A DIDATIZAÇÃO DE GÊNERO EM AMBIENTES SOCIAIS DIVERSOS:
A POSSIBILIDADE DE ENSINAR GÊNEROS DE TEXTO
ATRAVÉS DE SEQÜÊNCIAS DIDÁTICAS
Ana Maria de Mattos GUIMARÃES
(Universidade do Vale do Rio dos Sinos)
ABSTRACT: This presentation aims to reflect upon the use of teaching strategies to improve writing, in
different social realities, bearing in mind the students’ individual track, and their specific cultural-historical
situation. Social diversity, although a feature which characterizes the Brazilian society, is almost not taken into
consideration in terms of our educational system. The study was based on principles coming from the sociodiscursive interactionist theory (BRONCKART, 1999, 2005) and on the possibility of making textual genres
teachable through the didactic sequences (SCHNEUWLY and DOLZ, 1999, 2004). An applied comparative work
was developed using a same didactic sequence, related to the NARRATION mode, with two 5th grades in
elementary school. Although the schools were located in the same geographical region, one is a localgovernment-run public school, with students belonging to a low socio-economical class, and the other is a
private, religion-oriented school, with students belonging to a high socio-economical class.
KEYWORDS: socio-discursive interactionist theory; textual genres; didactic sequences; different social
environments.
1. Introdução
Proposto em vários manuais de ensino-aprendizagem de língua materna, com respaldo
dos Parâmetros Curriculares Nacionais (1998), o ensino de gêneros textuais tornou-se assunto
bastante comum. Mas, afinal, o que é realmente ensinar a partir de um determinado gênero? O
que significa gênero?
A partir de princípios do Interacionismo Sociodiscursivo, retomamos essa questão,
apresentando a possibilidade do uso de um modelo didático centrado em um determinado
gênero e ensinado através de uma seqüência didática. Uma proposta sobre o gênero narrativa
de detetive foi desenvolvida em duas escolas com realidades sociais diversas. Os resultados
obtidos são agora discutidos.
2. Referenciais teóricos
Tomamos por base o interacionismo sociodiscursiva (ISD), proposto por Bronckart e
seguidores (1999, 2004, 2005), com o grande mérito de não ter sido apresentado de forma
acabada, mas como um projeto de desenvolvimento de uma teoria. Esta teoria pretende
realizar parte do projeto do interacionismo social, desenvolvido, sobretudo, nos estudos de
Vygotski. Centra-se na questão da ontogênese humana (sem tratar da filogênese), abordando-a
num caminho descendente, ou seja, tomando como foco de análise o que as potencialidades do
sujeito tornam possível no plano da linguagem. Essa abordagem descendente da ontogênese
procura examinar, inicialmente, «os pré-construtos que constituem os textos que comentam as
atividades humanas e as modalidades escolares ou formais de realização dos sistemas
formadores, para abordar o desenvolvimento dos indivíduos sob seu ângulo epistêmico e
praxiológico” (BRONCKART, 2005). Nessa relação, 4 sistemas são invocados: a língua, a
atividade social, o psicológico e o textual/discursivo, considerados como mecanismos de
interação.
O estudo das atividades de linguagem é feito através dos textos (orais e escritos) que
as materializam. Tais textos são considerados unidades comunicativas globais
(BRONCKART, 2004b, p. 115) e se agrupam em gêneros, “que são socialmente indexados,
quer dizer, que são reconhecidos como pertinentes e/ou adaptados para uma situação
536
comunicativa dada.” (idem) A noção de gênero, cuja diversidade é potencialmente ilimitada,
é tomada de Bakhtin (2003, p. 262-3), para quem “o emprego da língua efetua-se em forma de
enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele
campo de atividade humana. (...) Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas
cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os
quais denominamos gêneros de discurso.”
Na procura de um modelo coerente de organização textual, Bronckart (1999) traça uma
arquitetura dos textos concernentes a um gênero, mostrando a possibilidade de que um mesmo
gênero seja constituído de diferentes tipos de discurso. Os tipos de discurso passam a ser
considerados como unidades lingüísticas, podendo entrar na formação de qualquer gênero.
Para esse autor, constituem quatro formatos básicos, que devem ser vistos numa perspectiva
aberta e com possibilidades de combinações: discurso interativo, discurso teórico, relato
interativo e narração.
Nessa perspectiva, Bronckart indica que as operações que explicitam a relação que
existe entre as coordenadas gerais que organizam o conteúdo temático de um texto e as
coordenadas gerais do mundo ordinário em que ocorre a linguagem são diferentes das que
dizem respeito ao relacionamento entre as diferentes instâncias de agentividade (personagens,
grupos, etc) e sua inscrição espaço-temporal. As operações de construção de coordenadas que
organizam o contexto temático num texto podem ser disjuntas das coordenadas de mundo
ordinário de ação da linguagem, ou conjuntas, isto é, coordenadas organizadoras do conteúdo
temático do texto conjuntas à ação da linguagem.
Retomando o que diz Bronckart, o aspecto disjuntivo apresenta representações
mobilizadas como conteúdo referindo-se a fatos passados, da ordem da história, a fatos
futuros, plausíveis ou imaginários simplesmente. Ancora-se no espaço-tempo, havendo razões
para diferenciar mundo realmente historicamente passado e seus fatos; e mundo narrado,
autônomo e atemporal. Já no aspecto conjunto, os fatos são apresentados como acessíveis ao
mundo ordinário dos protagonistas da interação lingüística, havendo representações
mobilizadas não ancoradas em origem específica, organizadas em referência mais ou menos
direta às coordenadas gerais do mundo de ação de linguagem em curso. Esses dois focos – o
disjunto e o conjunto – instauram, para Bronckart, as ordens do NARRAR e a ordem do
EXPOR, respectivamente.
