Aula 7 TRABALHO E PRODUÇÃO Para debater Observe a imagem e leia o texto que segue: Operários ao lado das máquinas no interior de uma tecelagem paulistana, no início do século XX. Quando vemos uma jarra de argila produzida há 5 mil anos por algum artesão anônimo, algum homem cujas contingências de vida desconhecemos e cujas valorizações dificilmente podemos imaginar, percebemos o quanto esse homem, com um propósito bem definido de atender certa finalidade prática, talvez a de guardar água ou óleo, em moldando a terra moldou a si próprio. Seguindo a matéria e sondando-a quanto à “essência de ser”, o homem impregnou-a com a presença de sua vida, com a carga de suas emoções e de seus conhecimentos. Dando forma à argila, ele deu forma à fluidez fugidia de seu próprio existir, captou-o e configurou-o. Estruturando a matéria, também dentro de si ele se estruturou. Criando, ele se recriou. (...) Formando a matéria, ordenando-a, configurando-a, dominando-a, também o homem vem a se ordenar interiormente e a dominar-se. Vem a se conhecer um pouco melhor e a ampliar sua consciência nesse processo dinâmico em que recria suas potencialidades essenciais. (Fayga Ostrower. Criatividade e processos de criação. Petrópolis, Vozes, 1987, p. 51 – 53.) O texto associa o trabalho – entendido, num sentido amplo, como todo o fazer humano – a um “processo dinâmico” em que o homem recriaria “suas potencialidades essenciais”. Essa é uma concepção com a qual não estamos muito acostumados: geralmente, associamos trabalho a sacrifício e luta pela sobrevivência. Em sua opinião, qual a noção de trabalho predominante em nossa sociedade? Existem, atualmente, condições para que o trabalho nos fortaleça no que temos de mais humano? Um pouco de teoria O que é trabalho? Em português e em muitas outras línguas românicas, a palavra trabalho é polissêmica, ou seja, adquire significados diferentes, dependendo do contexto. Sua origem está no vocábulo latino tripalium, que designava um antigo instrumento de tortura, o que mostra como, muitas vezes, trabalho pode pressupor esforço, fadiga ou sacrifício. No início do século XX, o filósofo Max Scheler, reforçando o caráter polissêmico da palavra, distinguiu três empregos para ela: o de atividade animal ou mecânica (o trator trabalha melhor o campo que o burro), o de produto pronto (aquele edifício é um belo trabalho) e o de meta futura a ser alcançada (há muito trabalho a fazer pela paz e igualdade entre os homens). Mas o que precisamente seria o trabalho? E em que sentido esse termo costuma ser empregado na Sociologia? Esta questão já foi discutida por inúmeros pensadores. Para ficar com uma definição clássica, os alemães Karl Marx e Friedrich Engels entendiam o trabalho como: um processo entre o homem e a natureza, durante o qual o homem, mediante sua própria atividade, medeia, regula e controla o intercâmbio de substâncias entre ele e a natureza. Nesse sentido, o trabalho apresenta-se como atividade racional que, num processo contínuo, transforma o meio natural em que vivem os homens. Difere, por exemplo, do “trabalho” executado pelas formigas no armazenamento de alimentos, pelas abelhas na fabricação dos favos de mel e pelas aranhas na confecção de suas teias, uma vez que, no caso dos animais, essas atividades não seriam planejadas, mas uma herança genética. O trabalho do homem é, antes de tudo, um ato de criação, mesmo quando repetido infinitamente. Para realizá-lo, cada indivíduo precisa aprendê-lo, já que não nasce com as informações necessárias para sua execução. Trabalho e evolução – breve histórico Utensílios de pedra lascada encontrados na França. Data: 700.000 — 110.000 anos. Musée d'Aquitaine, França. Toda a evolução do homem foi marcada pelo trabalho, seja na luta pela sobrevivência, seja na luta pelo domínio dos recursos naturais. No chamado Período Paleolítico (Idade da Pedra Lascada), os primeiros grupos humanos eram nômades e perambulavam à procura de alimentos. Assim, criaram instrumentos com pedras lascadas para coletar alimentos e caçar. A partir de 10.000 a.C. aproximadamente, a pedra lascada deu lugar a instrumentos de pedra polida e os grupos aprenderam a cultivar vegetais e a domesticar animais, o que lhes permitiu a fixação em territórios delimitados. Começava, então, o Período Neolítico. A Revolução Neolítica foi a primeira grande transformação que o homem viveu no processo de hominização, isto é, na aquisição de características que distinguem a espécie humana das espécies ancestrais. Esse processo começou desde que o primeiro hominídeo se pôs de pé e liberou as mãos para o trabalho. Com isso ele pôde começar a produzir – entenda-se produção como criação de tudo o que é necessário para suprir as necessidades do ser humano. A sedentarização permitiu o desenvolvimento da agricultura e, posteriormente, o domínio do fogo, com que o homem ingressaria na idade dos metais. Além disso, a vida sedentária foi responsável pela primeira divisão do trabalho: os homens cuidavam da caça e as mulheres, da casa (principalmente, das crianças e dos velhos). Esta divisão sexual do trabalho nas tribos gerou a noção de propriedade sobre os objetos necessários para cada atividade: os homens tinham suas armas e as mulheres possuíam seus utensílios artesanais. Já o uso da terra, das canoas e, por vezes, das cavernas ou cabanas era comum. Foi exatamente nesse estágio que o homem aprendeu a cultivar plantas como o milho, o feijão e o trigo, além de ter inventado a cerâmica, com que pôde armazenar melhor os alimentos. Em seguida, passou a domesticar animais, constituindo os primeiros rebanhos, que eram mais do que suficientes para a alimentação do grupo. O consumo de carne e leite em abundância fortaleceu a espécie. Nesse momento, nasceu a idéia de que a terra em que os homens plantavam e criavam seus animais também lhes pertencia. E com a noção de propriedade, a divisão sexual do trabalho evoluiu para a primeira grande divisão social do trabalho, em que uns cuidavam das plantações e dos animais e outros comandavam. Do desenvolvimento da agricultura para a fundição do ferro e para a escrita foi apenas um passo rumo à civilização. Curioso chamar de “civilização” a era que trouxe as guerras. O domínio das fontes alimentares gerou a propriedade e, em pouco tempo, o excedente de produtos, para além das necessidades dos indivíduos. Desse modo, nasceu uma camada de homens que podia se dar ao luxo do ócio permanente e acumulava riquezas. Além disso, com as disputas por territórios, essa “elite” que surgia passou a escravizar seus semelhantes, fazendo-os trabalhar para si. As civilizações da Antigüidade conheceram assim os primeiros impérios, consolidando-se a noção de poder. As transformações posteriores mais importantes que o trabalho permitiu e vivenciou se deveram ao relacionamento entre classes sociais, até o advento da burguesia e do capitalismo. A Revolução Comercial gerou as Grandes Navegações dos séculos XV e XVI; no século XVIII, a Revolução Industrial criou a máquina a vapor; no XIX, a eletricidade, as ferrovias, o telefone e o telégrafo marcaram a chamada Segunda Revolução Industrial; no XX, com o avião e a Terceira Onda da Revolução Tecnológica, a informatização da produção e das comunicações acelerou as transformações sociais. Marx e a práxis humana Ao lado de Durkheim e Weber, Karl Marx (1818 – 1883) é considerado um dos fundadores da moderna Sociologia. Marx – estudioso da sociedade capitalista do século XIX – considerava o trabalho como elemento que transforma a natureza e estabelece necessariamente uma relação entre homens, num processo constante de satisfação das sempre crescentes necessidades humanas. Essa concepção remonta a Adam Smith, que, em sua obra mais importante, A riqueza das nações, escreveu: Toda pessoa está continuamente empenhada em encontrar o emprego mais vantajoso para o capital de que dispõe. É sua vantagem pessoal na realidade, e não a da sociedade, o que tem em vista. Mas o estudo de sua vantagem pessoal, naturalmente, ou melhor, necessariamente o leva a preferir o emprego mais vantajoso para a sociedade. A esta concepção de trabalho coletivo, transformador da natureza, exterior ao homem e também da natureza do próprio homem, Marx chamou práxis. Para os sociólogos marxistas, o ser humano é antes de tudo um ser de necessidades. Essas necessidades – não somente individuais, mas também sociais (sejam elas políticas ou não, imediatas ou cultivadas, naturais ou artificiais, reais ou