ASPECTOS JURÍDICOS
NACIONAIS E
INTERNACIONAIS DO
TRÁFICO DE PESSOAS
SERGIO GARDENGHI SUIAMA
Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão - SP
Três teses:
a) Migração não é problema policial;
b) Abordagem moralista impede
enfrentamento do problema;
c) Direito Penal não é remédio para
todos os males.
Tese 1
• Globalização econômica provocou “precarização”
das relações de trabalho.
- 185 milhões de pessoas estão sem emprego no
mundo (6,2% da força de trabalho);
- no Brasil, índice de desemprego é de 11,7%;
- crescimento do subemprego: 48,5% dos
trabalhadores brasileiros não estão registrados.
• Crescimento das desigualdades regionais. Na
década de 60, renda per capita das nações mais
pobres era de US$ 212; nos países mais ricos era
de US$ 11.417. Em 2002, cifras eram de US$ 267
(+ 26%) e US$ 32.339 (+ 183,3%).
Os efeitos...
• 81 milhões de trabalhadores vivem hoje
fora de seu país de nascimento;
• 10 a 15% deles estão em situação irregular
perante os órgãos de imigração;
• ONU estima que, anualmente, mais de 700
mil pessoas são vítimas de tráfico.
Problemas...
• Há “pacto” perverso entre trabalhador e
intermediário;
• Maioria dos países de destino adota legislação
restritiva à entrada de estrangeiros, mas não
consegue impedir tráfico de pessoas e fluxos
migratórios  migrantes se tornam “fantasmas
na cidade” e muitos são levados à
marginalidade. Conseqüências  privação de
direitos, exclusão social e xenofobia.
• Vítimas do tráfico ainda são tratadas como
“criminosos” nos países de destino, o que
dificulta investigações das redes de tráfico.
Mau cheiro
Problemas...
• No caso da prostituição, profissional do
sexo imigrante é duplamente discriminado.
Tese 2
Condenação moral atrapalha enfrentamento
do problema  pessoa pode dispor do
próprio corpo?
Tráfico Internacional de Pessoas
Art. 231. Promover, intermediar ou facilitar a
entrada, no território nacional, de pessoa que venha
exercer a prostituição ou a saída de pessoa para
exercê-la no estrangeiro:
Pena – reclusão, de 3 a 8 anos, e multa.
§ 1º - Se ocorre qualquer das hipóteses do § 1º do
art. 227:
Pena – reclusão, de 4 a 10 anos, e multa.
§ 2º Se há emprego de violência, grave ameaça ou
fraude, a pena é de reclusão, de 5 a 12 anos, e multa,
além da pena correspondente à violência.
* Redação dada pela Lei 11.106/05.
Tráfico Internacional de Pessoas
Sobre o bem jurídico-constitucional protegido
– Delmanto: “moralidade pública sexual”.
– Nucci: “bons costumes”.
Fim primordial do Direito Penal é proteção de bens
jurídicos essenciais ao indivíduo e à comunidade,
dentro do quadro axiológico constitucional ou
decorrente da concepção de Estado de Direito
Democrático. Em outras palavras, crime é lesão ou
perigo de lesão a um bem jurídico-constitucional.
Tráfico Internacional de Pessoas
Sobre o bem jurídico-constitucional protegido
– Necessária leitura da norma à luz do sistema
constitucional: interpretação tradicional leva à
condenação moral da prostituição e dificulta assistência
à vítima.
– Bem tutelado é LIBERDADE SEXUAL da vítima.
– Se é assim, subsiste tipo básico (caput), ou apenas tipos
derivados dos §§? (confronto com definição de tráfico
de pessoas do Protocolo – ONU)
Tráfico Internacional de Pessoas
Consentimento do ofendido é causa supra-legal de
exclusão da ilicitude.
Se bem jurídico protegido é liberdade sexual da mulher, só
é irrelevante o consentimento viciado (lato sensu) do
ofendido ou quando este não possuir plena capacidade de
discernimento.
Tráfico Internacional de Pessoas
Protocolo Adicional relativo ao Tráfico de Pessoas:
Art. 3º, “a” – “A expressão “tráfico de pessoas”
significa o recrutamento, o transporte, a transferência,
o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo
à ameaça ou uso da força ou a outras formas de
coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de
autoridade ou à situação de vulnerabilidade, ou à
entrega ou aceitação de benefícios para obter o
consentimento de uma pessoa...”
Tráfico Internacional de Pessoas
Protocolo Adicional relativo ao Tráfico de Pessoas:
Art. 3º, “b” – “O consentimento dado pela vítima de
tráfico de pessoas (...) será considerado irrelevante se
tiver sido utilizado de qualquer um dos meios
referidos na alínea ‘a’”.