É importante destacar que, no mundo na ordem do NARRAR, pode-se, primeiro,
distinguir o narrar realista (veiculando conteúdo possível de ser avaliado ou interpretado de
acordo com critérios de validade básicos do mundo ordinário), aparente no tipo de discurso
relato interativo. Em segundo lugar, distingue-se o narrar ficcional (conteúdo parcialmente
sujeito a esse tipo de avaliação), presente no tipo de discurso de narração. Já na ordem do
EXPOR, o conteúdo temático dos mundos discursivos é conjunto, podendo ser interpretado
com critérios de validade do mundo ordinário.
Também é importante explicitar que o cruzamento das distinções NARRAR/EXPOR
permite definir quatro mundos discursivos: o mundo do EXPOR implicado na situação de
produção, representado pelo discurso interativo; o mundo do EXPOR autônomo da situação
de produção, o do discurso teórico; o mundo do NARRAR implicado, o do relato interativo; o
mundo do NARRAR autônomo, o da narração. Cumpre lembrar-se que a identificação desses
mundos se faz a partir das formas lingüísticas que os semiotizam, colocando-se em pauta o
problema metodológico de articular-se a apreensão dessas formas lingüísticas à luz das
operações psicológicas que subjazem a elas e a apreensão dessas à luz de marcas lingüísticas
observáveis empiricamente.
Basicamente, a ordem do NARRAR ancora-se em uma organização espaço-temporal,
como é o caso de “Era uma vez em uma terra distante” introdução constantemente associada
ao gênero conto de fadas, do domínio do NARRAR. Os fatos apresentados na ordem do
537
EXPOR, por sua vez, organizam-se numa referência direta à ação da linguagem em curso,
sendo mostradas ao expectador. Esse mundo discursivo situa-se em “outro lugar”, ainda que
tal deva ser recuperado por quem recebe o texto.
Quando o autor situa os textos na ordem do EXPOR, o conteúdo temático dos mundos
discursivos conjuntos podem ser interpretados com critérios de validade do mundo ordinário.
Assim, ao contrário da ficção na ordem do NARRAR, considerada “normal” no gênero
adotado, a ficção na ordem do EXPOR tem uma avaliação baseada nos critérios de
elaboração/validação de conhecimentos do mundo ordinário, havendo possibilidade de
considerar elementos ficcionais expostos como “falsos”, por exemplo.
Com base em um trabalho de análise de centenas de textos empíricos (BRONCKART
et al., 1985), o autor propõe um esquema geral da arquitetura textual de superposições
(BRONCKART, 1999), que distingue três níveis estruturais superpostos, que se apresentam
como um folhado, constituído por três camadas superpostas, que são a infra-estrutura geral do
texto, os mecanismos de textualização e os mecanismos enunciativos. A distinção de níveis de
análise responde adequadamente à necessidade metodológica de desvendar a trama complexa
da organização textual. Portanto, no âmbito da infra-estrutura geral, aborda-se o texto no seu
nível mais profundo, sendo focalizados, neste folhado, o plano geral (que é a organização
temática do texto); os tipos de discurso (que são as formas de organização lingüística a
nomearem os tipos de segmentos presentes); as articulações entre os tipos de discurso (que é o
modo como se encadeiam ou fundem os tipos de discurso intratextualmente); as seqüências e
demais formas de planificação (que designam as seqüências intratextuais do plano geral, foco
cujo conteúdo Bronckart toma emprestado de Adam).
Os mecanismos de textualização são os responsáveis pela coerência temática. Neles,
constituem-se articulações hierárquicas, lógicas e ou temporais. Este folhado, portanto,
mobiliza três mecanismos: conexão, coesão nominal e coesão verbal.
A conexidade ou conexão marca a progressão temática lançando mão de
organizadores textuais (conjunções, advérbios ou locuções adverbiais, grupos preposicionais,
grupos nominais e segmentos frasais). Esses organizadores podem aplicar-se ao plano geral,
aos tipos de discurso, à transição entre esses tipos, entre as fases de uma seqüência ou, ainda,
às articulações locais (sintaxe de orações). Já a coesão nominal visa a introduzir
temas/personagens e a assegurar sua repetição ou substituição no texto (anáforas). A coesão
verbal objetiva assegurar a organização temporal e/ou hierárquica de processos verbais
(estados, acontecimentos, ações) em interação com, por exemplo, advérbios e organizadores
textuais. Os tipos de discurso determinam a distribuição dos tempos verbais a serem adotados
num texto.
O terceiro folhado é o dos mecanismos de tomada de posição enunciativa
(mecanismos enunciativos). São estes que contribuem para a manutenção da coerência
pragmática textual, revelam as vozes que se expressam, traduzem as avaliações sobre aspectos
do conteúdo temático. Organizados de forma configuracional (opostos a “seqüencial”), são
fundamentos deste folhado o posicionamento enunciativo, vozes e as modalizações.
O posicionamento enunciativo, de difícil identificação, conforme Bronckart (2003),
pode revelar “o que o agente-produtor assume ou pensa em relação ao enunciado, ou remeter
a terceiros a responsabilidade”. Na produção do texto, são criados um ou vários mundos
discursivos com parâmetros/coordenadas com regras diferentes das que regem o mundo da
experiência (empírico), portando complexificando essa tarefa. Esses “mundos virtuais”,
através de instâncias formais que os regem (textualizador, expositor e narrador) distribuem as
vozes sociais (vozes de pessoas/instituições externas ao conteúdo temático), as vozes dos
personagens (vozes de pessoas/instituições diretamente implicadas no percurso temático).
