A DIDATIZAÇÃO DE GÊNERO EM AMBIENTES SOCIAIS DIVERSOS: A POSSIBILIDADE DE ENSINAR GÊNEROS DE TEXTO ATRAVÉS DE SEQÜÊNCIAS DIDÁTICAS Ana Maria de Mattos GUIMARÃES (Universidade do Vale do Rio dos Sinos) ABSTRACT: This presentation aims to reflect upon the use of teaching strategies to improve writing, in different social realities, bearing in mind the students’ individual track, and their specific cultural-historical situation. Social diversity, although a feature which characterizes the Brazilian society, is almost not taken into consideration in terms of our educational system. The study was based on principles coming from the sociodiscursive interactionist theory (BRONCKART, 1999, 2005) and on the possibility of making textual genres teachable through the didactic sequences (SCHNEUWLY and DOLZ, 1999, 2004). An applied comparative work was developed using a same didactic sequence, related to the NARRATION mode, with two 5th grades in elementary school. Although the schools were located in the same geographical region, one is a localgovernment-run public school, with students belonging to a low socio-economical class, and the other is a private, religion-oriented school, with students belonging to a high socio-economical class. KEYWORDS: socio-discursive interactionist theory; textual genres; didactic sequences; different social environments. 1. Introdução Proposto em vários manuais de ensino-aprendizagem de língua materna, com respaldo dos Parâmetros Curriculares Nacionais (1998), o ensino de gêneros textuais tornou-se assunto bastante comum. Mas, afinal, o que é realmente ensinar a partir de um determinado gênero? O que significa gênero? A partir de princípios do Interacionismo Sociodiscursivo, retomamos essa questão, apresentando a possibilidade do uso de um modelo didático centrado em um determinado gênero e ensinado através de uma seqüência didática. Uma proposta sobre o gênero narrativa de detetive foi desenvolvida em duas escolas com realidades sociais diversas. Os resultados obtidos são agora discutidos. 2. Referenciais teóricos Tomamos por base o interacionismo sociodiscursiva (ISD), proposto por Bronckart e seguidores (1999, 2004, 2005), com o grande mérito de não ter sido apresentado de forma acabada, mas como um projeto de desenvolvimento de uma teoria. Esta teoria pretende realizar parte do projeto do interacionismo social, desenvolvido, sobretudo, nos estudos de Vygotski. Centra-se na questão da ontogênese humana (sem tratar da filogênese), abordando-a num caminho descendente, ou seja, tomando como foco de análise o que as potencialidades do sujeito tornam possível no plano da linguagem. Essa abordagem descendente da ontogênese procura examinar, inicialmente, «os pré-construtos que constituem os textos que comentam as atividades humanas e as modalidades escolares ou formais de realização dos sistemas formadores, para abordar o desenvolvimento dos indivíduos sob seu ângulo epistêmico e praxiológico” (BRONCKART, 2005). Nessa relação, 4 sistemas são invocados: a língua, a atividade social, o psicológico e o textual/discursivo, considerados como mecanismos de interação. O estudo das atividades de linguagem é feito através dos textos (orais e escritos) que as materializam. Tais textos são considerados unidades comunicativas globais (BRONCKART, 2004b, p. 115) e se agrupam em gêneros, “que são socialmente indexados, quer dizer, que são reconhecidos como pertinentes e/ou adaptados para uma situação 536 comunicativa dada.” (idem) A noção de gênero, cuja diversidade é potencialmente ilimitada, é tomada de Bakhtin (2003, p. 262-3), para quem “o emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo de atividade humana. (...) Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros de discurso.” Na procura de um modelo coerente de organização textual, Bronckart (1999) traça uma arquitetura dos textos concernentes a um gênero, mostrando a possibilidade de que um mesmo gênero seja constituído de diferentes tipos de discurso. Os tipos de discurso passam a ser considerados como unidades lingüísticas, podendo entrar na formação de qualquer gênero. Para esse autor, constituem quatro formatos básicos, que devem ser vistos numa perspectiva aberta e com possibilidades de combinações: discurso interativo, discurso teórico, relato interativo e narração. Nessa perspectiva, Bronckart indica que as operações que explicitam a relação que existe entre as coordenadas gerais que organizam o conteúdo temático de um texto e as coordenadas gerais do mundo ordinário em que ocorre a linguagem são diferentes das que dizem respeito ao relacionamento entre as diferentes instâncias de agentividade (personagens, grupos, etc) e sua inscrição espaço-temporal. As operações de construção de coordenadas que organizam o contexto temático num texto podem ser disjuntas das coordenadas de mundo ordinário de ação da linguagem, ou conjuntas, isto é, coordenadas organizadoras do conteúdo temático do texto conjuntas à ação da linguagem. Retomando o que diz Bronckart, o aspecto disjuntivo apresenta representações mobilizadas como conteúdo referindo-se a fatos passados, da ordem da história, a fatos futuros, plausíveis ou imaginários simplesmente. Ancora-se no espaço-tempo, havendo razões para diferenciar mundo realmente historicamente passado e seus fatos; e mundo narrado, autônomo e atemporal. Já no aspecto conjunto, os fatos são apresentados como acessíveis ao mundo ordinário dos protagonistas da interação lingüística, havendo representações mobilizadas não ancoradas em origem específica, organizadas em referência mais ou menos direta às coordenadas gerais do mundo de ação de linguagem