alienadas) – só podem ser satisfeitas de forma racional e consciente. No plano da práxis, distinguem-se níveis, como a base (que compreende as forças produtivas, técnicas e os sistemas de produção), as estruturas (dentre as quais se destacam as relações de propriedade entre classes sociais) e as superestruturas (como as religiões, as ideologias, as artes, etc.). Permeando todos os níveis, estariam os conhecimentos científicos, a linguagem e o direito, por exemplo. A práxis humana ainda pode ser definida como repetitiva, mimética ou inovadora. O trabalho repetitivo está presente em todas as manifestações das sociedades humanas e não cria o novo. A prática mimética pode até proporcionar eventuais criações novas, mas tende a copiar modelos sem a preocupação de entendê-los. A práxis inovadora é a atividade revolucionária. Sem esta, o homem não teria dado os saltos técnicos, políticos e culturais que deu em sua história. Produção e produtividade Um modelo exemplar do fenômeno revolucionário da práxis coletiva inovadora está no processo gerador da maquinofatura durante a Revolução Industrial. Desde os séculos XV e XVI, um problema para empresários ávidos por lucro era como aumentar a produção de bens, até então manufaturados nos limites do trabalho artesanal. A angústia dos capitalistas diante do mercado expandido em níveis globais os movia a pensar no aumento da produção em proporções geométricas. O primeiro passo foi criar novas formas de organização do trabalho nas manufaturas, de modo a aumentar a produtividade do trabalho. Mas qual a diferença entre produção e produtividade? Ora, a produção, como dissemos, é o resultado concreto do trabalho, palpável sobretudo quando se trata, por exemplo, de uma tecelagem. São os fardos de tecido ou as roupas fabricadas pelos trabalhadores. A produtividade é a relação entre a produção e o tempo. Aumenta-se a produtividade quando se produz mais em menos tempo. Os patrões ingleses do século XVIII perceberam que podiam usar o conhecimento que os artesãos tinham de todo o processo de produção e dividir as tarefas em partes. Se todos sabiam fazer tudo, cada um podia se encarregar de uma etapa da produção. Essa experiência, por si só, já revelou um considerável aumento na produtividade. Mas ainda não era suficiente para a ambicionada modernização do sistema produtivo. A divisão técnica do trabalho, precioso segredo revolucionário da burguesia, possibilitou a observação meticulosa dos movimentos de cada etapa da produção. Daí à invenção dos engenhos mecânicos que pudessem substituir os movimentos da mão humana foi um passo. Dos primeiros teares à máquina a vapor, a Revolução Industrial gerou a fábrica na acepção moderna do termo e a maquinofatura substituiu a manufatura. Cada máquina podia fazer o trabalho de vários trabalhadores. E mais rapidamente. O artesão detentor dos segredos de toda a produção desapareceu para dar lugar ao operário que era responsável por apenas uma fase do processo produtivo e que competia com uma grande massa de desempregados substituídos pelas máquinas. A nascente sociedade industrial multiplicou a produção de bens, mas gerou também um imenso exército industrial de reserva, como Marx denominou o contingente de operários sem trabalho que as cidades passaram a abrigar, não sem o agravamento dos problemas sociais. Em 1765 James Watt aperfeiçoa a máquina a vapor, marco de uma nova era, que relegou a produção artesanal ao estigma do subdesenvolvimento. Taylorismo e fordismo No fim do século XIX e no início do século XX, a divisão social do trabalho aceleradamente ampliada acabou por originar uma divisão mundial do trabalho, já esboçada no processo de expansão colonial iniciado no século XV pelos portugueses. A especialização de nações inteiras como fornecedoras de matérias-primas e de produtos primários, além de consumidoras dos produtos industrializados produzidos nos centros capitalistas mais avançados, tornou necessária uma produção em massa para o consumo de massa. Foi assim que o capitalismo ascendente criou, então, o sistema Taylor de produção. Coube ao taylorismo a implantação das linhas de montagem nas fábricas: os operários foram “encaixados” como se fossem também peças de uma imensa engrenagem fabril. A alienação do trabalhador em relação à sua função e ao produto do seu trabalho estendeu-se à alienação de cada operário também em relação aos demais seres humanos com que interage. Seu ritmo de trabalho passou a ser determinado pela esteira da linha de montagem. Tal sistema viria a ser ainda mais aprimorado por Henry Ford, na sua fábrica de automóveis nos EUA. Como bem disse Ford: “não pago meus empregados para pensar; eles são pagos para produzir”. E o mundo pôde, então, conhecer o grande sucesso do Ford Modelo T de 1908. Um símbolo de modernidade e da pujança do capitalismo no princípio do século XX. O fordismo desdobrou-se no século XX em outras versões de organização do trabalho nas fábricas, tema que, ao lado da alienação, será nosso assunto mais adiante. Exercícios O trecho seguinte pertence ao livro de Gênesis, que narra, entre outros, aquele que pode ser considerado o mito fundador da cultura ocidental: o da expulsão do homem do paraíso. Leia-o com atenção. 17 A Adão [Deus] porém disse: Pois que tu deste ouvidos à voz de tua mulher, e comeste do fruto da árvore, de que eu tinha te ordenado que não comesses; a terra será maldita por causa da tua obra: tu tirarás dela o teu sustento à força de trabalho. 18Ela te produzirá espinhos e abrolhos*: e tu terás por sustento as ervas da terra. 19Tu comerás o teu pão no suor do teu rosto, até que te tornes na terra, de que foste formado. Porque tu és pó, e em pó te hás de tornar. (Gênesis, capítulo 3, versículos de 17 a 19. In: Bíblia Sagrada – edição ecumênica. Rio de Janeiro, Enciclopédia Britânica, 1977, p. 3.) * abrolho: recife ou baixio perigoso para as embarcações; por derivação, espinho de qualquer planta; sentido figurado: o que dificulta, contraria ou esgota. 1. O trecho veicula uma certa visão de trabalho que marcou a História da humanidade e com a qual ainda hoje nos identificamos. Qual é ela? Para responder às questões 2 e 3, leia o que segue: Em 2006, o exame de Redação da Fuvest solicitou a produção de um texto sobre o tema do trabalho. Como subsídio para a realização da tarefa, a Banca selecionou alguns trechos. Dois deles transcrevemos a seguir: Trecho 1 O trabalho não é uma essência atemporal do homem. Ele é uma invenção histórica e, como tal, pode ser transformado e mesmo desaparecer. Adaptado de A. Simões Trecho 2 Há algumas décadas, pensava-se que o progresso técnico e o aumento da capacidade de produção permitiriam que o trabalho ficasse razoavelmente fora de moda e a humanidade tivesse mais tempo para si mesma. Na verdade, o que se passa hoje é que uma parte da humanidade está se matando de tanto trabalhar, enquanto a outra parte está morrendo por falta de emprego. M. A. Marques Com base nesses trechos e nas demais informações que você tem sobre a questão do trabalho, responda: 1. Considerando a definição que Marx e Engels apresentam de trabalho (“um processo entre o homem e a natureza, durante o qual o homem, mediante sua própria atividade, medeia, regula e controla o intercâmbio de substâncias entre ele e a natureza”), será que ele pode desaparecer, como propõe o trecho 1? Explique sua resposta. 