Universidade Federal do Rio Grande do Sul Secretaria de Educação à Distância - SEAD L bolsista: Raqquel Neglia Endres coordenadora: Márcia Corrêa Machado colaboradores Adriana Schmidt Dias Wilson Kindlein Júnior Fábio Pinto da Silva Lara Elena Sobreira Gomes Liane Roldo Lauren da Cunha Duarte Bruna Barth Bertotto Porto Alegre, 2015 Introdução Atualmente todas as áreas do conhecimento utilizam instrumentos tecnológicos a fim de obter melhores e mais precisos resultados. Com a investigação histórica e arqueológica não é diferente. A utilização do scanneamento 3D, o uso dos mais variados softwares de tratamento de imagens, as mais diversas análises matemáticas e simulações computacionais possibilitadas a partir dos arquivos tridimensionais, vem ampliando e divulgando tais estudos. A digitalização tridimensional a laser é utilizada para capturar dados de objetos em 3D e, auxiliada por softwares, permite obter com grande precisão curvas, detalhes de superfícies e texturas (SILVA, 2006, p. 72; SILVA, 2011, p. 44). Neste material apresentamos sete pontas de projétil, associadas à Tradição Umbu/RS, que foram escaneadas em um scanner tridimensional a laser fixo - DIGIMILL 3D - (Figura 1). Figura 1: Projéteis sendo escaneados. Muitos foram os estudos realizados a respeito da tradição Umbu, desde os anos 1960, com o início do PRONAPA, Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas. A partir dos levantamentos e escavações de centenas de sítios arqueológicos (os mais antigos apresentando quantidades enormes de material lítico e os mais recentes apresentando quantidade também grande de material cerâmico) levou os pesquisadores a tentar classificar esses grupos que produziram tais vestígios. Entre as diversas caracterizações feitas, de modo geral, a esses desenvolvedores desta indústria lítica (“Tradição”) Umbu, pode-se dizer que a mesma é caracterizada pela “variedade de pontas de projétil triangulares, bifaciais, pedunculada e não pedunculada, alguns deles com bordas serrilhadas, e outros com retoque unifacial, geralmente associada a bolas (‘boleadeiras’)” (Meggers e Evans, 1977. Apud HADLER et al., 2013). A Tradição Umbu e a ocupação do território do RS No RS esta chegada, esta primeira colonização do território, se dá ao final do último período de glaciação, há 12.000 anos atrás. O homem chega nas fronteiras do RS pela argentina e pelo Uruguai e entra nas barradas do rio Uruguai há cerca de 12000 anos AP num período de clima extremamente frio (são estes grupos que iniciam o povoamento do nosso estado), viviam da caça e da coleta (grupos caçadores-coletores) e acampavam nas margens de córregos, onde montavam seus abrigos. A estes grupos pesquisadores os denominaram: Tradição Umbu. No mapa abaixo (Figura 2), pode-se observar um esquema das correntes migratórias atualmente mais aceitas a respeito de como, quando e por onde adentraram estes primeiros povoadores do continente americano. Figura 2: correntes migratórias da chegada do homem à América (SENE,2013). Como vestígio da presença desses grupos, tem-se as pontas de flecha as quais eram provavelmente usadas para a defesa (de outros animais, já que o homem vai conviver com mega fauna – preguiças gigantes, tatus gigantes, mastodonte, entre outros), as bolas de boleadeira (mais abundantes na região do pampa gaúcho), os Cerritos, entre outros. É no litoral do RS onde se encontram as datações mais antigas de ocupação do território: cerca de 12.000 anos, e eram em grutas e abrigos sob rocha que estes primeiros grupos humanos habitaram e se espalharam pelo estado. No litoral, o clima mais quente e a farta fauna marinha favoreceram o estabelecimento de povos coletores, caçadores e pescadores, nas proximidades do mar e à beira de lagoas, mangues ou baías. É no litoral também que encontram-se os Sambaquis (grande montes de conchas que foram depositadas – discute-se se de forma intencional ou não). No caso do RS os sambaquis são bem mais recentes (cerca de 3.600 - 3.000 anos atrás formando um cordão desde Torres até Osório) do que os escavados e encontrados de Santa Catarina até o Espírito Santo, muito em função das características paleoclimáticas daqui. Um dos principais artefatos encontrados junto aos sanbaquis são os zoólitos (peças esculpidas em pedra representando diferentes animais) que provavelmente eram utilizados para diversos cerimoniais, para macerar ervas, pigmentos, entre outros. A tradição Umbu (composta por diferentes grupos os quais utilizavam a caça e a coleta de alimentos e que produziram diversos artefatos em pedra) está associada a regiões de clima sub-tropical, abrangendo os estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo, juntamente com Uruguai e as províncias argentinas de Missiones e Corrientes, tendo como início da ocupação identificado no período de