967 saía o número especial sobre a
mulher , resultando num considerável panorama sobre a emancipação da mulher
na nossa sociedade; a edição foi parcialmente apreendida pelo Juizado de
Menores de São Paulo, dando margem a uma longa disputa de bastidores e
revelando como era tacanha e míope a moral da época. A edição constava dos
resultados de uma pesquisa sobre o pensamento da mulher, de uma matéria
especulativa sobre a superioridade feminina, de um texto científico sobre a
fecundação, de um ensaio fotográfico sobre o amor de mãe, de uma entrevista
com a atriz Ítala Nandi, de uma reportagem sobre consultoria sentimental, de
três perfis humanos (a parteira, a mãe de santo, a executiva), do depoimento de
uma mãe solteira e do debate, entre duas mulheres, sobre o sexo antes do
casamento. (LIMA, 2009, p. 227, 228)
As características dessa cobertura feita por Realidade tem muitas semelhanças com os
trabalhos do jornalista Caco Barcellos, seja no comando do Profissão Repórter ou em seus livros.
A intenção da cobertura com estilo literário é mostar diferentes ângulos sobre um assunto, tendo
como foco as ações de pessoas comuns, humanos. Assuntos que muitas vezes a imprensa
cotidiana já “cobriu”, porém sem explorar todas as possibilidades que a história carrega. Mais
adiante faremos uma análise de conteúdo das obras de Barcellos para tentar comprovar o que
estamos propondo.
As pesquisas e leituras que realizamos para este estudo nos mostraram que a
superficialidade de boa parte das produções jornalísticas brasileiras atualmente, abre espaço para
produções como a de Realidade e do Profissão Repórter, que se preocupam com o contexto e
com os personagens da vida real.
E a ideia parece agradar ao público. Realidade, por exemplo, tem seu primeiro piloto em
novembro de 1965, com apenas cinco mil exemplares. Mas passa a crescer de maneira
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significativa quando começam a sair suas edições regulares. Lima (2009, p. 223) mostra os
números dessa curva ascendente de Realidade:
O número 1 sai em abril de 1966 com 251250 exemplares, para surpresa da
própria Abril, esgota-se em três dias e a capa – Pelé sorridente com um chapéu
da guarda real britânica, alusão à Copa do Mundo que se realizaria naquele ano,
o Brasil candidato ao tri-campeonato – é reproduzida em página inteira pela
Paris Match. O número 2 sai com 281.517 exemplares, também tem tiragem
esgotada. O 3 vende a tiragem total de 354.030 exemplares; façanha até então
considerada impossível. O quarto já está em 404.060, o quinto cresce para 470
mil, e por aí segue até que o número 11, em fevereiro de 1967, bate novo
recorde: 505.300 exemplares.
O projeto editorial e a liberdade que tinham os jornalistas para comporem seus textos
garantiram boa parte do sucesso da revista. É verdade que os textos não chegaram a atingir o grau
de experimentalismo ousado que conseguiram os jornalistas norte-americanos com o new
journalism com o uso, por exemplo, do fluxo de consciência, que mostramos no último capítulo.
Mas os jornalistas procuravam imprimir em seus textos todas as sensações possíveis a partir de
uma observação intensa de seus personagens. Como na América do Norte, os jornalistas de
Realidade, cada um com seu estilo próprio, procura experimentar novos tons estéticos em seus
textos, buscando dar cor, sabor, cheiro, sons, ritmo, para as reportagens. “Cada um manipulava
como lhe aprouvesse os elementos da artesania literária emprestados à escritura do real
contemporâneo”(LIMA, 2009, p. 230). Veja o estilo do texto do jornalista Roberto Freire:
No edifício em construção, o trabalho logo seria interrompido para o almoço.
Fora fria e cinzenta aquela manhã de maio em São Paulo. Agora o sol já
prometia aparecer. Mas o grupo de operários não se dava conta de nada disso,
assentando seus tijolos sem muito entusiasmo, no andar térreo da obra. De
repente, ouviram alguma coisa quebrando lá em cima e levantaram as cabeças.
Mas não viram nada, pois seus olhos se encheram de areia. Ao lado, um baque e
um gemido. Limpando os olhos, puderam ver no chão o corpo do companheiro
estendido, a cabeça esfacelada e coberta de sangue misturado à areia. Perto dele,
um balde tombado. (FREIRE, 1968, Realidade III, 28.)
Roberto Freire, autor deste texto cujo título é “Zerbini quase tira o coração de José”, opta
por narrar em terceira pessoa, onisciente. Já Narciso Kalili e Odacir de Mattos em “Existe
79
preconceito de cor no Brasil”, publicada em 1967 na 19º edição de Realidade, preferem escrever
em primeira pessoa, mostrando sua presença no ambiente narrado:
Pouco depois das cinco da manhã, chegamos a Belém. Íamos ficar no Hotel
Grão Pará, o melhor da cidade. Eu me hospedaria com Mamprim, Odacir,
sozinho. Nosso motorista, um caboclo de bigodes, foi nos mostrando a cidade.
Falou muito, ofereceu-nos distrações noturnas e eu perguntei se em Belém havia
muitos pretos:
- Aqui, negro tem pouco. E os que têm, a gente não gosta. Estão espalhados
nessas construções como pedreiros. São gente muito ruim.
Alguns escolhem presenciar o acontecimento, viver a realidade de perto:
De repente o alarme começa a tocar, insistente. São três e meia da manhã. Um
elemento da Segurança abre a porta, avisa que soldados estão chegando, pode
haver confusão, pede calma. Demonstrar medo não fica bem, um estudante imita
voz de caipira para brincar:
- Daqui a pouco ó nóis tudo preso. Ninguém ri.
- Quantos soldados estão lá embaixo?
Da janela de vidro do hotel, um estudante finge contar. Vinte, cinquenta, cem...
Todos os que ainda estavam deitados se levantam, correm para a janela e veem a
rua deserta lá embaixo, o vento balançando as árvores.
- Isso é hora de brincar? – Reclamam do estudante na janela. (SOARES, 1968,
Realidade III, 29.)
Apesar da qualidade da cobertura ser infinitamente superior ao da imprensa convencional
as matérias da revista não se estendem em demasia, com algumas exceções de matérias que
chegavam a cinco, seis ou sete páginas. Suas matérias focalizam a ação dos personagens da vida
real. Tentam levar seus leitores junto do texto para que, dessa forma, ele possa entender seus
significados e tirar suas conclusões.
Edvaldo Pereira Lima (2009, p. 235) destaca que o sucesso de Realidade também se deve
ao fato de a revista ter compreendido o conceito moderno da linguagem jornalística. E, assim,
“utilizava não apenas o signo verbal, mas também o iconico”. E o fazia não para enfeitar o texto,
e sim para estimular as memórias do leitor a fim de que ele consiga visualizar as cenas narradas
no texto.
80
Convém destacar que a periodicidade mensal da revista também era um fator favorável à
cobertura intensa, de qualidade. Pois, assim como os novos jornalistas norte-americanos, os de
Realidade dispunham de um tempo importante e necessário para entrarem na vida de seus
personagens, misturar-se a eles, viver suas vitórias e derrotas, afim de captar tudo o que se exige
de um jornalista convencional e algo a mais.
O sucesso de Realidade também tem relação com a opção de retratar a vida de pessoas
comuns. Mostrar como se passavam a vida de pessoas anônimas em suas vitórias e derrotas.
Revelar acontecimentos que levassem à reflexão, que contribuísse para a vida social. Narciso
Kalili mostra na edição de número dez, em janeiro de 1967, como se davam os partos feitos por
parteiras, muito comuns em tempos passados. O título da reportagem é “Nasceu”.
- Dona Odila, a senhora quer ir depressa lá em casa? Acho que está na hora. Por
favor, vamos logo.
O homem torcia as mãos, seu olhar suplicava. Ele não conhecia a parteira, mas
se sentiu confiante logo que a viu: o rosto redondo e corado, tão corado que na
cidade é conhecida como Vermelha, os olhos claros e o ar determinado dos que
estão acostumados a mandar.
Dona Odila tirou um dos braços da cintura, apoiou-se no batente da porta,
enquanto esfregava os dedos do pé descalço na perna, disse com simpatia, apesar
da voz brusca:
- Calma. Quem é a tua mulher?
- É a Preta lá do loteamento do Salton.
- A filha daquela velha que veio encomendar o parto na semana passada? Como
é mesmo o nome da velha?
- A Presotto.
- Isso. Espera aí que já vamos. Veio de carro?
- Está esperando lá fora...
[...] José parou. Não entendia bem o que estava acontecendo. Aproximou-se da
porta, perguntando à parteira:
- Preta está bem?
- Ótima e pronta para outra.
Só então ele estendeu os braços para a filha. Olhou-a, encostou-a em seu rosto,
puxou a touca para olhar os cabelos e sorriu. Riu ainda mais quando dona Odila
brincou, lembrando que falhara da previsão:
- Se não quiser levo embora. Eu mesmo fico com uma guria tão linda. E então?
- Essa é minha, dona Odila. Minha filha.
- Tua só não! Dá aqui a menina pra tua mulher ver!
(Revista Realidade, Ano I, Número 10, Janeiro de 1967.)
81
As narrativas de Realidade mostravam diferentes estilos. O uso da primeira pessoa, por
exemplo, ora é dominante, ora é acessório. Os diálogos extensos davam agilidade aos textos. E o
leitor era conduzido, então, por uma narrativa que parecia uma novela ou um conto curto.
3.3. Revista Realidade na Guerra
A cobertura durante a guerra exigiu dos repórteres uma percepção e uma forma de
construção textual diferente do praticado pela imprensa racionalista (cotidiana). O relato a partir
do uso do lead e do texto escrito sobre o molde da pirâmide invertida não daria conta de
transmitir de maneira fiel os acontecimentos do conflito. Pois, mais que informar, o importante
naquele momento era contar as histórias das vivências de combatentes, civis e mesmo dos
profissionais da imprensa naquele ambiente tão “amargo”.
A revista Realidade mandou para cobrir o conflito da Segunda Guerra o repórter José
Hamilton Ribeiro, que escreveu uma matéria que nos permite exemplificar o que acabamos de
dizer sobre a cobertura intensa. Ribeiro descreve uma de suas experiências mais marcantes na
carreira, onde perde uma perna em uma mina no campo de batalha. O texto serve também para
termos uma idéia de como esse relato ficaria extremamente frio se fosse escrito baseado na
fórmula piramidal.
No último dia de sua permanência no Vietnã, José Hamilton Ribeiro participou de uma
patrulha feita pela Companhia Delta, da Primeira Divisão de Cavalaria do Exército Americano. A
trilha por onde caminhava era famosa pelas minas terrestres e tinha o nome de "Estrada sem
Alegria".
Ele estava ao lado do fotógrafo Keisaburo Shimamoto, que registrou as imagens
publicadas por Realidade, e do soldado americano Henry (destacado para acompanhá-lo).
Quando todos escutaram uma explosão, 20 metros à frente, correram para ver o que acontecia.
Ribeiro descreveu:
Observando a movimentação de todos em direção aos feridos, por um momento
me passou pela cabeça a certeza de que o terreno entre a minha posição e a dos
feridos, já tão fartamente pisado, não podia ter mais mina nenhuma. Com a
máquina em posição de ataque, corri para os feridos, Henry ao meu lado. A
82
cinco metros do local, vejo uma bota com um pé dentro, minando sangue. Penso
sem querer pensar:
– Isso é que é pé frio!
Ouço uma explosão fantástica. É um tuimmm interminável que me atravessa os
ouvidos de um para o outro lado, dá-me uma sensação de grandiosidade. Sintome no ar, voando [...] Um segundo após me vejo no chão, sentado. A cortina de
fumaça se esgarçou e vi aproximar-se de mim Shimamoto, o fotógrafo japonês.
Pergunto-lhe:
– Shima, você está bem?
Sem responder, ele continuou caminhando para mim. Foi aí que senti a perna
esquerda. Os músculos repuxaram para a coxa com tal intensidade que eu não
me equilibrava sentado. Para não cair, rodopiava sobre mim mesmo, em círculos
e aos saltos. Instintivamente, levei as duas mãos para ‘acalmar’ a minha perna
esquerda, e foi então que a vi em pedaços.
O jornalismo brasileiro foi brindado com textos valiosos e com qualidades de conto como
este até os fins de 1969, quando a editora Abril já focaliza suas atenções para um novo projeto, a
revista Veja.
3.4. Outros projetos
Depois do falecimento do projeto Realidade pouco se criou em termos de produções de
narrativas literárias no Brasil. As grandes reportagens voltam a figurar no país a partir da década
de 90, com produções de livros-reportagem, publicados por autores como Caco Barcellos e
Zuenir Ventura.
Também nessa década, Eliane Brum encontra espaço na Gazeta Zero Hora para publicar
uma coluna com reportagens de estilo literário, a fim de mostrar a vida de pessoas comuns. Brum
apresenta na coluna “A vida que ninguém vê” um estilo de cobertura que rompe padrões. A
jornalista mergulha na realidade de pessoas desconhecidas, observa, participa e depois volta para
“o outro mundo” para dividir as experiências no intento de provocar reflexões.
Os personagens retratados nas reportagens de Eliane Brum certamente passariam
despercebidos pela ótica da imprensa convencional, pois estes fazem maior uso de fontes oficiais.
Mas ganharam força com a proposta de Marcelo Rech (diretor da gazeta Zero Hora na época da
publicação da coluna). Em 2007, no primeiro Seminário de Jornalismo Literário, promovido pela
ABJL (Academia Brasileira de Joarnalismo Literário), Rech afirmou que acreditava muito na
idéia de contar boas histórias nos jornais diários. E disse ainda que a Zero Hora aumentou
83
consideravelmente suas vendas depois que começou a utilizar matérias de cunho literário em suas
publicações.
