1 Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa LEITURAS DO CAOS URBANO NA OBRA DE JOSÉ EMILIO PACHECO Por ANTONIO FERREIRA DA SILVA JÚNIOR Curso de Doutorado em Letras Neolatinas (Estudos Literários, Literaturas Hispânicas) Tese Doutoral submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas. Orientadora: Profa. Dra. Mariluci da Cunha Guberman. FACULDADE DE LETRAS UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Dezembro 2010 2 Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa Título da Tese: Leituras do caos urbano na obra de José Emilio Pacheco Orientadora: Professora Doutora Mariluci da Cunha Guberman (UFRJ) Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas. BANCA EXAMINADORA Profa. Dra. Mariluci da Cunha Guberman (Presidente) Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas Universidade Federal do Rio de Janeiro Profo. Titular Dr. Eduardo de Faria Coutinho Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura Universidade Federal do Rio de Janeiro Profa Dra Sonia Cristina Reis Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas Universidade Federal do Rio de Janeiro Profa Dra Ximena Antonia Díaz Merino Universidade Estadual do Oeste do Paraná Profa Dra Ana Cristina dos Santos Programa de Pós Graduação em Literatura Comparada e Teoria da Literatura Universidade do Estado do Rio de Janeiro Profa Dra Rita de Cássia Miranda Diogo Programa de Pós Graduação em Literatura Comparada e Teoria da Literatura Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Membro suplente Profo. Dr. Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas Universidade Federal do Rio de Janeiro – Membro suplente Rio de Janeiro Dezembro de 2010 3 DEDICATÓRIA Dedico este trabalho a Deus e à minha família: A Deus, pela vida, por acompanhar meus passos e por me atender em todos os momentos. Agradeço por ter colocado pessoas maravilhosas e importantes a meu lado, mesmo aquelas que não estão mais presentes nessa vida. Aos meus pais Antonio e Terezinha, meu tesouro mais precioso. Agradeço por não medirem esforços em minha educação e pelo apoio incondicional a cada nova empreitada. Obrigado por todas as orações e pela companhia em todos os momentos. A vitória é nossa! À minha irmã Michele, pela presença e pela motivação constante durante toda minha vida acadêmica. Ao meu sobrinho e afilhado Lucas, peço desculpas por ter me recusado a brincar ou jogar bola contigo, nos últimos meses, por conta deste estudo. Temos muito tempo pela frente para aproveitar e estudar! Espero que sinta muito orgulho do seu padrinho. Amo vocês!!! 4 DEDICATÓRIA ESPECIAL Querida Orientadora Profa. Dra. Mariluci Guberman, Lembro-me com muita nitidez de uma tarde do mês de junho de 2003 quando estávamos na Faculdade de Letras e eu apresentava o primeiro esboço da análise do poema “Tulum” como resultado de minha pesquisa de Iniciação Científica. Estava nos meus últimos anos de graduação e nem vislumbrava a possibilidade de cursar um Mestrado, quiçá um Doutorado. Nunca pensei que fosse capaz de chegar tão longe. Mas, acho que consegui aos poucos me identificar com o universo envolvente da literatura hispano-americana e isso devo à senhora, Professora Mariluci, pessoa enviada de modo especial por Deus para conduzir meus passos. Saiba que meu trabalho, como professor e pesquisador, se deve a seu ofício apaixonado de educadora. Agradeço todo o conhecimento recebido, o acesso e o empréstimo de livros de seu acervo pessoal, a leitura de meus escritos, o diálogo, a paciência e o carinho de sempre. Na verdade, a caminhada não termina nunca. Espero sempre estar a seu lado aprendendo mais e mais. 5 AGRADECIMENTOS — Ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas/ UFRJ, pelo apoio e acompanhamento durante o curso de Doutorado; — Ao Professor Dr. Eduardo Coutinho, por sua simplicidade e sabedoria. Agradeço sua leitura crítica e detalhada de parte deste estudo por ocasião do Exame de Qualificação. Infelizmente, não tive a oportunidade de ser seu aluno na Graduação, mas tenho a honra de contar com sua presença nesse momento tão importante; — À Professora Dra. Sonia Reis, pelo exemplo de profissionalismo e de dedicação. Agradeço as ricas considerações teóricas para esta pesquisa no momento do Exame de Qualificação e na ajuda na estrutura interna deste estudo; — Ao Professor Dr. Pedro Paulo Catharina, por suas observações precisas nas ocasiões do Colóquio de Pós-Graduação em Letras Neolatinas; — Ao todos os meus professores da Faculdade de Letras/UFRJ, em especial, aos do Departamento de Espanhol e do Departamento de Literatura Hispano-Americana; — Ao Professor Dr. Tanius Karam, da Universidad Autónoma de la Ciudad de México, pelo envio de textos teóricos para este estudo; — À Direção do Centro Federal de Educação Profissional e Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET/RJ), por ter financiado minha presença em diferentes congressos da área, divulgado meus estudos sobre a obra de José Emilio Pacheco. AGRADECIMENTOS ESPECIAIS — Ao Jefferson Lima, que esteve ao meu lado nos últimos anos e me ajudou em minhas dúvidas e descobertas por esse longo caminhar pelas Letras. Agradeço sua motivação; — Ao Leandro Cristóvão, amigo de longa data. Só tenho a agradecer sua presença e sua ajuda em todos meus momentos de desespero; — À Simone Oliveira, pela amizade e pela leitura atenta deste trabalho; — À Viviane Pereira, pelas constantes palavras de apoio e de otimismo; — Aos meus amigos de CEFET/RJ: Alessandra Mitie, Ângela Norte, Bianca Tempone, Carmen Perrotta, Claudia Bichara, Claudia Lopes, Fernanda Rosa, Flávia Dutra, Glória Quelhas, Graça Coelho, Leandro Cristóvão, Kátia Cunha, Silvana Bezerra, Suzana Barroso. Muito obrigado pela torcida! 6 SILVA JÚNIOR, Antonio Ferreira da. Leituras do caos urbano na obra de José Emilio Pacheco. Antonio Ferreira da Silva Júnior. – Rio de Janeiro: UFRJ, 2010. xiv, 422 f.: il.; 30 cm. Orientadora: Mariluci da Cunha Guberman. Tese (Doutorado) – UFRJ / Faculdade de Letras / Programa de PósGraduação em Letras Neolatinas, 2010. Referências bibliográficas: f. 399- 422. 1. Caos. 2. Cidade. 3. Poesia. 4. Narrativa. I. Guberman, Mariluci da Cunha. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas. III. Título. Leituras do caos urbano na obra de José Emilio Pacheco. 7 SINOPSE O processo de criação artística do escritor mexicano José Emilio Pacheco. Estudo da imagem do caos na obra de Pacheco. A transformação das cidades mexicanas, em especial, a capital do país. A cidade caótica e sua representação nas poesias, nos contos, nas minificções e no romance curto selecionados para este estudo. Dilemas da vida moderna problematizados pelo escritor. 8 RESUMO SILVA JÚNIOR, Antonio Ferreira da. Leituras do caos urbano na obra de José Emilio Pacheco. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2010. 422 fl. Mimeo. Tese de Doutorado em Letras Neolatinas, Literaturas Hispânicas. A pesquisa intitulada Leituras do caos urbano na obra de José Emilio Pacheco analisa poemas extraídos das obras Antologia: Fin de siglo y otros poemas (1987), La ciudad de la memoria (1989), El silencio de la luna (1994), El reposo del fuego (1999) e La arena errante (2000); contos e minificções selecionados das coletâneas La sangre de Medusa y otros cuentos marginales (1990), El principio del placer (1997) e El viento distante (2000) e do romance curto Las Batallas en el desierto (1981) do escritor mexicano José Emilio Pacheco (1939), focalizando o discurso simbólico, através das imagens poéticas e narrativas relativas aos dilemas da vida moderna mexicana. Esta pesquisa parte do estudo do processo de criação artística do escritor no contexto das Letras Mexicanas para entender sua obra e sustentar nossa análise crítica dos textos literários. A cidade é o cenário freqüente da obra de Pacheco. A estética moderna nos sinaliza uma cidade caótica e fragmentada, onde os aspectos negativos do sujeito são evidenciados. O caos aparece, neste estudo, como representação de temas decorrentes da vida na cidade moderna: o medo, a violência e a solidão. Partindo desse pressuposto, a proposta desta Tese busca analisar o modo como o escritor constrói a imagem do espaço citadino em sua produção literária. A história tem presença constante na obra do escritor. A nostalgia por uma antiga cidade habitável e inocente comparada à atual, além de uma reflexão constante sobre a identidade mexicana, são algumas das conjeturas que explicam a presença da história na literatura de Pacheco. O desenvolvimento deste estudo se encaminhou para a confirmação da hipótese de que o fio condutor da obra de Pacheco, independente do gênero, representa o desgaste do tempo. Palavras chave: cidade, caos, poesia, narrativa. 9 RESUMEN SILVA JÚNIOR, Antonio Ferreira da. Leituras do caos urbano na obra de José Emilio Pacheco. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2010. 422 fl. Mimeo. Tese de Doutorado em Letras Neolatinas, Literaturas Hispânicas. La investigación titulada Leituras do caos urbano na obra de José Emilio Pacheco analiza poemas extraídos de las obras Antologia: Fin de siglo y otros poemas (1987), La ciudad de la memoria (1989), El silencio de la luna (1994), El reposo del fuego (1999) y La arena errante (2000); cuentos y minificciones seleccionados de las coletáneas La sangre de Medusa y otros cuentos marginales (1990), El principio del placer (1997) y El viento distante (2000) y de la novela corta Las Batallas en el desierto (1981) del escritor mexicano José Emilio Pacheco (1939), teniendo como foco el discurso simbólico, a través de las imágenes poéticas y narrativas relativas a los dilemas de la vida moderna mexicana. Esta investigación parte del estudio del proceso de creación artística del escritor en el contexto de las Letras Mexicanas para comprender su obra y sostener nuestro análisis crítico de los textos literarios. La ciudad es el escenario frecuente de la obra de Pacheco. La estética moderna nos señala una ciudad caótica y fragmentada, donde los aspectos negativos del sujeto se evidencian. El caos aparece, en este estudio, como representación de los temas recurrentes de la vida en la ciudad moderna: el miedo, la violencia y la soledad. Basándonos en ello, la propuesta de esta Tesis busca analizar la manera cómo el escritor construye la imagen del espacio citadino en su producción literaria. La nostalgia por una antigua ciudad habitable e inocente comparada a la actual, además de una reflexión sobre la identidad mexicana, son algunas de las conjeturas que explican la aparición de la historia en la literatura de Pacheco. El desarrollo de este estudio se encaminó para la confirmación de la hipótesis de que el hilo conductor de la obra de Pacheco, independiente del género, representa el desgaste del tiempo. Palabras clave: ciudad, caos, poesía, narrativa. 10 ABSTRACT SILVA JÚNIOR, Antonio Ferreira da. Leituras do caos urbano na obra de José Emilio Pacheco. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2010. 422 fl. Mimeo. Tese de Doutorado em Letras Neolatinas, Literaturas Hispânicas. The study entitled Leituras do caos urbano na obra de José Emilio Pacheco aims at analyzing poems excerpted from the works: Antologia: Fin de siglo y otros poemas (1987), La ciudad de la memoria (1989), El silencio de la luna (1994), El reposo del fuego (1999) and La arena errante (2000); tales and short fiction stories from the selection La sangre de Medusa y otros cuentos marginales (1990), El principio del placer (1997) and El viento distante (2000) as well as the short novel Las Batallas en el desierto (1981) written by the Mexican writer Jose Emilio Pacheco (1939), focusing on the symbolic discourse through poetic images and narratives regarding the dilemmas in Mexican modern life. The research is based on the study of the writer’s process of artistic creation in Mexican arts in order to understand his work and support our critical analysis of literary texts. The city is a recurrent setting of Pacheco’s work. The modern aesthetics signals a chaotic and fragmented city in which the negative aspects of the individual are highlighted. The chaos emerges as the representation of arising themes of life in the modern city such as fear, violence and loneliness. Based on this assumption, the purpose of this study is to analyze how the writer builds the image of the city space in his literary production. History is quite present in his work. The nostalgia for an old, livable and and naive city as well as the constant reflection about Mexican identity are some of the assumptions which may explain the presence of history in Pacheco’s literature. This study develops to confirm the hypothesis that the central aspect of Pacheco’s work, regardless of the genre, represents timeworn. Keywords: city, chaos, poetry, narrative. 11 Ciudad de México se trata de una ciudad cuya complejidad se encuentra constituida no sólo por sus grandes edificios, monumentos o riqueza histórica, también se constituye por un conjunto de imágenes de neón que flotan como nubes sobre las calles fétidas e hiperviolentas, infestadas por sujetos demandantes de derechos, que sus voces se confunden con aquella voz somnolienta que día y noche nos da a conocer los anuncios de una vida urbana postapocalíptica, en la que todos los citadinos luchamos por no perdernos en este labirinto que notoriamente se expresa en la visión de un gigantismo urbano constituido por un pastiche incoherente de paisajes imaginarios. José Luis Cisneros (2008) La vida siempre me desborda y hoy escribo con impaciencia, angustia y mala conciencia. Es hermosa la vida y hace agua por todas partes: muerte, dolor, desesperación. Y qué vacío, qué silencio en medio de tanto ruido. Los sueños y los deseos pudriéndose. El don de la elocuencia y el arte del silencio no son contrarios sino complementarios. […] La función de la literatura no es salvar el mundo sino iluminarlo: darnos la experiencia de otra experiencia aunque sea inútil. José Emilio Pacheco (1966) 12 SUMÁRIO INTRODUÇÃO.....................................................................................14 JOSÉ EMILIO PACHECO E AS LETRAS.....................................................28 I. O CONTO E A POESIA: CAMINHOS FRONTEIRIÇOS DA ARTE DE LER O MUNDO.....................................................................................................44 1.1. O conto hispano-americano: a busca por um conceito..........................49 1.2. A poesia: irmã misteriosa do conto?.......................................................83 II. (RE) LEITURAS DA CIDADE: IMAGENS DO CAOS E DO MAL ESTAR DOS TEMPOS.............................................................................................102 2.1. O discurso fundador da cidade.............................................................107 2.2. Cidade do México: da formação de uma nação à cidade vídeo-clip....117 2.3. As imagens e as vozes da cidade........................................................132 2.4. O caos urbano e o mal estar da (pós) modernidade............................137 III. SUJEITO, CIDADE E EXPERIÊNCIAS URBANAS NA OBRA DE PACHECO...................................................................................................155 3.1. A cidade e o poeta mexicano...............................................................155 3.1.1. O sujeito e a cidade da memória................................................163 3.1.2. A cidade moderna e o poeta.......................................................187 3.1.3. Preocupações de final de século na poesia do escritor..............191 3.1.4. A identidade mexicana no contexto globalizado.........................199 13 3.2. A cidade e o contista mexicano............................................................222 3.2.1. “Tríptico del Gato”: sinais da fragmentação do sujeito moderno no primeiro conto do autor.........................................................................233 3.2.2. Las Batallas en el desierto: México a caminho da Modernidade………………………………………………………………...254 3.2.3. “El viento distante”: a solidão na urbe……..................................305 3.2.4. O medo perante a urbe em “Shelter”..........................................314 3.2.5. O poder das palavras na confissão de “La zarpa”......................331 3.2.6. “La Reina”: representações do sujeito na cidade........................341 3.2.7. “La fiesta brava”: entre a tradição e a modernidade mexicana...............................................................................................355 CONCLUSÃO..............................................................................................388 BIBLIOGRAFIA............................................................................................399 14 INTRODUÇÃO Esta Tese pretende dar continuidade ao estudo desenvolvido em minha Dissertação de Mestrado, sob orientação da Profa. Dra. Mariluci da Cunha Guberman, no qual enfatizamos o substrato histórico e cultural presente na poesia do escritor mexicano José Emilio Pacheco, por meio do olhar do autor direcionado para o espaço citadino e seus problemas sociais. Após levantar o sistema imagético do corpus analisado, sintetizamos, no final da pesquisa, as dores e os lamentos revelados como constituintes da imagem do “caos”, oriunda da desordem da vida moderna. Portanto, nesta nova etapa, procuramos retomar a pesquisa anterior para aprofundar e ampliar nossa discussão e análise. A partir do conceito de cidade caótica (GOMES, 2008), resolvemos analisar como Pacheco representa, principalmente, a capital mexicana em seus textos, tanto poéticos, como narrativos. A obra ensaística do autor ainda não se encontra compilada, contudo, tivemos acesso a alguns desses textos, como também, a entrevistas e a discursos de recebimento de prêmios. Acreditamos que tais textos são de notória importância, porque permitem confrontar o pensamento do escritor com sua obra artística. O escritor, normalmente, traz consigo um discurso fatalista para os acontecimentos ao seu redor e isso se reflete em sua obra literária. Por meio do seu olhar nostálgico e pessimista em relação à cidade e, através do lamento pelos mexicanos, encontramos elementos para elaborar esta pesquisa com o fim último de analisar criticamente sua obra. Optamos, neste estudo, por ampliar o corpus de análise inicial da Dissertação de Mestrado, englobando poemas, poemas em prosa, contos, minificções e romances curtos do escritor, com o objetivo de melhor fundamentar nossa leitura da obra do autor. Pacheco percorreu todos os gêneros literários e afirma que há uma tendência, na literatura contemporânea, ao apagamento dos limites entre os mesmos. O leitor do século XXI e as novas mídias exigem um trabalho diferenciado de criação artística, contribuindo para uma maior “hibridação dos gêneros” (ZAVALA, 2008). No entanto, não defendemos, nesta pesquisa, a quebra das 15 “fronteiras” entre a poesia e a prosa do escritor, muito menos, analisamos seus textos desse modo, mesmo porque a crítica especializada e o mercado editorial ainda não consideram sua unificação. Somente, buscamos, do ponto de vista teórico, encontrar semelhanças entre os gêneros para compreender como se processa o fazer artístico de Pacheco. A partir de leituras teóricas que classificam a Cidade do México como um espaço caótico (CISNEROS, 2008; GARCÍA CANCLINI, 1999), a pergunta de pesquisa condutora deste estudo está em verificar o modo como o escritor constrói a imagem da urbe em sua produção literária. A análise de textos de diferentes gêneros e épocas busca comprovar se a leitura realizada pelo autor se mantém uniforme em toda sua obra. A originalidade da pesquisa está em levantar, no mesmo estudo, detalhes do processo artístico de Pacheco, no campo da poesia e da prosa, além de conceber o mal-estar, o medo, a violência e a redução da comunicabilidade entres os sujeitos, características impostas pela (pós) modernidade1 e apresentadas, em nossa investigação, como desdobramentos do conceito de caos. Vale a pena ressaltar que esta pesquisa é a primeira realizada, no Brasil, sobre a obra literária de José Emilio Pacheco. Acreditamos que esse cenário mude, nos próximos anos, pela divulgação cada vez mais expressiva da produção do escritor, reforçada pelo reconhecimento do mesmo, no ano de 2009, com o Prêmio Cervantes de Literatura (Espanha). A partir do exposto, até esse momento, elaboramos nosso tema de investigação baseado no desejo de analisar a obra de Pacheco, como caracterizadora de um tempo, e esse tempo simbolizando a fugacidade do já vivenciado, a reconquista de novas maneiras de encontrar-se com o mundo e como um tempo de esperança de dias melhores. Logo, este estudo propõe-se a analisar, também, o modo pelo qual o escritor se 1 O termo modernidade constitui-se de um conceito bastante problematizado por alguns teóricos, pois alguns desses acreditam que já vivemos o período da pós-modernidade. Um pouco desta discussão aparece no terceiro capítulo deste estudo. 16 apóia na realidade que o rodeia para a elaboração de seus textos, detectando as marcas de estilo presentes em suas produções artísticas. Ressaltamos, ainda, que a forma como abordamos e analisamos a obra do escritor é uma das possibilidades existentes. A sensibilidade e a imaginação de cada leitor/ crítico da obra são pontos importantes a se considerar na análise de um texto literário. Não há como esgotar todos os sentidos de um texto literário nesta pesquisa. A partir disso, ressaltamos nossa preocupação em escolher uma fundamentação teórica e metodológica que nos desse subsídio para “recriar” os sentidos atribuídos por Pacheco, sem perder de vista que diante de um fenômeno estético, a intuição e a sensibilidade do leitor jogam um papel importante na tentativa de apreensão de significados. O fio condutor de análise deste estudo se estrutura por meio de um enfoque de cunho social, propondo um convite a revisitar as origens do indivíduo mexicano a partir das imagens retratadas por Pacheco em sua obra. Além disso, promove, fundamentalmente, uma reflexão sobre o modo como Pacheco retrata, em seus textos, as questões mais latentes da vida na Cidade do México. O caos, gerado pela globalização, leva os indivíduos a experimentarem a heterogeneidade, vivenciando novas experiências urbanas. O encontro com a identidade do outro também interessa a Pacheco. Pacheco, como poderá ser observado no decorrer desta pesquisa, não se considera como pertencente a um grupo estético específico. Ele representa uma voz própria e autêntica, que ultrapassa todas as correntes de vanguarda e pós-vanguarda, buscando o diálogo com expressões orientais de estilo — que o ajudaram na elaboração de seus aforismos2 — e, ao mesmo tempo, resgata uma tradição greco-latina na busca de ferramentas para a elaboração de textos poéticos em formato de epigramas e/ ou que mesclam certo linguajar épico-utópico. O escritor, em questão, não adere a nenhum movimento estético em particular, pois, segundo ele, há a necessidade de o artista vivenciar vários estilos e com 2 O aforismo é uma frase sentenciosa, um provérbio. Caracteriza-se como uma das formas de expressão literária mais antigas e está presente em todas as culturas, como prova da sabedoria popular ou como testemunho de um determinado mundo ideal ou de uma ideologia. In: MARCHESE & FORRADELLAS (1986). 17 esses formar uma consciência crítica a partir dessa experimentação; por isso, Pacheco acredita que a literatura hispano-americana forma-se em conjunto. Em sua rica produção, o escritor retrata a realidade mexicana, desde o seu passado pré-hispânico até a modernidade. Ambos os panoramas são criados pelo imaginário do escritor, a partir do seu olhar crítico do presente como sujeito conhecedor daquilo que visualiza. Sua literatura emprega referências da história com o intuito de questioná-las e aumentar a participação do leitor em seu texto. O escritor joga com as palavras criando imagens, cuja história enriquece sua ficção. Pacheco entende sua obra como o resultado de um fazer artístico em constante evolução e como um produto aberto ao leitor. Por isso, defende sua participação ativa: ser capaz de interagir com o discurso literário e atribuir novas significações e sentidos para o objeto lido. O leitor desempenha um papel importante ao construir e tecer conexões com a sua própria realidade. Para o estudo da linguagem poética de Pacheco, utilizar-se-á como corpus de análise os livros que perpassam as inúmeras fases de sua vida e que acompanham seu processo de desenvolvimento como escritor e leitor. Ao analisar sua produção, percebemos um desejo de privilegiar sempre o texto; logo, o autor faz uso da técnica da reescritura de certos escritos, para que esses cheguem ao público leitor da melhor maneira possível. Embora um dos temas deste estudo seja a temática do espaço urbano, os livros não se centram somente nessa temática. Todos os livros do corpus apresentam releituras de seus poemas/contos iniciais, o que muito nos instigou a desvendar as várias identidades assumidas pelo escritor ao longo dos tempos e que, através, de experiências e leituras, foram alteradas ou perdidas. Com as palavras anteriores, não afirmamos a existência de um duplo na figura de Pacheco, mesmo porque o autor reconhece seu eterno caminhar para um amadurecimento. Para ele parece ser uma meta difícil de ser alcançada em vida, mas se percebe um escritor capaz de se adaptar ao tempo, 18 renovar seu estilo e repensar o trabalho com a palavra, nunca deixando de enfatizar sua contribuição social. Para o corpus desta pesquisa, selecionamos as seguintes obras de José Emilio Pacheco: Poesia: Antologia Fin de Siglo y otros poemas (1987), coletânea na qual Pacheco reúne poemas de diversos momentos e com diversas linguagens, permitindo ao leitor desfrutar de um amplo universo imagético; El Silencio de la luna (1994), evidenciando uma poesia que ultrapassa a própria linguagem; Ciudad de la memoria (1989), livro que evidencia a carga escatológica do indivíduo mexicano, cujas tragédias nos espaços urbanos e a falta de solidariedade entre os semelhantes, repercute a falta do diálogo entre os seres humanos na vida contemporânea; El reposo del fuego (1999), clássico da literatura mexicana que permite ao indivíduo refletir sobre a sua existência desde o passado destruído de uma civilização até sua contemporaneidade; La arena errante (2000), livro cuja linguagem poética desvenda o interior do homem em sua história pessoal e social. Contos e minificções: La sangre de Medusa y otros cuentos marginales (1990), compilação dos textos iniciais do escritor, cuja temática central gira em torno do choque do sujeito diante da violência da urbe; no prólogo desse livro, o autor recorda nomes importantes da Literatura Mexicana e agradece a oportunidade de poder dialogar com eles em sua obra; El principio del placer (1997), reúne seis contos e um romance curto, cujo foco está no relato das experiências humanas, expressando suas impressões e sofrimentos desde a infância até a 19 velhice; o livro demonstra a luta pela manutenção da cultura nacional diante da invasão cultural norte-americana; El viento distante (2000), coletânea de textos que demonstra a infância como uma fase de descobertas, mistérios e aventuras. Romance curto: Las Batallas en el desierto (1981), que trata do processo de modernização do México, da intensificação dos costumes norteamericanos, das trocas e das experiências do sujeito na imensidão da cidade. Como complemento do material de análise, fazemos uso de ensaios e entrevistas escritas do autor. Em alguns temas, ampliamos o corpus com o auxílio de outros textos, principalmente, poemas em prosa, extraídos de Como la lluvia (2009a) e La edad de las tinieblas (2009b), obras mais recentes do autor cuja discussão central está em retratar o poder, a arrogância, o desejo, a superioridade e a inveja do homem; a cidade como cenário da liquidez dos valores humanos. O primeiro livro traz epigramas, haikús, poemas breves, extensos e em prosa, já o segundo, explora todas as possibilidades do poema: mais líricos, narrativos e ensaísticos. A hibridez genérica presente, nesses últimos livros, pode ser um caminho para a continuidade de nossa pesquisa sobre a obra de Pacheco. Esta pesquisa divide-se em uma parte de estudo sobre a figura de Pacheco como intelectual e sua relação com as Letras Mexicanas e em três capítulos. O primeiro aborda o processo de criação literária e a aparição do conto e da poesia como gêneros e suas proximidades, destacando, ainda, a historiografia literária de ambos os gêneros no cenário hispano-americano, em particular, no contexto do México. O segundo é considerado como o de fundamentação teórica desta pesquisa, pois trata do conceito de cidade e sua relação com o tema do caos. O terceiro apresenta a análise da produção poética e narrativa de Pacheco, enfatizando as experiências urbanas do sujeito mexicano. 20 A primeira seção deste estudo “José Emilio Pacheco e as Letras” mostra o surgimento da figura do escritor no cenário da Literatura Mexicana, sua formação literária, o modo como idealiza sua arte e o direcionamento dado a sua obra, ou melhor, a adoção de uma voz voltada para a reflexão dos fracassos de sua nação mestiça. Apresentamos, principalmente, o contexto intelectual e literário em que se formou o escritor, sendo esse levantamento de grande relevância para inserir o autor entre os mais renomados de seu tempo e de seu país. A carga humanística presente nos textos de Pacheco é construída ao longo de sua carreira como escritor. O reconhecimento do valor de sua obra, por escritores prestigiados da literatura em língua espanhola, mostra-se nítido, como inúmeros prêmios conquistados pelo escritor. O primeiro capítulo intitulado “A poesia e o conto: caminhos fronteiriços da arte de ler o mundo” subdivide-se em duas seções. Esse capítulo fornece ferramentas ao leitor para que compreenda a escolha do corpus da pesquisa e a análise dos textos, realizada no terceiro capítulo do estudo. Pacheco aponta a brevidade como uma característica comum aos dois gêneros, além disso, visualiza outros pontos de semelhança entre ambos. Para o escritor mexicano, a escolha do gênero decorre da necessidade de expressar cada assunto. No sub-capítulo “O conto hispano-americano: a busca por um conceito” realizamos uma investigação sobre esse gênero literário e sua disseminação pela literatura hispano-americana, a partir das leituras de críticos e de contistas, como Anderson Imbert (1999), Marini Palmieri (2002), Carlos Pacheco (1997), Lauro Zavala (2008), Julio Cortázar (1963), Edmundo Valadés (1990) e Jorge Luis Borges (1997). Buscamos compreender as diferentes concepções atribuídas ao conto e à evolução de suas formas com a finalidade de melhor analisá-lo em sua totalidade. Tecemos a trajetória do conto passando pelo olhar dos escritores regionalistas, pelo Modernismo de Rubén Darío e pelas importantes contribuições e inovações da linguagem introduzidas pelo Boom da narrativa hispano-americana. Problematizaremos, ainda, os limites entre o conto e os minicontos, as minificções e o romance curto. 21 O sub-capítulo “A poesia: irmã misteriosa do conto?” traz em seu título uma interrogante originada a partir da leitura de uma afirmação de Cortázar (1963) sobre a origem e a intensidade presente nos dois gêneros. Nessa seção do estudo, pretendemos buscar pontos de aproximação entre os mesmos. Para isso, recorremos aos estudos de Emil Staiger (1974), Sônia Brayner (1979) e Javier Lasarte (1991). Para José Emilio Pacheco (1966), a poesia e a prosa complementam-se e contribuem para sua versatilidade como escritor. Ainda, nessa seção, discutimos a evolução da poesia, em particular no cenário mexicano, e sua presença na vida contemporânea. Buscamos retratar o cenário da poesia mexicana com os movimentos poéticos anteriores ao surgimento da voz crítica e social de Pacheco. As tendências poéticas, desde os anos quarenta, revelam-se aos olhos do leitor na interpretação e na compreensão das temáticas produzidas por Pacheco. Evidenciam-se nesse sub-capítulo, correntes literárias antagônicas e, ao mesmo tempo, tão pertinentes, quando pensadas a partir do minucioso trabalho de criação poética do autor. Inúmeros movimentos somam-se em prol do desejo de retratar o real, ou melhor, de representar o reflexo desse real, gerando certa pluralidade de estilos. O capítulo dois intitula-se “(Re) leituras da cidade: imagens do caos e do mal estar dos tempos” e divide-se em quatro sub-capítulos. Esse capítulo, como um todo, trata da fundamentação teórica que sustentou nossa pesquisa e a análise do corpus do estudo. A cidade transforma-se no objeto central do olhar do sujeito moderno, inclusive, dos escritores hispano-americanos, que a retratam de modo real ou imaginário. Buscamos, neste capítulo, trazer para a discussão a fundação das cidades hispano-americanas até sua contemporaneidade, permitindo que o leitor note as transformações no modo de ler o espaço urbano, através dos tempos. Buscamos estudar como se projetou a cidade hispano-americana e os sentidos que essa recebe. Segundo as idéias de José Luis Romero (2004), toda cidade constitui-se como um espaço de mudanças, trazendo 22 consigo certas ideologias e uma mentalidade urbana. Tais considerações são complementadas pelo aporte teórico de Kevin Lynch (1997), ao propor que o espaço da cidade se comunica com o interior de cada um dos indivíduos presentes na cidade ou que façam parte da própria cidade. Assim, ambos os teóricos contribuíram para se pensar os discursos, as memórias e as imagens que encontramos na história da cidade — vista por seu patrimônio arquitetônico, cultural e nas características de um povo. Por meio dos conceitos de “cidade caótica”, de Renato Cordeiro Gomes (2008), “cidade turbilhão”, de Rafael Argullol (1994) e “cidade video-clip”, de García Canclini (1999), tratamos a Cidade do México como personagem central da literatura de Pacheco. Sua poesia aborda a superposição de espaços (templos, praças, ruas) e da perpetuação de um imaginário indígena na constituição da cidade moderna. Sua prosa emprega o cenário da urbe para ressaltar a desilusão do homem diante da desordem da vida ou dos atos de violência desses sujeitos. Independente do gênero, a obra de Pacheco trata de uma cidade real, cujo conflito e cuja falta de comunicação nas relações sociais acabam por gerar um sentimento caótico. Recorremos ao livro de Gênesis, da Bíblia, e as considerações de Renato Cordeiro Gomes (2008), Mariluci da Cunha Guberman (2008) e Zygmunt Bauman (2008) para fundamentar nosso estudo sobre o caos urbano. Estabelecemos um contato da cidade mexicana contemporânea com a primeira cidade construída por Caim e com outro mito bíblico, o de Babel. Caim ao fundar Enoch, cidade maldição, idealiza um espaço centralizado. No entanto, essa centralização se desfaz pelo fato de a cidade ser um espaço em constante transformação e da necessidade de deslocamento dos sujeitos. O mito bíblico de Babel será ressemantizado na leitura da urbe contemporânea. O medo, a violência e a solidão completam o discurso que interpreta a cidade, sinalizando a confusão e a destruição, já inscritas no mito bíblico. A Babel contemporânea tenta atribuir sentido e homogeneizar as diferentes vozes que formam a cidade. 23 A literatura de Pacheco dota de sentido o mundo transformado em ruína, aquele que não pode mais ser retratado em sua totalidade. A cidade contemporânea congrega outras em seu interior. A partir disso, o caos urbano é visível no processo de construção e reconstrução da urbe, na explosão de grandes catástrofes na humanidade e na falta de diálogo entre os sujeitos. O caos urbano aliado ao medo e à violência provoca o isolamento dos sujeitos, ocasionando a solidão, conseqüência da nova geografia da cidade moderna. O isolamento e a procura por proteção constituem um novo modelo de vida nas grandes metrópoles. Essa se configura de um modo bastante plural, colocando diferentes grupos e classes na convivência lado a lado. O castigo e a maldição, presentes no mito bíblico da cidade fundada por Caim, continuam apresentando-se nos grandes centros urbanos através dos inúmeros problemas ocasionados pela população na busca de ascensão social. O capítulo três “Sujeito, cidade e experiência urbana na obra de Pacheco” está dividido em dois sub-capítulos “A cidade e o poeta mexicano” e “A cidade e o contista mexicano”. Em cada um deles, buscamos apresentar ao leitor a forma como o escritor compreende e desenvolve cada gênero e as temáticas recorrentes em sua produção, dando ênfase ao espaço urbano. Em “A cidade e o poeta mexicano”, apresentamos uma divisão da poética de Pacheco em fases, e essas entendidas como momentos poéticos, com finalidade meramente didática, para um melhor reconhecimento e compreensão das características de estilo do poeta. Não cabe dizer que essas fases se anulam na medida do tempo, porém com esses momentos surgem novos recursos à voz poética de Pacheco, evidenciando uma nova maneira de cantar a poesia mexicana. Esse sub-capítulo divide-se em quatro seções. Observamos os problemas sociais que atormentam o poeta mexicano, levando-o a desvendar as vozes adormecidas do espaço citadino e permitindo que o mesmo desenvolva um olhar crítico na tentativa de compreender o caos instaurado na sociedade contemporânea. 24 Na primeira seção, analisamos poemas que tratam da memória do escritor para o espaço citadino. Pacheco tece comentários sobre o caráter coletivo do espaço da cidade, ao propor espaços híbridos de convivência em sua voz poética. Ainda, nessa seção, por meio do jogo de palavras empregado pelo escritor em seu poema “México: vista aérea”, certas imagens poéticas são cantadas através da arqueologia mexicana, em busca de uma conscientização nacional, recurso utilizado por Pacheco para preservar certa parcela da identidade mexicana. O poeta denuncia fatos e expõe questões que parecem provocá-lo profundamente ao sentir a constante presença do passado de sua civilização. Na segunda seção, nos dedicamos a discutir o valor da linguagem na vida humana, para isso tentaremos compreender e desmembrar o canto poético de Pacheco, apreendendo o árduo trabalho do escritor na busca pela melhor palavra lírica para representar o mundo ao seu redor. As inúmeras influências estéticas, recebidas por outras vozes, são reconhecidas por Pacheco como responsáveis pela formação de sua poesia, ao mesmo tempo, singela e atual. Na terceira seção, buscamos mostrar a maneira como o poeta revela a utopia de seguir vivendo e cantando a diversidade do México. A sensibilidade da palavra poética de Pacheco mostra que só por meio dos seus sentidos mais aguçados consegue perceber as questões que permeiam o imaginário mexicano. A carga dramática de sua poética é sentida e simbolizada como uma possível solução para os novos tempos do México. Na quarta seção, procuramos deter-nos no olhar de compreensão do poeta para as questões contemporâneas do México. Para conseguir esse fim, Pacheco faz uso do seu discurso simbólico para cantar, de modo existencialista, as angústias e os problemas constantes do território mexicano. Desse modo, Pacheco desvenda, por meio de sua palavra poética, novas formas de sociabilidade para indivíduos que compartilham um mesmo espaço público e que podem ser alvo dos problemas da vida moderna. Por meio do lirismo de seus poemas, Pacheco, reconhecendo o discurso de Anthony Giddens, nos revela que o mundo contemporâneo está em pleno descontrole, e a partir disso devemos encontrar a nós 25 mesmos. Para isso, devemos recuperar a nossa identidade coletiva, mais que nunca, por meio de nossas ações em sociedade. Para o entendimento desse tempo da ruptura e da noção de globalização, colocações de Octavio Ianni (2003), Zygmunt Bauman (1999 e 2005) e Manuel Castells (2002) serviram como suporte teórico para a idéia de heterogeneidade e de pluralidade dos tempos, trazida por essa mudança no modo de analisar as questões sociais. Essa transformação de mentalidade liga-se à idéia de tentar compreender o que seria a nossa identidade e como essa se dá no convívio com outras, que encontramos no espaço da cidade. No México, defendemos a posição de que a idéia do nacional se faz cada vez mais reduzida, e, por conseguinte, a identidade vista como unidade fixa é rompida pelos novos discursos da modernidade, levando a um hibridismo de culturas. Para chegar às seguintes conclusões, utilizamos estudos de Néstor García Canclini (1999 e 2000), Pedro Gómez García (1998) e Stuart Hall (2006) sobre a identidade que compartilhamos com os demais sujeitos num espaço de interação. Em “A cidade e o cotista mexicano”, apresentamos como se constrói o universo narrativo criado por Pacheco e alguns pontos de semelhança da figura do escritor como poeta e contista. O sub-capítulo divide-se em sete seções, cujo interesse se resume na análise dos contos, das minificções e do romance curto do escritor, problematizando as ações humanas, responsáveis, em parte, pelos desdobramentos de um ar caótico. Na primeira seção, analisamos “El tríptico del gato”, o primeiro conto publicado por Pacheco o qual podemos classificar como um exemplo de minificção. Destacamos o emprego do elemento “gato” em seu conto, animal da família dos felinos, adotado por outros escritores renomados da literatura universal e o uso da ironia pelo autor. Recorremos aos estudos de Lauro Zavala (1996) e Helena Beristáin (2000) para a compreensão dessa figura retórica. A ironia do conto coloca-se na aproximação das atitudes do felino e do humano. Pacheco denuncia uma sociedade cruel, repleta de maldades e de falta de honestidade. 26 Na segunda seção, analisamos a relação entre a ficção e a história no romance curto Las Batallas en el desierto. O plano de fundo da narrativa é o processo de industrialização e de modernização, iniciados no México a partir do governo do Presidente Miguel Alemán. Pacheco demonstra a massiva presença do poderio norte-americano no contexto mexicano, cujo poder afeta a economia, os costumes culturais locais e, principalmente, a personalidade dos personagens da trama. O romance do escritor faz uma aproximação, em algumas cenas, ao movimento estético do Pop Art, do crítico inglês Lawrence Alloway, para fazer uma referência crítica ao consumismo daquele momento. Buscamos analisar a forma como Pacheco realiza tal diálogo. Na terceira seção, analisamos a minificção “El viento distante”, cujo símbolo do vento alude à recordação de um tempo já vivenciado pelos sujeitos da narrativa. Pacheco aborda a tristeza da sociedade personificada através do sofrimento da personagem em busca da salvação diante da precariedade da vida. Na quarta seção, tecemos a leitura da minificção “Shelter”, a partir dos estudos de Zygmunt Bauman (2009) e de Eduardo Galeano (2008) sobre o tema do medo e de Michel Foucault (2006) sobre a loucura. O sentimento do medo está presente, na sociedade, desde a Grécia Antiga. Na sociedade moderna, todas as pessoas são passíveis de sentir medo e transmiti-lo de inúmeras formas: tristeza, solidão, loucura. Todo o relato centra-se no discurso de um personagem como forma de representar o seu olhar de desespero para a sociedade ao redor. Tanto medo gera-lhe momentos de fuga do real, demonstrando certo desvio psíquico em suas ações. Na quinta seção, realizamos a leitura do conto “La Zarpa”, texto em que se verifica como o tema do poder surge em diferentes âmbitos de nossa esfera social. Por meio das colocações de Michel Foucault (1985), analisamos que o poder é, principalmente, transmitido pela voz de quem toma o centro do discurso. Portanto, todos os sujeitos podem receber o poder, remodelá-lo e transmiti-lo da sua forma. Todo o conto centra-se no discurso de uma personagem como forma de representar seu poder sobre os demais. Analisamos momentos da narrativa capazes de identificar 27 esse poder, que passa pela essência de quem o enuncia. Aliado a isso, tratamos, nessa seção, do gênero confissão, adotado por Pacheco no conto, como intertexto do grande texto. Para o estudo do gênero confissão, recorremos aos estudos da filósofa espanhola María Zambrano (2001) como mecanismo de análise e compreensão desse tipo de enunciação. Na sexta seção, tratamos do conto “La reina”, cuja temática central gira em torno do desejo de uma adolescente em ocupar o posto de rainha do carnaval de sua cidade. O conto acaba por problematizar questões da personalidade da protagonista e, ainda, revela as conturbadas relações de poder e de solidão dentro dos centros urbanos. Apesar de estar numa festa de Carnaval, a figura da protagonista denuncia as identidades solitárias e perdidas no espaço da urbe. O discurso da sociedade capitalista, a superioridade de classes e a sensualidade são outras temáticas discutidas nessa seção. A sétima seção traz a análise do conto “La fiesta brava”, cujo objetivo do autor está em criticar a invasão norte-americana ocorrida no México, geradora de relações de dependência econômica e cultural. Além disso, Pacheco transfere os conflitos sociais ao texto literário, tenta resgatar a história e problematiza suas fases obscuras para projetá-las desde seu olhar e sua verdade. O conto propõe, inclusive, um repensar sobre a escritura e a figura do escritor hispano-americano. O autor chega a uma conclusão, na narrativa, a de que a nostalgia asteca é tida como uma realidade impossível diante dos avanços da sociedade globalizada. Ao final pretendemos evidenciar as idéias principais da pesquisa, como mostrar, também, que ao se estudar um escritor tão significativo, em termos de pensar a realidade mexicana, não se esgotam as possibilidades de leituras de sua obra. Apresentamos a síntese de uma das possibilidades de leitura da tão ampla e diversa obra de José Emilio Pacheco. 28 JOSÉ EMILIO PACHECO E AS LETRAS No sé por qué escribimos Y a veces me pregunto por qué más tarde publicamos lo escrito. Es decir, lanzamos una botella al mar, harto y repleto de basura y botellas con mensajes. Nunca sabremos a quién ni adónde la llevarán las mareas. Lo más probable es que sucumba en la tempestad y el abismo Pacheco (1987, p. 47) (Disponível em: <http://letraslibres.com/pdf/12374.pdf>. Último acesso em 04 out. 2010) Profeta del desastre, aunque para nuestra desgracia las profecías y el pesimismo de José Emilio Pacheco han sido totalmente desbordados por la realidad Elena Poniatowska (1994, p. 18) 29 Segundo o poeta e crítico mexicano José Joaquín Blanco3, os melhores escritores de um país sempre procuram apreender as correntes literárias anteriores, para que, com isso, possam conhecê-las e criar uma nova voz, rompendo assim certa tradição. Porém, nunca haverá totalmente uma ruptura com tais influências anteriores; o que poderá ocorrer, de fato, será uma renovação poética e, portanto, uma aquisição de novos procedimentos estéticos. Nesse contexto literário, especificamente mexicano e ricamente heterogêneo, surge em cena o escritor mexicano José Emilio Pacheco, que por meio de seu discurso, nos mostra uma diversidade de gêneros, que o tornam um autor de difícil classificação para os críticos que se propõem a estudá-lo, evidenciando, desse modo, a exigência de um leitor atento para a compreensão dessas muitas leituras, que encontramos de maneira implícita em sua voz singular. José Emilio Pacheco Berny nasceu na Cidade do México, em 30 de junho de 1939. Sua formação intelectual deu-se em Direito, Filosofia e Letras pela Universidad Autónoma do México (UNAM), o que nos revela uma formação humanística, que podemos comprovar por meio da riqueza ideológica e pelo estilo de suas palavras. Nessa mesma universidade, iniciou suas atividades literárias na revista Medio Siglo. É interessante ressaltarmos a importância das leituras e participação em revistas na trajetória literária do escritor, porque, nessas, encontramos o pensamento de um tempo e o desejo utópico de uma nação expressados pela voz de Pacheco, que analisa e vê diversas realidades para seu país. No México, ambos os movimentos de vanguarda – os Estridentistas em 1921 e a Geração dos Contemporáneos (1928-1931) – desenvolveram boa parte de seus trabalhos literários por meio de suas respectivas revistas, Actual nº 1 e Contemporáneos. Tais revistas4 buscavam retratar, sempre com atualidade, o que também sucedia fora das fronteiras nacionais do México. 3 Apud STANTON (1991, p. 108). Segundo Pacheco (1986, p. 68), “desde el comienzo las revistas mexicanas han sido patrióticas sin cerrarse jamás a la curiosidad por el resto del mundo ni a lo que encuentran digno de admiración en otras literaturas”. 4 30 Desde muito jovem, Pacheco demonstrava interesse pela tarefa de escrever. Esse desejo se iniciou aos quinze anos, quando ganhou de seus avós o romance Quo Vadis?, de Henryk Sienkiewicz, que lhe motivou a continuar a história da trama de uma de suas primeiras leituras5. Ademais, começou a publicar, ainda adolescente, seus escritos em diários estudantis como Proa (1955), e El Diario de Yucatán (1956). A partir desse momento, nunca mais deixou de publicar suas curiosidades literárias, confirmadas pela crítica especializada como grandes ensaios. Pacheco foi secretário de redação da Revista de la Universidad de México e de México en la Cultura, suplemento de Novedades, assim como chefe de redação de La Cultura en México, suplemento de Siempre. Dirigiu também a Biblioteca del Estudiante universitario e, durante os anos de 1970 e 1971, foi bolsista do Centro Mexicano de Escritores, onde pôde ter contato com novas correntes literárias e com novos pensadores como, Juan José Arreola, Jaime García Terrés, Fernando Benítez e Ramón Xirau, que lhe permitiram refletir e repensar sua própria produção intelectual. Suas palavras podem ser admiradas em algumas áreas e gêneros: contos, crônicas, romances, ensaios, roteiros, adaptações cinematográficas, traduções e poesias. No campo da tradução, merecem relevância suas versões de Cómo, de Samuel Beckett, de De Profundis, de Oscar Wilde, de Cuatro cuartetos, de T.S. Eliot e de Un tranvía llamado deseo, de Tennesse Williams. Por meio dessa última, foi prestigiado com o prêmio de melhor tradução da obra, oferecido pela sociedade de críticos teatrais em 1983. Pacheco e seu amigo Carlos Monsiváis, ambos filhos de uma tradição de escritores jornalistas, organizaram o suplemento da revista Estaciones — cujo diretor era o poeta Elías Nandino — mostrando, desde jovem, seu gosto por temas jornalísticos, o que, um pouco mais tarde, 5 No discurso de ingresso ao Colegio Nacional de México, em 1986, Pacheco sinaliza a importância da leitura no ofício do escritor e da literatura como uma arte coletiva: “El ejemplo infantil de Quo Vadis? muestra hasta qué punto uno continúa siempre lo que otros iniciaron. La literatura es la más solitaria y la más colectiva de las artes. Todo lo escribimos entre todos” (PACHECO, 1986, p. 59). 31 mais precisamente a partir de 1976, revela-nos seu compromisso sóciopolítico ao assinar a coluna Inventario, em um jornal mexicano chamado Proceso6. Por mais de três anos, sua coluna contribuiu como uma notável fonte para compreender a história literária mexicana. Seu primeiro romance, Morirás lejos, obteve, em 1968, o Prêmio Magda Donato. Segundo a crítica, sua prosa pode ser comparada ao estilo de Alfonso Reyes pelo emprego de uma linguagem simples, mas, ao mesmo tempo, de leitura difícil. Suas obras constituem grandes desafios para o leitor. Podemos definir ainda as obras de Pacheco como profundas reflexões da realidade mexicana. De acordo com Pacheco (1966): Reyes abrió la posibilidad moderna de escribir en México. Arrojó al surco la semilla para que el campo verdeciera. Todos, hasta quienes no lo leyeron, hemos salido de él; y si nos apartamos es para regresar con mayor fuerza. Su obra es un camino y lo contrario de un camino: nadie puede rechazar su lección ni volver a escribir, a pensar, como antes de Reyes; nadie puede ser Reyes de nuevo, seguir su sombra, porque tras él las aguas se cerraron y no conducen a ninguna parte. A produção em prosa do escritor mexicano compreende o romance citado acima e Las Batallas en el desierto (1981); três livros de contos, La sangre de Medusa (1990), El viento distante (1963) e El principio del placer (1973); obras ensaísticas, “El derecho a la lectura”, “En torno a la cultura nacional” e “Belleza y poesía en el arte popular mexicano”, somente para citar algumas. Sua produção periodística, muito ampla, não se encontra compilada até o presente momento. Não devemos esquecer sua vastíssima produção em versos. O escritor mexicano Vicente Quirarte define Pacheco como um escritor dotado de indiscutível versatilidade em seu trabalho. Segundo o próprio poeta, o conjunto de suas obras se vê 6 O escritor argentino Juan Gelman, ganhador do Prêmio Cervantes 2007, demonstra, em suas palavras, o reconhecimento por esse trabalho de Pacheco: “José Emilio es un narrador admirable, es un crítico profundo y todos extrañamos los textos que solía publicar semanalmente en Proceso. Pero José Emilio es sobre todo y ante todo poeta, un poeta querido, admirado, uno de los poetas más eminentes en lengua española” (MONTAÑOS GARFIAS, 2009). Ao ser homenageado na Feira Internacional del Libro Universitario, no ano de 2009, em Guadalajara, o escritor mexicano comenta sobre a desaparição da poesia dos periódicos e a diminuição dos suplementos literários. 32 como um corpo vivo que nasce, cresce, se aperfeiçoa e está em contínuo processo de mudanças. Notamos, em Pacheco, que sua palavra não se compromete somente a favor de um gênero específico; seu dom em usar a palavra é mostra de talento e revela a amplitude de interesses do escritor. Podemos lembrar aqui o título de um dos seus livros de contos El principio del placer, e fazer uma alusão à palavra como uma mostra fascinante do prazer na vida do poeta. Pacheco entende a palavra como corpo da escritura e, segundo o escritor uruguaio Mario Benedetti, essa é, para o poeta, a base de seu jogo poético, por isso os poetas vivenciam eternamente uma luta constante pela busca da melhor palavra para expressar as realidades que querem retratar. Benedetti (2000, p. 77) afirma que nem sempre os escritores se comprometem em nomear a realidade que constroem. As imagens das palavras não ditas e os sons não pronunciados pelo escritor podem ser compreendidos também no silêncio do mesmo, possivelmente porque, no silêncio, as palavras encontram um espaço nostálgico. Por meio dessa relação do poeta entre seu mundo e a realidade que retrata, conseguimos perceber uma aproximação entre leitor e autor. Para Pacheco, o texto é a forma de comunicação mais íntima que pode ser estabelecida entre duas ou mais pessoas, porque se transforma no lugar do encontro com a experiência alheia. Há uma construção de sentidos pelo autor e pelo leitor, ambos colaboram, portanto, na tessitura do texto. A leitura será sempre um diálogo, uma eterna interação de signos, ditos e não ditos. Na obra de Pacheco, temos o eu poético ou um narrador comprometido com o mundo em que se insere. O escritor reconhece que estamos num mundo da destruição, onde a falta de união e de esperança aumenta a cada dia e, contribuiu para ratificar a nossa história formada de rupturas. Pacheco mostra-nos que acabaremos num mundo do esquecimento generalizado, restando somente o pó do que um dia representamos e fomos como indivíduos. 