Como, às vezes, as marcas lingüísticas não as “traduzem” claramente, a inferência das vozes
pela leitura faz-se necessária. Às vezes, pronomes, sintagmas nominais, frases ou segmentos
538
frasais cumprem esse papel.
A proposta de análise dos resultados das seqüências didáticas considerará o folhado
textual, analisando-se os elementos que julgamos mais importantes para evidenciar os
resultados da seqüência didática proposta.
É também no interacionismo sociodiscursivo que se encontrou guarida para a proposta
de didatização de gênero. Parte-se do princípio de que, quando um gênero textual entra na
escola, produz-se um desdobramento: ele passa a ser, ao mesmo tempo, um instrumento de
comunicação e um objeto de aprendizagem (SCHNEUWLY e DOLZ, 1999). Mudar um
gênero de referência para o ambiente escolar significa mudar, pelo menos parcialmente, sua
função. “Portanto, ele não é mais o mesmo, pois corresponde a um outro contexto
comunicativo, somente ficcionalmente, ele continua o mesmo, por assim dizer, sendo a escola,
de um certo ponto de vista, um lugar onde se finge, o que é, aliás, uma eficiente maneira de
aprender.”(SCHNEUWLY,2004,p.180) Lembra aqui, certamente, a importância que Vygotski
atribui às brincadeiras de imitação para a aquisição da linguagem para a criança.
A construção de um modelo didático do gênero a ser ensinado (DE PIETRO et al,
1996/1997) evidencia as dimensões ensináveis de um gênero de referência. Os dados sobre os
quais se apóia este chamado modelo didático são:
• “Determinados resultados de aprendizagem esperados e expressos em diversos
documentos oficiais;
• Conhecimentos existentes, lingüísticos (funcionamento dos gêneros para os
especialistas) e psicológicos (operações e procedimentos implicados no
funcionamento e na apropriação dos gêneros);
• Determinação das capacidades mostradas dos aprendizes (que, na verdade, não
permitem definir uma zona proximal de desenvolvimento, mas que permitem que, pelo
menos, esbocemos alguns contornos)” (id)
Dessa forma, o modelo didático define princípios (o que é tal gênero?); os mecanismos
de seu funcionamento, as formatações (modalizações, conetivos) e as unidades de
responsabilidade enunciativa que devem constituir os objetivos de aprendizagem dos alunos.
Fornece “objetos potenciais para o ensino”, potenciais, no sentido de que uma seleção deve
ser feita a partir das capacidades dos aprendizes e também porque não se poderia ensinar o
modelo tal qual é.
A aplicação de atividades propostas sobre os alicerces interacionistas sociodiscursivos
na escola prevê a concepção do texto do aluno como unidade comunicativa
(BRONCKART,1999), ou seja, como um instrumento que proporciona uma interação social
do aluno com o meio e com os demais sujeitos, ao contrário da prática tradicional ainda
vigente em muitas salas de aula de língua portuguesa, em que a produção textual é vista
apenas como mero instrumento de avaliação do aluno. Para dar conta desta realidade e
partindo da noção de modelo didático, surge a noção de seqüência didática, vista como, de
acordo com Schneuwly & Dolz (2004), “um conjunto de atividades que apresenta um número
limitado e preciso de objetivos, organizado a partir de um projeto de apropriação das
dimensões constitutivas de um gênero de texto”. Portanto, a seqüência didática tem, como
principal objetivo, o estudo de um gênero de texto escolhido e o desenvolvimento da
produção textual do aluno dentro deste gênero, dentro do propósito interacionista
sociodiscursivo. As principais etapas que permeiam esse conjunto de atividades são a
produção inicial, na qual o aluno produz um texto do gênero a ser estudado na seqüência
didática utilizando-se apenas dos conhecimentos prévios que possui acerca do mesmo. Após
essa produção inicial, são realizadas atividades de caracterização e diferenciação do gênero de
texto escolhido para com outros gêneros semelhantes, no intuito de que o aluno perceba as
características que compõem e determinam tal gênero, dentro da situação comunicacional em
que o mesmo se insere. O penúltimo encontro da seqüência prevê a elaboração de um roteiro,
539
que servirá como base para a produção final. O texto final produzido pelo aluno é
contrastado com seu texto inicial, numa análise que enfoca tanto aspectos quantitativos como
qualitativos referentes às diferenças entre a primeira e a última produção textual.
3. Metodologia adotada
As escolas onde foi desenvolvido o projeto foram escolhidas a partir da possibilidade
de representarem realidades sociais diversas, sendo uma pública, localizada em região
periférica e outra, privada, localizada em região central. A pesquisa aqui relatada consistiu na
comparação da aplicação de uma mesma seqüência didática planejada sobre o gênero de texto
narrativa de detetive em duas turmas de 5ª série do Ensino Fundamental. Um das turmas
pertence a uma escola municipal pública, localizada em um bairro de periferia, de Ensino
Fundamental Incompleto (até a 5ª série). A outra turma encontra-se em uma escola particular
confessional, de Ensino Médio, situada em um bairro central. Ambas as escolas localizam-se
na mesma região geográfica, em cidades vizinhas da região metropolitana de Porto Alegre. As
seqüências didáticas foram aplicadas em 2005, sendo que, na escola pública, sua aplicação
ocorreu na aula de Língua Portuguesa, uma vez por semana , de maio a outubro, e, na escola
particular, de forma contínua, na seqüência das aulas semanais de Língua Portuguesa, de
outubro a dezembro. Essa diferença de tempo na aplicação da proposta se deu pelo fato de que
a equipe já realizava trabalho na escola municipal há 2 anos e, na escola particular, houve
uma seqüência de reuniões com a coordenação pedagógica e a professora da turma antes da
aplicação da seqüência.