em curso. Esses dois focos – o disjunto e o conjunto – instauram, para Bronckart, as ordens do NARRAR e a ordem do EXPOR, respectivamente. É importante destacar que, no mundo na ordem do NARRAR, pode-se, primeiro, distinguir o narrar realista (veiculando conteúdo possível de ser avaliado ou interpretado de acordo com critérios de validade básicos do mundo ordinário), aparente no tipo de discurso relato interativo. Em segundo lugar, distingue-se o narrar ficcional (conteúdo parcialmente sujeito a esse tipo de avaliação), presente no tipo de discurso de narração. Já na ordem do EXPOR, o conteúdo temático dos mundos discursivos é conjunto, podendo ser interpretado com critérios de validade do mundo ordinário. Também é importante explicitar que o cruzamento das distinções NARRAR/EXPOR permite definir quatro mundos discursivos: o mundo do EXPOR implicado na situação de produção, representado pelo discurso interativo; o mundo do EXPOR autônomo da situação de produção, o do discurso teórico; o mundo do NARRAR implicado, o do relato interativo; o mundo do NARRAR autônomo, o da narração. Cumpre lembrar-se que a identificação desses mundos se faz a partir das formas lingüísticas que os semiotizam, colocando-se em pauta o problema metodológico de articular-se a apreensão dessas formas lingüísticas à luz das operações psicológicas que subjazem a elas e a apreensão dessas à luz de marcas lingüísticas observáveis empiricamente. Basicamente, a ordem do NARRAR ancora-se em uma organização espaço-temporal, como é o caso de “Era uma vez em uma terra distante” introdução constantemente associada ao gênero conto de fadas, do domínio do NARRAR. Os fatos apresentados na ordem do 537 EXPOR, por sua vez, organizam-se numa referência direta à ação da linguagem em curso, sendo mostradas ao expectador. Esse mundo discursivo situa-se em “outro lugar”, ainda que tal deva ser recuperado por quem recebe o texto. Quando o autor situa os textos na ordem do EXPOR, o conteúdo temático dos mundos discursivos conjuntos podem ser interpretados com critérios de validade do mundo ordinário. Assim, ao contrário da ficção na ordem do NARRAR, considerada “normal” no gênero adotado, a ficção na ordem do EXPOR tem uma avaliação baseada nos critérios de elaboração/validação de conhecimentos do mundo ordinário, havendo possibilidade de considerar elementos ficcionais expostos como “falsos”, por exemplo. Com base em um trabalho de análise de centenas de textos empíricos (BRONCKART et al., 1985), o autor propõe um esquema geral da arquitetura textual de superposições (BRONCKART, 1999), que distingue três níveis estruturais superpostos, que se apresentam como um folhado, constituído por três camadas superpostas, que são a infra-estrutura geral do texto, os mecanismos de textualização e os mecanismos enunciativos. A distinção de níveis de análise responde adequadamente à necessidade metodológica de desvendar a trama complexa da organização textual. Portanto, no âmbito da infra-estrutura geral, aborda-se o texto no seu nível mais profundo, sendo focalizados, neste folhado, o plano geral (que é a organização temática do texto); os tipos de discurso (que são as formas de organização lingüística a nomearem os tipos de segmentos presentes); as articulações entre os tipos de discurso (que é o modo como se encadeiam ou fundem os tipos de discurso intratextualmente); as seqüências e demais formas de planificação (que designam as seqüências intratextuais do plano geral, foco cujo conteúdo Bronckart toma emprestado de Adam). Os mecanismos de textualização são os responsáveis pela coerência temática. Neles, constituem-se articulações hierárquicas, lógicas e ou temporais. Este folhado, portanto, mobiliza três mecanismos: conexão, coesão nominal e coesão verbal. A conexidade ou conexão marca a progressão temática lançando mão de organizadores textuais (conjunções, advérbios ou locuções adverbiais, grupos preposicionais, grupos nominais e segmentos frasais). Esses organizadores podem aplicar-se ao plano geral, aos tipos de discurso, à transição entre esses tipos, entre as fases de uma seqüência ou, ainda, às articulações locais (sintaxe de orações). Já a coesão nominal visa a introduzir temas/personagens e a assegurar sua repetição ou substituição no texto (anáforas). A coesão verbal objetiva assegurar a organização temporal e/ou hierárquica de processos verbais (estados, acontecimentos, ações) em interação com, por exemplo, advérbios e organizadores textuais. Os tipos de discurso determinam a distribuição dos tempos verbais a serem adotados num texto. O terceiro folhado é o dos mecanismos de tomada de posição enunciativa (mecanismos enunciativos). São estes que contribuem para a manutenção da coerência pragmática textual, revelam as vozes que se expressam, traduzem as avaliações sobre aspectos do conteúdo temático. Organizados de forma configuracional (opostos a “seqüencial”), são fundamentos deste folhado o posicionamento enunciativo, vozes e as modalizações. O posicionamento enunciativo, de difícil identificação, conforme Bronckart (2003), pode revelar “o que o agente-produtor assume ou pensa em relação ao enunciado, ou remeter a terceiros a responsabilidade”. Na produção do texto, são criados um ou vários mundos discursivos com parâmetros/coordenadas com regras diferentes das que regem o mundo da experiência (empírico), portando complexificando essa tarefa. Esses “mundos virtuais”, através de instâncias formais que os regem (textualizador, expositor e narrador) distribuem as vozes sociais (vozes de pessoas/instituições externas ao conteúdo temático), as vozes dos personagens (vozes de pessoas/instituições