33 Pacheco conseguiu maior destaque no campo da poesia, à medida que entendia um poema não como um objeto estilizado, mas sim como uma revelação, isto é, que leva o público leitor não só a trabalhar com a sensibilidade, mas também a dialogar com o próprio texto. Para o poeta em questão, cada livro se reescreve quando o leitor o lê. Vemos aqui nitidamente a importância dada pelo poeta ao fato de respeitar a individualidade do leitor, que pode ler certo texto, a partir de suas diversas experiências e leituras de mundo. O escritor mexicano ressalta também a importância da intertextualidade7, que é facilmente percebida em sua produção poética. Pacheco possui uma consciência do uso da intertextualidade em sua obra e das possibilidades de um tema ser novamente discutido por meio da incorporação de novos significados. O autor emprega múltiplos enunciados tomados de outros textos para promover um entrecruzamento de discursos em sua obra. Pacheco (1983) defende ainda o anonimato do autor: […] sobre la base de que uno está siempre plagiando sin querer a los demás. Trato de compensar un poco estas circunstancias mediante los seudónimos, heterónimos y apócrifos. Pero en todo momento bajo una mínima ética: no escribir nunca nada que no firmaría con mi nombre Seus heterônimos8, Julián Hernández e Fernando Tejada, aparecem pela primeira vez no livro No me preguntes cómo pasa el tiempo (1970). Segundo Pacheco, o primeiro deles surgiu no poema “Carta a George B. Moore en defensa del anonimato9”, uma resposta ao 7 Bakhtin (1992) instala a noção de intertextualidade para indicar que a palavra (o discurso) é uma mescla de diferentes textos que dialogam. 8 Verani (1994) comenta, em seu estudo, que a heteronímia não é central na obra de Pacheco, mas sim um reforço a noção da poesia como construção contínua entre o autor e o leitor. 9 Moore era um estudante norte-americano da Universidade de Colorado quando enviou a Pacheco um telegrama com cem perguntas e várias páginas, cujo conteúdo girava em torno do ofício e da poesia de Pacheco. O escritor achou uma descortesia dar uma simples negativa ao pedido do estudante e decidiu respondê-lo em forma de “poema” (VERANI, 1994): “No sé por qué escribimos, querido George. / Y a veces me pregunto por qué más tarde / publicamos lo escrito. Es decir, lanzamos / una botella al mar, harto y repleto / de basura y botellas con mensajes / Y luego: / Porque un domingo / usted me llama de Estes Park, Colorado, / me dice que ha leído cuanto está en la botella / (a través de los mares: nuestras dos lenguas) / y quiere hacerme una entrevista /Después recibo un telegrama inmenso […] En vez de responderle o dejarlo en silencio / se me 34 escritor norte-americano que desejava entrevistá-lo10. Ao afirmar que “la poesía no es de nadie: se hace entre todos”, o autor defende a abolição dos conceitos de autor e de autoria da obra ao mencionar: “Llamo poesía a ese lugar del encuentro/ con la experiencia ajena. El lector, la lectora/ harán, o no, el poema que tan sólo he esbozado” (PACHECO, 1987, p. 46). Pacheco defende a existência de uma autoria coletiva, que ocorre na atribuição de sentidos pelo leitor. Como Jorge Luis Borges, Pacheco entende o ato da escritura como um trabalho infinito, em que escrever pressupõe voltar a escrever sobre algo já produzido ou mencionado. Ele compreende o texto como o produto da interpenetração de diversos discursos: do presente e do passado. Pacheco pratica a reescritura em sua obra, porque não acredita na noção de texto como um produto concluído11, além disso, se preocupa em oferecer uma melhor qualidade dos escritos ao seu público leitor. O escritor dominicano Juan Bosch entende tal postura como a daquele que domina todas as técnicas da escrita e é capaz de iluminar o ocurrieron estos versos. No es un poema / no aspira al privilegio de la poesía / (no es voluntaria. (PACHECO, 1987, p. 45). No fragmento anterior, o autor define seu conceito de poesia e possibilita nossa compreensão da linguagem empregada em seu texto. Os limites entre a prosa e a poesia são problematizados pelo uso coloquial da linguagem. 10 Pacheco demonstra claramente seu desagrado em ser entrevistado. Numa entrevista a Hernán Bravo Varela (2009, p. 68) disse “Leo con enorme interés las entrevistas ajenas. El problema es que no sirvo para ellas. Necesito ver las palabras para enterarme de qué estoy diciendo. No tengo la menor facilidad de expresión oral. Y si me pongo a contestar por escrito lo que me preguntan, ¿a qué horas leo y trabajo cuando ya cada día tengo menos tiempo en todos los sentidos? Hay autores muy interesantes como persona. No soy uno de ellos. Por lo demás, detesto escucharme y verme en fotos y videos” (BRAVO VARELA, 2009, p. 68). Suas palavras nos revelam um dado curioso: a dificuldade de se expressar de modo espontâneo em público. Além disso, sua preocupação com a palavra escrita. O escritor critica os recursos tecnológicos porque sabe que modificam a forma como se apresenta a linguagem escrita e, de certa maneira, a noção de literatura e de leitor. Pacheco complementa “Tengo plena conciencia de ser, insisto, un pésimo lector en voz alta. Escucho, eso sí, muy bien en silencio y no me gustan que declamen mis poemas […] De modo que estoy perdido en el mundo de los medios y al mismo tiempo no puedo esquivar mi participación de ellos” (BRAVO VARELA, 2009, p. 71). No discurso de recebimento do Prêmio Cervantes, o escritor aproveita para criticar o uso das novas tecnologias ao mencionar: “Como todo, Internet es al mismo tiempo la cámara de los horrores y el retablo de las maravillas” (PACHECO, 2009c). 11 Sabemos que existem teóricos defensores da obra literária aberta, aquela cujo leitor participa na construção de seus sentidos. Umberto Eco defende que o leitor colabora com o escritor, desde que esse permita sua participação. Anderson Imbert (1999), num estudo dedicado ao conto aberto, faz uma crítica à forma do mesmo. Ao mencionarmos “texto concluído”, não queremos criticar a idéia do diálogo de qualquer texto com o público leitor. 35 texto com um toque particular de personalidade. O escritor norte- americano William Faulkner, em uma entrevista, também expressa sua opinião sobre o processo de (re) criação literária: [...] se eu pudesse escrever toda a minha obra de novo, tenho certeza de que faria melhor, o que é a condição mais saudável para um artista. É para isso que ele continua trabalhando, tentando de novo; ele acredita sempre que dessa vez irá conseguir, irá realizar o que quer. [...] Não se deve estar nunca satisfeito com o que se faz. Nunca está tão bom quanto seria possível. Sempre sonhe e mire acima daquilo que você sabe que pode fazer. Não se preocupe apenas em ser melhor que os seus contemporâneos ou predecessores. Tente ser melhor do que você mesmo. Um artista é uma criatura arrastada por demônios. Não sabe por que o escolheram e normalmente está ocupado demais para se perguntar isso. (REVIEW, 1988) As palavras de Faulkner corroboram o trabalho de constante (re) criação adotado por Pacheco12. O ato da criação literária nada mais seria que uma revisão e recapitulação de discursos pré-existentes em outros momentos. Nunca temos uma repetição ou plágio total de discursos, pois sendo a literatura uma arte, permite leituras diversificadas do mundo, conseqüentemente, de fatos que se cruzam com a experiência do outro. Além disso, todo escritor está preso a um tempo, buscando direcionar seu olhar para a realidade que lhe tocou presenciar ou imaginar. Por ser um escritor e leitor de diversos gêneros literários, Pacheco pôde ter sua experiência reconhecida em alguns desses pelo recebimento de diversos prêmios, que o fazem ser reconhecido cada vez mais no campo das Letras Hispânicas. Pacheco, desde o início de sua trajetória literária, surpreendeu grandes escritores, como Octavio Paz, que o elogiava pela força de seu pessimismo, e o peruano Mario Vargas Llosa, que, em 1964, escreve no periódico El Expreso de Lima sobre seu encanto e entusiasmo para com as poesias do escritor mexicano, colocando-o no mesmo patamar de 12 Pacheco acredita que o trabalho de um escritor se constrói, se adapta e se molda no decorrer de sua atividade, conforme opina: “Elegí ser escritor y a estas alturas aún soy un aprendiz que no sabe nada de su trabajo y para quien cada página es de nuevo la primera y puede ser la última” (PACHECO, 1986, p. 59). 36 intelectuais como Alfonso Reyes, José Gorostiza e Octavio Paz, completando o rico quadro da literatura mexicana. Essa literatura, que flui à medida que a lemos e nos identificamos com os inúmeros fatos históricos e inúmeros sentimentos que são cantados, rendeu vários prêmios ao escritor, como o Magda Donato (1967), por seu romance Morirás lejos; Aguascalientes (1969); o Premio Nacional de Poesía (1969) pelo livro No me preguntes cómo pasa el tiempo; Xavier Villaurrutia (1973), por seu livro El Principio del placer; Nacional de Periodismo Literario (1980) no México, El Iberoamericano de Letras no Chile; Malcolm Lowry, de ensaio (1991) e Nacional de Linguística y Literatura (1991) no México. Ao receber o Premio José Asunción Silva, em 1996, da Casa de Poesía Silva de Bogotá, em homenagem ao centenário da morte do poeta colombiano, Pacheco teve as portas do universo hispânico abertas. Dessa forma, o recebimento de outro prêmio de renomado prestígio como este permitiu seu maior reconhecimento. Seu livro El Silencio de la luna foi considerado, por uma banca de renomados nomes das letras hispânicas, o melhor livro de poesia em língua espanhola no período de 1990 a 1995. Esse trabalho retrata, de forma nítida, a realidade de seu tempo, ao mesmo tempo em que mostra uma possível mudança para essa realidade, colocando em cena novas formas de viver o tempo. Segundo o poeta colombiano Darío Jaramillo, um dos jurados do prêmio, em Pacheco temos: Uma poesia sem limites na linguagem, que estende as fronteiras da percepção, poesia de todos, para todos, ato compartilhado de descobrimento inesperado, de crueldade e explícita revelação do incompreensível tempo, da história cotidiana que o poeta nomeia com lucidez e com o desconcerto 13 de quem é igual a todos . O reconhecimento de sua trajetória intelectual e o desejo de dialogar com diversas tradições estéticas renderam a Pacheco, no ano de 13 “Una poesía sin límites en el lenguaje, que extiende las fronteras de la percepción, poesía de todos, para todos, acto compartido de descubrimiento despiadado, de cruel y explícita revelación del inasible tiempo, de la historia cotidiana que el poeta nombra con lucidez y con el desconcierto de quien es igual a todos”. In: PACHECO (1994) [Tradução nossa]. 37 2002, o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Veracruzana, concedido pela equipe de jurados formada pelo historiador e grande pensador José Luis Martínez, pelo escritor e crítico espanhol Manuel Durán, pelo crítico e pesquisador do El Colegio de México, Anthony Staton, e pelos poetas José Luis Rivas e Tedi López Mills. Outro prêmio dado ao escritor foi o VI Premio Internacional Octavio Paz de Poesía y Ensayo outorgado pela Asociación Civil Amigos de Octavio Paz em 2003. Na noite de entrega desse prêmio, acompanhado do escritor Rodolfo Castañón, Pacheco pôde ler alguns de seus poemas. Ele comentou, com o público presente, sobre seus estudos literários iniciais e sua visão a respeito de diversos assuntos que atingem a sociedade. O escritor recebeu esse reconhecimento exatamente no mesmo ano em que seu primeiro livro de poesias — Los elementos de la noche (1963) — completava quarenta anos de existência. No momento de recebimento do prêmio, Pacheco deixou clara a importância da palavra na vida do homem e, portanto, da renovação poética de um escritor: La poesía mantiene viva la lengua, la pone en circulación y la somete a prueba. Si esa lengua se paraliza o se degrada, la barbarie y la violencia llenan su vacío. Sin esa lengua no hay diálogo, no hay polémica, no hay instrucción posible, no hay arte, ciencia ni cultura, no hay futuro. Ocupa el porvenir el corazón de las tinieblas. Se abre a nuestros pies el abismo que 14 nos rodea por todas partes . Por meio de suas palavras, percebemos o desejo latente do poeta em lutar pelas questões humanísticas de seu país. Pacheco mostra, ao México, o verdadeiro papel democrático que cada artista ou intelectual deve ter como compromisso para com seu povo. Num mundo dominado pela violência e pela injustiça, o escritor reforça o papel do intelectual a partir de suas palavras: ¿Qué puede hacer el escritor en un mundo en que millones de seres mueren de hambre, y otros son incinerados en los arrozales de Vietnam, y otros se suicidan al no resistir las tensiones de una sociedad tecnológica cuyo fin es la abundancia de objetos que cosifican y enajenan? (PACHECO, 1966) 14 PACHECO. “Un mayor acceso a la lectura mejoraría la realidad social”. In: <www.lafogata.org/libros-mayor.htm>. Último acesso em: 20 dez. 2009. 38 O presidente mexicano Vicente Fox Quesada, ao participar da referida cerimônia, elogiou o amor de Pacheco pelo México e por sua cidade natal, cantada tantas vezes em sua produção e comentou: Sua consciência da necessidade de construir uma muralha contra a violência e destruição converteu-o em um defensor dos valores mais importantes do ser humano. José Emilio Pacheco é um humanista sempre disposto a defender com sua 15 palavra as melhores causas do México e do mundo . Sentimos, por essas palavras, a gratidão do presidente mexicano para com o poeta, o qual está tão presente na cultura e tradição de seu povo. Por outro lado, o governante amplia o universo de Pacheco, ao dizer que o escritor também contribui, por meio de sua obra, para análise de certas questões de âmbito mundial. Apesar de ter mencionado que “es un chantaje exigir de las letras y los escritores lo que nadie se atreve a esperar de los otros hombres ni de Dios” (PACHECO, 1966), o escritor atribui um sentido ético16 a sua escrita, com base numa concepção estética de pensar a arte como uma saída para a transformação de nossas sociedades. Como Pacheco deixa claro em seu ensaio “Nota sobre la otra vanguardia” (1971), cabe, ao processo de escritura, preencher os espaços vazios na mente e na vida do indivíduo. Um leitor atento 15 “Su conciencia de la necesidad de construir una muralla contra la violencia y la destrucción, lo ha convertido en un defensor de los valores más importantes del ser humano. José Emilio Pacheco es un humanista siempre dispuesto a defender con su palabra las mejores causas de México y del mundo”. In: <www.letralia.com/97/notic097.htm>. Último acesso em: 25 dez. 2009. [Tradução nossa]. 16 A ética da escritura adotada por Pacheco pode ter uma explicação familiar, mais especificamente em seu pai, José María Pacheco. Seu pai, um general do Ministério Público Militar, recusa-se a redigir e assinar uma ata contrária aos ideais do grupo de civis a que pertencia e representava. O presidente Plutarco Elías Calles e o secretário de Guerra, Joaquín Amaro, intimidaram-no a escrever, caso contrário, o fuzilariam. María Pacheco preferiu cumprir com seus princípios, mas acabou pagando com a vida. Calles foi presidente no México no período de 1924 a 1928 e fundador do Partido Nacional Republicano (PNR) antecessor do Partido Revolucionário Institucional (PRI). A autoria de outros assassinatos desta época também é atribuída a Calles, inclusive, a do presidente antecessor, Álvaro Obregón, em 1928, ano em que ele assumiria novamente à presidência do país. Pensamos que Pacheco possa ter se valido desse exemplo de heroísmo paterno para assumir um tom ético e provocador em seus textos. O tom melancólico de seu discurso explica-se pela falta de idealismos e heroísmos na sociedade. Sua obra resume-se numa poética da desolação, restando, somente, o pessimismo diante da barbárie humana. 39 reconhece, nesse pensamento do autor, certa leitura de Octavio Paz. Pacheco (1966) expressou publicamente sua dívida ao mestre: Mi deuda hacia Paz no tiene término y crece a cada nuevo libro que publica. Su poesía y su prosa han hecho que comience el descubrimiento de lo que quiero decir; me han iluminado, para decirlo con una palabra que le es grata. A partir da amizade e das trocas intelectuais entre Pacheco e Paz, escritores de gerações diferentes, o escritor Castañón ressaltou, entre eles, uma visível semelhança no que diz respeito à trajetória e ao estilo literários: Emilio é um homem das letras, que desenvolveu não somente o romance e a poesia, mas também o conto, o ensaio, a vinheta, o teatro, a tradução e inclusive o aforismo. Em sua obra, igual à de Paz, existe uma clara relação da consciência ética com a estética. Também existe, em seus textos, um ouvido atento, assim como uma espontaneidade e valor para 17 lançar a moeda da palavra no ar . Pelas palavras de Castañón, podemos entender que tanto Pacheco como Paz consideram a prática da poesia como uma força que pode ir além de si mesma e ultrapassar uma simples reflexão teórica em direção a um entendimento do mundo. Essa preocupação ética relacionada à estética de sua voz poética dá-se em Pacheco por sua maneira de empregar a palavra, de modo que, ao lê-las, compreendemos as características do escritor, como, principalmente, as muitas leituras realizadas por ele no seu processo de autoconhecimento. Ainda em 2003, Pacheco recebe o Premio Iberoamericano de Poesía Ramón López Velarde, da Universidad Autónoma de Zacatecas e o Premio Internacional Alfonso Reyes pelo reconhecimento ao seu papel de grande difusor da cultura latino-americana no estrangeiro. O poeta mexicano Alí Chumacero, presidente da Sociedade Alfonsina Internacional, encontra, na poética de Pacheco, um predomínio de formas 17 “Emilio es un hombre de letras que ha desarrollado no sólo la novela y la poesía, sino el cuento, el ensayo, la viñeta, el teatro, la traducción e incluso el aforismo. En su obra, al igual que en la de Paz, hay una clara relación de la conciencia ética con la estética. También existe en sus textos un oído feliz, así como una espontaneidad y valor para lanzar la moneda de la palabra al aire”. In: <www.conaculta.gob.mx/saladeprensa/2003/28jul/pacheco.htm>. Último acesso em: 20 dez. 2009. [Tradução nossa]. 40 clássicas e modernas, capazes de evidenciar a profunda paixão por literatura e uma vida dedicada às letras. Em outubro de 2004, o poeta recebeu o Premio Iberoamericano de Letras José Donoso por seu destaque como um dos escritores mais significativos da língua espanhola. Também, em julho do mesmo ano, o poeta recebeu das mãos do presidente chileno Ricardo Lagos o Premio Iberoamericano de Poesía Pablo Neruda, entregue pela primeira vez em comemoração ao centenário de nascimento do poeta chileno e Prêmio Nobel de Literatura. Segundo as palavras do presidente chileno: O prêmio a Pacheco é um reconhecimento a sua extraordinária competência técnica e capacidade para dialogar com as formas mais vitais da literatura contemporânea. [...] José Emilio Pacheco é um poeta tão universal como mexicano, e por sua vez latino-americano. Sua poesia indaga no passado e no presente. Resgata a memória dos poetas maias e, através deles, nos mostra, sob outra luz, uma luz reveladora que tem relação com a história 18 de nosso continente . Por meio das palavras de Lagos, percebemos quanto é importante a capacidade de Pacheco em dialogar com demais autores da Literatura em língua castelhana. Esse prêmio revela o reconhecimento ao difícil trabalho do escritor em usar a palavra como ferramenta e verbo para repassar suas ideologias e sensações. Pacheco foi professor catedrático em várias universidades do México, Estados Unidos, Canadá e Inglaterra. Participa como pesquisador do Centro de Estudos Históricos do Instituto Nacional de Antropologia e História (INAH) sobre aspectos da cultura nacional e temas relacionados à arte da poesia popular mexicana. É especialista em Literatura Mexicana do século XIX, e é membro, desde 1986, de El Colegio Nacional de México, onde, desde jovem, foi preparado para dialogar com a história literária mexicana. 18 Disponível em: <www.conaculta.gob.mx/saladeprensa/2003/28jul/pacheco.htm>. Último acesso em 26. Set. 2010. 41 Ao pensar a trajetória de Pacheco, Roberto Fernández Retamar19 analisa que o escritor não estabeleceu raízes mais fortes em nenhum movimento dos diversos caminhos literários. O crítico cubano observa que esses ajudaram a Pacheco a vivenciar novas experiências e, portanto, nos afirma que a América Hispânica faz-se em conjunto. Não há como renegar totalmente certas tradições anteriores, já que cada indivíduo é um resultado de diversas leituras e, a partir dessas, constrói seu pensamento e se expõe ao mundo. Uma prova da união de correntes opostas evidencia-se na antologia mexicana — da qual Pacheco contribui com sua voz poética — Poesía en Movimiento. México 1915-1966. Nessa, Octavio Paz reforça, por meio de seu prólogo, que a união de diferentes gerações só contribui para uma atitude renovadora no campo das Letras Mexicanas. Paz expõe a junção dos movimentos Estridentista e Contemporáneos, como correntes poéticas dos anos 40 e 50, e como representação da poética dos anos 60; mostra-nos a corrente cultista, e por outro lado, a sentimental. Essa antologia publicada em 1966 revela esse novo olhar sobre a poesia mexicana, uma poesia que respeita o jogo de diversas linguagens na busca de uma maior exaltação do estilo e temáticas a serem abordadas. Ao analisar a produção de Pacheco, percebemos algumas características de estilo, que nos fazem identificar diversos representantes da literatura contemporânea mexicana, como também autores fora do âmbito de seu país. Pacheco reconhece, em sua poética, a influência de inúmeras correntes: La historia literaria se escribe en términos militares. Se habla mucho de las pugnas intergeneracionales, en todo caso no menos agudas que los conflictos en el interior de un mismo grupo de edad. Todo ello existe y sería vano negarlo. Pero igualmente cierto es que nadie trabaja aislado: debe tanto a los poetas que lo precedieron como a sus contemporáneos y a los que vienen después. Son muchos aquellos y aquellas de quienes he aprendido y continúo aprendiendo. Me duele no 19 FERNÁNDEZ RETAMAR, Roberto. “Prólogo”. In: PACHECO, José Emilio. Antologia: Fin de siglo y otros poemas. Cuba; La Habana: Casa de las Américas, 1987, p.7-10. 42 expresarles mi agradecimiento en esta página (FERNÁNDEZ RETAMAR, p. 9). Por suas palavras, notamos claramente a idéia de que não há divisões ao se pensar em Literatura, não podemos negar a contribuição de outros pensadores, principalmente na construção do saber, em que há o compromisso e o desejo de cada um em retratar, de modo mais fiel, a complexa sociedade de seu país. Em 2005, Pacheco obteve o Premio Internacional de Poesía Federico García Lorca, pelo Ayuntamiento de Granada. No ano de 200920, ao cumprir 70 anos de idade, o escritor novamente é premiado com o Reina Sofía de Poesía Iberoamericana21, da Universidad de Salamanca e, em dezembro desse ano, recebe o maior reconhecimento das Letras Hispânicas, o Premio de Literatura en Lengua Castellana Miguel de Cervantes22, do Ministério de Cultura da Espanha, já recebido por 20 Nesse mesmo ano, Pacheco recebe o segundo título de Doctor Honoris Causa outorgado pela Universidad Autónoma de Nuevo León (UANL). A editora Fondo de Cultura Económica (FCE) organiza em sua homenagem a exposição “El tiempo que pasa. José Emilio Pacheco. 70 años”, com a assessoria de uma de suas filhas, na livraria Rosario Castellanos, na Cidade do México. A mostra reuniu fotos, textos, cartas e livros do autor de diferentes edições. 21 Em seu discurso, Pacheco reafirma um pensamento latente em toda sua obra: o reconhecimento pelos escritores precedentes. Ele mesmo expressa: “No soy sino un eslabón muy pequeño, un eslabón más, de la cadena que empezó hace mil años y que quizá no termine nunca”. O autor destaca ainda, em seu discurso, a fome, as injustiças sociais e a violência em todo o planeta, em especial em seu país. Ao ser questionado sobre o futuro, o escritor expõe: “[...] No tengo ninguna ilusión ni esperanza de supervivencia y esto me parece un destino deseable […] Sólo se me ocurre que escribimos poesía porque es una forma de resistencia contra la barbarie”. Nesse momento, destaca as imagens do caos do ano de 2009: “[…] En el tiempo de todas las crisis y todas las desgracias, del virus al incendio – iba a decir el crimen – de la guardería de Hermosillo, del desastre económico, de las batallas en Acapulco”. Pacheco afirmou que seu país viveu, no ano de 2009, uma situação muito próxima a “de película más parecida al Apocalipsis con todos los restaurantes, cines y comercios cerrados”. (MONTAÑOS GARFIAS, 2009). 22 Em seu discurso oficial de recebimento do Prêmio Cervantes, Pacheco (2009c) resgata o momento de sua aproximação, ainda criança, ao universo quixotesco. O autor relata a descoberta de outra realidade, chamada de ficção, a partir do momento em que assiste a uma apresentação teatral de El Quijote, no Palacio de Bellas Artes, adaptada e dirigida pelo escritor mexicano Salvador Novo. Novo pertenceu a La Generación de los Contemporáneos, um grupo literário equivalente a Generación del 27, da Espanha. As palavras de Pacheco demonstram seu encanto e entusiasmo diante dessa nova realidade: “Me es revelado también que mi habla de todos los días, la lengua en que nací y constituye mi única riqueza, puede ser para quien sepa emplearla algo semejante a la música del espectáculo, los colores de la ropa y de las casas que iluminan el escenario […] He entrado sin saberlo en lo que Carlos Fuentes define como el territorio de La Mancha. Ya nunca voy a abandonarlo”. Pacheco identifica em El Quijote a carga de sofrimentos vivida por Cervantes quando menciona: “No hay en la literatura española una vida más llena de humillaciones y fracasos. Se dirá que gracias a esto hizo su obra maestra. El Quijote es muchas cosas pero es también la venganza contra todo lo que 43 grandes nomes da literatura hispano-americana, entre eles, citamos Octavio Paz, Juan Rulfo, Carlos Fuentes, Dulce María Loynaz, Juan Gelman23 e outros. Ao tomar conhecimento da premiação24 deste último, Pacheco relata “Quiero dejar claro que este premio es para toda la literatura mexicana, que no sale mucho de nuestras fronteras”. Quando questionado sobre sua obra, o escritor afirma: Escribo sobre lo que veo y lo que veo no es para sentirse optimista. Ahora hay un nuevo matiz que no existía antes, una crueldad nueva […] Ahora aparecen los niños quemados vivos o un hombre decapitado al que le sacan los ojos, es mostruoso. Es de una impotencia terrible, yo creo que no soy pesimista, 25 que con los seres humanos me quedé corto . Suas palavras expressam nitidamente o sentimento de medo e de destruição vivenciado pela sociedade mexicana nos últimos anos, situação essa aproveitada pelo escritor para a construção do seu processo de criação literária. Cervantes sufrió hasta el último día de su existencia […] Me parece muy triste cuanto le sucede. Nadie puede sacarme de esta visión doliente”. 23 Juan Gelman define Pacheco como “un poeta excepcional de la vida cotidiana [...] por su capacidad de crear un mundo propio y el distanciamiento irónico de la realidad […] es una figura intelectual que no se repite mucho en América Latina, porque a sus dotes de poeta une las de narrador, crítico y periodista, todo eso sostenido por una cultura enorme y afinada” (FRIERA, 2009). No poema “Contraelegía” (PACHECO, 1987, p. 113), os versos de Pacheco possibilitam o nosso entendimento desse espaço poético particular aludido por Gelman: “Mi único tema es lo que ya no está. / Sólo parezco hablar de lo perdido. / Mi punzante estribillo es nunca más”. 24 Pacheco (2009c) descreve em seu discurso esse momento: “Al amanecer del lunes 30 la voz de la Señora Ministra de Cultura, Doña Ángeles González Sinde, me dio la noticia y me hundió en una irrealidad quijotesca de la que aún no despierto”. 25 Disponível em: <www.elpais.com>. Último acesso em: 01 dez. 2009. 44 I. O CONTO E A POESIA: CAMINHOS FRONTEIRIÇOS DA ARTE DE LER O MUNDO El escritor debe utilizar palabras exactas, precisas, efectivas, que signifiquen exactamente lo que se quiere decir. Conseguir contar una historia con tan pocas palabras es una labor de expertos, de conocedores del lenguaje, de rigor extremo en el uso de las palabras. Violeta Rojo (1997, p. 525) Acredito que há duas formas de fazer literatura: há os que contam uma história e há os que escrevem uma história. Ambas as formas são válidas e produzem excelente literatura (só a título de exemplo), Érico Veríssimo e Guimarães Rosa; Hemingway e Faulkner; Dickens e Joyce, Balzac e Proust). Para mim, a linguagem é fundamental, pois todas as histórias já foram contadas. O que as diferencia é a maneira de contar. Luiz Ruffato (2007) Nesta seção, não é nosso objetivo aprofundar e direcionar a pesquisa para o caminho percorrido pela poesia e pela prosa (contística) no cenário latino-americano, ou ainda, no México, mas sim permitir que o leitor compreenda que são questões amplamente discutidas e problematizadas desde os estudos da antiguidade clássica e que ganharam novas leituras e suposições no decorrer do tempo. Neste estudo, esperamos direcionar nossa discussão para o desenvolvimento e o andamento desses gêneros na vida literária de Pacheco ao tempo que para o escritor os mesmos são bastante fronteiriços. Sabemos o quão amplas são as discussões que envolvem a poesia e o conto, porém nosso recorte buscou pontuar os elementos necessários para pensá-los e argumentá-los dentro do corpus selecionado para esta tese. A busca de uma linguagem específica é uma necessidade intrínseca a cada escritor. O ato de escritura para Pacheco compreende um retorno constante ao já dito, mas essa linguagem recebe novos contornos e sentidos com a classificação polêmica dos textos em modelos pré-estabelecidos e reconhecidos pela crítica na produção do escritor mexicano, entre eles, 45 citamos: o poema em prosa, o miniconto, a minificção, a novela corta26 e outros. Os primeiros indícios de uma divisão da literatura em gêneros, tais como o épico, o lírico e o dramático, encontram-se nos estudos do filósofo grego Platão, já Aristóteles estabelece um estudo sistemático dos gêneros e tipologias em sua Poética. Apesar disso, a teoria clássica dos gêneros muito simplificava o ato de criação e a classificação dos demais textos, pois, a título de exemplificação, textos da literatura oriental e ocidental, como o ensaio e o romance, não encontravam denominação. Tal formalização foi moldando-se e completando-se no decorrer dos séculos e recebendo críticas daqueles que não compactuavam com a idéia da existência dos gêneros. Para exemplificar algumas dessas visões díspares em relação à configuração e à materialidade dos textos, citamos os preceptores do Renascimento italiano, do Classicismo francês e do Cientificismo do século XIX, cujo pensamento mostrava que cabia, aos gêneros, conduzir o trabalho de criação literária do artista. As leis e os dogmas dos mesmos ditavam as sanções e os caminhos a serem seguidos pelo escritor. Do outro lado, destacamos o posicionamento do filósofo e historiador italiano Benedetto Croce, contrário à posição dos preceptores, que defendia a obra literária como mostra de expressão individual do seu criador. Para Croce, os gêneros não existem e não podemos deduzi-los no trabalho de criação artística. Ele acrescenta, ainda, que ao limitar a obra literária à noção do gênero, estamos abandonando a estética em detrimento da lógica (apud ANDERSON IMBERT, 1997). 26 Optamos, neste estudo, por manter a denominação em espanhol, pelo menos nessa primeira parte, por acreditar que a tradução descaracterizaria esse gênero tão peculiar. Segundo Anderson Imbert (1997, p. 355), “a veces nos sobran palabras para designar la misma forma; a veces, por el contrario, nos encontramos con que una forma ha quedado sin bautizo. En este caso uno se siente tentado de traducir o de adoptar los términos más adecuados de lenguas extranjeras […] No siempre se acierta porque el sistema de clasificar que determinada lengua ha hecho posible no puede saquearse: un término está en función de otro y tomarlo sin tener en cuenta el sistema es desvirtuar su significación”. Como exemplo para ilustrar essa transposição na tradução dos termos, podemos citar o nome “romanz” ou “romance”, empregado pelos países de origem latina. Ao se separarem em línguas nacionais, o francês adota os termos como referência às narrações em prosa, mas o espanhol no sentido de composições épico-líricas. 46 Acreditamos que não se pode negar a existência e a classificação das inúmeras obras existentes em gêneros. Não podemos questionar sua presença histórica, mas sim seu valor como categoria estética. Afinal, conseguimos extrair características comuns e construímos sentidos para essas práticas em sociedade. Conforme o escritor e ensaísta argentino Anderson Imbert (1997, p. 353), os gêneros: [...] são esquemas mentais, conceitos de validez histórica que, bem usados, educam o sentido da ordem e da tradição e, portanto podem guiar ao crítico e, ainda, ao escritor. Ao crítico porque, interessado em descrever a estrutura do gênero, fabrica uma terminologia que logo lhe serve para analisar a obra individual. Ao escritor porque, aceite ou não o convite que recebe de um gênero, se faz consciente do culto social a certas formas. Digo “convite” porque o gênero, ainda que olhe para atrás, em direção às obras do passado, também olha para frente, em direção às obras do futuro, e o escritor deve decidir pela forma que dará aos seus escritos, forma que repetirá características semelhantes às das 27 obras tradicionais ou, ao contrário, oferecerá traços diferentes . A citação anterior resume, de modo significativo, a visão dos gêneros como algo que foi se construindo na história, recebendo sentido na análise detalhada de críticos e sendo remodelada a cada dia que passa no trabalho de escritores e intelectuais. No entanto, somos capazes de captar que algo é certo, o trabalho do escritor com a linguagem continua sendo livre e isso é corroborado pela proliferação de gêneros que surgem e por outros constantemente reformulados. Anderson Imbert (1997, p. 353) afirma que já está comprovado pela crítica que uma obra considerada importante não pertence a um gênero, mas sim, no mínimo, a dois deles: “ao gênero cujas normas acaba de transgredir e ao que está fundando com novas formas”28. O poeta ou o contista escreve livremente seu texto, dentro do amplo universo do gênero escolhido, que acaba diferenciando-se dos demais por conta das marcas individuais inseridas por cada autor em sua 27 “Son esquemas mentales, conceptos de validez histórica que, bien usados, educan el sentido del orden y de la tradición y por tanto pueden guiar al crítico y aun al escritor. Al crítico porque, interesado en describir la estructura de un género, el crítico se fabrica una terminología que luego le sirve para analizar una obra individual. Al escritor porque, acepte o no la invitación que recibe de un género, se hace consciente del culto social a ciertas formas. Digo ‘invitación’ porque el género, aunque mira para atrás, hacia obras del pasado, también mira para adelante, hacia obras futuras, y el escritor tiene que decidirse por la forma que ha de dar a lo que escriba; forma que repetirá rasgos semejantes a los de obras tradicionales o, al revés, ofrecerá rasgos desemejantes” [Tradução nossa]. 28 “Al género cuyas normas acaba de transgredir y al género que está fundando con nuevas formas” [Tradução nossa]. 47 libertária tarefa de criação. O trabalho do intelectual não se resume em continuar certa tradição do passado, mas sim escrever o que lhe proporciona prazer, independente da forma escolhida. A liberdade inerente ao ato de criação literária permite romper a realidade cotidiana e, inclusive, o universo das convenções literárias. Na literatura de Pacheco, o processo de criação artística passa também pela divisão entre a literatura e o real. O escritor interessa-se pelo real histórico e físico do homem (sons, cores, cheiros, percepções) e ambos constituem o real simbólico, em que os sentimentos, os desejos, as angústias, as culpas, as vinganças, os medos e os remorsos do sujeito se transformam em linguagem literária. Por isso, sua literatura apresentase de modo tão verídico, apesar de ser um texto ficcional. Entre a realidade e a ficção, Pacheco extrai as imagens e as ferramentas necessárias para abordar os dilemas da vida moderna no espaço da urbe29. Nossas pesquisas revelam que, desde a antiguidade clássica, a tríade lírica-drama-épica mostra-se como insuficiente para classificar a produção literária. Porém, a idéia de classificações incompletas ou que se encaixem num modelo pré-estabelecido são constantes também em pleno século XXI. A todo momento, um escritor (re)cria novas possibilidades de significação para conceitos tradicionais já fixados, obrigando, dessa forma, à devida revisão dos gêneros. A visão de gêneros neutros faz-se difícil, pois, segundo o escritor Anderson Imbert (1997, p. 356), Os gêneros são classes que têm sob si outros gêneros ou espécies, e as espécies são classes que apresentam subespécies ou indivíduos. Gêneros, subgêneros, espécies e subespécies podem, como os círculos, serem tangenciais entre si, por fora e por dentro, e também podem se 30 cruzar fazendo coincidir certas áreas . 29 [urbe]: origina-se da palavra latina urbs. Desse nome provém o nome dado aos espaços internos da grande urbe: os subúrbios. Tanto a polis de Homero como a urbs de Cícero se formam com entidades altamente racionalizadas e com fins específicos. A polis é a cidade Estado dos gregos, cuja forma de vida urbana lhes era própria, suas principais características eram o tamanho reduzido, sua homogeneidade social, sua autonomia política, o respeito à lei e o sentido de comunidade. Em todos os lugares e épocas, as cidades denotam características dos indivíduos que a constroem e ocupam. 30 “Los géneros son clases que tienen bajo sí otros géneros o especies, y las especies son clases que bajo sí tienen subespecies o individuos. Géneros, subgéneros, especies y subespecies pueden, como los círculos, ser tangenciales entre sí, por fuera y por dentro, y también pueden intersecarse haciendo coincidir ciertas áreas” [Tradução nossa] 48 Suas palavras revelam nitidamente a presença de classes menores em maiores ou vice-versa, constituindo o que denominamos de gêneros fronteiriços ou limítrofes, cuja (re) classificação se dá, principalmente, pela forma e pelos conteúdos empregados. Precisamos ter em mente que a classificação atribuída pelos teóricos da literatura sobre certo gênero baseia-se na análise e na suposição de certos traços em obras afins. Ao mesmo tempo em que essa formulação surge para a padronização de futuras obras, as teorias são passíveis de erro e de constantes correções, por conta do já enunciado anteriormente. 49 1.1. O conto hispano-americano: a busca por um conceito Suelo sostener que el cuento es un género indefinible, porque si se lo define encorseta, se lo endurece. Prefiero pensar al cuento como un camino que se hace sin cesar, una acción perpetua de los seres humanos. Mempo Giardinelli (1998) Uso la palabra ‘cuento’ entre comillas, ya que no sé si lo es o qué es, pero, en fin, el tema de los géneros es lo de menos (…) Los textos pueden no ser distintos pero cambian según el lector, según la expectativa. Jorge Luis Borges (1997, p. 440) La minificción es la gracia de la literatura. Edmundo Valadés (1990, p. 289) A palavra conto, etimologicamente, deriva do termo ‘contar’ (do latim computus, derivado do verbo computare), cujo significado caminha em dois sentidos, um deles, o de contar um fato e o outro se prende ao sentido numérico, o qual sinaliza a necessidade de precisão assumida pelo contista em seu ofício. Pesquisas comprovam que a palavra ‘contar’ na acepção de narrar fatos populares data de mais tempo se comparamos a outro significado atribuído ao vocábulo (ANDERSON IMBERT, 1997). O gênero conto assume um mosaico de conotações entre os mais diferentes escritores e críticos. Compreende-se como conto uma narrativa falada ou escrita, curta ou de extensão moderada, fantástica ou não, uma pequena história, ou ainda, uma carta, uma crônica de viagem, uma descrição de sonho e as narrativas medievais, como a fábula31, os bestiários32, a epopéia, o provérbio, os apólogos, os exemplos, a lenda e 31 A fábula possui uma rica tradição na América Hispânica, em particular, a escritura de fábulas com intenção política no interior das comunidades indígenas no período colonial e até as últimas décadas do século XIX. Também as pré-colombianas que são moralizantes ou fazem parte do imaginário desses povos. 32 A América Hispânica também conta com uma riqueza de bestiários fantásticos, inclusive seres mágicos e sobrenaturais ganham forçam através da publicação de três obras: Manual de zoologia fantástica (1954), de Jorge Luis Borges e Margarita Guerrero; Bestiario (1959), de Juan José Arreola e Los animales prodigiosos (1989), de René 50 todos outros cujas palavras sinalizavam um aspecto didático do gênero. No decorrer dos tempos, alguns desses termos desapareceram, se transformaram e configuraram formas específicas constituindo novos gêneros. É importante ressaltarmos que, segundo o crítico Baquero Goyanes (1997, p. 186), um dos nomes mais proeminentes dos estudos sobre narrativa de língua espanhola, a confusão genérica proporcionada pela aparição do conto tem sua origem no Romantismo, pois segundo ele: Diante da doutrina neoclássica – que tanta vigência e força teve no século XVIII – da pureza e incomunicabilidade dos gêneros literários – cada um deles pulcramente separado, tachado, determinado –, a sensibilidade romântica prefere mesclar, confundir, apagar os limites e 33 criar novas e complexas formas . Suas palavras revelam nitidamente como se deu a mescla entre a prosa e o verso, o narrativo e o lírico, o cômico e o trágico, o filosófico e o humorístico. Portanto, na primeira metade do século XIX, surgem diferentes espécies narrativas nem sempre identificáveis, mas com um denominador comum, o de serem relatos breves em prosa. Vale a pena ressaltar que os que proliferaram na época romântica nem sempre foram apresentados em prosa, como por exemplo, as fábulas34, que, a partir de La Fontaine, empregam o verso como elemento narrativo. Na época romântica, o verso e a prosa surgem lado a lado, com maior profusão para o último, nos gêneros já mencionados no início deste sub-capítulo. Normalmente, os escritores românticos destinavam o verso Avilés Fabila. No México, em 1995, publicam-se uma antologia com diversos materiais e textos sobre esta natureza e o primeiro dicionário do tema em América. São eles: El Bestiario de Indias del Muy Reverendo Fray Rodrigo de Macuspana, compilado por Miguel Angel de Urdapilleta e Diccionario de bestias mágicas y seres sobrenaturales de América, compilado por Raúl Aceves. Pacheco reconhece a importância de Arreola em seu fazer literário quando expressa: “debo decir que fui muy cercano a Juan José Arreola. Estuve con él y fui su amanuense, me dictó su libro Bestiario. Como él tenía que entregar ese texto y se enfrentaba a algunos problemas de diversa índole, le dije: acuéstese, me dicta, lo tomo a mano, lo paso a máquina y usted corrige. Así fue. Lo único que le reprocho a Arreola es que él, que corrigió a todo el mundo, no me quiso corregir a mí, bajo el argumento de que así estaba bien mi trabajo” (GUEMES, 2000). 33 “Frente a la doctrina neoclásica – que tanta vigencia y fuerza tuvo en el siglo XVIIII – de la pureza e incomunicabilidad de los géneros literarios – cada uno de ellos pulcramente separado, encasillado, determinado –, la sensibilidad romántica prefiere mezclar, confundir, borrar límites y crear nuevas y complejas formas” [Tradução nossa]. 34 Segundo Giardinelli (1998), Borges será o grande nome do continente americano ao reelaborar mitos, histórias e lendas, ou seja, mesclar a realidade com a ficção. 51 para as narrações históricas, legendárias ou fantásticas e a prosa para as de ambiente contemporâneo e teor realista35. No Renascimento, a palavra conto começa a ganhar maior aceitação, porém a ‘novela’36 e outros termos também são bastante empregados. Para os renascentistas, o ‘conto’ fazia referência a formas simples (chistes, anécdotas, refranes explicativos) e já alertava para uma classificação ampla, incluindo outras denominações na compreensão de seu sentido, e, ainda, narrativas orais, populares e de fantasia. Após o Renascimento, Miguel de Cervantes, por exemplo, em Don Quijote de la Mancha, empregava ‘novela’ para narrações escritas e literárias, já o ‘conto’ aparecia no interior da trama principal e se constituía de narrações orais. O autor estabelece diferença entre os termos não somente pela extensão dos escritos, mas também no modo de narrar. Já nas Novelas Ejemplares (1613), Cervantes tece histórias mais extensas que os denominados contos, todavia breves, se comparadas a outras narrativas. Na atualidade, essas já são chamadas de novelas cortas se diferenciadas de outras narrativas mais extensas (novelas) e mais curtas. Adiante, comentamos sobre cada um desses gêneros com a preocupação de esclarecer, para o leitor, as possíveis diferenças entre eles com o fim de compreender o universo de formas e possibilidades que contornam o artista em seu trabalho de representar o mundo. O conto apresenta uma destacada importância na literatura hispano-americana, pois aparece desde as primeiras representações dos indígenas, como meio de revelar a alma do povo e, algumas vezes, acaba assumindo um papel ensaístico. Muitas são as vertentes que tentam explicar sua origem e perpetuação ao longo da história. Para alguns teóricos, o conto seria como um sopro, um texto de temática sintética. Em 35 Como exposto, cabe advertir que a opção temática aliada a um maior número de contos em prosa por parte dos escritores românticos evidenciou a forma moderna do gênero, comprovando a quase inexistência do conto em verso (GOYANES BAQUERO, 1997, p. 187). 36 O termo italiano ‘novella’ designava diminutivo. Talvez por esse motivo, Cervantes o tenha utilizado para se referir às suas narrações curtas. 52 contrapartida, muitos afirmam que sua extensão é variada, dependendo somente da imaginação de seu criador que pode, através do dom da palavra, criar textos como, por exemplo, de uma única página. Outros, ainda, defendem a idéia do conto como um simples relato baseado na tradição oral dos povos pré-colombianos, cujas histórias eram transmitidas de geração em geração, dando, ao conto, conforme o crítico paraguaio Marini Palmieri (2002, p. 12), certa realidade lendária mesclada a uma intencionalidade mágica por parte do enunciador. Algumas fábulas da tradição oral decorrem da imaginação popular como modo de expressão de sensações e emoções da alma por meio do uso de imagens e símbolos. Fincam suas raízes nas culturas ancestrais e conservam a memória coletiva e a sabedoria popular. As culturas précolombianas mostraram que, desde tempos remotos, o homem usou símbolos ou relatos orais para defender seus interesses, ressaltar suas virtudes e questionar os poderes da dominação. A América Hispânica é uma terra rica em tradições e lendas advindas das culturas pré-colombianas que se fundem às da colônia. As narrações orais foram transmitidas de geração em geração até mesmo quando aparecem os primeiros compiladores da colônia, que perpetuam nos livros impressos da época a rica tradição popular e, portanto, a memória coletiva dos povos ágrafos. Não se sabe o momento exato em que as narrações orais, normalmente fábulas, começaram a ser transmitidas. Também os escravos africanos, levados como mercadoria humana por Hernán Cortés e Francisco Pizarro, propagaram suas fábulas entre os indígenas e, esses, com o passar do tempo, impregnaram as mesmas com o folclore e o vocabulário típico. Desse modo, as fábulas, os mitos, os contos e as lendas sobre a criação do universo e do homem provem da tradição oral e constituem a base das culturas préhispânicas37. 37 Sugerimos sobre esse assunto, a leitura do estudo de Montoya (2007). O escritor boliviano trata de alguns mitos da tradição oral latino-americana. Não podemos ignorar para a compreensão dessa tradição que há histórias, lendas e danças de origem medieval trazidas pelos europeus. O pesquisador afirma que a tradição européia de fantasmas, bruxas e duendes se mesclam com a africana e a indígena, repleta de 53 O conto como autêntico relato de caráter literário começará tempos mais tarde com o Romantismo. A seguir, trazemos, à discussão, o olhar de alguns estudiosos do tema, de forma a contribuir com nossas concepções sobre o gênero. Porém, como está expresso no título desta seção do estudo, compreendemos o conto como uma forma de expressão com múltiplos conceitos, principalmente analisando-o com nosso olhar de sujeitos fragmentados (BAUMAN, 2005). Acreditamos que existam tentativas de defini-lo a partir de um parâmetro estético/ formal, mas não em relação a seu conteúdo/ sua mensagem. Nossa opinião é reforçada por grande parte daqueles que teorizam sobre o conto e o escrevem. Passamos a revisitá-los. Para Anderson Imbert (1999, p. 39), o conto é qualquer narração que decidimos nomear como tal. Para o pesquisador, só saberemos definir, ao certo, o gênero após delimitar seus componentes: O conto vem a ser uma narração breve, em prosa, que, por muito que se apóie numa real sucessão, revela sempre a imaginação de um narrador individual. A ação – cujos agentes são homens, animais humanizados ou coisas animadas – consta de uma série de acontecimentos entretidos numa trama onde as tensões e distensões, graduadas para manter em suspense o ânimo do leitor, terminam por resolver num final 38 esteticamente satisfatório . No decorrer de sua características do romance39. existência, o conto adota algumas No século XIX, os romances eram desmembrados e publicados com várias tramas narrativas em folhetins, periódicos e revistas; ocasionando um interesse maior pela leitura e produção do autor, já que seu texto poderia ser publicado sucessivamente em distintos meios40. espíritos da água, das selvas e dos montes. Porém, antes mesmo da conquista, alguns contos de espanto já eram difundidos de geração em geração. 38 “El cuento vendría a ser una narración breve en prosa que, por mucho que se apoye en un suceder real, revela siempre la imaginación de un narrador individual. La acción – cuyos agentes son hombres, animales humanizados o cosas animadas – consta de una serie de acontecimientos entretejidos en una trama donde las tensiones y distensiones, graduadas para mantenerse en suspenso el ánimo del lector, terminan por resolverse en un desenlace estéticamente satisfactorio.” [Tradução nossa] 39 Alguns críticos como Fuente & Casado (1995) defendem o conto como um laboratório na vida de muitos escritores consagrados pelo romance do século XX. O conto proporcionaria uma espécie de experimentação pessoal e espaço de exercício de escritura pessoal. 40 Na opinião de Giardinelli (1998), o espaço disponível nesses meios acabou sendo favorável e fortalecendo o gênero nas Américas, porque publicar romances exigia a 54 A história do conto hispano-americano se vê muito imbuída no futuro do homem americano, na sua condição como ser físico e social, principalmente, no modo de expor sua realidade: objetiva ou subjetiva, utópica ou realista, otimista ou pessimista, o indivíduo sempre esteve como figura central no olhar do contista. Na atualidade, o escritor contribui em seu jogo de palavras para enlaçar o compromisso moral e político à fantasia. Nunca podemos esquecer sua responsabilidade perante o coletivo. Segundo Marini Palmieri (2002, p. 12), El Matadero (escrito entre 1838-1840), do escritor argentino Esteban Echeverría Espinosa, pode ser considerado como o primeiro conto escrito das Letras americanas, principalmente, após ser publicado na Revista del Río de la Plata, em 1871. O fato de ser considerado o primeiro conto americano encontra-se na forma breve de transmitir símbolos e imagens desse indivíduo ameríndio que, até aquele momento, só aparecia em forma de versos. Para o ensaísta guatemalteco Enrique Gómez Carrillo, a arte em prosa introduzida por Echeverría é uma novidade e um desafio, pois para o escritor guatemalteco: A arte, que em poesia é tão antiga como o mundo, em prosa, é uma conquista recente. Lavrar a frase da mesma forma que se lavra o metal, dar a ele ritmo como a uma estrofe, retorcer nem mais nem menos como 41 um encaixe, juro que nenhum avô fez isso . Echeverría trata de revelar o poder da imaginação e do instinto na leitura do universo ao ser redor, lendo-o como um caos que se faz necessário ordenar. Podemos considerar a narração de Echeverría como o ponto de origem de todas as correntes posteriores. O escritor romântico rompe com o padrão social e político ao destruir lendas de sua época e ao ser capaz de denunciar a situação histórica argentina como a ditadura de Juan Manuel Ortiz de Rosas (1793-1877). necessidade de uma capacidade industrial maior, porém, naquele momento, ainda era insuficiente, bem como a distribuição insipiente em livrarias. Por isso, acreditamos que as revistas foram pioneiras e um importante vínculo entre o público e o escritor. 41 GÓMEZ CARRILLO apud MARINI PALMIERI (2002, p. 14). “El arte, que en poesía es tan antiguo cual el mundo, en prosa en una conquista reciente. Labrar la frase lo mismo que se labra el metal, darle ritmo como a una estrofa, retorcerla ni más ni menos que un encaje, os juro que ningún abuelo lo hizo” [Tradução nossa]. 