Tráfico Internacional de Pessoas
Protocolo Adicional relativo ao Tráfico de Pessoas:
Art. 3º, “c” – “O recrutamento, transporte, a transferência,
o alojamento ou o acolhimento de uma criança [< de 18
anos] para fins de exploração serão considerados tráfico de
pessoas mesmo que não envolvam nenhum dos meios
referidos na alínea ‘a’ do presente artigo”.
Tráfico Internacional de Pessoas
Portanto: há o crime de tráfico internacional de
pessoas se o traficado(a) foi vítima de ameaça, uso
da força ou outras formas de coação, rapto, fraude,
engano, abuso de autoridade ou à situação de
vulnerabilidade, ou se houve entrega ou aceitação
de benefícios para obter o consentimento.
Tráfico Internacional de Pessoas
Necessidade do operador do direito superar a
dicotomia “vítima” X “depravado” no
enfrentamento do problema  trabalhador do
sexo como sujeito de direitos (direito ao trabalho,
direito de não ser submetido a tratamento
desumano ou degradante, direito à dignidade).
Aproximação com crime de aliciamento para fins
de emigração (art. 206 do CP).
Tráfico Internacional de Pessoas
2. Pequena análise dos elementos do tipo
incriminador
–
–
–
–
Há três núcleos verbais:
“Promover”  impelir para diante, fazer andar, ser a
causa de.
“Intermediar”  intervir como mediador, interceder.
“Facilitar”  tornar fácil ou exeqüível. Agente não é a
causa, mas tornou exeqüível deslocamento (por
exemplo, falsificando documentos, providenciando o
passaporte, transportando e hospedando a vítima etc.).
Complemento dos verbos  “entrada” ou “saída” de
mulher do território nacional. Tráfico interno só é
punido pelo artigo 228 do CP (“induzir ou atrair alguém
à prostituição, facilitá-la ou impedir que alguém a
abandone”).
Tráfico Internacional de Pessoas
2. Pequena análise dos elementos do tipo
incriminador
– “Prostituição”  habitualidade, comércio sexual.
– “Para exercê-la”  finalidade, plano, idéia inicial.
– Finalidade lucrativa  é prescindível.
Tráfico Internacional de Pessoas
3. Quando há a consumação do crime?
Quando estão reunidos todos os elementos de sua definição
legal (CP, art. 14, I). Consumação ocorre, portanto, com
entrada ou saída da pessoa do território nacional, mas
agente deve ter “dolo específico” de promover, intermediar
ou facilitar prostituição.
Tráfico Internacional de Pessoas
4. Tentativa e atos preparatórios
Nelson Hungria  aliciamento da vítima constitui ato
preparatório impunível pelo art. 231 (pode haver a
incidência do art. 228 do CP, mas competência será da
Justiça Estadual). Transporte é início da execução.
Tráfico Internacional de Pessoas
5. A vítima
– Vítima  antes, só mulher. Após mudança legislativa,
qualquer pessoa.
– Não obstante nomen juris do tipo, delito se consuma
com deslocamento de uma só pessoa;
– Se mais de uma vítima, há concurso de crimes (há
julgado do TRF 2ª Região em sentido contrário,
sustentando haver “agravação qualitativa de uma única
lesão”);
– Irrelevante se vítima já se prostituía ou se era “mulher
honesta” (!!!);
Tráfico Internacional de Pessoas
5. A vítima
– Na maioria dos casos, palavra da vítima ou de sua
família é prova única.
– Extrema dificuldade de localizar vítimas e fazer com
que elas prestem depoimento.
Tráfico Internacional de Pessoas
6. Formas qualificadas
– Se vítima for maior de 14 e menor de 18 anos (§ 1º do
artigo c.c. o art. 227, § 1º);
– Se agente for ascendente, descendente, marido, tutor,
curador ou pessoa a que vítima esteja confiada para fins
de educação, tratamento ou guarda (§ 1º do artigo c.c. o
art. 227, § 1º);
– Se há emprego de violência física, grave ameaça ou
fraude (§ 3º do artigo)  maioria dos casos relatados;
– Se vítima for menor de 14 anos, há violência presumida
(art. 224) e incidência da qualificadora do § 3º (por
força do disposto no art. 232). Presunção é relativa ou
absoluta?
Tráfico Internacional de Pessoas
6. Formas qualificadas
“O elemento normativo fraude, circunstância qualificadora
prevista no § 2° do art. 231 do CP, deve ser compreendido
como o ardil empregado pelo agente para ludibriar a vítima
de tal forma que, se não tivesse sido utilizado, não haveria
a concordância em deixar o território nacional” (TRF 2ª
Região – 1ª Turma).
Tráfico Interno de Pessoas
Art. 231-A. Promover, intermediar ou facilitar, no
território nacional, o recrutamento, transporte, a
transferência, o alojamento ou o acolhimento da
pessoa que venha exercer a prostituição:
Pena – reclusão de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa.
Parágrafo único. Aplica-se ao crime de que trata
este artigo o disposto nos §§ 1o e 2o do art. 231 deste
Decreto-Lei.