2. Que relação se pode estabelecer entre o trecho 2 e a noção marxista de “exército industrial de reserva”? Tarefa mínima Um elemento fundamental das relações sociais é o trabalho. Pensando nessa questão, Marx escreveu, em 1875, sua famosa máxima: “Quando o trabalho se tornar necessidade primeira da vida, quando as fontes da riqueza coletiva jorrarem plenamente, então o estreito horizonte jurídico burguês poderá ser superado e a sociedade escreverá sobre uma bandeira: de cada um, segundo sua capacidade, a cada um, segundo suas necessidades.” Levando em conta a maneira como você vê as relações de trabalho no mundo contemporâneo, analise se estamos próximos ou não do estágio, previsto por Marx, de superação do “estreito horizonte jurídico burguês”. Tarefa complementar Segue a letra da conhecida canção “Construção”, de Chico Buarque de Hollanda. Leia-a (e de preferência ouça-a) e depois responda: Construção Amou daquela vez como se fosse a última Beijou sua mulher como se fosse a última E cada filho seu como se fosse o único E atravessou a rua com seu passo tímido Subiu a construção como se fosse máquina Ergueu no patamar quatro paredes sólidas Tijolo com tijolo num desenho mágico Seus olhos embotados de cimento e lágrima Sentou pra descansar como se fosse sábado Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago Dançou e gargalhou como se ouvisse música E tropeçou no céu como se fosse um bêbado E flutuou no ar como se fosse um pássaro E se acabou no chão feito um pacote flácido Agonizou no meio do passeio público Morreu na contramão atrapalhando o tráfego… Amou daquela vez como se fosse o último Beijou sua mulher como se fosse a única E cada filho seu como se fosse o pródigo E atravessou a rua com seu passo bêbado Subiu a construção como se fosse sólido Ergueu no patamar quatro paredes mágicas Tijolo com tijolo num desenho lógico Seus olhos embotados de cimento e tráfego Sentou pra descansar como se fosse um príncipe Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo Bebeu e soluçou como se fosse máquina Dançou e gargalhou como se fosse o próximo E tropeçou no céu como se ouvisse música E flutuou no ar como se fosse sábado E se acabou no chão feito um pacote tímido Agonizou no meio do passeio náufrago Morreu na contramão atrapalhando o público… Amou daquela vez como se fosse máquina Beijou sua mulher como se fosse lógico Ergueu no patamar quatro paredes flácidas Sentou pra descansar como se fosse um pássaro E flutuou no ar como se fosse um príncipe E se acabou no chão feito um pacote bêbado Morreu na contramão atrapalhando o sábado… (Chico Buarque de Hollanda, in: Construção, 1971.) A canção de Chico Buarque nos permite fazer várias reflexões sobre o trabalho, principalmente sobre as relações de poder que ele envolve e sobre o fato de existirem ocupações mais ou menos valorizadas em nossa sociedade. Pensando nisso, responda: 1. Que indícios, na letra da canção, permitem-nos concluir que o trabalhador ocupava uma posição de pouco destaque social? 2. Dentre esses indícios, destaca-se um verso, que se repete, com pequenas variações, e pode ser considerado prova incontestável da pouca importância do trabalhador em questão. Qual é? É possível estabelecer alguma relação entre a situação descrita pelo verso e a noção marxista de “exército de reserva”? 3. Agora, procure pensar em sua realidade: quais os trabalhos mais e menos valorizados em nossa sociedade? Os trabalhos mais desvalorizados são, necessariamente, os menos importantes? Leitura complementar Jean Baptiste Debret. Vendedores de capim e leite. Aquarela, início do século XIX. Manifestação operária na cidade de São Paulo, ocorrida em 1917, durante a Greve Geral. Tanto a aquarela de Debret quanto a foto dos operários em greve são emblemáticas de dois momentos importantes da história do trabalho no Brasil. Ambas representam etapas de um longo percurso. O texto a seguir é um breve histórico desse percurso. Leia-o com atenção, procurando identificar os principais eventos referentes à evolução do trabalho no Brasil. O trabalho no Brasil A colonização portuguesa na América provocou um choque nas relações de produção, que se confunde com a formação da sociedade e do povo brasileiro. Das relações de trabalho típicas das comunidades indígenas aqui existentes, o colonizador fez saltar para a escravidão, tanto dos índios nativos quanto dos nativos africanos, trazidos à força para a produção colonial. A primeira grande estrutura de produção foi montada no Nordeste com a economia canavieira financiada pelos mercantilistas flamengos no século XVI. A opção lusitana pela escravidão negra deveu-se a vários fatores. A inexistência de um contingente suficiente de trabalhadores livres que pudessem ser deslocados de Portugal para a colônia, a inadequação por desconhecimento da agricultura ou pela resistência mais eficaz dos índios à escravização, as pressões dos missionários jesuítas contra a escravidão indígena e, principalmente, os interesses dos traficantes de escravos no lucro que aquele comércio proporcionava determinaram a imposição do trabalho escravo negro nos principais pólos econômicos montados na colônia. A presença africana no Nordeste açucareiro no século XVII, nas regiões mineradoras do Sudeste e do CentroOeste no século XVIII, na economia algodoeira do Maranhão e na lavoura do café durante o Império, deixou profundas marcas nos costumes e tradições da cultura brasileira. A relação de produção fundamental entre escravos e senhores de terras de uma aristocracia rural conservadora e autoritária moveu uma estrutura social patriarcal e elitista, dominante na sociedade por quase quatro séculos. Ao lado da relação básica de cunho escravista, desenvolveram-se relações de semi-servidão, como a que movimentou a pecuária pelos campos do sertão, parte das fazendas de café e outros setores da economia até o século XX. O trabalho assalariado, presente em setores restritos da economia, sobretudo urbana, tomou impulso com a expansão da economia exportadora de café no Sudeste a partir do século XIX. Nesse processo, desempenhou papel preponderante o imenso contingente de trabalhadores imigrantes que deixaram principalmente a Europa para construir vida nova na América. A transição do trabalho escravo para o assalariado na virada dos séculos XIX e XX tornou-se um capítulo particularmente marcante da evolução da sociedade brasileira. A mentalidade escravista e conservadora das elites agrárias foi o fator responsável pelos conflitos sociais que acompanharam as relações de produção durante a modernização promovida pelo café no país. Foi naquele meio social ainda imperial e envolvido nas agitações da campanha abolicionista dos anos de 1870 a 1888 que nasceu a classe operária brasileira. Pequeno e limitado aos setores gráfico, ferroviário, portuário, têxtil e alimentício, o operariado debateu-se contra a exploração do trabalho sem limites estabelecidos em leis até o início do século XX. As influências sobretudo do pensamento anarquista europeu acionaram o movimento operário nas lutas que culminaram na fundação do Partido Comunista do Brasil, em 1922. Mas foi somente a partir da Revolução de 1930, que derrubou o regime oligárquico vigente na chamada República Velha, que os trabalhadores tiveram seus direitos ampliados, com o trabalhismo implantado por Getúlio Vargas. Direitos esses – ressalte-se – restritos aos trabalhadores urbanos mobilizados pela estrutura sindical atrelada ao Estado. Florescia uma era de regimes populistas pelas Américas e o atendimento de antigas reivindicações operárias era moeda de troca com que os governantes se mantinham no poder, manipulando as massas populares das cidades em processo de industrialização. Em 1934, o Brasil teve promulgada sua primeira Constituição, que incluía um capítulo sobre os direitos trabalhistas. Em 1943, Getúlio Vargas outorgou ao país a Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT. Esse primeiro código trabalhista nacional regulamentou as relações entre capital e trabalho no Brasil, mas só atingiu o meio rural nos anos 1950. Reformada nas décadas seguintes, a CLT se constituiu no mais importante instrumento jurídico para regular as relações de trabalho na sociedade brasileira. Aula 8 Modos de produção e formações sociais – I Para debater Manifestantes em frente ao Portão de Brandenburgo, nos dias da queda do Muro de Berlim, novembro de 1989. A queda do Muro de Berlim – que separava a Alemanha Oriental (socialista) da Alemanha Ocidental (capitalista) – foi um evento muito significativo para a História da humanidade. Vista com euforia não só pelos países capitalistas, mas também pela população dos países comunistas, a queda do Muro deu início a uma era marcada por aquilo que se convencionou chamar fim das utopias (fim na crença de se estabelecer uma organização social alternativa ao capitalismo). Dentre essas formas alternativas de organização, destaca-se o socialismo, que estudaremos em algumas de nossas aulas. Por enquanto, podemos entendê-lo, simplificadamente e de acordo com o dicionário Houaiss, como o “conjunto de doutrinas de fundo humanitário que visam reformar a sociedade capitalista para diminuir um pouco de suas desigualdades”. Tendo em vista essa definição, leia a frase que o economista Roberto Campos (1917 – 2001) escreveu em sua biografia intelectual A lanterna na popa: Quem não é socialista aos 20 anos não tem coração, e quem assim permanece aos 40 anos, não tem imaginação. Essa provocativa frase alude a uma declaração do ex-chanceler da Alemanha Ocidental Willy Brandt (1913 – 1992), que teria dito: Quem aos 