Os professores encarregados de desenvolver as seqüências didáticas foram os próprios
docentes das turmas, com acompanhamento de bolsistas de iniciação científica do projeto. No
caso da escola municipal, como o bolsista já havia desenvolvido outras seqüências didáticas
com a turma, foi, muitas vezes, parceiro da professora de classe na condução dos trabalhos.
As escolas concordaram em ser parceiras no projeto, ou seja, a supervisão pedagógica
das escolas esteve envolvida em reuniões de planejamento e discussão dos resultados, tendo
voz no desenvolvimento das atividades.
Dois bolsistas foram designados para acompanhar as oficinas de aplicação da
seqüência didática, sendo um responsável pela turma da escola municipal, outro da particular.
Este bolsista se encarregou de registrar os diferentes momentos de cada sessão de aula. Foram
propostos vários momentos de observação: antes do início do trabalho com seqüência didática,
na aula de apresentação da seqüência, uma vez por semana durante o período de duração das
oficinas (com duração de 1 hora cada vez) e no encontro final. Ocorreram gravações em áudio
e vídeo destes momentos, com registro escrito as acompanhando. Os dados considerados
relevantes para a pesquisa foram transcritos, a partir da triangulação entre os dados obtidos
via áudio/vídeo, registros escritos e observações participantes.
Os dados foram analisados sob o ponto de vista do processo, ou seja, das
interpretações dadas pelos alunos às diferentes atividades de linguagem propostas e dos textos
produzidos. Para tal fim, foram cotejados diversos pronunciamentos dos alunos e dos
professores com relação às atividades propostas. Também foram examinadas as produções
iniciais e finais de cada aluno, seguindo a análise do folhado textual proposta por Bronckart
(1999). Posteriormente, os pronunciamentos e as produções foram comparados, como
pertencentes a grupos diversos, para verificar os efeitos da seqüência didática nos dois grupos
escolhidos.
4. Desenvolvimento da proposta de pesquisa
A narrativa de detetive foi o gênero de texto escolhido para esta seqüência didática,
pois, primeiramente, as histórias de mistério instigam nas crianças desta faixa etária uma
540
motivação para a leitura de livros deste gênero textual. As características do gênero narrativa
de detetive são bem delineadas e de fácil identificação pelo leitor. Além disso, essas
características, geralmente, revelam não somente o gênero de texto presente na história, mas
também características essenciais à compreensão da seqüência narrativa. Estas narrativas
sempre apresentam um mistério a ser desvendado, seja ele um crime, sumiço ou perigo;
personagens clássicas que, por sua vez, são descritas física e psicologicamente de acordo com
sua função dentro da trama; vocabulário típico em se tratando de uma história de mistério e
dois planos temporais arquetípicos bem definidos, de acordo com Todorov (1970): o plano do
crime ou do mistério, que se desenvolve no passado; e o plano da investigação, por sua vez,
narrado no presente.
A seqüência didática transcorreu, em ambas as turmas, de acordo com o seguinte
roteiro, organizado por oficinas. Observa-se que, na escola particular, em função de fatores
relativos à organização escolar, não foi possível desenvolver a oficina de número 13, pois os
alunos entraram em época de provas/recuperação. Esta última oficina, na escola municipal,
teve como objeto produções textuais de alunos de escola pública de outro município, na qual a
seqüência textual foi inicialmente testada por uma das bolsistas do projeto, docente de Língua
Portuguesa na dita escola.
Produção inicial dos alunos: O professor fez uma breve introdução, relatando os
objetivos do projeto que vai iniciar e perguntando se os alunos conhecem histórias de
suspense, mistério, crimes, detetives. A seguir foi solicitada a produção inicial sobre uma
história de detetive, tendo sido escolhido pela turma tema sobre “sumiço do meu colega ...”.
Oficina 1
Caracterização do gênero narrativas de detetive com os alunos, a partir de perguntas
como “Alguém aqui já leu histórias de detetives, já assistiu na TV, no cinema?”, “Conhecem
algum livro, filme, história ou mesmo um detetive famoso?”, “Quais?”. Leitura de texto do
gênero “O Misterioso Telefonema” (Lourenço Cazarré). Proposição de questões sobre o
gênero: levantamento de vocabulário típico das narrativas de detetive, a presença de suspense,
medo, mistério; características do conto, relativas à sua estrutura, como tempo, espaço,
complicação, ações, resolução; análise dos personagens: o próprio detetive e o possível
antagonista; existência de duas histórias paralelas: uma que está no passado e diz respeito ao
crime ou mistério; e outra, no presente, que rege a investigação do crime/mistério existente na
primeira história. Análise da capa da história com imagens e ilustrações que remontem à
presença de características de uma história de detetive, como suspense, mistério, investigação.
Oficina 2
A partir de 3 textos de gêneros diversos (conto de fada, narrativa de detetive e
narrativa de terror), identificação do texto que apresenta características de narrativa de
detetive.