* Artigo acrescido pela Lei 11.106/05.
Tráfico de Pessoas
7. Concurso de normas
a) Favorecimento à prostituição  art. 228 do CP (“induzir
ou atrair alguém à prostituição, facilitá-la ou impedir que
alguém a abandone”). Brasil não possuía tipo específico
para tráfico doméstico;
b) Aliciamento de trabalhadores para emigração  art. 206
do CP (“recrutar trabalhadores, mediante fraude, com o fim
de levá-los para território estrangeiro”)  tipo exige mais
de uma vítima;
Tráfico Internacional de Pessoas
8. Concurso de normas
c) Tráfico interno de trabalhadores  art. 207 do CP
(“Aliciar trabalhadores, com o fim de levá-los de uma para
outra localidade do território nacional”. “Incorre na mesma
pena quem recrutar trabalhadores fora da localidade de
execução do trabalho, dentro do território nacional,
mediante fraude ou cobrança de qualquer quantia do
trabalhador, ou, ainda, não assegurar condições do seu
retorno ao local de origem”)
d) Introdução de estrangeiro clandestino  art. 125, XII,
da Lei 6.815/80 (“Introduzir estrangeiro clandestinamente
ou ocultar clandestino ou irregular”);
e) Tráfico de crianças  art. 239 do ECA. Tráfico de
mulheres seria lex specialis?
Competência Jurisdicional
Art. 109, V, da CR  competência da Justiça
Federal para processar e julgar “os crimes
previstos em tratado ou convenção internacional,
quando, iniciada a execução no País, o resultado
tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou
reciprocamente” (requisito da transnacionalidade).
Competência Jurisdicional
• Brasil é signatário do Protocolo Adicional à Convenção
das Nações Unidas contra o Crime Organizado
Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e
Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e
Crianças (aprovado pelo Decreto Legislativo n° 231, de
29 de maio de 2003 e publicado pelo Decreto Presidencial
n° 5.017, de 12 de março de 2004).
• Também é signatário da Convenção sobre os Direitos da
Criança (1989).
Competência Jurisdicional
• Portanto, Justiça Federal brasileira é competente para
julgar os crimes de tráfico internacional de mulheres (CP,
art. 231), crianças (ECA, art. 239) e trabalhadores (CP, art.
206).
• Se tráfico for interno, competência pertence à Justiça
Estadual (mas art. 109, § 5º, da CR prevê que “nas
hipóteses de grave violação de direitos humanos, o PGR,
com a finalidade de assegurar o cumprimento de
obrigações decorrentes de tratados internacionais de
direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá
suscitar, perante o STJ, em qualquer fase do inquérito ou
processo, incidente de deslocamento de competência para a
JF”).
Tese 3
Limites da atuação penal
Protocolo Adicional da ONU para a prevenção,
repressão e punição do tráfico de pessoas:
Art. 6° - Cada Estado Parte terá em consideração a
aplicação de medidas que permitam a recuperação física,
psicológica e social das vítimas de tráfico de pessoas,
incluindo, se for o caso disso (…) o fornecimento de:
a) Alojamento adequado;
b) Aconselhamento e informação, especialmente quanto
aos direitos que a lei lhes reconhece, numa língua que
compreendam;
c) Assistência médica, psicológica e material; e
d) Oportunidades de emprego, educação e formação.
Limites da atuação penal
Protocolo Adicional da ONU para a prevenção,
repressão e punição do tráfico de pessoas:
Art. 7° - Além de adotar as medidas em conformidade
com o artigo 6° do presente Protocolo, cada Estado Parte
considerará a possibilidade de adotar medidas legislativas
ou outras medidas adequadas que permitam às vítimas de
tráfico de pessoas permanecerem no seu território a título
temporário ou permanente, se for o caso.
Outras propostas
– Desenvolver programas de geração de emprego e
renda para grupos e regiões vulneráveis;
– Aprimorar, com o apoio de ONGs, o contato com
as vítimas deportadas, inclusive com o objetivo de
apurar as organizações criminosas de tráfico;
– Desenvolver campanhas de esclarecimento, com a
distribuição de material informativo aos que viajam
ao exterior e aos grupos mais vulneráveis;
Outras propostas...
– Melhorar o atendimento consular aos brasileiros
que moram no exterior (proposta em discussão com
Itamaraty);
– Sensibilizar e capacitar os agentes da PF que atuam
no controle de fronteiras e na expedição dos
passaportes;
– Aprimorar os mecanismos de cooperação
internacional em matéria penal, tornando mais
rápidas as comunicações entre os órgãos
envolvidos nas atividades de investigação.
Outras propostas...
– Reconhecimento do trabalho como direito
humano universal.
Contato:
Sergio Gardenghi Suiama
Procuradoria da República - SP
(11) 3269-5091
[email protected]
Download

Tráfico de pessoas