transição do Pleistoceno-Holoceno. Hadler et al. (2013) colocam que durante o Holoceno as condições climáticas foram alteradas; a zona de convergência inter-tropical (ZCIT) mudou-se para a sua posição atual gerando alterações nas frentes polares as quais diminuíram em frequência e intensidade. A predominância da vegetação campestre durante o Pleistoceno sugere a presença de um clima frio e seco que não favorecia o desenvolvimento das florestas no sul e sudeste do Brasil. Os poucos grãos de pólen encontrados neste período são, provavelmente, provenientes de florestas incipientes ao longo dos vales fluviais, o que indica que as florestas possivelmente eram restritas a vales de rios, sendo intercaladas com extensas pradarias. Desta forma, durante o Holoceno, um processo de mudança na paisagem caracterizada por pastagens começou. As taxas relacionadas com a expansão da Floresta de Araucária mostrou um ligeiro aumento, provavelmente indicando uma migração da floresta seguindo o curso do rio Behlindg et al., 2004 apud HADLER et al., 2013). Registros de pólen provenientes da Mata Atlântica também mostraram um ligeiro aumento, sugerindo que o clima tornou-se mais suave no início do Holoceno (Lorscheitter, 2003 apud HADLER et al., 2013). Desta forma, o Holoceno foi um tempo de expansão e criação da Floresta Atlântica no sul do Brasil, devido ao clima quente e úmido que permanece até hoje. A elevação da umidade e da temperatura a partir de 6.000 anos antes do presente (AP) e a consequente expansão da vegetação florestal teriam estimulado o aumento demográfico e as migrações humanas (DIAS, 2007), podendo-se verificar isto a partir da identificação de um número maior de sítios arqueológicos mais recentes. As condições climáticas favoráveis durante o Holoceno e a presença de um mosaico de ambientes abertos e florestais (restritos aos vales de rios), desempenhou um papel central para a ocupação humana inicial desta área relacionada principalmente com rotas fluviais. No Rio Grande do Sul, como citado anteriormente, as cronologias mais antigas giram em torno de 12.000 AP estendendo-se até o século XVI e associadas com sedimentos fluviais do médio rio Uruguai, relacionado, principalmente, com o bioma campestre (Pampa). As características tecnológicas destas indústrias bifaciais apontam semelhanças com contextos contemporâneos argentinos e uruguaios, possivelmente indicando uma matriz cultural comum. Os sítios arqueológicos atribuídos a Tradição Umbu no RS aparecem nas bordas do planalto e em elevações artificiais construídas na planície. Como característica desta tradição percebe-se que os mesmos davam preferência pela utilização de rochas mais frágeis como quartzo, sílex, calcedônia e ágata. Eram grupos de caçadores e coletores; praticavam a caça de pequenos e médios animais e coleta de frutos. De modo geral, nos sítios há grande quantidade de pontas de projétil bifaciais e de outros artefatos lascados nas duas faces. Neste sentido, a chamada Tradição Umbu não deve ser considerada uma cultura, mas uma tecnologia, que podia ser usada por populações de línguas e etnias diferentes (DIAS, op cit.) e que as escolhas tecnológicas feitas pelo artesão são ditadas pela tradição na qual o mesmo foi aculturado como membro de um grupo social, traduzindose em noções de design peculiares a certos lugares e tempos. Tecnologia, função e estilo são aspectos inter-relacionados do comportamento, sinalizando fronteiras sociais e afiliação cultural que podem ser reconhecidas na cultura material. Contudo, a natureza destes fenômenos é altamente contextualizada em termos históricos, podendo relacionar-se a interesses interpessoais ou intergrupais. Cabe ressaltar aqui que é a partir de cerca de 2.000 anos, no Rio Grande do Sul, que se começa a observar contato com as tradições ceramistas Taquara e Guarani, cuja origem cultural está associada ao planalto central brasileiro e à região amazônica; tais migrações e expansão destas tradições ceramistas, ao que tudo indica, teriam restringido as áreas de domínio da tradição Umbu (DIAS, 2007). Atribuir às pontas de projétil a função de marcadores espaço-temporais da tradição Umbu é um legado do PRONAPA, Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas - projeto desenvolvido entre fins de 1965 com planejamento para 5 anos. Este programa, de modo intensivo, trabalhou no sentido de desenvolver trabalhos prospectivos de caráter regional e seriações (FORD, 1962), visando estabelecer um esquema cronológico do desenvolvimento cultural – descobrindo e catalogando sítios e artefatos arqueológicos em cinco estados da federação: Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Guanabara, Rio de Janeiro, Bahia e Rio Grande do Norte (estados que possuíam arqueólogos). Em função desta falta de reflexão teórica, até meados dos anos 