20 anos não é comunista não tem coração; e quem assim permanece aos 40 anos, não tem inteligência. Você concorda com os autores das frases? Você acha que defender o estabelecimento de um novo sistema, com o desejo de diminuir as desigualdades do mundo capitalista, pode ser considerado falta de imaginação ou de inteligência? Um pouco de teoria O que é Economia? Nosso interesse agora se voltará para a análise das várias formas de organização social criadas pelos homens até que se chegasse ao capitalismo ou, como alguns sociólogos preferem classificar, à sociedade industrial contemporânea. Como vimos na aula anterior, os homens sempre desenvolveram atividades voltadas para o suprimento das necessidades básicas do grupo. Eis a gênese do trabalho e da produção de bens que garantem a sobrevivência coletiva. É verdade que, no caso das sociedades modernas, o interesse não é apenas sobreviver, mas também obter lucros financeiros e acumular riquezas. Talvez daí tenha surgido a expressão “fazer economia” com o sentido de poupar, gastar pouco e guardar para o futuro. Convenciona-se chamar de econômicas as atividades por meio das quais os indivíduos trabalham para produzir alimentos, roupas, armas ou ferramentas. São essas atividades que, posteriormente, permitem-nos praticar ações militares, religiosas, artísticas ou políticas. O estudo sistematizado dessas questões gerou a Economia Política, ramo das ciências humanas voltado à análise das ações destinadas à produção, distribuição e consumo dos bens que propiciam o desenvolvimento das sociedades. Aliás, a Política e a Economia – que, assim como a Sociologia, são filhas da História – viriam a compor, ao lado da Geografia e da Antropologia, o conjunto das ciências sociais atualmente à disposição dos homens. Mas, afinal de contas, o que é economia? Se tomarmos economia como o conjunto de práticas que satisfazem nossas necessidades, poderíamos incluir nesse grupo atividades de lazer, que não são exatamente econômicas. Max Weber entende economia como a “administração de recursos raros ou dos meios destinados a atingir determinados fins”. Essa definição parece adequada, sobretudo, às sociedades desenvolvidas, nas quais o dinheiro é um meio para a satisfação de desejos e necessidades. Já nas sociedades primitivas, fica difícil identificar as escolhas racionais para a administração dos recursos econômicos. Porém, mesmo nessas comunidades, as esferas da produção, circulação e consumo dos bens estão presentes. E tudo isso sempre mediado pelo trabalho. Meios de produção e forças produtivas A evolução das trocas, do escambo direto, ao comércio mediado pela moeda, desempenhou papel preponderante nesse processo de transformação dos sistemas de produção e circulação de bens. Mas foi com a Revolução Comercial, na transição do feudalismo medieval para o capitalismo mercantil, que da prática da economia começou a surgir a ciência da Economia. Posteriormente, a Revolução Industrial deu grande impulso à evolução do pensamento econômico, que viria a culminar, já no século XX, no desafio de planejar o desenvolvimento. Foram propostos, então, conceitos como forças produtivas, estrutura econômica, sistemas de produção e capital. Um dos mais importantes é o de meio de produção, que deve ser entendido como todo e qualquer utensílio ou recurso natural, como a terra, que seja usado na produção. A posse dos meios de produção pode ser coletiva ou privada e, em certos casos, como no da escravidão, o próprio homem foi um meio de produção, podendo até mesmo ser comercializado. O ser humano se relaciona com o meio natural e o transforma de acordo com seus interesses. Isso ocorre através dos meios de produção, aproveitados da natureza ou criados pelo homem. Ao transformar a natureza por meio do trabalho, o homem emprega sua energia pessoal e coletiva (a força de trabalho) e gera o resultado (o produto). Os grupos sociais empregam sua força de trabalho no manuseio dos meios de produção e estabelecem, assim, relações sociais de produção. Esse processo define o que chamamos de forças produtivas da sociedade. As forças produtivas nascem da combinação dos vários elementos que estão envolvidos no processo do trabalho (energia humana, terra, ferramentas, máquinas, etc.) e que são empregados em determinadas relações de produção (propriedade coletiva ou privada da terra) estabelecidas pelos indivíduos (divididos em classes sociais ou não). Na análise sobre o “fazer a história” dos homens, presente em A ideologia alemã, Marx e Engels apregoam: (...) para viver, é necessário, antes de mais nada, beber, comer, ter um teto onde se abrigar, vestir-se, etc. O primeiro fato histórico é, pois, a produção dos meios que permitem satisfazer essas necessidades, a produção da própria vida material; trata-se de um fato histórico; de uma condição fundamental de toda a história, que é necessário, tanto hoje como há milhares de anos, executar, dia a dia, hora a hora, a fim de manter os homens vivos. Os homens já se organizaram de várias maneiras diferentes para permitir a sobrevivência coletiva e desenvolver-se. O escravismo na Antiguidade, o feudalismo na Europa medieval e o capitalismo em marcha nas eras moderna e contemporânea são apontados como os principais tipos de organização da sociedade, pelo menos no mundo ocidental. Esses tipos de organização da sociedade se associam ao que Marx e Engels denominaram modos de produção. Hoje, porém, o conceito é corrente mesmo entre teóricos não marxistas. Considerando a enorme variedade de formas como as sociedades se organizaram pelo mundo afora, Marx referiu-se ainda a outros modos de produção, como o asiático, que esteve presente, por exemplo, nas civilizações existentes na América pré-colombiana. O conceito marxista de modo de produção é uma construção teórica, construída a partir de observações históricas e útil para analisar tanto o tipo de civilização em que vivia Marx, no século XIX, quanto o mundo de hoje. Ele se aproxima do ideal-tipo de Max Weber, ou seja, um conceito que procura reunir as características sempre presentes numa sociedade, ainda que com variantes possíveis, conforme a região e a época. Quando dizemos produção, a primeira ideia que vem à cabeça é a de bens materiais. Mas, além dos bens que lhes permitem sobreviver, os homens produzem também obras de arte, religiões, política e leis. Sobretudo, produzem ideias e, por meio delas, interpretam toda a realidade a sua volta. É essa ampla produção que diferencia o ser humano dos demais seres vivos. Conclui-se, portanto, que o conceito de modo de produção é bastante amplo e inclui até mesmo as relações sociais, em todos os níveis que compõem a organização da vida em sociedade. Infraestrutura e superestrutura Marx identifica nos modos de produção de todas as sociedades uma infraestrutura de base econômica. E chama de superestrutura o “espaço” social onde se dão as relações não econômicas, mas também muito importantes para a máquina social funcionar. Nesse “espaço” são produzidos os sistemas educacionais ou jurídicos, as concepções religiosas, filosóficas e políticas, os códigos morais, as tendências artísticas e os conhecimentos científicos, ou seja, toda a produção humana que não tem forma material e é imprescindível ao funcionamento da sociedade. Defendendo uma concepção materialista da história, a teoria marxista afirma: São os homens que produzem as suas representações, as suas ideias etc., mas os homens reais, atuantes, e tais como foram condicionados por um determinado desenvolvimento das suas forças produtivas e do modo de relações que lhe corresponde, incluindo até as formas mais amplas que estas possam tomar. (...) Não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência. Para a análise dos processos de transformação histórica das sociedades, esta teoria aponta a economia como determinante em última instância dos grandes fenômenos sociais, uma vez que é por meio dela que se definem as classes sociais e as formas de dominação de classe. Diante das críticas, já em sua época, ao que seria uma visão economicista da história, Marx explicou o que significava a economia ser determinante em última instância da realidade social. A luta de classes não está restrita à infraestrutura do modo de produção, mas se dá também em todos os níveis da superestrutura. As lutas políticas no âmbito do Estado seriam reflexos da luta de classes, assim como as expressões artísticas, as políticas de ensino ou de esportes, as ideologias