diretamente implicadas no percurso temático). Como, às vezes, as marcas lingüísticas não as “traduzem” claramente, a inferência das vozes pela leitura faz-se necessária. Às vezes, pronomes, sintagmas nominais, frases ou segmentos 538 frasais cumprem esse papel. A proposta de análise dos resultados das seqüências didáticas considerará o folhado textual, analisando-se os elementos que julgamos mais importantes para evidenciar os resultados da seqüência didática proposta. É também no interacionismo sociodiscursivo que se encontrou guarida para a proposta de didatização de gênero. Parte-se do princípio de que, quando um gênero textual entra na escola, produz-se um desdobramento: ele passa a ser, ao mesmo tempo, um instrumento de comunicação e um objeto de aprendizagem (SCHNEUWLY e DOLZ, 1999). Mudar um gênero de referência para o ambiente escolar significa mudar, pelo menos parcialmente, sua função. “Portanto, ele não é mais o mesmo, pois corresponde a um outro contexto comunicativo, somente ficcionalmente, ele continua o mesmo, por assim dizer, sendo a escola, de um certo ponto de vista, um lugar onde se finge, o que é, aliás, uma eficiente maneira de aprender.”(SCHNEUWLY,2004,p.180) Lembra aqui, certamente, a importância que Vygotski atribui às brincadeiras de imitação para a aquisição da linguagem para a criança. A construção de um modelo didático do gênero a ser ensinado (DE PIETRO et al, 1996/1997) evidencia as dimensões ensináveis de um gênero de referência. Os dados sobre os quais se apóia este chamado modelo didático são: • “Determinados resultados de aprendizagem esperados e expressos em diversos documentos oficiais; • Conhecimentos existentes, lingüísticos (funcionamento dos gêneros para os especialistas) e psicológicos (operações e procedimentos implicados no funcionamento e na apropriação dos gêneros); • Determinação das capacidades mostradas dos aprendizes (que, na verdade, não permitem definir uma zona proximal de desenvolvimento, mas que permitem que, pelo menos, esbocemos alguns contornos)” (id) Dessa forma, o modelo didático define princípios (o que é tal gênero?); os mecanismos de seu funcionamento, as formatações (modalizações, conetivos) e as unidades de responsabilidade enunciativa que devem constituir os objetivos de aprendizagem dos alunos. Fornece “objetos potenciais para o ensino”, potenciais, no sentido de que uma seleção deve ser feita a partir das capacidades dos aprendizes e também porque não se poderia ensinar o modelo tal qual é. A aplicação de atividades propostas sobre os alicerces interacionistas sociodiscursivos na escola prevê a concepção do texto do aluno como unidade comunicativa (BRONCKART,1999), ou seja, como um instrumento que proporciona uma interação social do aluno com o meio e com os demais sujeitos, ao contrário da prática tradicional ainda vigente em muitas salas de aula de língua portuguesa, em que a produção textual é vista apenas como mero instrumento de avaliação do aluno. Para dar conta desta realidade e partindo da noção de modelo didático, surge a noção de seqüência didática, vista como, de acordo com Schneuwly & Dolz (2004), “um conjunto de atividades que apresenta um número limitado e preciso de objetivos, organizado a partir de um projeto de apropriação das dimensões constitutivas de um gênero de texto”. Portanto, a seqüência didática tem, como principal objetivo, o estudo de um gênero de texto escolhido e o desenvolvimento da produção textual do aluno dentro deste gênero, dentro do propósito interacionista sociodiscursivo. As principais etapas que permeiam esse conjunto de atividades são a produção inicial, na qual o aluno produz um texto do gênero a ser estudado na seqüência didática utilizando-se apenas dos conhecimentos prévios que possui acerca do mesmo. Após essa produção inicial, são realizadas atividades de caracterização e diferenciação do gênero de texto escolhido para com outros gêneros semelhantes, no intuito de que o aluno perceba as características que compõem e determinam tal gênero, dentro da situação comunicacional em que o mesmo se insere. O penúltimo encontro da seqüência prevê a elaboração de um roteiro, 539 que servirá como base para a produção final. O texto final produzido pelo aluno é contrastado com seu texto inicial, numa análise que enfoca tanto aspectos quantitativos como qualitativos referentes às diferenças entre a primeira e a última produção textual. 3. Metodologia adotada As escolas onde foi desenvolvido o projeto foram escolhidas a partir da possibilidade de representarem realidades sociais diversas, sendo uma pública, localizada em região periférica e outra, privada, localizada em região central. A pesquisa aqui relatada consistiu na comparação da aplicação de uma mesma seqüência didática planejada sobre o gênero de texto narrativa de detetive em duas turmas de 5ª série do Ensino Fundamental. Um das turmas pertence a uma escola municipal pública, localizada em um bairro de periferia, de Ensino Fundamental Incompleto (até a 5ª série). A outra turma encontra-se em uma escola particular confessional, de Ensino Médio, situada em um bairro central. Ambas as escolas localizam-se na mesma região geográfica, em cidades vizinhas da região metropolitana de Porto Alegre. As seqüências didáticas foram aplicadas em 2005, sendo que, na escola pública, sua aplicação ocorreu na aula de Língua Portuguesa, uma vez por semana , de maio a outubro, e, na escola particular, de forma contínua, na seqüência das aulas semanais de Língua Portuguesa, de outubro a dezembro. Essa diferença de tempo na aplicação da proposta se deu pelo fato de que a equipe já realizava trabalho na escola municipal