Eliane Brum assumiu um estilo incomum no jornalismo, descartando a neutralidade e
participando ativamente das histórias que narrava e, segundo a autora, a idéia agradou ao público:
Foram os leitores que enxergaram a coluna e apontaram para onde eu estava
olhando. Toda semana desembarcavam e-mails e cartas contando sobre vidas
próprias, vidas de outros, desacontecimentos, não-fatos, antinotícias,
anonimatos. Tudo absolutamente extraordinário. (BRUM, 2006, p. 188)
A boa aceitação das matérias de Brum por parte de leitores de um jornal diário é um fator
que nos motiva a propor essa discussão. Por que não oferecer ao leitor matérias com propostas
diferentes das de estilo convencional, oferecidas por boa parte dos veículos de comunicação? Por
que não mostrar “a vida que ninguém vê” a partir dos personagens marginais da vida real? Por
que não dar voz àqueles que a imprensa convencional nega?
O jornalista e escritor João Antonio (1976, p. 146), um dos expoentes do projeto
Realidade e ganhador de alguns prêmios Esso de Jornalismo, defende:
O caminho é claro e, também por isso, difícil – sem grandes mistérios e escolas.
Um corpo-a-corpo com a vida brasileira. Uma literatura que se rale nos fatos e
não que rele neles. Nisso, a sua principal missão – ser a estratificação da vida de
um povo e participar da melhoria e da modificação desse povo. Corpo-a-corpo.
A briga é essa. Ou nenhuma.
Em uma de suas mais conhecidas reportagens, Eliane Brum nos traz elementos que vão ao
encontro do que diz Antônio. No texto O Sapo, o personagem principal é um homem que pede
esmolas no centro de Porto Alegre. Mas além desse caráter marginal do homem, a forma como a
jornalista escolhe para contar sobre esse personagem é que nos chama a atenção:
O mais incrível é que o Sapo estava ali havia 30 anos. E há mais de uma década
nos cruzávamos na Rua da Praia. Minha cabeça no alto, a dele no rés-do-chão.
Eu mirando seu rosto. Ele, os meus pés. Só dias atrás tive a coragem de me
agachar e nivelar nossos olhares, subvertendo a regra do jogo de que ambos
participávamos. Não nos reconhecemos. Descobri que o nome dele é Alverindo.
84
Ele soube que me chamo Eliane. Contou-me que os amigos o conhecem por “seu
Vico”, e o povo da rua por Sapo. Por causa da eterna posição lambendo com a
barriga as pedras da rua. Contei-lhe que sou jornalista e escreveria sobre ele. E
então apertamos as mãos (...) (BRUM, 2006, p. 60).
As matérias de Brum primam pela observação intensa e não utiliza um modelo único de
linguagem para a composição dos textos. A jornalista utiliza sua percepção apurada de repórter
para discernir em qual momento deve usar uma linguagem mais descontraída ou não e, dessa
forma, não torna a linguagem de seus textos um ritual. Brinca com vários estilos de textos e
linguagens, a fim de comunicar melhor. Faz uso demasiado dessa liberdade de estilo que é
iminente ao jornalismo literário e, assim, não faz de seus textos amontoados de palavras
enfadonhas e pasteurizadas.
Observação. Reparem no cuidado de Eliane Brum na matéria a seguir. Percebam a riqueza
dos detalhes e o quanto isso valoriza o texto e nos dá uma maior dimensão daquilo que a autora
quer contar.
Você já reparou nos olhos das pessoas na rua? Muitas têm pupilas opacas e,
juntos com os ombros voltados para dentro, arqueados como se carregasse uma
canga de boi, esculpem a imagem de uma infelicidade crônica, venenosa e que
mata devagar. Têm olhos de seca, olhos assassinados. Porque os olhos são os
primeiros a morrer. E as ruas estão cheias de moribundos. Quando aparece
alguém de olhos brilhantes, dá vontade de parar, pedir licença e intimar: o que
você está escondendo atrás destas pestanas?
Dona Maria tem olhos brilhantes. Maria Alicia Freitas, 55 anos, dez filhos, onze
netos e um bisneto, tem olhos brilhantes. Sabe por quê? Porque dona Maria tem
um sonho. Descobriu que tinha aos nove anos e conseguiu realizá-lo aos 55.
Sim, porque sonhos não se encontram em prateleiras, não basta atirar o cartão de
crédito no balcão e sair com um debaixo do braço. Sonhos são touros xucros.
Tem de pegar à unha. É isso ou ficar pelos cantos exercitando a
autocomiseração, chapinhando na apatia.
Dona Maria tem olhos brilhantes porque corre atrás do seu. E desde então, deu
para ficar com os olhos em facho, por aí, alumiando o caminho [...] (BRUM,
2006. p. 132).
O estilo ousado e inovador de Brum e sua coluna agradaram, além do público, a crítica.
Em 1999 a jornalista ganha o Prêmio Esso de Jornalismo – Regional Sul de Jornalismo. E em
2006, com 23 das 46 reportagens reunidas no livro homônimo à coluna, conquistou o cobiçado
Prêmio Jabuti, na categoria livro-reportagem.
85
Outros dois projetos merecem destaque em nosso estudo: o da revista Piauí
(originalmente o nome é grafado em letras minúsculas) e o da revista Brasileiros. A revista Piauí
foi lançada em 2006 durante a Festa Literária Internacional de Parati (FLIP) pelo documentarista
João Moreira Salles e o editor Luiz Schwarcz. A publicação conta com um projeto ousado e
pretensioso. Não se trata de uma revista de cultura ou opinião, mas de reportagens com histórias
de vida. A revista tem tiragem mensal de 62 mil exemplares (dado relativo a julho de 2008) e tem
nesses números motivos para comemorar, pois em abril de 2007 a tiragem era de 35 mil
exemplares.
O lançamento de Piauí foi antecipado por um texto provocativo e bem humorado que
circulou para assinates da editora, a Abril. O texto bem elaborado nos remete à nossa discussão
sobre o fazer jornalístico. Alguns trechos:
[...] piauí será uma revista para quem gosta de ler. Para quem gosta de
histórias com começo, meio e fim. Como não se inventou nada melhor
do que gente (apesar de inúmeras exceções, vide... deixa pra lá), a
revista contará histórias de pessoas. De mulheres e homens de
verdade. Ela pretende relatar como pessoas vivem, amam e trabalham,
sofrem ou se divertem, como enfrentam problemas e como sonham.
piauí partirá sempre da vida concreta.
O formato grande fará com que se encontre bastante coisa para ler e
ver em piauí. Para que ela dure um mês nas mãos dos leitores. Para
que as reportagens e narrativas terminem quando o assunto terminar,
em vez de ficarem espremidas porque o espaço acabou. O tamanho
maior favorecerá a inventividade, possibilitará a publicação de
imagens reveladoras sem perda de nuances e detalhes.
Ela dará importância ao que, por ignorado, é tido como insignificante. Tratará de
achar novidades no que, por esquecido, parece velho ou ultrapassado. A revista
não será ranzinza nem chata. (PIAUÍ, 2006).
A revista traz como característica uma linguagem rebuscada e, talvez, até limitadora do
ponto de vista dos receptores. Mas ainda assim representa uma opção de cobertura de qualidade,
e que tem o humano no eixo de suas narrativas.
Brasileiros, lançada em julho de 2007, também se destaca por praticar um jornalismo que
não se deixa limitar. Abandona a recorrência demasiada ao fontismo e traz personagens como fio
condutor de suas narrativas. Aqui o jornalista assume o papel de contador de histórias, envolvido
e submerso da cabeça aos pés com a história a ser narrada.
86
Como já mencionamos em alguns momentos desse estudo, o tema jornalismo literário,
literatura de não-ficção, narrativas da vida real, etc., vem sendo discutido e estudado por vários
pesquisadores e profissionais da comunicação. A ABJL (Academia Brasileira de Jornalismo
Literário), por exemplo, foi iniciativa dos jornalistas-professores Edvaldo Pereira Lima, Sergio
Vilas Boas, Celso Falaschi e Rodrigo Stucchi, que há anos estudam e praticam o Jornalismo
Literário no país. A Academia conta com um curso de pós graduação (latu senso) e já formou
mais de 200 especialistas em JL. E além dessa preocupação com a especialização de
profissionais, a ABJL criou em setembro de 2003 o portal Texto Vivo, site que conta com um
acervo de narrativas de estilo literário, artigos conceituais a respeito, fotos. O site traz textos de
alunos, ex-alunos e colaboradores em geral. A iniciativa faz uso inteligente da internet que, tem
um custo relativamente baixo e grande potência no alcance, para incentivar a produção e leitura
de narrativas bem elaboradas e que tenha como eixo central de suas atenções o ser humano.
Os textos publicados no portal são carregados de características literárias e estilos
diferenciados. No texto “Unidas para Sempre”, de Dani Costa, por exemplo, podemos notar o uso
de diálogos e a imersão da repórter na história. Vejamos um trecho:
- Vocês estão vendo? Conseguem visualizar? Ouvem esse barulho, ó. Um
coração. Os batimentos vêm de apenas um coração. Deixa eu ver mais... Hum...
O fígado também é o mesmo e acho que a bexiga é única... Mas não é possível
ver bem, a bexiga eu fico na dúvida... O que posso dizer é que eles têm um
mesmo coração, e isso é crítico, mas o estado geral de saúde é estável. Os
batimentos têm força. São seus filhos e estão bem.
O aspecto daquela gestante arrepiada de frio na moderna sala de ultrassom me
tirava a fala. A enorme barriga de apenas três meses abrigava bebês siameses.
Esse é um resumo simplório, uma forma de dizer que aquilo existiu e era
simples de entender: gêmeos unidos. Dois corpinhos colados pelo tórax e
abdômen. Uma gestação que foge à regra de todas as outras. A explicação vem
na seqüência das informações prestadas sobre a divisão de um único coração.
- Isso não é genético e nem é uma má-formação ocorrida por qualquer coisa que
você tenha feito. Isso é uma má divisão embrionária. Os embriões não se
separaram. Isso é raro; isso é raro - diz o médico.
(COSTA, 2009. disponível em: textovivo.com)
Costa não esconde o fato de estar ali, presente na sala do ultrassom. E não esconde
também o que sente: “me tirava a fala”. Porque jornalista literário não precisa se esconder, pode
mostrar a cara e dizer “eu estava ali, presenciei de perto e aquilo me marcou!”. Não faz como boa
87
parte dos jornalistas convencionais que tem de se esconder em falas como: “conforme analisa o
doutor ‘fulano’”, ou “segundo o economista ‘beltrano’”.
Dani Costa usa a fala do médico para trazer os dados de sua reportagem. Contextualiza e
entrega para o leitor fazer sua reflexão.
Nesse outro texto extraído do site Texto Vivo, podemos notar que a jornalista responsável
pelo texto impõe em sua narrativa um ritmo musical, a fim de melhor expressar o que observou
na matéria sobre um grupo de dançarinos com deficiência. O título da matéria é “Dançando
sobre rodas” e a habilidade em contar como música da jornalista Viviane Pascoal Dantas nos
chama a atenção. Observe:
Hip... O movimento lateral do quadril parece definir a batida da música, não o
contrário. Hop... o corpo salta, os braços ágeis cortam o ar, traçando linhas
imaginárias. Cabeça, pescoço, ombros, braços e mãos, perfeitamente
coordenados, compõem uma seqüência de movimentos marcantes e quebrados,
não por acaso chamado de break. No som, ritmo e poesia (rythm-and-poetry, ou
apenas, rap). Na pista, os dançarinos acompanhavam o desenho dos pés e das
rodas sobre o chão.
Sim, nem só com pernas e saltos se faz o traçado da dança. Também as rodas de
borracha se enchem de ritmo e poesia quando conduzidas por jovens que
ousaram transformar suas limitações em arte, mudando assim, a forma como
viam a si mesmos e como eram vistos. Sob a coordenação e o olhar atento do
professor Mark Van Loo, pernas e rodas compõem uma unidade harmônica,
onde as diferenças se completam como luz e sombra, corpo e mente, letra e
música. Juntos, andantes e cadeirantes formavam o grupo “Perfeito”.
Sentada perto do som, com o caderninho de anotações aberto sobre as pernas e o
gravador ao lado do corpo, eu estava sobre o efeito hipnótico da música e da
dança que se desenvolvia à minha frente. Só consegui sair dele quando a música
parou (DANTAS, 2009. disponível em: textovivo.com.br).
A narrativa envolve o leitor e soa como música em seus ouvidos, por isso tende a chamar
a atenção, agradá-lo e , dessa forma fazer com que ele permaneça ali até o fim da matéria.
3.5. Livros
O mercado editorial também vem crescendo no Brasil com a publicação de vários livroreportagens. Uma das inciciativas é a coleção Jornalismo Literário, da Editora Companhia das
Letras que, desde 2002, publica obras do estilo no país. Boa parte dos títulos tem origem norte-
88
americana. Até meados de 2008 os títulos da coleção eram: Berlim (Joseph Roth), Chico Mendes:
Crime e Castigo (Zuenir Ventura); Dentro da Floresta: Perfis e Outros Escritos da Revista The
New Yorker (David Remnick); Filme (Lilian Ross); Hiroshima (John Hersey); Imperador: A
Queda de um Autocrata (Ryszard Kapuscinski); A Milésima Segunda Noite da Avenida Paulista
(Joel Silveira); Na Pior em Paris e Londres (George Orwell); A Sangue Frio (Truman Capote); O
Segredo de Joe Gould (Joseph Mitchell), O Super-Homem vai ao Supermercado (Norman
Mailer); A Vida como Performance (Kenneth Tynan); Fama & Anonimato (Gay Talese); Radical
Chique e o Novo Jornalismo (Tom Wolfe); e o Livro das Vidas, uma seleção de obituários do
jornal The New York Times organizada pelo jornalista Matinas Suzuki.