norteadoras do direito e até as atividades religiosas. Tudo isso definiria os campos de confronto das visões antagônicas das classes dominantes e oprimidas. A luta de classes, cuja origem primeira está na base econômica, projeta-se permanentemente em toda a sociedade. Assim, nenhum nível da infra ou da superestrutura teriam, necessariamente, maior ou menor importância. A atuação da Igreja e a supremacia do catolicismo se constituíram na alma da coesão interna do modo de produção feudal durante séculos, bem como a intervenção dos Estados absolutistas europeus foi fator fundamental no avanço do capitalismo comercial. É a superestrutura garantindo a manutenção dos pilares de uma certa estrutura social. Mas isso tudo se definiu a partir das transformações econômicas que desmantelaram um modo de produção e geraram as novas classes sociais que construíram outro. Se os homens é que fazem sua história, mas não como querem e sim dentro das condições herdadas das gerações precedentes, a produção intelectual e as expressões da cultura desempenham aí um papel importantíssimo. A visão de mundo ou a ideologia predominante num dado modo de produção tende a ser, em situações normais, a ideologia das classes dominantes. Estas estão continuamente preocupadas em gerar as explicações úteis na manutenção das características da sociedade. A reprodução das relações de produção inclui a reprodução contínua da visão de mundo predominante. Todos nós passamos, desde os primeiros momentos de vida, pelo aprendizado sobre “como é o mundo lá fora”. A essa absorção de ideias que influenciam nosso modo de pensar a vida social e os fenômenos políticos chamamos de socialização. E a família é, normalmente, a instituição responsável pela nossa socialização primária, ou seja, aqueles valores e princípios adquiridos desde a infância e que serão a base para outras socializações. Vivem-se socializações secundárias na escola, no trabalho, nas igrejas, nos quartéis militares, nos clubes esportivos, etc. Veremos, mais à frente, a importância das socializações para estudar o processo de alienação, tão comum no mundo de hoje. Exercícios Para responder às questões, leia o poema a seguir. O bicho Vi ontem um bicho Na imundície do pátio Catando comida entre os detritos. Quando achava alguma coisa, Não examinava nem cheirava: Engolia com voracidade. O bicho não era um cão, Não era um gato, Não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem. (Manuel Bandeira, Belo belo.) 1. É possível encontrar, nos versos de Bandeira, alguma referência, ainda que sutil, ao problema da luta de classes no mundo contemporâneo? Justifique sua resposta. 2. Por meio da arte, Bandeira faz em “O bicho” uma denúncia social. Isso se aproxima mais do universo da infraestrutura ou da superestrutura? Por quê? Tarefa mínima Quando se fala em marxismo, é preciso distinguir duas grandes acepções em que essa palavra é empregada. Existe uma parte do pensamento marxista que procura compreender – sobretudo a partir da análise de fundo econômico – os mecanismos de funcionamento da sociedade capitalista. Mas não é só isso. Devido à amplitude das ideias de Marx e de seus seguidores, o marxismo também é visto como uma proposta de intervenção. Para alguns marxistas, as contradições internas do capitalismo apontariam para sua superação histórica e substituição gradativa por um modo de produção comunista. Outras tendências consideram a possibilidade do surgimento de outro, denominado socialismo. Para nós – já que não cabe à ciência construir profecias –, interessa discutir a parte da obra de Marx que nos auxilia a compreender melhor a realidade concreta do nosso tempo. Vejamos, então, o que ele diz no seu Prefácio à contribuição à crítica da Economia Política, de 1859: (...) na produção social de sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência. 1. Para o pensamento marxista, a economia fundamenta a vida social ou o contrário? Justifique com uma passagem do texto. 2. Considerando a citação anterior e as citações que aparecem no texto de aula, responda: na teoria marxista, a consciência que temos da sociedade em que vivemos é completamente autônoma? Por quê? Tarefa complementar A chamada a seguir é o início de uma longa reportagem publicada na Folha de S. Paulo, em 16 de dezembro de 2007: 17 horas de trabalho por casa e comida Repórter-fotográfico trabalha com bolivianos e revela exploração de mão-de-obra clandestina em SP Jovem boliviano faz curso de corte e costura em La Paz, onde os imigrantes se preparam para trabalhar no Brasil. O repórter-fotográfico Antônio Gaudério, 49, foi à Bolívia munido de celular com câmera para descobrir como funciona o tráfico de mão-de-obra ilegal que alimenta a cadeia têxtil em São Paulo. Como um dos milhares de bolivianos que buscam emprego no Brasil para fugir da miséria em seu país, trabalhou no Brás (SP) até 17 horas por dia produzindo peças de roupas que abastecem grandes lojas do comércio brasileiro. Os bolivianos trabalham em troca de comida e moradia ou, no máximo, alguns centavos por hora. A partir desse trecho, discuta se, no século XXI, em países como o Brasil e a Bolívia, o modo de produção capitalista está se mostrando compatível com a idéia de justiça social? Leitura complementar Estrutura econômica e sistemas de produção Se a prática econômica gerou o pensamento econômico, esse, por sua vez, passou a influenciar a organização da própria economia. Coube aos economistas o estudo do que pode ser chamado estrutura econômica. Os diversos tipos de trabalhos se articulam numa estrutura tanto mais complexa quanto mais desenvolvida for a sociedade. É comum, por exemplo, a referência na imprensa ao “setor primário” da economia. Isso se deve a alguns conceitos clássicos desenvolvidos pela corrente estruturalista dos economistas, que foram se tornando comuns até mesmo na linguagem cotidiana. Vejamos alguns deles: • O setor primário é aquele voltado para as atividades básicas da produção associada aos recursos naturais. Inclui a agricultura, a pecuária e a extração ou coleta, em suas mais variadas formas. • O setor secundário engloba as atividades industriais, também em suas múltiplas formas, o que inclui a transformação dos bens e matérias-primas, acrescentando aos produtos características resultantes do emprego das forças produtivas (ferramentas, máquinas, energia humana, etc.). Embora hoje em dia o termo indústria esteja vinculado, sobretudo, à idéia de fábrica, a rigor, os indivíduos começaram a exercer atividades industriais desde o momento em que nossos ancestrais lascaram pedras para “fabricar” instrumentos com o qual pudessem rasgar o couro dos animais caçados para comer. Do artesanato primitivo à manufatura e, depois, à maquinofatura, chegamos ao estágio dos grandes conglomerados fabris. • O setor terciário engloba trabalhos em áreas como educação, lazer e entretenimento, justiça e saúde, transportes, comércio, etc. Ou seja, atividades que atendem a certas necessidades, mas cujo produto não se mostra materializado. São os chamados serviços. Este é, desde que as sociedades passaram a ser fortemente urbanizadas, um dos setores mais amplos e importantes. Vivemos um tempo em que a interdependência entre os setores da estrutura econômica faz de todos igualmente importantes, embora com pesos diferentes, conforme as regiões do planeta. Foi a divisão mundial do trabalho o fenômeno responsável por esta vinculação estreita entre os setores econômicos. É o trabalho do agricultor que fornece os alimentos às cidades e o do engenheiro que permite produzir o trator usado na terra. O trabalho de qualquer operário ou gari varredor de ruas é tão indispensável quanto o de policiais e médicos no setor dos serviços. Outro conceito muito usado pelos economistas e sociólogos se refere aos sistemas de produção. Fala-se de pecuária extensiva ou de agricultura intensiva, de sistema agrário de plantation, de taylorismo e fordismo nas linhas de montagem industriais ou mesmo de sistema escravista. Podemos usar sistema de produção quando nos referimos às características presentes num determinado setor da economia, durante um certo período e em uma região definida, que estão subordinadas às relações de produção predominantes naquela sociedade. O importante é não confundirmos sistema de produção com modo de produção. São conceitos diferentes e complementares. As estruturas econômicas geram sistemas de produção seguindo a orientação de políticas econômicas variadas ditadas pelos