55 Echeverría emprega, em seu texto, a figura mítica do minotauro e outras forças fundamentais do bem e do mal como elementos simbólicos. Seus personagens brotam da voz interior de sua consciência a fim de revelar o mundo e a fantasia captados por seu olhar. Podemos encontrar, nos discursos dos românticos e modernistas hispano-americanos (escritores que contribuem para analisar o continente americano desde suas vozes interiores), símbolos e alegorias empregados pelos clássicos Hesíodo e Homero, Novalis e Goethe, Edgar Allan Poe e Charles Baudelaire. O Romantismo, introduzido por Echeverría e ocorrido na América devido às lutas pela independência, impregnadas pelas ideais da Revolução Francesa, abriu caminho para a chegada do Realismo e do Modernismo nas Letras. Como o próprio nome induz, o realismo insistiu no real, rechaçando todo o olhar subjetivo. Em contraposição, o modernismo voltou-se aos versos clássicos gregos, latinos e franceses, conseguindo atribuir à linguagem um papel real e, ao mesmo tempo, subjetivo. Os movimentos literários não surgiram um após o outro, mas sim no momento em que seus representantes publicaram obras em anos variados e percorreram diferentes estilos, como é o caso da produção de Rubén Darío, Horacio Quiroga, Leopoldo Lugones, José Martí, Manuel Gutiérrez Nájera, Ricardo Güiraldes e outros. Notória foi a contribuição dos escritores modernistas na evolução do conto, principalmente do escritor nicaragüense Rubén Darío, na concepção do conto contemporâneo. No volume vinte e cinco da revista parisiense Les mille nouvelles, o seu conto “La muerte de la emperatriz de la China” já se incluía destacando seu labor como escritor. As palavras de apresentação classificavam Darío como o poeta sul-americano mais conhecido daquele momento, inclusive, por seu trabalho com a prosa. Outro aspecto a ser destacado na maioria dos relatos modernistas é o emprego da forma narrativa de primeira pessoa como recurso para destacar temas individualistas. Pelas palavras do escritor venezuelano 56 Manuel Díaz Rodríguez, em Narrativa y ensayo: sobre el Modernismo (356-357), a primeira intenção do escritor modernista é “a força da adivinhação com que ele penetra a alma dos seres e, ainda, a alma das coisas em aparências inanimadas”42. Podemos compreender que, nessa adivinhação, floresça o desejo modernista introduzido por Darío no seu livro Prosas Profanas, com a palavra simbolizando o espírito e a essência secreta do significado. Na América, os modernistas adiantaram-se, a seu tempo, independente da realidade. O movimento não se ocupou com o homem político, social ou econômico propriamente, mas sim com sua essência ontológica e metafísica. Preocupou-se com a forma de refletir sobre o homem e o seu modo de falar para melhor enxergar o indivíduo americano. Além disso, adequar um novo estilo de escritura que também fosse americano. Portanto, entre 1885 e 1920, muitos textos eram lidos de forma simultânea. O Modernismo, dotado de musicalidade, luta por suas formas poéticas, transcendência e individualidade, enquanto o realismo e o naturalismo, impregnados pela visão do urbano infernal, valorizam o testemunho do homem em sociedade. Ainda, tínhamos outras narrativas, cujos heróis eram índios com uma condição física e moral precária, constituindo relatos que enlaçavam traços metafísicos, psicológicos, sociológicos, positivistas, crioulistas e fantásticos. Para alguns críticos, a Revolução Mexicana (1910-1920) e a Guerra do Chaco (1932-1935), fatos históricos marcantes do continente latinoamericano, contribuíram para uma compreensão da realidade do continente e do retorno de um olhar realista. Muitos escritores hispanoamericanos assumem um papel de verdadeiros historiadores ao produzir seus contos e romances, caracterizando a realidade em ficção. Todos esses relatos visavam conhecer um pouco mais da essência do homem americano e sua história de crueldades e heroísmos. 42 DÍAZ RODRIGUEZ apud MARINI PALMIERI (2002, p. 21). “La fuerza de adivinación con que él penetra el alma de los seres, y aun el alma de las cosas en apariencias inanimadas” [Tradução nossa]. 57 Através da literatura, podemos discutir as relações estabelecidas entre a história e a ficção. Devemos reconhecer, na história, um complemento para se entender a literatura, já que a história do passado auxilia na leitura da história do presente, ampliando nosso universo de reflexões. O Modernismo surgiu para afirmar que descrever fielmente a realidade não era suficiente, mas que o escritor deveria demonstrar, provar e destacar a nova situação e imagem do homem americano. Nesse caminho, os escritores buscavam a essência da condição humana, encontrada nos mitos antigos de Homero, Hesíodo, Sófocles, Pandora, Orfeo e Apolo. Mitos reconhecidos e empregados pelo continente americano durante o Modernismo e que se propagaram nas Letras, em meados do século XX, através do realismo mágico ou maravilhoso como linguagem literária. Para o escritor espanhol Rafael Barrett, esses mitos são “a luz rasante e, ao mesmo tempo, nebulosa, quase fantasmagórica da realidade que delira, de seus mitos e contra-mitos históricos, sociais e culturais”43, que acabam instaurando o mito e as formas simbólicas como representação da força social, bem como a ascensão do mito como meio significativo da realidade. Nas primeiras décadas do século XX, posterior ao movimento modernista, os caminhos da narrativa eram os do regionalismo, do telurismo44 e do indigenismo, destacando-se nomes como os de José Eustasio Rivera, Rómulo Gallegos, Ricardo Güiraldes, Jorge Icaza, Ciro Alegría e José María Arguedas, somente para citar alguns. Os escritores, em seu ofício, têm a função de citar, por meio de suas criações, fatos marcantes da história ou outros que foram silenciados pela própria história. O escritor pode brincar com o real, criando um discurso ficcional e, através da figura do mito, dar possíveis explicações para o que não pode ser comprovado pela história ou pela ciência. 43 BARRETT apud MARINI PALMIERI (2002, p. 21). “La luz rasante y al mismo tiempo nebulosa casi fantasmagórica de la realidad que delira, de sus mitos y contramitos históricos sociales y culturales” [Tradução nossa]. 44 Estamos compreendendo telurismo como a influência do solo de uma região nos costumes e no caráter dos habitantes. 58 Desse modo, o escritor pode retratar a história das mais diferentes formas possíveis. Tudo depende do ato de inspiração e de criação literária do escritor, em que ele é capaz de internalizar, em seu pensamento, formas possíveis de compreensão da realidade histórica e transformar em linguagem poética. Conforme o escritor mexicano Juan Rulfo (1992, p. 18), “todo o escritor que cria é um mentiroso; a literatura é mentira, porém dessa mentira sai uma recriação da realidade; recriar a realidade é, pois, um dos princípios fundamentais da criação45”. Ao escritor, resta-lhe o ofício de tornar reais as palavras de seu discurso, não se importando realmente com a veracidade. Rulfo reconhece as críticas em relação à sua obra, já que, para ele, o mais importante não seria expor a história como mero testemunho, mas sim ressaltar a liberdade proporcionada pela imaginação. De acordo com o criador da lendária cidade de Comala e do personagem Pedro Páramo: Creio que, nesta questão da criação, é fundamental saber perfeitamente que um escritor dirá mentiras, que se entra na verdade, na realidade das coisas conhecidas, no que viu ou 46 ouviu, está fazendo história, reportagem . (RULFO, 1992, p. 18) Na opinião de Rulfo, a obra literária não reflete somente histórias reais, narradas por meio de fatos ocorridos com personagens que existiram, mas também a criação de outro real, o simbólico. Segundo o escritor mexicano José Emilio Pacheco (1966), a literatura é o resultado de um processo sócio-histórico, ou seja, de uma tomada de consciência do escritor a partir da história verídica de uma sociedade. Se pensarmos na literatura desde suas origens, podemos dizer que ela nasceu ao mesmo tempo em que a história. Como já expomos, as primeiras manifestações expressivas foram orais, com a finalidade de relatar, registrar, explicar e perpetuar as experiências humanas. Também eram essenciais o sonho, a imaginação, na 45 “Todo escritor que crea es un mentiroso; la literatura es mentira, pero de esa mentira sale una recreación de la realidad; recrear la realidad es, pues, uno de los principios fundamentales de la creación” [Tradução nossa]. 46 “Creo yo que en esta cuestión de la creación es fundamental saber perfectamente que uno va a decir mentiras, que si se entra en la verdad, en la realidad de las cosas conocidas, en lo que uno ha visto o ha oído, está haciendo historia, reportaje” [Tradução nossa]. 59 construção do imaginário de uma comunidade. A história propaga-se através da memória, sendo ela registrada na escritura de muitos autores. Com o passar do tempo, o modo de representar o mundo e seus conceitos adquiriu novas linguagens. Não podemos esquecer, nesse ponto, o conceito de mimesis (Anderson Imbert, 1999, p. 168) como uma representação do real e, não somente como imitação ou reprodução do real. O panorama narrativo hispano-americano começa a alterar-se a partir da metade do século XX, graças à contribuição de um grupo de escritores mexicanos e argentinos, cujos contos se ocupam de outras realidades: mágica, fantástica e inquietante. O momento anunciado de renovação narrativa sinaliza os antecedentes do chamado boom hispanoamericano. Os escritores hispano-americanos preocupam-se em retratar uma realidade própria, arraigada a um contexto que pode atuar sobre si mesmo. Trabalham com múltiplas experiências do cotidiano vinculadas à memória. Suas narrações inspiram-se num contexto e atuam sobre o mesmo, convertendo-se em criações de um produto social. Conforme o semiólogo francês Roland Barthes (1969, p. 36), “a escritura questiona o mundo, nunca oferece respostas; libera a significação, porém não fixa sentidos47”. Nessa tomada de consciência da condição do homem, critérios como uma nova roupagem na linguagem, por meio do realismo mágico ou do realismo maravilhoso, ou ainda, do realismo fantástico, isto é, da supra-realidade, são introduzidos nos discursos de contistas como Macedonio Fernández, Miguel Ángel Asturias, Roberto Artl, Juan Rulfo, Alejo Carpentier, Juan Carlos Onetti, Julio Cortázar, Gabriel García Márquez, Augusto Roa Bastos, Edmundo Valadés, José Emilio Pacheco... Não podemos deixar de reconhecer a importância do renomado escritor argentino Jorge Luis Borges no seu árduo e criativo trabalho com a linguagem, podendo ser considerado herdeiro de Esteban Echeverría, Leopoldo Lugones e Macedonio Fernández, ao ser introdutor de 47 “La escritura cuestiona el mundo, nunca ofrece respuestas: libera la significación, pero no fija sentidos” [Tradução nossa]. 60 temáticas latentes da literatura hispano-americana. Inclusive, Pacheco (1966) não esconde a influência recebida por Borges48 ao mencionar: Mi devoción respecto a Borges fue tan fervorosa como torpe. Cometí la ingenuidad de querer imitarlo. A veces siento que sobrevaloré a Borges o quiero librarme de él. Lo releo y vuelvo a quedar en la misma inocencia deslumbrada de 1958. Exactamente lo que me ocurre con su enemigo Pablo Neruda Os ensaios e os contos de Borges determinaram o desenvolvimento da narrativa hispano-americana em diferentes aspectos, principalmente, na difusão da literatura fantástica. Em vários textos e conferências, expôs os procedimentos e elementos fundamentais para compreensão de seus relatos fantásticos, como a obra de arte inserida dentro da própria obra de arte, a contaminação da realidade pelo sonho, a viagem no tempo, o duplo, a alusão ao infinito e aos espelhos. Em sua literatura, temos a simbiose desses elementos, não como forma de servir de escape do real, mas como metáfora do mesmo. O escritor afirma, em muitos momentos, que todas as palavras são misteriosas, guardam um segredo poucas vezes revelado. Borges (1997, p. 445), no texto “El cuento y yo”, trata de proporcionar ao leitor como se dá o processo de criação literária de seus contos. Ele destaca seu fascínio pela leitura de enciclopédias, porque, de algum modo, encontramos nelas respostas surpreendentes para as interrogações do mundo. Para ele, “é natural que o real seja mais estranho que o imaginado, já que este último parte de nós, enquanto que o real procede de uma imaginação infinita, a de Deus”49. O escritor argentino cria um mundo novo dentro do universo de suas narrativas onde os labirintos, os conflitos militares, as línguas estranhas, os objetos mágicos, as bibliotecas e os livros mágicos sempre têm espaço. A figura de Borges é imprescindível na compreensão do conto hispano-americano contemporâneo. 48 No ano de 1999, centenário do nascimento de Borges, Pacheco pronunciou uma série de conferências, na sede de El Colegio Nacional, resultando o livro Borges: una invitación a su lectura. 49 “Es natural que lo real sea más extraño que lo imaginado, ya que lo imaginado procede de nosotros, mientras que lo real procede de una imaginación infinita, la de Dios”. [Tradução nossa]. 61 Borges e outros escritores mencionados anteriormente, seja no conto ou no romance, conseguem reverter o estado de crise da narrativa hispano-americana pelo excesso do tom regionalista e do protesto. Os autores responsáveis pela narrativa de vanguarda promoveram inéditas experiências no processo de criação literária orientados por leituras de Marcel Proust, Franz Kafka, William Faulkner e outros nomes da psicanálise e do universo cinematográfico. Começam a empregar novas estruturas, diferentes planos temporais, estudos psicológicos e ambientes cosmopolitas. Alguns nomes, após vivenciar o universo parisiense, exaltam o mundo mítico americano, como por exemplo, Miguel Ángel Asturias em seus escritos, partindo do surrealismo e empregando a expressão “realismo mágico” para se referir à confluência de histórias e mitos da peculiar natureza da América Hispânica. Semelhante a Alejo Carpentier que formula a expressão do “real maravilhoso” americano na ambientação caribenha de sua obra. Os meios de comunicação de massa, o cinema norte-americano, a nova sexualidade, os hippies, os acontecimentos históricos e o folclore hispano-americano dão o suporte fundamental para os autores do chamado boom da narrativa e seus defensores. Esse fenômeno literário recorrente desde os anos quarenta, mas com maior incidência nos sessenta, caracteriza um novo romance hispano-americano, que acaba por influenciar diretamente o conto do mesmo continente. Junto a Carlos Fuentes, Julio Cortázar, Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa unem-se outros autores com o intuito de mesclar o real e a fantasia para questionar alguns graves problemas da sociedade do continente, como a orfandade, a violência, as ditaduras, as guerras e outros temas. A literatura de García Márquez baseia-se na tradição literária clássica para a recriação de novos mitos. O universo de seus contos não se opõe ao de seus romances, pois aparecem os mesmos temas, os diferentes modelos de poder, as lutas entre a tradição e o progresso, a corrupção e a violência, as injustiças, personagens idênticos, o humor e ações em torno a Macondo. Já Fuentes resgata o fantástico de Borges 62 em sua contística para tratar do universo pré-colombiano e das discussões sobre a urbe. Vargas Llosa também antecipa, em 1959, na publicação do romance Los jefes, a narrativa da cidade e os temas da vingança, da violência, do machismo e dos adolescentes marginalizados. O conto hispano-americano deve ser considerado como um importante material para a compreensão da evolução do romance da América Hispânica, pois nele aparecem as correntes literárias e os temas de maior preocupação do continente. Ao retornar às discussões sobre o gênero conto, percebemos que o mesmo recebeu grande contribuição e divulgação no continente americano por meio de inúmeras publicações organizadas e compiladas por escritores renomados da literatura desse continente. Entre essas publicações, destacamos a revista mexicana El Cuento, de Edmundo Valadés; a argentina Puro Cuento, de Juan-Armando Eplle e Mempo Giardinelli, e as colombianas Ekuóreo e Zona, de Laurián Puerta, cuja função, de modo geral, foi compilar os textos de escritores de diversas nacionalidades e corroborar a idéia do conto como um gênero importante em processo constante de ascensão e de definição. Desde o momento do surgimento do conto, os críticos literários e os escritores apresentaram uma grande dificuldade em sua classificação e fixação dentro de um modelo estabelecido. Relato breve, miniconto, micro-conto, minificção, conto instantâneo, síntese imaginativa ou artifício narrativo, independente do nome, o conto, ao longo dos anos, foi formando sua estrutura própria, criando uma unidade lógica e sua linguagem. Conforme o escritor mexicano Valadés (1990, p. 284), houve uma mudança significativa no modo de compreender o conto clássico e o contemporâneo: O conto clássico foi domesticado numa sucessão de palavras sem encantamentos. O mini-conto surge para liberar as palavras de toda atadura. E com o objetivo de devolver seu poder mágico, esse poder de escandalizar [...] Diariamente o conto precisa ser reinventado. Não possui fórmulas ou regras e, por isso permanece silvestre ou indomável. 63 Não se deixa dominar nem enquadrá-lo e então dialoga com a poesia 50 quando tentam lhe aplicar normas acadêmicas . O discurso de Valadés iguala-se à opinião de Baquero Goyanes (1997, p. 189), quando este afirma que o conto clássico, no século XIX, cultivado por Antón Pávlovich Chéjov, Guy de Maupassant, Rudyard Kipling e Leopoldo Alas Clarín, baseia-se fundamentalmente no argumento, privando o texto de qualquer encantamento estético. Baquero Goyanes (1997) acredita que, na tentativa de buscar componentes como a tensão narrativa e a vibração emocional, características as quais julga como primordiais, o conto pode assumir outros contornos, como a do artigo de costumes, onde prevalecem os elementos descritivos, as notas satíricas e as digressões. Além de ser considerado pela crítica especializada como o verdadeiro propagador do conto no México, Edmundo Valadés revelou, através de sua revista, inúmeros talentos literários de outros países do continente americano. Ao ser questionado pela força simbólica do conto, Valadés opinou: É um gênero do qual eu gosto muito, que me parece um dos mais belos. É um gênero que contém, para qualquer país, uma tradição muito profunda; é um meio para recolher sua circunstância, seu modo de sentir, seu modo de pensar, seus personagens, sua geografia, seu modo de falar, sua idiossincrasia [...] E particularmente, como leitura, digamos, creio que é um dos mais bonitos, produz um impacto, uma satisfação, a 51 suma felicidade . Valadés realiza uma leitura do gênero conto como um meio possível de aproximar-se da cultura do outro e de si próprio. O conto seria a forma literária capaz de expressar muitas circunstâncias de nosso tempo, como por exemplo, a vida nas cidades com seus contratempos – solidão, violência, repressão. Em sua opinião, o conto é a forma mais 50 “El cuento clásico ha sido domesticado, convertido en una sucesión de palabras sin encantamientos. El minicuento está llamado a liberar las palabras de toda atadura. Y a devolverle su poder mágico, ese poder de escandanizarlos... Diariamente hay que estar inventándolo. No posee fórmulas o regras y por eso permanece silvestre o indomable. No se deja dominar ni encasillar y por eso tiende su puente hacia la poesía cuando le intentan aplicar normas académicas”. [Tradução nossa]. 51 OSTROSKY & CARRANZA (2008). “Es un género que a mí me gusta mucho, que me parece de los más bellos. Y es un género que contiene, para cualquier país, una tradición muy honda; es un medio para recoger su circunstancia, su modo de sentir, su modo de pensar, sus personajes, su geografía, su modo de hablar, su idiosincrasia […]Y aparte, como lectura, digamos, creo que es lo más hermoso, produce un impacto, una satisfacción, la suma felicidad”. [Tradução nossa]. 64 pertinente para tratar questões da problemática humana. Essas se transformam quase em obsessões que rodeiam a realidade do escritor em seu processo de criação literária. Para o escritor mexicano, o conto trata-se de uma categoria narrativa que escapa das possíveis teorias elaboradas em relação a ele. Não há como impor limites a esse gênero inconstante, pois a linguagem e o ritmo são característicos de cada artista no seu trabalho de criação literária. Valadés, entre tantas nomenclaturas, defende o conto como uma minificção52 criada por meio de um simples incidente de contar um feito. A ação deve conduzir aos personagens e projetar um contexto real ou imaginário, de modo que ative a imaginação do leitor e propicie seu questionamento. O escritor diferencia o conto da minificção a partir de sua própria experiência como sujeito leitor ao revelar: Se me refiro às minificções que mais me cativaram, surpreendido ou deslumbrado, encontro nelas uma persistência: contem uma história 53 vertiginosa que desemboca num novo enigma (Valadés, 1990, p. 285). Dessa forma, entendemos a assertiva de Valadés ao expor sua admiração pelas temáticas dos contos que trabalham com o inesperado, com o imaginário, conseguido, muitas vezes, através da contraposição com as histórias reais; no jogo entre o sonho e a realidade, na criação de personagens ou seres fictícios, ou ainda, a invenção de cidades ou regiões imaginárias. Seja por meio da sátira, do humor, da surpresa ou da ironia, o conto deve, segundo Valadés (1990, p. 286), apresentar um final surpreendente a seus leitores. Sua escritura deve tratar do real, mas ao mesmo tempo, fugir do convencional. O pensamento de Valadés sobre o conto direciona nosso estudo para as demais formas assumidas por esse gênero no decorrer das práticas literárias e tão importantes nos últimos anos para a compreensão 52 Segundo Zavala (2000), a minificção como forma de escritura dentro do cenário literário hispano-americano aparece nas primeiras décadas do século XX ocupando um espaço como gênero literário. Até então essa escrita se identifica como um mero exercício de estilo do escritor ou uma literatura sem valor. O interesse pela formas breves explica-se pela mudança do tipo de leitor no decorrer dos anos. 53 “Si me remito a las minificciones que más me han cautivado, sorprendido o deslumbrado, encuentro en ellas una persistencia: contienen una historia vertiginosa que desemboca en un golpe sorpresivo de ingenio”. [Tradução nossa] 65 da literatura de José Emilio Pacheco e de outros escritores, que assumem as vozes de sujeitos da (pós) modernidade. Para o crítico Carlos Pacheco (1997, p. 13), cada leitor possui, dentro de seu inconsciente, o que ele denomina de “competência contística”, contribuindo para que cada sujeito, a partir do seu universo de leituras, reconheça e diferencie características entre vários textos narrativos. O crítico também expõe um inconveniente de tal competência, já que ela pode gerar, no leitor, uma falsa verdade, a de que saberá diferenciar todas as formas em que se apresenta um determinado gênero. Ele afirma que a maior parte das teorias sobre o conto tenta classificá-lo a partir da extensão, de sua comparação a outras modalidades próximas, destacando suas características distintivas e sua importância literária e cultural. Segundo o crítico, é sobre essa relativa brevidade que se apóia, num primeiro momento, o leitor para distinguir o conto dos demais gêneros narrativos e, especialmente, do romance. Carlos Pacheco (1997, p. 19) alerta: É necessário atender ao sentido, à função, à razão de ser da brevidade do conto. Ela não é um capricho dos autores, ou dos teóricos, não pode ser imposta em si mesma com um fim ou como um ideal, menos ainda como um preceito. É mais uma requisição da estranheza estrutural que deve ser um bom conto. E é muito o que Edgar Allan Poe nos ensinou 54 sobre este aspecto . Carlos Pacheco busca, em Poe, cujos textos contribuem para uma compreensão do conto moderno, uma resposta para seu caráter breve, já que o escritor norte-americano acreditava que, somente dessa forma, conseguiria a intensidade desejada, pois a recepção da mensagem se dá no leitor de maneira concentrada e interrupta. A preocupação de Poe em definir um conto pela sensação provocada no leitor é algo seguido por escritores hispano-americanos como Horacio Quiroga, Juan Bosh e Julio Cortázar. Por isso, os três 54 “Es necesario atender al sentido, la función, la razón de ser última de este brevedad del cuento. Ella no es un capricho de los autores, o de los teóricos, no puede ser impuesta en sí misma como un fin o como un ideal, menos aún como un precepto. Es más bien un requerimiento de la exquisitez estructural que debe ser un buen cuento. Y es mucho lo que Edgar Allan Poe nos ha enseñando sobre este aspecto” [Tradução nossa]. 66 defendem a aproximação do conto ao poema porque em ambos a recepção do leitor é intensa e breve, efeito que não ocorre no romance, já que o impacto do texto na vida do leitor vai sendo construído no decorrer dos capítulos. Seguindo o pensamento de Carlos Pacheco (1997, p. 19): O conto, pelo comum, assoma à superfície da consciência de um só golpe, aparece diante dela subitamente, como o clarão de um flash, corresponde a uma impressão única e vigorosa que encontra, no mesmo ato de aparecer, sua essencial formulação narrativa. Esta aparição repentina (que Bosh chama de achado do tema do conto e Cortázar identifica com uma situação de insuportável urgência criadora que compele ao contista deixar de lado qualquer outra atividade até terminar o conto) traz consigo, para alguns contistas, uma verdadeira situação 55 limite . Carlos Pacheco visualiza o conceito de conto como um verdadeiro paradoxo, pois se por um lado se apresenta como aquele de mais sólida definição, por outro lado, é o mais duvidoso e ambíguo dos gêneros. Prova disso é o pensamento do crítico Baquero Goyanes (1997), que o classifica, num primeiro momento, como um gênero literário preciso e, todavia mais adiante em seu estudo, expõe vacilações para o entendimento do mesmo, ao afirmar que, até o ano de 1949, seria incapaz de atribuir um conceito para tal. Manter a precisão e a minuciosidade são as principais tarefas do contista no seu ofício de escritor de um objeto amplamente problematizado. O trabalho do contista difere, em parte, do romancista, pois para este último, exige-lhe um estudo mais documentado da realidade, foco de seu olhar, além da complexa gradação de ações, tendo em vista a estrutura macro do objeto narrado. Essa imprecisão do conto também acompanha outros autores e escritores, entre eles, Julio Cortázar (1963, p. 15-16), ao expressar a existência de certas características recorrentes e valores aplicáveis a contos dramáticos ou humorísticos, realistas ou fantásticos; porém, em 55 “El cuento, por lo común, asoma a la superficie de la conciencia de un solo golpe, aparece ante ella súbitamente, como el fogonazo de un flash, corresponde a una impresión única y vigorosa que halla, en el mismo acto de aparecer, su esencial formulación narrativa. Esta aparición repentina (lo que Bosh llama el hallazgo del tema de un cuento y Cortázar identifica con una situación de insoportable urgencia creadora que compele al cuentista a dejar de lado cualquier otra actividad hasta encontrar cumplido el cuento) trae consigo para algunos cuentistas una verdadera situación límite. [Tradução nossa] 67 seguida, o enfatiza como um “gênero de tão difícil definição, tão fugidio em seus múltiplos e antagônicos aspectos e, em última instância, tão secreto e recolhido em si mesmo”56. Ainda, na tentativa de conceituar o conto pelo prisma do trabalho do escritor, Cortázar (1963, p. 136-137) visualiza-o como uma “batalha” travada entre o homem e a escritura, resultando, nesse momento, no que ele nomeia de “síntese vivente” e responsável por nosso deslumbramento por esse gênero. Para Cortázar (1997, p. 404), não basta tentar simplesmente moldar o conto a uma camisa de força para afugentar o seu caráter abstrato, mas sim respeitar que sua criação surge de um ato: [...] simultaneamente terrível e maravilhoso, há uma desesperação exaltante, uma exaltação desesperada; é agora ou nunca, e o temor de que o agora possa ser exacerbado, o transforma em máquina de escrever correndo a todo teclado, esquecendo a circunstância, abolindo 57 o circundante . Cortázar expõe, de modo muito evidente em seus textos, o estado angustiante do ato da escritura do conto, principalmente, pelo fato do escritor ter que se adequar às características fundamentais do gênero, segundo Cortázar, a tensão, o ritmo, a pulsação interna, o imprevisto e a forma (intitulada por ele como esfericidad), ao trabalho de criação individual. Ainda, em relação ao processo de criação pessoal, expõe: Dessa forma, me tocou escrever muitos dos meus contos; inclusive em alguns relativamente longos, como Las armas secretas, a angústia onipresente no decorrer de todo um dia me obrigou a trabalhar de forma obstinada até terminar o relato e somente após isso, sem reler o texto, ir à rua e caminhar por mim mesmo, sem ser já Pierre, sem ser já 58 Michele (CORTÁZAR, 19997, p. 402-403). Seu testemunho confirma que os contos podem surgir de um estado de transe. Cortázar (1997, p. 405) compreende certa diferença temática 56 “Género de tan difícil definición, tan huidizo en sus múltiples y antagónicos aspectos y en última instancia tan secreto y replegado en sí mismo”. [Tradução nossa] 57 “Simultáneamente terrible y maravilloso, hay una desesperación exaltante, una exaltación desesperada; es ahora o nunca, y el temor de que pueda ser nunca exacerbado el ahora, lo vuelve máquina de escribir corriendo a todo teclado, olvido de la circunstancia, abolición de lo circundante”. [Tradução nossa] 58 “Así me tocó escribir muchos de mis cuentos; incluso en algunos relativamente largos, como Las armas secretas, la angustia omnipresente a lo largo de todo un día me obligó a trabajar empecinadamente hasta terminar el relato y sólo entonces, sin cuidarme de releerlo, bajar la calle y caminar por mí mismo, sin ser ya Pierre, sin ser ya Michele”. [Tradução nossa] 68 entre a poesia e o conto. O primeiro pode transmitir uma mensagem ontológica e o segundo não indaga nem apresenta intenções evidentes, porém, do ponto de vista da criação, ambos os gêneros: Nascem de um repentino estranhamento, de um deslocar-se que altera o regime ‘normal’ da consciência; num tempo em que as etiquetas e os gêneros cedem a uma estrepitosa bancarrota, não é inútil insistir nesta 59 afinidade que muitos encontrarão fantasiosa . Conforme Cortázar (1997), o escritor necessita sentir esse estado de estranhamento para que o texto consiga vida própria e o leitor perceba essa sensação. O escritor deve configurar como um mediador entre seu próprio texto e o objeto de criação. Por isso, o escritor destaca, em seu ensaio, o último princípio do “Decálogo del perfecto cuentista”, de Horacio Quiroga, quando este menciona: “conta como se teu relato não interessasse a mais ninguém senão ao pequeno mundo de teus personagens, dos quais poderias ter sido um60”. O escritor argentino percebe que o autor uruguaio capta que o universo do ‘conto’ nasce do interior em direção ao exterior, onde os personagens e o narrador podem ocupar os mesmos espaços e vozes. Cortázar (1997, p. 404) resume, nesse texto sobre o ‘conto breve’, o quão complexo é o ato da escritura e, para sintetizar sua percepção, cita o verso do poeta chileno Pablo Neruda, quando esse expressa: “Mis criaturas nacen de un largo rechazo”. Cortázar, por outra parte, também revela a capacidade do intelectual em criar organismos com vida, completos e autônomos, termos empregados fazendo alusão ao ‘conto’. Como já exposto, a concepção do conto permite explorar inúmeras possibilidades de linguagem e de composição narrativa; apesar disso, o momento de recepção também é fundamental. Vimos que a leitura de um poema assemelha-se a de um conto, porém não podemos dizer o mesmo para a de um romance, em que nele o leitor integra-se ao universo 59 “Nace de un repentino extrañamiento, de un desplazarse que altera el régimen ‘normal’ de la conciencia; en un tiempo en que las etiquetas y los géneros ceden a una estrepitosa bancarrota, no es inútil insistir en esta afinidad que muchos encontrarán fantasiosa”. [Tradução nossa] 60 “Cuenta como si tu relato no tuviera interés más que para el pequeño ambiente de tus personajes, de los que pudiera ser uno”. [Tradução nossa] 69 narrado a partir de diferentes etapas de leitura e de sua memória para construir gradualmente o mundo ficcional representado. O poema e o conto requerem uma concentração do leitor para que o mesmo descubra o efeito único e intenso das palavras (recordemos a imagem do flash sugerida por Cortázar61). O ato da leitura para Poe seria um momento de encantamento ou experimento, cujo impacto de um bom texto na vida do leitor permite-lhe compreender o mundo interior e exterior de outra forma; sua forma de enxergar o mundo é alterada através do impacto causado por um bom texto. Retornando ao pensamento de Baquero Goyanes (1997) em relação ao gênero foco deste capítulo, pensamos que o mesmo é um nome importante para nossa compreensão e apreensão das diferenças do conto a outros tipos de escrito breve. Em seu texto “El cuento y los géneros próximos”, o crítico trata da lenda, do artigo de costume, do poema em prosa e da novela corta. Centraremo-nos em seus comentários em relação aos dois últimos tendo em vista a seleção de textos de José Emilio Pacheco para este estudo. O crítico espanhol começa sua investigação resgatando o conceito de conto, o qual retoma de autores norte-americanos como Seymour Menton e H.G. Wells. Problematiza em maior proporção em seu estudo a brevidade do gênero e o define como aquele texto que podemos ler em menos de uma hora. Para ele, o romance se diferencia do conto tanto por sua extensão quanto pela complexidade; os artigos de costumes e as tradições populares, pela vertente verídica e o rompimento com a veia artística; as fábulas e as lendas, pelo caráter amplo e a carência de criatividade do artista. Apesar de já trazermos para a discussão outros teóricos que problematizam a brevidade do conto de modo bastante pertinente e não meramente classificatório, acreditamos ser necessário apresentar alguns nomes de pesquisadores e/ou de escritores, que defenderam outras 61 Cortázar, em sua teoria sobre o conto, vai assegurar a aproximação do conto à fotografia e do romance ao cinema. A fotografia pelo fato de limitar o objeto alcançado pela câmara. No filme, não há como delimitar um espaço, pois a obra precisa de espaço para desenvolver-se. 70 nomenclaturas para o conto e diferenciaram sua classificação por meio do número de caracteres empregados ou do tempo destinado para sua leitura. Entre esses nomes, nos limitamos, em se tratando do contexto do estudo, a citar três estudiosos mexicanos: o pesquisador e professor da Universidad Autónoma Metropolitana Lauro Zavala e os escritores Julio Torri e Edmundo Valadés, ambos defensores da minificção. Não compartilhamos com a idéia de classificação dos contos e seus variantes, proposta por Zavala (2008) como uma simples contagem de letras ou palavras, mas achamos importante o caráter fronteiriço sinalizado pelo teórico e outros escritores mexicanos em relação ao conto. Zavala (2006) levanta, em seus textos, questões de natureza genérica, estética e tipológica, como: se são contos; como classificá-los; se podemos chamá-los de textos literários, por que são tão breves; quantos tipos existem e outras questões. As “novas formas” utilizadas pelos escritores da contemporaneidade funcionam como o reflexo das sociedades multiculturais (García Canclini, 1999)62 nas quais estamos imersos. Para Zavala, a fragmentação não é somente um modo de escrever, mas também, uma forma de ler. A arte de classificar os textos não é uma mera responsabilidade do autor e do editor, pois os leitores também interagem ao fazer de uma expressão literária parte da fala cotidiana. No México e nos demais países da América Hispânica, o ano de 1917 representa a fundação do conto breve moderno com a publicação do texto A Circe (1914), que abre o livro Ensayos y Poemas (1917), do mexicano Julio Torri, que, ao lado de José Juan Tablada, Renato Leduc e outros, é um escritor fundamental para revelar a literatura mexicana da primeira metade do século XX. Para Zavala (2006), o texto de Torri 62 O conceito sociedade multicultural será tratado no próximo capítulo. 71 inaugura o que ele chama de cuento ulttracorto63 e sua publicação gera ampla difusão desta modalidade na América Latina64. Uma das características de Torri é precisamente sua concisão. Numa literatura tão prolixa como a mexicana, ele é visível exceção. Dificilmente classificáveis, seus pequenos poemas em prosa, ou a sua prosa poética, lembram, de algum modo, a técnica de composição de Machado de Assis, sobre quem Torri escreveu ensaios e traduziu partes de Dom Casmurro. Conforme Valadés (1990, p. 287), nenhuma palavra dos escritos de Torri empregou-se sem uma razão nítida. A publicação do texto de Torri funciona como referência para reconhecer a minificção como um gênero literário surgido a princípios do século XX. Para Zavala (2008), “a minificção não é um miniconto, mas sim, um texto experimental de extensão mínima com elementos literários de caráter moderno e pós-moderno”. Em seus estudos, afirma 63 Em outro texto, Zavala (2008) usa o termo minificção como sinônimo de cuento ultracorto. 64 Estudar a América Latina pressupõe um olhar multicultural para a enorme extensão territorial que se estende do México ao extremo sul das Américas. As realidades sociais, políticas, econômicas e culturais são distintas, principalmente, no tocante à identidade. Segundo o sociólogo brasileiro Nilson Alves de Moraes (2003, p. 157), “o debate cultural na América Latina exige que sejam consideradas duas ordens de problemas: multietnicidade e pluralidade. Sob qualquer aspecto, a região se caracteriza pela riqueza e diversidade cultural. Esta riqueza e a diversidade são observadas na perspectiva da estética e no volumoso patrimônio histórico-cultural”. Os diferentes países da América Latina foram sendo constituídos de modo plural. Sabemos que a diversidade de sua composição étnica, as diferenças entre as economias, a herança colonial com seus sistemas políticos e as guerras de independência não ocorreram da mesma forma em todos eles. Por isso, também compartilhamos com a leitura do ensaísta brasileiro Eduardo Coutinho (2003, p. 42) para a América Latina, quando o pesquisador a define como “uma construção múltipla, plural, móvel e variável”. No entanto, não só de diferenças se constitui essa “construção imaginária” da América Latina, mas também de algumas semelhanças, que identificam suas especificidades quando é comparada a América Européia, ou melhor, aos Estados Unidos (IANNI, 1993; SAFFORD, 2001). A construção do conceito de América Latina decorre da necessidade de compreender seu processo de formação identitária, porque, de um lado, temos uma identidade continental e, do outro, uma identidade nacional, multicultural dentro do próprio país. Por ocasião da independência dos Estados, o grande desafio era o de formar uma identidade a partir de nações separadas e distintas. Apesar de a independência preceder tanto a nação quanto ao nacionalismo, há um sentido único para a identidade dos Estados. Os mesmos travam um dilema de não serem semelhantes o suficiente para criar uma identidade continental e não divergirem, entre si, o bastante para construir uma sólida identidade nacional. O ensaísta mexicano Octavio Paz (1975, p. 153) tece uma leitura sobre o tema, revelando a dificuldade em definir a América Latina quando diz “¿es una o varias o ninguna? Quizá no sea sino un marbete que, más que nombrar, oculta una realidad en ebullición – algo que todavía no tiene nombre propio porque tampoco ha logrado existencia propia”. 72 tratar-se de um gênero novo, distinto do conto, da poesia, do romance e do ensaio, sendo assim, necessita de ferramentas próprias para sua compreensão. Segundo Zavala (2008), podemos entender como miniconto aquele cuja mensagem é auto-suficiente, portanto, uma narrativa completa, aquela que apresenta um caráter tradicional. Além disso, mantém os traços do conto clássico tradicional, como o tempo, o narrador omnisciente, os personagens arquetípicos, o tempo seqüencial, o espaço verossímil, a linguagem literal, as vozes implícitas e a extensão breve. Tal concepção assemelha-se, em parte, à visão da crítica venezuelana Violeta Rojo (1997, p. 523) ao defini-lo: “o miniconto distingue-se precisamente por sua dificuldade de caracterização e categorização, sua ambigüidade genérica, seu caráter de texto inclassificável”65. Rojo (1997) acredita que as origens do miniconto na América Latina ainda não estão muito evidentes, porém reconhece que, antes de Torri, três poetas são considerados como os precursores dessa modalidade: o nicaragüense Rubén Darío, o chileno Vicente Huidobro e o venezuelano José Antonio Ramos Sucre. Durante os anos trinta, quarenta e cinqüenta, ao lado de Torri, estão Jorge Luis Borges, Juan José Arreola, Enrique Anderson Imbert e Augusto Monterroso, a quem a crítica expõe a expansão do gênero. Ao final dos anos sessenta e princípio dos setenta, destacam-se Marco Deveni, Guillermo Cabrera Infante e Julio Cortázar. Rojo (1997, p. 531) constrói, em seu texto, uma trajetória para a aparição e manutenção dos contos curtos na Venezuela, mas que, segundo a pesquisadora, se estende a todo continente. Ela busca, através do diálogo com escritores renomados, uma explicação para o cultivo da brevidade no processo de criação literária, concluindo que 65 “El minicuento se distingue precisamente por su dificultad de caracterización y categorización, su ambigüedad genérica, su carácter de texto inclasificable”. [Tradução nossa] 73 certa parcela não sabe por que redige textos tão breves, mas acaba por acreditar que seja uma reação a um estilo literário anterior; outros porque acreditam que seja uma moda passageira; muitos afirmam a contribuição de tertúlias e encontros literários, que possibilitaram repensar a narrativa desses anos e os recursos criativos. A pesquisadora venezuelana define a estrutura do miniconto como a de uma narrativa implícita ou explícita, na qual personagens realizam ações num espaço e tempo definidos. Ela também toma, como referência, o fato de sua extensão não poder ultrapassar uma página ou, resgatando o pensamento de Poe, que o leitor consiga, num único olhar, ser capaz de acessar todo o texto. Rojo (1997) defende que, normalmente, os autores de minicontos partem de temáticas já conhecidas do público leitor para que ganhem mais dinamismo em seus escritos ou desenvolvam práticas intertextuais de escritura. Em contrapartida, a minificção surge de uma releitura crítica de outros textos, compartilhando idéias. Como características do gênero minificção, temos a hibridação genérica66, a intertextualidade, a ironia, o humor e o meta discurso. Em suma, um gênero oposto ao miniconto, já que este, por sua estrutura, não recorre ao emprego de alguns recursos da linguagem ou o encontro com outras modalidades textuais. A diferença entre o miniconto e a minificção também se dá no momento da leitura dos textos. O primeiro sinal de reconhecimento de uma minificção reside no fato de reler o texto para explorar o maior número possível de recursos empregados pelo enunciador. Se por um lado, podemos comparar a minificção à poesia, já que, a cada leitura, surgem novas revelações; por outro lado, o miniconto esgota-se já na primeira leitura. Outra diferença entre ambos os gêneros está na forma como o início e o final das narrativas se constroem. Nas minificções, o início é 66 Termo empregado por Zavala (2006) para fazer alusão à mescla da minificção ao conto, ao ensaio, à fábula, à poesia, ao poema em prosa e outros. 74 enigmático, constituindo um primeiro plano de destaque da narrativa, a ação mais importante já pode ter ocorrido. Conforme os formalistas russos, seria um início descritivo, conhecido pelo procedimento in media res, enquanto o final é incompleto, nomeado de final narrativo por Zavala (2008), surgindo outro enigma a ser evidenciado pelo leitor. Nos minicontos, o processo é inverso, porque o início se explica a partir do que virá em seguida e o final esclarece o fato narrado. Podemos afirmar que a minificção surge da releitura dos demais gêneros, sua escritura é híbrida e pode ser intertextual. Segundo Zavala, a minificção constitui-se o mais recente gênero literário, apesar de ter aparecido desde os primeiros momentos do século XX, porém será na última década do mesmo século que tal prática foi entendida como uma modalidade literária independente67. Para o investigador, a minificção seria o gênero mais “fronteiriço da literatura” (ZAVALA, 2008), porque nele encontramos, por exemplo, traços com a escritura digital68. As medidas estabelecidas por Zavala são decorrentes de sua análise de antologias de contos e dos limites solicitados pelos concursos do gênero em revistas e/ou periódicos que, de certa forma, moldaram o formato dos mesmos. Dentro do cenário mexicano, podemos citar o concurso69 do conto brevíssimo promovido pela revista El Cuento, organizada por Valadés, cujo limite variava de 250 a 500 palavras. 67 O teórico afirma que é importante classificar o conto, porque o leitor sempre gera expectativas específicas para qualquer escrito. Borges (1997) corrobora a idéia do teórico mexicano e afirma que os objetivos de leitura são diferentes a partir da eleição do gênero. Por exemplo, ler um conto difere da leitura de um artigo de uma enciclopédia. De acordo com Zavala (2006), o conto convencional oscila entre 2.000 e 30.000 palavras, em oposição, reconhece três tipos de contos breves, aqueles cujo número não ultrapassa 2.000 palavras, são eles: cuento corto (1.000 a 2.000 palavras), muy corto (200 a 1.000 palavras) e ultracorto (1 a 200 palavras). 68 A fragmentação trazida pela escritura hipertextual aproxima-se do conceito de minificção defendido por Zavala (2000). 69 Na atualidade, ainda encontramos concursos em prol do gênero, como por exemplo: o Concurso Anual de Minicuentos de la Dirección de Cultura del Estado de Araguá (Venezuela), o Concurso de Minificción de la Revista Maniático Textual (Argentina), o Concurso de Minicuentos y Minipoesía de la Revista Casa Grande (Comunidade de Colômbia em México) e o Concurso de la Revista Zona (Colômbia). 75 Os cuentos cortos recebem diferentes nomeações se analisamos antologias internacionais, como por exemplo, sudden fiction (por Charles Baxter), cuentos breves (por Julio Cortázar), short shorts (pelo crítico americano Irving Howe), cuentos microcósmicos (pela ciência ficção), porém todas culminam na defesa de histórias completas em suas tramas, com personagens e clímax desenvolvidos, ainda que um dos elementos narrativos seja condensado. O crítico Irving Howe (1983) define o cuento corto como uma representação paradigmática capaz de provocar no leitor uma imagem instantânea de uma vida, um fluxo de memória, a capacidade de comprimir um incidente. Charles Baxter (1989) constrói, em seu texto, uma leitura interessante da diferença de tratamento atribuído às personagens no conto curto, no conto tradicional e no romance. No primeiro, ele acredita que os personagens vivem em momento de “súbita tensão”, já que não há momento para uma longa e complexa maturação das idéias como acontece no romance e no conto convencional. Como exemplo de cuentos cortos, Zavala destaca alguns textos e/ ou obras: “El ramo azul”, de Octavio Paz; “El eclipse”, de Augusto Monterroso; “Amargura para tres sonámbulos”, de Gabriel García Márquez; Las ruinas circulares (1964), de Jorge Luiz Borges, a produção contística de Mario Benedetti e as narrações breves de difícil classificação de Felisberto Hernández, Oliverio Girondo e Macedonio Fernández. O cuento muy corto também é chamado de flash fiction por Zavala que se refere a ele como micro-histórias ou narrações instantâneas. A crítica Irene Zahava (1990) tenta definir os contos muito curtos como aqueles que são concebidos num espaço como o destinado para escrever uma mensagem num cartão postal ou, ainda, a duração de uma ficha numa cabine telefônica. 76 Suzanne Ferguson (1994) apresenta os contos muito curtos como tipos de escrito em que se rompe a linearidade da seqüência narrativa e os divide em duas classes a partir da estratégia adotada de sua criação: elípticos, quando há omissão de palavras ou fragmentos do relato, ou metafóricos, quando ocorre a substituição de fragmentos por outros elementos, ou dissonantes ou inesperados. O emprego de elipses e de metáforas justifica a aproximação do gênero aos textos poéticos, tendo em vista que os recursos de estilo de ambos se fundamentam sobre os mesmos alicerces. Segundo Zavala (2006), os cuentos muy cortos costumam ter títulos enigmáticos, certa ambigüidade temática e de estrutura, marcas de pontuação aleatória e os finais são abruptos ou enigmáticos. Por conta dessa estrutura, exige-se um leitor totalmente participativo e ativo para completar a trama. Acrescenta, ainda, que esses contos apresentam traços semelhantes aos ultracortos. Como exemplos de cuentos muy cortos, o crítico destaca alguns contos de Manual de zoología fantástica (1957), de Jorge Luis Borges; de Historias de cronopios y de famas (1962), de Julio Cortázar e na seção Arenas Movedizas de ¿Aguila o sol? (1949), de Octavio Paz. Os cuentos ultracortos70 sintetizam, conforme Zavala (2006), a essência do conceito de minificção e, por isso, considerados o conjunto mais complexo dentro do gênero. Não apresenta os mesmos elementos narrativos do conto tradicional por sua brevidade, em contrapartida, surgem num trabalho intertextual com outros textos, seja na utilização paródica ou irônica de gêneros clássicos (fábulas, bestiários, epigramas, haicais), seja na apropriação de conjuntos extraliterários (lendas, tradições culturais). A intertextualidade (por hibridação genérica, alusão, citação, paródia ou silepse) e a ironia são 70 Cortázar nomeia esse tipo de texto como “textículos” ou “minicuentos”. Alfonso Reyes preferiu os termos “apuntes”, “cartones” e “opúsculos” para fazer referência a seus trabalhos mais breves. Também encontramos fontes de outros escritores que denominam esses textos como “detalles”, “instantâneas”, “miniaturas”, “cuadros” e “situaciones”. O escritor Philip O’Connor propõe chamar de “cue” e Russell Banks de “poe”, em homenagem a Poe. In: Zavala (2000). 77 marcas imprescindíveis nesse tipo de relato, o qual, segundo Zavala, consegue representar, com nitidez, os dilemas sociais e ideológicos das sociedades latino-americanas. Como exemplo de cuentos ultracortos, Zavala sinaliza as seguintes obras ou alguns textos de El Hacedor (1960), de Borges; Memoria del fuego (1982-1986), de Eduardo Galeano e alguns clássicos mexicanos como Varia invención (1955) e La feria (1962), de Juan José Arreola; De fusilamientos y otras narraciones (1964), de Julio Torri; Infundios ejemplares71 (1969), de Sergio Golwarz; Sólo los sueños y los deseos son inmortales, Palomita (1986), de Edmundo Valadés; La oveja negra y demás fábulas (1969), de Augusto Monterroso; El grafógrafo (1972), de Salvador Elizondo e as sessões Mínima Expresión e Casos de la vida real do livro La sangre de Medusa y otros cuentos marginales (1990), de José Emilio Pacheco. Octavio Paz e Alfonso Reyes também são lembrados associando suas narrativas muito curtas à prática direta da escritura de haikus. A professora Linda Egan (1995) também estuda o fenômeno da hibridação genérica em seu artigo sobre a distinção entre crônica e conto na escritura de alguns narradores mexicanos contemporâneos. Para ela, na literatura mexicana, sempre houve uma dificuldade de distinguir entre o conto tradicional, a crônica, o ensaio e a nota periodística. Já os contos muito breves tendem a se aproximar do gênero poema em prosa, às vezes, por afinidades temáticas, outras, pela forma de recepção de determinado texto. 71 Acreditamos válido informar que essa obra se constitui de um conjunto de 42 contos, em que o primeiro inicia com 500 palavras, considerando-se como um conto curto, porém, a cada página, o leitor vai deparando-se com contos cada vez mais curtos até o texto final constituído de uma única palavra. O conto classificado pela crítica como um dos mais breves do mundo possui como título Dios e essa é a única palavra enunciada. Interessante levar em conta em sua análise, o contexto de sua produção (o México, um país altamente católico) e a liberdade proporcionada pelo uso deste vocábulo (a partir do mundo intertextual de cada leitor, teremos leituras diferenciadas e construídas a partir de uma leitura elíptica ou metafórica). Apesar de ser constituído por uma única palavra, o conto apresenta uma narração de extensa imaginação. In: Zavala (2006). 