Oficinas 3 a 7
Apresentação do livro “O vírus vermelho” (CARR, 1991), que acompanhará o
desenvolvimento das oficinas. Análise do título e da capa do livro, a partir dos quais os alunos
fazem uma série de inferências sobre o possível desenvolvimento da narrativa. Leitura do
livro em partes. Em cada oficina, preenchimento de um “diário de leitura”, que auxilia na
caracterização do gênero, pela identificação das ações ocorridas no capítulo e mediante o
desafio de inferir as próximas. Após a leitura da narrativa em sua totalidade, montagem de um
cartaz, com a seqüência completa da narrativa, (situação inicial, a complicação, as ações
decorrentes da complicação, a resolução e a situação final). Na última dessas oficinas, os
diários de leitura foram reunidos, recebendo uma capa desenhada pelos alunos.
541
Oficina 8
Início da etapa de produção de narrativas de detetive. A primeira tarefa foi realizada
em duplas e consistiu na construção de um enigma. Os alunos construíram as características
que antes eram analisadas nas outras histórias de detetive, como as duas histórias paralelas,
uso do vocabulário e dos tempos verbais adequados, presença de pistas, de mistério,
seqüência de ações, etc. Ao final desta oficina, o material produzido pelos alunos foi
recolhido para verificar o progresso da construção da história, que será continuada ao longo
das oficinas seguintes.
Oficina 9
A partir da releitura dos mistérios produzidos na aula anterior, foi preenchida uma
ficha, que constituiu um roteiro para completar uma narrativa de detetive. Neste roteiro,
foram estabelecidas as principais características que uma história de detetive deverá conter,
como os culpados, as vítimas, os investigadores, os motivos do mistério/crime, etc. Tanto os
mistérios quanto os roteiros foram recolhidos, para análise.
Oficina 10
A partir do mistério e do roteiro construídos anteriormente, a produção final da
narrativa de detetive é solicitada, de forma individual.
Oficina 11
Após a realização da produção final da narrativa de detetive e da análise da professora
e do grupo do projeto, foi feito um trabalho de autocorreção, visto que os alunos deveriam
buscar soluções com o objetivo de melhorar sua narrativa de detetive, sobretudo no tocante à
organização textual e características do gênero de texto em questão. Esta oficina teve como
objetivo a refacção dos textos produzidos na oficina anterior, tendo como ponto de partida a
confecção coletiva de uma grade com critérios imprescindíveis para uma narrativa de detetive.
A partir dessa grade, cada aluno avaliou seu próprio texto final e verificou a necessidade ou
não de refazê-lo.
Oficina 12
As narrativas produzidas foram distribuídas a todos, para leitura e comentários. Em
grupos, os próprios alunos escolheram 5 narrativas, para serem “publicadas” em livrinho
especial. Os critérios para esta escolha foram as características do gênero. Depois da votação,
tais narrativas foram lidas para a classe.
Oficina 13
Os alunos receberam um livrinho com as 5 melhores histórias de detetive por eles
escolhidas. Também receberam outro livrinho com as 5 melhores histórias de detetive da 5ª
série da outra escola onde ocorreu esta mesma seqüência didática. Após leitura individual,
foram divididos em 5 grupos. Cada grupo analisou uma das histórias do livrinho da outra 5ª
série, e fez modificações que julgou necessárias, acrescentando outras idéias à história. Essa
atividade remonta ao conceito do interacionismo sócio-discursivo, visto que os textos, assim,
ganham um propósito comunicativo muito mais amplo, proporcionando uma espécie de
“intercâmbio comunicacional”. As “novas histórias” foram lidas para a turma e entregues para
a professora, que as fez retornar à turma de origem.
542
5. Análise dos resultados
Os textos iniciais e finais produzidos pelos alunos de ambas as escolas foram
analisados de acordo com o exposto anteriormente sobre a arquitetura textual proposta por
Bronckart (1999). Na primeira “camada” do texto, a mais superficial, foram analisados
aspectos mais aparentes do conteúdo temático, como vocabulário e personagens típicos e a
presença e solução de um mistério a ser desvendado, além do tipo de discurso utilizado e da
seqüência discursiva empregada.
Na camada referente aos mecanismos de textualização, foram verificadas a existência
de cadeias anafóricas, que facilitam a organização textual da narrativa, e referenciações,
recurso discursivo que demonstra a habilidade do aluno em construir seqüências referenciais
dentro do texto. Também foram analisados os planos temporais, nos quais a narrativa se
apoiou.
Por fim, na terceira camada, foram observados os mecanismos enunciativos, que têm
grande importância na caracterização do gênero envolvido, enfatizando-se as vozes presentes
no texto:o tipo de narrador utilizado, a presença de vozes sociais e de personagens, a voz do
autor empírico.
A observação desses elementos permitiu traçar dois gráficos, um referente ao
desempenho dos alunos da escola municipal, outro ao da particular:
Figura 1 : Comparação entre as produções iniciais e finais dos alunos da escola municipal
Evolução das camadas 1 e 3 do folhado na escola municipal
100%
80%
60%
40%
20%
0%
Produção inicial
so
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Produção final
Figura 2: Comparação entre as produções iniciais e finais dos alunos da escola particular
Evolução das camadas 1 e 3 do folhado na escola particular
100%
80%
60%
40%
20%
0%
Produção inicial
Vo
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Vo
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Produção final
543
É possível observar, através dos resultados mostrados acima, que houve um
crescimento considerável em, ao menos, dez aspectos relevantes para a produção textual de
narrativas de detetive entre a produção inicial e a produção final na escola municipal. Esse
enfoque quantitativo é mais expressivo na escola municipal, possivelmente por fatores
referentes ao ambiente de letramento que cerca os alunos. Na escola em que estudam, num
bairro de classe baixa de uma cidade metropolitana, o gênero narrativa de detetive jamais
havia sido tratado com tamanha especificidade como foi durante a aplicação da seqüência
didática. Portanto, ao produzirem seu texto inicial, muitas crianças não utilizaram marcas do
conteúdo temático do gênero. Isso é comprovado pelos seguintes elementos:
Elemento considerado
Presença de mistério
Personagens característicos
Vocabulário específico
Produção inicial
82%
40%
82%
Produção final
100%
82%
100%
As produções iniciais e finais de um mesmo aluno da EM exemplificam os achados:
Produção Inicial
“Num dia Vinícius sumiu
dentro de um bar com nenhum sinal.