há 2 anos e, na escola particular, houve uma seqüência de reuniões com a coordenação pedagógica e a professora da turma antes da aplicação da seqüência. Os professores encarregados de desenvolver as seqüências didáticas foram os próprios docentes das turmas, com acompanhamento de bolsistas de iniciação científica do projeto. No caso da escola municipal, como o bolsista já havia desenvolvido outras seqüências didáticas com a turma, foi, muitas vezes, parceiro da professora de classe na condução dos trabalhos. As escolas concordaram em ser parceiras no projeto, ou seja, a supervisão pedagógica das escolas esteve envolvida em reuniões de planejamento e discussão dos resultados, tendo voz no desenvolvimento das atividades. Dois bolsistas foram designados para acompanhar as oficinas de aplicação da seqüência didática, sendo um responsável pela turma da escola municipal, outro da particular. Este bolsista se encarregou de registrar os diferentes momentos de cada sessão de aula. Foram propostos vários momentos de observação: antes do início do trabalho com seqüência didática, na aula de apresentação da seqüência, uma vez por semana durante o período de duração das oficinas (com duração de 1 hora cada vez) e no encontro final. Ocorreram gravações em áudio e vídeo destes momentos, com registro escrito as acompanhando. Os dados considerados relevantes para a pesquisa foram transcritos, a partir da triangulação entre os dados obtidos via áudio/vídeo, registros escritos e observações participantes. Os dados foram analisados sob o ponto de vista do processo, ou seja, das interpretações dadas pelos alunos às diferentes atividades de linguagem propostas e dos textos produzidos. Para tal fim, foram cotejados diversos pronunciamentos dos alunos e dos professores com relação às atividades propostas. Também foram examinadas as produções iniciais e finais de cada aluno, seguindo a análise do folhado textual proposta por Bronckart (1999). Posteriormente, os pronunciamentos e as produções foram comparados, como pertencentes a grupos diversos, para verificar os efeitos da seqüência didática nos dois grupos escolhidos. 4. Desenvolvimento da proposta de pesquisa A narrativa de detetive foi o gênero de texto escolhido para esta seqüência didática, pois, primeiramente, as histórias de mistério instigam nas crianças desta faixa etária uma 540 motivação para a leitura de livros deste gênero textual. As características do gênero narrativa de detetive são bem delineadas e de fácil identificação pelo leitor. Além disso, essas características, geralmente, revelam não somente o gênero de texto presente na história, mas também características essenciais à compreensão da seqüência narrativa. Estas narrativas sempre apresentam um mistério a ser desvendado, seja ele um crime, sumiço ou perigo; personagens clássicas que, por sua vez, são descritas física e psicologicamente de acordo com sua função dentro da trama; vocabulário típico em se tratando de uma história de mistério e dois planos temporais arquetípicos bem definidos, de acordo com Todorov (1970): o plano do crime ou do mistério, que se desenvolve no passado; e o plano da investigação, por sua vez, narrado no presente. A seqüência didática transcorreu, em ambas as turmas, de acordo com o seguinte roteiro, organizado por oficinas. Observa-se que, na escola particular, em função de fatores relativos à organização escolar, não foi possível desenvolver a oficina de número 13, pois os alunos entraram em época de provas/recuperação. Esta última oficina, na escola municipal, teve como objeto produções textuais de alunos de escola pública de outro município, na qual a seqüência textual foi inicialmente testada por uma das bolsistas do projeto, docente de Língua Portuguesa na dita escola. Produção inicial dos alunos: O professor fez uma breve introdução, relatando os objetivos do projeto que vai iniciar e perguntando se os alunos conhecem histórias de suspense, mistério, crimes, detetives. A seguir foi solicitada a produção inicial sobre uma história de detetive, tendo sido escolhido pela turma tema sobre “sumiço do meu colega ...”. Oficina 1 Caracterização do gênero narrativas de detetive com os alunos, a partir de perguntas como “Alguém aqui já leu histórias de detetives, já assistiu na TV, no cinema?”, “Conhecem algum livro, filme, história ou mesmo um detetive famoso?”, “Quais?”. Leitura de texto do gênero “O Misterioso Telefonema” (Lourenço Cazarré). Proposição de questões sobre o gênero: levantamento de vocabulário típico das narrativas de detetive, a presença de suspense, medo, mistério; características do conto, relativas à sua estrutura, como tempo, espaço, complicação, ações, resolução; análise dos personagens: o próprio detetive e o possível antagonista; existência de duas histórias paralelas: uma que está no passado e diz respeito ao crime ou mistério; e outra, no presente, que rege a investigação do crime/mistério existente na primeira história. Análise da capa da história com imagens e ilustrações que remontem à presença de características de uma história de detetive, como suspense, mistério, investigação. Oficina 2 A partir de 3 textos de gêneros diversos (conto de fada, narrativa de detetive e narrativa de terror), identificação do texto que apresenta características de narrativa de detetive. Oficinas 3 a 7 Apresentação do livro “O vírus vermelho” (CARR, 1991), que acompanhará o desenvolvimento das oficinas. Análise do título e da capa do livro, a partir dos quais os alunos fazem uma série de inferências sobre o possível desenvolvimento da narrativa. Leitura do livro em partes. Em cada oficina, preenchimento de um “diário de leitura”, que auxilia na caracterização do gênero, pela identificação das ações ocorridas no capítulo e mediante o desafio de inferir as próximas. Após a leitura da narrativa em sua totalidade, montagem de um cartaz, com a seqüência completa da narrativa, (situação inicial, a complicação, as ações decorrentes da complicação, a resolução e a situação final). Na última dessas oficinas, os diários de leitura foram reunidos, recebendo uma capa desenhada pelos alunos. 