78 A lenda e a balada são espécies narrativas cultivadas pelo Romantismo que podem ser, essencialmente, consideradas como poemas em prosa, um bom exemplo disso são as clássicas Leyendas de Bécquer, em que algumas adotam a disposição, o ritmo, a sonoridade e o tom musical, características distintivas do poema em prosa que o diferenciam do autêntico conto de acordo com Baquero Goyanes (1997). Para o crítico espanhol, o conto diferencia-se do poema em prosa: Quando podemos resumir o assunto, o conteúdo de um relato breve em prosa (quando podemos contá-lo) é que, sem dúvida, estamos diante de um conto. Quando não seja possível ou, pelo menos, não resulte fácil tal experiência, podemos supor que estamos diante de um poema em 72 prosa (BAQUERO GOYANES, 1997, p. 191) A proximidade entre os gêneros encontra lugar em alguns relatos breves do escritor Rubén Darío, responsável por consolidar a definição do poema em prosa ao publicar o livro Azul, conjunto de contos em prosa e seis composições em verso. Foi esse livro que lhe deu a celebridade continental e, com ele, começa em 1888, data de sua publicação, o contágio da poesia nova. Nesse momento, Darío transpõe a musicalidade, a linguagem e o ritmo para sua prosa, tendência essa que o escritor denominou de “escritura artística”, numa carta publicada em La Nación, periódico em que foi correspondente, datada de 1913 quando estava em Paris. Nessa data, o poeta já tinha vivenciado experiências literárias em Buenos Aires, Colômbia, Paris e Espanha, inclusive, colaborou com a Generación del 98. Acreditamos que esses contatos possam ter contribuido para que Darío experimentasse novos elementos rítimicos do verso na prosa. Para Baquero Goyanes, o conto seria o gênero mais apropriado para tais experimentos, como prosificar o verso e poetizar a prosa. Outro gênero, freqüentemente, confundido com o conto é a novela corta. Ressaltamos tal modalidade, porque analisaremos, no 72 “Cuando podemos resumir el asunto, el contenido de un relato breve en prosa (cuando podamos contarlo) es que, indudablemente, estamos ante un cuento. Cuando no sea posible o, por lo menos, no resulte fácil tal experiencia, puede suponerse que lo que tenemos delante es un poema en prosa”. [Tradução nossa] 79 terceiro capítulo deste estudo, um exemplo dessa outra forma de narrar o mundo. Alguns críticos mostram-na como o meio caminho entre a novela e o conto; outros, como sinônimo da nouvelle francesa; outros a reconhecem como a herdeira das novelas ejemplares de Cervantes. O consenso em buscar um conceito para a novela corta parece amparar-se na noção de extensão, seja no número de páginas, ou no tempo destinado à leitura. Baquero Goyanes (1997), semelhante à escritora espanhola Emilia Pardo Bazán, define o gênero como um cuento largo, pois acredita que haja inúmeras características possíveis para sua vinculação ao conceito de conto, mesmo que seja mais problemático que o de romance. Conforme o crítico, a novela corta apresenta os mesmos elementos do conto, porém exige um número maior de páginas para o seu desenvolvimento, como vemos nas palavras que seguem: O romance curto não é, por conseguinte não deve ser, um conto dilatado; é um conto longo, coisa muito diferente, já que o primeiro se refere ao aumento arbitrário – com personagens secundários, interferências próprias do romance extenso –, e o segundo alude a um assunto para cujo desenvolvimento não são necessárias digressões, 73 mas sim mais palavras, mais páginas (BAQUERO GOYANES, 1997, p. 192) Não podemos resumir a definição de novela corta como a de conto pelo mero fato de sua extensão, contudo precisamos reconhecer que, por trás de um texto, existe um artista responsável por recortar, da realidade, uma imagem ou um instante. Além disso, o artista é capaz de transformar suas imagens, seus sonhos, suas reflexões em linguagem literária, tendo consciência do número necessário de linhas e/ou páginas para registrar suas idéias. Além da diferença de extensão, o crítico norte-americano Brander Matthews (1997) expõe a espécie como diferença básica entre o conto 73 “La novela corta no es, por consiguiente no debe ser, un cuento dilatado; es un cuento largo, cosa muy distinta, ya que el primero se refiere a aumento arbitrario – con personajes secundarios, interferencias propias de la novela extensa –, y el segundo alude a un asunto para cuyo desarrollo no son necesarias digresiones, pero sí más palabras, más páginas”. [Tradução nossa] 80 e o romance, pois o conto apresenta capacidade de unidade e de precisão, característica ausente no romance. Segundo o crítico, as três falsas unidades do teatro clássico francês estão representadas num conto: uma ação, um lugar e um tempo determinado. Em suma, o conto é mais intenso, gera um efeito singular, completo e auto-suficiente, já o romance tem uma estrutura segmentada numa série de capítulos. Isso requer um trabalho diferenciado por parte do contista e do romancista, ambos narram, mas o primeiro acaba sendo muito mais conciso, em oposição ao segundo, que pode transitar com mais facilidade dentro da obra. Matthews (1997) alerta, em seu texto, que nenhum outro gênero como o conto exige uma nitidez em sua escritura. O escritor, antes de se aventurar na arte de contar, precisa, primeiro, ter evidente a concepção do assunto para conceber a forma do texto. De acordo com o crítico: O conto não é nada se não existe uma história que contar; até pode-se dizer que o conto não é nada se não tem trama, a não ser porque ‘trama’ poderia sugerir, a alguns leitores, certa complicação e elaboração detalhada que não são certamente necessárias nele. Porém um plano – se esta palavra se presta menos que ‘trama’ a más interpretações – é requerido por todo conto, enquanto que é fácil citar romances de importância que 74 são completamente amorfos (MATTHEWS, 1997, p. 63). O escritor e político dominicano Juan Bosch, em seu ensaio “Apuntes sobre el arte de escribir cuentos”, também compartilha a idéia acima. Explica que a escolha de um tema para um conto faz parte da técnica do ofício de escrever. Bosch (1997, p. 366) considera o conto como o mais difícil dos gêneros e revela: Um bom escritor de contos demora anos para dominar a técnica do gênero, e a técnica se adquire com a prática mais que com o estudo. Porém nunca se deve esquecer que o 74 “El cuento no es nada si no hay una historia que contar; hasta puede decirse que el cuento no es nada si no tiene una trama, a no ser porque ‘trama’ podría sugerir a algunos lectores cierta complicación y elaboración detallada que no son ciertamente necesarias en él. Pero un plan – si esta palabra presta menos que ‘trama’ a malas interpretaciones – es requerido por todo cuento, mientras que es fácil citar novelas de importancia que son completamente amorfas”. [Tradução nossa] 81 gênero tem uma técnica e que esta deve ser conhecida a 75 fundo . A técnica do contista dá-se somente através do trabalho constante de experimentação, mediação e dedicação sobre o escrito. Somente dessa forma, o escritor será capaz de compreender a “arquitetura do conto”, denominação atribuída por Bosch (1997, p. 369). Ainda que a forma e o estilo sejam importantes, o assunto será o elemento mais importante do conto para alcançar seu propósito de entregar, aos leitores, imagens da vida com riquezas de detalhes. Não queremos dizer que o conto deva carecer de forma, mas que essa se dá a partir do plano construído pelo artista para cada narrativa e de suas preferências de gênero. No decorrer destas páginas, mostramos como o conceito do conto (enquanto gênero e forma) vai sendo construído na literatura hispanoamericana a partir da voz de seus próprios ensaístas, contistas, romancistas e/ou poetas. Antes de concluir, voltemos à questão do processo de criação literária. Rulfo tenta explicá-lo no poder infinito da imaginação, já Mempo Giardinelli revela o segredo da criação no poder emotivo que habita cada escritor, porque, afinal, todo escritor busca idéias e recria a partir de vozes que admiram. Julio Torri também expressou a existência de dois tipos de escritores, os de imaginação e os de sentimento, ressaltando que a verdade literária se expressa na confluência desses elementos no texto. De acordo com Giardinelli (1998), “[...] na arte, sempre é assim: armazenamos e copiamos, contribuindo. E para fazer isso, é preciso ler, presenciar, experimentar a literatura, pois, como conhecimento, como ontologia76”. O escritor 75 “Un buen escritor de cuentos tarda años en dominar la técnica del género, y la técnica se adquiere con la práctica más que con estudio. Pero nunca debe olvidarse que el género tiene una técnica y que ésta debe conocerse a fondo”. [Tradução nossa] 76 “En el arte siempre es así: acopiamos y copiamos, aportando. Y para hacerlo hay que leer, presenciar, experimentar la literatura, pues, como conocimiento, como ontología”. [Tradução nossa] Texto não paginado. 82 argentino mostra que a criação deve ser entendida como um eterno caminhar fruto de leituras, experimentalismo e ousadia intelectual. Sua percepção para com o trabalho do escritor se complementa quando o mesmo afirma: Penso que o escritor tem sempre que procurar ser o que – mais além de seus temas – não se repete, não cai sempre na mesma fórmula e não se reitera na utilização de uns poucos recursos mais ou menos brilhantes. Eu admiro mais, e aspiro ser, essa classe de escritor que sempre busca andar por caminhos difíceis, porque lhe apaixona buscar e porque tem dentro de si, parafraseando a Miguel Hernández, um raio que 77 não cessa . O processo de criação é tão intenso para Giardinelli, que o mesmo faz referência ao texto como um ser originário, criado e alimentado dentro do corpo do escritor que, ao ser expelido, explode na materialidade do papel como uma flecha pronta para atingir o coração do leitor. O texto precisa ter a capacidade de mostrar o mundo, de ser um espelho de alguma realidade; deve possuir características que permitam recordá-lo como um escrito memorável. Nosso objetivo, nesta seção do estudo, foi o de revelar o conto e suas múltiplas facetas como uma forma narrativa em constante processo de definição e de mutação. Podemos sintetizar a minificção como uma narrativa multiforme: contos curtos cuja estrutura se diferencia em parte da do conto tradicional, contos com liberdade narrativa, narrações com tom poético, finais surpreendentes ou ausência dos mesmos, gêneros arcaicos parodiados, temáticas diferentes e uso de recursos como a ironia e a intertextualidade. Os aspectos destacados, até esse momento, são importantes para compreender a obra de José Emilio Pacheco como uma literatura cujos gêneros dialogam; o processo de criação literária renova-se constantemente enquanto certas temáticas são constantes. 77 “Pienso que uno siempre tiene que procurar ser la clase de escritor que – más allá de sus temas – no se repite, no cae siempre a la misma fórmula y no se reitera en la utilización de unos pocos recursos más o menos brillantes. Yo admiro más, y aspiro a ser, esa clase de escritor que siempre busca andar por caminos difíciles, nomás porque le apasiona buscar y porque tiene adentro, parafraseando a Miguel Hernández, un rayo de no cesa”. [Tradução nossa] Texto não paginado. 83 1.2. A poesia: irmã misteriosa do conto? El poema seguirá siendo una manifestación de la libertad del ser humano, una imagen del hombre que se crea a si mismo por la palabra. Octavio Paz (1989) A poesia pode nos fazer ver o mundo sob um novo aspecto, ou nos fazer descobrir aspectos até então desconhecidos desse mundo; pode chamar nossa atenção sobre os sentimentos sem nome e mais profundos em que raramente penetramos. T.S. Eliot apud ANTÔNIO (2002, p. 31) Abrimos esta seção com um título que nos permite resgatar o pensamento de Julio Cortázar sobre o parentesco entre o conto e a poesia. Para o referido autor, a origem do conto está intrinsecamente ligada à poesia, de modo que a intensidade com que a palavra toma o leitor, característica tão defendida por Cortázar e demais críticos, está presente em ambos. Os dois gêneros também são herdeiros diretos das raízes mais antigas da literatura, a tradição oral. Segundo Carlos Pacheco (1997), tanto o conto como a poesia brotam de uma revelação instantânea, proporcionando, ao leitor, uma sensação de prazer e plenitude. Mas para que essa culminância ocorra, há a necessidade de um trabalho quase artesanal por parte do escritor na busca pela melhor palavra. Se por uma lado a tensão, o ritmo, a pulsação interna e o imprevisto são características fundamentais do conto; por outro lado, dão sentido ao poema, conforme Cortázar. O romancista William Flaulkner também traçou um paralelo entre a poesia e o conto e relatou, durante uma entrevista, que os considera como os gêneros de mais difícil criação por parte do artista. O escritor revela: Sou um poeta fracassado. Acho que todos os romancistas queriam primeiro escrever poesia. Ao descobrir que não conseguem, tentam o conto, que é a forma mais exigente depois da poesia. E após fracassar no conto, um romancista se dedica a escrever romances (apud REVIEW, 1988) 84 Acreditamos que as palavras de Flaulkner possibilitam uma reflexão sobre os pontos em comum entre o trabalho de criação artística dos dois gêneros. O certo é que temos exemplos de escritores que atuam no romance e no conto, embora com resultados pouco uniformes. E, outros que nunca se aventuraram a sair do espaço dos contos ou da poesia, como por exemplo, Jorge Luis Borges. Outros estudiosos justificam a proximidade entre os gêneros por conta da perceptível brevidade de ambos. Poe, em Filosofía de la composición (1846), referia-se à criação do poema e, nesse momento, aparecem todos os elementos que, tempos mais tarde, se aplicam ao conto. Sua teoria, reforçada por Chéjov, baseava-se em que o talento da escritura estava justamente no ato de ser sucinto. Segundo o crítico alemão Emil Staiger (1974, p. 72): “[...] cada poesia participa, em maior ou menor escala, de todos os gêneros literários, já que nenhum deles, como obra artística baseada na língua, consegue furtar-se à essência da linguagem”. Staiger sinalizou, muito antes, a hibridação dos gêneros porque acreditava ser difícil impor limites à linguagem. Hegel (1980) conceitua o lirismo enquanto forma individual e particularizada de expressão poética. Segundo o filósofo, o lirismo limita-se ao homem individual e, conseqüentemente, às situações e objetos particulares. Mesmo apontando a particularidade e a individualidade como bases fundamentais da lírica, Hegel reconhece neste gênero um caráter social: a lírica, como as formas épicas, pode ligar-se a todos os assuntos da vida social humana, entretanto, ao contrário da épica, a lírica não é possível expressar a totalidade do espírito nacional, mas apenas lances particulares, empíricos, desta totalidade. Para a professora brasileira Sônia Brayner (1979), a principal contribuição da lírica é o mergulhar profundo na experiência subjetiva do indivíduo. Esse mergulho de conhecimento, que engendra uma ficção de caráter lírico, não apresenta um conceito rígido em relação à forma, conceituado pela especialista como o instante cuja “a plasticidade da 85 imagem invade a prosa”, momento em que o discurso da prosa vacila e se poetiza. A aparente tendência da literatura contemporânea de diluir as fronteiras entre os gêneros nos possibilita afirmar que o gênero, que Cortázar (2008) definiu como “irmão misterioso da poesia em outra dimensão do tempo literário”, o conto, pode ser “invadido” por características estilísticas de outros gêneros, especialmente da lírica. Cortázar vai mais além ao falar do “golpe de estado” que dá a poesia no território da prosa ficcional, golpe que “revela, em toda sua violência magnífica, as ambições do nosso tempo e seus lucros”. Acreditamos que esse golpe – recorte de uma realidade significativa – seja tão intenso na poesia assim como no conto, cuja imagem captada pelo artista revela ao leitor uma possibilidade de leitura mais ampla, não restrita ao argumento visual ou literário contido no texto. Para José Emilio Pacheco a poesia e a prosa também se assemelham78. O escritor informa que sua prosa surge da necessidade de complementar sua poesia79: Yo diría que los géneros no son incompatibles, un cuento es lo más cercano a un poema (no en términos de ‘prosa poética’, sino de concentración e intensidad), y con frecuencia se me ocurren historias que, según creo, pueden interesar. En mi caso, la poesía no basta; el relato es un complemento necesario. Hay grandes periodos de esterilidad: la lírica no puede nacer voluntariamente. Entonces vuelve el deseo de escribir narraciones quizá porque, antiguas y modernas, las leo, releo en todo momento… La prosa no-narrativa, de intención periodística o ensayística, la he practicado invariablemente de encargo. Aunque intento hacerla lo mejor posible, en su relectura me deprime: nunca redacté un artículo, 78 No poema “Carta a George B. Moore en defensa del anonimato” (PACHECO, 1987, p. 45-46), o autor sinaliza o poema como uma forma que pode ser transformada em vários outros gêneros: [...] Y voy a usar, así lo hacían los antiguos, / el verso como instrumento de todo aquello / (relato, carta, drama, historia, manual agrícola) / que hoy decimos en prosa”. 79 O Rei Don Juan Carlos I da Espanha (2009), em seu discurso de entrega do Prêmio Cervantes a Pacheco, destaca a capacidade do autor mexicano em transitar por diferentes gêneros comparando-o a Miguel de Cervantes e ressalta, ainda, a aproximação da experiência humana em sua obra. Sobre o estilo da escritura de Pacheco, o rei comenta: “Ha viajado a través de la riqueza y los matices del español, desde lo conversacional hasta la alegoría, desde el monólogo dramático a la voz del cronista, desde el guiño irónico hasta la hondura de un compromiso ético, ejemplar y necesario […] Pacheco nos adentra en un mundo poético marcado por la conciencia de lo efímero, y en una narrativa que modula y sopesa de tal modo que nada aparece ni parco ni desmedido”. 86 nota, reseña, prólogo que fuera más allá de sus límites específicos y adquiriese un mínimo valor propio. Cumplida su misión informativa, tales páginas periclitan vertiginosamente (PACHECO, 1966) A versatilidade literária de Pacheco80 é demonstrada por todos os gêneros percorridos pelo escritor. Segundo ele, a idéia a ser desenvolvida num texto orienta a forma do mesmo, prevalecendo uma marca de estilo que lhe é própria: a brevidade. Num estudo da aproximação entre o conto e a poesia, o poeta venezuelano Javier Lasarte (1991, p. 11), nos anos setenta, considera a brevidade da poesia: Consolida-se uma tendência cujo perfil relativamente homogêneo predominará por um lapso de quase uma década. Referimo-nos a essa poética que tem, como centro, a idéia da brevidade, em muitos casos, coincidindo com a defesa do 81 poema breve como molde poético preferencial . No mesmo texto, o poeta reconhece as influências do conto na poesia da época e se refere à poesia de Ernesto Cardenal, Juan Gelman e José Emilio Pacheco como epigramática82. Observamos que o poema breve alcança um importante destaque na trajetória literária mexicana. Nesta seção do estudo, esperamos discutir o gênero poesia na contemporaneidade de modo a comprovar sua presença/ ausência na vida do homem com o intuito de encontrar um conceito para o mesmo. Num segundo momento, destacamos o gênero no continente americano, principalmente no cenário mexicano, como forma de elucidar as principais vozes poéticas anteriores à obra de Pacheco. Dessa forma, é nossa 80 O poeta mexicano Jaime García Terrés (1986, p. 77), após discurso de Pacheco como membro do Colegio Nacional de México, comenta sobre sua versatilidade: “José Emilio Pacheco es, ante todo, poeta. Vale decir, un hacedor intuitivo, un creador. Y esta es la manera con la cual se forma el crítico de verdad. A partir del substratum o cimiento poético, pueden derivar o no los demás géneros literarios. Pero sin dicho ingrediente o catalizador no se dan ni el narrador ni el dramaturgo, ni el crítico de magnitud apreciable y provechosa”. 81 “Se consolida una tendencia cuyo perfil relativamente homogéneo predominará por un lapso de casi una década. Nos referimos a esa poética que tiene como centro la idea de la brevedad, en muchos casos coincidiendo con la defensa del poema breve como molde poético preferencial”. [Tradução nossa] 82 Poema de breve extensão e de estrutura fixa. Tem em suas origens o sentido de verso em inscrição de caráter funerário. Na literatura grega, o epigrama possui um caráter mais reflexivo. Porém no decorrer dos tempos, passa a desempenhar, freqüentemente, outros aspectos, como político, irônico e moralizante. In: MARCHESE & FORRADELLAS (1986). 87 intenção assinalar para o leitor que tanto o conto quanto a poesia percorreram a vida literária de Pacheco. Ao analisar a obra do escritor mexicano, notamos que os textos classificados como poéticos são fundamentais para a compreensão de sua narrativa. Também encontramos fases83 em que o escritor produz muitos textos classificados como poema em prosa ou poesia conversacional84. Não será foco de análise desta tese a produção ensaística de Pacheco85. A partir das palavras de Octavio Paz, poeta e ensaísta mexicano da modernidade, constantes na epígrafe inicial desta seção, vemos que a linguagem se caracteriza como a principal responsável pelo posicionamento do homem perante a sociedade. Cabe, a este homem, vencer as barreiras do tempo, criar sua história pelo discurso e cantar em prol da nação86. Como já retratado na seção anterior, a tentativa de encontrar-se a frente de seu tempo, sempre motivou os homens, de modo que relatassem seus sentimentos e histórias, em um primeiro momento, pelo emprego de imagens e, em um momento posterior, pela elaboração da escrita. A vontade e o desejo de comunicação passam pelas mais distintas culturas, fazendo com que o homem desenvolva, ao longo dos tempos, maneiras de expressar seus pensamentos. Através desses símbolos iniciais, surge a linguagem, criando e recriando significados em nossas vidas e solidificando nosso senso de identidade87. 83 Na poesia de Pacheco, alguns temas são tratados de forma recorrente. Encontramos em sua produção: poemas de desolação, de fugacidade, históricos ou de reflexão histórica, em homenagem a outros poetas, metapoéticos, epigramas ou poemas nostálgicos. 84 Benedetti (2000) acredita que a poesia não deve se destinar somente a temas subjetivos, mas também a temas de denúncia social. O escritor uruguaio no ensaio “La realidad y la palabra” usa tais termos para fazer referência a essa poesia. 85 Desde sua juventude, Pacheco escreve artigos semanalmente em jornais mexicanos, constituindo um rico material de análise para futuros estudos. Porém esse material ainda não foi compilado. 86 O conceito de nação será problematizado no próximo capítulo. 87 O conceito de identidade aparece em diferentes momentos deste estudo. O subcapítulo 3.1.4 tratará dessa questão. Contudo, optamos por evidenciar, nesse momento, nossa leitura para o termo. Compartilhamos o conceito proposto pelo pesquisador Stuart Hall (2006) para a noção de identidade, cuja problemática se centra na crise da identidade e na substituição das antigas identidades pelas novas. A identidade é algo 88 Para a compreensão da literatura hispano-americana, notória é a contribuição das civilizações indígenas que habitavam a América antes da presença de Colombo. Por suas cartas, Colombo torna-se o primeiro escritor e divulgador do Novo Mundo, imprimindo uma imagem ao continente desconhecido do mundo ocidental. Com ele, inicia-se uma literatura de transculturação88 na América Latina89, já que, tivemos a partir do século XVI, o encontro de escritores da metrópole espanhola e outros crioulos, que ainda não evidenciavam uma literatura genuinamente nacional. As crônicas da conquista do México iniciam-se com as cartas escritas por Cortês ao rei da Espanha, Carlos V, no período entre 1519 e 1525. A elas, somam-se os relatos de outros espanhóis, como os de Gonzalo Fernández de Oviedo, Bernal Díaz del Castillo, López de Gómara, Juan de Castellanos, Frei Bernardino de Sahagún e Frei Bartolomé de las Casas. Todos esses relatos, com exceção dos de Cortês, visavam conhecer um pouco mais da essência do homem mexicano e sua história de crueldades e heroísmos, o que levou ao surgimento da epopéia no que nos caracteriza como sujeito de uma sociedade e, ao mesmo tempo, nos diferencia dos outros ou de um grupo social. Ela é determinada pelo conjunto das funções sociais desempenhadas por cada sujeito e pelo mundo externo. Em alguns momentos do estudo, faremos alusão ao conceito de identidade cultural com a intenção de destacar o pertencimento de um sujeito à cultura em que nasceu e absorveu ao longo de sua vida. O homem não possui uma identidade natural, contudo a constrói na interação com o outro da sociedade. Segundo Hall (2006, p. 38), “[...] a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento [...] Ela permanece incompleta, está sempre ‘em processo’, sempre ‘sendo formada”. Para o teórico, a identidade alterase de acordo com a maneira como o sujeito é representado, por isso, em seu estudo, apresenta três concepções de sujeito e suas respectivas identidades: o sujeito do Iluminismo, o sociológico e o pós-moderno. Apesar de defendermos, nesse momento, nossa visão para o conceito, trazemos para a discussão, em outras partes do texto, a visão essencialista, que trata a identidade como algo imutável, leitura defendida por alguns estudiosos mexicanos, entre eles Octavio Paz, como forma de o leitor perceber a “essência do homem mexicano”. Pacheco, em alguns poemas, canta em prol de uma identidade mexicana, porque reconhece o descentramento do sujeito na sociedade moderna. Desse modo, o escritor tenta diminuir o apagamento das marcas culturais nacionais no contato com as identidades globais. 88 Termo empregado pela primeira vez por Fernando Ortiz, que o utiliza no âmbito antropológico. O crítico uruguaio Ángel Rama, desde 1982, o transfere para o campo literário. A crítica Bella Jozef emprega o termo “transculturação” para se referir a Literatura Hispano-Americana iniciada no período da conquista, portanto, do encontro de raças e culturas. In: (JOZEF, 2005, p. 13-14). 89 No sub-capítulo 1.1, apresentamos nossa leitura para o conceito de América Latina. 89 Novo Mundo, uma forma de expressão que demonstra os grandes feitos heróicos e as glórias alcançadas pelos povos. Através dessa forma poética, muito se discutiu a respeito das relações estabelecidas entre a poesia e a história. Devemos reconhecer, na história, um complemento para se entender a epopéia, já que a história do passado auxilia na leitura da história do presente, possibilitando uma melhor compreensão da literatura. Como representante inicial das Letras Mexicanas, destacou-se o mestiço Francisco de Terrazas90, descendente do conquistador de mesmo nome e fiel servidor de Cortês. Até hoje, a data de seu nascimento é incerta. Pesquisas revelam que seria por volta do ano 1525, o que identificamos é o seu reconhecimento no cenário intelectual, considerado como o primeiro poeta da terra mexicana, tendo seu dom elogiado por Miguel de Cervantes no “Canto de Calíope”, em seu romance La Galatea, em 1584. Não podemos esquecer que, antes mesmo das crônicas de viagens e documentos históricos, no México, destacaram-se poetas astecas que já faziam uso da linguagem poética como forma de propagar sua cultura, bem como seus cantos testemunhavam a força, o ódio, a luta pela terra e outros fatos bélicos. Entre esses poetas, merecem ser lembrados a poetisa Macuilxochitzin e o poeta Nezahualcóyotl. Ao analisar a trajetória da literatura mexicana, nota-se claramente que esta possui certa tradição literária, em que a experiência histórica — pré-colombiana, colonial, republicana, revolucionária e pós-revolução — forneceu mecanismos para a construção de uma literatura com fortes preocupações sociais. 90 O posicionamento de Terrazas, perante as expedições de Hernández de Córdoba, Juan de Grijalba e Hernán Cortés, o posiciona como um dos primeiros representantes da geração de crioulos do Novo Mundo a expor tais expedições. Seus relatos o favorecem à medida que dosa seus textos com um olhar crítico e transcultural, transplantando as características de estilo poético da Espanha para a América, pois seus sonetos eram vivos de manifestações renascentistas e classicistas, frutos dessa época. Pacheco no poema “Francisco de Terrazas” (PACHECO, 1987, p. 69-70), retrata a figura do poeta problematizando a questão da mestiçagem: “¿Quién era en este mundo ni europeo ni indio? / Ni azteca ni español: criollo / por tanto el primer hombre de una especie nueva”. A identidade de Terrazas é construída a partir do uso da escritura: “Y halló su identidad en el idioma / que vino con la cruz hecha de espadas”. 90 Pensar a literatura mexicana não se resume somente em analisar os gêneros isoladamente, e nem impor datas e estilos a certos gêneros, mas sim compreendê-la como um verdadeiro e grande discurso que, ao longo de alguns anos, luta para se fazer real na vida e no imaginário de seu povo. Mostramos, na primeira parte deste estudo, que vivemos uma época de pluralidade de discursos, onde os gêneros são híbridos91. Pensar os gêneros na literatura não implica pensá-los separadamente, mas sim reconhecer as características estéticas e os movimentos literários específicos a cada uma das manifestações artísticas de um povo. Antes de passar a contextualizar o cenário da poesia mexicana, no qual José Emilio Pacheco se inspira, dando continuidade à discussão das temáticas mais latentes da tradição mexicana, discursamos sobre a palavra poética em tempos de valores líquidos (BAUMAN, 2005). As palavras do poeta inglês T. S. Elliot abrem o início desta seção e nos possibilitam identificar a presença da poesia em nossas vidas. Somos seres construídos pela linguagem, sendo essa nosso modo de expressão, de reflexão, de conhecimento, e, por conseguinte, nosso modo de criação. A linguagem possibilita a compreensão de diversos signos, sejam eles verbais ou não verbais. Nessa combinação, surgem palavras e imagens capazes de retratar diferentes realidades e, sobretudo, diferentes pontos de vista. Desde o início de nosso estudo, quisemos mostrar que a palavra caracteriza o homem, pois não há sociedade sem a ferramenta da comunicação. Desde sua formação, a sociedade convive com trocas comunicativas e simbólicas proporcionadas pelo poder do discurso. Não podemos nos esquecer de que as palavras são produtos de uma época, portanto, de uma cultura e fazem com que o homem crie e represente a si mesmo, através da própria linguagem. Assim, sem o discurso, não 91 Sobre essa questão, Zavala (2008) opina de modo semelhante a García Canclini (1999). 91 teríamos civilização, muito menos a complexidade das relações sóciohistóricas e pessoais do mundo. Ao analisar a história do homem, não podemos deixar de inserir a essa a história da linguagem, já que graças a seus sentidos, o indivíduo torna-se um ser de significações, recriando o mundo, produzindo conhecimentos e transmitindo cultura. Dessa forma, com seu trabalho, o homem caracteriza-se como um ser pertencente a uma sociedade. A palavra é imaginação, enunciado e enunciação dos desejos humanos. Esses desejos impõem ritmo e sentido, assim como, imagem e emoção à palavra. Desse modo, o homem precisa fazer uso da palavra poética, pois só ela simboliza o verdadeiro som dos signos enraizados em nossos discursos. Os sons permitem desvendar e atribuir relações e significações à nossa realidade. A palavra poética é capaz de representar o que vemos, percebemos e sentimos, comunicando o que está ausente em nós ou a nosso redor. Revelar o ausente resume-se num dos desafios da poesia, pois esta tenta expor o que não conseguimos dizer na vida real; tenta descobrir detalhes ou sinais do indizível. Cabe, à poesia, transformar o não dito em linguagem significativa e criadora. Na mudança do século XX para o XXI, novamente a poesia está sendo problematizada e rediscutida pela sociedade de uma forma geral. Sendo assim, os poetas travam um trabalho constante de redescoberta de sentidos, valores e formas para o texto, contribuindo para que o homem também se veja como um ser portador de nova linguagem. Para que o homem se reencontre consigo mesmo nestes tempos de valores líquidos, cabe, à literatura, contribuir como um antídoto na recriação de sentidos à vida em sociedade. Recriar sentidos não pressupõe aceitar a desfiguração ou fragmentação do ser e a neutralidade dos discursos, mas sim permitir que pensemos, sintamos, imaginemos e estabeleçamos um novo olhar às nossas ações. Cabe aos escritores, com seus cantos, despertar ritmos e sensações veladas pela correria da vida a partir da chamada (pós) modernidade. Assim, o texto deve funcionar como uma chama, despertando energias no transcorrer de sua leitura. 92 Para o poeta e filósofo pré-socrático Heráclito92, a poesia necessita do silêncio. Somente respeitando esse silêncio, compreendemos a multiplicidade de suas leituras. O silêncio poético seria algo em constante mudança e que entenderíamos como o conjunto de ritmos, mistérios, imagens e sentidos produzidos pelos atos individuais de leitura. Em cada ato de leitura, não somos mais os mesmos; nem o próprio texto poético se mantém fiel. Como nos expõe Heráclito93 num de seus fragmentos, nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio, já que na segunda tentativa, não seremos os mesmos, incluindo o rio e suas águas. Resta-nos entender que as imagens que estão ao alcance de nossos olhos ou até mesmo em nosso inconsciente mudam a todo o momento; o que encontramos perante nós, em certo instante, será diferente do que era há pouco e isso nos permite afirmar que as imagens podem ganhar novas acepções num futuro. Os poemas com toda a multiplicidade de vozes seguem transformando em linguagem simbólica fatos do nosso cotidiano, pois a poesia está em todos os lugares, restando-nos conviver com seus signos. Conforme o poeta simbolista francês Stéphane Mallarmé94, a poesia não se constrói com idéias, mas sim com palavras. Dessa maneira, revela, mais uma vez, a importância da palavra na construção do som, do sentido e do ritmo, sendo esses os responsáveis por dar vida própria ao texto, que reconstruímos com nossos múltiplos intertextos. O ser humano é um verdadeiro intertexto, não existe separado dos demais. Sua vida e suas ações sempre se cruzam com as do outro, e assim, os discursos se interpenetram. Para Bakhtin (1992), a noção do “eu” nunca é individual, mas sim coletiva e social. Ao aprender a falar, o homem também aprende a pensar à medida que cada palavra revela as experiências sociais e os valores de sua cultura. 92 In: ARANHA, Maria Lúcia de Arruda & MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de filosofia. São Paulo: Moderna, 1993, p. 93. 93 Pacheco no poema “Don de Heráclito” (1999, p. 30) recorda que nada retorna, nem permanece no seu estado original, seguindo o pensamento heraclitiano, e disso surge a nostalgia pelo perdido como podemos ver nos seguintes versos: “El reposo del fuego es tomar forma/ con su pleno poder de transformarse./ Fuego del aire y soledad del fuego/ al incendiar el aire que es de fuego. / Fuego es el mundo que se extingue y prende/ para durar (fue siempre) eternamente”. O fogo simboliza a eterna luta entre os contrários. 94 In: (ANTONIO, 2002, p. 41). 93 O texto traz, em seu discurso, sinais que permitem identificar o momento e o lugar de sua produção, de maneira que o universo simbólico criado pelo escritor também inclua as relações do homem em sociedade. Podemos identificar a função da poesia a partir do discurso do pensador alemão Walter Benjamin (1994, p. 226), ao tecer comentários sobre a obra modernista Angelus Novus, de Paul Klee. Segundo ele, a obra: [...] representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força, que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso. Por seu discurso, entendemos que a poesia deve assumir o papel do anjo da história, com suas asas voltadas para o futuro, na busca de novos caminhos a serem desvendados. Os olhos de espanto e a boca do anjo não podem mais simbolizar somente as catástrofes, o medo e o peso da história de nossos antepassados, mas sim a luta do coletivo em transformar a existência. Por isso, resta-nos poetizar nossas vidas. A seguir, começaremos a tecer uma visão panorâmica das vanguardas mexicanas, assim como o estilo literário de José Emilio Pacheco ao colocar-se como um grande defensor das causas do povo mexicano. A explosão das literaturas de vanguarda deu-se no México no período da pós-revolução, o que gerou no país uma forte luta entre a vanguarda estética e a política, devido às evidências históricas serem mais acentuadas nesse determinado momento. Para fixar, em termos temporais, a esse período vanguardista mexicano, propõe-se entendê-lo como dividido em dois momentos, a vanguarda, iniciada cronologicamente com a Revolução Mexicana e a Primeira Guerra Mundial, estendendo-se aproximadamente até 1920, 94 período pelo qual os escritores se formam em meio ao horror proporcionado pelas guerras vivenciadas, produzindo-se uma literatura, cuja visão trágica se faz presente. Os poetas revelam seu lado melancólico, elegíaco, seu lado introspectivo e pessimista para com a sociedade. A outra fase vanguardista, também chamada de surrealista, reúne as tendências surgidas a partir do movimento de 1924 na França, onde várias correntes unem-se e os escritores percebem uma grande mudança de valores. De certa parte, a partir de 1940, houve uma maior atenção do mundo em direção à literatura hispano-americana, e os escritores desse momento se conscientizaram em retratar as suas ideologias de modo mais intenso. Evidente que correntes literárias antagônicas existiram e permanecem existindo para alguns intelectuais. Ao analisar a trajetória de Octavio Paz, percebe-se que um poeta pode transitar por diversos campos, pois Paz começa seu trabalho literário comprometido com a realidade política de seu país e também com a preocupação das marcas deixadas pela Guerra Civil espanhola. Após revisar as literaturas de vanguarda, o poeta muda seu ponto de vista sobre a poesia, percebendo que compete ao escritor a liberdade do uso da palavra; logo, a capacidade de criar uma linguagem mágica, pois para ele compor um poema equivale a uma atividade revolucionária. O grande precursor do movimento vanguardista mexicano, como o pioneiro da poesia moderna, tanto no México quanto na América Hispânica, foi José Juan Tablada (1871-1945). Sua obra poética inaugura-se em pleno tom modernista, mas, tempos mais tarde, introduz, em sua literatura, a utilização de ideogramas95 e de haiku japoneses, quase que na mesma época que Apollinaire. O haiku ganha importância ao ser cultivado, no século XVII, por Matsuo Bashô, poeta barroco japonês, que influencia Tablada na composição de seus poemas em Un día (1919) e Li-Po y otros poemas (1920). Essa influência oriental permitiu uma maior liberdade metafórica à sua palavra poética, criando uma poesia mais visual, capaz de revelar 95 Símbolos chineses que exprimem idéias através de letras. 95 composições divididas entre o tradicional e o novo, entre o popular e o culto. O haiku ou haikai, como também é nomeado, constitui-se por ser uma pequena composição poética, de origem japonesa, que teve seu início originalmente no século XIII com função sarcástica, atingindo uma grande popularidade. Ademais, apresentava uma estrutura poética de apenas três versos, somando dezessete sílabas, o primeiro e o terceiro com cinco e o segundo com sete. Além de ser formado com poucas sílabas, o haiku não apresenta o emprego de rimas, já que a musicalidade sobressai pela escolha dos semas empregados. Essa composição poética, segundo sua tradição, representa uma vivência espontânea, capaz de gerar imagens e valores para o próprio poeta, porque a tradição do haiku traz um elemento essencial para a poesia, o que os poetas posteriores nomearam de “instante haiku”96, em que uma luz transcendental, representando a inspiração, transforma-se em expressão poética. Tal sensação também se assemelha às relatadas por muitos contistas latino-americanos no ato de inspiração e criação de seus textos. Os poetas espanhóis97, principalmente os da Generación del 27, adaptam suas poesias ao haiku, pelo emprego de imagens como símbolos de expressão, deixando transparecer um certo traço de significação individual. O haiku, para esses poetas, é o jogo, o lúdico, um reprodutor de imagens, sendo capaz de representar, em cada verso, uma imagem poética. Podemos dizer que o haiku associa o poema a uma aquarela, dosando cores com palavras, que representam formas que ultrapassam a simples realidade. 96 Indicamos a leitura do capítulo “La transparencia universal de la escritura en el lenguaje poético de Octavio Paz”, que aborda o “instante poético” na concepção e na obra de Octavio Paz. In: GUBERMAN (1998). 97 Pacheco comenta tal contribuição quando diz: “la influencia de la literatura española en México fue muy grande. Hay que tener en cuenta que el exilio fue una catástrofe humana, pero a la vez una bendición cultural y de intercambio. Yo nazco en el 1939, y por tanto toda mi vida pasa al lado del exilio. Hay dos escritores que tuvieron mucha importancia en México: Max Aub y Vicente Aleixandre” (BRAVO VARELA, 2009, p. 67). 96 Posteriormente, houve o surgimento do grupo Estridentista, fundado pela figura de Manuel Maples Arce (1898-1981), que desenvolvia o movimento desde os anos vinte, mais especificamente em dezembro de 1921 até o ano de 1927. Ele encontrou, através da revista Actual — que funcionou como uma espécie de manifesto —, a melhor forma de difundir as idéias de sua geração, responsável por buscar uma nova escritura poética e a relação da mesma com a pintura. Maples Arce, ao buscar uma poesia pura, em que a palavra vale por si própria, diferente de tudo que está presente na realidade, retoma as idéias da estética criacionista do poeta chileno Vicente Huidobro, de pensar uma arte que não seja imitação da realidade, mas sim uma poesia que capte da vida real características essenciais para a criação poética. Não basta somente descrever e narrar as cenas e fatos da vida perceptível aos nossos olhos. Ao longo do período de sua existência, os estridentistas, além de publicarem suas obras pessoais, divulgaram suas idéias por meio das revistas Ser (1922), Irradiador (1923), Semáforo (1924) e Horizonte, Revista mensual de actividad contemporánea (1926-1927), e também através do jornal El Gladiador. No teor dessas publicações, percebemos as intenções de Maples Arce de pensar a renovação literária em seu país pós-revolucionário, já que o México permaneceu indiferente durante algum tempo a novas idéias e a novos nomes de escritores universais — principalmente os das escolas européias — vinculados ao período de vanguarda. Maples Arce, por meio da revista Actual, convoca os intelectuais mexicanos a lutarem por qualquer força contrária aos ideais de renovação estética trazidos por seu movimento, como por exemplo, as idéias contrárias do doutor González Martínez, que negava a contribuição do canto do cisne do modernista Rubén Darío aos movimentos posteriores. Escritores como Germán List Arzubide, Arqueles Vela, Luis Quintanilla, Salvador Gallardo, Miguel Aguillón Guzmán, Francisco Orozco Muñoz e Humberto Rivas uniram-se a representantes das artes plásticas, 97 como Leopoldo Méndez, Fermín Revueltas, Diego Rivera, Jean Charltol, e outros. Também alguns músicos e compositores imprimiram certo caráter nacional ao movimento estridentista. Todos esses nomes foram os responsáveis pelo estabelecimento de uma sede do movimento, que, mais tarde, entraria para a história literária mexicana por meio do romance98 El Café de Nadie, de Arqueles Vela, obra capaz de revelar, dentre outras questões, que os estridentistas criaram uma arte para o presente e não para o passado. A partir dos ecos de algumas sessões no Café Europa, em Xalapa, surge um grupo antagonista, Los Contemporáneos. Uma de suas primeiras aparições deu-se em uma conferência sobre poesia mexicana ministrada por Xavier Villaurrutia, em 1924, na Biblioteca Cervantes, onde o poeta reconheceu a importância de Maples Arce ao induzir uma consciência poética coletiva. La Generación de los Contemporáneos (1928-1931) surge lançando mão de uma revista, cujo nome identifica-se ao do movimento, como meio de levantar as inquietudes da época. Assim, ambos os grupos representantes da vanguarda no México estavam compostos, por um lado, com idéias divergentes e, por outro lado, com pontos em comum. Segundo Gordon (1994, p. 60), os contemporáneos surgiram do grupo estudantil “Orchabada”, formado por jovens escritores que acompanhavam a constante criação e desaparição de revistas literárias ocasionadas pelo período pós-revoluncionário do México. Esses jovens, com caminhos cruzados na Escola Nacional Preparatória, foram os responsáveis por fundar a revista Contemporáneos. Entre os mais relevantes, destacaram-se Carlos Pellicer, Bernardo Ortiz de Montellano, José Gorostiza, Jaime Torres Bodet, Xavier Villaurrutia, Gilberto Owen e Salvador Novo. 98 Merece destacar a importância que assume o romance dentro de um país, visto que o mesmo se caracteriza por ser um dos principais vínculos de imaginar a nação. 98 Os poetas do movimento, dotados de uma sólida formação cultural e, alguns deles, ocupantes de importantes cargos no Departamento Editorial da Secretaria de Educação Pública, conseguiram aproximar a literatura hispano-americana a novas correntes literárias, como contatos com a Generación española del 27, com os surrealistas franceses e com a literatura norte-americana. Sempre conseguiram manter um constante diálogo com as formas tradicionais de expressão em poesia. Os Contemporáneos como os Estridentistas, além de compartilharem o reconhecimento a seus predecessores, José Juan Tablada e Ramón López Velarde, instauravam-se como movimentos contemporâneos99 que buscavam uma poesia100 recorrente a formas e recursos da vida moderna. Uma nítida diferença entre ambos os movimentos da vanguarda mexicana reside no fato dos Contemporáneos demonstrarem uma quase que total indiferença para com a história e seus assuntos públicos, por isso os poetas criaram seu próprio mundo, povoado pelos sonhos, pela morte, pelos traços eróticos e pelo linguajar existencialista, recebendo, este último, influências dos pensamentos de Martin Heidegger (18891976) e Jean Paul Sartre (1905-1980). Os Contemporáneos, como verdadeiros representantes de um dandismo, sempre procuraram estar a frente de seu tempo. Entre um desses, Octavio Paz destaca o “dandismo mexicano” (Paz, 1987, p. 87) de Salvador Novo, pelo constante desafio de ser moderno e irritar aos que estivessem a seu redor por meio de seus atos e sua voz poética. Também os Contemporáneos, através do Manifesto Surrealista, publicado em 1924, perceberam claramente o automatismo psíquico proposto por André Breton101. Perceberam que a criação poética pode 99 Em 1926, os estridentistas publicaram, em Xalapa, a revista Horizonte, que apresentava, em seu sub-título, o vocábulo “contemporáneo”, podendo ser um sinalizador para rotular o movimento antagônico. 100 A essa poesia, como vimos, os estridentistas nomearam “poesía pura”, e Gilberto Owen, um dos contemporâneos, de “poesía plena”, sem nada diferenciar do movimento anterior, contrariando a terminologia dada por Valéry. In: RODRÍGUEZ (1994, p. 86). 101 Breton não seria o pioneiro do termo “surrealismo”, pois, em 1917, Apollinaire o utilizou, pela primeira vez, como sub-título de uma de suas obras. Antes de seu 99 emergir livremente de qualquer controle imposto pela razão, não necessitando de uma preocupação com o resultado, ou seja, com a estética ou com questões sociais e/ou morais, visto que o exercício poético, livre de toda censura, permitiria ao escritor, sem nenhuma intenção pré-concebida, criar imagens102 literárias por meio de um impulso alheio a seu desejo. Além disso, o escritor poderia formular e associar imagens diversas, representadas no papel somente após serem previamente elaboradas em sua mente. A essas técnicas Breton nomeou “escritura automática”. O ato de produzir imagens livres oriundas do inconsciente permitiria que os poetas transformassem a realidade, porque os mesmos conseguiriam escritos puros, oriundos do livre exercício mental. Para Breton, o sonho tinha uma realidade objetiva e exercia uma considerável influência na realidade consciente, por isso considerou os estudos de Freud sobre o sonho e o inconsciente relevantes para a compreensão do surrealismo. Os Contemporáneos também perceberam que o nosso inconsciente funciona a partir de imagens, e através delas, podemos expor idéias, sensações ou fatos “adormecidos” em nossa mente, que funcionam como uma espécie de objeto capaz de revelar passagens intrínsecas do nosso ser e, dessa maneira, ao vê-las ganhar forma poética, reconhecer ou imaginar os sentidos atribuídos pelas mesmas. Compreenderam, pois, que a voz poética deve brotar de uma reflexão e associação entre palavras e idéias. Após os Contemporáneos, surge uma geração de escritores portadora de uma linguagem elegíaca, pessimista e melancólica, causada pelo horror da Segunda Guerra Mundial. A geração de Taller (1938-1940) tem, entre seus representantes, Octavio Paz, Efraín Huerta e Neftalí manifesto, Breton une-se a Soupault e Aragon com fins de publicar uma revista que favorecesse o Movimento Dada, revelando assim suas principais inquietações. O manifesto de Breton não pode ser considerado como o primeiro a expor e discutir a estética surrealista, tendo em vista que outras publicações e outros nomes se fizeram presentes no contexto artístico-literário da época, em um primeiro momento, fundamentalmente literário, expandindo-se, em um segundo momento, a outras expressões plásticas da arte. 102 O conceito de imagem será discutido na seção 2.3 do capítulo II. 100 Beltrán. Esta geração buscou seguir os mesmos passos da escola anterior, como influências pela cultura européia, a palavra poética funcionando como elemento de transformação, a exploração do subconsciente, a consciência artística e o rigor técnico pela forma. Outro grupo, Tierra Nueva (1940-1942), surge com o objetivo de resgatar uma arte pura defendida por Villaurrutia e os Contemporáneos, com o fim de encontrar o equilíbrio entre a linguagem moderna e a tradicional. Para esse grupo, a verdadeira arte estaria no poder da palavra poética. O mais importante membro do grupo foi Alí Chumacero, seguido de outros importantes nomes, como os de Alfonso Reyes, Jaime Sabines, Rubén Bonifaz Nuño, Rosario Castellanos e Jaime García Terrés, formando assim um grupo de extremo destaque para a poesia mexicana atual. Segundo Anderson Imbert (1987), antes do surgimento da voz poética de José Emilio Pacheco, temos duas correntes, que, ao mesmo tempo em que são diferentes, apresentam caminhos paralelos, o que permite, aos escritores, seguir ambas as idéias, e, nesse cruzamento, encontrarmos a figura de Pacheco. O crítico argentino divide a poesia dos anos 40 e 50 da seguinte forma: uma, de tradição cultista, estética, com uma busca pela perfeição da forma e do conteúdo, que vê, em seus representantes, a luz para se chegar a uma poesia pura; a outra vertente poética, presa a uma tradição sentimental, anticultista, tornando-se uma poesia coloquial, portanto, popular, cujos representantes defenderam uma arte que revelasse a sinceridade e que fugisse dos grandes vôos poéticos. Junto a José Emilio Pacheco, na década de 60, unem-se Eduardo Lizalde e Gabriel Zaid, no resgate de duas vertentes da poesia, uma subjetiva e irracional, e outra, objetiva e social. Tais poetas primeiro apreenderam certas tradições anteriores antes de implementarem novos elementos pessoais a suas poéticas. Semelhante a Octavio Paz, Pacheco possui o desejo de experimentar, de incorporar a sua arte à compreensão de outras instâncias, o desejo de criar outras realidades e fazer com que o leitor possa compreendê-las. 101 Nos capítulos que seguem este estudo, procuramos expor o modo como Pacheco escreve a sua existência, da qual somos co-criadores. Pensar sua existência pressupõe aceitar a complementação do outro, em que cada ser configura-se como um universo de linguagens. Ao estabelecer um diálogo com o outro, podemos entender nossa parcela como seres co-participantes, logo, criadores, cuja sociedade seria um grande poema e, cada um de nós, a palavra, tendo como função atribuir sentido a essa unidade maior que nos completa. Resta-nos, aos versos, tentar compreender a época de travessias e de hiper-individualizações a que estamos imersos. Além disso, tratamos com maior embasamento teórico a imagem do caos trazida pela Modernidade, que nos revela uma cidade dilacerada, fragmentada e violenta. 102 II. (RE) LEITURAS DA CIDADE: IMAGENS DO CAOS E DO MAL ESTAR DOS TEMPOS En México, no la ciudad, sino el país, porque así llamamos a ambos sin hacer diferencia, existen numerosas ciudades vitales que proponen una narrativa personalizada. Ahí también se da el hecho urbano, las realidades colectivas, la desigualdad y la injusticia en la convivencia. Eduardo Langagne (2005, p. 46) Neste capítulo da tese, buscamos orientar o leitor ao tema central de discussão de nosso estudo, fundamental para a compreensão de nossas suposições e análises do próximo capítulo. Trata-se do capítulo de fundamentação teórica sobre a questão principal de nosso interesse. Cabe ressaltar, ainda, que existem muitos estudos sobre a temática citadina, procuramos direcionar nossas leituras para os teóricos Lynch (1997), García Canclini (1999), Romero (2004), Gomes (2008), Sarlo (2009) e Bauman (2009), porque percebemos neles aproximações conceituais e pertinentes ao nosso corpus de estudo. A cidade é um tema bastante problematizado por grande parte dos escritores latino-americanos; cantada de inúmeras formas e por diferentes perspectivas, seja ela uma cidade real ou imaginada. Como nos diz o ensaísta argentino García Canclini (1999, p. 107): Devemos pensar na cidade como um lugar para habitar e para ser imaginado. As cidades se constroem com casas e parques, ruas, autopistas e sinais de trânsito... Mas também se configuram com imagens. Também imaginam o sentido da vida urbana, dos romances, das canções e filmes, dos relatos de jornal, da rádio e da televisão. As cidades não se fazem somente para serem habitadas, mas também para viajar por 103 elas O pesquisador sintetiza, de modo bastante claro, que a compreensão da cidade não se dá somente na análise e leitura de seu espaço físico, mas sim que o sujeito que também a habita permite lê-la e 103 “Debemos pensar en la ciudad a la vez como lugar para habitar y para ser imaginado. Las ciudades se construyen con casas y parques, calles, autopistas y señales de tránsito... Pero también se configuran con imágenes. También imaginan el sentido de la vida urbana, las novelas, las canciones y películas, los relatos de la prensa, la radio y televisión. Las ciudades no se hacen sólo para ser habitadas, sino también para viajar por ellas”. [Tradução nossa] 103 criar imagens para ela. Esse sujeito é capaz de construir diferentes visões de cidade a partir de seu discurso. Segundo o historiador estadunidense Lewis Munford (1998), na década de 1960, a cidade, enquanto metrópole, já ditava modas e costumes e começava a conviver com alguns dilemas da vida contemporânea. Com o advento da Modernidade, a cidade104 reforça seu papel como imagem central do olhar dos sujeitos, dos intelectuais e dos escritores. Na cidade moderna, as pessoas e as informações passam velozmente, não há tempo de cruzá-las, de estabelecer laços. No decorrer deste capítulo, questões como as apontadas no parágrafo anterior serão apresentadas e problematizadas. Buscaremos, aqui, trazer também, para a discussão, aspectos desde a fundação das cidades hispano-americanas até sua contemporaneidade, fazendo com que o leitor perceba mudanças significativas na forma de ler o espaço urbano no decorrer do tempo, principalmente, na transição do século XX ao XXI. Tendo nossa pesquisa intenção de tratar as nuances das cidades mexicanas, essencialmente, a da Cidade do México, espaço a que Pacheco direciona quase toda sua obra, não podemos deixar de comentar, na leitura da cidade atual, a sobreposição de espaços (templos, praças, ruas) e a perpetuação de um imaginário indígena em nosso estudo. Embora citemos, em alguns momentos deste estudo, fatos da história mexicana, não é nosso objetivo esmiuçá-la para realizar a leitura do espaço urbano, mas sim entendê-la como uma marca do estilo do escritor com o intuito de revelar o desgaste do tempo. Ancoramo-nos em teóricos que pensam a cidade a partir de um olhar da contemporaneidade, o qual pode resgatar certas imagens do passado. 104 Segundo o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2009, p. 35), “[...] é nos lugares que se forma a experiência humana, que ela se acumula, é compartilhada, e que seu sentido é elaborado, assimilado e negociado. E é nos lugares, e graças aos lugares, que os desejos se desenvolvem, ganham forma, alimentados pela esperança de realizar-se, e correm risco de decepção – e, a bem da verdade, acabam decepcionados, na maioria das vezes”. 104 Para os modernos, a cidade contemporânea é um inferno, uma paisagem sem vida, um problema, uma utopia. Para Bauman (2009), a urbe é um espaço fragmentado, campo de batalha e a variedade de vida existente é fonte de medo e de incerteza: [...] viver numa cidade é uma experiência ambivalente. Ela atrai e afasta; mas a situação do citadino torna-se mais complexa porque são exatamente os mesmos aspectos da vida na cidade que atraem e, ao mesmo tempo ou alternadamente, repelem (BAUMAN, 2009, p. 46-47) O pesquisador brasileiro Renato Gomes (2008), em seu estudo sobre a experiência urbana, visualiza a cidade a partir de um olhar pósutópico. Para o ensaísta brasileiro Paulo Sérgio Rouanet (1986, p. 39), o homem moderno não idealiza o futuro porque só tem a “dimensão do presente – um presente monstruoso, avassalador”. A visão de Rouanet da atualidade assemelha-se a de Gomes. As cidades, em nosso contexto, as mexicanas, não existem somente como espaço físico, mas sim, desde sua fundação, em leituras mediante relatos da literatura oral dos povos pré-colombianos ou das cartas dos conquistadores ou dos jesuítas, que foram construindo, pouco a pouco, o cotidiano urbano das mesmas junto à presença do homem. As cidades surgem para substituir outras, mas nunca podemos dizer que todas são iguais, porque cada uma delas possui uma história e cultura específicas que as diferem. Para o crítico Walter Benjamin (1994), uma cidade ajuda a compreender outra. Porém, para Gomes (2008, p. 40) ler uma cidade é uma tarefa cuidadosa, já que é necessário “reconstruí-la com cacos, fragmentos, rasuras, vazios, jamais restaurando-a na íntegra”. Calvino (1990, p. 34) defende que todos trazem consigo um modelo de cidade que é constantemente revisitado por outras ao expor “confirma-se a hipótese de que cada pessoa tenha em mente uma cidade feita exclusivamente de diferenças, uma cidade sem figuras e sem forma, preenchida pelas cidades particulares”. A obra de Pacheco evidencia um verdadeiro caos inserido nas relações sociais da vida contemporânea. A primeira idéia de caos aparece 105 na Bíblia, no livro do Gênesis (1: 2), onde se descreve a seguinte imagem: “a terra estava vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo, o espírito de Deus paraiva sobre as águas”. Tal passagem alude à imagem do vazio e da desorganização das coisas. Ao mesmo tempo em que as trevas cobrem o abismo, simbolizando a realidade, refletem também a imaterialidade. A palavra “caos” provém do grego e descreve uma idéia ou qualquer situação onde haja confusão ou desordem. Também encontramos associação do termo à noção de “escuridão” e, inclusive, “trevas do inferno”. Segundo o Dicionário de símbolos de Chevalier e Gheerbrant (1995, p. 193), temos na expressão hebraica “tohu wa bohu” e nos ideais da sociedade greco-romana a personificação do caos como a imagem do vazio e da desordem das formas anteriores à criação do mundo. Essa imagem da não-ordenação encontra-se em sociedades como a egípcia, a chinesa e a céltica, que compreendem o caos como origem da criação do mundo e uma constante força da coexistência de formas. Pacheco comenta sobre a imagem do caos em sua literatura: No soy el inventor de la disolución y el caos. Además la poesía no es un manual de autoayuda. Más bien sirve para llamar la atención sobre las cosas menos agradables del mundo. Me parece asombrosa la capacidad de Neruda para celebrar lo grato y lo placentero. La dicha y el placer son mudos. Sólo la desgracia y el sufrimiento hablan (BRAVO VARELA, 2009, p. 67) Pacheco reconhece a carga fatalista de seus textos, pois não há como renegar a realidade ao redor105. Reconhece, ainda, sua dificuldade em criar uma literatura mais musical, como relata: [...] He escrito muy pocos versos rimados y nunca he hecho un buen soneto, pero defiendo estas cosas con base en mi experiencia de haber vivido en el puerto de Veracruz, donde 105 No discurso de recebimento do Prêmio Cervantes, Pacheco (2009c) mantém a visão caótica para o mundo ao expressar: “Nada de lo que ocurre en este cruel 2010 – de los terremotos a la nube de ceniza, de la miseria creciente a la inusitada violencia que devasta a países como México – era previsible al comenzar el año. Todo cambia día a día, todo se corrompe, todo se destruye. Sin embargo en medio de la catástrofe, al centro del horror que nos cerca por todas partes, sigue en pie, y hoy como nunca son capaces de darnos respuestas, el misterio y la gloria del Quijote”. No discurso de ingresso ao Colegio Nacional de México, em 1986, o escritor já demonstrava sua leitura do caos urbano ao comentar: “[...] Nos rodean una ciudad y un país en ruinas. Por dondequiera vemos la devastación y la miseria” (PACHECO, 1986, p. 60). 