Então comecei a procurar. (...)
Depois de desamarrá-lo da
cadeira ele contou que ele entra por
um buraco que acabava atrás da copa.
A sombra que eu tinha visto
era o ladrão.”
Produção Final
“Em um dia misterioso ocorre um
assassinato na vila Dortmund e a
polícia chega no local do crime. Lá
a polícia acha uma pessoa olhando
para o morto sangrando. Ele se
chama Waly Douglas(...)
Voltou para seu escritório e
foi investigar o corpo da morta e
não parecia ter sido espancada.(...)
Achou uma faca no bolso do
mesmo policial que tinha falado
para ver Waly Douglas. Provou que
ele era o culpado e o nome dele era
James Terry (...) foi preso e
assumiu que ligou para Waly
Douglas ir na sua casa. Enquanto
isso, ele fugiu. Waly Douglas foi
solto e os policiais pediram
desculpas a ele.”
Os personagens iniciais, eu e meu colega, transformam-se, na produção final, em
personagens típicos de narrativas de detetive, até com nomes em inglês, numa nítida
inspiração dos vários exercícios feitos durante as oficinas. As expressões “sangrando, corpo
da morta, não parecia ter sido espancada” são decorrentes também das leituras realizadas.
Chega-se, assim, a um ganho muito importante deste tipo de trabalho: um nível de letramento
que podemos chamar de literário, pois a produção final aparece com marcas ficcionais não
existentes anteriormente e típicas da literatura de detetive.
544
A diferença entre a produção inicial e final também se revela no tipo discursivo
empregado: o relato interativo passa à narração. Outro exemplo mostra como, de uma
produção calcada na situação de produção, o aluno passa a montar ficcionalmente seu texto,
tornando-o autônomo da situação de produção:
Produção Inicial
Produção Final
Quem sumio foi Ramon. O
Ramon sumio na sala de aula foi
no banheiro não vi mais ele so vi
seu tênis ue cadê Ramon sumiu
depois da quilo minguen viu mas
ele escapolido. E Suyzi Márcia
investiguemos e nada do Ramon
cadê Ramon umdia eu (...)
Era uma vez Fabi e Cristina estava
passeando, e mataram elas e a minha
amiga me indicou um detetive ele se
chamava
Marcio
e
encontrou
empresões digitais e um pedaço de
blusa (...)
Essa questão da passagem do relato interativo à narração também foi válida para a EP:
Produção Inicial
Produção Final
“A nossa turma era muito
educada, o único bagunceiro era
o Rodrigo e o mais rico e por isso
sempre era assaltado.
Numa quinta-feira ele não foi
para aula e todos estranharam por
que ele nunca tinha faltado aula.
Quando acabou a aula eu liguei
para a casa dele e a mãe dele
atendeu (...)”
“Um dia uma escola chamada
XXX queria fazer um passeio, só que
não sabiam para onde iam. Uns davam
uma idéia e outros davam outras idéias,
só que nenhuma era boa.
O Diego falou:
- O professora, porque nós não
vamos a mansão mal assombrada?
- É uma boa idéia.”
Na verdade, o tipo de discurso empregado foi, quantitativamente, a marca mais
aparente da seqüência didática, nas duas escolas:
Presença de narração
Produção inicial
Produção final
Escola Municipal
80%
100%
Escola Particular
60%
100%
Esta marca aparece reforçada pelo crescimento do emprego de narrador neutro na
produção final, enquanto que, na produção inicial, havia predomínio do narrador empírico,
também marca do relato interativo:
Narrador na 3ª pessoa
Produção inicial
Produção final
Escola Municipal
40%
65%
Figura 3: Comparação entre as duas escolas
545
Escola Particular
10%
80%
Comparativo entre as produções inicial e final de ambas as escolas
100%
80%
60%
40%
20%
0%
P.I. escola municipal
P.I. escola particular
P.F. escola municipal
Re
la
to
i nt
er
a
ti v
o
P.F. escola particular
A comparação entre as duas escolas deixa evidente um ponto bastante vinculado à
distinção social, que é o referente ao ambiente de letramento. Observou-se, desde a produção
inicial, que a grande maioria das crianças da turma da escola particular já conhecia o gênero
de texto em questão. Uma maior oferta de material de letramento no ambiente familiar e a
maior qualidade e variedade do mesmo material oferecido pela escola são decisivos na
determinação das diferenças, sobretudo, com relação às produções iniciais.
Essas diferenças, entretanto, são bastante compensadas, no caso da escola municipal,
pelo desenvolvimento da seqüência didática. O conteúdo temático tipicamente veiculado pelas
narrativas de detetive é apropriado também pela grande maior parte dos alunos da escola
municipal na sua produção final. Na escola particular, outra apropriação fica evidente, a
relativa ao tipo de discurso empregado. Possivelmente, porque os alunos da escola municipal
já tinham trabalhado em séries anteriores outras seqüências didáticas sobre gêneros do mundo
do NARRAR, seu texto inicial já se mostra, em maior número, autônomo da situação de
produção, como narrações. A passagem do relato interativo para a narração é, pois, o grande
ganho do trabalho desenvolvido na escola particular.