541 Oficina 8 Início da etapa de produção de narrativas de detetive. A primeira tarefa foi realizada em duplas e consistiu na construção de um enigma. Os alunos construíram as características que antes eram analisadas nas outras histórias de detetive, como as duas histórias paralelas, uso do vocabulário e dos tempos verbais adequados, presença de pistas, de mistério, seqüência de ações, etc. Ao final desta oficina, o material produzido pelos alunos foi recolhido para verificar o progresso da construção da história, que será continuada ao longo das oficinas seguintes. Oficina 9 A partir da releitura dos mistérios produzidos na aula anterior, foi preenchida uma ficha, que constituiu um roteiro para completar uma narrativa de detetive. Neste roteiro, foram estabelecidas as principais características que uma história de detetive deverá conter, como os culpados, as vítimas, os investigadores, os motivos do mistério/crime, etc. Tanto os mistérios quanto os roteiros foram recolhidos, para análise. Oficina 10 A partir do mistério e do roteiro construídos anteriormente, a produção final da narrativa de detetive é solicitada, de forma individual. Oficina 11 Após a realização da produção final da narrativa de detetive e da análise da professora e do grupo do projeto, foi feito um trabalho de autocorreção, visto que os alunos deveriam buscar soluções com o objetivo de melhorar sua narrativa de detetive, sobretudo no tocante à organização textual e características do gênero de texto em questão. Esta oficina teve como objetivo a refacção dos textos produzidos na oficina anterior, tendo como ponto de partida a confecção coletiva de uma grade com critérios imprescindíveis para uma narrativa de detetive. A partir dessa grade, cada aluno avaliou seu próprio texto final e verificou a necessidade ou não de refazê-lo. Oficina 12 As narrativas produzidas foram distribuídas a todos, para leitura e comentários. Em grupos, os próprios alunos escolheram 5 narrativas, para serem “publicadas” em livrinho especial. Os critérios para esta escolha foram as características do gênero. Depois da votação, tais narrativas foram lidas para a classe. Oficina 13 Os alunos receberam um livrinho com as 5 melhores histórias de detetive por eles escolhidas. Também receberam outro livrinho com as 5 melhores histórias de detetive da 5ª série da outra escola onde ocorreu esta mesma seqüência didática. Após leitura individual, foram divididos em 5 grupos. Cada grupo analisou uma das histórias do livrinho da outra 5ª série, e fez modificações que julgou necessárias, acrescentando outras idéias à história. Essa atividade remonta ao conceito do interacionismo sócio-discursivo, visto que os textos, assim, ganham um propósito comunicativo muito mais amplo, proporcionando uma espécie de “intercâmbio comunicacional”. As “novas histórias” foram lidas para a turma e entregues para a professora, que as fez retornar à turma de origem. 542 5. Análise dos resultados Os textos iniciais e finais produzidos pelos alunos de ambas as escolas foram analisados de acordo com o exposto anteriormente sobre a arquitetura textual proposta por Bronckart (1999). Na primeira “camada” do texto, a mais superficial, foram analisados aspectos mais aparentes do conteúdo temático, como vocabulário e personagens típicos e a presença e solução de um mistério a ser desvendado, além do tipo de discurso utilizado e da seqüência discursiva empregada. Na camada referente aos mecanismos de textualização, foram verificadas a existência de cadeias anafóricas, que facilitam a organização textual da narrativa, e referenciações, recurso discursivo que demonstra a habilidade do aluno em construir seqüências referenciais dentro do texto. Também foram analisados os planos temporais, nos quais a narrativa se apoiou. Por fim, na terceira camada, foram observados os mecanismos enunciativos, que têm grande importância na caracterização do gênero envolvido, enfatizando-se as vozes presentes no texto:o tipo de narrador utilizado, a presença de vozes sociais e de personagens, a voz do autor empírico. A observação desses elementos permitiu traçar dois gráficos, um referente ao desempenho dos alunos da escola municipal, outro ao da particular: Figura 1 : Comparação entre as produções iniciais e finais dos alunos da escola municipal Evolução das camadas 1 e 3 do folhado na escola municipal 100% 80% 60% 40% 20% 0% Produção inicial so c rs iai s on ag em es pe es Vo z Vo z Na Re la r ra to do int rn eu er at tr o ivo Produção final Figura 2: Comparação entre as produções iniciais e finais dos alunos da escola particular Evolução das camadas 1 e 3 do folhado na escola particular 100% 80% 60% 40% 20% 0% Produção inicial Vo ze es s so c pe r s iai s on ag em Vo z Na Re la r ra to do r ne u tro int er at ivo Produção final 543 É possível observar, através dos resultados mostrados acima, que houve um crescimento considerável em, ao menos, dez aspectos relevantes para a produção textual de narrativas de detetive entre a produção inicial e a produção final na escola municipal. Esse enfoque quantitativo é mais expressivo na escola municipal, possivelmente por fatores referentes ao ambiente de letramento