Temos ainda algumas produções independentes como Abusado: o dono do morro Dona
Marta, de Caco Barcellos; A vida que ninguém vê e O olho da rua, de Eliane Brum; Jornalistas
Literários: narrativas da vida real por novos autores brasileiros, uma coletânea de reportagens
feitas por alunos da ABJL e organizadas pelo professor Sergio Vilas Boas.
Ainda sobre o estilo literário temos algumas obras conceituais como Páginas Ampliadas:
o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura; de Edvaldo Pereira Lima; e
Jornalismo Literário, de Felipe Pena.
O livro-reportagem funciona como uma válvula de escape para os profissionais da
imprensa convencional que queiram superar limites, ultrapassar barreiras, contextualizar e contar
boas histórias. A necessidade de ser objetivo, além de escrever um texto baseado em fórmulas
prontas, condições pré-estabelecidas para quem se arrisque a ser jornalista em empresas
convencionais de comunicação como jornal impresso, TV e rádio, leva jornalistas de maior
fôlego a fugir para as páginas de livros. A alternativa surge como uma boa proposta para o
aprofundamento de temas relevantes e se faz válida, pois o jornalismo praticado com interesses
comerciais dificulta a visão ampla dos fatos. Edvaldo Pereira Lima (1998, p. 10) comenta sobre a
importância da reportagem:
O jornalismo desenvolveu, ao longo do tempo, uma forma de mensagem mais
rica, cujo teor procura redimensionar a realidade sob um horizonte de
perspectivas onde não raro existem várias dimensões dessa mesma realidade.
Essa forma é a reportagem, que nos casos mais felizes oferece, em torno do
núcleo frio que marca a face árida de um acontecimento, todo um contexto
embelezado pela dimensão humana, pela tradução viva do ambiente onde
ocorrem os fatos, pela explicação de suas causas, pela indicação dos rumos que
poderá tomar.
89
Os resultados das reportagens escritas em livros são, geralmente, muito bons, haja vista a
quantidade de prêmios destinados ao gênero reportagem. Rota 66 e O Abusado, são exemplos
próximos, mas ainda temos um bom montante de obras que receberam prêmios importantes,
como A vida que ninguém vê, de Eliane Brum, premiada em 2007. Mas, diferente de países como
os Estados Unidos, por exemplo, pensamos que o Brasil e sobretudo as empresas de comunicação
deste país não fazem o aproveitamento que poderiam fazer de obras importantes como estas. Só
para exemplificar e tentar esclarecer o que queremos dizer com essa afirmação, pensemos em
dois casos ocorridos nos EUA: Hiroshima, de John Hersey e A sangue Frio, de Truman Capote.
O livro de Hersey traz histórias de vida de seis sobreviventes ao bombardeio que atingiu
a cidade japonesa de Hiroshima. A reportagem é considerada até hoje por críticos especializados
como a mais brilhante reportagem de todos os tempos. A revista The New Yorker quebrou sua
tradição editorial e em 31 de agosto de 1946 publicou uma única matéria em toda a edição. O
período da publicação é bastante sugestivo, pois nessa época ainda reinava um silêncio acerca das
conseqüências da rendição do Japão na Segunda Guerra. No entanto, a edição de trezentos mil
exemplares, restrita apenas a Nova York, esgotou-se em poucas horas. Eduardo Belo (2006, p.
127-128) conta sobre a grande procura e sobre o diferencial que os americanos encontravam
naquela reportagem:
A New Yorker recebeu inúmeros pedidos de reimpressãoe nem sempre foi capaz
de atendê-los. Exemplares ou cópias eram vendidos com ágio de mais de
13.000%, sendo negociados por até US$ 20, numa época em que a revista
custava US$ 0,15 nas bancas. Outras publicações interessaram-se pela reedição
do texto, em caráter nacional. A rede ABC e a BBC, de Londres, transmitiram a
leitura da reportagem no rádio, na íntegra.
A matéria de Hersey deu, pela primeira vez, a dimensão humana dos
acontecimentos. Após um ano inteiro de textos que travavam a explosão nuclear
como um evento estatístico – morte de 130 mil pessoas no período de três meses
após o bombardeio, destruição de casas numa área superior a 30 Km² -, as
vítimas até então sem rosto acabavam de ganhar uma identidade.
O que Hersey se propôs a fazer foi uma contextualização desses dados. Ao invés de dizer
que morreram 130 mil, foi buscar 6 pessoas que presenciaram a morte de algumas delas para
contar. E a partir de uma apuração rigorosa e participante, pôde recontar o que aconteceu no dia
das explosões com a ajuda de seus personagens.
90
A situação do dr. Fuji, do dr. Kanda e do dr. Machi – e, por extensão, da maioria
dos médicos de Hiroshima – logo após a explosão, com seus consultórios e
hospitais construídos, seu equipamento disperso, seus próprios corpos
incapacitados me diferentes graus, explica por que tantos feridos não receberam
cuidados e por que morreram tantos cidadãos que podiam ter sido salvos. Dos
150 médicos existentes em Hiroshima, 65 estavam mortos e os restantes se
encontravam, na maioria, feridos. Das 1780 enfermeiras, 1654 estavam
igualmente mortas ou impossibilitadas de agir. No hospital da Cruz Vermelha, o
maior da cidade, apenas seis médicos, de uma equipe de trinta, e dez
enfermeiras, dentre mais de duzentas, tinham condições de trabalhar. O dr.
Sasaki era o único médico desse hospital que escapara ileso. Depois da explosão,
ele correra para buscar ataduras num depósito onde, como no restante do prédio,
reinava o caos – frascos de remédios tinham caído das prateleiras e se
espatifado, ungüentos mancharam as paredes, instrumentos se esparramaram por
todo canto. O dr. Sasaki pegou algumas bandagens e um frasco de
mercurocromo que estava intacto e medicou o cirurgião-chefe. Em seguida, saiu
pra o corredor e cuidou dos pacientes, médicos e enfermeiras que ali se
achavam. Estava enxergando tão mal que se apoderou dos óculos de uma
enfermeira ferida – embora lhe proporcionassem uma correção apenas medíocre
da visão eram melhores que nada. (Acabaria usando-os por mais de um mês.)
(HERSEY, 2002, p. 30-31)
O livro de Hersey oferece ao leitor um quadro contextualizado dos acontecimentos que
envolvem a vida de pessoas comuns. Ultrapassa os limites da imprensa convencional e orienta
com profundidade. Mas será que um livro como este seria bem aproveitado aqui no Brasil? Ou
seria barrado por discursos do tipo: “o leitor não gosta de ler” ou “o leitor não tem tempo para
ler”?
Mais tarde, em 1965, Truman Capote tomou o mesmo rumo de Hersey e foi apurar com
profundidade o caso de um assassinato que lera em um jornal diário. Pegou as informações
básicas sobre o fato e foi dar voz aos personagens da história. E voltou para contar em forma de
romance. Sim, o autor da reportagem que também foi publicada inicialmente em uma revista,
considera seu livro como um romance de não ficção. O certo é que a narrativa humanizada de
Capote também ficou marcada como exemplo de bom jornalismo, de aprofundamento. Cumpriu a
função de informar e preencheu o vazio deixado pelas publicações periódicas.
Todas as iniciativas são preciosas e importantes para que se busque uma melhora nas
produções jornalísticas brasileiras que, hoje, estão carentes de boas histórias. A batalha é árdua,
mas a vitória é possível. Por isso, produções como as da revista Realidade devem ser lembradas e
91
discutidas sempre, para que pensemos no jornalismo que andamos praticando hoje, no Brasil. E
para que possamos pensar assim, em alternativas para manter nossos leitores acordados!
92
Capítulo IV
93
Caco Barcelos: Rota 66, Abusado, Profissão Repórter: análise dos
elementos narrativos
4.1. Cláudio Barcelos de Barcelos: breve histórico e análise de conteúdo.
Nesse último capítulo apresentamos um histórico descritivo sobre os trabalhos realizados
pelo jornalista Caco Barcellos. É de nosso interesse mostrar, a partir de uma análise de conteúdo,
que as características principais dos trabalhos de Barcellos vão ao encontro do que propõe o
jornalismo literário. Faremos, portanto, uma desfragmentação de alguns trechos de seus dois
livros mais vendidos, Rota 66 (que apontou em detalhes a ação dos matadores da ROTA da PM
de SP) e Abusado (em que conta a história do Comando Vermelho pela ótica do traficante
Marcinho VP, morto pouco depois da publicação do livro), e que lhe custaram anos de árdua
investigação e sérios boatos sobre juras de morte. O programa Profissão Repórter também terá
seu espaço nessa discussão.
Por trás do rosto de aparentes 40 e poucos anos, talvez justificados pela opção de ser
adepto à uma dieta macrobiótica e não fazer uso de álcool e drogas, está um dos melhores
jornalistas do país. Aos 60 anos, Caco Barcellos traz na mochila um currículo invejável. Gaúcho
de origem modesta, Barcellos trabalha desde cedo. Foi com o trabalho de taxista que conseguiu
sobreviver e pagar a faculdade quando jovem. Na carreira de jornalista começou trabalhando no
jornal Folha da Manhã, de um grupo gaúcho. Lançou-se ao mundo num trabalho como freelancer durante a guerrilha setentista na Nicarágua. A cobertura da guerra é motivo para boas e
más lembranças. De boa o seu primeiro livro, Nicarágua: a Revolução das Crianças.. E de má, o
momento em que foi refém dos sandinistas.
Trabalhou em revistas como Veja e IstoÉ antes de entrar para a TV, onde ganharia mais
fama e dinheiro. Na TV Globo sua carreira já dura 20 anos, divididos entre alguns trabalhos
como correspondente internacional e participação em importantes programas da emissora como o
Globo Repórter, Fantástico e Jornal Nacional.
94
Amante da cobertura de maior aprofundamento, Caco Barcellos fala, em entrevista ao
autor, sobre a importância desse gênero para o processo jornalístico: “Pela via da reportagem
você consegue explicar os acontecimentos, não simplesmente retratá-los. A reportagem é
importante para que você possa levar para seu público um melhor entendimento sobre a
realidade. A maior virtude da reportagem é que ela vai além do simples registro do fato”.
Barcellos recebeu em 2003 e 2005 o prêmio de melhor correspondente, promovido pelo
site “Comunique-se”. Nos anos de 2006 e 2008, em premiação do mesmo site, foi eleito o melhor
repórter da televisão brasileira. Ainda em 2008, recebeu o Prêmio Especial das Nações Unidas,
como um dos cinco jornalistas que mais se destacaram, nos últimos 30 anos, na defesa dos
direitos humanos no Brasil. Prêmio este que encontra justificativa na apresentação do livro Rota
66, onde Narciso Kalili escreve:
Caco Barcellos é um jornalista que tem lado. Aliás, lado que ele, desde o
começo da carreira, no Rio Grande do Sul, nunca escondeu. Um lado que
continua o mesmo —o dos mais fracos, o das vítimas. Ele não está sozinho neste
lado do jornalismo. Caco segue o exemplo de gente daqui e de fora, que não se
aquece na própria vaidade nem proclama uma visão cínica de mundo, quase
sempre um horizonte que não vai além do próprio umbigo.
[...] Porque Caco Barcellos é um jornalista que está do lado da maioria. O lado
dos desgraçados, dos miseráveis. Gente sem privilégios, indefesa, e para quem o
trabalho de jornalistas como Caco Barcellos ou Donald Wood representa a porta
de entrada em direção à vida. (KALILI in: BARCELLOS, 1997, p. 3.)
Para Edvaldo Pereira Lima (2009, p. 369), o leitor não espera encontrar em uma narrativa
um discurso de “verdade absoluta”, “mas sim uma leitura individual, marcada pela experiência
própria do autor, seu modo de captar e expressar a realidade, sua interação com os personagens
da história.” Pois:
O autor não é um mero compilador de dados, esforçado moleque de recados que
transmite as versões dos fatos moldados conforme os interesses de suas fontes,
nem se esconde, submisso, por trás das afirmações dos especialistas.
[...] Autor de jornalismo literário tem nome, rosto, corpo cabeça, tronco,
membros. Tem nome e coração. Pensa e sente. É um estudioso constante da
realidade. Interpreta, avalia, busca unir os fios da compreensão que unem ações,
pessoas, ambientes. Tem virtudes e defeitos. (LIMA, 2009, p.369)
95
Por vários momentos em suas narrativas Caco Barcellos evidencia seu envolvimento com
a história e seus personagens. E dessa forma permite que seu leitor viva, mesmo que
simbolicamente, aquela experiência. E isso não significa ser parcial, se é que imparcialidade é
possível no jornalismo. Significa mostrar para o leitor aquilo que suas observações de jornalista e
contador de histórias puderam subtrair dos cenários das narrativas. Significa mostrar que estava
ali, participando, ouvindo, observando. Significa presença. Perceba essa participação nesse trecho
do livro Rota 66:
Na caça aos assaltantes, os policiais vasculham casa por casa prendendo e
interrogando suspeitos 24 horas por dia. São mais de cem PMs auxiliados por
agentes da Polícia Federal, uma parceria de métodos iguais aos dos tempos
recentes da repressão política. Durante a semana fui testemunha de cenas de
injustiça, abuso de poder, covardia. Minha reação me trouxe problemas de todos
os lados. Um deles foi com o próprio fotógrafo, um profissional experiente em
cobertura policial.
- Os soldados estão invadindo o barraco aos pontapés e tu não estás
fotografando. Por que não?
- Porque não é importante. Cuide do seu trabalho que eu cuido do meu, tá legal?
- Como não. Deixastes de registrar uma invasão a domicílio. Isto é crime.
- Crime foi o assassinato do major.
- Se um dia fizerem isso na tua casa, vais gostar também?
- Casa não é barraco. Isso aqui é esconderijo de bandido, vale tudo.