Apesar, entretanto, das diferenças verificadas entre os resultados de cada escola,
constata-se o mérito da seqüência didática como um conjunto de atividades que proporciona
ao aluno a apropriação das dimensões especificas que constituem um gênero de texto
específico. Porém, é de fundamental importância ressaltar o papel do ambiente de letramento
na esfera escolar de produção textual, pois é ele que dimensiona aspectos cruciais a serem
analisados nos textos de uma determinada turma.
A partir da pesquisa aqui retratada, constata-se que a mesma seqüência didática pode
evidenciar resultados efetivos em turmas com contextos de letramento distintos.
6. Concluindo e projetando
O trabalho desenvolvido comprovou a afirmação de Schneuwly (2002) de que se
aprende a escrever a partir da apropriação dos utensílios da escrita, no sentido vygotskiano de
que essa apropriação permite transformar a relação com o próprio processo psíquico da
produção de linguagem:
As pesquisas em didática mostram que o cacife da aprendizagem da escrita – e,
conseqüentemente, de sua aprendizagem – é a transformação do sistema pela
construção de um novo sistema que reorganize de outra forma os diferentes
componentes que intervêm na produção de um texto.(SCHNEUWLY, 2002, p. 242).
A análise do produto texto, nas duas quintas séries do Ensino Fundamental, mostrou
que um trabalho com seqüências didáticas em torno de gênero textual determinado tem
546
conseqüências muito produtivas no texto dos alunos. Entrevistas, realizadas com alunos da
escola municipal, revelaram duas questões significativas. Por um lado, todas as narrativas
orais produzidas na 5ª série, mostraram-se disjuntas e autônomas em relação à situação de
produção, constituindo-se narrações (BRONCKART,1999). Por outro, as avaliações dos
alunos sobre as experiências com “oficinas de escrever” foram muito interessantes, a começar
pelo adjetivo usado por todos eles para expressar essa avaliação: legal. Os motivos variam:
“Porque antes eu não conseguia muito pensar assim pra fazer as história(s). Agora eu
(es)tou pensando melhor. Eu invento umas história(s) melhor.” (Menina B, 11 anos, 5ª série);
“Agora eu (es)to(u) escrevendo melhor. Antes eu tinha, eu queria terminar tudo bem
rápido, sabe? Daí fazia bem ligeiro. Agora eu tenho mais calma de escrever. Eu não escrevo
tão rápido” (Menina G, 10 anos, 5 série),
mas todos referem o crescimento ocorrido. Ou nas palavras da menina S, com 11 anos:
S: Eu achei legais, diferentes... interessante. Eu achei legal as história(s), o que eu
mais gostei foi as histórias de detetive e as histórias em quadrinhos.
P: Hmhmm. Por quê?
S: Porque é uma coisa diferente, sei lá... as histórias em quadrinho(s) porque eu, eu
adoro ler. Eu faço minha mãe comprar pra mim todo mês uma revista que tem uma história
em quadrinho, sabe? E aí eu adoro ler história em quadrinho. Sempre gostei de ler historinha
em quadrinho. E de detetive porque é uma história que daí tu tem que lendo, lendo, lendo
cada vez mais pra ti descobrir quem é o culpado do que aconteceu.
P: Isso mesmo. E tu acha(s) que esse... esses projetos que a gente fez te ajudaram em
alguma coisa?
S: Ajudaram bastante.
P: Em...
S: No português.
Os resultados da análise das produções dos alunos revelam transformações
importantes em suas capacidades de linguagem. Os textos analisados mostram que as
dificuldades relativas à organização de seqüências narrativas foram praticamente resolvidas e
que o domínio do conteúdo temático próprio ao gênero narrativa de detetive foi atingido. A
maioria dos alunos viu-se capaz de mobilizar o conteúdo temático compatível com o gênero e
de organizá-lo de maneira adequada, em função das diferentes fases de uma seqüência
narrativa, encadeando as ações das personagens na progressão da solução dos enigmas, no
caso do gênero narrativa de detetive.
Tem-se a convicção de que, na medida em que os conceitos de linguagem e de ensino
envolvem indivíduo, história, cultura e sociedade (Vygotski, 1988), o desenvolvimento das
atividades cognitivas, salientando-se aí as que chama de superiores, podem ser vistas como
produtos de atividades praticadas em instituições sociais de cultura. Esta visão dá um papel
fundamental à escola.
Dessa forma, na elaboração de seqüências didáticas, o papel do professor é
fundamental. Essa foi justamente a maior dificuldade encontrada na experiência relatada. Os
resultados animaram os dois docentes que participaram dessa caminhada, mas não garantiram
sua adesão como proponentes de novas seqüências didáticas. Encontra-se, nessa questão, o
obstáculo mais sério à didatização do gênero, tal como vista pelo interacionismo
sociodiscursivo. Há um suporte teórico muito forte que deve respaldar a ação didática, mas
que pode permanecer distante do professor de ensino fundamental, se este não receber apoio
547
específico com este fim. Ao mesmo tempo, é preciso estar alerta para o que os professores
dizem ser trabalhar com gênero (GUIMARÃES, 2005), pois deve estar presente a diferença
entre trabalho sobre um gênero, enquanto unidade comunicativa adaptada a uma dada situação,
e trabalho sobre os tipos de discurso que estão presentes neste mesmo gênero de texto.