que cerca os alunos. Na escola em que estudam, num bairro de classe baixa de uma cidade metropolitana, o gênero narrativa de detetive jamais havia sido tratado com tamanha especificidade como foi durante a aplicação da seqüência didática. Portanto, ao produzirem seu texto inicial, muitas crianças não utilizaram marcas do conteúdo temático do gênero. Isso é comprovado pelos seguintes elementos: Elemento considerado Presença de mistério Personagens característicos Vocabulário específico Produção inicial 82% 40% 82% Produção final 100% 82% 100% As produções iniciais e finais de um mesmo aluno da EM exemplificam os achados: Produção Inicial “Num dia Vinícius sumiu dentro de um bar com nenhum sinal. Então comecei a procurar. (...) Depois de desamarrá-lo da cadeira ele contou que ele entra por um buraco que acabava atrás da copa. A sombra que eu tinha visto era o ladrão.” Produção Final “Em um dia misterioso ocorre um assassinato na vila Dortmund e a polícia chega no local do crime. Lá a polícia acha uma pessoa olhando para o morto sangrando. Ele se chama Waly Douglas(...) Voltou para seu escritório e foi investigar o corpo da morta e não parecia ter sido espancada.(...) Achou uma faca no bolso do mesmo policial que tinha falado para ver Waly Douglas. Provou que ele era o culpado e o nome dele era James Terry (...) foi preso e assumiu que ligou para Waly Douglas ir na sua casa. Enquanto isso, ele fugiu. Waly Douglas foi solto e os policiais pediram desculpas a ele.” Os personagens iniciais, eu e meu colega, transformam-se, na produção final, em personagens típicos de narrativas de detetive, até com nomes em inglês, numa nítida inspiração dos vários exercícios feitos durante as oficinas. As expressões “sangrando, corpo da morta, não parecia ter sido espancada” são decorrentes também das leituras realizadas. Chega-se, assim, a um ganho muito importante deste tipo de trabalho: um nível de letramento que podemos chamar de literário, pois a produção final aparece com marcas ficcionais não existentes anteriormente e típicas da literatura de detetive. 544 A diferença entre a produção inicial e final também se revela no tipo discursivo empregado: o relato interativo passa à narração. Outro exemplo mostra como, de uma produção calcada na situação de produção, o aluno passa a montar ficcionalmente seu texto, tornando-o autônomo da situação de produção: Produção Inicial Produção Final Quem sumio foi Ramon. O Ramon sumio na sala de aula foi no banheiro não vi mais ele so vi seu tênis ue cadê Ramon sumiu depois da quilo minguen viu mas ele escapolido. E Suyzi Márcia investiguemos e nada do Ramon cadê Ramon umdia eu (...) Era uma vez Fabi e Cristina estava passeando, e mataram elas e a minha amiga me indicou um detetive ele se chamava Marcio e encontrou empresões digitais e um pedaço de blusa (...) Essa questão da passagem do relato interativo à narração também foi válida para a EP: Produção Inicial Produção Final “A nossa turma era muito educada, o único bagunceiro era o Rodrigo e o mais rico e por isso sempre era assaltado. Numa quinta-feira ele não foi para aula e todos estranharam por que ele nunca tinha faltado aula. Quando acabou a aula eu liguei para a casa dele e a mãe dele atendeu (...)” “Um dia uma escola chamada XXX queria fazer um passeio, só que não sabiam para onde iam. Uns davam uma idéia e outros davam outras idéias, só que nenhuma era boa. O Diego falou: - O professora, porque nós não vamos a mansão mal assombrada? - É uma boa idéia.” Na verdade, o tipo de discurso empregado foi, quantitativamente, a marca mais aparente da seqüência didática, nas duas escolas: Presença de narração Produção inicial Produção final Escola Municipal 80% 100% Escola Particular 60% 100% Esta marca aparece reforçada pelo crescimento do emprego de narrador neutro na produção final, enquanto que, na produção inicial, havia predomínio do narrador empírico, também marca do relato interativo: Narrador na 3ª pessoa Produção inicial Produção final Escola Municipal 40% 65% Figura 3: Comparação entre as duas escolas 545 Escola Particular 10% 80% Comparativo entre as produções inicial e final de ambas as escolas 100% 80% 60% 40% 20% 0% P.I. escola municipal P.I. escola particular P.F. escola municipal Re la to i nt er a ti v o P.F. escola particular A comparação entre as duas escolas deixa evidente um ponto bastante vinculado à distinção social, que é o referente ao ambiente de letramento. Observou-se, desde a produção inicial, que a grande maioria das crianças da turma da escola particular já conhecia o gênero de texto em questão. Uma maior oferta de material de letramento no ambiente familiar e a maior qualidade e variedade do mesmo material oferecido pela escola são decisivos na determinação das diferenças, sobretudo, com relação às produções iniciais. Essas diferenças, entretanto, são bastante compensadas, no caso da escola municipal, pelo desenvolvimento da seqüência didática. O conteúdo temático tipicamente veiculado pelas narrativas de detetive é apropriado também pela grande maior parte dos alunos da escola municipal na sua produção final. Na escola particular, outra apropriação fica evidente, a relativa ao tipo de discurso empregado. Possivelmente, porque os alunos da escola municipal já tinham trabalhado em séries anteriores outras seqüências didáticas sobre gêneros do mundo do NARRAR, seu texto inicial já se mostra, em maior número, autônomo da situação de produção, como narrações. A passagem do relato interativo para a narração é, pois, o grande ganho do trabalho desenvolvido na escola particular. Apesar, entretanto, das diferenças verificadas entre os resultados de cada escola, constata-se o mérito da seqüência didática como um conjunto de atividades que proporciona ao aluno a apropriação das dimensões especificas que constituem um gênero de texto específico. Porém, é de fundamental importância ressaltar o papel do ambiente de letramento na esfera escolar de produção textual, pois é ele que dimensiona aspectos cruciais a serem analisados nos textos de uma determinada turma. A partir da pesquisa aqui retratada, constata-se que a mesma seqüência didática pode evidenciar resultados efetivos em turmas com contextos de letramento distintos. 