interesses das classes dominantes e dos governos. Por política econômica, aliás, entendemos a articulação de medidas voltadas para objetivos determinados, explicitamente adotadas por empresas ou governos nacionais, durante o predomínio de uma classe ou facção de classe sobre os demais grupos sociais. A evolução do capitalismo conheceu o mercantilismo dos séculos XV ao XVIII, o liberalismo e o imperialismo dos séculos XIX e XX, e o neoliberalismo “pós-moderno”. São políticas econômicas marcantes nas várias etapas do desenvolvimento capitalista. O mercantilismo, por exemplo, era a prática dos monopólios mercantis coordenados pelo Estado absolutista. Este, de caráter intervencionista, administrava a balança comercial superavitária no interesse da burguesia comercial aliada à Coroa. Com a expansão colonizadora pelos continentes, os monopólios eram estabelecidos nos chamados pactos coloniais, a forma de dominação e exploração das colônias pelas metrópoles da Europa. Os séculos mercantilistas viabilizaram a acumulação de capitais que impulsionaram a Revolução Industrial no século XVIII. E a nova burguesia emergente promoveu o pensamento liberal que desmantelou as políticas mercantilistas predominantes. Aula 9 Modos de produção e formações sociais – II Para debater Observe a imagem e leia o trecho que segue: Hélio Campos Mello. Bóias-frias. São Paulo, 1982. Usina condenada em R$ 500 mil por condições degradantes no MT Justiça condena Destilaria Gameleira, localizada em Confresa (MT), por más condições de trabalho de seus empregados. Empresa já foi palco da maior libertação de escravos realizada, quando 1.003 pessoas foram resgatadas. SÃO PAULO – A Vara do Trabalho de São Félix do Araguaia (MT) condenou a Destilaria Gameleira, localizada em Confresa, também no Mato Grosso, a pagar R$ 500 mil ao Fundo de Amparo ao Trabalhador a título de danos morais coletivos pelas más condições de trabalho em que se encontravam 348 de seus empregados. A decisão é de primeira instância e foi tomada em 19 de outubro pelo juiz do trabalho João Humberto Cesário. (...) Em sua decisão, o juiz afirma que as situações encontradas na propriedade são “fato denunciador do seu desprezo para com os fundamentos republicanos da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho”. (Iberê Thenório, especial para a Carta Maior, 11/11/2006, http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm? materia_id=12806, acesso em 19/02/2008.) Agora, leia o Artigo XXIII da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. Artigo XXIII 1. Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego. 2. Todo ser humano, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho. 3. Todo ser humano que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social. 4. Todo ser humano tem direito a organizar sindicatos e a neles ingressar para proteção de seus interesses. Ninguém duvida de que essa Declaração está recheada de boas intenções. Porém, mais de meio século depois de sua proclamação, será que esses direitos universais estão, de fato, sendo respeitados? Um pouco de teoria Modos de produção e formação social Já dissemos que o conceito de modo de produção é um modelo teórico construído para auxiliar a análise das diversas formas de civilização. Quando Marx o pensou, visava decifrar o capitalismo de seu tempo, sobretudo na Europa, e tomou a Inglaterra como expressão mais evoluída do modo capitalista de produção. Ao comparar suas conclusões com o estágio capitalista de outras nações, como a França, a Rússia e o futuro império alemão, notou a necessidade de adaptar o modelo teórico à realidade econômica, política e social com que deparou. Na tentativa de explicar as particularidades que o modo de produção capitalista assumia em cada canto do planeta, os marxistas desenvolveram o conceito de formação social, que pode ser definido como uma totalidade social concreta, histórica e geograficamente determinada, isto é, uma organização social que pode abranger um só país ou vários (como é o caso dos países latino-americanos, que apresentaram características semelhantes em certos períodos históricos). O modo de produção capitalista que Marx enxergou na Inglaterra, sob orientação liberal, é bem diferente da versão nazista que a Alemanha conheceu no século seguinte. Hoje também observamos que as formações sociais capitalistas mais evoluídas são bastante diferentes das menos desenvolvidas. Um fenômeno recorrente na realidade das formações sociais é o fato de características de outros modos de produção coexistirem com o modo predominante. Onde quer que o capitalismo se implante, sua expansão tenderia a eliminar todas as relações pré-capitalistas existentes. A realidade, entretanto, teima em contrariar a teoria. É muito difícil aceitar a existência de um modo de produção em estado puro. O Brasil imperial, por exemplo, conheceu a transição da escravidão para o trabalho assalariado como força motriz da economia, num longo processo de convivência conflituosa de características pré-capitalistas com outras já tipicamente capitalistas. Ainda hoje encontramos pelo país relações de produção próximas da semi-servidão ou a sobrevivência do trabalho artesanal autônomo. Capitalismo e capital Afinal, o que é capitalismo? Uma definição de dicionário seria: “modo de produção em que o capital, sob suas diferentes formas, é o principal meio de produção”. Meio de produção e modo de produção já sabemos o que é. Mas capital o que seria? Essa palavra, empregada no sentido econômico e como lugar-comum, designa normalmente um bem possuído por um indivíduo, como seu patrimônio. Pode ser uma quantia em dinheiro, uma aplicação em banco sob a forma de ações ou, ainda, um meio físico de produção, como a terra, por exemplo. Do ponto de vista dos empresários capitalistas, capital é qualquer tipo de bem que possa se tornar fonte de renda. Uma casa, por exemplo, ou mesmo um conhecimento especializado pode ser capital porque são bens que podem gerar renda ao proprietário. Daí podem-se concluir duas coisas: 1) que o capital existe em toda e qualquer sociedade, em qualquer tempo ou lugar; 2) que objetos inanimados podem ser produtivos e gerar renda por si próprios. A teoria marxista discorda dessas conclusões. O argumento é o seguinte: embora o capital tenha surgido antes das relações capitalistas de produção, ele é inerente ao modo de produção capitalista, porque jamais uma coisa seria capaz de gerar renda. Na verdade, o capital seria uma relação social que toma a forma de coisa. Se são os homens com seu trabalho que geram riquezas, o capital é, antes de mais nada, a relação entre seres humanos que se transforma em bens materiais. Nas palavras de Marx: (...) o capital não é uma coisa, mas uma relação de produção definida, pertencente a uma formação histórica particular da sociedade, que se configura em uma coisa e lhe empresta um caráter social específico. Ou seja, o capital não é simplesmente um conjunto de meios de produção; esses é que foram transformados em capital ao serem apropriados por uma classe social (a burguesia) e empregados com a finalidade de gerar rendas. Não por acaso, o Houaiss também dá a seguinte acepção de capitalismo: “sistema social em que o capital está em mãos de empresas privadas ou indivíduos que contratam mão-de-obra em troca de salário”. Para os marxistas, o capitalismo se apresenta como um modo de produção baseado fundamentalmente na propriedade privada dos meios de produção. Assim, de um lado, há uma burguesia capitalista, na condição de classe dominante e detentora dos meios de produção; de outro, o proletariado, como classe dominada, a quem resta o trabalho assalariado. Sobre essa infra-estrutura econômica, ergue-se a superestrutura do Estado nacional, que detém o poder de governo sobre a sociedade e que encarna a ideologia da igualdade jurídica (ou seja, igualdade perante as leis) entre os indivíduos. A mais-valia Numa de suas obras mais importantes, O capital – crítica da Economia Política, Marx expõe o que para ele é o mecanismo de funcionamento do modo capitalista de produção. Assim, decifra a fonte da acumulação do capital que permitiu ao capitalismo expandir-se por todo o planeta e promover uma revolução tecnológica sem precedentes na história da humanidade. É a denominada teoria da mais-valia. Os trabalhadores produzem utilizando os meios de produção pertencentes ao patrão; este, em troca, pagalhes um salário em dinheiro, depois de vender as mercadorias produzidas. Essa