Fiquei ainda mais irritado quando o fotógrafo deixou de documentar a cena
seguinte: mulheres e crianças chorando enquanto os soldados saíam do quintal
do barraco puxando três homens pelos cabelos. Os suspeitos são levados ao
compartimento de presos da viatura. O fotógrafo só resolve fotografá-los quando
eles já estão por trás da porta gradeada. O chefe dos PMs também é fotografado.
O sargento — que à noite vira juiz do futebol do xadrez — faz pose para a
máquina. Adora ser fotografado, odeia entrevistas. (BARCELLOS, 1997, p. 2324)
Para Edvaldo Pereira Lima (2009, p. 371) a voz autoral significa que “o leitor aceita a
diversidade que marca as diferenças entre diversos autores.” E essa diversidade é o que o atrai. A
possibilidade de encontrar ali as impressões detalhadas daquele repórter que ele (leitor) considera
polêmico, irreverente ou irônico, por exemplo, chama a atenção de quem está lendo a história. E
o jornalismo literário permite o uso desse estilo próprio, onde o autor pode deixar sua marca, sua
assinatura. Tudo no intento de agradar o leitor, fazê-lo ficar ali, lendo a história contada (2009, p.
371).
96
A voz autoral permite que o autor veja o mundo com olhar diferenciado, livre de
condições que castram seu poder de criação, observe o contexto da história e conte também suas
impressões. E essa singularidade individual “transmite à obra um toque de exclusividade que a
diferencia, valorizando-a” (LIMA,2009, p. 369).
É claro que o autor também não pode se esquecer de que qualquer texto jornalístico deve
informar, deve conter elementos da realidade que o tornem verossímil. São os dados que irão dar
o suporte para a narrativa. Que dará a permissão para o autor lançar suas percepções sobre o fato
narrado. Veja como Barcellos faz para dar o suporte necessário para sua narrativa:
No processo de checagem, já havíamos encontrado nos registros da Polícia Civil
mais 276 casos de vítimas envolvidas em processos agora na área da Grande São
Paulo, dentro do universo dos 2.303 inocentes mortos na capital. Assim, o
cruzamento das duas fontes judiciárias nos permite afirmar com segurança: se
em um total de 3.523 vítimas da PM por nós identificadas 1.496 eram
criminosas — o que representa 42,6 por cento — os outros 57,4 por cento nunca
haviam praticado crimes na Grande São Paulo. Identificamos 2.027 inocentes
assassinados pelos matadores da PM. Em relação aos policiais militares, o
cruzamento das duas fontes judiciárias também revela fatos inusitados. Na
seleção dos dez PMs com maior número de vítimas registradas em nosso Banco
de Dados, pelo menos um deles tem uma história coerente com a sua fama de
matador de bandidos. Quinto colocado na nossa lista dos dez mais, o tenente
Wanderley Mascarenhas de Souza tem seu nome envolvido em 34 assassinatos.
Nossa pesquisa mostra que a maioria das suas vítimas não era inocente, fato que
nos chamou a atenção. (BARCELLOS, 1997, p. 155)
A exatidão e precisão de dados também são marcas primordiais nos textos de Barcellos.
Mas o modo como essas informações são apresentadas ao leitor é bastante diferente do modo
praticado pela imprensa convencional. Antes de expor os dados, o autor apresenta uma cena,
conta um episódio, como a perseguição de três rapazes na narrativa a seguir:
A primeira rajada atinge o pára-lama traseiro direito do Fusca, que completa a
manobra cavalo-de-pau. Para se proteger, Noronha encolhe o corpo, baixa o
máximo que pode a cabeça, até o ponto em que garanta um mínimo de
visibilidade à sua frente. Continua usando o extremo da aceleragem. Passa pela
rua Antilhas. No final da rua Uruguai, o Fusca é atingido por nova rajada de
balas e vai perdendo velocidade ao entrar na Venezuela. O ruído da
metralhadora supera o dos motores, acorda os moradores do Jardim América. Ao
ouvir os tiros, dona Eliani Aparecida de Castro salta da cama, assustada. Entra
no quarto ao lado, onde dorme a enfermeira, que já está acordada, tentando ver
pela janela o que está acontecendo [...]
97
[...] Os policiais militares foram treinados pelo Exército a usar metralhadoras,
em 1969, com o objetivo de combater guerrilheiros. Mas, quatro anos depois,
vencida a guerrilha, continuam usando armamento pesado durante o
patrulhamento regular da cidade. Contra outro tipo de inimigo. Agora o alvo das
metralhadoras é geralmente jovem da periferia, muitas vezes desarmados. De 73
até 75, os soldados foram autorizados pelos seus comandantes a metralhar pelo
menos 109 vezes contra pessoas da zona pobre da cidade, suspeitas de serem
criminosas. O exame de cada caso revela que eles acionam o gatilho de duas
formas: disparando tiros intermitentes, igual ao revólver, ou na posição de
rajada. Em ambas as posições, a metralhadora só é acionada quando a prioridade
é considerada máxima, como no caso dos três rapazes do Fusca azul. A
perseguição da Rota 66 mostra que, na concepção de policiais mal orientados,
prioridade máxima pode ser estabelecida através de uma simples desconfiança
(BARCELLOS, 1997, p. 25).
E “depois que os disponibiliza, volta ao dinamismo do lugar, atiçando nossa imaginação,
fazendo nosso pensamento imagético construir uma seqüência visual, levemente sonora, do que
ocorre ali” (LIMA, 2009, p. 357). Esse modo de expor as informações é mais um atrativo para o
leitor, que pode acompanhar os dados relativos àquele fato e ainda ler uma história bem contada.
Durante todo o livro o leitor se depara com um volume grande de informações e, em
entrevista ao autor, Caco Barcellos contou como faz para lidar com esse material sem deixar que
a história se perca:
Esse é o sofrimento do processo: tornar o material todo em uma história atraente
e não um relatório sem começo, meio e fim, ou repetitivo. Às vezes você tem até
que eliminar histórias, pois se elas forem todas contadas você corre o risco de
aborrecer o leitor, porque ninguém gosta de ler histórias repetitivas. E,
dependendo da circunstância, é muito grave a repetição de histórias do ponto de
vista da realidade. E do ponto de vista da narrativa isso também é ruim, pois
você acaba não conseguindo contar a história da melhor maneira e aborrece o
leitor. Então é um processo sofrível, de muitas tentativas e erros. E não tem
como ser diferente. Eu escrevo no mínimo umas 200 vezes cada história até
achar que ela está mais interessante, com expectativa de segurar o leitor comigo
até o fim.
O livro Rota 66 custou a Barcellos mais de cinco anos de investigação e lhe rendeu o
prêmio Jabuti de jornalismo em 1993, além de mais 8 prêmios de direitos humanos. A obra
denuncia a ação da Policia Militar (PM) de São Paulo no período entre 1970 e 1992. As atenções
do livro são focalizadas para as operações praticadas pela ROTA (Rondas Ostensivas Tobias
98
Aguiar). Barcellos criou um banco de dados que reúne informações de boletins de ocorrências,
notas de jornais (o jornalista optou por pesquisar o jornal Notícias Populares, devido ao estilo da
cobertura desse veículo), relatórios do Instituto Médico Legal (IML), arquivos do Cartório da
Justiça Militar e, claro, entrevistas com personagens envolvidos nas histórias, como parentes das
vítimas feitas pela PM.
Em entrevista ao Observatório da Imprensa (2003) Caco Barcellos fala da importância da
reportagem e da necessidade de os jornalistas irem às ruas, aos lugares onde as histórias se
passam:
[...] eu acho que a imprensa está bem servida de analistas e especialistas
em violência, embora muitos deles nunca tenham tido oportunidade, ou
vontade, de conhecer de perto os lugares sobre os quais emitem opinião.
A reportagem precisa recuperar o espaço perdido, no mínimo para se
corrigir uma distorção: a de se falar demais dos personagens envolvidos
com violência sem se conhecer a fundo suas histórias.
O livro traz, além das informações, histórias de vida que contribuem para sustentação dos
dados. E essas histórias são dispostas para o leitor a partir de uma narrativa híbrida, onde
Barcellos trabalha tomando por base alguns elementos da literatura. No início da obra o jornalista
narra uma cena que conta de uma perseguição feita pela polícia a três rapazes que estavam em um
Fusca. Essa história inicial serve também como eixo condutor para o restante da obra. Veja
alguns trechos:
A Veraneio cinza nunca esteve tão perto. A 200, 300 metros, 15 segundos. A
sirene parece o ruído de um monstro enfurecido. Os faróis piscam sem parar. O
farolete portátil de 5 mil watts lança luzes no retrovisor de todos os carros à
frente. Os motoristas, assustados, abrem caminho com dificuldade por causa do
trânsito movimentado nesta madrugada de quarta-feira, no Jardim América. A
Veraneio, com manobras bruscas, vai chegando perto, cada vez mais perto do
três homens do Fusca azul.
Eles estão na Maestro Chiafarelli e têm à frente uma parede de automóveis à
espera do sinal verde para o cruzamento da avenida Brasil. O motorista do Fusca
azul, Francisco Noronha, sem tirar o pé do acelerador, reduz da quarta marcha
para a terceira, em seguida para a segunda, e, ao girar o volante à esquerda, a
roda dianteira bate no canteiro divisor de pista. Sem perder o controle,
imediatamente ele gira à direita e segue em direção à calçada oposta. Sobe o
meio fio. Quase atropela um grupo de jovens, que tenta proteção junto ao muro.
Ao desviar deles, por sorte, bate com a traseira em um poste na esquina. O Fusca
se alinha sobre a calçada da Brasil, com a frente apontada à direita, que está livre
para a fuga. — Atenção, tigrão. Prioridade rua Maestro Chiafarelli. É Maestro
99
Chiafarelli, QSL, tigrão? A prioridade agora é Maestro Chiafarelli. Três
elementos Fusca azul. QSL. QSL, tigrão? Câmbio. Os cinqüenta tigres estão
espalhados pela cidade, cinco em cada uma das dez Veraneios cinza. Tão logo
ouvem a ordem da Central de Operações, via rádio, começam a voar baixo em
direção ao Jardim América (BARCELLOS, 1997, p. 4).
A descrição cena a cena estabelece uma proximidade com o leitor, trazendo-o para
dentro da narrativa. Essa construção é o momento onde o autor busca pintar, em palavras, um
quadro daquilo que vê e descobre sobre o ambiente e os personagens envolvidos na história. Para
essa construção o autor pode fazer o uso de símbolos como as metáforas. Nesse trecho que
acabamos de ler, Barcellos diz: “Tão logo ouvem a ordem da Central de Operações, via rádio,
começam a voar baixo em direção ao Jardim América”. A expressão “voar baixo” é usada para
melhor expressar o que o autor quer dizer, para que o leitor possa visualizar e então compreender
a situação. Caco Barcellos faz uso da descrição também para apresentar os personagens de sua
história. Não apenas para que o leitor construa uma imagem física da pessoa retratada, mas
também para que tenha uma idéia do status de vida desse personagem, por exemplo. No trecho a
seguir, Barcellos consegue nos dar uma idéia das características físicas e pessoais do personagem
Noronha. A descrição de suas roupas de grife, por exemplo, nos faz entender que o garoto
possivelmente tem um padrão de vida elevado.
Noronha, aos 17 anos, é uma unanimidade. As garotas adoram o jeito, o charme
do skatista radical. Inquieto, irreverente, às vezes rebelde. Não é exatamente um
rapaz bonito: 1,68 metro de altura, ombros largos, corpo de atleta; cabelos
castanhos e crespos, longos e despenteados, sempre repartidos ao meio e a barba
por fazer. Lara lembra da roupa que ele usava naquele dia em que o namoro
começou. Calça Lee surrada com várias etiquetas cobrindo as partes puídas,
camiseta Hang Ten, tênis AlI Star. Não por coincidência, a mesma dessa noite
acrescida de um suéter de cashmere. Um uniforme rebelde, americanizado. Uma
moda estrategicamente fora de moda, sucesso entre as garotas. Motivo do
comentário irônico da namorada:
- O, meu! Você deve ficar hoooras em frente ao espelho se produzindo pra
parecer que odeia se produzir.
- Pára com isso, Larinha. O meu jeito é assim mesmo: largadão, não estou
nem aí com a moda (BARCELLOS, 1997, p. 6).
Caco Barcellos também usa outro recurso presente nas composições de jornalismo
literário: o fluxo de consciência. Trata-se de um elemento imprescindível para a descrição de
100
cenas que possivelmente o autor da obra não tenha acompanhado. Esse recurso é alcançado a
partir de exaustivas entrevistas com personagens envolvidos e de todo tipo de informações que se
possa garimpar e reunir. Vejamos como foi o desfecho dessa narrativa envolvendo a fuga de
Francisco Noronha, Carlos Ignácio de Medeiros – o Pancho-, e Augusto Junqueira, todos
estudantes de famílias de classe média.
As lanternas do freio permanecem apagadas como sempre estiveram. Mas na
esquina da Argentina com rua Alasca, de repente, as luzes vermelhas se
acendem na traseira do Fusca, ao mesmo tempo em que se ouve o ruído de pneus
no asfalto. Algo de grave deve estar acontecendo com Francisco Noronha.
Provavelmente ferido, ele não consegue vencer a curva de 90 graus. O carro
aponta em um ângulo de 45 e pára no momento em que o pára-lama dianteiro
esquerdo colide contra o poste em frente ao número 66 da Alasca. Pancho abre a
porta e sai rápido, gritando em desespero. No lado oposto, Noronha abandona o
volante, deixa o motor funcionando. Ao sair do Fusca, ergue os braços, põe as
mãos sobre a cabeça.
Augusto continua no carro, rosto grudado no vidro, sangrando.
- Não atirem!