106 hasta hoy se hacen décimas perfectas incluso por autores que no saben leer ni escribir. Mi trabajo debe mucho a mis años de Veracruz y a la cultura del verso oral (BRAVO VARELA, 2009, p. 71) A cidade da obra de Pacheco é a Cidade do México real, a dos mapas geográficos, a altamente populosa e poluída, a monstruosa, a violenta, a caótica, a múltipla, a cantada por alguns escritores como a “ciudad perra”, “ciudad famélica”, “ciudad lepra y cólera hundida”, “ciudad del fracaso ansiado” ou “ciudad con tres ombligos”. Por outro lado, ainda, encontramos esperança de tempos melhores para o avanço e a qualidade de vida nesta mega-cidade, como nos sinaliza a escritora mexicana Laura Esquivel em entrevista cedida ao jornalista brasileiro Zeca Camargo, em abril de 2010: A Cidade do México me enche de uma energia muito especial que vem da terra. Você aprende desde criança como festejar a vida e assim vai formando o conceito da cidade [...] O mais importante é sempre nossa capacidade de reunião, de vínculo, de comunhão. Somos nós que escrevemos nossa história. Temos que ser artistas e nos reinventar todos os dias reinventar nossas cidades, reinventar nossos países (CAMARGO, 2010). As palavras de Esquivel reforçam a imagem do sujeito preso a sua cidade de origem e a vivência e/ ou experimentação do lugar possibilitando revisitá-lo sempre. A escritora destaca a importância do coletivo no espaço urbano, aspecto que, na literatura de Pacheco, não se revela na vida contemporânea do país. Debates como esse também são lembrados neste estudo, que pretende discutir a cidade no prisma da vida moderna. Optamos por introduzir, em alguns momentos deste capítulo, fragmentos da obra de Pacheco como exemplificação das impressões do sujeito para a Cidade do México, visualizada como uma cidade do medo, da violência e do caos. 107 2.1. O discurso fundador da cidade As cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas, e que todas as coisas escondam uma outra coisa. Ítalo Calvino∗ O desejo de criar passa por diversas civilizações, gerando sempre uma vontade infinita de construir, construir tempos melhores, edificar caminhos, prédios, cidades... Conforme as idéias de Ítalo Calvino, o homem projeta seu desejo e encontra prazer somente quando consegue imaginá-lo infinito. As cidades fundadas pelos conquistadores espanhóis foram espaços pensados e planificados na Europa para funcionarem como colônias, onde essas seriam depósitos de recursos obtidos com a finalidade de enriquecer a Coroa espanhola, e além do mais, espaços de conquista dos traços culturais das populações nativas, já que como nos afirma o crítico argentino José Luis Romero (2004, p. 80), toda cidade surge “para cumprir uma função pré-estabelecida”. Com a chegada de Cristóvão Colombo à América, formalizou-se um primeiro movimento de construção de sentidos para esse novo mundo através do discurso dos conquistadores. A primeira leitura da América mostra um europeu tentando abarcar o exótico, o novo, a diversidade natural, já que segundo Romero, a visão do tropical sempre encantou os conquistadores. Esses não tinham como objetivo principal a preocupação em retratar o indivíduo americano, mas esmiuçar o seu território. A chegada da comitiva de Cortês, em 1519, trará uma nova leitura e um novo olhar para o continente americano, porém o próprio espanhol já traz consigo, em seu imaginário, certas imagens da América, geradas pelas leituras dos primeiros discursos, cabendo-lhe agora, reler, ∗ In: NOGUEIRA M, A. L. “A cidade imaginada ou o imaginário da cidade”. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, volume 1, p.115-123 mar-jun, 1998. Disponível em: <www.scielo.br/scielo.php>. Último acesso em: 10 set. 2010. 108 redescobrir e produzir novos sentidos para as civilizações da América Central106. Nesse encontro de ambas culturas, a do colonizador e a do povo que será colonizado, são estabelecidos fortes laços pela questão da identidade de cada uma dessas culturas107, com suas vivências e experiências anteriores, e será a manutenção dessa identidade, o fator responsável por transformar a cidade num espaço de mudanças e de lutas por certas ideologias, como nos assegura Romero (2004). O sociólogo brasileiro Octavio Ianni (2003, p. 83) nos assegura de que quase nunca o encontro de culturas se dá de modo unilateral, mesmo que ocorra o predomínio de uma sobre a outra, todavia o autor acredita que o encontro acarrete uma simbiose, capaz de fazer com que ambas pensem e recriem seus costumes. Através de suas palavras, somos capazes de reconhecer que a conquista das terras americanas gerou novos horizontes, principalmente, para a economia, a cultura e o pensamento da sociedade européia. Ao olhar e tentar compreender a conquista do Novo Mundo pelos espanhóis, vemos que estes se fundam no seu sentimento de superioridade ideológica, gerado pela memória da Reconquista, quando então já tinham vivenciado o sabor da derrota de um inimigo. Sendo assim, a memória da Reconquista constitui um fato marcante da identidade espanhola, pois modelou a estrutura do Estado e criou, de certa maneira, novos hábitos e mudanças no interior dos indivíduos. Esse patamar de superioridade em que se coloca o indivíduo espanhol baseia-se também no poder tecnológico e de navegação que os mesmos possuíam108. A Espanha do século XVI mostra-se civilizada a partir do momento em que encontrou a sua verdadeira religião, sendo essa fortalecida ao longo da Reconquista pelo papel da Igreja ao impor um caminho espiritual e material à sociedade, ou melhor, ao Estado. 106 Cabe relembrar e destacar que os espanhóis também ficaram maravilhados com o avanço das invenções americanas. 107 Segundo Benjamin (1994), a idéia de cultura traz, impregnada em si, a noção de barbárie. 108 Para Guberman (1998), temos o seguinte esquema: de um lado, a Espanha, representando toda a metodologia científica versus a América, com sua mecânica da pedra. 109 Hernán Cortês, possuidor de imagens estereotipadas das culturas americanas, chegou à costa do México e imediatamente apoderou-se da cidade de Tabasco. Antes de migrar para o interior do país, fundou Vera Cruz, uma nova colônia espanhola. Nesse momento, conheceu a índia que entrou para a história por suas ações, La Malinche, uma princesa nativa, que se transformou em sua companheira e num importante instrumento para vencer os povos inimigos, tendo em vista que a nativa conhecia os hábitos e línguas dos antigos povos. Cortês e seus homens não tinham outro fim a não ser o de descobrir riquezas, principalmente ouro109 e prata, e de transformar a história de um povo até aquele momento, livre, projetando assim certo plano de destruição, que atribuía uma nova religião e utilização de indivíduos como força de trabalho110 para a corte espanhola. Aos olhos de Cortês, repletos de dor e ira, o objetivo seria acabar com a prosperidade da cultura do outro, fazendo com que essa se visse abalada social, cultural e moralmente. Montezuma, que reinava no Império Asteca, era considerado um governante severo e fiel às suas obrigações como representante máximo de uma civilização e verdadeiro responsável pelo esplendor da cultura asteca. No entanto, com o passar dos anos, esse imperador, preso fortemente a certos princípios religiosos, acabou, através desses, sendo tomado por uma certa carga fatalista, que acabaria por escravizar toda uma civilização em pleno desenvolvimento. Tal conduta iniciou-se com o mito do deus do vento e da chuva Quetzalcóatl, pois, pela memória oral de sua civilização e pelos antigos hieróglifos, relatava-se que esse deus, estereotipado como um homem branco, alto e de longa barba, viveu junto aos astecas, momentos antes da chegada dos europeus ao continente americano, e foi também o 109 O ouro para os astecas tinha um valor meramente estético, por isso com a chegada da comitiva de Cortês, os astecas o entregaram de boa vontade aos espanhóis, e isso fez com que esses europeus pensassem que esse material seria encontrado em grandes quantidades nos solos dessa cultura. 110 Essa poderia ser a grande riqueza mexicana, já que, através dessa, os espanhóis poderiam transformar a Nova Espanha em uma colônia muito produtiva para a Corte espanhola. 110 responsável por grande parte dos ensinamentos morais e culturais a essa civilização. Por isso, o mar representa a expansão, a dominação e o poder. Para Eliade (1991, p. 151-152), a água traz consigo a simbologia da renovação, ou melhor, da regeneração dos mundos, gerando a formação de um “homem novo”. Os conquistadores com suas navegações funcionariam nessa acepção de Eliade, como os responsáveis por ensinar e mostrar as mudanças e inovações que surgem no encontro de culturas diferentes. No entanto, sabemos que não só de progresso foi gerada a chegada dos conquistadores através dos mares, mas também que a água seria um símbolo, desde muitos anos, do derramamento de muito sangue e objeto de lutas entre diferentes povos do planeta. O mar denota que, ao mesmo tempo em que os viajantes deixaram suas marcas e sinais de aprendizagem, também a idéia da guerra fez-se presente. Eliade comenta que a água “implica tanto a morte como o renascimento”. Dessa maneira, a água reluz uma simbologia da vida e da morte desde sua origem como sinal de vida na formação do mundo. O olhar do viajante espanhol para a cidade nunca buscou estabelecer uma identidade com o lugar, ou seja, um vínculo afetivo com o espaço da urbe, contudo procurou usufruir suas principais riquezas. Conforme as idéias de Romero (2004), esses conquistadores não seriam mais que aventureiros que vinham para a América tentar apoderar-se de suas riquezas e com o fim último de explorar tais recursos, para levarem às suas cidades de origem. Esses colonizadores traziam consigo, no imaginário, uma imagem de tais culturas existentes, no entanto acreditavam que essas se constituíam de um espaço culturalmente vazio, o que Romero (2004, p. 13) conceitua por “cidade ideológica”, ou seja, a esse espaço originário do propósito de dominação de um território pelos conquistadores, não reconhecendo, nesse, uma cultura e certos traços característicos de uma comunidade específica. O olhar do estrangeiro visualiza um objeto, mas ao mesmo tempo, não interage com esse, resumindo-se a um olhar de mera observação. 111 Para a pesquisadora brasileira Ana Fani Carlos (1996, p.4), o não comprometimento com um espaço social é entendido como um olhar do “não-lugar”, representando a não identificação do sujeito com o espaço físico ao seu redor e com o coletivo. Ao pensar nessa função pré-determinada, destinada a cada espaço, compreendemos que a cidade se colocou, desde suas origens, como um lugar da observação por parte de um sujeito, onde esse consegue perceber as dimensões e as formas visíveis desse espaço. A partir do momento que o indivíduo começa a criar sentidos para esses espaços, evidenciamos que a cidade não se constitui como um mero espaço vazio, mas um espaço onde instituições políticas, administrativas e indivíduos socialmente diferentes cruzam-se nesse “corpo111”, que se assemelha à cidade, configurando, desse modo, sentidos a esse lugar habitado, que podemos pensar como cidade. Toda cidade se funda com o sentido primeiro de proteção e de privação, tanto para impedir lutas, quanto para evitar o roubo de certas propriedades. No caso mexicano, a Cidade do México, capital do país, ergueu-se sobre as ruínas de uma cidade indígena, ou seja, sobre a eterna memória viva da arquitetura de Tenochtitlán112, capital do Império Asteca. Cortês, ao observar tal cidade, encantou-se com a proporção 111 Baseamo-nos no conceito de Ferrara (1990, p. 4) ao entender a cidade como um organismo vivo, mutante e ágil, capaz de atuar por meio das relações sociais que a caracterizam. 112 A cultura asteca começou por volta do ano de 1325 a erguer a sua cidade. A escolha de uma ilha próxima a um lago — o Lago Texcoco — de águas salgadas foi determinada pelo deus da guerra Huitzilopochtli a um sacerdote: sua cidade deveria ser fundada em um bambuzal, encontrado numa ilha rochosa, onde esse notasse a presença de uma águia que devoraria uma serpente sobre um cacto, convertendo-se essa imagem, nos dias atuais, como um dos símbolos mais arraigados da identidade coletiva mexicana, presente na bandeira nacional do México. Os astecas acabaram refugiando-se nas ilhas pantanosas do Lago Texcoco. Nessa região, a vivência em tal habitat foi a responsável pelo desenvolvimento de atividades como a caça de pássaros, a pesca e a criação dos jardins flutuantes. Com o passar dos anos, os astecas foram substituindo as palafitas por um tipo de construção em pedra, estando às margens do lago por meio de diques. Nesse espaço, ergueu-se uma cabana de bambus, representando o santuário do deus da guerra e estaria fundada a cidade de Tenochtitlán, capital do império asteca, que Octavio Paz, chamou em seu poema, “Petrificada petrificante” de “ombligo de la luna” pois foi fundada exatamente no centro do lago Texcoco. Aos poucos, os astecas levantaram muralhas, palácios, templos e gigantescas pirâmides, e instalaram a capital do império asteca numa posição estratégica, o que facilitaria o estabelecimento das relações sociais e comerciais entre os povos vizinhos. Aproximadamente dois séculos mais tarde, essa mesma cidade, que crescia cada vez mais, deixou os conquistadores espanhóis maravilhados e encantados com a diversidade de suas riquezas. 112 dimensional da mesma, a ponto de considerá-la maior que as cidades espanholas de Sevilha, Córdoba e Salamanca, informação revelada num dos discursos de viagem remetidos à Corte espanhola. Foi por meio da ideologia e do discurso de Cortês, que os sentidos do mundo indígena e de sua religião foram quase extintos para serem substituídos por um pensamento estritamente ocidental e puramente cristão. A América, nesse encontro de culturas, precisou assimilar o outro, principalmente porque esse encontro também se deu na língua de comunicação entre os povos. A imposição da língua espanhola e de seu extenso léxico tornou-se um dos elementos de colonização do território americano. Tal língua era inadequada ao mundo americano indígena, e teve de ser adaptada a esse novo universo, o que explica o emprego de palavras indígenas, mais próprias a certos contextos. Tanto a língua espanhola gera novos sentidos ao dialeto indígena, quanto vice-versa, pois certas palavras ganham novas significações, logo temos discursos que se relacionam uns com os outros e constroem novas realidades. Os atos de Cortês e seus homens provocaram uma quase destruição total da capital asteca, assim como dos seus espaços sagrados de adoração a suas divindades. Todos os vestígios de uma civilização foram subjugados pela ganância do branco colonizador. Após alcançar seu objetivo, Cortês encarrega-se de erguer uma nova cidade, obviamente com características européias, logo uma nova Espanha projetava-se em pleno cenário americano, ou seja, das cinzas, surgiria a Cidade do México, capital do país. Destruindo a capital asteca, Cortês acreditava que a memória dos antepassados também seria apagada, pois para ele, os índios eram adoradores do demônio e isso explicaria a conversão ao cristianismo113 dos mesmos, e o abandono dos deuses pagãos. Ao contrário de outras cidades latino-americanas, que se projetaram em povoados indígenas, a Cidade do México perpetuou a 113 Todos os registros escritos dos astecas foram eliminados pela Inquisição em prol da cristandade. Afortunadamente, o frei franciscano Bernardino de Sahagún, em sua viagem ao México em 1529, e devido aos seus laços de amizade para com os índios locais, aprendeu o náhuatl e conseguiu resgatar e organizar, em forma de relatos escritos, grande parte da história mexicana antes do período da conquista. 113 localização de certos lugares e monumentos, mas tal território se forma por meio de um emaranhado de ruas e espaços labirínticos em sua constituição, cidade essa construída sem um planejamento urbano, que cresceu sobre as ruínas astecas no Lago Texcoco e que, a cada dia, ganha novas proporções ao invadir as encostas montanhosas vizinhas. Cidade do México 114 Os constantes acidentes geográficos e o próprio tempo permitiram que o mundo pré-colombiano e o da conquista estivessem lado a lado diante dos olhos dos indivíduos. Como exemplo dessa união de mundos e de discursos, temos as ruínas do Palácio de Montezuma ao lado do Palácio Nacional, edifício em estilo barroco, onde podemos encontrar o Governo e os diversos órgãos públicos; as ruínas do Tiemplo Mayor ao lado da Catedral Metropolitana; a Plaza de las Tres Culturas, em 114 Foto de Guido Alberto Rossi, publicada no livro México (Editora Manole, p. 67). 114 Tlatelolco, lugar que serve de testemunho do passado e do presente da cultura mexicana, pois encontramos as ruínas de um templo asteca, uma igreja colonial com seu interior restaurado e o Ministerio de las Relaciones Exteriores, uma construção com traços modernos, convivendo harmonicamente. Esse lugar marca um dos últimos enfrentamentos entre Cortês e os astecas, recuperando assim uma simbologia do espaço de encontro de povos e civilizações, já que, num de seus monumentos, encontramos a seguinte mensagem grafada: “não foi um triunfo nem uma derrota, mas sim o penoso nascimento de uma nação mestiça, que é o México de hoje”. Tal mensagem revela que os mexicanos115 não se consideram derrotados, nem inferiores culturalmente ao massacre ocorrido em suas terras, mas por meio deste, encontraram luzes e caminhos para reforçar, cada vez mais, a identidade116 mestiça de seus indivíduos e a capacidade de seguir caminhando em busca de novos tempos, sendo esses repletos de ideais de justiça e participação social de seus habitantes. O crescimento das grandes cidades marca, em nossa civilização, o que podemos chamar da vivência em um tempo transitório, portanto, moderno, segundo as interpretações de Octavio Paz (1989), momento esse em que as cidades crescem sem parar. Nas palavras de Otávio Velho (1987, p. 12), nesse sentido dos tempos modernos, a cidade 115 Os mexicas ou os astecas como grande parte das culturas anteriores trouxeram no seu bojo um forte universo de fatalismo e de superstições que rondavam o imaginário de seus habitantes, tal característica devido à memória oral e escrita das civilizações precedentes, que relatava a dor provocada pelas constantes destruições causadas pelas erupções vulcânicas em solo mexicano. Esse sentimento derrotista seria um dos possíveis caminhos para se compreender a facilidade com que os mesmos se renderam, tempos mais tarde, à dominação espanhola. Conforme as idéias de Paz (1989), já se ensinam aos mexicanos, desde pequenos, a aceitarem as tristezas e as derrotas com dignidade. Segundo a mitologia asteca, outros momentos anteriores à tomada espanhola também foram marcados pela violência, como os constantes sacrifícios aos prisioneiros oriundos de combates, porque para os astecas, os deuses deveriam ser alimentados de corações palpitantes de guerreiros para que mantivessem sempre o nascimento do deus do Sol e certa harmonia no império. 116 Alguns críticos trabalham com a noção de que a identidade coletiva da América Hispânica começou a ser formada com os povos pré-colombianos. Isso fez com que, em regiões onde os vestígios indígenas são mais fortes, se reivindique os costumes e as tradições como constituintes autênticos da identidade dos mesmos. Não podemos omitir a importância da herança pré-hispânica, presente em diferentes regiões e com identidades próprias antes e depois da conquista, na construção da identidade das diferentes nações latino-americanas. 115 “rompe-se, nega-se e não pode mais ser captada e estudada como uma totalidade”. Plaza de las Tres Culturas 117 A própria cidade rompe suas barreiras, não consegue mais se auto-explicar, podendo gerar violência, individualidade e dessemelhanças nos centros urbanos. Segundo a pesquisadora de análise do discurso Eni Orlandi (2004, p. 13), “quanto maior o número de pessoas num estado de interação uma com as outras, tanto menor é o nível de comunicação e tanto maior é a tendência da comunicação proceder num nível elementar (interesses comuns)”. Com essas palavras, entendemos que pelo discurso produzido pelo indivíduo dentro do espaço da cidade, podemos melhor compreender suas manifestações sociais e sentir esse espaço como um lugar de reflexão. Devemos pensar a cidade como um espaço que significa, e ao 117 Foto de L. Ricatto, publicada na Enciclopédia Mundial de Geografia Ilustrada, volume 43, Editora Abril Cultural, 1971, p. 863. 116 mesmo tempo, é significado, seja pelo discurso produzido dentro de seus limites, ou pela simbologia do seu espaço físico ou, até mesmo, pela voz particular de cada sujeito da cidade. A posição geográfica das cidades indígenas mexicanas foi ponto forte para que os conquistadores europeus ocupassem tal território pelos interesses da metrópole. Foi pelo próprio ato de ocupação dessas cidades americanas que o ato de fundação de novos territórios se estabeleceu. Assim, esses novos territórios trazem questões relacionadas à constituição de uma nova sociedade e de projetos sócio-econômicos para as mesmas, já que se estabeleceria nelas o grupo urbano fundador ao lado das comunidades vencidas. Por tal fato, vemos que, desde a sua organização, a cidade permite enxergar certos antagonismos entre grupos totalmente divergentes e com interesses em muitos dos casos contrários. A idéia de fundação de um espaço, conforme Romero (2004), já nasce do desejo dos conquistadores ao olharem para as cidades americanas, constituindo-se também esse olhar como um ato político, onde, pela força, o estrangeiro invade a terra, e em uma imagem puramente simbólica, o conquistador “com sua espada dá três golpes no solo, e por fim, desafia para duelo quem se oponha ao ato de fundação” (ROMERO, 2004, p. 93). Como percebemos por essa imagem, o desejo da cidade americana parecer surgir do acaso, em que o europeu, representando o outro, o bárbaro, cria um território a partir da idéia de cidade européia, que possuía em sua mente, já que, para esse aventureiro, todos os elementos da nova cidade americana deveriam converter-se à lembrança de sua pátria, desde o sistema político, aos usos burocráticos e, principalmente, como já abordado, à forma da religião cristã. Na chamada modernidade, a Cidade do México constitui-se num espaço híbrido (GARCÍA CANCLINI, 1999), onde devemos ter um sujeito que observe o espaço e encontre nele o contraste e, ao mesmo tempo, a superposição de dois imaginários que se misturam e se interpenetram através do patrimônio físico da cidade. No México, esse espaço fundado sobre uma única vertente, quer dizer, a única voz e vontade do conquistador espanhol sobre uma sociedade e cultura conquistadas, 117 perdura até os dias atuais em certa ânsia de re-escrever a história presente na memória coletiva dos seus habitantes. Na atualidade, por meio de seus escritores, indivíduos capazes de escrever e recriar novas realidades, o México canta essas imagens atrozes de seu passado, que ressurgem no inconsciente dos sujeitos participantes do processo sócio-histórico de seu país. A história dos fatos de uma nação nunca escapa aos olhos do escritor, inclusive quando este relaciona suas sensações mais pessoais ao contexto que lhe tocou vivenciar. Apesar de o artista criar um universo particular para sua obra, o mesmo tem o poder de revelar o mundo e permitir que o homem descubra, cada vez mais, a história de seus antepassados. 2.2. Cidade do México: da formação de uma nação à cidade vídeo-clip [...] a cidade não conta seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimões das escadas, nas antenas dos páraraios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras. Ítalo Calvino (1990, p. 14-15) Interessa-nos, nesta seção, mostrar a transformação física e social sofrida pelo México desde sua constituição como nação até a contemporaneidade. Defendemos, ainda, nesta parte, o conceito de cidade retratado por Pacheco em sua obra, visão corroborada pelos teóricos selecionados para o estudo. Também os conceitos de cidade e nação são esclarecidos no decorrer do texto. A seguir, trazemos para discussão um pouco da história mexicana de modo que o leitor consiga imaginar o caminho percorrido por essa sociedade até a constituição de sua Capital Federal e como ela se configura na atualidade. O México manteve-se colônia da Espanha durante trezentos anos, e durante esse período, muitos foram os pesares a que se submeteram os autóctones, entre eles, a servidão, o pagamento de impostos e, até 118 mesmo, contaminação por doenças trazidas pelos conquistadores europeus. No transcorrer do século XVII, alguns espanhóis dotados de riquezas organizaram as chamadas haciendas, contribuindo financeiramente para o aumento da prosperidade de vida dos fidalgos da Nova Espanha, momento que trouxe certa tranqüilidade para a Colônia, embora ela ainda continuasse enviando recursos à Corte espanhola. Houve também um período de estabilidade na economia colonial, responsável por gerar certo orgulho na elite crioula pela prosperidade de sua terra. A camada indígena voltou a crescer e a cultivar novos cereais europeus e a dedicar-se à criação de gado. A força demonstrada pela Igreja, somada à ausência de um exército próprio, permitiu um ambiente de paz e de dominação cristã na colônia mexicana. No século XVIII, o controle espanhol sobre a colônia perdeu-se pelos confrontos com forças inimigas da América e por lutas internas. A recente dinastia Bourbon na Espanha fez com que o México recuperasse sua autonomia total com a diminuição do papel da Igreja, criando um exército regular e obrigando o aumento na produção de prata, ocasionando um aumento também nas taxas dos impostos, para que fossem enviados à Corte. Mas a tomada da Espanha por Napoleão e lutas pela independência das terras do México ocasionaram um enfraquecimento no governo colonial. Através de tais ações, uma vez mais, as relações entre a Espanha e o México se viram conturbadas, levando a uma queda do nível de vida da população local, que acelerou o processo de independência das terras mexicanas. O padre Miguel de Hidalgo, em 1810, na Cidade de Dolores, foi a pessoa que começou a batalha pela independência, convocando os mexicanos para que contestassem a exploração e lutassem pela independência do que se tornaria a nação que hoje conhecemos. O ato de heroísmo de Hidalgo ficou conhecido como El Grito, pois se tratou realmente de uma voz em desespero em busca de soluções para sua nação. A intenção de Hidalgo fracassou e o padre foi executado. Um segundo movimento foi chefiado, em 1813, por outro padre, José María 119 Morelos, nome que contribuiu para a proclamação da República e somente em 1821, Agustín Iturbide venceu definitivamente os espanhóis, alcançando a tão sonhada independência mexicana. Iturbide nomeou-se imperador e governou com muitas dificuldades, já que sem o capital espanhol, o México arrastou um período de obscura economia. Ao ser deposto Iturbide, o México tornou-se, em 1824, uma República Federal com sua primeira constituição. Após a Independência nacional, ainda temos, no México, uma constituição política de difíceis relações, em que poucos são privilegiados. A corrupção destaca-se, gerando uma forte injustiça social entre seus habitantes. Com isso, percebemos e podemos afirmar que os discursos passam, entretanto algumas ações se repetem e constituem novos caminhos para o estabelecimento de uma possível compreensão da história mexicana. Segundo o cientista político estadunidense Benedict Anderson (1989), o surgimento da nação deu-se após um período de crise do poder político da Igreja, momento que permitiu a vontade de fortalecer novas relações entre os indivíduos, por conseguinte, de aumentar a luta por um pensamento nacionalista. Esta sucessão de acontecimentos se deve ao fato de que só conseguimos visualizar uma nação quando o maior número possível de seus habitantes reconhece a importância dessas relações e se propõem a viver em pleno estado de comunhão, ou seja, de permuta com os outros que interagem dentro de um mesmo espaço. Cabe entender a idéia de espaço, como propôs a socióloga Ana Fani Carlos (1996, p. 104), discípula do geógrafo brasileiro Milton Santos, como um espaço geográfico onde ocorrem as relações sociais, portanto, em que se evidenciam as relações de coletividade. Construir uma nação, para o venezuelano Simón Rodriguez, mestre do libertador Simón Bolívar, dá-se quando pensamos sua construção de modo coletivo, quer dizer, num desejo de construir um espaço onde o Estado permita que seus próprios indivíduos apresentem subsídios para atuarem como “cidadãos ativos” (ROTKER, 1994, p. 8), 120 sendo papel dos responsáveis pela organização da nação educar e oferecer formas de manutenção da vida em sociedade. Logo, pensar a nação, como nos assegura Ernest Renan e Benedict Anderson, é conseguir compreender as relações culturais estabelecidas entre os indivíduos. Assim como nos define Benedict Anderson (1989), as nações são “imaginadas” por vontades e desejos dos indivíduos com fins comuns, que desenvolvem suas atividades em pleno convívio de companheirismo. O crítico vê a nação como uma “comunidade imaginada”, com funções políticas e, principalmente, papéis sociais e culturais. Benedict Anderson emprega os termos destacados anteriormente para evidenciar que, dentro de um mesmo espaço, se faz difícil conhecer a todos os demais membros que formam a nação, por isso o indivíduo cria imagens em sua mente para todos os que convivem dentro de um mesmo limite geográfico. Nessa compreensão do sentido físico de nação, evidenciamos que dentro de seus limites, é notória a diversidade cultural das pessoas que cruzam seu interior. A nação é heterogênea, porque engloba outras comunidades dentro do seu espaço físico, o que Benedict Anderson nomeia por “sub-nacionalismos”. Ao teorizar sobre o “imaginário nacional”, o teórico parece enfocar a idéia de homogeneidade para o espaço, porém sabe que a história dos fatos gera uma nação heterogênea. Uma nação é constituída pela sucessão de fatos históricos que conseguem permanecer no (in) consciente de seus indivíduos. Assim, a nação é vista de modo semelhante a uma configuração histórica, como nos apresenta o sociólogo brasileiro Octavio Ianni (1988), sendo ela a responsável pela organização e pelo desenvolvimento de forças sociais, relações econômicas, papéis políticos e forças culturais. A bandeira, o hino, o idioma, os valores, o território, a população e outros constituem uma imagem e uma significação na compreensão do papel da nação. Todos esses elementos são empregados no entendimento de uma nação que busca por sua identidade. Sabemos que o desejo de buscar uma identidade se conecta à vontade de recuperar a origem, para que, desse modo, estejamos inscritos na história. 121 Pelo exposto, entendemos que a nação está na história, mais além disso, para Ianni, a mesma também se constrói no imaginário, ou seja, em um plano não real, portanto, um plano simbólico. Por esse motivo, a idéia de nação e suas problemáticas, temática de grande evidência na produção literária hispano-americana, surge no pensamento do historiador, do escritor, do filósofo e de outros como uma imagem do que vêem ou do que esperam que seja a vida em comunidade. A partir desse sucinto recorrido histórico pela formação da nação mexicana, resolvemos trazer para a discussão a leitura do ensaísta argentino Néstor García Canclini (1999) em seu livro Imaginarios urbanos, em que o crítico reúne três conferências ministradas em 1996 na Universidad de Buenos Aires sobre a desintegração da modernidade, a hibridização cultural, a globalização do continente americano e os espaços públicos. Nossa opção pelo teórico explica-se porque o mesmo centra seus estudos na capital mexicana a partir de uma análise de filmes e fotos118, que, ao mesmo tempo em que são corpus estáticos e fragmentam o espaço da cidade, recebem uma crítica leitura aos olhos do pesquisador. García Canclini parte do exemplo mexicano para tentar compreender o processo de formação das cidades latino-americanas, cujo passado se vê implicado em processos históricos e políticos. Para ele, a cidade esconde através de seu conjunto arquitetônico, diversos discursos, porque o espaço urbano é, sem dúvida, um local de intercâmbio de informações, principalmente, as culturais. Porém, acredita que existe pouca articulação e diálogo entre as nações latino-americanas. Para García Canclini (1999, p. 21): Se na América Latina existe integração e possibilidades de que as culturas dialoguem é graças ao processo modernizador. Porém, a maneira em que se realizou esta modernização obstrui obstinadamente que o diálogo entre nossas culturas 119 seja produtivo 118 García Canclini (1999) analisou um total de 52 fotos contrastando presente e passado da Cidade do México. 119 “Si en América Latina hay integración y posibilidades de que las culturas dialoguen es gracias al proceso modernizador. Pero, a la vez, la manera en que se ha realizado esta modernización obstruye empecinadamente que el diálogo entre nuestras culturas sea productivo”. [Tradução nossa] 122 O crítico vê, na globalização política e cultural, uma explicação para a pouca interação entre as nações e a presença de espaços de exclusão nos grandes centros. Na primeira parte do livro, o autor vai reabrir um debate sobre a modernidade120, porque entende que o conceito de cidade evoluiu a partir da vida moderna. García Canclini destaca, na produção latino-americana, os estudos teóricos América Latina: cultura y modernidad, de José Joaquín Brunner; Mundialização e cultura, de Renato Ortiz e Escenas de la vida posmoderna, de Beatriz Sarlo como aqueles que apresentam e constituem uma tendência específica do pensamento moderno, além de desafiar, reformular e enriquecer os estudos anteriores sobre a modernidade. Em seu livro Culturas híbridas, García Canclini apresentava a oscilação entre os termos modernidade e pós-modernidade no sub-título de sua obra. Para o teórico, a questão central dessa problemática não seria descobrir se o nosso continente americano é moderno ou pósmoderno, mas como essa modernidade híbrida alcançada através das relações sociais está se perdendo na mão de pequenos grupos que detêm o poder ou, ainda, na posição ocupada por alguns países e seu desenvolvimento internacional. Para García Canclini, podemos compreender a modernidade através de alguns processos, entre eles, o da emancipação de certos setores da sociedade, com destaque para o campo cultural da renovação, pois o crítico argentino destaca o crescimento na educação média e superior e o setor cultural que se adapta às inovações tecnológicas e sociais; também recebe destaque o campo da democratização, com uma maior participação da cidadania nas estruturas políticas. Podemos dizer que a democratização ganhou força com os princípios da Revolução Francesa. No século XX, a democratização e a modernização da cultura foram impulsionadas pelos meios eletrônicos de comunicação e pelas organizações sociais, como grupos feministas, de direitos humanos, da expansão. Segundo García Canclini, quase sempre não presenciamos um avanço desta última característica na chamada 120 Trataremos da problemática dos conceitos de “modernidade” e “pós-modernidade” na seção 2.4. 123 modernidade, porque com a urbanização e a industrialização, o que cresce são as dívidas, a corrupção, a insegurança urbana, etc. García Canclini expõe que é cada vez mais nítida a presença de sociedades heterogêneas, sendo essa heterogeneidade não só entendida pelas diversidades étnicas ou regionais, mas também pela falta de acesso aos bens modernos. Ele tenta explicar essa heterogeneidade na passagem do século XX para o XXI, pois houve um momento de abertura das fronteiras geográficas de cada sociedade com fins de conhecer e incorporar, em sua própria sociedade, os bens culturais da cultura do outro. Porém, como afirma o próprio teórico, essa tentativa de homogeneizar/ reordenar acabam favorecendo as desigualdades. Atrás de todo esse conflito trazido pela modernidade, que segundo García Canclini, se explica pela falta de diálogo entre as mais distintas culturas, temos a imagem do sujeito dentro do espaço urbano. O teórico reconhece que o conceito de “indivíduo” é um ponto importante trazido pela modernidade. Por outro lado, afirma que esse indivíduo racional perde seus princípios devido às estruturas impostas pela globalização. No segundo capítulo do livro, o ensaísta debate sobre as cidades multiculturais e as contradições da modernidade. García Canclini defende a existência de três tipos de cidade dentro da Cidade do México e, ao final do texto, emprega um termo que sintetiza todas as denominações anteriores. O ensaísta começa o texto da segunda conferência questionando a existência de inúmeras possibilidades de conceitos para a cidade, todavia nenhuma definição dá conta de todos os aspectos que envolvem a dimensão do espaço citadino. García Canclini (1999, p. 69) resgata o discurso do sociólogo italiano Gino Germani, ao expor que, num primeiro momento, na primeira metade do século XX, podemos entender o conceito de cidade em oposição ao de campo. De acordo com este raciocínio, o campo seria o lugar de relações comunitárias/ primárias e a cidade o espaço de relações secundárias, de maior multiplicidade e papéis. 124 Conforme o teórico, entende-se como relações comunitárias/ primárias os diálogos intensos de tipo pessoal, familiar e social específicos de cada povoado, já as relações secundárias fazem referência a um número maior de contatos desenvolvidos nos centros urbanos. Tal abordagem é incompleta para definir uma cidade, porque não considera seus demais constituintes e não pressupõe que as realidades urbanas e rurais podem conviver dentro de um mesmo espaço geográfico, onde elementos de ambas as realidades se entrelaçam. De acordo com o historiador italiano Giulio Carlo Argam (1998), o meio rural também pode ser considerado urbano, à medida que ambos estabelecem trocas comerciais, além do mais, o cenário urbano penetra os entornos rurais através da mídia televisiva e/ ou radiofônica, essencialmente. Para García Canclini, a cidade transforma-se no núcleo da modernidade, porque é o lugar da observação. A cidade, por sua dimensão, foge das pequenas relações estabelecidas dentro do espaço do campo. O indivíduo em suas relações pode passar ao anonimato sem se dar conta. O processo de mudança da cidade antiga para a moderna não ocorre de modo linear, nem de forma única; fatores como a alteridade fazem a diferença. O esplendor ou a decadência de uma cidade depende dos mesmos sujeitos que a compõem. Uma segunda acepção para o conceito, de longa tradição para García Canclini (1999, p. 70), baseia-se nos critérios geográficos e espaciais estabelecidos pela Escola de Chicago. Segundo Wirth, um de seus representantes, a cidade seria um espaço permanente, extenso e com indivíduos socialmente heterogêneos. Mas, segundo García Canclini, tal definição também não dá conta dos processos históricos e sociais que perpassam a estrutura urbana de uma cidade. Um terceiro conceito define a cidade como o resultado do processo de desenvolvimento industrial e de concentração capitalista. Desse modo, a cidade proporciona uma organização e racionalização da vida social de certa época. Para o sociólogo espanhol Manuel Castells, no livro La cuestión urbana, tal definição não inclui aspectos ideológicos e sociais. Conforme afirma García Canclini (1999, p. 72): 125 As cidades não são somente um fenômeno físico, um modo de ocupar o espaço, de se aglomerar, mas também lugares onde ocorrem fenômenos expressivos que entram em tensão com a racionalização, com as pretensões de racionalizar a vida 121 social . García Canclini parece concordar com o conceito do teórico Antonio Mela, quando este, na revista Diálogos, apresenta duas características que definem a cidade, uma é a capacidade de interação entre sujeitos e a outra é a velocidade dessa troca de informações dentro de seus limites físicos. Mesmo assim, em seguida, o teórico assegura que todos os critérios levantados para desvelar a noção de cidade continuam não definindo com exatidão seu conceito. O teórico apresenta o conceito de “megaciudades” para fazer referência às cidades que interagem com outras e as incorporam em seu centro. Tal classificação inclui, além da dimensão territorial, fatores como o crescimento populacional, a complexa rede multicultural, a heterogeneidade, o número de imigrantes de diversas regiões do país e de outras nacionalidades. Podemos dizer que esses espaços passam da concepção de cidade para mega cidade, inclusive, do ponto de vista cultural. Como exemplos de mega cidades, García Canclini cita Nova York e Londres, ambas a partir de 1950, e Los Ángeles, Cidade do México, Paris, Moscou, São Paulo, Tokio e Buenos Aires, a partir de 1970, época essa de dispersão territorial e crise nas cidades que começam a ser polinucleadas. Ao mencionar a interação entre múltiplas culturas nos espaços urbanos, principalmente pelo resultado das migrações dos mais distintos grupos, o ensaísta sinaliza que precisamos compreender a multiculturalidade proporcionada por esses encontros, em que primeiro devemos identificar as características particulares de cada cidade, para depois analisar o conjunto. García Canclini baseia-se no fato de que, no decorrer do tempo, as cidades surgem umas sobre as outras, de forma que, para compreender um determinado espaço, se faz necessário 121 “Las ciudades no son sólo un fenómeno físico, un modo de ocupar el espacio, de aglomerarse, sino también lugares donde suceden fenómenos expresivos que entran en tensión con la racionalización, con las pretensiones de racionalizar la vida social”. [Tradução nossa] 126 desvendar primeiro as cidades que existiram naquela do tempo presente. Além dessa “multiculturalidad” presente nas cidades hispano-americanas, García Canclini destaca o aspecto de “multietnicidad” aparente nas mesmas pela coexistência de distintos grupos étnicos em decorrência de inúmeras imigrações em terras americanas. A partir de sua concepção de cidade e para ilustrar a multiculturalidade urbana, García Canclini visualiza a existência de três cidades sob a capital mexicana da atualidade. A primeira cidade é a ‘histórico-territorial’, já que a Cidade do México ergueu-se sobre as ruínas de uma cidade indígena, ou seja, sobre a arquitetura de Tenochtitlán, capital do Império Asteca, fundada em 1325. O pesquisador ressalta a presença visível de uma sobreposição de imaginários ao percorrer suas ruas e visualizar seus edifícios e construções arquitetônicas. A segunda cidade recebe o nome de ‘industrial’, porque a capital do país é uma cidade que surge com o intuito de apagar os limites da cidade real, devido ao seu crescimento industrial, à expansão de suas fábricas, à presença de bairros para trabalhadores, aos transportes e aos serviços. Essa cidade modifica os usos do espaço urbano, ou seja, a cidade passa a apresentar múltiplos centros. Perde-se o único centro histórico. Um desses novos centros, por exemplo, passa a ser o shopping center. Conforme García Canclini, temos, devido a esta descentralização, cada vez mais a idéia de não sabermos os verdadeiros limites da cidade: onde começa, onde termina, onde estamos. Tal fator é o responsável pela perda da coletividade e solidariedade nos espaços sociais; o sujeito deixa de pertencer a uma comunidade. A necessidade de compreender a crise urbana e a desagregação do espaço social levou o teórico a visualizar uma terceira cidade. A terceira cidade nomeada de ‘informacional’ ou ‘comunicacional’, como o próprio nome revela, é a cidade que se comunica com diversos outros espaços; conecta-se dentro de si mesma e com o estrangeiro, não somente através dos transportes terrestres e aéreos, do correio e do telefone, mas também pelo cabo, fax, satélites e internet. Essa 127 cidade caracteriza-se pela automatização do homem, que, aos poucos, perde sua identidade nacional. A industrialização deixa de ser o agente econômico mais dinâmico do desenvolvimento das cidades. Apesar de visualizar a capital como a cidade da informação, o crítico também expõe que a interação se faz cada vez mais difícil devido aos problemas da mesma. Em síntese, García Canclini resume as classificações para a Cidade do México na chamada “ciudad videoclip”, ou seja, “a cidade que faz coexistir em ritmo acelerado uma montagem efervescente de culturas de diferentes épocas” (GARCÍA CANCLINI, 1999, p.88)122. Percorrer a cidade, para o pesquisador Gomes (2004), é mesclar músicas e relatos diversos. Já para o antropólogo italiano Massimo Canevacci (2004, p. 18), em um estudo dedicado à metrópole de São Paulo, afirma que a multiplicidade de vozes da cidade a transformam num corpo polifônico, porque essa é “uma cidade que será ‘lida’ e interpretada utilizando-se pontos de vista diferentes, vozes ‘autônomas’, com as suas regras, os seus estilos, as suas improvisações”. O conceito de García Canclini também encontra semelhança nas palavras do escritor Ítalo Calvino (1990, p. 30-31): Algumas vezes cidades diferentes sucedem-se no mesmo solo e com o mesmo nome, nascem e morrem sem se conhecer, incomunicáveis entre si. Às vezes, os nomes dos habitantes permanecem iguais, e o sotaque das vozes, e até mesmo os traços dos rostos; mas os deuses que vivem com os nomes e nos solos foram embora sem avisar e em seus lugares acomodaram-se deuses estranhos. Portanto, na cidade vídeo-clip coexistem todas as demais cidades com suas culturas individuais, sendo essa uma característica imposta pela modernidade. A pluriculturalidade tratada por Canclini comprova-se com a presença de todas essas cidades dentro da mega cidade. Conforme García Canclini, a Cidade do México constitui-se num espaço híbrido, cujo sujeito, ao analisar o seu redor, é capaz de perceber a 122 “La ciudad que hace coexistir en ritmo acelerado un montaje efervescente de culturas de distintas épocas”. [Tradução nossa] 128 superposição, o contraste e a mescla de diferentes imaginários no espaço físico da urbe. Após debruçarmos sobre diferentes classificações pela crítica para a Cidade do México, resolvemos defender a imagem dessa cidade como um ‘quebra-cabeça’ ou, também, ‘cidade de espelhos’. Pela espacialidade física da capital mexicana, podemos sintetizá-la como um grande labirinto urbano formado por ruas, praças e rios que se interpenetram, dispersando o homem que não consegue se libertar dessa estrutura. Além do mais, as mega-cidades latino-americanas são poli-nucleadas (SARLO, 2004), contribuindo, ainda mais, para a imagem da cidade moderna como um labirinto. Buscamos a imagem do espelho em Borges (1988), já que o escritor argentino declara que dois espelhos frente a frente deturpam a imagem e formam um labirinto. Borges defende a cidade como produto do homem e da técnica, em que esse cria o espaço para habitar, mas se torna refém de seus múltiplos labirintos e ramificações. Para a filósofa brasileira Olgaria Matos (1989, p. 80), a cidade labirinto é “a cidade com suas múltiplas possibilidades: interseções, passagens, desvios, becossem-saída, ruas-de-mão-única, que constituem espaços de autonomia”. O labirinto é uma imagem importante da vida moderna e bastante empregada por intelectuais, poetas e narradores focados no fenômeno urbano e em suas transformações. A cidade modificada pelo olhar capitalista e pelo progresso interfere intensamente no modo como o sujeito interage no ambiente social. De acordo com Gomes (2008, p. 74): É neste sentido que ele [o homem] examina a metrópole como lugar de coletividades indefinidas, que pode gerar total indiferença de cada indivíduo para com o outro, na vida cotidiana, como traço de autopreservação García Canclini analisa a importância do imaginário urbano na constituição da cidade. O imaginário surge de uma interação real. No México, podemos retomar os relatos pré-colombianos e dos conquistadores para compreender o processo de fundação da cidade. Para o teórico, as cidades também surgem dentro ou a partir dos livros, 129 do discurso jornalístico, das informações vinculadas pelo rádio e pela televisão. A interação do homem com a cidade não se sintetiza a uma mera experiência física, mas à construção imaginária da vivência do sujeito pelo espaço urbano. Ao percorrer a cidade, o indivíduo constrói leituras e hipóteses sobre as pessoas e o ambiente que o rodeia, pois de acordo com García Canclini (1999, p. 89), “grande parte do que nos passam é imaginário, porque não surge de uma interação real. Toda interação tem uma quota de imaginário”123. Cidade do México 123 124 “Gran parte de lo que nos pasa es imaginario, porque no surge de una interacción real. Toda interacción tiene una cuota de imaginario”. [Tradução nossa] 124 Foto de Guido Alberto Rossi, publicada no livro México (Editora Manole, p. 71). 130 O crítico, ao incluir em sua discussão o imaginário, desenvolve a idéia de patrimônio, já que para ele, as cidades apresentam dois tipos do mesmo, um chamado de patrimônio visual (elementos materiais) e outro denominado de patrimônio invisível (imagens, pinturas, mitos e lendas). Segundo García Canclini (1999, p. 93), o patrimônio invisível ou intangível: [...] formou um imaginário múltiplo, que nem todos compartilhamos do mesmo modo, de que selecionamos fragmentos de relatos, e os combinamos em nosso grupo, em nossa própria pessoa, para armar uma visão que nos deixe um 125 pouco mais tranqüilos e localizados na cidade . García Canclini afirma que o patrimônio é um bem que não interessa somente restauradores), ao todavia passado algo que (historiadores, nos ajuda a arqueólogos entender e nossa contemporaneidade. A noção de patrimônio, conforme o teórico, não se resume a um conjunto estático. O patrimônio cultural de uma cidade forma uma imagem, que recebe novas leituras a partir da personalidade e das experiências de vida de cada habitante. Além da leitura de cada patrimônio diferenciar-se de um habitante para outro, a interpretação dependerá também das relações sociais em que o sujeito está inserido no espaço urbano. Portanto, os patrimônios constituem símbolos de memória e identidade para cada grupo social, que precisam ser preservados pelo homem através da história, principalmente, na vida moderna, momento em que o sujeito modifica o ambiente com inúmeras ações destrutivas. No decorrer da história da humanidade, sempre houve sinais de interação entre o homem e o meio ambiente ao seu redor. No início, o homem retirava da natureza somente o necessário para seu sustento, porém, com o avanço da agricultura, com o processo civilizatório das cidades, a diminuição entre as fronteiras rurais x urbanas e a expansão dos espaços urbanos, o homem mudou sua relação com o meio ambiente e começou a modificá-lo. De acordo com Ana Fanni Carlos (2003): 125 “[…] ha formado un imaginario múltiple, que no todos compartimos del mismo modo, del que seleccionamos fragmentos de relatos, y los combinamos en nuestro grupo, en nuestra propia persona, para armar una visión que nos deje un poco más tranquilos y ubicados en la ciudad”. [Tradução nossa] 131 O mundo se cria e se recria a partir das relações que o homem mantém com a natureza e da maneira como ele se constrói enquanto indivíduo. (CARLOS, 2003, p. 28) [...] O espaço geográfico é o produto, num dado momento, do estado da sociedade, portanto, um produto histórico; é resultado da atividade de uma série de gerações que através de seu trabalho acumulado tem agido sobre ele, modificando-o, transformando-o, humanizando-o, tornando-o um produto cada vez mais distanciado do meio natural. (CARLOS, 2003, p. 32) Cabe sinalizar que compreendemos espaço urbano como a área geográfica destinada à moradia e/ou atividades comerciais e culturais. Entendemos, portanto, que o espaço urbano é o resultado das modificações impostas pelo homem e seu grupo social e se constitui em um local em constante transformação. O olhar para a paisagem e para o patrimônio de uma cidade revela a ação do homem ao longo da história, possibilitando extrair informações que colaborem para compreender as modificações do passado e do presente e, inclusive, projetem novas mudanças físicas no futuro. Segundo o geógrafo brasileiro Eliseu Savério Sposito (2004, p. 12), para entender a cidade, não podemos nos limitar somente a observá-la ou habitá-la. Faz-se necessário conhecer sua geografia e sua história, ou seja, a sua dinâmica. Não podemos esquecer que, antes mesmo de nascer, o espaço urbano já existia e fomos, aos poucos, aprendendo a enxergar suas contradições. O importante é reconhecer que cada cidade apresenta uma história e constrói sua identidade no decorrer dos séculos. García Canclini resgata o discurso de Benedict Anderson, quando esse menciona o conceito de “comunidades imaginadas”. Somos capazes de perceber que o nacionalismo é um artefato cultural. Segundo Anderson, os imaginários coletivos contribuem na formação das identidades sociais. No último capítulo do livro, García Canclini trata dos recursos de sua pesquisa, entre eles, os filmes, as fotos e as viagens dentro da metrópole mexicana com a finalidade de explorar e de compreender seu imaginário urbano. Ele considera que o fato de fotografar a cidade dá, ao sujeito, uma visão fragmentada de sua extensão, pois oferece certas 132 cenas e momentos pontuais, descontínuos. Os espaços vazios entre uma foto e outra, chamados por ele de “espacios virtuales” devem ser preenchidos pelo habitante-viajante-espectador, por isso a importância do sujeito no estabelecimento de sentidos para o espaço. Em suma, o teórico sintetiza a cidade como um lugar para habitar, para viajar por suas dimensões e para ser imaginado. Isso evidencia a relevância do estudo da imagem, já que uma cidade é formada por um mosaico de imagens e de sujeitos. 