Recentes lançamentos didáticos (como Barbosa, 2001; Souza, 2003; Machado,
Lousada e Abreu-Tardelli, 2004) podem contribuir para ajudar a caminhada docente nesta
direção. O investimento no domínio desta prática e nos sistemas formativos é longo e deve ser
continuado. De qualquer modo, continuo acreditando que o caminho para mudar a realidade
da escola brasileira é um trabalho de formação sério, que envolva prática docente e avaliação
dessa prática, um fazer e refazer das ações de linguagem, numa interação entre pesquisadores
de ensino de língua materna, preocupados em também serem formadores de docentes e os
próprios professores da Escola Fundamental.
Para encerrar, cabe incluir comentário da professora da escola particular sobre o
trabalho desenvolvido:
- PRO K: Ela (a seqüência didática sobre narrativas de detetive) foi um pouco... foi
diferente porque as minhas produções, elas são baseadas no texto que a gente lê, que a gente
trabalha, ou em algum assunto que surge, da atualidade, enfim... e esse já foi uma coisa
assim que toda a aula eles liam um pedaço do livro... e isso eles gostaram muuuuiiito. Eles
acharam assim muuuiiito interessante. Eles queriam leva(r) o livro pra casa, ah!
Professora! Então isso eles gostaram, isso me empolgo, talvez assim, foi a parte que... eu
acho que eles curtiram mais, sabe. Porque o livro é interessante, daí eles tinham que para(r)
quando... né, num determinado capítulo... aí eles queriam sabe(r) mais. Então isso eu achei
assim que foi bem legal e eles gostaram muito também. Até quando a gente comentava, o que
vocês tão achando do projeto? Eles falavam do livro, sabe, eles logo voltavam assim, até a
Denise também andou perguntando pra eles e eles logo falavam que a história era muito
legal e tal, porque então a gente fez uma produção no início, antes de lê, né e uma produção
depois. Mas o que que tem basicamente de diferente das que eu trabalho? É porque as
minhas ou são baseadas em algum texto, então é uma coisa assim, do momento. Ou de
algum assunto atual, que também é do momento. Ou eu proponho algum outro assunto pra
eles, daí eles fazem a produção textual. Então eu acho que isso foi diferente porque aqui
veio sendo traçado um caminho, né? E de repente no final assim eles já tinham em mente o
que escreve(r) (...)
O depoimento da professora da escola particular, acostumada a trabalhar produções
textuais com os alunos de forma continuada, mas sobre temas e gêneros variados, mostra o
acerto do trabalho proposto com base na teoria interacionista sociodiscursiva. Como
conclusão do trabalho realizado, pode-se afirmar que, posto em questão sob a ótica da prática
em realidades sociais diferentes, é possível validar o trabalho com seqüências didáticas
baseadas em um dado gênero de texto, dentro da ótica do interacionismo sociodiscursivo.
Tornar este trabalho, entretanto, parte do cotidiano do professor e, sobretudo, como
instrumento que pode ser por ele criado dentro de construtos teóricos como os que utilizamos
é outra tarefa, para a qual um bom começo são as salas de aula dos cursos de formação de
docentes. Esta questão dos docentes de língua materna será objeto de projeto de pesquisa que
iniciou em 2006, a partir do corpus coletado com a ajuda do CNPq, intitulado Diversidade
social e identidade do português brasileiro nas interações de sala de aula de língua
portuguesa.
O objetivo principal deste estudo é explicitar as estratégias discursivas que o professor
mobiliza para construir uma ação que possa ser interpretada pelos alunos e que seja favorável
548
para a aprendizagem pretendida. Nesse contexto, na regulação entre o macro (as situações do
agir docente no cenário de sala de aula, particularmente quando o professor se coloca no papel
de mediador/facilitador) e o micro (de que variedade de língua, padrão ou não padrão, se vale
esse docente nessa situação de agir), objetivamos estudar a ação escolar como sinalizadora de
identidade(s) lingüística(s). Como diz Bakhtin (2003, p.12):”uma palavra é dirigida a um
interlocutor: ela é função deste interlocutor”. Nesse processo conjunto de construção de
significados, professor e aluno constroem suas identidades sociais pela linguagem. Nosso
interesse em como essas diferentes identidades são geradas em sala de aula nos faz também
verificar as variedades do Português Brasileiro(PB) em interações escolares, contrastando
realidades sociais diversas e propostas educacionais diferentes. O trabalho versará sobre a
atividade de 2 docentes de Língua Portuguesa, atuando na mesma série de ensino (5ª série do
Ensino Fundamental) em duas escolas gaúchas: uma pública, outra privada, ambas situadas na
região metropolitana de Porto Alegre (a pública na periferia da cidade de São Leopoldo, a
particular, na região central de Novo Hamburgo). O agir docente será analisado em três tipos
de dados: os textos-base do trabalho docente (planos curriculares das turmas, por exemplo,
vistos como trabalho prescrito) ; gravações em áudio-vídeo do agir docente em situações de
sala de aula de língua materna (trabalho real); entrevistas com os docentes antes e depois da
tarefa desenvolvida com os alunos (trabalho representado). O suporte teórico será ainda o do
interacionismo sociodiscursivo, em suas versões mais recentes (BRONCKART, 2005,2006).
Propõe-se, desta forma, aprofundar o corpus coletado e analisá-lo sobre outros prismas.
Também este relatório técnico será apresentado, pelo grupo do projeto, em reunião nas
escolas municipal e particular com os professores envolvidos e as coordenações pedagógicas,
para confrontarem-se os resultados obtidos e as possibilidades de inserção de seqüências
didáticas, tal como a analisada, no programa das escolas.
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11 Ana Maria de Mattos Guimarães