6. Concluindo e projetando O trabalho desenvolvido comprovou a afirmação de Schneuwly (2002) de que se aprende a escrever a partir da apropriação dos utensílios da escrita, no sentido vygotskiano de que essa apropriação permite transformar a relação com o próprio processo psíquico da produção de linguagem: As pesquisas em didática mostram que o cacife da aprendizagem da escrita – e, conseqüentemente, de sua aprendizagem – é a transformação do sistema pela construção de um novo sistema que reorganize de outra forma os diferentes componentes que intervêm na produção de um texto.(SCHNEUWLY, 2002, p. 242). A análise do produto texto, nas duas quintas séries do Ensino Fundamental, mostrou que um trabalho com seqüências didáticas em torno de gênero textual determinado tem 546 conseqüências muito produtivas no texto dos alunos. Entrevistas, realizadas com alunos da escola municipal, revelaram duas questões significativas. Por um lado, todas as narrativas orais produzidas na 5ª série, mostraram-se disjuntas e autônomas em relação à situação de produção, constituindo-se narrações (BRONCKART,1999). Por outro, as avaliações dos alunos sobre as experiências com “oficinas de escrever” foram muito interessantes, a começar pelo adjetivo usado por todos eles para expressar essa avaliação: legal. Os motivos variam: “Porque antes eu não conseguia muito pensar assim pra fazer as história(s). Agora eu (es)tou pensando melhor. Eu invento umas história(s) melhor.” (Menina B, 11 anos, 5ª série); “Agora eu (es)to(u) escrevendo melhor. Antes eu tinha, eu queria terminar tudo bem rápido, sabe? Daí fazia bem ligeiro. Agora eu tenho mais calma de escrever. Eu não escrevo tão rápido” (Menina G, 10 anos, 5 série), mas todos referem o crescimento ocorrido. Ou nas palavras da menina S, com 11 anos: S: Eu achei legais, diferentes... interessante. Eu achei legal as história(s), o que eu mais gostei foi as histórias de detetive e as histórias em quadrinhos. P: Hmhmm. Por quê? S: Porque é uma coisa diferente, sei lá... as histórias em quadrinho(s) porque eu, eu adoro ler. Eu faço minha mãe comprar pra mim todo mês uma revista que tem uma história em quadrinho, sabe? E aí eu adoro ler história em quadrinho. Sempre gostei de ler historinha em quadrinho. E de detetive porque é uma história que daí tu tem que lendo, lendo, lendo cada vez mais pra ti descobrir quem é o culpado do que aconteceu. P: Isso mesmo. E tu acha(s) que esse... esses projetos que a gente fez te ajudaram em alguma coisa? S: Ajudaram bastante. P: Em... S: No português. Os resultados da análise das produções dos alunos revelam transformações importantes em suas capacidades de linguagem. Os textos analisados mostram que as dificuldades relativas à organização de seqüências narrativas foram praticamente resolvidas e que o domínio do conteúdo temático próprio ao gênero narrativa de detetive foi atingido. A maioria dos alunos viu-se capaz de mobilizar o conteúdo temático compatível com o gênero e de organizá-lo de maneira adequada, em função das diferentes fases de uma seqüência narrativa, encadeando as ações das personagens na progressão da solução dos enigmas, no caso do gênero narrativa de detetive. Tem-se a convicção de que, na medida em que os conceitos de linguagem e de ensino envolvem indivíduo, história, cultura e sociedade (Vygotski, 1988), o desenvolvimento das atividades cognitivas, salientando-se aí as que chama de superiores, podem ser vistas como produtos de atividades praticadas em instituições sociais de cultura. Esta visão dá um papel fundamental à escola. Dessa forma, na elaboração de seqüências didáticas, o papel do professor é fundamental. Essa foi justamente a maior dificuldade encontrada na experiência relatada. Os resultados animaram os dois docentes que participaram dessa caminhada, mas não garantiram sua adesão como proponentes de novas seqüências didáticas. Encontra-se, nessa questão, o obstáculo mais sério à didatização do gênero, tal como vista pelo interacionismo sociodiscursivo. Há um suporte teórico muito forte que deve respaldar a ação didática, mas que pode permanecer distante do professor de ensino fundamental, se este não receber apoio 547 específico com este fim. Ao mesmo tempo, é preciso estar alerta para o que os professores dizem ser trabalhar com gênero (GUIMARÃES, 2005), pois deve estar presente a diferença entre trabalho sobre um gênero, enquanto unidade comunicativa adaptada a uma dada situação, e trabalho sobre os tipos de discurso que estão presentes neste mesmo gênero de texto. Recentes lançamentos didáticos (como Barbosa, 2001; Souza, 2003; Machado, Lousada e Abreu-Tardelli, 2004) podem contribuir para ajudar a caminhada docente nesta direção. O investimento no domínio desta prática e nos sistemas formativos é longo e deve ser continuado. De qualquer modo, continuo acreditando que o caminho para mudar a realidade da escola brasileira é um trabalho de formação sério, que envolva prática docente e avaliação dessa prática, um fazer e refazer das ações de linguagem, numa interação entre pesquisadores de ensino de língua