O grito desesperado de apelo é ouvido pela empregada doméstica da mansão da
esquina, 685 da rua Argentina. Lygia de Almeida Queiroz, de 51 anos, foi
acordada pelo barulho da perseguição, mas continua na cama. Pensa em levantar
para sair à rua, mas tem medo. Deitada no quarto escuro, imagina através dos
ruídos o que pode estar acontecendo lá fora. A Veraneio breca bem no meio da
esquina, a 9 metros do Fusca. As quatro portas são abertas ao mesmo tempo.
Viram escudo dos três PMs armados de revólver. Francisco de Paula, o
motorista Cláudio Cândido e o comunicador Antônio Sória apóiam os braços
esticados no encosto das janelas. O sargento Felício e o cabo Martínez,
metralhadora na altura da cintura, se afastam para os lados do carro. Apontam na
mesma direção do facho de luz, que provoca cegueira e pavor nos rapazes. Eles
usam as mãos para proteger os olhos da iluminação, tentar enxergar alguma
coisa. O máximo que eles podem ver, na posição que estão agora, são os cinco
pontos de fogo das armas que começam a disparar contra eles. (BARCELLOS,
1997, p. 28-29)
Essa história narrada por Barcellos é uma de suas várias tentativas de mostrar a
incoerência dos trabalhos dos policiais da ROTA. Segundo o jornalista, os matadores da polícia
de São Paulo além de matarem suspeitos violam os locais do crime numa tentativa de
impossibilitar investigações que, possivelmente, provariam as brutalidades cometidas pelos
policiais.
Instantes depois do assassinato, ao chegar à esquina da Argentina com a Alasca,
o oficial da Rota-Comando, tenente Nepomuceno, de 21 anos, se revela um
profissional totalmente despreparado para a função. Os corpos dos rapazes estão
101
sendo arrastados do Fusca para o compartimento de presos da Rota 17, numa
violação do local do crime que deveria ser totalmente preservado. Os PMs da
Rota 66 encenam um gesto humanitário, uma tentativa de salvar a vida dos
rapazes providenciando transporte ao hospital mais próximo. O tenente não só
deixa de impedir a irregularidade como participa da encenação.
Basta contar os tiros que atingiram o carro para se concluir que a intenção dos
PMs não era a de evitar a morte dos rapazes. Os dois pára-brisas estão
estilhaçados, os vidros da janela do motorista e o lateral traseiro também. São 21
marcas de bala, a maioria na parte superior do Fusca, o que indica a vontade de
matar. Os ferimentos nos corpos são ainda mais reveladores. O sangue escorre
por 23 perfurações de balas, a maior parte em regiões vitais, como o coração e a
cabeça. A pressa em socorrer só ocorre, de fato, na retirada dos corpos do local
do crime. A caminho do hospital, ao contrário, a velocidade dos policiais
militares é de lesma (BARCELLOS, 1997, p. 35).
As pesquisas de Caco Barcellos revelam ainda que o caso da Rota 66 que acabamos de ler
não ocorre com tanta freqüência, pois as vítimas da vez faziam parte da minoria rica do país. Na
grande maioria dos casos, segundo apurou Barcellos, os mais perseguidos pela polícia são os
menos favorecidos.
Barcellos mostra ainda alguns casos em que policiais foram processados e julgados
inocentes pelos tribunais da própria instituição. O que o motiva ainda mais a escrever sobre o
tema. A impunidade pode ser resumida em mensagens de congratulações emitidas por
comandantes da polícia aos seus matadores e subordinados. Barcellos busca essa informação e
dispõe ao leitor.
"Nossos parabéns e que continue sempre demonstrando grau de eficácia cada
vez maior por parte da Rota e de seus componentes a fim de que o nome da
mesma e do 1° Batalhão Tobias de Aguiar se localize mais profundamente na
coletividade tão ansiosa por dias mais tranqüilos em sua existência." (Secretário
do 19° Batalhão,10/3/75)
Informações como estas contribuem para que o autor conte a história da maneira que
considera mais fiel aos fatos, e sem correr o risco de emitir muitas opiniões. As informações
servem para isso, ancorar a narrativa, amparar o autor que, inegavelmente tem sua opinião sobre
aquilo, porém não a pode dizer abertamente, afinal ele tem de ser imparcial.
Outro fator que merece destaque deste livro de Caco Barcellos é a contextualização, ou a
maneira como o autor da narrativa dispõe as informações para o seu leitor. Basicamente, a
maneira de contar. Barcellos consegue criar uma proximidade entre o leitor e a história que está
102
contando. O texto tem características que facilitam a compreensão além de tornar agradável a
leitura até mesmo em pontos onde o que mais se lê são dados.
Alguns armários sem porta mostravam grandes garrafas de vidro com pedaços
de corpos mergulhados em formol. Mãos. Pés. Cabelos. Fetos deformados.
Olhos. Muitos vidros cheios de olhos flutuantes. Álbuns e mais álbuns com
fotografias de cadáveres em todos os estágios de putrefação. Livros de capa
preta. Velhos instrumentos um dia usados nos exames de necropsia. Cadeiras
quebradas. Pedaços de macas. Máquinas de escrever emperradas. Apontei o
centro da sala, para mostrar ao diretor o motivo de meu interesse. Uma
montanha de pastas e papéis velhos cobertos de pó. Ele sabia muito bem do que
se tratava.
- Documentos usados no transporte de cadáveres. O que você pretende achar aí?
— perguntou o diretor com curiosidade, talvez por me julgar um pesquisador
excêntrico.
- Estou fazendo uma pesquisa sobre morte por causa violenta na cidade. Tenho
certeza de que essa documentação vai ajudar muito — respondi torcendo, por
prudência, parte da verdade ao diretor, embora ele se mostrasse gentil e com
vontade de ajudar.
- Nunca pensei que um repórter pudesse se interessar por isso...
- Há loucos para tudo, diretor.
- Quantos dias você pretende ficar aqui?
- Quantos forem necessários.
- Bem, isso depende do período de abrangência da sua pesquisa. Abrange
quantos dias, semanas...
- São anos, doutor. Quero examinar todos os documentos desde 1970.
- Não acredito. São mais de 60 mil documentos por ano. Você terá que contratar
uma centena de auxiliares ou então se despeça da família e se mude para cá com
cama e tudo — brincou o diretor.
- Quando posso começar?
- A sala é sua. Você será o primeiro e certamente o último a mexer nessa poeira
toda... Convém usar máscara de papel. Insalubridade, hein! — ele advertiu.
(BARCELLOS, 1997, p. 73)
Aqui o uso de diálogos também colabora para que o texto ganhe uma certa leveza e para
a ampliação da compreensão do fato narrado. Do trabalho do repórter vale destacar a observação
intensa, possível apenas a partir de uma imersão no ambiente em que se passa a história. A partir
dessa descrição, feita logo no início do capítulo, a inserção de dados e informações mais técnicas
“caem melhor”. O leitor não sente o impacto de muitas informações e nada de contextualização.
O texto escrito assim ganha forma de romance, mas com histórias da vida real.
103
Em entrevista ao autor, Barcellos falou sobre as características de seus textos, sobre o uso
de diálogos, da observação intensa, da descrição cena a cena, imersão, humanização, digressão,
etc. O jornalista contou sobre a importância desses elementos para a narrativa jornalística:
Eles são essenciais. Em síntese, se o livro for de não ficção ou ficção, de
reportagem ou não, o importante é que o texto seja elegante, agradável e, que
atraia o leitor para a história que você quer contar. Essas técnicas são
importantes para tornar a leitura prazerosa.
Quando eu estou apurando uma reportagem eu já estou pensando em como vou
contar essa história. Que elementos vou usar para contar melhor. Os diálogos,
Poe exemplo, são fundamentais. Então eu apuro pra reconstituir os diálogos. Há
quem confunda ou chame o jornalismo literário de fantasia. Absolutamente não!
Embora existam algumas pessoas que façam. Eu não faço. Eu escrevo baseado
na verdade que eu consigo apurar, pensando nessas técnicas todas pra tornar a
história mais agradável. A qualidade do texto é fundamental pra você prender o
leitor na sua história.
Barcellos, em certos momentos de sua narrativa, faz uso da digressão, que Edvaldo
Pereira Lima (2009, p. 245) diz ser:
Uma espécie de rápida reflexão do autor sobre o que está contando. Ele
interrompe momentaneamente a narrativa para apresentar um tópico paralelo ou
complementar que merece atenção, sem o qual o leitor talvez não tenha em mãos
informação suficiente para compreender o que está acontecendo, na história
sendo contada. Depois, volta à narrativa, dando-lhe continuidade.
Essa ferramenta pode apresentar algumas variações e ser usada para trazer informações
históricas, política, social, humana. Tudo no intento de ampliar a compreensão do leitor sobre o
que está sendo contado. No exemplo a seguir, Caco Barcellos “interrompe a perseguição” para
trazer informações sobre a vida pessoal de um dos rapazes perseguidos pela polícia. O importante
é que essa informação serve para que o autor nos dê uma idéia do comportamento de seu
personagem em sua vida cotidiana.
À espera do inimigo, o motorista da Rota 66 acelera muito, sem movimentar o
carro, ainda parado no meio da pista. Ao lado dele, no banco dianteiro, o
comandante da equipe, sargento José Felício Soares, tem uma metralhadora
sobre o colo. Atrás, entre dois PMs, está o soldado Antônio Sória. Ele se apóia
104
no encosto do banco da frente, avança o corpo o máximo que pode para ver
melhor a cena. Sória é o comunicador da Rota 66.
— Só dá pra ver dois. O passageiro está usando um chapelão. O motorista é
cabeludo, deve ser maconheiro, QSL? Meliante cabeludo, QSL? Está vindo pra
cima de nós! É agora, Copom, vamos pegar, Copom!
Duas horas antes de cruzar com os homens da Rota 66, os longos cabelos do
menor Francisco Noronha estavam entre as mãos da namorada, Lara Jamra, que
os acariciava enquanto ele fazia o que mais gostava na vida: namorar em um
passeio noturno de carro, em baixa velocidade, ouvindo Yes, Pink Floyd, Led
Zeppelin pelas ruas arborizadas da cidade universitária. Namoro monossilábico.
De vez em quando, um ou outro baixa o volume do som, para poder ser ouvido.
- Que baraaato, Larinha!
O namoro já dura três meses, tempo suficiente para Lara entender que o
significado dessa expressão de Noronha é amplo. Pode representar qualquer
coisa relacionada ao prazer de estarem juntos. Um elogio ao som, aos carinhos, à
bela noite, aos momentos de curtição sem palavras. Observadora sensível, Lara
gosta de interpretar o silêncio do namorado como um sinal de quem está muito
de bem com a vida e amando a companheira. De tempos em tempos, ela também
se declara apaixonada. Bem ao jeito que Noronha gosta de ouvir:
– Que legaaal, meu!! (BARCELLOS, 1997, p. 5)
Conhecer melhor os personagens da história contada ajuda o leitor a criar uma
identificação com os envolvidos, se aproximar do fato narrado, se prender e querer ir até o fim. É
como nas novelas, onde criamos uma identificação com algum personagem e então vamos até o
fim dessa narrativa para descobrir como sua história termina.
A seguir passaremos a analisar o livro Abusado, onde continuaremos discutindo a
importância da reportagem e da cobertura de estilo literário. O estudo do segundo livro do autor
pretende evidenciar a importância da imersão do repórter na realidade sobre a qual pretende
contar, do uso de diálogos e voz autoral, além de outros elementos presentes nas coberturas de
estilo literário. Mostraremos quais são os caminhos percorridos pelo repórter em busca da melhor
compreensão da vida real.
4.2. Abusado: o dono do morro Dona Marta
O último livro lançado por Caco Barcellos apresenta algumas semelhanças com o Rota
66. Porém traz uma narrativa melhor elaborada e uma participação mais intensa daqueles de
105
quem ele decide contar a história. No entanto, Barcellos mantém “seu lado”. Decide subir o
morro Dona Marta, no Rio de janeiro, para contar a história das pessoas que moram ali e,
sobretudo, de uma quadrilha liderada pelo traficante Marcinho VP (que na obra é cunhado como
Juliano VP), um dos líderes do Comando Vermelho (facção criminosa do Rio de Janeiro que
compete com o Terceiro Comando na briga por mais pontos de vendas de drogas). O jornalista
consegue conquistar a confiança do dono do morro, Marcinho VP, e passa a investigar e observar
a vida de seus moradores.
Barcellos diz não acreditar que os leitores não gostam de ler ou que não dispõe de duas ou
três horas para dedicar à leitura. Fala ainda sobre a carência de reportagens nas publicações
jornalísticas em geral:
[...] a vendagem dos livros de reportagem ou de não ficção provam que o leitor
gosta muito de reportagem, gosta muito de ter conhecimentos mais
aprofundados sobre os acontecimentos. Se não fosse assim os livros seriam um
fracasso. E as editoras estão sempre procurando escritores de não ficção,
jornalistas.
E acredito que isso acontece porque os jornais e as revistas abandonaram a
reportagem de maior fôlego, deixando uma lacuna grande nas bancas e as
editoras estão se aproveitando disso.
Na televisão, por exemplo, os programas de reportagens são muito bem
sucedidos do ponto de vista da audiência, o que prova que as pessoas estão
carentes desse tipo de trabalho jornalístico. Se você observar a programação da
TV é recheada de programas jornalísticos baseados em entrevistas, opinião, bate
papo, e pouquíssimos programas de reportagem. (entrevista ao autor)
O livro Abusado segue trazendo características que vão ao encontro da proposta do
jornalismo literário. Em mais um exemplo de voz autoral e também com objetivo de mostrar
para o leitor como foi parte de seu trabalho, Caco Barcelos conta na terceira parte do livro (Adeus
às armas) como foi um dos encontros com o traficante dono do morro.