2.3. As imagens e as vozes da cidade A imaginação não é, como o sugere a etimologia, a faculdade de formar imagens da realidade; ela é a faculdade de formar imagens que ultrapassem a realidade, que cantam a realidade. Gaston Bachelard (1985) Palavras se desgastam feito pedras roladas em fundo de rio. No silêncio escutamos nossos próprios desejos e carências e os dos outros. Lya Luft (2005, p. 24) Antes de expor a maneira como Pacheco compreende a cidade, faz-se necessário tentar entender o conceito de imagem porque o mesmo é importante na compreensão da cidade. Ao pensar em uma definição para imagem, muitas podem ser as concepções geradas por esse vocábulo. Trata-se de um conceito amplo, pois vê, na representação, um diálogo que envolve percepção, memória e pensamento. Entre alguns desses sentidos, podemos entendê-la como aparência exterior de uma pessoa ou objeto, símbolo de uma idéia, visão poética da realidade por meio da linguagem, reprodução de figuras; assim, o conceito de imagem perpassa desde a simples análise de um determinado objeto até a imagem poética. Neste estudo, colocamo-nos a compreender a imagem literária, pois a mesma ocorre quando o escritor depara-se com um objeto, e após esse encontro, formaliza ou cria sentidos para a imagem que captou pelo olhar. Entender a imagem é compreender a pluralidade de seus sentidos, em que os sentidos estabelecidos são divergentes aos da realidade, 133 submetendo-se à pluralidade do real, como afirma Octavio Paz (1976, p. 38), já que segundo ele, a imagem põe em contato realidades opostas, e esse encontro permite uma maior carga de emotividade. Não podemos esquecer que, ao pensar em imagens, não nos referimos ao real, mas ao signo lingüístico, ou seja, à representação simbólica. A invenção da fotografia126 (1826) e o surgimento de algumas correntes das artes visuais, como o impressionismo (1874) e o cubismo (1906) possibilitaram o artista retratar inúmeras temáticas, entre elas, imagens da vida urbana, paisagens e construções físicas da cidade, como as ruas, as praças, os monumentos, os cafés e os meios de transporte. A fotografia possibilitou, ao homem, uma visão real do mundo e funcionou como um instrumento de como captar imagens da história; já os movimentos artísticos contribuíram em novas formas de se enxergar a realidade e o artista começou a fazer uso de percepções subjetivas e do inconsciente na leitura de cenas urbanas. Na contemporaneidade, vivemos na “era das imagens”127, por conseguinte, a nossa visão está repleta de recordações, associações, experiências anteriores, fantasias, leituras interpretativas. Também está pautada em nossa história, em nosso passado e em nossos costumes. O que vemos não é uma imagem real, mas o que captamos, selecionamos e compreendemos em relação ao objeto visto; ressaltamos o que nos parece mais significativo, atribuindo diversos olhares para um mesmo objeto. A imagem literária empregada por Pacheco possui uma tripla função, além de recuperar a memória social da cultura mexicana, pois a imagem consegue regular a memória, representa o mundo a partir da articulação do real com a fantasia e revela a capacidade de comunicação 126 Precisar a origem da fotografia é algo bastante problemático. Na verdade, registros revelam que, na época de Aristóteles, já se conhecia o fenômeno da produção de imagens pela passagem da luz – através de um pequeno orifício e boa parte dos princípios básicos da óptica e da química – acarretando, mais tarde, o surgimento da fotografia. Outras suposições sobre as descobertas da ciência em relação à captação da imagem, também são anteriores a 1826, considerado o ano de início do ofício de fotógrafo. 127 Expressão empregada por Antonio Lara, professor Catedrático de Teoria da Imagem na Universidade Complutense de Madrid. LARA, Antonio. Prólogo. In: VILLAFAÑE (2002, p. 11-17). 134 imbuída na imagem, em que essa convida o leitor a recriar sentidos. As imagens do escritor dizem algo sobre o mundo que estamos inseridos, revelando-nos o que somos realmente. Como assinala o poeta francês Pierre Reverdy, a imagem é uma criação do espírito, assim Pacheco, em suas composições poéticas, parece interagir com o seu “eu” interior para criar imagens carregadas de memórias e lirismos, mostrando que essas, no poema, ultrapassam o valor da mera linguagem. Por meio da visualização de imagens, Pacheco faz uma leitura do espaço urbano de algumas cidades mexicanas, principalmente da capital do país e, através desse olhar citadino do escritor, vemos como o mesmo percebe a cidade e expõe tal percepção. As relações entre os diversos olhares que cruzam o espaço citadino permitem que Pacheco estabeleça considerações sobre a identidade de um povo e represente seu imaginário social, através de suas criações, já que, conforme o filósofo e pensador grego Cornelius Castoriadis (1982, p. 68), essa visão do poeta é “a criação incessante e essencialmente indeterminada de figuras, formas e imagens a partir das quais é possível falar-se de nação”. A identidade, segundo Pacheco, pode ser percebida pelas ações de seus indivíduos e até mesmo pela arquitetura do espaço físico da cidade em que se inserem, o que a pesquisadora argentina Beatriz Sarlo (2004, p. 14) nomeia por “identidade urbana”. O espaço da cidade é entendido por Pacheco como um local em constante transformação, onde essas são geradas pelo encontro de diversos sujeitos, permitindo, a cada um, desenvolver uma voz crítica dentro desse espaço. Nesse intercruzamento de olhares e discursos, os aspectos negativos do homem moderno podem se sobressair, como a violência, a inveja, a vingança, a tristeza, a solidão, a dor, em suma, o verdadeiro caos das relações humanas e culturais. Analisemos os versos dos poemas “Enemigos” e “Niños y adultos”, em que o sujeito poético propõe imagens que retratam tais aspectos do ser humano no espaço urbano: Somos espectros uno para el otro espejos incapaces de copiar al vampiro que llevamos por dentro 135 y vive de las furias y los rencores Se ha roto el hilo de palabras que se ata a los seres. (PACHECO, 1994, p. 135) [...] En realidad no hay adultos sólo niños envejecidos. Quieren lo que no tienen: el juguete del otro. Sienten miedo de todo. Obedecen siempre a alguien. No disponen de su existencia. Lloran por cualquier cosa (PACHECO, 2000, p. 32) Em seu livro A arquitetura da cidade, o teórico e arquiteto italiano Aldo Rossi (1995, p. 147) menciona que a cidade é “a memória coletiva dos povos; e como a memória esta ligada a fatos e a lugares, a cidade é o ‘locus’ da memória coletiva”, portanto o ‘locus’ também é responsável pela transformação do espaço. O autor define ‘locus’ como a “relação singular, mas universal que existe entre certa situação local e as construções que se encontram naquele lugar”128. Em síntese, Rossi entende a cidade como uma construção coletiva, que, no decorrer dos tempos, vai sendo completada por novos discursos e sentidos. De suas considerações, podemos entender a projeção desordenada que, cada vez mais, toma a capital mexicana, a Cidade do México, levando-nos a pensar que as atitudes desses vários indivíduos que formam esse espaço plural, convivendo, dia após dia, e que são responsáveis pelas mudanças na forma de se compreender a cidade, contribuem para uma melhor leitura do espaço urbano. Como já abordado nas seções anteriores deste estudo, percebemos que na história mexicana, as cidades vão se destruindo e novos espaços surgem, e são essas imagens urbanas que fazem com que os indivíduos reconheçam traços de sua cultura e de sua identidade coletiva. Essas imagens captadas pelos mexicanos, ao longo dos tempos ─ conforme nos alerta Kevin Lynch (1997, p. 1), num estudo sobre a 128 Para Rossi (1995), o conceito sempre configurou nos tratados clássicos. A escolha do lugar tanto para uma construção como para uma cidade tinha um importante valor no mundo clássico. 136 fisionomia da cidade, o “olhar para as cidades pode dar um prazer especial” ─ são as responsáveis pela construção das lembranças desses indivíduos, que projetam seu olhar para as experiências passadas, e, ao olhar esse espaço, estabelecem novas conexões, pois, como vimos, toda imagem está repleta de recordações e significações. E ao olhar para a cidade, o indivíduo transforma-se também em um corpo significativo dentro desse espaço real; para isso, ao observar as imagens, todos os nossos sentidos estão combinados nessa leitura mental que utilizamos para construir significados para o espaço citadino. Temos de considerar que, nesse espaço citadino, não somos indivíduos solitários, visto que contamos com a presença de outras identidades, e cada uma dessas desenvolverá um olhar e um sentido para os objetos ao seu redor, formando um sentido único para a cidade. Segundo Lynch (1997, p. 7), “a imagem de uma determinada realidade pode variar significativamente entre observadores diferentes”. As palavras de Lynch só vêm a completar a idéia de que, no espaço da cidade, cada indivíduo assume e cria suas próprias imagens. Apesar de termos indivíduos pertencentes a uma mesma cultura, constituem-se sujeitos formados por leituras de mundo heterogêneas; assim, podemos dizer que cada imagem para um objeto trará consigo uma identidade, porque o sentido da imagem dar-se-á a partir da relação entre o observador e o objeto. Por isso, Lynch (1997, p. 51) complementa que “cada imagem individual é única e possui algum conteúdo que nunca ou raramente é comunicado”. Portanto, cada maneira de olhar um objeto só ajudará a reforçar, cada vez mais, a construção de sentidos do espaço da cidade. Ao seguir esse jogo interativo entre observador e objeto observado, Pacheco reforça, por meio de sua obra, as imagens citadinas, tanto pelos artifícios simbólicos e narrativos, quanto através de um olhar mais apurado, que analisa as imagens ocultas na imensidão das cidades mexicanas. 137 2.4. O caos urbano e o mal estar da (pós) modernidade na Cidade do México ¿En dónde queda el tiempo, en dónde estamos? José Emilio Pacheco (2000, p. 26) O verdadeiro mistério do mundo é o visível, não o invisível. Oscar Wilde (2006, p. 25) A grande cidade destrói a natureza, produz mutações nos seus panoramas, o progresso parece se reverter em regresso. Massimo Canevacci (2004, p. 10) Atualmente, muitas reflexões sobre a vivência do homem contemporâneo são elaboradas a partir do pressuposto de que as principais características de nossa era se encontram na visualidade, na superficialidade, na aparência e no predomínio de imagens, portanto, na banalização da realidade. Para captar tais características, o homem utiliza o sentido da visão, recurso capaz de fazer com que enxergue o mundo em sua totalidade e, além disso, lhe permite imaginar o que transcende a simples realidade. Oscar Wilde, escritor decadentista irlandês do final do século XIX, de formação clássica, considerava a vida como uma verdadeira obra de arte, pois através de seu olhar, não enxergava separadamente a obra de arte e sua beleza estética, mas sim se revelava como um espectador da vida como ficção, já que, para ele, a arte era visível na realidade. O olhar resumia-se a um dos recursos da obra de arte, permitindo não somente olhar para o objeto, mas também visualizá-lo em imagem, pressupondo uma leitura mais pessoal e atrelada aos sentimentos, contribuindo assim para a fixação de imagens mais significativas. Após vivenciar uma experiência em uma prisão parisiense129 durante alguns anos, Wilde encontrou-se em plena crise das representações, descobrindo que a vida não seria imitação da arte; 129 Tempos mais tarde, os relatos pessoais de Wilde, narrando sua permanência e experiência na prisão, originaram De profundis, livro construído pelas várias cartas que redigiu o poeta irlandês nesse difícil período de sua vida. Pacheco teve a oportunidade de traduzir este livro e deparar-se com o estilo existencialista de Wilde. 138 poderia ser talvez seu reflexo. Ao certo, seria o verdadeiro enigma que nos motiva a direcionar todos os nossos olhares em busca de sua compreensão. Desse modo, como nos assinala a segunda epígrafe inicial desta seção, o visível torna-se um mistério a ser revelado diante de nossos olhos. Compreender a cidade não se resume somente em reproduzir o visível, “mas torná-la visível” (GOMES, 2008, p. 35) por meio do ato de criação do artista. Na obra de Pacheco, o mistério, como já expresso neste estudo, está no “corpo” da cidade, tendo em vista que esta se transforma na verdadeira morada do olhar. Olhar a cidade significa não simplesmente olhar o espaço ao redor, mas também ser foco de diversos olhares. O escritor emprega esse duplo na leitura e na representação do cotidiano. Através do nosso olhar para a cidade, é possível revelar seus distintos mundos, pois seus espaços se convertem em imagens diante dos nossos olhos. Ao artista, cabe ler as imagens do mundo que visualiza, compreendê-las e transformá-las em criação literária. Nesta seção do estudo, interessa-nos começar a tratar da questão do olhar para o processo de modernização da cidade hispano-americana e das implicações da vida moderna nos grandes centros urbanos. Pensar tais questões traz à tona discussões que tentam classificar a época em que vivemos, desde finais do século XIX, como ‘moderna’ e, a partir do século XX, como ‘pós-moderna’. Mas, afinal, são épocas realmente distintas? O discurso do artista também pode ser considerado como moderno ou pós-moderno? Pretendemos, baseando-nos em teóricos como Bauman (1999), Berman (1986) e Jamenson (2004) problematizar tais questões. Na chamada Modernidade, as urbes latino-americanas, se é que perderam seus traços indígenas e coloniais, procuraram se aproximar, ao máximo, do modelo parisiense de final do século XIX, mantendo construções arquitetônicas como cafés, teatros, cinemas, bibliotecas e outros em estilo art nouveau. Em contrapartida, outras tiveram seu processo de modernização mais lento e tiveram seu desenvolvimento graças ao avanço da industrialização. 139 Mas quando começa a Modernidade e qual seu conceito? Para o ensaísta e poeta mexicano Octavio Paz (1990), a modernidade surge como uma crítica da história, da moral, da filosofia e da religião. Para o filósofo francês Michel Foucault (1985), Kant, em seu texto “O que é o iluminismo?”, publicado em 1784, baseia-se na filosofia como discurso da modernidade. No século XX, o crítico nova-iorquino Marshall Berman (1986) e o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2005) caminham na mesma direção para compreender a época moderna a partir do uso de expressões que revelam suas leituras: “tudo que é sólido se desmancha” e “valores líquidos”, respectivamente. A pesquisadora brasileira Guberman (1998, p. 97) faz referência a esse momento como “dissolução das fronteiras”. O homem, na modernidade, devido ao processo acelerado da industrialização foca seu olhar na cidade e o afasta da natureza. Nesse momento, alguns artistas e intelectuais criticam a Modernidade, tendo sua intenção de transformar os homens em máquinas e apagar a contemplação da beleza da vida. Ao mencionarmos a questão do olhar do homem para a transformação física do espaço urbano, não podemos deixar de destacar a importância de Charles Baudelaire (1996), um dos maiores poetas da lírica francesa do século XIX, pela originalidade de sua concepção e pela perfeição de sua forma poética. Baudelaire, ao tratar da questão do urbano, inaugura tendências que visam, desde os conflitos íntimos, até a angústia do artista moderno, ao ver-se solitário nos grandes centros urbanos. Por tratar da questão da decadência do homem e da tentativa de pensar a poesia na época da técnica, o autor de As Flores do Mal é considerado o poeta da Modernidade. Além de ser um dos primeiros a empregar o termo “modernidade”130, o poeta francês realiza uma verdadeira revolução nas formas líricas. Rompe os limites e as diferenças entre a poesia e a prosa e nega a existência da voz do enunciador do poema, já que acredita que não devemos falar do poeta, mas da própria lógica interna do poema. 130 Conforme Berman, “Jean-Jacques Rousseau é o primeiro a usar a palavra moderniste no sentido em que os séculos XIX e XX a usaram”. In: BERMAN (1986, p. 17). 140 Baudelaire consegue analisar o homem através de suas fraquezas, limitações e medos. Desse modo, levanta, em sua poética, a relação de interdependência existente entre o indivíduo e o ambiente ao seu redor. O fato de observar a paisagem, no século XIX, permite que o poeta se depare com os inúmeros avanços impostos pela vida moderna, dentre eles, as descobertas científicas, a industrialização, a propagação dos veículos de comunicação de massa e o progresso do mercado capitalista. Além dessas, não podemos deixar de analisar outras questões, como a aceleração do tempo, as lutas entre classes, o crescimento demográfico, a explosão do crescimento das cidades e a aparição dos movimentos sociais, como fatores que se propagaram na vida moderna. Estar nesse ambiente de agitação, de turbulência, de expansão e de desordem, constitui, para Berman (1986), o verdadeiro conceito de modernidade, pois ele a entende como as possíveis trocas de experiências entre os indivíduos que vivem dentro de um mesmo espaço. Porém, afirma que a modernidade também gera lutas, contradições, angústias e incertezas. Baudelaire e os demais pensadores do século XIX, ao mesmo tempo em que se surpreenderam com as inovações da vida moderna, lutaram para diminuir suas contradições, de maneira que o homem não se visse refém das máquinas. Baudelaire entende a modernidade como o sinal da tristeza que rondava um tempo. Logo, segundo sua concepção, o sentido que a mesma impõe é vago, efêmero, difícil de compreender. Semelhante a Octavio Paz (1989), o poeta francês entende a modernidade não como um período restrito da história, mas como quaisquer tempos em que um artista, um escritor ou um intelectual, por exemplo, capte da realidade a aparência e o sentimento de um ar inovador. Berman também entende que não podemos limitar a modernidade a um período fechado e concluído. Desse modo, decide dividi-la em três momentos: o primeiro, do século XVI até o final do XVIII, período no qual os indivíduos começam a perceber a vida moderna; o segundo, mais significativo para compreender tal conceito, corresponde a era revolucionária vivida a partir de 1790, momento responsável por uma 141 maior participação da sociedade em todos os seus âmbitos; e por último, refere-se ao processo de modernização que se expande a partir do século XX, evidenciando, desde aquele momento, sinais de fragmentação e de descontinuidade, características típicas da atual época em que vivemos. Para alguns críticos, esse último momento caracteriza-se como o início da pós-modernidade. Conforme o crítico cultural Fredric Jameson (2004, p. 8), [...] a base de toda a polêmica é, evidentemente, o tipo de relação que se postula entre a modernidade e a pósmodernidade. Seria a pós-modernidade uma fase ou transformação da modernidade, ou seja, a forma que ela toma atualmente devido a seu próprio impulso de inovação? Seria um estilo, um fenômeno estritamente cultural? Ou, ao contrário, constituiria uma ruptura com a modernidade, um afastamento radical de suas premissas? E, nesse caso, marcaria esse afastamento apenas uma descontinuidade, ou constituiria, dentro de uma progressão histórica direcionada, a expressão da terceira mutação sistêmica do capitalismo mundial? Através do questionamento de Jameson131, notamos que uma das grandes polêmicas da atualidade reside no fato de se estabelecerem diferenças entre ambas as nomenclaturas para referir-se à época que começou a identificar as conseqüências da globalização. Para Jamenson (2004) há uma nítida relação do termo pós-moderno com a imagem da sociedade após a Segunda Guerra Mundial, que começa a ser descrita como sociedade pós-industrial, de consumo, da mídia, do espetáculo, da informação. Berman, para fazer alusão ao que entende por “aventura da modernidade”132, resgata o discurso do filósofo Karl Marx, ao reconhecer essa época como o momento em que “tudo o que é sólido desmancha no ar”133, pois entende o moderno como o fator responsável pelas dificuldades enfrentadas pelos homens em suas vidas e em suas relações 131 Jamenson (2004), quanto à periodização da pós-modernidade, informa que a mesma ficaria em torno dos anos de 1960, época em que ocorre uma academização da arte moderna. Já a professora brasileira Ana Lúcia de Almeida Gazzola (2004, p. 7) vai defender que “a partir da década de 1980, a questão do pós-moderno tornou-se um dos itens centrais do debate sobre arte, cultura e sociedade em vários países”. Tais opiniões só comprovam o quanto é polêmico a estética pós-moderna. 132 Subtítulo de seu livro Tudo que é sólido desmancha no ar, espécie de ensaio histórico e literário sobre a visão dos tempos modernos dos séculos XIX e XX. 133 Vale a pena ressaltar que as idéias sobre a vida moderna, no século XIX, também se moldaram na expressão “derreter os sólidos” do Manifesto comunista. In: BAUMAN (2009). 142 sociais. Berman, ao fazer uso de tal expressão, reconhece a dor e o sofrimento de uma época, mas também discute os próprios valores trazidos por essa modernidade, com a expectativa de que haja uma reflexão e uma recriação de valores para os males da sociedade. Berman (1986, p. 328) parece não acreditar em nenhuma estética posterior à modernidade, porque a considera como “perpétua desintegração e renovação, agitação e angústia, ambigüidade e contradição”. Através de suas palavras, notamos que o crítico vê a modernidade como interminável, pois sua própria incerteza de finitude permite retroalimentá-la e mantê-la viva nos seus antagonismos: O processo de modernização, ao mesmo tempo que nos explora e nos atormenta, nos impele a aprender e a enfrentar o mundo que a modernização constrói e a lutar para torná-lo o nosso mundo. Creio que nós e aqueles que virão depois de nós continuarão lutando para fazer com que nos sintamos em casa neste mundo, mesmo que os lares que construímos, a rua moderna, o espírito moderno continuem a desmanchar no ar. (BERMAN, 1986, p. 330) Cabe, portanto, ao escritor, artista de inúmeras realidades, analisar a ausência e o vazio de valores no espaço urbano. Faz-se necessário tentar compreender o porquê da sociedade moderna ser considerada como um “cárcere” (BERMAN, 1986, p. 27), sendo assimilada como um espaço sem vida e com indivíduos sem espírito de luta, e não como uma prisão dos princípios de liberdade. Através do olhar para a cidade, o escritor reconhece, como seus os problemas e as injustiças que se propagam do objeto visualizado. O geógrafo britânico David Harvey (2000, p. 47) corrobora, em parte, com algumas idéias de Berman, pois segundo ele: Os sentimentos modernistas podem ter sido solapados, desconstruídos, superados ou ultrapassados, mas há pouca certeza quanto à coerência ou ao significado dos sistemas de pensamento que possam tê-los substituídos. Essa incerteza torna peculiarmente difícil avaliar, interpretar e explicar a mudança que todos concordam ter ocorrido. Harvey acredita que a pós-modernidade intensifica alguns valores traçados na modernidade, como a fragmentação, o individualismo, a estética e o aspecto quantitativo, o sentido do tempo e do espaço e a efemeridade, por outro lado, também reage aos mesmos. O geógrafo defende, em seu texto, que a pós-modernidade, ao contrário da 143 modernidade, promove um novo olhar para o passado e para a tradição como mecanismo de preservação da identidade individual e coletiva; adota uma postura pluralista de respeito às diferenças e à alteridade no processo de compreensão do mundo, e também retoma a espiritualidade sem esquecer a razão. Como relatado, a pós-modernidade é, ao mesmo tempo, um rompimento com a modernidade e uma continuação da mesma, portanto seu cenário continua sendo a cidade, na qual os elementos da modernidade são intensificados. Defendemos a idéia de que a adoção de uma nomenclatura para a época atual entre modernidade ou pós-modernidade depende do olhar do sujeito para a realidade e de seu discernimento crítico. Porém, ao certo, o que temos, a partir do século XX, estendendo-se ao XXI, é a presença, na cidade, de um sentimento de uma atmosfera caótica, de individualizações e de interrogações. Ao direcionar seu olhar para o espaço urbano de Paris, Baudelaire apresenta o que podemos nomear olhar da observação, da flânerie, pois busca verificar, no outro e no espaço, as conturbações ocasionadas pela vida moderna. As próprias paisagens que visualiza lhe permitem realizar uma leitura do indivíduo e de seu entorno, agora não mais natural, mas dominado pela industrialização. Por meio desse olhar, Baudelaire entende sua poética como uma indagação para os problemas do mundo e descarta a possibilidade de concebê-la como uma resposta aos possíveis problemas que capta da realidade. O olhar de Pacheco difere do da flânerie de Baudelaire, pois o escritor mexicano não compreende seu olhar como o da observação na busca pelo belo ou como o olhar que prioriza cada instante do tempo. Reconhece, antes, os traços de um determinado lugar, para então, em uma segunda instância, desvendá-los. Pacheco acredita em um olhar investigativo, crítico e perspicaz. Para o escritor, o verdadeiro olhar crítico de um sujeito dá-se somente a partir da vivência ou experiência com o objeto visualizado. Como nos afirma Bauman (2005, p. 23): [...] você só tende a perceber as coisas e colocá-las no foco do seu olhar perscrutador e de sua contemplação quando elas se 144 desvanecem, fracassam, começam a se comportar estranhamente ou o decepcionam de alguma outra forma. Somente dessa maneira, podemos entender o olhar de Pacheco como um olhar de uma verdadeira testemunha, sempre na busca por vencer novas barreiras para assim recriar essas imagens em linguagem literária. A Modernidade ou a Pós-Modernidade fazem com que o olhar da flânerie termine, pois nos lança diante de uma nova concepção do tempo, de acordo com os ideais impostos pela ciência e pela globalização. Vivemos na era da velocidade das informações, cuja aceleração temporal transforma o espaço da cidade em múltiplas imagens, que precisam ser visualizadas simultaneamente. O olhar, na atualidade, atende a todos os nossos desejos mais internos na busca pelo desconhecido ou na tentativa de re-analisar fatos marcantes do passado e trazê-los à tona. A importância da cidade na obra de José Emilio Pacheco permite reencontrar diversos olhares, logo, os diversos discursos produzidos dentro de seus limites. Segundo a socióloga Ana Fani Carlos (1996, p. 124-125), o que temos, na atualidade, no espaço da cidade, seria um olhar: [...] que viaja através das paisagens sem nada efetivamente notar, sem nada observar, conhecer, lugares assépticos sem cheiro, sem vida, imagens fugidias que se sucedem num fluxo de informações que se embaralham pelo excesso, pela diversidade, porque não são vividas, vivenciadas, vêm de fora para dentro, exteriorizam-se, pois o sujeito não se apropria. Pelas palavras anteriores, notamos a existência de um olhar superficial gerado numa época que o pensador e cineasta francês Guy Debord (1997, p. 7) nomeia como a “era dos espetáculos”, caracterizada pelo exagero das ações e pelo excesso de imagens a que somos submetidos. Tal olhar pode ser explicado pela não interação do sujeito com seu espaço ou comparado ao olhar do viajante ou estrangeiro, um olhar externo e fragmentado, capaz de gerar o esquecimento e a dor, uma vez que não se prende a nenhum valor sentimental com o espaço observado. Na primeira metade do século XX, a Cidade do México inseriu-se na modernidade com a presença de altos edifícios, parques industriais, 145 crescente comércio, diferentes meios de transporte e produtiva vida cultural (GUBERMAN, 2009, p. 235). O processo de modernização da capital mexicana não seguiu o modelo de Paris, mas, como já mencionado em seções anteriores, perpetuou uma “[...] justaposição de sociedades distintas134” (PAZ, 1985, p. 70), cuja cidade moderna cresce e convive harmonicamente com os vestígios da cidade asteca e da colonial. Ainda de acordo com Paz (1985), não se pode conceber a história do México como um processo linear, porque tudo alude às civilizações pré-hispânicas, mesmo os nomes das coisas, das plantas, dos animais, inclusive, os nomes dos lugares da cidade. A Cidade do México é uma cidade centralizada por conta da Praça do Zócalo, erguida sobre as ruínas do Templo Maior dos astecas, onde tudo ocorria na época pré-hispânica. Nesse espaço, encontra-se o centro político e religioso; o Palácio do Governo, ocupando o mesmo local da sede do governo asteca, a Catedral Metropolitana e as ruínas do Templo Maior. Na atualidade, todas as manifestações políticas e culturais continuam se realizando nessa zona central da urbe (GUBERMAN, 2009, p. 235). García Canclini deixa evidente que, na América Latina, não existem cidades pós-modernas, aquelas que o teórico caracteriza como “ciudades multifocales, policéntricas” (GARCÍA CANCLINI, 1999, p. 81), contudo há urbes com um pensamento pós-moderno por conta da circulação de informações, da globalização e da cultura de massa, aspectos que contemplam a chamada pós-modernidade. A pesquisadora argentina Beatriz Sarlo (2004, p. 13) também vai defender, na pós-modernidade, a existência de metrópoles poli-nucleadas e de relações sociais estabelecidas e mediadas pela troca de mercadorias. Devido ao desordenado crescimento da Cidade do México, muitos habitantes deixam de reconhecer seu passado pré-hispânico e colonial, para se centrarem somente nas imagens trazidas pela modernidade. O pesquisador mexicano Demetrio Anzaldo González (2003, p. 41-42), revela umas das muitas contradições da capital mexicana: “A mesma 134 “[…] yuxtaposición de sociedades distintas”. [Tradução nossa] 146 nação que no exterior manifesta ter três mil anos de esplendor da arte indígena/ nacional, no seu interior mantêm um combate à morte, contra o seu povo indígena135”. Sabemos que a maioria das grandes urbes na modernidade acaba por refletir, em seus habitantes, as tensões políticas e econômicas. A visão romântica da maior parte das cidades européias, presa à tradição, ao passado glorioso, não é retratada por Pacheco em sua obra, mas sim o imaginário de uma cidade indígena. Segundo o crítico uruguaio Fernando Aínsa (1998, p. 167-168), a imagem das cidades latinoamericanas da contemporaneidade é a de crescimento acelerado e muitas contradições, como ele coloca: Aparecem como um caos inumano feito de marginalidade e pobreza, de bairros que diferenciam drasticamente as classes sociais. As capitais latinoamericanas crescem de forma arbitrária, barulhenta e confusa. [...] A cidade reúne arranha-céus e bairros marginais, favelas e guetos de ricos protegidos por barreiras, códigos e guardas privados. Trânsito congestionado, dificuldades de transporte, contaminação e degradação do meio 136 ambiente . Recorremos a Aínsa porque ele defende a Cidade do México, distinta de todas as demais capitais latino-americanas, como a única que oferece uma imagem literária apocalíptica. Os arranha-céus, o trânsito e a contaminação são nítidos exemplos da cidade moderna transformada pela visão capitalista. Para o crítico, essa leitura está presente na obra de diversos escritores mexicanos e pode ser explicada por sua intensa pluralidade cultural e por acontecimentos trágicos da história, como os terremotos de 19 e 20 de setembro de 1985. Outro teórico, Richard 135 “[…] La misma nación que en el exterior manifiesta tener tres mil años del esplendor del arte indígena/ nacional y que al interior, mantiene un combate a muerte, en contra de su población indígena”. [Tradução nossa] 136 “Aparecen como un caos inhumano hecho de marginalidad y pobreza, de barrios que diferencian drásticamente las clases sociales. Las capitales latinoamericanas crecen en forma arbitraria, ruidosa y confusa” […] “La ciudad aúna rascacielos y barrios marginales, villas miserias y ‘ghetos’ de ricos protegidos por barreras, códigos y guardias privadas. Tráfico congestionado, dificultades de transporte, contaminación y degradación del medio ambiente”. [Tradução nossa] 147 Sennett já anunciava que as metrópoles são espaços de proliferação e de abundância, onde os sujeitos são massacrados pelo excesso de imagens. Pacheco comove-se com os terremotos de 1985 e escreve o poema “Las ruinas de México (Elegía del retorno)”, um dos textos mais extensos dedicados à Cidade do México. Nesse poema, o autor apresenta uma leitura apocalíptica da cidade, retratando seu vazio e sua destruição. O escritor não estava no país no momento do acidente geográfico e, ao retornar, transforma sua tristeza, diante das ruínas da cidade, num canto poético em homenagem aos mortos: “A los amigos que no volveré a ver, / A la de desconocida que salió a las seis / para ir a su trabajo de costurera para aprender/ computación e inglés en seis meses, / quiero pedir disculpas por su vida y su muerte. [...] Muerto que no conozco, mujer desnuda [...] tú, el enterrado en vida; tú mutilada; / tú que sobreviviste para sufrir / la inexpresable asfixia: perdón. […] Perdón por hallarme aquí contemplando / en donde estuvo un edificio / el hueco profundo / el agujero de mi propia muerte”. O sujeito poético expressa um sentimento de culpa e de impotência diante do desastre provocado pela natureza. Os versos denotam a própria destruição vivida pelo eu-lírico. Contudo, ele, de modo esperançoso, canta em prol de uma nova cidade a partir do cenário de caos: “No quiero darle tregua a mi dolor / ni olvidar a los que murieron / ni a los que están a la intemperie. / Todos sufrimos la derrota / somos víctimas del desastre / pero en vez de llorar actuemos: / con piedras de las ruinas hay que forjar / otra ciudad, otro país, otra vida” (PACHECO, 1987, p. 59-60). Esse poema explicita, de modo claro, uma experiência vivida pelo artista transformada em linguagem poética. A cidade da obra de Pacheco não difere da anunciada por Aínsa. O escritor mexicano retrata uma cidade a caminho da modernização, que não esqueceu seu passado marcado de dor pelo encontro com outras culturas e que se revela caótica e infernal a partir de vozes ou de personagens, que retratam o medo e a agonia de habitar tais espaços. A provável origem de um pensamento caótico é explicado pela pesquisadora brasileira Guberman (2008) ao expor: 148 Dois fatos históricos ocorridos no século XX provocaram o caos na humanidade: a explosão da bomba atômica nas cidades de Hiroshima e Nagasaki (Japão) e a fumaça de napalm no Vietnam. Certamente, a partir desses acontecimentos trágicos e das desilusões da humanidade, surgiu um pensamento caótico e com tendência a contemplar o vazio de um mundo sem imagem. [...] O progresso e o processo de industrialização desmesurado transformaram a modernidade em uma época deshumanizada. Em seu pensamento, a autora entende os atos do homem como o reflexo da sociedade preocupada somente com a idéia da obtenção do capital intensificada através da Revolução Industrial, a partir do século XIX. Isso contribuiu para uma certa fragmentação dos conceitos de identidade, sociedade e coletividade. Ao direcionar nosso olhar para as grandes catástrofes do século XX (grandes calamidades, pestes, guerras, fomes, bombas e outros), sentimo-nos refém do medo e do vazio trazido pela (pós) modernidade. A bomba atômica, o napalm, as guerras mundiais e os terremotos, por exemplo, trouxeram o caos para a sociedade e mostram ao homem sua impotência diante da ciência, do poder sem limites e da natureza. A imagem de cidade caótica não é somente uma leitura advinda da modernidade. Na mitologia judaico-cristã, o primeiro conceito de cidade surge no livro de Gênesis (4: 16-24), onde seu começo demonstra indícios para o bem e para o mal. O primeiro homicídio praticado por Caim contra seu irmão Abel marca a fundação da cidade como sinal de maldição. Como castigo, Caim é banido de sua cidade e condenado à condição de homem errante pelo mundo. Ele não se arrepende do assassinato de seu irmão, mas teme a punição de Deus e a perseguição dos demais pelo desejo de vingança. Caim parte em busca de um futuro indefinido, porém leva consigo uma marca determinada por Deus para não ser morto. Caim, após partir com sua família para a terra de Node (terra da fuga), localizada no lado leste do Éden, ergue sua primeira cidade a qual recebe o nome de seu filho, Enoch. O termo tem relação com o verbo 149 ‘iniciar’ e significa “consagração” ou “inauguração”, logo representaria uma nova fase para Caim. Talvez a idéia de fundar uma cidade e permanecer nela fosse uma tentativa de amenizar a maldição de Deus sobre si mesmo. A cidade de Enoch não foi, necessariamente, o primeiro espaço ou aglomerado humano a que se tem registro, mas uma das primeiras cidades que consta na Bíblia. A necessidade de limitar um espaço urbano e a relação do homem com o outro explicam sua fundação. A cidade criada por Caim pode ser entendida como produto de uma maldição137 e, se a comparamos com as cidades contemporâneas, elas assemelham-se por meio do caos urbano. Através dessa experiência do caos, as cidades criam cidades dentro de si próprias138. Outro exemplo no livro de Gênesis (11: 1-11) de cidade, próximo ao conceito atual de metrópole, encontra-se no mito de Babel, também como demonstração da desobediência do homem ao Criador. Segundo o estudioso religioso Derek Kidner (1991, p. 72), “na Bíblia, esta cidade veio a simbolizar crescentemente a sociedade ateísta, com suas pretensões, prazeres, pecados e superstições, suas riquezas e sua eventual ruína”. O termo Babel está relacionado a um verbo hebraico cujo sentido é o de “confundir”, embora o sentido de “portão de Deus” fosse o mais adotado pelos babilônios. O relato bíblico diz que os homens não aceitaram ser espalhados pela Terra e decidiram construir uma torre que os tornasse reconhecidos e os possibilitasse permanecer naquele espaço. A construção da torre deu-se porque “os homens partiram do Oriente, deram com uma planície na terra de Sinear; e habitaram ali” (Gn, 11: 2). A idéia era construir uma cidade cujo “topo chegasse ao céu” (Gn 11:4) e “para que os homens se 137 Essa cidade-maldição simboliza a separação com o Deus criador e o desafio de romper a ordem perfeita. 138 Vários são os exemplos, na contemporaneidade, que nos sinalizam a presença de cidades dentro de cidades, por exemplo, as chamadas micrópoles (ARGULLOL, 1994). Como exemplo dessa classificação, destacamos os condomínios, que além de funcionarem como espaço de moradia, se constituem de um conjunto de rede de lojas de conveniência, bancos e, principalmente, de todo um aparato de segurança e/ou grades de proteção, garantindo uma vida tranqüila apesar do caos externo da vida na cidade. Outro exemplo, cada vez mais latente de uma mini-cidade, são os shoppings centers. Sobre esse espaço público, comentamos mais no capítulo de análise do conto “Shelter”. 150 tornassem célebres para que não fossem mais espalhados por toda a terra” (Gn 11: 4). Ainda, segundo o relato (Gn, 11: 1-9), os homens pretendiam que a cidade criada servisse de modelo para as demais e funcionasse como símbolo do poder dos habitantes daquele local. Deus decide cumprir a vontade dos homens, contudo, gera inúmeras línguas diferentes ocasionando a confusão que nomeia a Torre, como forma de impossibilitar sua construção. O texto bíblico não relata a destruição nítida da torre, porém a presença de várias línguas e a falta de comunicação entre os homens não possibilitariam sua construção. A mescla de línguas pode ser compreendida como a destruição simbólica da torre, a presença do caos e da confusão. Deus acabou por dispersar os homens por toda a terra provocando o isolamento entre os povos como forma de castigá-los. Os elementos do relato sinalizam o caos das cidades: número elevado de pessoas dividindo o mesmo espaço, o uso de línguas distintas, a idealização de projetos particulares, com o objetivo de preservar sua comunidade e identidade e a produção de riquezas próprias (KINDNER, 1991). As cidades da contemporaneidade são o reflexo do mito de Babel, já que a confusão, o caos e a falta de entendimento predominam na vida moderna. Faz-se difícil harmonizar e homogeneizar a pluralidade de vozes que habitam o espaço urbano para construir um sentido, como foi a intenção da globalização139. Tal visão é corroborada por Gomes (2008, p. 84-85) ao mencionar: Esta crise do mundo urbano esboçada [...] em traços largos gera imagens apocalípticas de moldura bíblica. Se esta já havia informado o tratamento da cidade no século XIX e persiste no XX, acentua agora uma tendência a retomar os mais velhos arquétipos como base para as novas imagens que, em sua intermitência, experimentam ler a cidade ilegível [...] Essas metáforas [...] conflitantes e do inferno projetam-se ainda na imagem da grande cidade – confusão, esfacelamento da comunidade, não-comunicação, individualidade exarcebada, indiferença – lida como Babel, o caos urbano original, que parece materializar-se nas megalópoles de hoje. As palavras de Gomes (2008) denunciam perfeitamente que o mito bíblico ecoa nas grandes metrópoles modernas como sinal da impossibilidade de comunicação, do esfacelamento do tempo e do 139 O conceito de globalização será discutido na seção 3.1.4 do capítulo III. 151 espaço, da urbanidade. A releitura do mito de Babel na grande urbe explica-se ao depararmo-nos com sujeitos diversos em busca de poder e de vaidades, num cruel processo de diminuição da presença do outro e, ao mesmo tempo, de vozes solitárias na imensa multidão. Ainda, seguindo a Gomes (2008, p. 85): [...] o desenvolvimento de uma cultura da individualidade e das formas de violência [...] são alguns dos sintomas que indicam a ilegibilidade das megalópoles contemporâneas, que intensificam o caos. Como as cidades sempre estão sendo (re)construídas, vemos recorrência e atualidade do mito de Babel na leitura da cidade contemporânea e de acordo com Gomes (2008a): O mito bíblico torna-se recorrente, enquanto suporte semântico de uma série de produtos midiáticos, que se orientam para uma nova síntese simbólica agregada e essa forma mítica arcaica, com a qual procuram formalizar uma representação da cidade em permanente atualização modernizadora, emblematizada na imagem de um edifício-torre em construção, ou de sua destruição. Sabemos que a cidade está formada por discursos impregnados pela desordem, desse modo, quanto mais confuso, caótico e fragmentado estiver o espaço urbano, maior será a capacidade de ressemantização do mito bíblico. De modo recorrente, a Babel moderna é reerguida com a finalidade de organizar o que em seu bojo já se encontra disperso. A cidade moderna, do século XXI, perde seus traços mais determinantes, seja na arquitetura, na cultura local ou até mesmo nas relações sociais. A cidade compartilha sua arquitetura tradicional junto às novas construções futuristas cada vez mais presentes; a cultura local ainda permanece, no entanto com nítidas contribuições de outras culturas ocasionadas pelos deslocamentos de imigrantes no período de guerras ou pós-guerras e pela quebra de barreiras proporcionada pela globalização. A presença da cultura norte-americana e a imposição de novos costumes da sociedade de consumo são temas recorrentes na narrativa de Pacheco. Ao tratar da mudança física das cidades, desses espaços que se expandem e se contraem, Bauman (1999, p. 86) usa o conceito de “habitats de significado” para fazer alusão às multiplicidades que 152 compõem uma cidade, composta por inúmeras referências de outras culturas. A partir de sua leitura, depreendemos que são poucas as cidades que guardam sua identidade e suas referências históricas, sem que as mesmas dialoguem com outras. O maior problema da arquitetura da cidade moderna é a perda de marcas que permitam identificá-la, já que a Modernidade e seus desdobramentos contribuíram para a semelhança entre elas. Já as relações sociais estabelecidas na urbe refletem o caos da vida moderna: indivíduos solitários, isolados e com diferentes medos. Conforme o crítico Rafael Argullol (1994, p. 61) no artigo “A cidadeturbilhão”: Um dos eixos principais em torno do qual se estruturam certas arquiteturas atuais, é o da configuração de um tipo de subcidade regida pelo isolamento, a verticalidade e a claustrofobia. O surgimento de micrópoles, seja no interior de velhas metrópoles, seja como catapulta de metrópoles em crescimento, é um dos fenômenos mais preocupantes no que diz respeito à compreensão da dinâmica entre arquitetura e cidade [...] face ao iminente fim de século. Tais micrópoles implicam não mais na criação de uma segunda natureza, como era próprio da cidade tradicional (isto é, do ‘lugar do representar’ que relembra o perdido ‘lugar do habitar’), mas na formulação de uma autêntica cidade ficcional em que a interiorização simulada da natureza acompanha a interiorização, não menos simulada, das funções antigas da cidade O aparecimento dessas micrópoles, cuja utopia de vida se vê de modo seguro e feliz, também pode ser entendida como a releitura da cidade como maldição e castigo, porque a segurança que os homens buscam na micrópole se opõe à realidade de medo e de violência que faz parte do dia-a-dia da cidade, não sendo possível distinguir as realidades. A violência e o pavor anunciados no rádio e na televisão deixam de ser apenas notícia e passam a fazer parte do cotidiano dos sujeitos que habitam os grandes centros urbanos. Como tratamos, existem cidades dentro das metrópoles que não se encontram, não se comunicam e vivem dentro de si mesmas, porém na sociedade global os limites entre o público e o privado são cada vez mais reduzidos. Para Bauman (2009, p. 32), “as cidades se transformaram em depósitos de problemas causados pela globalização”. 153 Uma metrópole só existe porque é o resultado de um amálgama de diversos “eu” e “nós”, caracterizada ainda por um cotidiano tumultuado repleto de hibridismo, diversidade étnica e racial, múltiplas culturas, entretanto imersos numa falsa imagem de ordem. Essa idéia de ordem vê-se abalada paulatinamente na Modernidade, a qual pressupõe novas reconfigurações, junção de experiências e novas interseções. Conviver com o diferente sempre pareceu ser algo inerente às condições humanas, haja vista as experiências em defesa de um objetivo particular ou coletivo em guerras e/ou conquistas, por exemplo. Segundo o crítico Michel Maffesoli (2004), não existe a possibilidade de pertencimento a um local sem que ocorra um sentimento de contrários, de alteridade. Bauman também confirma que as cidades são espaços repletos de desconhecidos vivendo uma relação de estreita aproximação. A problemática da modernidade (ou pós-modernidade) gerou certos entraves no contato com o outro, nesses deslocamentos e nesses encontros, promovendo individualizações numa tentativa de manter o original, de preservar a construção de uma unidade nacional, conforme mencionado por García Canclini (2009), todavia, por outra parte, vivemos numa época onde é impossível negar a multiculturalidade presente nos espaços urbanos. As diferentes vozes e realidades urbanas acabam por redesenhar e resignificar a cidade constantemente. A pluralidade de vozes acaba por ser um desafio para a literatura e para o próprio artista, porque precisa dar conta da urbe, que não consegue ser retratada na totalidade. Por isso, a literatura vai adotar o conceito de ruína para atribuir sentido ao que não o tem. Entendemos ruína como o conceito capaz de revelar o cotidiano de uma cidade transitória, em constante movimento, efêmera; dando significado ao que é fugaz. Por meio da destruição, o artista vai dar sentido ao que já não tem sentido. Os textos de Pacheco formam um painel que tenta dar conta da Cidade do México, mas que não representa sua totalidade, pois esta é impossível de ser captada. Para a literatura, é difícil representar a permanente mudança do espaço geográfico e suas constantes, sejam físicas ou sociais, já que a cidade de hoje não é necessariamente a de 154 amanhã, assim como a própria Modernidade é um eterno desconstruir para reconstruir (IANNI, 1993). Ao longo da próxima seção, tecemos nossa leitura para a forma como o autor mexicano significa os inúmeros discursos sobre o sujeito que juntos formam o retrato do espaço urbano mexicano. 155 III. SUJEITO, CIDADE E EXPERIÊNCIAS URBANAS NA OBRA DE PACHECO 3.1. A cidade e o poeta mexicano Tenemos una sola cosa que describir: este mundo José Emilio Pacheco (1987, p. 35) Após a leitura, análise e compreensão dos livros que compõem o corpus desta pesquisa, constatamos que a obra poética de José Emilio Pacheco pode ser dividida em três momentos. A primeira fase caracteriza o poeta centrado no interesse pelos autores clássicos, o que pode ser comprovado pela leitura de seus poemas, destacando-se os cantos elegíacos. O poeta, nessa primeira fase, prende-se a temas metafísicos, filosóficos e mais abstratos perante a precariedade da existência. Os poemas mostram imagens duradouras, utilizando, para isso, a figura do fogo, como objeto que simboliza a destruição e também a criação de todas as coisas existentes, fazendo uma analogia ao passado de seus ancestrais: “Todo el mundo está en llamas.”/ “Lo visible”/ “arde y el ojo en llama lo interroga.” (PACHECO, 1999, p. 62). Pacheco parece revelar que todo o mundo sofre, inclusive o único recurso que permite a liberdade do poeta, a poesia: “Es hoguera el poema”/ “y no perdura”/ “Hoja al viento” (PACHECO, 1999, p. 63). Na primeira fase de sua poética, nem mesmo a poesia mostra-se salva dessa catástrofe, o poeta parece ver somente, como nos indica o próprio título da obra em que foram extraídos os versos mencionados, o fogo como instrumento que pode gerar certa mudança no olhar da sociedade. Desde seu primeiro livro de poesia Los elementos de la noche (1963), Pacheco manifesta as temáticas latentes de sua literatura: uma visão crítica da história mexicana, o transcurso do tempo, uma reflexão sobre e a linguagem e, principalmente o espaço urbano, cuja visão 156 apocalíptica se expressa em toda sua obra. O escritor peruano, prêmio Nobel de Literatura Mario Vargas Llosa (1994, p. 41), comenta sobre o estilo de Pacheco nesse livro: En Los elementos de la noche son ensayadas [...] con igual sabiduría formas métricas clásicas y modernas, y se emplean los procedimientos expresivos con idéntico rigor. Desde el poema en prosa hasta el soneto de ley rígida, Pacheco pasa de una forma de construcción, y su desenvoltura y su destreza formales son semejantes en el verso libre o el rimado, en la poesía consonante y asonante. El conocimiento del lenguaje y la vasta poética que su libro manifiesta, permiten a Pacheco una asombrosa libertad de movimiento en el dominio de la forma A linguagem precisa, uma das características da poesia do autor, está presente no poema “Égloga Octava”, cuja angústia pela passagem do tempo é expressada pelo sujeito poético nos seguintes versos: Sólo hay este presente. No existen el mañana ni el pasado. Pero seguramente No estaré ya a tu lado En otro tiempo que nació arrasado (PACHECO, 1987, p. 15) No livro El reposo del fuego (1966), o fogo anuncia a destruição da cidade, do tempo presente e do porvir, conforme o eu-lírico expressa: “Contempla tu dominio: este es tu reino, / una triste ciudad de agua y aceite que sin unirse flotan”. A cidade como o espaço do progresso, simbolizada pelo elemento “aceite” mostra-se, aos poucos, como um lugar inabitável na obra de Pacheco. O poeta retrata a noite140 como sinal da desolação da sociedade mexicana: Pero los sordos, imperiosos ritmos, los latidos secretos del desastre, arden en la extensión de la mansedumbre que es la noche de México (PACHECO, 1999, p. 52) Na segunda fase da poética de Pacheco, percebemos uma mudança em seu estilo de pensar e retratar a realidade. Volta-se a uma literatura de auto-exame, cuja preocupação em revelar a história de sua nação pode ser considerada o ponto forte de toda a sua produção poética. Denuncia em suas palavras a literatura de cunho social, preocupada, muitas das vezes, na visão do outro dentro de uma 140 Normalmente, a imagem da noite na poesia de Pacheco simboliza a dor e o sacrifício dos antepassados mexicanos, seu desejo pelo retorno dos deuses e a esperança da saída do sol entre os vulcões, representando o início de um novo ciclo vital. 157 sociedade tão injusta. Pacheco inicia o uso de alegorias em sua poética e desenvolve, nessa fase, a temática infantil, representada também em sua produção em prosa. Surge, nesse período, uma preocupação por parte do poeta em renovar a poesia de seu país, sendo assim deposita todas suas esperanças em cantar a criança141 mexicana, ser indefeso perante a ferocidade dos homens e do mundo global. Essa mudança na perspectiva de criação artística de Pacheco pode ser entendida como uma aproximação à mudança do olhar sobre a poesia hispano-americana dos anos 60 e 70, onde se buscou uma poesia mais voltada para a realidade concreta da vida, permitindo o uso da prosa e da anedota, como recursos poéticos, diferente do ideal de poesia dos anos 50, que mais relevante, na própria produção poética de Pacheco, seria o desejo de um canto utópico. Sobre essa mudança de estilo, o poeta e crítico argentino Saúl Yurkievich opina: Eu também acreditei e creio na interpenetração dos gêneros, mas a volta da poesia latino-americana em direção ao prosaísmo e anedótico agora parece-me negativa. Evidentemente, a poesia dos anos cinqüenta era muito utópica e ucrônica, muito ahistórica, demasiada distante de nossa experiência imediata. Então houve um empenho em voltar a relacionar essa poesia com o mundo de todos, com o cotidiano, com a realidade concreta, em fazê-la descender para que possa registrar, na língua oral ou língua viva, as restrições do real empírico. Nossa poesia volta-se 142 conversacional, doméstica, popular, de via pública . Segundo o escritor mexicano Jorge Fernández Granados (2003), nessa fase, Pacheco parece resgatar traços da antipoesía143 de Nicanor Parra e da irreverência de Ernesto Cardenal — a quem Pacheco reconhece como seu grande mentor, dedicando-lhe algumas epígrafes num de seus livros dessa fase — ou de Jaime Sabines. Pacheco mostra 141 No poema “Tierra incógnita” (PACHECO, 2009a, p. 24), Pacheco corrobora sua visão: “Cuánto dolor del mundo en el inocente / que por fortuna no se da cuenta de nada.../ o eso creemos, al vernos, / Igual que él, de repente, un día. / Nadie está a salvo”. 142 “Yo también he creído y creo en la interpenetración de los géneros, pero el viraje de la poesía latinoamericana hacia lo prosaico y anecdótico ahora me parece negativa. Evidentemente, la poesía de los años cincuenta era demasiado utópica y ucrónica, demasiado ahistórica, demasiado distante de nuestra experiencia inmediata. Entonces hubo un empeño en volverla a conectar con el mundo de todos, con la cotidianeidad, con la realidad concreta, en hacerla descender para que registrase en la lengua oral o lengua viva las restricciones de lo real empírico. Nuestra poesía se vuelve conversacional, doméstica, polular, callejera”. [Tradução nossa] In: STANTON (1991, p.109-110). 