venda é necessária para que ele reponha as matérias-primas e as ferramentas e possa reiniciar o processo. Com seu salário, os empregados compram os bens necessários para sua sobrevivência e de sua família. Aparentemente estamos diante de uma troca justa. Mas, se nenhum dos lados está sendo privilegiado, de onde vem a riqueza dos capitalistas e a pobreza dos proletários? Os capitalistas respondem que enriquecem devido aos lucros obtidos com as vendas, uma vez que o mercado necessita de bens (que possuem preços variáveis). No entanto, se o patrão pagasse os empregados por todas as mercadorias produzidas por eles numa jornada de trabalho, ele teria que abrir mão dos lucros para poder adquirir novas matérias-primas, repor as máquinas e pagar os impostos e as demais despesas da empresa. E o capitalismo simplesmente não existiria. Onde se esconde, então, a origem do capital acumulado? O lucro de mercado existe, é verdade; mas não é ele que gera o capital. Os preços variam conforme as necessidades das pessoas e a oferta das mercadorias. Mas o que determina o valor de uma mercadoria? Sempre lembrando que a força de trabalho vendida ao patrão pelo trabalhador também é uma mercadoria, acompanhemos com atenção o raciocínio de Marx: 1. O valor de uma mercadoria é determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário para produzila. O que isso significa? Que podemos medir os valores de objetos diferentes trocados entre os indivíduos comparando o tempo necessário para produzi-los. Para isso, há que diferenciar o valor de uso e o valor de troca das coisas. O valor de uso de um objeto é de interesse pessoal e não é levado em conta para a análise econômica, pois ele pode valer muito para uma pessoa e não valer coisa alguma para outra. O ouro mesmo, tão valorizado em certas sociedades, pode significar nada em outras. Chamamos aqui de valor, então, o valor de troca das mercadorias. E mercadorias diferentes são trocadas como equivalentes. Basta reconhecer o dinheiro como equivalente universal, a moeda que se troca por qualquer outra coisa. Se coisas diferentes se apresentam no mercado como equivalentes, é porque todas têm em comum o tempo que se gasta para produzi-las. E o tempo, diferente para a produção de um automóvel e de um submarino, por exemplo, pode ser medido e comparado. Quer dizer, então, que a camisa produzida por um alfaiate experiente “vale” menos que a de um alfaiate novato, pois leva mais tempo para ser feita? Claro que não. Por isso, a teoria usa a expressão tempo socialmente necessário, ou seja, no estágio de desenvolvimento em que se encontra a sociedade, é possível saber qual o tempo médio que se leva para a confecção de camisas, para a fabricação de pneus, etc. É esse tempo social de trabalho que deve ser tomado como medida do valor. O tempo gasto para produzir um automóvel não é exclusivamente o da montagem final das peças, mas todo o tempo necessário para a extração de metais, o desenvolvimento de projetos de engenharia, a fabricação das peças e a montagem final. Ora, se a força de trabalho na sociedade capitalista também é mercadoria, mede-se seu valor pelo tempo de trabalho social necessário para a sua produção e reprodução. 2. O valor da força de trabalho é, assim como o de qualquer outra mercadoria, determinado pelo tempo de trabalho social despendido para a sua produção e reprodução, isto é, para a manutenção do trabalhador em condições de produzir e de manter os filhos que vão substituí-lo um dia no mercado de trabalho. Na massa de salários pagos pelo patrão, está incorporado o valor social da produção de alimentos, vestimentas, moradias, transportes, etc. necessários aos trabalhadores. É por este valor que os patrões pagam os salários e compram as jornadas de trabalho (horas trabalhadas no dia) dos seus empregados. Lembrando que, para os marxistas, como o capital é uma relação social e não uma soma de riquezas, a finalidade última da produção capitalista é o valor de troca, e não a satisfação do consumo. 3. A mais-valia é o valor a mais produzido pelos trabalhadores, além daquele pago pelo patrão no salário trocado pela jornada de trabalho. Explica-se: quando o capitalista contrata um empregado, ele compra a jornada de trabalho pelo valor determinado no mercado. Acontece que os homens não precisam trabalhar todos os dias, o dia todo, para produzir sua sobrevivência. O avanço tecnológico permite que se trabalhe umas tantas horas diárias conforme a sociedade. Mas o patrão comprou toda a jornada de trabalho. Ela se compõe de um tempo de trabalho necessário, que é pago, e de um tempo de sobretrabalho, que não é pago e gera a mais-valia. Por exemplo, considere que o valor da força de trabalho de um operário de certa fábrica corresponda hoje a quatro horas diárias. E que a sua jornada na fábrica seja de dez horas. Isto quer dizer que o trabalhador produziu o correspondente ao seu salário nas primeiras quatro horas; e que nas seis horas restantes ele produziu de graça para a empresa. Neste caso, a mais-valia foi produzida durante o tempo de sobretrabalho de seis horas. Observe este outro exemplo: imagine que o salário de um trabalhador seja o correspondente a 16 horas de trabalho por mês. E que, em 30 dias ele tenha trabalhado rigorosamente 8 horas por dia. São 240 horas de produção. A empresa precisa de 88 horas de produção – o que equivale a 11 dias de trabalho – para repor matérias-primas e pagar as demais despesas. Neste caso, em um mês, o trabalhador produziu o necessário para o patrão pagar o seu salário em dois dias (ou 16 horas) e produziu a mais-valia de que a empresa se apropriou gratuitamente em 17 dias (ou 136 horas). Se essa empresa fosse uma fábrica de computadores que produz um computador por hora, em 30 dias seriam 240 computadores. O empresário precisou vender 16 deles para pagar os empregados, outros 88 para cobrir as despesas de produção; 136 foram produzidos de graça pelo sobretrabalho. Exercícios Leia a tirinha de Bob Thaves e, a seguir, responda às questões: (O Estado de S. Paulo, 30/12/2007.) 1. A tirinha alude a uma situação bastante atual. Que situação é essa? 2. Você acha que essa situação é interessante para os capitalistas? Explique. 3. Que conceito marxista pode ser utilizado para se entender esse panorama? Tarefa mínima Leia o fragmento a seguir e responda às duas questões propostas: A acumulação primitiva desempenha na economia política relativamente o mesmo papel que o pecado original na teologia. Adão mordeu a maçã, e o pecado surgiu no mundo. A origem do pecado explica-se por uma aventura que se teria passado alguns dias depois da criação do mundo. Da mesma maneira, teria havido outrora, faz muito tempo isso, uma época em que a sociedade se dividia em dois campos: acolá pessoas de elite, laboriosas, inteligentes e, sobretudo, dotadas de aptidões administrativas; aqui uma porção de folgazões, divertindo-se de manhã à noite e da noite ao dia seguinte. Naturalmente, aqueles acumularam tesouros sobre tesouros, enquanto estes encontraram-se em breve desprovidos de tudo. Daí a pobreza dos componentes da grande massa que, a despeito de um trabalho ininterrupto, devem sempre pagar com o sacrifício de sua própria pessoa, e, por outro lado, a riqueza de um pequeno número que, sem mover um dedo, recolhe todos os frutos e benefícios do trabalho alheio. A história do pecado original faz-nos ver, é verdade, como e por que o homem foi condenado pelo Senhor a ganhar seu pão com o suor de seu rosto; mas a do pecado econômico preenche uma lamentável lacuna revelandonos como e por que há homens que escapam a esta ordem do Senhor. (Karl Marx, A origem do capital.) 1. Considerando a relação entre o segundo e o terceiro parágrafos, assinale a alternativa correta: a) A relação entre esses dois parágrafos é de complementaridade, pois os mesmos valores que surgiram no segundo parágrafo são retomados termo a termo no terceiro. b) Há uma clara oposição de ideias entre os parágrafos: enquanto o segundo defende que a acumulação capitalista nasceu de habilidades administrativas, o terceiro apregoa que ela surgiu de um “trabalho ininterrupto”. c) O segundo parágrafo, ironicamente, propõe que as diferenças entre ricos e pobres traduzem as diferenças entre “pessoas de elite” e “folgazões”. O terceiro parágrafo confirma a ironia, afirmando que algumas pessoas enriqueceram “sem mover um dedo” e outras permaneceram pobres “a despeito de um trabalho ininterrupto”. d) No segundo parágrafo, defende-se que pessoas “dotadas de aptidões administrativas” foram capazes de enriquecer. No terceiro, essa ideia é reforçada pela expressão “trabalho ininterrupto”. e) Os pobres de hoje são os “folgazões” do passado, como se diz no segundo parágrafo. Essa “pobreza dos componentes da grande massa” é justificada, no terceiro parágrafo, pela ideia de que essa grande massa “recolhe todos os frutos e benefícios do trabalho alheio”. 