No ponto final, eu e o missionário Kevin já éramos aguardados por uma jovem,
de uns 15 anos de idade, que nos levou até o alto do morro e nos deixou à
sombra de uma árvore. Juliano chegou minutos depois. Parecia ter pressa de
voltar para o lugar de onde viera. Fomos objetivos.
- Tenho uma proposta. Quero que você escreva um livro sobre a história da
minha vida.
O missionário Kevin e outras pessoas já haviam me falado desse projeto de
Juliano. Já refletira um pouco sobre a idéia e resolvi recusá-la por princípios.
Interpretei que o desejo dele era de um livro que fizesse a sua defesa pessoal ou
106
algo que legitimasse a sua trajetória no crime, como se fosse derivada apenas do
processo de exclusão social que sofrera. O outro motivo para recusar a proposta
era mais sério, e de imediato falei para Juliano:
- O problema de um livro desse é a conseqüência da notoriedade.
- Não entendi.
- Como você prefere ser chamado? De traficante, de criminoso...
- Bandido. Bandido!
- Lembra do Lúcio Flávio, do Meio-Quilo, do Bolado, do Brasileirinho?
- Lembro. Lembro.
- E o que acontece com os bandidos no Brasil quando ficam mais conhecidos?
Alguns são presos e tudo bem. Mas muitos são mortos. Não quero ser
instrumento da morte de ninguém.
Juliano reagiu indignado com a minha franqueza.
- Que isso, cara? Tira essa palavra da sua boca, isso nunca vai acontecê comigo disse ele enquanto fazia três vezes o sinal-da-cruz com a mão. (BARCELLOS,
2003, p. 451-452)
Na continuação do diálogo Juliano mostra sua preocupação com a vida do filho. De
maneira até contraditória diz não querer que o filho siga os seus passos. Nesse próximo trecho é
importante notar que Caco Barcellos opta por usar travessão nos diálogos, além de manter a fala
literal dos personagens de sua história. Isso nos mostra a intenção em dar espaço amplo para
aqueles a quem a imprensa convencional geralmente nega.
- Minha contraproposta é um livro sobre a tua quadrilha inteira, acho que a
sociedade precisa conhecer melhor a vida de vocês.
- Isso dá mais que um livro. Dá vários!
- Topo fazer um!
- Mas por que não sobre a minha vida? Tenho muita história, cara. Quero que
um dia meu filho ponha na idéia que esse bagulho do tráfico é foda.
- Que idade ele tem?
- Doze, tá na idade foda!
- Você tem medo que ele siga o exemplo do pai?
- Muito, muito. Isso não pode acontecê de jeito nenhum.
- Por que você não escreve? - disse eu.
- Sô muito ocupado, cara. É muito bagulho pra tomá conta.
- Mas agora você é um foragido, aproveita o tempo...
- Não tem clima. Começamos fazendo o teu, depois eu dô um jeito de fazê o
meu. (2003, p. 452)
Em Abusado, Barcellos rompe barreiras e conceitos pré-estabelecidos e convencionados.
Não limita sua pesquisa à busca por dados documentais ou à recorrência às fontes autorizadas. O
107
livro rompe padrões de compreensão, busca o novo, o diferencial, prima por detalhes que ajudem
o leitor a ampliar sua visão de mundo. Portanto, diferente de muitos veículos da imprensa
convencional não reduz o real com uma visão estereotipada e sensacionalista. Amplia sua
observação para evitar vícios como a simplificação da imagem “mocinho e bandido”,
estabelecida muitas vezes pela imprensa convencional e onde os policiais ficam com o papel de
mocinho.
Em entrevista à revista Trip, em 5 de fevereiro de 2009, Caco Barcellos falou sobre a
cobertura exagerada que alguns veículos de comunicação fazem e os cuidados para não cair nessa
armadilha:
Ver o noticiário vespertino dá a impressão de que tem um tiroteio em cada
esquina. Alguns veículos sim. Mas em relação aos últimos 20 anos, hoje o
assunto é tratado com nobreza. Repórteres de talento, com contexto, estatística
adequada. Uma palavra fora de moda, mas atualíssima e necessária, é contexto.
Se você põe as coisas dentro de um contexto, você não corre esse risco de falar
de maneira exagerada de uma coisa que não tem relevância pública.
[...] procuro buscar mais o contexto, as nuances. Tudo sempre é muito complexo
quando envolve gente. O pai alcoólatra geralmente é um cara generoso. Bebe e
perde o equilíbrio (NOGUEIRA, 2009).
Essa fala de Barcellos evidencia outra característica importante de seus trabalhos: a busca
pela compreensão. Morin (2000, p. 100), diz que “a compreensão não desculpa nem acusa: pede
que se evite a condenação peremptória, irremediável, como se nós mesmo nunca tivéssemos
conhecido a fraqueza nem cometido erros. Se soubermos compreender antes de condenar,
estaremos no caminho das relações humanas”. A compreensão é um dos propósitos do jornalismo
literário, pois tem caráter duradouro, educativo, além de poder proporcionar uma consulta
prolongada. Portanto, a efemeridade inerente ao jornalismo convencional não atinge esse estilo
de cobertura.
Sobre esse assunto, Edvaldo Pereira Lima (2009, p.366), mostra-nos alguns pontos
divergentes entre a cobertura convencional e de estilo literário e lembra que:
Compreender é diferente de explicar. A explicação adota geralmente uma visão
unilateral, verticalizada, de cima para baixo, reducionista. Mostra o mundo sob
uma óptica única ou de pouca abertura. Já a compreensão busca exibir o mundo
sob perspectivas diversificadas. Mais do que isso, ilumina as conexões entre
conteúdos aparentemente desconectados. Interliga dados, mostra sentidos,
perspectivas. Faz, nos bons casos de jornalismo literário, com que o leitor
108
perceba o que tem a ver, com sua própria vida, tudo aquilo que está lendo.
Idealmente o jornalista literário não julga ou opina panfletariamente sobre um
assunto. Busca evitar preconceitos, assim como leituras rígidas da realidade.
Tenta ultrapassar os estereótipos, levando a compreensão de uma situação por
inteiro, iluminado-a sob diferentes ópticas.
A narrativa de Barcellos nos traz uma visão multiangular dos conflitos humanos. Em
Abusado, o jornalista passa anos visitando o morro carioca para nos dar uma idéia da vida dos
moradores desse local. E o faz com propriedade. Contextualiza, observa e busca detalhes. Depois
volta e nos conta a partir de uma narrativa que parece conto.
O Águia fez o trajeto dos helicópteros que partem da lagoa Rodrigo de Freitas
para mostrar aos turistas, por mil dólares a hora, os lugares de beleza exuberante
do Rio de Janeiro. Passou primeiramente pela praia de Ipanema voando baixo,
chamando a atenção da multidão à beira-mar. Subiu para 300 metros e
contornou à direita no Leblon, onde o piloto costumava flagrar mulheres semi
nuas tomando banho de sol nas coberturas dos prédios. Aos poucos foi subindo
em direção ao Cristo Redentor.
[...] Ninguém viu seus inimigos chegarem silenciosos pelo céu. Só perceberam
quando os primeiros tiros disparados do ar atingiram o chão do Tortinho.
- Dum! Dum! Dum!Dum! Dum!
Um dos tiros acertou a cabeça de Binha, que caiu de bruços com o rosto sobre a
marmita de comida. Teve morte instantânea.
O Águia tinha se aproximado do morro por trás da montanha. Bem perto da
Pedra do Xangô, o piloto desacelerou o motor para diminuir ao máximo o ruído.
Só depois de contornar a grande pedra voltou a acelerar. Os atiradores estavam
nas portas laterais abertas. Sentados sobre chapas de aço blindadas, com as
pernas para fora, portavam fuzis de longo alcance. Os alvos dos primeiros
disparos foram os meninos que corriam para todos os lados do Tortinho.
Todos correram em direção ao beco que levava à área dos barracos, menos Nein,
o primeiro a ser ferido. (BARCELLOS, 2003, p. 543-544)
Nesse trecho aparece mais uma característica do texto de Abusado: o uso de
onomatopéias. A narrativa segue em ritmo de romance, com histórias de vários moradores do
local como os “chuveirinhos” (responsáveis por consertar os encanamentos perfurados pelas
balas nas trocas de tiros) e os aviões (responsáveis por levar e trazer avisos ou carregamentos de
drogas).
Barcellos (2003, p. 458) conta que além das entrevistas com os personagens da favela
Dona Marta fez pesquisas em documentos como notícias de jornais e boletins da Polícia para
109
confrontar as informações que recebia de moradores e traficantes do morro. Pois, segundo ele,
muitas histórias poderiam ter sido inventadas ou exageradas.
Como marca de boa parte de seus trabalhos, Caco Barcellos faz uso do fluxo de
consciência para poder dar mais vida e dinamismo à narrativa. A partir da investigação
minuciosa, pôde mostrar detalhes relevantes e garantir a “boa amarração” do texto.
Era a cela mais quente do presídio, daí o apelido Havaí. Um retângulo de oito
metros quadrados, com dois de largura e quatro de comprimento, onde estavam
amontoados 28 detentos, 29 com Juliano.
A única ventilação vinha de uma abertura estreita e gradeada no alto da parede
do fundo. Antes do carcereiro abrir a porta feita de barras de ferro paralelas, ele
sentiu o cheiro de suor e urina que vinha lá de dentro. Mesmo assim se animou:
qualquer coisa agora era melhor do que ser o alvo das barbáries dos carrascos.
Já sabia que a chegada ao xadrez era sempre um momento tenso, imprevisível,
cheio de ameaças subliminares, mas Juliano estava confiante na receptividade.
Sempre ouviu dizer que quem era odiado pela polícia tinha respeito redobrado
na cadeia. Por isso acreditava que as marcas de tortura por todo o corpo seriam a
melhor credencial, dispensariam outra forma de apresentação. Nos códigos dos
prisioneiros, garantiriam solidariedade imediata.
A porta formada por barras paralelas de ferro foi aberta pelo carcereiro e Juliano
avançou três passos à frente, dois à direita e parou. Era estratégico se acomodar
na “praia”, a área mais próxima da saída e a das mais indesejadas. A pior de
todas era a do banheiro, o “boi”, usado em caso de extrema lotação do xadrez.
Resolveu esperar o final do dia para ver como o pessoal se organizava na
distribuição do espaço exíguo. Eram 29 homens num lugar planejado para
acomodar no máximo oito. Lá no fundo alguns descansavam deitados lado a
lado na forma de valete em posições invertidas, a cabeça de um próxima aos pés
do que estava deitado ao lado.(BARCELLOS, 2003, p.153-154)
Depois de apresentar os detalhes sobre aquela cela apertada, mostrando medidas e objetos
que ali estavam, Barcellos revela também os diálogos que aconteceram após a chegada de Juliano
à cela. Os diálogos têm o objetivo de situar o leitor naquele ambiente que está sendo narrado,
mostrar como são os comportamentos daqueles personagens. Com isso cria-se uma proximidade
com ele (leitor), levando-o a continuar lendo a matéria.
- Gostei disso aí que você tá usando - disse um homem de bermudas, baixo,
musculoso, que estava em pé ao lado de Juliano, e tão próximo que nem dava
para ver o rosto dele.
Juliano olhou para a tampa de alumínio acreditando que a sua colher
improvisada estivesse despertando curiosidade. Não estava. O segundo
comentário soou como uma ordem.
110
- Gostei desse teu cordão. Vô curti esse bagulho no meu pescoço - disse o
suposto chefe do xadrez.
- Bacana mesmo! - respondeu Juliano sem levantar a cabeça, demonstrando
maior interesse na comida que ainda não havia provado.
- Qual é, você ainda não entendeu? Passa logo esse cordão, cara - gritou o
estranho, já irritado.
Juliano pôs o prato de comida no chão e tão logo se levantou ficou cara a cara
com o estranho, que já imaginava ser o chefão do xadrez ou alguém sob as
ordens dele. Os outros presos se afastaram para assistir à briga que parecia
inevitável.
- Seguinte, cara. Você não acha melhor a gente queimar um baseado e mudar de
assunto? - sugeriu Juliano.
- Olha só, isso aí é a marca de paz e amor, não é? Tu é chegado, malandro? Poe
no meu pescoço, põe.
- Posso tirar do meu pescoço, não, cara. Eu fiz uma promessa, tá entendendo? disse Juliano, ainda procurando convencê-lo a mudar de idéia.
- Que promessa, caralho?
- Uma mina, uma gata. Ela fez eu jurar que só daria esse cordão pra quem
chupar meu pau melhor do que ela chupou. Vai encarar?
A ousadia de Juliano surpreendeu o provocador, que se calou, e provocou
gargalhadas gerais, inclusive do chefão. Ele afastou os dois que se posicionavam
para a troca de socos e se apresentou ao novato.
- Gostei de ver, na moral! Eu sou o responsa, Bira do 37.
- Juliano, com todo o respeito (BARCELLOS, 2003, p. 154-155).
Para Edvaldo Pereira Lima (2009, p.107), a entrevista em livro desponta como “uma
expressão em si, dotada de individualidade, força, tensão, drama, esclarecimento, emoção, razão,
beleza”. E a partir daí nasce a possibilidade do diálogo possível, a aproximação entre entrevistado
e entrevistador defendido por Cremilda Medina (1986) e, que só é possível no livro, pois não
existe uma pauta fechada para inibir a criatividade do jornalista.
Por outro lado, Caco Barcellos, em entrevista ao Observatório da Imprensa, lembra que é
necessário ter cautela na cobertura de histórias como a de Abusado:
A apuração de crimes, se feita de forma superficial é muito simples, sobretudo
no morro onde o pessoal geralmente fala muito, inclusive de coisas que não
fizeram. Falam para impressionar. Reproduzir esses relatos, sem o confronto das
informações e investigação mais apurada, seria irresponsabilidade. Prefiro ser
chamado de cauteloso a ser acusado de praticar sensacionalismo, com a
justificativa de ter conquistado algum depoimento gravado como se fosse uma
verdade absoluta. Sem dúvida foi a apuração mais difícil de meus quase 30 anos
de experiência. Peneirar o volume impressionante de informações contraditórias
deu tanto trabalho quanto o de convencê-los a me confiar as suas histórias.