materna, preocupados em também serem formadores de docentes e os próprios professores da Escola Fundamental. Para encerrar, cabe incluir comentário da professora da escola particular sobre o trabalho desenvolvido: - PRO K: Ela (a seqüência didática sobre narrativas de detetive) foi um pouco... foi diferente porque as minhas produções, elas são baseadas no texto que a gente lê, que a gente trabalha, ou em algum assunto que surge, da atualidade, enfim... e esse já foi uma coisa assim que toda a aula eles liam um pedaço do livro... e isso eles gostaram muuuuiiito. Eles acharam assim muuuiiito interessante. Eles queriam leva(r) o livro pra casa, ah! Professora! Então isso eles gostaram, isso me empolgo, talvez assim, foi a parte que... eu acho que eles curtiram mais, sabe. Porque o livro é interessante, daí eles tinham que para(r) quando... né, num determinado capítulo... aí eles queriam sabe(r) mais. Então isso eu achei assim que foi bem legal e eles gostaram muito também. Até quando a gente comentava, o que vocês tão achando do projeto? Eles falavam do livro, sabe, eles logo voltavam assim, até a Denise também andou perguntando pra eles e eles logo falavam que a história era muito legal e tal, porque então a gente fez uma produção no início, antes de lê, né e uma produção depois. Mas o que que tem basicamente de diferente das que eu trabalho? É porque as minhas ou são baseadas em algum texto, então é uma coisa assim, do momento. Ou de algum assunto atual, que também é do momento. Ou eu proponho algum outro assunto pra eles, daí eles fazem a produção textual. Então eu acho que isso foi diferente porque aqui veio sendo traçado um caminho, né? E de repente no final assim eles já tinham em mente o que escreve(r) (...) O depoimento da professora da escola particular, acostumada a trabalhar produções textuais com os alunos de forma continuada, mas sobre temas e gêneros variados, mostra o acerto do trabalho proposto com base na teoria interacionista sociodiscursiva. Como conclusão do trabalho realizado, pode-se afirmar que, posto em questão sob a ótica da prática em realidades sociais diferentes, é possível validar o trabalho com seqüências didáticas baseadas em um dado gênero de texto, dentro da ótica do interacionismo sociodiscursivo. Tornar este trabalho, entretanto, parte do cotidiano do professor e, sobretudo, como instrumento que pode ser por ele criado dentro de construtos teóricos como os que utilizamos é outra tarefa, para a qual um bom começo são as salas de aula dos cursos de formação de docentes. Esta questão dos docentes de língua materna será objeto de projeto de pesquisa que iniciou em 2006, a partir do corpus coletado com a ajuda do CNPq, intitulado Diversidade social e identidade do português brasileiro nas interações de sala de aula de língua portuguesa. O objetivo principal deste estudo é explicitar as estratégias discursivas que o professor mobiliza para construir uma ação que possa ser interpretada pelos alunos e que seja favorável 548 para a aprendizagem pretendida. Nesse contexto, na regulação entre o macro (as situações do agir docente no cenário de sala de aula, particularmente quando o professor se coloca no papel de mediador/facilitador) e o micro (de que variedade de língua, padrão ou não padrão, se vale esse docente nessa situação de agir), objetivamos estudar a ação escolar como sinalizadora de identidade(s) lingüística(s). Como diz Bakhtin (2003, p.12):”uma palavra é dirigida a um interlocutor: ela é função deste interlocutor”. Nesse processo conjunto de construção de significados, professor e aluno constroem suas identidades sociais pela linguagem. Nosso interesse em como essas diferentes identidades são geradas em sala de aula nos faz também verificar as variedades do Português Brasileiro(PB) em interações escolares, contrastando realidades sociais diversas e propostas educacionais diferentes. O trabalho versará sobre a atividade de 2 docentes de Língua Portuguesa, atuando na mesma série de ensino (5ª série do Ensino Fundamental) em duas escolas gaúchas: uma pública, outra privada, ambas situadas na região metropolitana de Porto Alegre (a pública na periferia da cidade de São Leopoldo, a particular, na região central de Novo Hamburgo). O agir docente será analisado em três tipos de dados: os textos-base do trabalho docente (planos curriculares das turmas, por exemplo, vistos como trabalho prescrito) ; gravações em áudio-vídeo do agir docente em situações de sala de aula de língua materna (trabalho real); entrevistas com os docentes antes e depois da tarefa desenvolvida com os alunos (trabalho representado). O suporte teórico será ainda o do interacionismo sociodiscursivo, em suas versões mais recentes (BRONCKART, 2005,2006). Propõe-se, desta forma, aprofundar o corpus coletado e analisá-lo sobre outros prismas. Também este relatório técnico será apresentado, pelo grupo do projeto, em reunião nas escolas municipal e particular com os professores envolvidos e as coordenações pedagógicas, para confrontarem-se os resultados obtidos e as possibilidades de inserção de seqüências didáticas, tal como a analisada, no programa das escolas. Referências ADAM, J.M. Le texte narratif. Paris: Nathan, 1985 _____. Types de séquences textuelles élementaires. Pratiques, 56, 1987. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1979. BARBOSA, J. P. Narrativa de Enigma. São Paulo: FTD, 2001. (Coleção Trabalhando com os Gêneros do Discurso). BEZERRA, M.A. Ensino de língua portuguesa e contextos teórico-metodológicos. IN: DIONISIO, A., MACHADO, A.R., BEZERRA, M.A.. Gêneros textuais e ensino. 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