2. A partir das ideias do fragmento de Marx, analise as seguintes afirmações: I. A ideia de que alguns homens escapam da condenação divina de ganhar o pão com o suor do próprio rosto é considerada normal pelo pensamento marxista. II. No contexto, a referência provocativa à passagem bíblica extraída do Gênesis funciona como uma espécie de crítica ao discurso religioso. III. A expressão “pecado econômico” explicita a comparação entre a acumulação capitalista e o pecado original, ressaltando como a distinção entre ricos e pobres é fruto do castigo do Senhor de exigir que o homem ganhasse o pão com o suor do seu rosto. Está correto o que se afirma em: a) apenas I. b) apenas II. c) apenas III. d) apenas II e III. e) I, II e III. Tarefa complementar O fragmento a seguir pertence a um texto lido por Marx nas reuniões do Conselho Geral da Primeira Internacional Socialista, em junho de 1865: O que o operário vende não é diretamente o seu trabalho, mas a sua força de trabalho, transferindo para o capitalista a disposição temporária dela. É tanto assim o caso que não sei de acordo com as leis inglesas, mas certamente de acordo com algumas leis continentais, está fixado o tempo máximo pelo qual um homem está autorizado a vender a sua força de trabalho. Se autorizado a fazê-lo por qualquer período indefinido, a escravatura seria imediatamente restaurada. Uma tal venda, se compreendesse, por exemplo, a duração da sua vida, fá-lo-ia imediatamente escravo do seu patrão por toda a vida. Nessa passagem, Marx fala sobre a necessidade de leis que, ao disciplinarem as relações de trabalho, evitem a restauração da escravidão. Sabendo disso, leia o longo Artigo 7º- da Constituição brasileira (adaptado para fins didáticos): Art.7º-. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: I. relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa (...); II. seguro-desemprego (...); III. fundo de garantia do tempo de serviço; IV. salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo (...) V. piso salarial proporcional à extensão e à complexidade do trabalho; VI. irredutibilidade do salário (...); VII. garantia de salário, nunca inferior ao mínimo, para os que recebem remuneração variável; VIII. décimo terceiro salário (...); IX. remuneração do trabalho noturno superior à do diurno; X. proteção do salário na forma da lei, constituindo crime sua retenção dolosa; XI. participação nos lucros, ou resultados, (...), e, excepcionalmente, participação na gestão da empresa (...); XII. salário-família (...); XIII. duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais (...); XIV. jornada de seis horas para o trabalho realizado em turnos ininterruptos (...); XV. repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos; XVI. remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em cinqüenta por cento à do normal; XVII. gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal; XVIII. licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias; XIX. licença-paternidade (...); XX. proteção do mercado de trabalho da mulher (...); XXI. aviso prévio proporcional ao tempo de serviço, sendo no mínimo de trinta dias (...); XXII. redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança; XXIII. adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas (...); XXIV. aposentadoria; XXV. assistência gratuita aos filhos e dependentes desde o nascimento até 5 (cinco) anos de idade em creches e préescolas; XXVI. reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho; XXVII. proteção em face da automação (...); XXVIII. seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador (...); XXIX. ação, quanto aos créditos resultantes das relações de trabalho, com prazo prescricional de cinco anos para os trabalhadores urbanos e rurais, até o limite de dois anos após a extinção do contrato de trabalho; XXX. proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil; XXXI. proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência; XXXII. proibição de distinção entre trabalho manual, técnico e intelectual ou entre os profissionais respectivos; XXXIII. proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos; XXXIV. igualdade de direitos entre o trabalhador com vínculo empregatício permanente e o trabalhador avulso. É verdade que os 34 incisos do Artigo 7º- de nossa Constituição impedem, ao menos do ponto de vista legal, a existência da escravidão e procuram assegurar vários direitos aos trabalhadores. Mas, em sua opinião, considerando a formação social capitalista no Brasil, eles têm sido suficientes para garantir uma sociedade mais justa? Leitura complementar Na década de 1990 – marcada por uma grande “onda neoliberal” – houve uma revalorização da idéia de que “primeiro deve-se fazer o bolo crescer para depois reparti-lo”. Em outras palavras, acreditava-se que, antes de se acabar com as desigualdades, era preciso fazer o país crescer economicamente. Esse tipo de visão orientou a política econômica de várias nações, muitas delas com sérios problemas de desigualdade social. Pensando nisso, leia o texto que segue: Crescimento econômico não diminui a desigualdade social O crescimento econômico não é solução para a pobreza e a desigualdade no mundo. Esta é a conclusão do documento Situação social mundial 2005, divulgado pela ONU. Segundo as Nações Unidas, a diferença entre ricos e pobres tornou-se ainda maior no mundo nos últimos 10 anos. Segundo o estudo, uma das causas do problema é o abismo existente entre a economia formal e a informal: enquanto os trabalhadores qualificados recebem salários cada dia mais altos, os trabalhadores sem qualificação são obrigados a entrar no mercado informal, sujeitando-se à baixa remuneração e à falta de participação social, política e econômica. A globalização da economia e a concorrência no mercado mundial fizeram com que as leis trabalhistas se flexibilizassem de tal forma, que o desemprego aumentou. Além disso, um quarto da população mundial que tem trabalho não pode manter a família com o que recebe – apenas um dólar por dia. Na América do Sul e no Caribe, as reformas estruturais implantadas nas duas últimas décadas com a intenção de favorecer o crescimento econômico só aumentaram a desigualdade. Segundo o informe, o desemprego na região estava em 6,9% em 1993. Em 2002, 9% da população estava desempregada. Ressalte-se, ainda, que os altos níveis de gasto social público da região não beneficiaram aos mais pobres. Os setores da população que recebem as piores remunerações continuam excluídos de muitas áreas da assistência pública. Por sua vez, uma elite minoritária, em cujas mãos se concentram as propriedades, continua sendo privilegiada. Em países como o Brasil, a Guatemala e a Bolívia, a questão racial continua sendo um fator decisivo para a inserção no mercado de trabalho. Prova disso é que os salários de indígenas e negros são entre 35 e 65% menores do que os salários pagos aos brancos. Mas essa realidade não está circunscrita à América Latina. Na China e na Índia, assim como nos países altamente industrializados, as diferenças salariais entre os trabalhadores aumentaram nos últimos dez anos. Entre os desenvolvidos, Estados Unidos, Reino Unido e Canadá apresentam as maiores diferenças salariais entre a mão-deobra qualificada e a não qualificada. Por fim, o documento conclui: “Ainda que um país experimente um crescimento econômico, a redução da pobreza acontecerá mais facilmente em países cujos governos já desenvolvam políticas e programas que promovam a igualdade, incluindo iniciativas para melhorar o acesso aos recursos, os salários, a educação e o emprego”. (Adaptado de http://www.parceria.nl/atualidade/organizacao/ onu/on050825economia_social, acesso em 19/02/2008.) Com base no conteúdo desenvolvido em aula (mais especificamente na visão marxista de capitalismo), nas informações apresentadas pelo texto e em seu conhecimento de mundo, responda: por que a ideia de se priorizar o crescimento econômico, alegando que isso ajudaria a diminuir as desigualdades, pode ser considerada “ingênua” (ou até mesmo falsa)?