(Observatório da Imprensa, 2003)
111
O livro que hoje é leitura obrigatória para quem quer fazer o vestibular em algumas
faculdades como a Cásper Líbero, por exemplo, rendeu a Caco Barcellos mais um prêmio Jabuti.
E mostra a violência sobre uma ótica até então desconhecida: a dos traficantes e moradores de
uma favela. Barcellos expõe sem espetacularizar, como faz boa parte da imprensa convencional
brasileira. Seus relatos fogem do sensacionalismo e deixa que os julgamentos sejam feitos por
quem deve ou deveria fazê-lo sempre: os leitores.
Barcellos conta que a cobertura de estilo literário e a reportagem seriam importantes para
melhorar as produções jornalísticas brasileiras. Perguntado sobre a influência da superficialidade
da cobertura nas discussões sobre o fim do jornal impresso, Barcellos respondeu:
Os jornais impressos estão mal, porque eles estão querendo competir com a
Internet, com a televisão. Eles estão querendo chegar primeiro nos
acontecimentos e eles são veiculados com 24 horas de atraso. Portanto, é
impossível chegar antes. Eles deviam esquecer disso, dessa coisa superficial,
ligeira, rápida, sintética e passar a explicar a história, dar uma visão mais ampla
para o seu leitor. Ao invés de contar primeiro, eles deveriam preferir contar
melhor. É a única saída (Entrevista ao autor).
Caco diz ainda que a reportagem é o produto mais caro do jornalismo e, por isso, não
recebe tanta atenção das empresas de comunicação. E, além disso, o profissional também precisa
ser um apaixonado por coberturas de maior fôlego, já que construir uma reportagem não é tarefa
das mais fáceis. A reportagem “custa caro e dá trabalho, e tem gente que prefere o mais fácil. Eu,
por exemplo, fico embaixo de uma ponte noite e dia esperando o trem passar, pois naquele
momento pode acontecer alguma coisa. Se não passar tudo bem, estou feliz porque tive ali uma
experiência curiosa. Tem gente que acha isso um absurdo” (entrevista ao autor).
4.3. Profissão Repórter: histórico e elementos narrativos
No programa Profissão Repórter Caco Barcellos estende a característica de seus trabalhos
com os livros para a TV. O objetivo do programa também é contar histórias sob a ótica de
pessoas comuns. O projeto vem garantindo a vida de narrativas de qualidade na televisão
112
brasileira e começou a ser exibido no ano de 2006, em um quadro dentro do Fantástico (programa
em formato de revista eletrônica, da Rede Globo).
Em entrevista para o site de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, em janeiro de 2007,
Barcellos falou, entre outros assuntos, sobre como surgiu a idéia do programa.
Caco: Há dez anos tenho o projeto de fazer reportagem com vários olhares
simultâneos, e ao mesmo tempo revelar os bastidores do trabalho, os erros e os
acertos, as dúvidas, as questões éticas. O jovem ali é um detalhe, não secundário,
mas um detalhe. Não é um projeto focado em novos talentos, e sim na
reportagem. Não há nada de novo no projeto. Trata-se de uma coisa muito
antiga: o valor da reportagem, que está esquecida nas grandes redações
(diponível em: www.facasper.com.br).
Barcellos revela assim traços importantes para definirmos o narrador do programa. Diz
que o objetivo de seu projeto é mostrar olhares multifacetados sobre o fato narrado além de
alguns lances dos bastidores. E, para tanto, traz o jovem como seu interlocutor, como alguém que
irá servir como mediador entre a sua vontade como narrador e o fato em si.
A partir de junho de 2008 o programa passou a ter seu próprio espaço. E agradou. A
média de ibope do programa é de 21 pontos (segundo assessoria da Rede Globo), o que se torna
bastante significativo considerando-se o horário em que é exibido - terças-feiras, 23h30.
O programa não trata de assuntos totalmente desconhecidos pela mídia e pelo público. O
diferencial é o tratamento dado aos fatos. Além de oferecer ao telespectador diferentes ângulos da
mesma notícia, as matérias do Profissão Repórter revelam o fator humano da cobertura.
113
O contrato do programa com a
emissora foi prorrogado e o
Profissão Repórter continua em
2010.
As principais características do
jornalismo
literário,
como
imersão,
humanização,
digressão, uso intenso de
diálogos,
voz
autoral
e
observação, estão presentes na
maioria das narrativas do
programa.
Outras duas características da cobertura literária, incorporados no programa, são a
imersão e a voz autoral. Os repórteres inserem-se no contexto da história a ser narrada,
participam de alguma maneira no cotidiano dos personagens desta, ficam com eles em momentos
bons e também nos difíceis. Tudo no intento de compreender melhor os conflitos humanos e
ampliar a visão dos telespectadores. E, importante, sem pieguice.
Os temas são variados. As vezes polêmicos como “A indústria do sexo”; as vezes
dramáticos como “À espera de um coração”; outras vezes comuns, mas não menos importantes,
como “As enchentes de Santa Catarina”. E a intenção é desvendar quem são nossos semelhantes
em suas complexidades individuais, sejam vitórias ou derrotas, alegrias e tristezas.
Sobre mostrar diferentes ângulos, no programa exibido em dezembro de 2008, sobre as
enchentes em Santa Catarina, por exemplo, os profissionais se dividiram em dois grupos: um
comandado por Barcellos e seu cinegrafista e outro com uma repórter e dois repórteres
cinematográficos. Caco Barcellos se juntou aos militares do exército brasileiro e foi acompanhar
o trabalho de buscas. A outra equipe acompanhou um personagem até a sua casa para mostrar os
danos causados pela chuva. Mostrou imagens com detalhes da destruição da cidade de Itajaí e
como as pessoas estavam lidando com o acontecimento.
114
Em entrevista ao blog do jornalista Gabriel Hamilko, em outubro de 2009, Caco Barcellos
fala do diferencial do programa, além de enfatizar a imersão dos repórteres nas coberturas:
É essencial que eles se envolvam nas histórias e mergulhem em cada edição do
programa, pois se é para apenas fazer entrevista, rapidinhas com as pessoas, já
temos isso no jornalismo. Nós temos que fazer algo que é diferente do que já
está no ar, então optamos pela profundidade. Têm histórias que acompanhamos
por sete meses, um exemplo é o programa sobre os assassinatos na favela de
Nilópolis, onde uma jovem morreu por uma bala perdida, e os moradores
revoltados incendiaram um ônibus, fechando o acesso da comunidade (Hamilko,
2009).
No exemplo da cobertura das enchentes de Santa Catarina, como lembramos
anteriormente, o assunto da cobertura não foi diferente do noticiado por outros programas ou
veículos de comunicação. A diferença se deve ao fato de que nas publicações convencionais o
foco das matérias estava voltado para o número de mortos, casas destruídas, quantidade de
pessoas desabrigadas, enfim, fez-se uma cobertura com caráter de espetacularização da notícia. O
Profissão Repórter procurou pessoas, famílias, crianças e “deu voz” a essas pessoas, mostrou
seus sentimentos, anseios, crenças. O diferencial é a humanização, o espaço e a atenção que os
personagens daquela história receberam. O trabalho dos repórteres em certos momentos parece
até secundário. Para Dulcília Buitoni esse fator é muito importante para as narrativas
jornalísticas, pois:
As falas das pessoas não podem ficar subordinadas somente ao ritmo do tempo
industrial. A indústria do tempo, o tempo da indústria: onde a narração que
significa, onde a narração fica? As histórias e as vidas de homens, mulheres e
crianças precisam de narrações não determinadas pelo tempo. No jornalismo, o
tempo determina a narração. Já as ficções jogam com o tempo, mas as histórias e
as vidas não precisam apenas de ficção. Precisam também de relatos verídicos
que tenham a marca do tempo, embora não sejam por ele estritamente
determinados (BUITONI apud LIMA, 2009, p.136).
Sobre humanização, Barcellos falou ao jornalista Hamilko (2009) que “quando você
trabalha com o lado humano dos personagens, aumenta sua chance de envolver o telespectador na
115
história que você quer contar. Quando você escolhe tal personagem, ela é representativa no
universo que você pretende trabalhar”.
O fato de o programa mostrar também os bastidores da notícia revela não só erros e falhas
dos repórteres, mas também suas decisões e emoções, evidenciando o fator de imersão do
jornalista na história narrada.
Barcellos: Os bastidores das reportagens que mostramos no programa variam de
acordo com a barreira que encontramos no caminho. Se forem barreiras mais
cinematográficas, iremos mostrar. Mas tem que ser um bastidor com um
conteúdo importante e que leve o público a participar com a gente das escolhas
que fazemos durante aquele processo. Queremos expor mais isso no programa,
mais do que um errinho engraçado. Isto é até secundário. (disponível em:
www.oglobo.globo.com)
Caco seleciona cenas dos bastidores que não só mexam com o público, trazendo-o para a
história, mas que o ajudem (enquanto narrador) a contar da forma que considera ideal. Em suma
o narrador é quem seleciona o que parece contribuir para a história que ele quer contar, porém
cria a sensação de incluir o receptor no processo de escolha de alguns elementos que irão compor
sua narrativa. Essa identificação é o cerne do processo comunicativo deste programa, e é o que
traz o seu telespectador para dentro da história.
Diferente
da
cobertura
convencional, o estilo literário
preza pela humanização. Não se
preocupa em informar primeiro,
dar o “furo” da notícia. O mais
importante é informar melhor,
oferecer ao leitor ou telespectador
um maior aprofundamento sobre
o tema, possibilitando que sua
visão também seja ampla.
O programa ilustrado ao lado foi
exibido em 2009 e contou
histórias de pessoas que vivem
em lugares distantes dos centros
urbanos. Na cena, Caco Barcellos
conversa com moradores da Serra
do Cafundó –CE.
116
A humanização das narrativas no Profissão Repórter representa outro fator importante
para a criação de uma identificação por parte dos receptores com o fato narrado. O resgate da boa
reportagem proposto por Caco Barcellos e sua equipe de oito jovens jornalistas é importante para
a vida das boas histórias.
4.4. O narrador no Profissão Repórter
O narrador é considerado como o agente responsável por contar a história. Lúcia de
Miranda Moreira lembra que “o exercício narrativo do contar a história, organizando-a,
selecionando/editando, enfim, é um papel compartilhado por diversos operadores de
linguagem” (MOREIRA, 2005, p. 31).
Portanto temos de nos atentar, por exemplo, com o olhar do câmera e dos editores.
Moreira conta que nas narrativas audiovisuais a imagem é um elemento peculiar e exige um
narrador específico e com funções idênticas às do narrador literário. Para a pesquisadora essa
especificidade do narrador que mostra se deve ao fato de o estilo do diretor estar presente nas
ações deste profissional.
No programa Profissão Repórter o perfil de Caco Barcellos transparece no conteúdo das
matérias. A investigação, imersão e humanização são características de boa parte dos trabalhos
de Barcellos, como no exemplo de seu último livro, Abusado. No programa, o câmera, que
chamaremos de narrador/mostrador, também é um jovem jornalista. E mais: a câmera ora está
com um integrante da equipe ora com outro, possibilitando-nos ver o mesmo fato por diferentes
pontos de vista.
Considerado por autores renomados como Vitor Manoel de Aguiar e Silva como um
elemento de suma importância na elaboração do discurso narrativo, o ponto de vista no Profissão
Repórter é um fator que recebe atenção especial do autor do programa. Devido a esse fato de os
repórteres se revezarem com a câmera e os microfones, cria-se um entrosamento e a convicção
para o receptor e para os próprios profissionais de que eles são um só, ou estão no mesmo nível.
Na reportagem sobre as enchentes em Santa Catarina, a repórter Taís Itaqui conversa com o
câmera, Michael Fox, e pede: “olha aquele homem, filma ali, Michael”; e em outro caso: “olha
aquele cavalo, nem consegue andar direito!”. O uso de duas câmeras cria ainda uma semelhança
117
com as gravações de documentários, onde um câmera filma outro em determinados momentos, a
fim de mostrar também os bastidores da gravação que, no Profissão Repórter é um dos objetivos.
A equipe segue sempre com dois
repórteres cinematográficos. A
idéia é ter uma visão ampla do
cenário onde a história se passa,
para que o telespectador possa ter
em mãos elementos suficientes
para a compreensão do fato.
A utilização desse recurso
permite, ainda, mostrar os
bastidores do trabalho.
O trabalho em conjunto contribui, ainda, na busca pela contextualização. A observação
intensa, inerente à cobertura de estilo literário, passa a ser dupla e, tem como resultado uma visão
ainda mais ampla daquela realidade. Barcellos conta ao jornalista Hamilko (2009) sobre a
importância da contextualização no programa:
De extrema importância, pois é a chave do bom jornalismo. Você pode enganar
o telespectador só falando verdades se você não contextualizar. Se acontecer um
crime e você não diz que ele é resultado de um processo de 40 anos de atividade,
você está ocultando algo, explorando somente os aspectos negativos dessa
fatalidade. Às vezes, na comunidade ao lado, o mesmo crime aconteceu 50
vezes, só que divulgar vai contra os interesses de um determinado prefeito,
deputado ou outro político, deixando de informar. Isso é falta de
contextualização, tornando o noticiário sensacionalista. Esse é o contexto da
informação
que
o
programa
tenta
passar.
118
Voz autoral. Nas narrativas do
programa os repórteres dividem
com o telespectador suas emoções,
sensações
com
determinados
acontecimentos ou histórias.