1990, as definições referentes à indústria lítica da chamada tradição Umbu geralmente se dava a partir de análises superficiais, como citado anteriormente, e restritas às descrições dos principais tipos morfológicos de artefatos e pontas de projétil elaboradas a partir de lascas retocadas de forma bifacial (DIAS, 1996). Neste contexto, o PRONAPA, ainda nos anos 1970, descreveu as tradições pré-cerâmicas da região sul-brasileira da seguinte forma: Duas tradições líticas gerais têm sido reconhecidas no sul do Brasil, uma com pontas de projétil líticas e outra onde estas estão ausentes. Esta última designada tradição Humaitá é representada por inúmeros sítios em locais florestais, ao longo de rios, lagos e banhados. (...) As datas mais antigas estão associadas (...) [a um] tipo de artefato mais característico: um biface bume- rangóide. Choppers alongados unifaciais ou bifaciais, com secção transversal circular e triangular; raspadores plano convexos e facas sobre lascas são também típicos. (...) As pontas de projétil líticas são antigas na América do Sul e persistem no sul do Brasil depois de 5000 a.C., na tradição Umbu. (…) Entre a variedade de pontas apedunculadas e pedunculadas, há algumas com margens serrilhadas e outras com retoque unifacial. A forma mais comum é triangular alongada, com pedúnculos de lados paralelos ou expandidos e com base reta, côncava ou convexa. Trituradores e pequenas bigornas líticas com concavidade central são típicos, assim como choppers, raspadores terminais e lascas com marcas de uso. Freqüentemente, estão também associados bolas [boleadeiras], machados polidos e semi- polidos e afiadores líticos (MEGGERS & EVANS, 1977, pp. 548 - 551). As pontas de projétil são recorrentes no mundo desde cerca de 30.000 anos. Mesmo compondo parte importante dos instrumentos confeccionados pela tradição Umbu e considerado o elemento representativo da referida tradição, as pontas de projétil, como citado anteriormente, não são os únicos instrumentos produzidos por estes grupos caçadores e coletores, entretanto são os mais recorrentes e significativos. Dias (2007) coloca que compreender a tecnologia lítica integrada aos sistemas tecnológicos de uma dada sociedade permite situar a variabilidade observada como uma construção social resultante de escolhas culturais determinadas. Assim, a análise do material lítico é um procedimento que visa estruturar as informações obtidas através do material arqueológico, servindo de base para a reconstrução cultural de um ou de vários grupos (MILLER JR., 1969). Os objetos de pedra são as peças mais numerosas e populares nas coleções arqueológicas reunidas pelos colecionadores, por serem os mais resistentes e vistosos. Para trabalhar esta matéria dura, os homens pré-históricos dispunham de várias técnicas: o polimento, o picoteamento (que podem ser aplicados a qualquer rocha) e o lascamento que apenas se aplica às rochas duras, porém frágeis, como o sílex e o cristal de quartzo (PROUS, 2003). Bibliografia DIAS, Adriana S. Estudo da representatividade de pontas de projétil líticas enquanto marcadores temporais para a Tradição Umbu. Coleção Arqueologia. Porto Alegre: EDIPUCRS, n. 1, vol. 1, pp. 309 - 332, 1996. DIAS, Adriana S. Novas perguntas para um velho problema: escolhas tecnológicas como índices para o estudo de fronteiras e identidades sociais no registro arqueológico. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi, Ciências Humanas, Belém, vol. 3, n. 1, pp. 9 - 26, 2007 A. HADLER, Patricia; DIAS, Adriana Schmidt.; BAUERMANN, Soraia Girardi. Multidisciplinary studies of Southern Brazil Holocene: Archaeological, palynological and paleontological data. Quaternary International, vol. 305, pp. 119 - 126, 2013. JÚNIOR, Heron Werner; SANTOS, J. R. L. dos; FONTES, Ricardo, da Cunha. Feto 3D. In: SANTOS, Jorge Roberto Lopes dos; JÚNIOR, Antonio Bracaglion; AZEVEDO, Sergio Alex; JÚNIOR, Heron Werner (Editores). Tecnologias 3D: desvendando o passado, modelando o futuro. 1a Edição, Rio de Janeiro: Lexixon, 2013, pp. 116 – 123. PROUS, André; BAETA, Alenice; RUBBIOLI, Ezio. O patrimônio arqueológico da região de Matozinhos: conhecer para proteger. Editora do Autor, 2003. SANTOS, Jorge Roberto Lopes dos; JÚNIOR, Antonio Bracaglion; AZEVEDO, Sergio Alex; JÚNIOR, Heron Werner (Editores). Tecnologias 3D: desvendando o passado, modelando o futuro. 1a Edição, Rio de Janeiro: Lexixon, 2013, 248p. SENE, Glaucia Malerba. Caminhos pré-colombianos. 13/05/2013. Disponível em: http:// www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/caminhos-pre-colombianos. Acesso em: 05/02/2014. SILVA, Fábio Pinto da. usinagem de espumas de poliuretano e digitalização tridimensio- nal para fabricação de assentos personalizados para pessoas com deficiência. Tese de doutorado. UFRGS, Porto Alegre, 2011.