143 Escritura elaborada a partir da negação das características essenciais de outras escrituras e de outros códigos literários ou não-literários. In: MARCHESE & FORRADELLAS (1986). 158 certa transparência em sua linguagem, convertendo sua erudição para uma linguagem da vida cotidiana. Essa etapa, para o poeta, caracteriza-se como a de uma enorme pluralidade estética e, de certa forma, genérica, na qual lhe permite apagar as diferenças entre prosa e verso, surgindo poemas em prosa144, que dialogam de modo mais nítido com o leitor. A forma poética faz-se plural, heterogênea e até mesmo fragmentada. O poeta insere, em sua poética, outras vozes, que parecem se esconder atrás de máscaras. Daí a criação e o emprego por Pacheco de heterônimos como recurso simbólico em seus poemas. Ernesto Cardenal, ao ser um defensor do prosaísmo na América Hispânica, revela que, em um poema, cabem fragmentos de cartas, dados estatísticos, notícias jornalísticas, editoriais de um jornal, crônicas de uma história, documentos, textos humorísticos; mostrando assim tendências que realmente eram típicas da prosa, e não da poesia (BENEDETTI, 2000, p. 77). E a partir dessa influência, Pacheco dosará de imagens, que se por um lado chocam, por outro são semelhantes, para a formação de outra imagem, porém, que revele, aparentemente, o seu trabalho de construção poética e sua maneira de pensar a realidade. Assim sendo, baseado nesse prosaísmo da poesia, o poeta além de fazer referência à história contemporânea do México, à realidade urbana, à opressão social e política, faz com que os poemas dessa fase abram a sua linguagem para setores extraliterários, como o mundo da propaganda, a entrada de muitos produtos estrangeiros no mercado, do jornalismo e, inclusive, temas sobre destruição ecológica. E, principalmente, há neles uma tentativa de questionar a noção da originalidade de um texto literário, já que Pacheco sente um texto como um objeto anônimo145, portanto, coletivo e capaz de sofrer alterações no decorrer de sua existência. 144 No livro Desde entonces (1980), os primeiros poemas em prosa de Pacheco aparecem, os quais apresentam as mesmas preocupações de seus livros anteriores, em especial, ao tema da cidade entendida como imagem da confusão e da morte. O poeta desenvolve seus pensamentos, contudo não faz uso de versos muito longos. 145 Num poema em homenagem ao poeta Juan Ramón Jiménez, Pacheco chama atenção para o caráter coletivo da poesia nos seguintes versos: “Acaso leyó usted que Juan Ramón Jiménez/ pensó hace mucho tiempo en editar una revista. / Iba a llamarse 159 Torna-se um hábito de estilo nos poemas dessa fase a recriação por parte do poeta de textos escritos por outros autores e, inclusive, em outros idiomas. Conforme argumenta o próprio Pacheco, ele somente aproxima esses poemas ao contexto mexicano dos dias atuais, já que a poesia permite vencer a passagem do tempo, porque, para ele, a poesia revela-se “não como criação eterna, mas como trabalho humano, produto histórico e duradouro”146. Outro procedimento adotado nessa segunda fase pelo poeta mexicano, fazendo jus à idéia de socializar e coletivizar a idéia poética, é a utilização da técnica de collage147, resgatada da vanguarda cubista. E para Pacheco, a collage funcionaria como mostra prática da escritura vista como intertextual. Nesse ponto, podemos estabelecer, uma vez mais, um contato de Pacheco com Borges, ao deixar evidente em seus contos, a idéia de que vivemos num mundo, onde o grande articulador de discursos é, pois, o leitor, responsável por enlaçar signos e pelo jogo dos tempos e dos sentidos. O fogo como símbolo da destruição novamente aparece na obra No me preguntes cómo pasa el tiempo (1969). A imagem do caos surge da confusão de imagens, entre o passado e o presente mexicano, já que o escritor é testemunha da história. No poema “Lectura de los ‘Cantares mexicanos’: manuscritos de Tlatelolco”148, Pacheco denuncia o massacre de Tlatelolco ocorrido na cidade por meio do olhar de testemunha de seu tempo: ‘Anonimato’. / Publicaría no firmas sino poemas; / se haría con poemas, no con poetas. / Y yo quisiera como el maestro español / que la poesía fuese anónima ya que es colectiva / (a eso tienden mis versos y mis versiones) […] Posiblemente usted me dará la razón. / Usted que me ha leído y no me conoce. / No nos veremos nunca pero somos amigos. / Si le gustaron mis versos / qué más da que sean míos / de otros / de nadie. / En realidad los poemas que leyó son de usted: / Usted, su autor, que los inventa al leerlos.” (PACHECO, 1987, p. 48) 146 “no como creación eterna sino como trabajo humano, producto histórico y perecedero”. [Tradução nossa] In: STANTON (1991, p. 110). 147 O termo foi usado primeiramente para as artes plásticas, porém se estendeu a diferentes técnicas textuais. A técnica do collage consiste em tomar um determinado número de elementos de obras, de objetos, de mensagens já existentes e integrá-los em uma nova criação. In: MARCHESE & FORRADELLAS (1986). 148 O escritor refere-se a esse texto como um “poema coletivo”, conforme declara, numa nota de página, “hecho con frases entresacadas de las narraciones orales y, en menor medida, de las noticias periodísticas que Elena Poniatowska recoge en La noche de Tlatelolco”. 160 Y todo esto pasó con nosotros. Con esta lamentable y triste suerte nos vimos angustiados. En los caminos yacen dardos rotos. Las casas están destechadas. Enrojecidos tienen sus muros. Gusanos pululan por calles y plazas (PACHECO, 1987, p. 32) Pacheco trata do ambiente de desordem e de caos gerado pelo progresso e pelo crescimento da cidade, com a expansão de suas ruas, de estradas, a construção de edifícios, de galerias, de túneis subterrâneos e de shopping centers. Aliado a isso, ainda, sinaliza o crescimento acelerado da população. No poema “Shopping Center”, o autor aborda o aumento da pobreza149 e os contrastes do progresso decorrente da expansão da urbe: Una autopista de cemento fúnebre abierta entre las ruinas de la ciudad conduce al shopping center. La carretera irrespirable sirve doblemente a los fines del consumo superfluo que no se propone satisfacer necesidades reales sino calmar la ansiedad […] Imagina el porvenir de estos colores deslumbrantes. Contempla la plaza como un inmenso proyecto de basurero. Y en vez de quienes comprando tratan de ajustar su imperfección humana al imposible ente plastificado que la publicidad exige de ellos, mira a los niños que buscan sustento en la basura (PACHECO, 1987, p. 105) O termo “basura” alude ao consumo desmedido da sociedade e a imagem da cidade como espaço desgastado no presente e no futuro150. A 149 No poema em prosa “Otro espejo” (PACHECO, 2009b, p. 47-48), o sujeito poético retrata as contradições e a desordem do espaço urbano nos seguintes versos: “Mala cara tiene ‘mi’ ciudad a la hora en que la infame noche se convierte en otro día de horror. Ya somos demasiados en todas partes. Aquí parecen concentrarse las multitudes que vienen del campo sin futuro a la ciudad en ruinas. Las niñas esclavas son prostituidas en cada puerta. Los adolescentes venden globitos, bolsas de plástico que contienen un gramo de cristal, la droga de los pobres, la más destructiva, la que causa más daños irreparables en el organismo y en el tejido social […] Policías y ladrones, ya indistinguibles, hacen cuentas sobre el botín de la jornada nocturna. Circulan de mano en mano billetes en que se ha impreso toda la mugre del país y del mundo manchado de sangre y la vida sin esperanza […] Su fealdad externa e interna es el reflejo de la nuestra. Su corrupción es nuestra podredumbre. Su desorden responde a nuestro íntimo caos”. Nesse poema, a noite simboliza a pobreza, o desgaste e a corrupção do país e da sociedade mexicana. Pacheco sintetiza, nessa narrativa poética, o outro lado da realidade citadina mexicana. 150 No poema “En el camión de la basura” (PACHECO, 2009a, p. 80), o sujeito do poema sinaliza o risgo do apagamento da memória dos individuos quando menciona: “Los 161 estrada aparece unida aos centros comerciais, como uma espécie de condução a um mundo falso, cuja ansiedade dos consumidores nunca se satisfaz. O sujeito poético levanta os antagonismos entre a vida consumista e a necessidade da reciclagem do lixo como fonte de subsistência. Pacheco demonstra olhar não apenas para o presente, mas também para o futuro. Esse olhar visionário para a cidade consta em grande parte de seus poemas. Na terceira fase da poesia de Pacheco, há o resgate do uso de alegorias, já realizado no momento anterior. A grande carga pessimista gerada pela história do México toma uma relevante importância na produção poética de Pacheco. A presença do surrealismo evidencia-se nesse momento final de classificação de sua poética, dialogando lado a lado a uma tendência de poesia conversacional, sendo essa caracterizada por apresentar poemas com estilo prosaico, em que esses são dotados de harmonia, entonação, elegância de expressão, emoção e outros recursos que permitem identificar traços do linguajar poético151. Nesse momento, dá-se também a implementação de outros gêneros, como a fábula e a alegoria, em seu discurso poético. Surge também, nessa fase, a influência oriental sobre a poética de Pacheco por meio da aquisição do estilo e da elaboração de haikús, responsáveis em revelar, ao leitor, a capacidade moralizante do poeta mexicano, e, além disso, as experiências e sonhos do poeta. Pacheco mostra, com sua voz, a importância do olhar e da participação do indivíduo na compreensão dos problemas que assolam seu país. O olhar crítico do escritor mexicano faz despertar as vozes adormecidas do espaço citadino, de tal forma que seus textos denunciam a dor diante do caos instaurado em nosso planeta pela globalização, que para Bauman (2008, p. 48), seria sinônimo de desordem mundial. papeles, las cartas que ya nunca / volverán a escribirse / y las fotos de ayer. / Todo lo nuestro está hecho / para acabar en la basura”. 151 Segundo o crítico Mario Calderón (2006), “lo esencial en la poesía de José Emilio Pacheco, en cuanto al significante, es la musicalidad, y en cuanto al significado, es la visión de un mundo mal construido visto desde la ubicación de la justicia y la cortesía, y tal vez esa amabilidad y cortesía sea lo que representa Pacheco en la literatura mexicana contemporánea”. 162 O conjunto poético de Pacheco oferece uma variedade de temas, porém a cidade e seus dilemas constituem grande preocupação do escritor. Pacheco nos poemas “La lluvia en Copacabana”, “El Alba de Montevideo” e “Amanecer en Buenos Aires” simboliza aspectos distintos dessas cidades da América do Sul se comparamos à essência pessimista, predominante em seus textos para a capital mexicana. Nesses poemas, o poeta emprega cores claras e a imagem do céu como representação da esperança: “El alba de Montevideo”: “la noche lentamente se deshace ante la luna/ que avanza llena de eternidad” (PACHECO, 1987, p. 89). Não há vestígios de violência, do ar contaminado, da multidão das ruas e de outros agravantes da capital mexicana. O escritor constrói uma poética urbana para denunciar os antagonismos aparentes na capital mexicana. O escritor emprega, em sua obra, certos temas que sintetizamos neste estudo como desdobramentos da imagem do caos urbano ou dilemas da vida moderna que afligem os sujeitos da Cidade do México. Esse cenário caótico adotado como plano de fundo de sua obra, além de funcionar como um espaço de debate por tempos melhores, reforça o não comprometimento do sujeito com seu espaço social e sua solidão apesar de habitar um grande labirinto citadino. Nos próximos sub-capítulos, esperamos evidenciar o estilo de Pacheco chamando atenção do leitor para as vozes, os desejos, os corpos e as calamidades, que constituem o caos urbano retratado em sua obra poética. 163 3.1.1. O sujeito e a cidade da memória Si en algún lugar vive la historia, ese lugar es sin duda la memoria. Ricard Vinyes (2002, p. 7) Atualmente, no México, a imagem de Tenochtitlan representa a luta por rememorar o esplendor da cultura asteca — dizimada pelo ardor do conquistador espanhol. Essa imagem de uma grande cidade, em cujo presente só temos a imagem da lembrança, fez- se símbolo do poder e centro de uma cultura, o que permite afirmar que gerou, em seus habitantes remanescentes, imagens fragmentadas, carregadas da pura dor de um povo, devido a esse traço negativo evidente em suas raízes. Desse modo, analisamos essas imagens no poema “La ciudad en estos años cambió tanto”, de Pacheco: La ciudad en estos años cambió tanto que ya no es mi ciudad, su resonancia de bóvedas en ecos. Y sus pasos ya nunca volverán. Ecos pasos recuerdos destrucciones. Todo se aleja ya. Presencia tuya, hueca memoria resonando en vano, lugares devastados, yermos, ruinas, donde te vi por último, en la noche de un ayer que me espera en las montañas, de otro futuro que pasó a la historia, del hoy continuo en que te estoy perdiendo (PACHECO, 1999, p. 50) Percebemos que, pela voz do sujeito do poema, há o questionamento, no tempo presente, de um passado memorável. O sujeito poético afirma não reconhecer mais a sua própria cidade, aqui entendida como sua morada simbólica, ou seja, a imagem de seu próprio país152. Nota-se que, segundo o eu-lírico, os vestígios desse 152 Pacheco busca uma explicação para a destruição na cidade nesse outro poema: “Esa que allí no ves, que no está / ni volverá a alzarse nunca, / fue en otro mundo la casa / donde nací./ La avenida que pueblan damnificados / me enseñó a caminar. / Jugué en el parque / hoy repleto de tiendas de campaña. / Terminó mi pasado / Las ruinas se desploman en mi interior. / Siempre hay más, siempre hay más (PACHECO, 1987, p. 164 México “nunca más volverán”. Segundo a professora e crítica Bella Jozef (1980, p. 174), “o tempo perdido é irreversível, mas recobrado pela memória se transforma em poesia”. Assim, o poeta procura em suas raízes, em sua própria vida, a chave da existência”. Nessa busca pelo passado153 de sua história, encontramos, no eu-lírico, somente a imagem de uma “hueca memoria resonando en vano”, que assume estar perdendo os traços de sua identidade nacional quando diz “del hoy continuo en que te estoy perdiendo”. No poema “Desechable”, Pacheco complementa a idéia anterior, ao revelar que “nuestro mundo se ha vuelto desechable” (PACHECO, 1994, p. 85). A Cidade do México é retratada por Pacheco como um espaço da recordação e, ao mesmo tempo, fantasmal, onde as antigas vozes dos deuses habitam seu lago subterrâneo154, como percebemos nas seguintes imagens: Brusco olor del azufre, repentino color verde del agua bajo el suelo. Bajo el suelo de México se pudren todavía las aguas del diluvio. Nos empantana el lago, sus arenas movedizas atrapan y clausuran La posible salida Lago muerto en su féretro de piedra. […] Bajo el suelo de México verdean eternamente pútridas las aguas 126). A imagen da casa, no poema, simboliza seu país e as transformações decorrentes da vida moderna. 153 No poema em prosa “La plegaria del alba” (PACHECO, 2009b, p. 72), o sujeito poético corrobora essa impossibilidade de retornar ao passado: “Ayer no resucita. Lo que hay atrás no cuenta. Lo que vivimos ya no está. El amanecer nos entrega la primera hora y el primer ahora de otra vida. Lo único de verdad nuestro es el día que comienza”. Pacheco confirma a necessidade de se preparar para o futuro. O escritor sabe que não há como deter o caráter transformador do tempo. No poema “Por desgracia” (PACHECO, 2009a, p. 178), o eu-lírico expressa: “Nada resulta estable y hay lugares / devorantes, borrados, engullidos [...] Y sin embargo está lo que no cambia: / El mapamundi actual es como el de antes / una mancha feroz de fuego y sangre”. Essa mesma idéia está presente no poema “La mancha” (PACHECO, 2009a, p. 181): “Porque nada está firme. Todo se va. / Sólo la mancha sigue aqui / como una huella de sangre”. 154 Esse espaço é visto como misterioso como revelado pelo eu-lírico do poema “El canal de la Nada” (PACHECO, 2009a, p. 189): “Cuántos años vividos sobre estas calles / Sin pensar nunca en lo que yace aquí abajo. / Y no supe tampoco / Qué había ocurrido al fondo de mi propio pasado, / tan misterioso / como el ayer de todas las personas”. 165 que lavaron la sangre conquistada […] Queda el lodo en que yace el cadáver de la pétrea ciudad de Moctezuma (PACHECO, 1999, p. 47-48) O cheiro de enxofre e o lodo detonam a agonia do homem perante uma história de usurpações e infâmias. Com esse compromisso de levantar imagens que trabalhem como um canto doloroso de uma cultura ou com traços de uma literatura histórica, se destaca a figura de Pacheco nas Letras Mexicanas. Sua linguagem simbólica, como já dito anteriormente, permite ao leitor ir compreendendo e interpretando o seu passado e, ao mesmo tempo, preenchendo as imagens que o poeta constrói. Segundo o próprio Pacheco, não há a idéia de texto concluído; o poeta deixa evidente que as palavras só se realizam no momento de sua leitura por parte do outro, que pode compreender de outra maneira as imagens pré-criadas e concebidas do poeta, isso devido ao indivíduo ser capaz de relacionar o teor de um texto ao seu conhecimento de mundo e, numa amplitude maior, a sua própria vida. Sobre essa questão da pluralidade de um texto, Octavio Paz (1989, p. 108-109) reflete da seguinte maneira nos fragmentos abaixo: O mundo não é um conjunto de coisas, mas sim de signos: o 155 que chamamos de coisas são palavras . [...] O texto que é o mundo não é um texto único: cada página é a tradução e a metamorfose de outra página e assim sucessivamente. O mundo é a metáfora da metáfora. O mundo perde sua realidade e converte-se em uma figura de 156 linguagem . [...] A pluralidade de textos implica que não existe um texto 157 original . [...] 155 “El mundo no es un conjunto de cosas, sino de signos: lo que llamamos cosas son palabras”. [Tradução nossa] 156 “El texto que es el mundo no es un texto único, cada página es la traducción y la metamorfosis de otra y así sucesivamente. El mundo es la la metáfora de la metáfora. El mundo pierde su realidad y se convierte en una figura de lenguaje”. [Tradução nossa] 157 “La pluralidad de textos implica que no hay un texto original”. [Tradução nossa] 166 O verdadeiro autor de um poema não é o poeta nem o leitor, mas sim a linguagem [...] o poeta e o leitor não são mais que 158 dois momentos existenciais da linguagem . Pacheco, em sua poética, sabe que não podemos reviver plenamente por meio de imagens os momentos gloriosos de toda uma civilização. Nos versos “No tomes muy en serio”/ “lo que te dice la memoria” (PACHECO, 2000, p. 23), o sujeito poético sugere que não podemos nos basear somente por nossa memória, devemos, pois, buscar outras respostas no tempo presente. Conforme o filósofo francês Georges Didi- Huberman (2000), ao voltar no tempo pela memória, essas imagens que relembramos não se resgatam em sua totalidade, mas podem ser revividas e reconstruídas completamente, com as interferências do tempo atual. O poeta faz uso da palavra escrita não somente para reconstruir um fato ou uma lembrança, mas também com a intenção de gerar um novo olhar ― do presente ― que permite rever o passado, e de certo modo projetar o futuro. A memória, nesse caso, é um alargamento da própria experiência individual do poeta que é compartilhada com o outro. Pacheco, no poema “Crónica de Indias”, resgata o imaginário do conquistador espanhol ao olhar para a nova colônia159. O sujeito poético destaca a impiedade do conquistador para com os indivíduos mexicanos, além disso, revela a sua não identidade assumida com o novo espaço ao expor somente o interesse por suas riquezas. O eulírico, fazendo uso da ironia, mostra que a empreitada espanhola estava baseada em boas intenções, já que todas suas ações eram a favor de Deus e da Igreja: Después de mucho navegar por el oscuro océano amenazante, encontramos tierras bullentes en metales, ciudades 158 “El verdadero autor de un poema no es ni el poeta ni el lector, sino el lenguaje... el poeta y el lector no son sino dos momentos existenciales del lenguaje”. [Tradução nossa] 159 “No poema em prosa “Crónicas de la conquista” (PACHECO, 2009b, p. 63), o eu-lírico demonstra a superposição dos espaços e a tentativa de diminuir a presença da cultura indígena: “[...] Nada lograron las armas de pedernal contra la pólvora y los metales. Todo fue arrasado sin consideración para su ser, su modo de vida, sus creencias y tradiciones. Los nuevos templos se alzaron sobre los recintos sagrados. Lo esclavizaron y saquearon su naturaleza hasta convertirla en desierto”. 167 que la imaginación nunca ha descrito, riquezas, hombres sin arcabuces ni caballos. Con objeto de propagar la fe y arrancarlos de su inhumana vida salvaje, arrasamos los templos, dimos muerte a cuanto natural se nos opuso. Para evitarles tentaciones confiscamos su oro. para hacerlos humildes los marcamos a fuego y aherrojamos. Dios bendiga esta empresa hecha en Su Nombre (PACHECO, 1987, p. 34-35) No poema “Conozco la locura y no la santidad”, o sujeito poético também revela-nos o olhar de ira do conquistador espanhol em relação à cidade: Ojos, ojos, cuántos ojos de cólera mirándonos en la noche de México, en la furia animal, devorante de la hoguera: la pira funeraria que en las noches consume a la ciudad. Y al día siguiente sólo vestigios ya. Ni amor ni nada: tan sólo ojos de cólera mirándonos (PACHECO, 1999, p. 52) Pacheco, ao olhar para a cidade, coloca-nos diante de uma série de desafios provocados pela aceleração do tempo, oriundos das mudanças provocadas pela globalização das nações, evidenciando-nos o rápido processo de transformação a que foi submetida a cidade e o esfacelamento dos indivíduos, como podemos visualizar nos versos do poema “Pero ¿es acaso el mundo un don del fuego...?: ¿Para qué estoy aquí, cuál culpa expío, es un crimen vivir, el mundo es sólo, calabozo, hospital y matadero, ciega irrisión y afrenta al paraíso? (PACHECO, 1999, p. 41) O poeta mexicano tenta revelar, em seu canto, um olhar que se impressiona com a história dos acontecimentos. Portanto, dois olhares se interpenetram em seus poemas: o olhar do passado pré-colombiano no momento presente e o olhar da modernidade com projeções futuras. Para unificar esses olhares, Pacheco parece reconhecer que, somente no olhar, estão concentrados todos os nossos sentidos, de maneira que olhar um objeto, uma pessoa ou um espaço não se resume somente a flashes 168 imediatos sem considerar uma história antecedente. Some-se a isso, o fato de que esses olhares aliam-se ao poder de renovação desempenhado pela memória. O papel do poeta está na percepção do real através do olhar. Através do ato de percepção, Pacheco tenta interpretar o espaço das cidades mexicanas para, então, criar. Todo ato de compreensão do real assume um instante de criação poética, mesmo quando a realidade não se configura mais no campo visual do artista. O poeta compreende que qualquer objeto passa a existir em sua imaginação e em sua memória depois de um primeiro olhar de compreensão para o mesmo. A memória significa a capacidade de conservar e lembrar o passado. Dessa maneira, podemos compreendê-la como um instrumento capaz de reter com precisão certos fatos de nossa existência e transformá-los em imagens em nosso consciente e/ou inconsciente, sendo essas imagens solicitadas à medida que o indivíduo necessite dispô-las na vida prática. A memória, responsável por manter certas informações e dados, permite que o indivíduo esteja sempre atualizando suas impressões ou vivências passadas. Pela memória, o sujeito é capaz de avaliar seu passado e buscar melhorias no que tange sua vida no presente e no futuro. Entretanto, nem sempre há esperança para o futuro. Esse também é visto como “podredumbre”, “basura” e “ruina”, como observamos nas imagens do poema “Séptimo sello”: Y poco a poco fuimos devorando la tierra Emponzoñada ya hasta su raíz no queda un árbol ni semblanza de río. El aire entero es podredumbre y los campos océanos de basura Soy el último hombre Sobreviví a la ruina de mi especie Puedo reinar sobre este mundo pero de qué me sirve (PACHECO, 1987, p. 54) Porém, de acordo com a filósofa alemã Jeanne Marie Gagnebin (1985, p. 16), a memória não resgata simplesmente o passado, mas: Salvá-lo no presente graças à percepção de uma semelhança que o transforma em dois: transforma o passado porque este assume uma forma nova, que poderia ter desaparecido no esquecimento; transforma o presente porque este se revela como sendo a realização possível dessa promessa anterior, 169 que poderia ter-se perdido para sempre, que ainda pode se perder se não a descobrirmos, inscrita nas linhas do atual. Existem diversos tipos de memória, entre elas, a social, a histórica, a coletiva, a mítica, a nacional e a poética. Mesmo sendo um conceito que se refere ao que é vivo na consciência do ser humano e na de sua comunidade, podemos compreender que a memória estabelece uma relação bastante direta com o indivíduo antes de ser evidente a toda uma sociedade. Podemos assim dizer que a memória possui um estágio prioritariamente particular e individual, funcionando de maneira que estabeleça um canal direto entre o “eu” do homem e os fatos guardados no reservatório da memória. Todo indivíduo pertence a uma sociedade, como já foi exposto anteriormente neste estudo, e será ela a responsável em dar meios para o sujeito armazenar em seu consciente certas vivências. No interior de cada um, convivem elementos conhecidos e desconhecidos, e são esses elementos desconhecidos, conforme o psiquiatra suíço Jung (apud GUBERMAN, 1998, p.48), que permanecem em nosso inconsciente. O inconsciente pode ser entendido como o espaço das informações conhecidas, porém das passagens não bem resolvidas e entendidas por nosso ser ou, ainda, daquelas que merecem uma atenção especial de nossa parte, porque, caso contrário, podem se transformar em verdadeiros traumas, gerando bloqueios em nossa vida em sociedade. Para o melhor entendimento da presença da memória na poética de Pacheco, fez-se necessário não só desvendar a memória individual do poeta, mas a de toda a história a que esteve submetido, logo, compreender a história marcante de seu país, principalmente analisar, em seu discurso simbólico, a presença do substrato cultural das civilizações pré-colombianas e dos diversos movimentos que buscaram a independência do México, como forma de integrar lado a lado diversas camadas da população, que constituem o rico país que conhecemos, seja por sua história, seja por sua diversidade cultural, caracterizando a cultura mexicana como uma força tipicamente mestiça desde suas origens. 170 Certo afirmar é a existência e convivência no imaginário de Pacheco de uma memória individual e coletiva. Ao vivenciar experiências em um determinado espaço, estamos inseridos em um mundo de imagens, sejam essas visíveis aos nossos olhos ou invisíveis, constituindo-se essas um verdadeiro desafio para nós, leitores e videntes desses sentidos, que temos que construir e, muitas das vezes, buscar sentidos através da história de nossos antepassados. Para Calvino (1990), ao relatar as viagens do personagem de Marco Polo, a memória é ativada a partir do momento que o sujeito olha para a cidade e transporta imagens na leitura de outra ou, às vezes, traz recordações na leitura de cidades nunca antes percorridas. O narrador viajante de Calvino (1990, p. 28) revela: Quanto mais se perdia em bairros desconhecidos de cidades distantes, melhor compreendia as outras cidades que havia atravessado para chegar até lá, e reconstituía as etapas de suas viagens [...] Ao chegar a uma nova cidade, o viajante reencontra um passado que não lembrava existir: a surpresa daquilo que você deixou de ser ou deixou de possuir revela-se nos lugares estranhos, não nos conhecidos. Seguindo esse pensamento, Pacheco utiliza como complemento a sua memória individual, traços e imagens da memória mexicana, conseguindo assim gerar um novo olhar poético para o tempo presente, pois de acordo com o historiador espanhol Ricard Vinyes (2002, p. 7): [...] através da memória a história continua vivendo e reelaborando as esperanças, projetos ou desânimos de homens e mulheres que buscam dar um sentido à vida, por ordem ao caos, dar soluções conhecidas a problemas desconhecidos, 160 provavelmente novos. A memória é história de fato Pela colocação de Vinyes, temos clara a idéia de que a história é capaz de resistir à passagem do tempo, sempre construindo novas lembranças e imagens, responsáveis em dar a conhecer a presença do passado no tempo presente e futuro. Nossa vida resume-se como um eterno caminhar, e nesse percurso, temos a memória orientando-nos como fonte de informação e de caminho a ser seguido. 160 “A través de la memoria la historia continúa viviendo y reelaborando las esperanzas, proyectos o desánimo de hombres y mujeres que buscan dar un sentido a la vida, encontrar (o poner) orden en el caos, soluciones conocidas a problemas desconocidos, quizás nuevos. La memoria es historia en acto”. [Tradução nossa] 171 A memória sendo nosso reservatório de recordações e informações não permite que vejamos o presente e projetemos o futuro com certas reminiscências do passado, mas sim que, a partir do resgate delas, ou pelo menos de parte das mesmas, examinemos a experiência individual e coletiva dos indivíduos de uma sociedade na formação de ideais e de valores, de modo que colaborem com a manutenção das relações humanas no espaço urbano. Cabe entender a memória como um mecanismo superior a um mero registro de dados. Graças a sua função social, a memória perde seu sentido físico em nosso corpo, ao ser também vinculada ao discurso oral e escrito. Com o desenvolvimento das sociedades na vida contemporânea, a memória torna-se um elemento fundamental para entendermos o que chamamos por identidade, seja essa também coletiva ou individual. Entender a identidade será re-visitar a história de um povo, por isso lançar-se de corpo e alma na memória que reluz as origens, os costumes e as ações de uma comunidade. Na poética de Pacheco, a memória permite pensar as imagens inerentes às experiências vividas pelo poeta, pois a imagem não se faz fora de um tempo. Os nossos referentes visuais sempre estão presos ao registro da realidade e, principalmente, ao das relações sociais que evidenciamos ao nosso redor. Esse tempo do qual uma imagem pode ser revelada, mostra-se um tempo heterogêneo, em que os referentes são meras construções mentais no olhar do próprio poeta, e servem para a compreensão dos fatos de uma determinada civilização. O poeta, à medida que trabalha com a visualidade dos fatos que rodeiam seu universo, permite ao outro ― ao leitor ― estabelecer diálogos entre esses tempos imaginários e o poder de encontrar semelhanças entre os momentos vivenciados por seu povo. Essa interação entre os tempos ― presente, passado e futuro ― revela-se pelas imagens poéticas como o tempo da busca, da reconfiguração do presente e da projeção, respectivamente. 172 De certo modo, Pacheco busca, em sua poética, encadear os acontecimentos, mostrando certa unidade dos fatos. Esta unidade é que nos permite entrever um sentido nas imagens de seus poemas, ainda que algumas vezes encontremos contradições. Vejamos essas imagens poéticas no poema “Se han extraviado ya todas las claves para salvar al mundo”, que faz parte de El Reposo del fuego: Se han extraviado ya todas las claves para salvar al mundo. Ya no puedo consolar, consolarte, consolarme. Tierra, tierra ¿por qué no te conmueves? Ten compasión de todos los que viven. Haz que nadie mañana – algún mañana– tenga ocasión de repetir conmigo mis palabras de hoy y mi vergüenza. (PACHECO, 1999, p. 43) Pela sucessão dos acontecimentos, o sujeito do poema revela-nos, por meio das imagens anteriores, que não há mais esperança “para salvar al mundo”, restando somente, ao próprio poeta, a função de “consolar, consolarte, consolarme”. O eu poético destaca, ao que seria o verso principal do poema, em que canta, chora e questiona essa lembrança do passado de seu país e do sofrimento de seus antecessores. Mas ao mesmo tempo, em “Tierra, tierra ¿por qué no te conmueves?”/ “Ten compasión de todos los que viven”, dotado do dom e do exercício de trabalhar com a linguagem, o sujeito poético demonstra a vontade de seguir fazendo história ao clamar por piedade para os que presenciam as ferocidades impostas pela vida. O eu poético projeta e interroga, por outro lado, a existência de um tempo futuro, colocando em dúvida esse amanhã161 — “algún mañana”. Para o sujeito poético, só resta lutar para diminuir a imagem de uma cidade desgastada, sendo essa representada simbolicamente pela “verguenza” revelada no seu discurso poético. Em outros versos, Pacheco mostra que as imagens do tempo geram buscas na memória implícita dos indivíduos, que apagam e 161 A incerteza pelo porvir, também, aparece no questionamento do eu-lírico do poema “Preguntas” (PACHECO, 2009a, p. 83): “Total misterio a cada instante la vida. / ¿Quién soy, para qué estoy aquí, / qué va a pasar de ahora en adelante conmigo? / No lo sé, / Nunca lo sabré”. 173 resgatam acontecimentos ao mesmo tempo, semelhante ao papel da própria escritura poética: “Miro sin comprender, busco el sentido”/ “de estos hechos brutales” (PACHECO, 1999, p. 14). As imagens do tempo se dispersam por todas as partes de uma cidade, principalmente, aquelas refletidas na arquitetura, e nos demais monumentos construídos pelo homem, com a finalidade de escrever no tempo a sua existência e a de seu povo. Para Pacheco, o passado transforma-se em história e aproxima-se mais da realidade quando o analisamos no tempo presente; sendo assim, a realidade contemporânea será o suporte da memória histórica, em que se acomodam as imagens selecionadas pelo próprio tempo e pelos indivíduos. Entre as imagens, que se repetem do mundo real e das criadas por nosso inconsciente, somente as mais significativas são guardadas e recordadas pelos indivíduos, sendo essas, possíveis de serem reconstruídas por meio de novos sentidos dados a esses fatos já vivenciados e experimentados na história do homem. Portanto, o indivíduo sempre insere seu discurso num tempo cronológico e num espaço marcado. Só o inconsciente é atemporal, deixando intactas para sempre certas lembranças. Por meio do poema “México: vista aérea” (PACHECO, 1987, p. 74), notamos essas imagens das ações do homem, que busca sua identidade nas ruínas da Cidade do México, eterna lembrança de Tenochtitlán. Nesta composição poética, podemos perceber que o sujeito do poema tece um jogo de palavras, transformando-as em imagens que serão reveladas aos poucos, por meio do sentido da visão, para o qual o leitor é chamado à atenção. Já no título do poema e no primeiro verso “Desde el avión”, percebe-se essa marca visual. Pacheco, seguindo as concepções de Paz, entende e sente um poema como uma revelação, que se abre diante dos olhos do leitor como símbolo da criação poética. Podemos entender essa visão aérea do México, por parte de Pacheco, como sendo uma recriação de uma técnica visual muito utilizada pelo poeta chileno Vicente Huidobro, o criador da estética 174 criacionista na América Hispânica. Também a vemos em Paz (1989, p. 201-202): “[...] as palavras são como pára-quedas que se abrem em pleno vôo [...]. Antes de tocar terra, estalam-se e se dissolvem em explosões coloridas”162. Através desse recurso, percebemos sua contribuição na leitura das imagens apresentadas a seguir. Em “México: vista aérea”, a voz do sujeito do poema dialoga com um “tu”, que comprovamos através dos seguintes versos: “¿qué observas?”, “tu tierra es de ceniza”. Esse emprego, ao mesmo tempo em que se apresenta como um mero diálogo entre o canto do poeta e o seu público-leitor, o inclui nos atos e acontecimentos que serão cantados em sua obra, como o passado guerreiro de seus ancestrais, que influenciaram na constituição da identidade nacional de seu povo, bem como as belezas naturais de sua terra. Podemos observar a participação do sujeito do poema como um agente coletivo no verso “Somos una isla de aridez”. O México canta com suas mil vozes; é impossível abrangê-lo: canta com a voz de seus poetas e de suas expressões artísticas. Essas particularidades são transformadas em imagens segundo as palavras de Pacheco, podendo resumi-las em um canto a sua cultura: paisagens, que conotam o resplendor de seu sol, portanto da sua “hoguera”, e a imensidão de seus mares, “isla de aridez”. Todas as marcas existenciais de um povo, vistas através de suas ruínas, vão sendo exploradas pelo sujeito do poema. Podemos perceber tal afirmação nos seguintes versos: “pesadas cicatrices de un desatre”, “Sólo montañas de aridez”, “de una tierra antiqüísima”. Dessa maneira, o eu-lírico permite que aflore o que restou de uma civilização — a imagem da cultura pré-hispânica — após a chegada dos espanhóis em sua terra. Esta imagem apresenta-se mais nítida nos versos: “muerta hoguera”, “tu tierra es de ceniza”. 162 “[…] las palabras son paracaídas que se abren en pleno vuelo [...]. Antes de tocar tierra, estallan y se disuelven en explosiones coloridas”. [Tradução nossa] 175 No nível da conotação, temos a representação de uma cidade sem vida, convertida em pedras163, “sólo costras”, paralisadas de terror perante a ferocidade dos invasores. Ao mesmo tempo em que a fogueira de um povo foi destruída, restaram as cinzas dessa fogueira. Na chama dessa cultura, simbolizada pela “hoguera”, temos a representação da força de uma civilização que canta suas vitórias e seu esplendor através de suas ruínas, vestígios de uma arquitetura exuberante, e também sentimos um desejo latente de reviver os momentos gloriosos de seus antepassados. Os versos seguintes, por meio de imagens, traduzem bem essa exuberância: “Monumentos que el tiempo”/ “erigió al mundo”/ ”Mausoleos” / “sepulcros naturales” [...] “el polvo/ reina copiosamente entre su estrago”. O “polvo” representa um elemento de destruição, mas, ao mesmo tempo, retrata a imagem da recordação dos vestígios da antiga cidade. A própria disposição dos versos do poema leva-nos a imaginar e refletir sobre a busca do indivíduo no presente e no passado da cultura mexicana. Pacheco abandona as formas clássicas de estrofe, métrica, rima e sintaxe. O poeta vê-se livre em seu processo de criação artística graças à instauração de novas formas poéticas introduzidas pelo movimento das vanguardas: linguagem muito mais plástica, visual e repleta de movimento. Conforme Paz (1990, p. 110): A escritura poética alcança sua máxima condensação e sua extrema dispersão. Ao mesmo é o apogeu da página como espaço tipográfico e o começo de outro espaço. O poema cessa de ser uma sucessão linear e escapa à tirania tipográfica. Percebemos, na escrita de Pacheco, um reconhecimento às linguagens vanguardistas, apresentadas no primeiro capítulo deste estudo, porque o escritor se propõe a criar novas formas e novas 163 A pedra é uma importante imagem na poesia de Pacheco. Ela aparece como marca da passagem do tempo, ou seja, da destruição, contudo, representa a resistência do mesmo, como podemos depreender seus sentidos nos versos: “¿Sólo las piedras sueñan?/ ¿Su hosca presencia / es la inmovilidad? / ¿El mundo es sólo / estas piedras inmóviles?” (PACHECO, 1987, p. 52). Esse símbolo, também, está presente na poesia de Octavio Paz. Pacheco, no início de sua carreira literária, escreve um ensaio analisando o poema Piedra de Sol e termina descrevendo sua admiração pelo texto de Paz: “Para comunicar mi entusiasmo perdurable por este gran poema, diré que tengo tres ejemplares de Piedra del Sol: uno para leer, uno para releer y uno para ser enterrado con él” (PACHECO, 1971, p. 137). 176 maneiras de se expressar por meio de uma revisão das estéticas do passado. A principal contribuição das vanguardas mexicanas na poesia de Pacheco está, além de recriar sentidos para a realidade, em entender seu canto como uma voz crítica e denunciadora das transformações do espaço urbano, no plano físico (externo) e no plano social (interno). O espaço urbano nunca é neutro, e a partir disso, o crítico Aínsa (1998, p. 171) trata da relação entre o espaço externo e interno: A espacialidade externa, que gera a ordem urbana, tem sempre o reverso de uma espacialidade intensa vivida interiormente, o que não supõe um espaço dual, mas sim somente um único, que, por um lado, é exterioridade e por outra interioridade, peculiar manifestação ‘in-tensa’ do 164 ‘extenso’ . Os versos do poema “México: vista aérea” representam não somente os muitos redemoinhos que a sociedade pré-colombiana presenciou, mas também a própria marca que delimita o presente e o passado de uma nação, revelados nas imagens criadas pelo sujeito do poema: um jogo do tempo em duas instâncias da cultura mexicana. Cada colocação, cada termo revela como foi a civilização anterior à chegada dos espanhóis, as lutas pelas quais passou e o que restou após sua tomada, e não sua conquista. Quando um verso se inicia ao final de outro, este fixa os momentos de vivência e as marcas possíveis de nostalgia165 ou fugacidade dos mexicanos. Cada espaço em branco gera um momento de reflexão, e, em seguida, de fixação das imagens que se apresentam. A voz do eu-lírico nos deixa clara a idéia de que a civilização mexicana, mesmo com todas as atrocidades que vivenciou, caminha com o próprio tempo, tentando resgatar sua própria história. O que se comprova no seguinte verso: “Sin embargo la tierra continua”. Muitos substratos de um povo nem sempre são perdidos, podem ser esquecidos por certos momentos, porém sua essência se perpetua na memória de 164 “La espacialidad externa que genera el orden urbano tiene siempre el reverso de una espacialidad intensa vivida interiormente, lo que no supone un espacio dual, sino un solo y mismo espacio que, por un lado, es exterioridad y por otro interioridad, peluciar manifestación ‘in-tensa’ de lo ‘extenso’”. [Tradução nossa]. 165 Podemos recordar, nesse momento, a Baudelaire quando disse que a nostalgia é a fonte de toda poesia sincera. 177 uma nação. Vejamos os seguintes versos: “y todo lo demás pasa”, “se extingue”, “se vuelve arena para el gran desierto”. Octavio Paz, em seu livro sobre a alma do indivíduo mexicano, El Laberinto de la soledad, deixa nítida a idéia de que somente o tempo pode explicar um feito. Podemos concluir que só o tempo foi capaz de perceber a mudança e auxiliar na tentativa de perpetuação de uma identidade nacional. A marca do povo mexicano pode ser entendida em sua representação dada pela “arena”, símbolo cuja força faz acender e brotar a recordação das lutas que a civilização presenciou no México em busca de sua identidade. A realidade e a imaginação tomam formatos e sobrevivem, na memória, por meio dos sistemas de signos empregados pelo poeta. Por meio da linguagem, temos um homem que se relaciona com o mundo, produzindo idéias, crenças e histórias que se acumulam em busca de um mundo melhor. Na imagem da cidade exposta por Pacheco, podemos correlacionar as expressões artísticas e os vestígios arqueológicos como um texto vivo, um texto em pedra, e desvendar, ao indivíduo, os símbolos do passado. O conjunto de monumentos da cidade, para Pacheco, revela parte da essência do indivíduo que habita esse espaço e permite prolongar um passado vivenciado. A comunicação do sujeito com o patrimônio ao redor foi discutida no capítulo anterior a partir do teórico Lynch (1997) e encontra semelhança na leitura de Aínsa (1998, p. 173) ao dizer: Os monumentos são apreendidos não somente pela forma geométrica e pelas formas arquitetônicas em que se resumem e simbolizam o mundo exterior das aparências, mas sim através de uma complexa relação subjetiva que parte sempre do ‘estar no mundo’ e do situar-se em função do ‘lugar’ em que 166 se vive . Em outro poema de temática citadina, Pacheco também trabalha a imagem da pedra como reveladora do passado de um povo que se faz 166 “Los monumentos son aprehendidos no sólo por la forma geométrica y las fórmulas arquitectónicas en que se resumen y simbolizan el mundo exterior de las apariencias, sino también a través de una compleja relación subjetiva que parte siempre del ‘estar en el mundo’ y del situarse en función del ‘lugar’ en que se vive”. [Tradução nossa]. 178 presente pelas metáforas do sujeito do poema. Trata-se do poema “Tulum” (PACHECO, 1987, p. 68-69). A Cidade de Tulum está situada no Estado da Quintana Roo da República Mexicana, na costa da Península de Yucatán, às margens do Mar do Caribe167, estando a uns 131 km da Cidade de Cancún, cidade essa que pertenceu à civilização maia. Os espanhóis chegaram a Tulum no século XVI, em 1518, época em que a cidade foi abandonada, liderados por Juan de Grijalva, e, ainda, contava com a presença de Francisco de Montejo, conquistador de Yucatán. Os espanhóis ficaram maravilhados com a grandeza de algumas construções da cidade maia, principalmente com a torre central da região, denominada El Castillo, situada a aproximadamente doze metros sobre o Mar do Caribe, o que proporcionava uma visão panorâmica de tal ponto. Além disso, a edificação esbanjava perfeição ao ter suas fachadas decoradas com serpentes em total sintonia com a paisagem local. Outras construções também completam o centro cerimonial de Tulum, e são essas construções as que estão posicionadas dentro da muralha que protege a cidade: Templo del Dios Descendente, dedicado exclusivamente ao Deus Kukulkán168. A forma da disposição dos elementos que compõem o templo foi disposta de modo a representar a descida do deus do céu. Outro ponto de destaque dessa construção está nas pinturas murais, nas fachadas ou em seu interior, retratando cenas da vida cotidiana dos demais deuses. E o Templo de los Frescos, construção de notória importância por seu conjunto arquitetônico de esculturas; pinturas retratando como se divide o universo maia (mundo dos mortos, 167 A posição geográfica foi favorável a esse paraíso maia. A localização costeira e a altura, onde se ergueu a cidade, representou sólidos conhecimentos no campo da astronomia e um privilegiado comércio marítimo. 168 Deus visto na representação de um homem pássaro-serpente, que se originou primeiro no Antiplano Central com o nome de Quetzalcóatl. Para os nativos de Tulum, os deuses eram vistos como divindades, e cada uma delas exercia seu papel específico para a sociedade. O Deus Kukulkán é o deus de maior destaque devido a sua preocupação com a fertilidade e bem estar do povo. Segundo estudiosos, também pode ser nomeado como Deus Descendente, Deus Vênus ou Deus Sol. Conforme a lenda, o Deus Vênus emergia da escuridão, pois saía do mundo dos mortos, e nascia novamente, trazendo a luz para a região de Tulum. 179 dos vivos e dos deuses); gravuras; colunas; altares e figuras de deuses169, entre elas, o deus Chac e a deusa da lua. A magia dessa civilização reflete-se nos vestígios de sua arquitetura, conseqüentemente de suas ruínas, onde estas, através da voz do poeta, são cantadas para nós. Tulum traz, em seu sentido etimológico, a significação de “muralha”, o que podemos associar aos muros que a protegem, a cercam e a ligam ao mar, logo esse sentido faz jus ao sítio arqueológico, devido aos muros que rodeiam três de seus lados (norte, sul e oeste), sendo o quarto (leste) de contato direto com as águas transparentes do Mar do Caribe. Segundo o geógrafo brasileiro Márcio Piñon, na origem da cidade e de seu discurso fundador, encontramos, como um de seus objetivos latentes, o desejo “de proteção ou de um lugar onde os indivíduos possam se sentir seguros e se protegerem dos riscos oferecidos pela natureza ou violência dos outros” (OLIVEIRA, 2002, p. 54). Conforme as palavras de André Antolini e Yves-Henri Bonello (1994, p. 19): Assim, desde a origem, a cidade tornar-se-ia esse lugar ambíguo destinado a proteger da violência um conjunto de homens, ao mesmo tempo que não deixaria de ser um lugar de luta, onde, acordados em torno de sua proteção, alguns homens aterrorizam outros. Por tais palavras, percebemos que a idéia de proteção e segurança entre os indivíduos de uma comunidade sempre se fez presente e são essas as imagens refletidas por Pacheco ao trabalhar com a questão da idéia de viver em comunidade, como modo de fortalecer os laços sociais de indivíduos de uma mesma civilização. No poema “Tulum”, a imensidão dos mares reflete e expande o resplendor do Sol dessa cidade maia. O nome original da região maia foi “Zamá”, que, em língua maia expressa o sentido de “amanhecer” ou de “manhã”, corroborando com o discurso das crônicas historiográficas da época relatadas pelos espanhóis, nos quais expressavam suas 169 Os maias possuem uma cultura não dual, diferente do pensamento dualista ocidental. Assim, a religião em Tulum desempenhava um importante papel na vida do indivíduo maia, por isso necessitavam dos deuses para intervirem em seus problemas. Foram numerosos os santuários erguidos a estes, bem como muitas pinturas religiosas e míticas, revelando-nos até hoje o modo de vida de um povo. 180 admirações em visualizar a plenitude da saída do Sol na região. Tudo isto que foi levantado pode ser confirmado através da voz do eu-lírico do poema. No decorrer da composição poética, Pacheco vê as ruínas de Tulum, não só como uma memória da cultura pré-hispânica maia, mas também como o vestígio dos deuses e o testemunho dolorido do povo que teve sua vida extinta, possivelmente pela conquista de outros povos. Através de suas pedras sagradas, o coração de Tulum vai sendo construído pela voz do sujeito do poema. A pedra representa a revelação do passado do povo maia. Essas imagens levantadas pelo eu poético de seus poemas seriam produto tanto das sensações imediatas, quanto das experiências passadas da cultura maia, convertendo-se em imagens com grande teor interpretativo e emocional para seus indivíduos. Percebemos, no poema, o jogo de imagens através de dois campos semânticos que podem ser subentendidos pelo leitor: o campo da petrificação — com semas que simbolizam imagens, e estes, em sua grande maioria, trabalham com a questão da memória de um povo, ou seja, da cultura maia; e o campo do movimento — cujas palavras empregadas permitem que este seja considerado um poema cíclico, no qual os tempos (presente e passado) se correlacionam. Podemos notar uma assimetria no poema, cuja função deve ser a de gerar, no leitor, a lembrança, a recordação sempre viva de um povo que lutou bastante para erguer esse Império do Sol, cujo Deus é Criador. Essa assimetria reflete-se, até mesmo, na disposição dos versos nas estrofes que compõem o poema. Da maneira que se dispõem os versos no poema, estes geram uma dificuldade na separação por estrofes; logo, dividimos o poema em três unidades maiores de sentido, mera divisão metodológica, com o intuito de facilitar nossa análise crítica do poema. Em “Tulum”, verificamos que o poema está centrado na palavra pedra, “sus palabras se harían de piedra”. Essa idéia apresenta-se em todo o primeiro bloco, cujo eu-lírico deixa aparente a idéia de uma cidade extinta “si este silencio hablara”, cuja lembrança faz-se presente por meio das construções em pedra. O sujeito do poema faz uso da conjunção 181 condicional “si” nos três primeiros versos, o que demonstra uma união entre as imagens que perpassam os dois campos semânticos já apresentados: “silencio” X “piedra”, “piedra” X “mar”, “olas” X “piedra”. Tulum, cidade que se apresenta diante do Sol, “Tulum está de cara al Sol”, também pode percebê-lo na escuridão de suas muralhas, de modo que o obstrua “de algún sol en tinieblas”, simbolizando assim um povo do qual só restam ruínas, passado de um “planeta muerto”, quer dizer, Tulum. O Sol visto pela voz do eu-lírico seria uma representação física, que iluminou o passado e continua clareando o presente. Ao mesmo tempo em que se expõe como luz, também é sombra ao resgatar raízes de uma civilização: vestígios que se iluminam num presente. O Sol é, ainda, o Deus criador e centralizador dos tempos na cultura maia, permanecendo como objeto de reverência no ar sagrado de Tulum: “Porque el aire es sagrado como la muerte”, “Como el Dios”. Este Deus protege e se faz presente no espaço. Todas as marcas existenciais atuais remetem ao sujeito do poema, como as presenças externas, desconhecidas, não vivenciadas: “Aqui todo lo vivo es extranjero”. A dominação e a conquista do povo maia quase anularam sua história, seu passado, que se distancia aos poucos, restando somente a essência, que faz o indivíduo se manter preso às tradições e os costumes de seu tempo. Além do mais, podemos dizer que os remanescentes maias não aceitam os estrangeiros, para que não venha, com eles, os percalços da Modernidade, permanecendo assim o silêncio, como uma fuga ao possível avanço da ciência e esquecimento das belezas naturais da cultura maia. “Y la hierba se prende y prevalece”, “Fuego en el que ofrendamos nuestro tiempo”. O fogo representa a vida, exaltando-a em sua existência, ou seja, numa luta para oferecê-la de uma melhor maneira ao tempo presente. “Tulum”, ao final do poema, apresenta-se em duas acepções: “Es el Sol” e “Es nucleo”. E estas fazem referência aos tempos e acontecimentos que a cidade vivenciou. Na primeira, Tulum continua sendo viva, mas em outra instância da cultura, por isso “es el Sol en otro ordenamiento planetario”, e, na segunda, resgata Tulum como centro, 182 base de uma civilização, cujas lembranças podem ser sentidas pelas ruínas, desse modo, “es núcleo de otro universo que fundó la piedra”. Dessa civilização antiga, só restou a sombra simbolizada pelas marcas de seus homens na arquitetura de seus monumentos ruínas/pedras/construções, e estas refletidas no mar, como se representasse a fugacidade de algo já vivenciado: “Y circula su sombra por el mar”. O poder de toda uma cultura, que traz, no seu bojo, a existência de sua forma, é refletida nas águas do mar, pois estas circulam e se movimentam na sintonia de suas ondas, “la sombra que va y vuelve”, como a memória que permanece ativa e que se converte em lembrança “hasta mudarse en piedra”. O poema aborda uma sociedade que, ao acumular saber e arte, deixa-nos a essência, com a qual o eu-lírico tece, através das realidades e dos sonhos vivenciados, a alma do povo maia. Na poética de Pacheco, as cidades guardam confissões, segredos nas próprias contradições do antigo e do novo, o que fazem deste o repertório da memória. As imagens do passado são vistas como os olhos do presente, e são lidas com as referências da contemporaneidade, graças ao olhar do poeta. A nostalgia presente no discurso do poeta revela o enfrentamento do indivíduo com a realidade dos fatos. Pelas idéias expressas por sua voz poética, Pacheco não analisa a cidade como algo natural, mas dependente, sobretudo, da vontade do indivíduo para perpetuar-se. Por isso, o poeta usa o dom de sua palavra em prol dos mexicanos, trabalha com a idéia de que a vontade pessoal de um homem pode representar a coletividade, já que acredita que a cidade deve funcionar como espaço democrático. Dessa maneira, sendo conhecedor das lamentações mexicanas, Pacheco trata das problemáticas de seu povo e canta, de modo poético, tais inquietações, o que o torna um poeta de prestígio reconhecido em seu país, por fazer uso de sua consciência crítica ao pensar as questões que envolvem o universo mexicano. Segundo o crítico indo-paquistanês Homi Bhabha (apud MOITA LOPES, 2002, p. 197), “é a vontade do homem que unifica a memória histórica e assegura o consentimento de cada dia. A vontade é, de fato, a articulação do povo- nação”. 