Ao lado a jovem repórter se
emociona ao reencontrar a mãe de
um menino que foi salvo por
homens do corpo de bombeiros em
praia do Rio de Janeiro. Na ocasião
do afogamento a repórter pôde
acompanhar o drama do resgate e,
meses depois, voltou a reencontrar
a família do menino salvo. A
cobertura de estilo literário permite
o uso da voz autoral por entender
que o leitor também espera encontra
ali as impressões do repórter.
Os repórteres participam também de outros dois processos característicos de um narrador
audiovisual e, especificamente, o narrador de reportagens: a discussão de pauta e a edição das
matérias.
Notamos ainda que o repórter pode ser caracterizado como narrador onisciente, pois
conta a história em terceira pessoa e, às vezes, se permite certas intromissões narrando em
primeira pessoa. Na matéria sobre Santa Catarina, Taís Itaqui diz: “Essa é a coisa mais
impressionante que já vi na minha vida”. O envolvimento afetivo dos repórteres não é
escondido, portanto, no programa. Esse fato contribui para a intenção do narrador em
evidenciar a cobertura humanizada do fato e revela a voz autoral e a imersão dos jornalistas.
O tipo de narrador presente no Profissão Repórter se assemelha ao que Walter
Benjamim (1985) classifica como clássico, pois dá ao ouvinte a oportunidade de um
intercâmbio de experiências. Para Benjamim (1985, p. 200), a narrativa não deve estar
“interessada em transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada como uma informação ou um
relatório”. A narrativa é narrativa “porque ela mergulha a coisa na vida do narrador para depois
119
retirá-la dele”. Diz ainda que narrativa deve conter um ensinamento moral ou prático ou, ainda,
uma norma de vida.
Digressão. Como um flash back,
muito comum em filmes, esse
recurso é o momento onde o autor
“interrompe” a narrativa para
trazer uma informação paralela ao
assunto.
Como
vimos
anteriormente, essa ferramenta
contribui para a compreensão do
leitor/telespectador, que tem a
possibilidade
de
conhecer
detalhes importantes para o
entendimento do contexto em que
a história está inserida.
Na imagem ao lado uma edição
do
Jornal
Nacional
traz
informações adicionais para a
reportagem sobre ruídos, exibida
em 2009.
Todo o trabalho com características tão peculiares dos jornalistas do Profissão Repórter
derivam do perfil de Caco Barcellos e, portanto, o classificamos como o autor/narrador do
programa que, baseado nas constatações de Moreira (2005) “significa aquele que ‘faz progredir’,
que ‘faz produzir e crescer’, ‘aquele que está na origem de algo”. Em alguns lances durante o
programa esse fato é evidenciado. Quando, por exemplo, Barcellos assiste com os jovens
repórteres suas matérias, aponta falhas, acertos, possíveis soluções para que, desta forma, os
repórteres voltem às ruas e terminem efetivamente a reportagem. Caco Barcellos faz as narrativas
progredirem com suas “dicas”, ordena os fatos da maneira que considera ideal para narrar a
história, e ainda sai às ruas para fazer sua parte como repórter.
O programa começa com uma escalada apresentando os diferentes ângulos da cobertura
do dia. Essa “chamada” inicial deixa clara a condução de Barcellos que, na passagem da abertura,
120
aproveita para lembrar o propósito do programa com seu slogan: “os bastidores da notícia, os
desafios da reportagem”.
Barcellos analisa o trabalho
dos repórteres, opina e
comanda o processo de
construção da reportagem.
Na imagem ao lado o
repórter tira dúvidas para o
fechamento de sua matéria.
Barcellos indica o melhor
caminho e a narrativa vai se
construindo a partir das
dicas
do
experiente
jornalista.
A análise do narrador no programa Profissão Repórter nos parece oferecer grande
contribuição para nosso estudo. A intenção foi evidenciar a estrutura narrativa das matérias e
enfatizar o processo de produção das reportagens no programa. O estilo de cobertura das
reportagens vai ao encontro da proposta do JL, prezando pela observação intensa, a
humanização dos relatos, a imersão; por isso a idéia de trazer também essa análise para nosso
estudo.
121
Considerações finais
122
Chegando ao fim dessa etapa nos fica a impressão de ter dado um importante passo rumo
a uma contribuição na luta pelo bom jornalismo. Queremos lembrar que não foi de nosso
interesse execrar as publicações jornalísticas convencionais, como em certos momentos do estudo
possa parecer. Entendemos que as publicações ancoradas pela fórmula piramidal ainda sejam
necessárias para o jornalismo, haja vista a velocidade com que as informações nos chegam
atualmente. Entretanto, é importante lembrar que o jornalismo figura como uma das pontas de
um iceberg chamado Industria Cultural.
Entretanto, acreditamos na proposta do Jornalismo Literário, onde as produções
humanizadas e detalhadas figuram como eixo condutor de narrativas que resgatam a importância
da reportagem, das produções de fôlego. E nos parecem agradar também aos leitores.
Baseados nessa ideia tentamos mostrar nesse estudo um pouco das principais
características desse estilo, seu contexto e seus melhores momentos e, ainda, mostrar os
resultados dessas produções.
Enxergamos nas histórias de pessoas comuns um bom aliado sobretudo para as produções
impressas do jornalismo que, hoje, atravessam uma forte crise provocada pela concorrência
desigual de veículos como a TV e a Internet. E tentamos mostrar algumas produções norte
americanas e brasileiras que utilizaram o estilo literário em suas produções e tiveram bons
resultados, como forma de comprovar nossa hipótese de que o jornalismo carece de boas
histórias.
Tentamos trazer para nossa pesquisa alguns exemplos que ocorreram em diferentes
momentos da história. Começando em 1960, com o New Journalism, se estendendo até o fim
dessa década com a revista Realidade e, chegando aos dias mais atuais, com a coluna “a vida que
ninguém vê”, de Eliane Brum, a revista Piauí e Brasileiros e, ainda, com o programa Profissão
Repórter, na TV. Essa foi uma tentativa de evidenciar que o jornalismo literário não foi um
evento apenas de uma época, mas sim um aliado que sempre trouxe bons resultados para as
empresas de comunicação através da valorização do ser humano e das boas histórias em todos os
momentos em que figurou como parte das produções jornalísticas.
No intento de evidenciar e exemplificar todo o arcabouço teórico que utilizamos durante
os primeiros capítulos desse estudo para falar sobre os principais pilares do jornalismo literário,
fazemos uma análise de conteúdo de dois livros de Caco Barcellos (Rota 66 e Abusado).
123
Mostramos as características das narrativas do jornalista que também comanda o programa
Profissão Repórter e emprega ali todo seu perfil de contador de histórias. A entrevista com o
jornalista, possível após muito esforço, contribui para reafirmar o que propomos durante o
estudo.
Acreditamos que nosso estudo tenha buscado trazer algumas contribuições para o
jornalismo de maneira geral. Pensar em maneiras para melhorar as produções jornalísticas é
sempre importante. O debate sobre maneiras de contribuir para a sociedade e agradar aos leitores
é essencial, seja no campo acadêmico ou profissional. E foi esse nosso intuito.
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em 02/04/2010.
129
Anexos
Entrevista feita com o Caco Barcellos, em 29 de abril de 2010.
Clodonei Colombo: O senhor sempre defendeu e praticou um jornalismo de maior fôlego. Qual a
importância da reportagem para o jornalismo?
Caco Barcellos: Pela via da Reportagem você consegue explicar os acontecimentos, não
simplesmente retratá-los. A reportagem é importante para que você possa levar para seu público
um melhor entendimento sobre a realidade. A maior virtude da reportagem é que ela vai além do
simples registro do fato.
C.C: Muitos jornalistas dizem que atualmente os leitores querem muita informação em pouco
tempo. Alguns dizem que o brasileiro não gosta de ler ou que não dispõe de 2 ou 3 horas para
dedicar à leitura. Você concorda? Até que ponto a superficialidade da cobertura convencional
desmotiva o leitor?
C.B: Discordo disso, porque a vendagem dos livros de reportagem ou de não ficção provam que
o leitor gosta muito de reportagem, gosta muito de ter conhecimentos mais aprofundados sobre os
acontecimentos. Se não fosse assim os livros seriam um fracasso. E as editoras estão sempre
procurando escritores de não ficção, jornalistas. E eu acho que isso acontece porque os jornais e
as revistas abandonaram a reportagem de mais fôlego e isso deixou uma lacuna grande nas
bancas e as editoras estão se aproveitando disso. Na televisão os programas de reportagens são
muito bem sucedidos do ponto de vista da audiência, o que prova que as pessoas estão carentes
desse tipo de trabalho jornalístico. Se você observar a programação da TV é recheada de
programas jornalísticos baseados em entrevistas, opinião, bate papo, e pouquíssimos programas
de reportagem.
C.C: A revista Realidade é lembrada como exemplo de bom jornalismo. Trazia em suas matérias
histórias de pessoas comuns. E fez sucesso com isso. Mas, levando em consideração a velocidade
das informações, seria possível que um projeto como Realidade tivesse sucesso atualmente?
C.B: Acho que sim. Ela teve várias fases. E a fase que considero a melhor é a de quando eles
retratavam a vida de brasileiros anônimos e retratados de uma maneira contextualizada, não
simplesmente contando a história pela história.Tinha um contexto ali que representava uma
unidade nacional. E acho que caso seja feita dessa maneira, não histórias isoladas que digam a
respeito ao universo de muita gente, que seja relacionada com aquilo que as pessoas estão
130
vivendo, se identificando com as suas histórias, acho que são atuais. Conheço algumas
reportagens que foram feitas lá atrás e que são atualíssimas.
C.C: Em minha dissertação faço uma análise de dois de seus livros (Rota 66 e O Abusado).
Escolhi analisar seu trabalho por encontrar ali muitas características que vão ao encontro da
proposta do jornalismo literário, como o uso de diálogos, a digressão, humanização, imersão,
construção cena a cena, observação intensa, etc. Comente, por favor, sobre a importância do uso
desses recursos nos textos jornalísticos.
C.B: Você observou muito bem esses aspectos que destacou, pois eles são essenciais. Em síntese
se o livro for de não ficção ou ficção, de reportagem ou não, o importante é que o texto seja
elegante, agradável, que atraia o leitor para a história que você quer contar. Então essas técnicas
são importantes para tornar a leitura agradável.
Quando eu estou apurando uma reportagem eu estou pensando em como vou contar essa história.
E os diálogos, por exemplo, são fundamentais. Então eu apuro para reconstituir os diálogos. Há
quem confunda ou chame o jornalismo literário de fantasia. Absolutamente não! Embora exista
algumas pessoas que façam. Eu não faço. Eu escrevo baseado na verdade que eu consigo apurar,
pensando nessas técnicas todas pra tornar a história mais agradável. A qualidade do texto é
fundamental pra você prender o leitor na sua história.
C.C: O jornalismo impresso passa por momentos difíceis. O fim do jornal impresso chega a ser
discutido. Isso se deve à superficialidade da cobertura? O senhor acredita que a reportagem possa
ajudar a mudar esse cenário?
C.B: Sim. Os jornais impressos estão mal, porque eles estão querendo competir com a Internet,
com a televisão. Eles estão querendo chegar primeiro nos acontecimentos e eles são veiculados
com 24 horas de atraso. Então é impossível chegar antes. Eles deviam esquecer disso, dessa coisa
superficial, ligeira, rápida, sintética e passar a explicar a história, dar uma visão mais ampla para
o seu leitor. Ao invés de contar primeiro, eles deveria preferir contar melhor. É a única saída.
C.C: Nos seus dois livros podemos notar que o senhor gosta de trabalhar com um volume grande
de informações, entrevistas. E sua narrativa é muito bem construída ou “amarrada”, como
costumamos dizer. Como lidar com um volume grande de informações sem deixar que a história
se perca, ou fique desinteressante em certos momentos?
C.B: Esse é o sofrimento do processo: tornar o material todo em uma história atraente e não um
relatório sem começo, meio e fim, ou repetitivo. Às vezes você tem até que eliminar histórias,
porque se elas forem todas contadas você corre o risco de aborrecer o leitor, pois ninguém gosta
de ler histórias repetitivas. E, dependendo da circunstância, é muito grave a repetição de histórias
do ponto de vista da realidade. E do ponto de vista da narrativa isso também é ruim, pois você
acaba não conseguindo contar a história da melhor maneira e aborrece o leitor.
Então é um processo sofrível, de muitas tentativas e erros. E não tem como ser diferente. Eu
escrevo no mínimo umas 200 vezes cada história até achar que ela está mais interessante, com
expectativa de segurar o leitor comigo até o fim.
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C.C: A maioria dos prêmios do jornalismo vão para reportagens, matérias de maior fôlego. O
Profissão Repórter é exemplo disso. Por quê esse gênero não é melhor aproveitado ou mais usado
pelos veículos de comunicação?
C.B: Isso envolve, primeiro, custos. Pois o produto mais caro do jornalismo é a reportagem. Cada
passo que você dá fora da redação você está gastando dinheiro. E é mais trabalhoso. É muito mais
simples fazer uma entrevista de 15 minutos e ocupar aquele espaço grande na televisão. Usar uma
série de entrevistas, que você pode fazer em uma tarde.
E a reportagem é um outro universo, você vai ter que provar que aquelas entrevistas são
verdadeiras. E às vezes esse processo demora muito. Então isso custa caro e dá trabalho, e tem
gente que prefere o mais fácil. Eu, por exemplo, fico embaixo de uma ponte noite e dia esperando
o trem passar, pois naquele momento pode acontecer alguma coisa. Se não passar tudo bem,
estou feliz porque tive ali uma experiência curiosa. Tem gente que acha isso um absurdo. Então
você tem que ser apaixonado pela reportagem pra tocar pra frente sem medir sacrifícios.
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