183 Pacheco crê na vontade do homem de esquecer seu passado, de apagar, de sua memória, os atos de violência de seus antepassados, na busca de construir um passado diferente ao da história real, como expressa nos versos: “con piedras de las ruinas hay que forjar / otra ciudad, otro país, otra vida” (PACHECO, 1987, p. 60). Daí o desejo do poeta em questão em criar poemas repletos de lirismo170 em nome de uma terra sem conflitos na atualidade, tentando esquecer os tempos conflituosos de seu povo. Cada época pretende substituir outra, apagar seu passado para que nenhum vestígio relembre o sofrimento anterior do sujeito, conforme enuncia o eu-lírico do poema “El descubrimiento”: Gran cielo malva y en el fondo azulea la tierra prometida por los muertos. Será bosque sólo plantado para cortar madera y campo de cultivo que alimente no sus bocas, las nuestras. Pero ante todo el oro, piedra color de sol que es color de Dios. Y sobre esta piedra fundaremos el Nuevo Mundo. (PACHECO, 1997, p. 67) As imagens do passado transformaram-se numa visão motivadora para o futuro dessa nação. Segundo o arquiteto e escritor canadense Witold Rybczynski (2002, p. 212), “somente quando aceitarmos que nossas cidades não serão como as do passado, será possível ver no que elas podem se transformar”. E esse futuro seria o tempo a ser conquistado e moldado pelo indivíduo mexicano. Analisemos o haiku a seguir: El futuro nunca lo vi: se convirtió en ayer cuando intentaba alcanzarlo. (PACHECO, 1994, p. 107) O poema recebe o título de “Esperanza”, cujo texto gera imagens que revelam que o passado do homem ajuda-o a construir seu futuro, mas este seria o tempo do acaso, o tempo de uma busca constante, logo interminável do indivíduo para com seu país. Pacheco, com o emprego da alternância de sílabas em seus versos, resgata uma tradição oriental, de 170 Ao usar tal vocábulo, pensamos em mostrar o lugar da não-conformidade com o mundo. 184 modo que tal recurso representa as fases da existência humana, que são elas, ascensão, apogeu e decadência, respectivamente. Segundo o poeta, “estamos a la intemperie. Somos los dueños del vacío” (PACHECO, 1994, p. 54) , por isso devemos ser curiosos para pensar a nossa própria vida e identidade, e, segundo Paz (1973), cabe à imaginação do homem preencher tais espaços vazios. Para Pacheco, “la realidad es ficción. Mentimos siempre para sobrevivir” [...] “para estar vivos” (PACHECO, 1994, p. 63). Seus versos assemelham-se ao pensamento de Juan Rulfo sobre o papel do escritor, exposto no primeiro capítulo deste estudo. Por ser a realidade um espelho da ficção, mostrase aparente o desejo de criar imagens que completam o indivíduo e possam ironizar até, certa medida, os aspectos negativos da sociedade. Analisemos as seguintes imagens sobre a esperança desse tempo do acaso no seu poema “El silencio de la luna: temas y variaciones”: El aire está en tiempo presente. La luna por definición en pasado. Tenues conjugaciones de la noche. El porvenir ya se urde en los fuegos que hacen el alba. Invisible para nosotros, porvenir nuestro, Como otro sol en la maleza del día. (PACHECO, 1994, p. 151) Nessa estrofe, temos a utilização de um cruzamento entre os elementos “aire”, “luna”, “presente” e “pasado”, nos dois primeiros versos. A figura de linguagem empregada — o oxímoro — parece excluir a idéia de que alguma esperança, “el aire”, com seu movimento que traria uma nova vida, estaria no “tiempo presente”; ao contrário, gera uma imagem obscura. Devido a isso, a representação pela “noche”, que, por outro lado, por sua luz poderia iluminar o presente, não o faz por causa de tanta destruição anterior. Pacheco revela, nesse poema, a influência de Sor Juana Inés de la Cruz, pioneira nas Letras Mexicanas por seus sonetos filosóficos-morais, nos quais poetiza a miscigenação cultural. O poeta herda as desilusões e a carga pessimista, que predominavam nos sonetos barrocos da freira mexicana. Tal influência nos provoca a imaginação de que “el porvenir ya se urde”. E esse futuro é um segredo, portanto “invisible para nosotros”. 185 Analisemos essas outras imagens em seus poemas “Fin de la historia” e “La sombra”: Este muro ya en ruinas sigue viviendo y de nuestra esperanza no queda nada (PACHECO, 1994, p. 55) [...] De lo perdido ¿qué aparece? La sombra [...] sólo tenemos este ahora Ya no está aquí: Se hundió en la boca del insaciable pasado (PACHECO, 1994, p. 53) Como já explicitado nesse estudo, a pedra assume uma imagem representativa muito intensa na produção do escritor mexicano: ela acaba por simbolizar sua cidade-nação. O poeta revela que o México, apesar de suas crises e seu passado, por essa razão “ya en ruínas”, tem a necessidade de lutar, buscar uma saída, porém, a voz do sujeito do poema deixa-nos, de maneira nítida, a idéia do vazio de sua alma e, portanto, a perda da esperança, ou seja, de “nuestra esperanza no queda nada”. Depois de tantos pesares, o homem só consegue absorver uma imagem negativa dessa cidade-nação171. Conforme o pesquisador brasileiro Gomes (1995, p. 13), “no labirinto das ruas da cidade nua, o eu à deriva busca referências, a face perdida. Busca sentidos e lê ruínas, ou vazio. Já não reconhece a sua cidade que muda mais rápido que o coração de um mortal”. Assim sendo, “la sombra” reflete novamente a imagem da união dos três tempos — presente, passado e futuro —, pois a sombra se perdeu, reapareceu e se mantém na memória. 171 Em alguns poemas, Pacheco projeta dias melhores para sua cidade, porém, essa idéia não se sustenta pelos agravantes da vida moderna. No poema “El lugar de la duda” (PACHECO, 2009a, p. 191), o eu-lírico denuncia à realidade: “No vivimos en calma, nunca hay paz, / la vida toda es combate incesante. / Por eso nos convienen el tal vez, el acaso, / el quizá, el sin embargo y el no obstante”. A imagen do caos e de seus desdobramentos, também, se configura nas imagens poéticas de “En la acera” (PACHECO, 2009a, p. 1987): “La muerte acecha siempre, / el deterioro / reina todos los días, / marca y signo / de la ciudad en que nada permanece”. 186 E será nessa busca constante pelo tempo, que o homem deixará, na história, sua marca, seja erguendo templos, monumentos, espaços ou cidades. Tudo o faz para eternizar a memória do seu povo, seus hábitos e costumes, pois, de acordo com Aínsa (1998, p. 166): As cidades se levantam com materiais que não somente provém de pedreiras, de serrarias e fundições, mas também dos arquivos da memória. As cidades estão feitas de tijolos, de ferro e de cimento. E de palavras. Já que é o modo em que foram chamadas, tanto como os materiais com que se as 172 construiu, o que desenha sua forma e seu significado . Segundo Pacheco, o homem sempre imagina encontrar um lugar perdido, sendo esse a própria cidade, possivelmente uma cidade imaginária, que vê, em seus monumentos, os estágios da sociedade, que chegam até nós e nos provocam certas interpretações e questionamentos. A cidade, nessa acepção, é imagem dos sonhos do poeta, pois tem o poder de levar o indivíduo a compreender-se e completar-se. E, pela voz do eu-lírico poético, “sólo existe algo que él [o indivíduo] no puede prohibir: los sueños” (PACHECO, 1994, p. 45), que seriam a possibilidade de nós, indivíduos pertencentes a uma nação, projetarmos nossas aspirações e desejos para o espaço da cidade, sendo esse um espaço de constantes encontros, com nós mesmos ou com os objetos que nos rodeiam. Para Pacheco, “sólo vivimos para alcanzar – un mañana” (PACHECO, 1994, p. 119), e aqui, na visão do poeta, seria uma imagem futura para essa cidade, que ainda caminha na escuridão de suas marcas históricas. Podemos concluir esta seção constatando que, conforme o professor espanhol Justo Villafañe (2000), as imagens que surgem no imaginário do poeta podem constituir modelos da realidade; sendo assim, as imagens projetadas pela voz íntima de Pacheco revelam que os ecos do tempo apresentam a história do homem. A imagem da cidade préhispânica, entendida como nação, não passaria de um depósito da 172 “Las ciudades se levantan con materiales que no sólo provienen de canteras, aserraderos y fundiciones, sino también de los archivos de la memoria. Las ciudades están hechas de ladrillos, de hierro, de cemento. Y de palabras. Ya que es el modo en que han sido nombradas, tanto como los materiales con que se las construyó, lo que dibuja su forma y su significado”. [Tradição nossa] 187 memória, pois para Pacheco, o passado esplendoroso de uma cultura, vaga nas sombras da imortalidade da pedra e a cidade na acepção do poeta será um caminho constante de superposição dos tempos — passado, presente e futuro do homem. 3.1.2. A cidade moderna e o poeta “Escribir poesía hoy es un misterio, todo está en contra. Se escribe en legítima defensa. El mundo es desastroso. Las cenizas del volcán no son nada comparadas con los terremotos, con la violencia que sufre mi tierra. Cómo me gustaría haber influido en la realidad de mi país con tanta violencia y crueldad como existe”. José Emilio Pacheco (2009a) A cidade é o lugar onde percebemos mais facilmente as transformações impostas pelo sistema capitalista e pela Revolução Industrial. Como sabemos, a industrialização e o progresso transformaram a modernidade numa época cruel, em que o sujeito e a urbe acabam por sofrer inúmeras consequências. O progresso deixa de ser o lugar das grandes expectativas e evoca os pesadelos de um tempo. Em relação ao progresso, Bauman (2009, p. 52-53) se posiciona: Hoje se formulam previsões apavorantes e fatalistas, e o progresso representa a ameaça de uma inexorável e inevitável mudança que não promete paz nem repouso, mas crises e tensões contínuas, sem um segundo de trégua, uma espécie de ‘jogo das cadeiras’ O progresso, antes manifestação de otimismo e promessa de novos tempos, se junta à fragmentação da essência humana gerando a perda da imagem do mundo. Como afirmamos no primeiro capítulo deste estudo, a poesia constrói-se nas relações com os outros e, nessas relações, vemos que, cada vez mais, o espaço para a linguagem poética é problematizado. Conforme Paz (1973, p. 12), a poesia brota “[...] como uma configuração de signos em dispersão: imagem de um mundo sem imagem”.173 A 173 “[…] como una configuración de signos en dispersión: imagen de un mundo sin imagen” [Tradução nossa]. 188 linguagem sempre foi problematizada pelos intelectuais, porém, a modernidade trouxe, novamente, uma nova crise das representações, da razão e do esgotamento das grandes verdades. Segundo a pesquisadora brasileira Julliany Mucury (2009), a saída para o sentimento de dor da (pós) modernidade é a poesia. O homem moderno, carente de modelos da atualidade, ao mesmo tempo em que lhe sobram possibilidades de ser o que quiser no sistema social, acaba por perder as referências de sua identidade e começa a se sentir um corpo fragmentado no espaço da urbe. Alguns teóricos como Gomes (2008) e o ensaísta brasileiro Rouanet (1992) ressaltam o isolamento dos sujeitos que habitam os grandes centros por conta do medo e do choque das relações sociais. De acordo com Roaunet (1992), o homem gasta todas suas forças na tentativa de se proteger dos perigos na cidade. O mundo encontra-se cada vez mais fragmentado e antipessoal. Doutrinados e dominados pela tecnologia da informação, ou seja, pelo tecnicismo de um modo geral, fomos tornando-nos seres, cada vez mais, solitários174 e sem voz dentro dos espaços públicos. No poema “Siglo”, Pacheco anuncia a incapacidade do homem perante as transformações da realidade: En el silencio de la noche se oye el discurso del polvo como un murmullo incensante. Pues todo lo que abarca la mirada está por deshacerse (PACHECO, 2000, p. 43) O homem está saturado de números175 e informações. Ao mesmo tempo constitui-se como um corpo vazio na sociedade na busca constante por entender sua personalidade. Por isso, a voz da poesia 174 No poema em prosa “Reality Show” (PACHECO, 2009b, p. 32-33), o sujeito poético emprega o cenário de um programa de reality show para demonstrar o desgaste da convivência e o mal-estar da vida moderna: “Cámaras y micrófonos testimonian qué triste y sórdida es la existencia humana [...] Todos queremos lo mismo y hacemos cosas terribles para lograrlo. Si no lo conseguimos (lo más frecuente) la envidia, el odio y la amargura nos devoran. Si por excepción alcanzamos nuestros fines nos espera lo de siempre: el temor a perder el botín, la angustia del animal herido que se hunde en la poza atestada de pirañas”. O eu-lírico destaca, ainda, as máscaras usadas pelos sujeitos nas práticas diárias: “A la corrupción nada le cuesta hacer visible la infinita fealdad que llevamos por dentro, convertirnos al fin en la viva imagen muerta de lo que siempre hemos sido bajo apariencias y disfraces”. 175 Para o poeta francês Charles Baudelaire, o homem na Modernidade está sujeito a transformar-se em número. 189 aparece como algo secundário nessa sociedade de imagens estereotipadas, de discursos pré-concebidos e de imagens de consumo. Pacheco no poema “Escrito con tinta roja” (PACHECO, 1987, p. 62), personifica a palavra poética ao revelar por meio do vocábulo “roja” o sofrimento diante do esquecimento de seu brilho: “La poesía es la sombra de la memoria”/ “pero será materia del olvido”. O escritor visualiza a poesia como a sombra da memória, mas, por outro lado, sabe que a mesma ainda é capaz de criar sentidos para os fatos. Desse modo, cabe aos poetas re-descobrirem e mostrarem seu valor significativo, para posteriormente, reencontrarem o papel do homem como um ser portador de linguagem. Pacheco expõe que, na atualidade, o homem perde o poder de suas ações e de seu discurso. Vejamos os versos dos poemas “Días” e “Mañana”, no qual o sujeito poético caracteriza a passividade e a revolta do indivíduo mexicano para esse tempo: Los días se van sumando hasta formar una época. Entonces los miramos con recor y decimos: Ya basta. (PACHECO, 2000, p. 44) [...] Hoy ya se fue. Se hizo mañana de pronto Y no sé qué decirle. (PACHECO, 2000, p. 44) Para que o homem se reencontre consigo mesmo, cabe à poesia contribuir como um antídoto na recriação de sentidos à vida em sociedade. Recriar sentidos não pressupõe aceitar a desfiguração ou fragmentação do ser e a neutralidade dos discursos, entretanto permitir que pensemos, sintamos, imaginemos e estabeleçamos um novo olhar às nossas ações. Cabe aos poetas, com seus cantos, despertarem ritmos e sensações veladas pela correria da vida a partir da modernidade. Assim, o poema deve funcionar como uma chama, despertando energias no transcorrer de sua leitura. No poema “Presagios” (PACHECO, 2000, p. 56), o poeta mexicano, mesmo envolto pela nostalgia da modernidade, revela nos versos “dicen que el sol no ha muerto”/ “y existe otro mañana” , uma esperança mesmo que remota, através da imagem do “sol”, para o dinamismo dos novos tempos. 190 Outro ponto que caracteriza a diminuição da presença do gênero poético, em nossas vidas, reside na falta de interação e compreensão do próprio texto. No poema “Disertación sobre la consonancia”, Pacheco, através de um diálogo com seu próprio leitor, contrariando o caráter monofônico da poesia proposto pelo filósofo da linguagem russo Mikhail Bakhtin (1992), discute e problematiza o lugar da poesia na sociedade moderna: Un nombre, cualquier término (se aceptan sugerencias) Que evite las sorpresas y cóleras de quienes - tan razonablemente- leen un poema y dicen: ‘Esto ya no es poesía’. (PACHECO, 1987, p. 36) O eu-lírico expõe a banalização da poesia na sociedade contemporânea, de modo que essa perde o prestígio de sua forma. Conforme Pacheco, a captação da mensagem poética se dá no momento de sua leitura, momento esse, em que leitor e texto se fundem num só corpo, no corpo da escritura. No poema “Contra los recitales”, podemos visualizar tais colocações do poeta: Si leo mis poemas en público le quito su único sentido a la poesía: hacer que mis palabras sean tu voz por un instante al menos. (PACHECO, 1987, p. 62) Pacheco dialoga com o leitor e mostra-nos que esse deve ser capaz de interagir com o discurso do poeta. Assim, a leitura é um veículo que permite estabelecer uma relação entre qualquer texto e indivíduo, possibilitando a obtenção de uma mensagem por meio da decodificação de um sistema de signos lingüísticos e sua interação com uma base de conhecimentos adquiridos. Para Kleiman (1997, p. 10), “a leitura é um ato social, entre dois sujeitos ─ leitor e autor ─ que interagem entre si, obedecendo a objetivos e necessidades socialmente determinados”. Ou seja, a leitura é uma atividade de interação à distância entre leitor e autor, via texto. A leitura não se limita à obtenção de informações; torna-se, na realidade, uma ferramenta de grande influência para o desenvolvimento do pensamento formal, desenvolvimento cognitivo. vinculando-se estritamente com o 191 Esse processo de interação entre o texto e o leitor envolve compreensão. E, conforme apontado por Solé (1998, p. 22), compreender implica atribuir sentido ao que se lê: [...] o significado que um escrito tem para o leitor não é uma tradução ou réplica do significado que o autor quis lhe dar, mas uma construção que envolve o texto, os conhecimentos prévios do leitor que aborda e seus objetivos. O leitor exerce, assim, um trabalho ativo na construção do sentido do texto, a partir dos objetivos que tem, de seu conhecimento sobre o assunto ou sobre o autor e de todas as informações das quais dispõe. Nos dias de hoje, para estabelecer comunicação, para se informar e interagir com a sociedade, o sujeito deve ser capaz de ler o mundo e suas múltiplas linguagens, sejam escritas, visuais ou sonoras: [...] a importância social da leitura revela-se a partir dos valores que essa prática adquiriu nas sociedades urbanas modernas. A habilidade do falante na condução e adequação dos atos discursivos, principalmente em interações públicas, pressupõe seu acesso aos diversos códigos e variedades que compõem o repertório lingüístico da comunidade. (RIBEIRO, 2003, p. 4) O ato da leitura deve ser entendido como um momento de criação ou co-criação, cabendo ao leitor saber vivenciar o texto e respeitar seus limites na compreensão de suas imagens e ritmos. 3.1.3. Preocupações de final de século na poesia do escritor Los hombres de este reino son seres para siempre condenados a eterna oscuridad y abatimiento. Para callar y obedecer nacieron. José Emilio Pacheco (1999, p. 53) A tentativa de compreender a nossa existência, formada por verdadeiros simulacros e também, por um conjunto de espelhos, sobressai no canto poético de Pacheco. Notamos que, para o poeta, a existência não é algo concluído e entregue ao homem, sem um mínimo 192 de esforço deste. É antes, um conceito que se forma por meio de escolhas, decisões e tentativas relacionadas à vida em comunidade. A influência de um tom existencialista faz-se presente na poética de Pacheco, possivelmente, a partir do contato que estabeleceu com os textos de Oscar Wilde. Porém não podemos afirmar que o escritor mexicano seja um típico existencialista. Podemos dizer que, em suas idéias, encontramos alguns pontos de contato com uma filosofia existencialista de vida. O existencialismo abrange diferentes doutrinas, cada uma dotada de distintos olhares, para um determinado objeto. No entanto, todas consideram o homem como centro de valores, responsável por sua própria existência, ou seja, por seu destino. O vocábulo “existência”, derivado do latim existere, significa sair de um domínio ou de um esconderijo, pressupondo, dessa forma, a revelação da essência particular do ser ao coletivo. O movimento filosófico existencialista destaca-se na Europa, após a época de crise generalizada imposta pela Segunda Guerra Mundial, propagando-se por todo o mundo. O fato de vivenciar uma luta armada de tamanha proporção gerou um ambiente traumático, de desespero e de desânimo em todo o mundo, sentimentos que se mantêm vivos até hoje no imaginário coletivo. Por isso, reconhecemos certa essência existencialista na produção poética de Pacheco, por este pregar idéias amargas, sombrias, mórbidas e sórdidas da existência humana, ou seja, idéias que se prendem às exceções da vida social. O existencialismo busca filosofar mais do ponto de vista do indivíduo do que do mundo em que ele vive. Para o filósofo francês Jean Paul Sartre176, o homem é um ser lançado no mundo por acaso, logo, nasce livre para decidir e escolher seus projetos de vida. Assim, essa liberdade dada ao homem deve estar acompanhada de uma parcela de responsabilidade, pois, caso não ocorra uma total harmonia no espaço social, teremos uma discrepância de valores morais que colocarão em evidência os aspectos negativos do homem em sua relação com o outro, 176 COBRA, Rubem Queiroz. “Jean Paul Sartre. In: Filosofia Contemporânea”. 2001. Disponível em: <www.cobra.pages.nom.br>, Último acesso em: 25 set. 2010. 193 como a angústia, a solidão, o desespero, a perda de autenticidade e, até mesmo, a perda de crenças religiosas. Sartre assegura que para compreender a personalidade dos indivíduos, de nada adianta analisar suas experiências passadas, ou seja, toda a sua trajetória histórica e cultural. Desse modo, rompe com todas as idéias postuladas por Freud, ao mencionar que não temos um inconsciente, que armazena certas informações relevantes de nossa vida e, que ao mesmo tempo, não podemos utilizá-lo, a qualquer instante, para resgatar imagens de nossa memória implícita. Mesmo reconhecendo a angústia do homem, transformando-se essa mais intensa, nos últimos anos, Pacheco não compartilha das idéias de Sartre na forma como o filósofo visualiza as relações humanas nos espaços sociais, porque entende que nosso comportamento e nossos próprios atos contribuem para definir como somos, fomos e seremos. Além disso, o poeta também defende a tese de que elas podem ser responsáveis pela transformação do ambiente ao nosso redor. Como forma de exemplificar a carga existencialista do poeta mexicano e o modo como entende o papel do homem na sociedade atual, analisamos imagens de sua poética que denunciam seu canto de lamento e de incompreensão dos fatos do cotidiano mexicano. No poema “Caracol” (PACHECO, 1989, p. 11-13), Pacheco iguala o ser humano a um crustáceo, animal indefeso e aparentemente vazio, ao revelar tais imagens “te escondes indefeso y abandonado”, “eres tan pobre como yo”/ “como cualquiera de nosotros”, em que segundo o eulírico ambos sofrem as ações do avanço da sociedade. Ainda acrescenta os seguintes versos “prisionero de tu mortaja”/ “expuesto como nadie a la rapiña”, como representação de imagens que evidenciam nossas inseguranças177 na vida em sociedade, pois cada um de nós deve 177 Sobre essa sensação do mal-estar de habitar sua cidade, Pacheco destaca “Antes de la inseguridad, esta ciudad [Cidade do México] era muy agradable. Por eso se vino a vivir aquí Gabriel García Márquez, tanta gente. Yo conocía a los cineastas, a los pintores. Ahora no conozco ni a los escritores. Entonces se podía vivir en la calle. Yo acompañaba a Monsiváis a su casa y de regreso él me acompañaba a mí” (BRAVO VARELA, 2009, p. 68). O escritor, no poema em prosa “A la extranjera” (PACHECO, 2009b, p. 31), confirma o enfraquecimento dos laços humanos e lamenta por um retorno da cidade do passado: “A usted le duele esta ciudad que también ha hecho suya y lamenta ver cómo la hemos destruido y la seguimos arrasando. No entiendo sus razones 194 escolher o nosso próprio caminhar e, quase sempre, nesse trajeto, nos perdermos em nossas próprias escolhas e incertezas. Para o poeta, o caracol representa uma figura passiva e indefesa, perdendo, pouco a pouco, seu espaço na natureza; logo, representa a incapacidade do homem, também comprovada nos seguintes versos: Como tiemblas de miedo a la intemperie, expulsado de los dominios en que eras rey y te veneraban las olas De nuevo Moctezuma ante Cortés que llega de otro mundo y viene armado por los dioses de hierro y fuego [...] Del habitante nada quedó... [...] y al fin también se hará polvo. (PACHECO, 1989, p. 13) Pacheco resgata figuras marcantes da história mexicana para estabelecer uma analogia com a época da técnica e dos valores externos a que estamos imersos. Desse modo, a imagem de Cortês é uma metáfora da sociedade global dos séculos XX e XXI, responsável por apagar os traços do nacional, como aparece revelado no verso “del habitante nada quedó”, em que temos a formação de um outro sujeito, já influenciado pelas idéias negativas trazidas pelos males da vida contemporânea. Nos versos, A vivir y a morir hemos venido Para eso estamos Pasaremos sin dejar huella (PACHECO, 1989, p. 12) Pacheco revela o nosso papel como seres pertencentes a uma nação. Porém, ao mesmo tempo, seu discurso simbólico denuncia um papel secundário que nos é atribuído pela sociedade. No poema “Lost Generation”, o eu-lírico revala a nossa passividade diante do mundo: Otros dejaron a la “posteridad” grandes hazañas o equivocaciones para amar un sitio desesperante y sin esperanza. O tal vez existe la esperanza porque usted se encuentra aquí una vez más y llena de luz otra estación sombría […] Ahora también en mi suelo natal soy extranjero en tierra extraña. Ya no conozco a nadie ni reconozco nada”. O sujeito poético anuncia, inclusive, a desilusão do homem em relação ao futuro. 195 Nosotros Nada dejamos Ni siquiera espuma. (PACHECO, 1987, p. 92) Podemos observar a repetição da idéia anterior por parte de Pacheco nos seguintes versos do poema “Los indefesos” (PACHECO, 1989, p. 47): “Somos los indefesos que se hunden”/ “en la noche que no pidieron”. Neles, o sujeito poético classifica-nos, literalmente, como seres indefesos diante da “noche”, essa simbolizando algo obscuro, sombrio, pavoroso e sofrido, cujo poder permite que o indivíduo seja reduto de seus próprios medos e incertezas. A sociedade leva o homem a entrar em conflito consigo mesmo. Ao vivenciarmos, como nos afirma Debord (1997), a “sociedade do espetáculo”, nos tornamos seres duplos, ou seja, passamos a utilizar diferentes máscaras. No poema “El cuchillo” (PACHECO, 1989, p. 52-53), Pacheco compara a vida moderna a um verdadeiro circo. No verso “en este circo sin piedad”, o eu-poético ressalta, mais uma vez, a perda da suposta coletividade, pois vivemos numa época marcada pela falta de amparo entre nossos semelhantes. Outro poema que marca essa mudança de perspectiva se nomeia “Perra vida” (PACHECO, 1989, p. 22), em cujo título, observamos que o poeta une lado a lado dois substantivos comuns. No entanto, acaba atribuindo um valor qualificativo ao vocábulo “perra”, expressando, assim, sua opinião pessoal sobre como avalia o seu dia-a-dia. O emprego deste adjetivo denota uma vida repleta de injustiças, como revelada pelo eu-lírico no verso “por nuestro voto de obediencia al más fuerte”, imagem que desvenda “nuestra necesidad de buscar amos”. O sujeito do poema, ainda, compara nossos sentidos aos de um cachorro, pois, segundo ele, se tivéssemos o mesmo “don”, simbolizando a percepção, não seríamos tão burlados e insultados. Vejamos tais imagens através da segunda estrofe do poema: Sin embargo los perros miran y escuchan lo que no vemos ni escuchamos A falta de lenguaje (o eso creemos) poseen un don que ciertamente nos falta. Y sin duda piensan y saben. (PACHECO, 1989, p. 22) 196 Cada ser deve encontrar em seus próprios atos margens para um questionamento de suas ações. Analisamos as imagens do poema “El enemigo”, de Pacheco: Allá entre cada una de mis acciones Encuentro siempre al enemigo: el YO, [...] Para su inmensa desgracia El monstruo no está solo: [...] al son de sus propios himnos individuales: Quiero, devoro, dame, quítate, reverénciame. (PACHECO, 1989, p. 50) Dessa maneira, Pacheco, por seus versos, nos revela que no interior de cada homem habita um verdadeiro “monstruo”, o responsável pelas crises de valores e de ações do indivíduo, que transformam o homem num ser dúbio em suas práticas sociais178. Por isso, pela ganância, inveja e luxúria — visíveis em grande proporção nas relações humanas atuais — nada nos resta a não ser a esperança do re-encontro do homem com seus próprios valores e raízes. Assim, não chegamos, como Pacheco anuncia, a um mundo com “la forma del cuchillo” (PACHECO, 1989, p. 53), onde nos resta a constante batalha para permanecermos vivos diante das adversidades. O poeta acredita ser esta uma verdadeira luta, pois menciona “y por eso la bestia nunca se sacia”/ “y en todas partes sigue la matanza” (PACHECO, 1989, p. 50). Podemos compreender a “bestia” como uma nítida presença da figura de Cortês no imaginário mexicano, configurando-se numa imagem reveladora de todas as forças contrárias ao bem estar da nação. Pacheco não nega a existência de uma nação mexicana, portanto, de uma identidade nacional, mas reconhece que essa identidade já não é a mesma, pois, ao resgatar o discurso de um escritor uruguaio e, ao mesmo tempo, nomear a composição poética de Juan Carlos Onetti, Pacheco revela: 178 A percepção da humanidade como um espaço sem vínculos afetivos é explorada por Pacheco no poema “Microscopio” (PACHECO, 2009a, p. 177): “El microscopio me engrandece. Veo / multitudes, batallas, grandes éxodos. / La vida que se mueve siempre en combate. / Y en todas partes el dolor y el miedo”. O microscópio funciona como o instrumento capaz de confirmar a visão do autor sobre o espaço citadino, simbolizado como um campo de lutas e de rivalidades. 197 “Sin excepción nacemos para el fracaso. La derrota es el destino único de todos. Nadie se salva”, [...] Todos vamos sin pausa hacia el desastre. Toda vida termina en el fracaso. (PACHECO, 1994, p. 38) Sua voz é áspera e profunda. A desilusão transforma-se em sua sentença poética. Seus versos adotam um tom profético para sinalizar a devastação do mundo. Apesar da melancolia, o poeta não perde sua capacidade lírica como também acontece nos seguintes versos: Cuando todos se hallaban reunidos Los hombres en armas de guerra cerraron Las entradas, salidas y pasos. Se alzaron los gritos. Fue escuchado el estruendo de la muerte. Manchó el aire el olor de la sangre. (PACHECO, 1987, p. 25) No poema “El enemigo” (PACHECO, 1989, p. 52-53), Pacheco também defende a idéia de que o mundo global já não tem mais salvação, pois “está sangrando”. O sujeito do poema lamenta a agonia dos homens perante o “campo de sangre” e “matanzas” em que se transformou “el mundo entero”. Resta-nos avaliar, mais uma vez, nossos próprios atos, como aparece na voz de tormento do eu-lírico nos seguintes versos: Hasta cuándo saldremos en qué forma del matadero que cubre todo: página o pantalla, escenario o abismo, plaza o calle. (PACHECO, 1989, p. 52) Não é no individualismo exacerbado que logramos reerguer as bases para um novo mundo. Podemos comprovar esta afirmação no poema “La sal”, em que se direcionando ao indivíduo, o eu-lírico sugere: si quieres analizar su ser, su función su utilidad en este mundo, no puedes aislarla: tienes que verla en su conjunto. (PACHECO, 1989, p. 18) Para Pacheco, os indivíduos devem atuar na sociedade tendo a mesma consistência que o elemento “sal”, pois desta forma constituem o que o sujeito poético chama de “tribu solidaria”, em que “sin ella cada 198 partícula sería como “un fragmento de nada”/ “su acción perdida en un agujero negro inasible”. Através dessas imagens, compreendemos que o eu-lírico, ao revelar seu canto doloroso e elegíaco em relação aos objetos ao seu redor, dotado de uma riqueza imaginativa, cria uma atmosfera de esperança para a condição humana e busca vias de reconciliação do homem com o meio. Contudo, sabe que a idéia de nação ideal só se faz visível no imaginário do poeta com o surgimento de um novo mundo, e, com esse, de novos seres dotados de princípios sociais e éticos. O poeta revela tais imagens nos seguintes versos do poema “César Vallejo”, dedicado especialmente ao renomado escritor peruano179: México en el páramo que fue bosque y laguna y hoy es terror y quién sabe. (PACHECO, 1989, p. 19) [...] Aire nuestro que fue llama y ahora no volverá a encenderse. (PACHECO, 1989, p. 31) Por tais imagens poéticas, vemos que ao resgatar imagens de seu passado, como a força da “llama” da cultura, Pacheco nos revela que “sólo nosotros somos el pasado” (PACHECO, 1989, p. 51). Assim, busca explicações e soluções para os problemas do presente. Reconhece o esplendor de seus antepassados e a chegada do colonizador, mesmo com todos os problemas ocasionados por esses, como vemos nos versos “cuánta sangre”/ “la derramada en esta tierra” (PACHECO, 1989, p. 26), tentando gerar imagens de uma provável esperança. Apesar desta ser remota, como afirma, jamais o fogo de uma civilização volta a brilhar. A imagem atual do que somos, aparece revelada no poema “La ceniza” (PACHECO, 1989, p. 31), no verso “el fuego ya de luto por sí mismo”. Somos seres responsáveis por nossas próprias ações e por nossas maneiras de reagir diante do mundo. Resta-nos redescobrir nossa identidade na grande imensidão de novos discursos e valores da sociedade global. 179 Os temas da miséria e da fatalidade, também, eram o foco do fazer artístico de Vallejo, por isso, reconhecemos um diálogo entre ambos os escritores. 199 3.1.4. A identidade mexicana no contexto da globalização No somos ciudadanos de este mundo sino pasajeros en tránsito por la tierra prodigiosa e intolerable. José Emilio Pacheco (1987, p. 124) Em tempos globalizados, um dos maiores desafios vigentes relaciona-se à temática identitária, que está completamente vinculada à cultura de certa comunidade. Dessa maneira, e segundo esse olhar, a globalização não é somente de um processo político-econômico, mas também inclui, entre outros, a tecnologia, os direitos humanos, a cultura e a comunicação. Segundo Anthony Giddens, sociólogo britânico, a globalização: [...] é um processo altamente contraditório, pois não deve ser entendido somente como um conceito econômico, nem como um simples desenvolvimento do sistema mundial ou como um desenvolvimento de instituições mundiais de grande escala [...] não se trata de um simples conjunto de processos, e também não caminha em uma só direção. Em alguns casos gera solidariedade e em outros casos a destrói. Possui conseqüências muito diferentes segundo a posição geográfica mundial que se localize, podendo gerar novas formas de integração que 180 coexistem com novas formas de fragmentação . O termo globalização começou a ser empregado a partir dos anos oitenta, pois até então existia uma provável noção do que seria globalização pela dimensão de certos problemas ou ameaças globais. Pensar a globalização não se resume somente em refletir a respeito de um dado momento do mundo, caracterizado como inovador, entretanto, como nos apresenta Giddens, verificar esse momento como responsável por uma imagem do discurso da modernidade. 180 “[…] es un proceso sumamente contradictorio, no debe entenderse tan sólo como un concepto económico, ni como un simple desarrollo del sistema mundial o como un desarrollo puramente de instituciones mundiales a gran escala [...] no es un simple conjunto de procesos ni tampoco va en una sola dirección. En algunos casos genera solidariedades y en otros las destruye. Tiene consecuencias muy distintas según sea la ubicación geográfica mundial de que se trate, generando algunas formas nuevas de integración que coexisten con formas nuevas de fragmentación”. In: apud GANDARILLA SALGADO (2000). [Tradução nossa] 200 Como podemos verificar neste estudo, muito se discute sobre o conceito do que seria modernidade. Vimos que se trata de um termo de difícil definição, porque não sabemos a qual época se refere, ou seja, surge uma dificuldade em traçar seu início. Segundo Octavio Paz (1989, p. 18) “[...] existem tantas modernidades e antiguidades como épocas e sociedades”181. Assim, notamos que o conceito de modernidade varia de acordo com o tempo, porque o moderno é o que rompe criticamente com o passado e se apresenta como o novo. Para compreender a evolução desse tempo transitório devemos perceber que a descontinuidade é fundamental para tal. Conforme Paz (1989, p. 20): [...] o que diferencia nossa modernidade das outras épocas não é a celebração do novo e do surpreendente, ainda que isso também conte, mas o fato de ser uma ruptura: crítica do passado imediato, interrupção da 182 continuidade . Paz caracteriza o tempo moderno como um tempo transitório, em que a comunicação revela-se como espaço essencial de construção da sociedade183 e, nesse espaço, a mesma permite romper as fronteiras interculturais. O sociólogo polonês Bauman analisa a globalização como uma mudança radical e irreversível, principalmente porque afetou as relações entre os Estados, as relações de trabalho, a vida cultural, a vida cotidiana e as relações entre os indivíduos. Por isso, Bauman (2005, p. 11) nomeia essa grande transformação como o período da “modernidade líquida”, devido ao fato de vivermos num mundo onde tudo é ilusório e, muitos problemas, como a dor, insegurança, solidão, angústia, são provocados pela vida em sociedade e pelas relações entre seus indivíduos. 181 “[…] hay tantas modernidades y antiguidades como épocas y sociedades”. [Tradução nossa] 182 “[…] lo que distingue a nuestra modernidad de las de otras épocas no es la celebración de lo nuevo y lo sorprendente, aunque también eso cuente, sino el ser una ruptura: crítica del pasado inmediato, interrupción de la continuidad”. [Tradução nossa] 183 Para Paz, o homem moderno já não está de acordo consigo mesmo. Todos esses estão voltados à solidão, pois caminham sem uma direção. Podemos dizer que essa construção em sociedade reduziria a solidão do homem trazida pela modernidade dos tempos. 201 Nesse cenário, Bauman pensa a identidade como um termo ambivalente, algo que traz em si uma idéia de constante batalha, pois será o resultado da recordação de um passado unido aos fatos dessa época líquido-moderna, caracterizada por estar dividida em vários fragmentos pouco coordenados. A globalização, segundo o sociólogo espanhol Manuel Castells184, seria o fenômeno que estrutura as sociedades contemporâneas, pois adapta a realidade histórica atual às mudanças econômicas, sociais e culturais das próprias sociedades. Por isso, a globalização pode provocar ao mesmo tempo processos de inclusão e exclusão, que geram conseqüências não só econômicas, mas também sociais e culturais. Pode-se afirmar que a globalização não implica necessariamente num processo de homogeneização cultural, apesar de termos uma série de valores cosmopolitas e consciências que tentam uniformizar culturalmente certos grupos sociais. A diversidade cultural é mais nítida do que nunca nos dias atuais, em que num mesmo espaço, compreendido não somente do ponto de vista geográfico, convivem valores diversos. Em seu poema “Bagatela” (PACHECO, 1987, p. 89), Pacheco revela-nos claramente a percepção do homem moderno, e a mudança do seu olhar para a compreensão da realidade que o rodeia. O sujeito lírico questiona o momento atual, “para quien no haya visto lo que yo vi”/ “parecerá mentira lo que se pasó”; através do seu duplo olhar — crítico e nostálgico — considerando a si próprio como uma identidade perdida, “mi nombre ya no soy yo”, em um “mundo diferente”. Para o sujeito do poema “todo cambió”, apesar de que o desejo utópico nunca é totalmente extinto do imaginário coletivo, entendendo essa utopia como a capacidade de o sujeito fazer-se real, posicionando-se como um indivíduo ativo, e com voz nas relações da sociedade. Pacheco espera que o homem vivencie e questione o seu momento presente, baseando-se nos fatos do passado, e que suas conclusões mais intrínsecas possam contribuir para a compreensão do tempo futuro, segundo o poeta, o tempo das incertezas, e com isso percebemos a capacidade do homem de ultrapassar as 184 CASTELLS, Manuel. Síntesis Globalización, identidad y diversidad. Fórum Barcelona 2004 – Disponível em: <www.barcelona2004.org>. Último acesso em: 10 nov. 2008. 202 barreiras do tempo, pois só a vivência dos fatos constrói a verdadeira imagem do homem em sua totalidade. Conforme Villafañe (2002, p. 30-31), “toda imagem possui um referente na realidade, independente de qual seja essa natureza, inclusive as imagens que surgem do imaginário, mantêm nexos com a realidade”185. Por meio de suas palavras, vemos que o mundo da imagem está em torno de nós, e desse modo a globalização revela-se como uma imagem modernizada do mundo, em que o homem aparece como um ser indefeso perante a grandiosidade tecnológica e política das grandes potências capitalistas186. Podemos dizer que o vocábulo globalização encontra fortes raízes e pontos de contato na época do Renascimento187, momento em que as artes, a música, a literatura, o comércio e as ciências se expandem e, com isso, povos, comunidades, cidades e nações. O aparecimento e a formação destas gera uma nítida mudança no modo de vida, pois os indivíduos deixam de viver em pequenas regiões separadas e independentes para construir um conjunto mais uno em termos de limites geográficos e, de certa forma unir, identidades, a partir dos costumes, da língua, da idiossincrasia, colocando em questão o que há de comum, puro, autêntico e ressaltando possíveis diferenças. Mesmo com essa idéia de unificação entre os indivíduos, temos de fato um mundo dividido por valores, como por exemplo, valores capitalistas versus valores socialistas. Conforme as colocações de Ianni (2003), na mudança do século XX para o XXI, tivemos a passagem de 185 “La idea base de la que parto es que toda imagen posee un referente en la realidad independiente de cuál sea su grado de iconicidad, su naturaleza o el medio que la produce. Incluso las imágenes que surgen del nivel de lo imaginario, mantienen con la realidad nexos, que a veces son más sólidos de lo que una primera lectura hieciera suponer”. [Tradução nossa] 186 Com a globalização parece que o mundo inteiro se transformou em capitalista, onde os indivíduos e as coletividades movem-se pelo valor das mercadorias. Ianni afirma que “a história do capitalismo pode ser lida como a história da mundialização, da globalização do mundo”. In: IANNI (2003, p. 64). 187 Com tal afirmação não se pretende dizer que a globalização tenha seu surgimento na época renascentista, já que a globalização é uma idéia contemporânea, por ser uma imposição de mudanças e transformações. A explicação para essas raízes dá-se no fato de que o Renascimento se caracterizou como uma época em que o homem europeu se dizia confiante do saber, com ideais de expansão, e ao mesmo tempo, configurou-se um momento em que o conhecimento vem à tona como maneira de grande entusiasmo para as questões do mundo. 203 uma sociedade nacional, caracterizada pelo jogo de forças sociais que não se esgotam, mas que eram repensadas e transformadas, a uma sociedade global. Em resumo, Ianni (2003, p. 50) nos expõe; Quando o Estado-nação se debilita, devido ao alcance e à intensidade do processo de globalização das sociedades nacionais, emerge outra realidade, uma sociedade global, com suas relações, processos e estruturas. Trata-se de uma totalidade histórica-nacional diversa, abrangente, complexa, heterogênea e contraditória. Por suas palavras, evidenciamos que a sociedade global possibilita um processo de mundialização das relações, com isso os dilemas da globalização modificam as condições de vida, de trabalho, as maneiras de agir, pensar e comportar-se no mundo, ou seja, alteram os campos sociais, coletivos e individuais. Temos com o aparecimento da sociedade global uma multiplicidade de formas. Resta-nos entender que viver em sociedade pressupõe aceitar a coexistência de pensamentos e culturas diversos, o que implica viver na diversidade. O complexo processo de globalização, fenômeno plural, já que revela os diversos modos de ser no mundo, permitiu a implementação de novas políticas e o estabelecimento de novos modelos culturais, impondo aos indivíduos certos domínios, porém em muito dos casos sem resistência. Ao analisarem esses modelos externos, os latino-americanos lutam cada vez mais pela manutenção de uma cultura nacional, mas não negam um contato com o mundo. Ao contrapor sua identidade e seus valores com os do outro, ambos os indivíduos conseguem se enriquecer, mas nunca apagando o que há de mais pessoal na essência destes, pois para o crítico uruguaio Alberto Zum Felde “para viver a experiência do outro é necessário preservar aquilo que a cada um é próprio [...] pois o contato permanente, que facilita o conhecimento, não elimina as peculiaridades de cada cultura”188. Esse encontro de vozes e a idéia de preservar o nacional, no contexto da globalização, devem ser repensados, já que a noção de 188 ZUM FELDE apud JOZEF (2001, p. 236). “para vivir la experiencia del otro es necesario preservar aquello que a cada uno es proprio... pues el contacto permanente, que facilita el conocimiento, no elimina las peculiaridades de cada cultura”. [Tradução nossa] 204 dependência não significa que estamos presos a certos traços culturais. Esse contato com outras culturas não representa a perda de uma identidade, mas sim o rompimento de fronteiras interculturais, levandonos a viver em espaços híbridos, onde aceitar as diferenças, num primeiro momento, constituía um empecilho ao progresso da nação. Contudo, em tempos modernos, será na contraposição dessas diferenças que estabeleceremos um diálogo efetivo189. Desde os ideais do modernista cubano José Martí, a identidade na América Latina deve ser pensada em sua construção com os demais. No contexto da globalização ocorre o questionamento da identidade como uma unidade fixa, imutável e homogênea. Conforme Stuart Hall (2006, p. 13): O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades momentos, identidades que não são unificadas ao redor do ‘eu’ coerente [...] A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis. As identidades culturais foram enfraquecidas pelo fenômeno da globalização. O contato das culturas nacionais com o mundo externo gerou o enfrentamento entre as diferentes identidades na época contemporânea. De acordo com Hall (2006, p. 74), “[...] é difícil conservar as identidades culturais intactas ou impedir que elas se tornem enfraquecidas através do bombardeamento e da infiltração cultural”. Portanto, a sociedade moderna descentralizou e deslocou os sujeitos. Esse fenômeno apresenta pontos positivos, pois desarticulou as identidades estáveis do passado e possibilitou a criação de novas. Os sujeitos não conseguem mais mantê-las de modo fixo e estável, contudo se transformam em sujeitos fragmentados, com identidades contraditórias e inacabadas. 189 Nesse contexto cabe destacar a idéia da ruptura que se faz necessária ao pensarmos no mundo contemporâneo. E essa ligada a de que temos ao reconhecer o outro o encontro com a nossa autêntica base em uma sociedade global. Essa convivência será gerada pela aceitação do outro, ou seja, a partir do momento em que estabelecemos espaços para aceitar outros discursos, que não sejam somente os nossos próprios pensamentos. 205 No mundo contemporâneo, a ruptura com o tradicional faz-se necessária para que nos identifiquemos cada vez mais e avancemos no reconhecimento do outro. Temos o fortalecimento de uma autêntica sociedade global na repercussão de nossa identidade e na aceitação dessa pelos outros, permitindo a convivência de distintas culturas no mundo global do novo milênio, melhor dizendo, atualmente há a necessidade de estar aberto a novas informações e contatos, para manter e reforçar o nosso lugar num mundo, que a cada momento o espaço para o “eu” se faz reduzido, acarretando uma crise da razão manifestada pela crise do indivíduo. Conforme Bauman (1999, p. 65-66), a idéia de globalização traz consigo o processo de desnacionalização e um forte sentimento de catástrofe. Para o sociólogo, esse tempo em que vivemos reflete a verdadeira imagem da desordem global, pois forças díspares e dispersas atuam como as principais responsáveis pela perda do sentido de totalidade do mundo. Chegamos a uma época em que não há mais como prever e controlar as ações humanas. A globalização não só deve ser pensada como o meio para acabar com as diferenças, a tradição ou a memória coletiva de uma cultura, mas também como um intento de diminuir a força dominante de nações externas. Não podemos reconhecer na globalização o germe da homogeneização, nem muito menos de princípios democráticos e igualitários de poder nas nações. Nesse mundo dividido, resultado dos diferentes processos de hibridação, frutos das mais diversas relações entre culturas, cabe ao indivíduo buscar seu lugar no mundo e revalidar seu próprio discurso. Nossos referentes não podem ser o desencanto com o mundo ou o individualismo, muito menos a fragmentação, porém o humanismo e a unidade compreendida na diversidade. Como sabemos, a globalização não é um processo homogêneo, pois traz em si uma certa ideologia de poder e dominação, abrangendo diferentes espaços, permitindo que esses ressaltem suas identidades individuais. Também não podemos deixar de reconhecer que, através do contato diário entre os indivíduos, as identidades culturais revelam o verdadeiro hibridismo de diferentes tradições culturais, sendo esse o 206 produto e o resultado dos diversos cruzamentos, que vêem na globalização sua força motriz. Nessas trocas interculturais, como nos afirma Bauman, não há a assimilação total dos traços da cultura alheia, todavia ocorre uma interconexão entre culturas. Pacheco, percebendo essa época de desordem global, por meio do universo imagético de sua poética, ressalta o conceito de identidade, dentro de sua comunidade, pois, sabe que essa, no início de sua civilização, vivenciou uma história sofrida, o que gerou, no pensamento de sua gente, um passado sangrento, cheio de dor e sofrimento e, ao mesmo tempo, um latente desejo de reviver os momentos gloriosos desse tempo, que se mantém vivo pela memória, ou seja, desse tempo possivelmente lembrado pelas metáforas apresentadas pelo poeta em sua obra, já que, como assinala Jozef, “sem as acumulações da memória, não temos cultura”190. É por meio desse universo ilusório que se ergue a poética de Pacheco. As imagens poéticas reveladas em sua obra não se cerram em somente uma única função. Essas formas de revelar o mundo podem recuperar a memória social de uma cultura, bem como representar a mesma a partir da articulação do real com a fantasia, ou melhor, da união de processos criativos do poeta, que buscam despertar no outro certas sensações de descoberta e até mesmo de resgate no tempo. Conforme o poeta chileno Gonzalo Rojas, “a poesia é a realidade através da realidade”191, daí a abertura para que o autor leia o mundo por meio de imagens. Deste modo, Pacheco comunica-se com o leitor por meio de uma linguagem poética simbólica192. Toda civilização passa por momentos de conflitos entre si ou com povos vizinhos, e esses podem servir de estímulo a cada comunidade na busca por um desejo de mudança, melhoria ou, por outro lado, de exaltação do próprio indivíduo ao retratar suas ações benéficas para com a história de seu povo. Essas são, portanto, as imagens guardadas pelos 190 “Literatura e identidade”. Palestra proferida pela Professora e crítica literária Dra. Bella Jozef na Universidade Federal Fluminense do Rio de Janeiro em 1996 (Texto não publicado). 191 ROJAS apud JOZEF (1980, p. 174). 192 Pacheco mostra-nos que a palavra literária pode criar um universo independente da realidade empírica. 207 habitantes de uma região, que são perpassadas, no decorrer dos tempos, e fazem com que os escritores — responsáveis pelo desejo de dar um novo sentido aos fatos — possam expressar-se por meio de sua linguagem pessoal. Segundo Freud193, desde o nascimento, o homem já traz em si uma parcela de violência, que pode ser aumentada no decorrer dos anos pelo contato entre os demais indivíduos na vida em sociedade. Pacheco coloca-se no lugar do grande descobridor da Psicanálise por meio de sua voz poética ao dizer que “el delito del hombre es haber nacido” (PACHECO, 1987, p. 61). Pacheco reconhece a parcela de violência que o homem carrega em sua história e mostra por meio de sua poesia um rechaço a esse tipo de homem que tanto apagou o brilho do passado mexicano. A partir do nascimento de um indivíduo, esse já pode se ver inserido dentro de uma comunidade, com hábitos e costumes prédefinidos, logo, uma cultura específica. Nasce com esse ser uma identidade herdada de seus antepassados, não cabendo a este procurála, pois antes mesmo de chegar a esse mundo, ela já o esperava. Mas então, por que será que o homem continua buscando sua identidade? Que identidade é essa que nos impõem desde nossas origens? O que se pode dizer é que existe uma identidade própria perante outras, mas cada indivíduo já a possui e vive a buscá-la e, muitas das vezes, acredita reencontrá-la; outros pensam realmente tê-la perdido e, portanto buscam resgatá-la. Dentro de uma mesma comunidade, podemos encontrar certos tipos de identidade, a racial, a étnica, a nacional, a cultural, logo nesse trabalho, ao pensar sobre a identidade, nos remetemos a uma identidade cultural coletiva, porque essa engloba todas as demais facetas, contribuindo para que haja um diálogo entre os indivíduos de diversas culturas na criação de um discurso igualitário de identidade. 193 MACIEL, Maria Regina. “Freud, o inconsciente e a educação”. In: MACIEL, Ira Maria, org. Psicologia e Educação: novos caminhos para a formação. Rio de Janeiro: Ciência Moderna, 2001, p. 137-152. 208 Identidade é um termo polissêmico. Antes de analisar os diversos sentidos do termo, faz-se necessário entender esse conceito como um instrumento de construção social dos sujeitos. Não cabe somente pensar a identidade como um mero conceito vinculado a princípios de igualdade e liberdade, como vem sendo empregado o problema da identidade latinoamericana de uma maneira geral desde os discursos do pensador Simón Bolívar. Pensar a identidade, no contexto globalizado, será pensá-la na vida contemporânea, em que percebemos, cada vez mais forte, sujeitos autônomos ou o que Bauman (2005, p. 69) nomeia de “homens sem vínculos”, conseqüentemente, teremos possíveis construções de identidades individuais. A partir do exposto, Leopoldo Zea, filósofo mexicano, entende a identidade como objeto humano e responsável em gerar uma consciência coletiva: Todos os homens e povos são iguais pelo fato de serem diferentes; por contar com uma personalidade e uma individualidade singulares. Encontramo-nos diante de seres humanos concretos que lutam por mostrar sua identidade, por participar com o outro, junto aos demais. Afirma-se a igualdade a partir de traços múltiplos e sem 194 desentendimento . Apesar de sabermos através do sentido primeiro da palavra identidade que não há como encontrarmos índices idênticos em todos os homens, devemos propor, como nos sugere Zea, espaços híbridos de convivência, em que as igualdades e as diferenças tentam conviver, lado a lado, destacando-se um olhar do indivíduo para si mesmo, ou a aproximação das características deste para com as do outro, ou também, os pontos de contato que todos os sujeitos compartilham. Assim, restanos reconhecer que a globalização dos tempos também uniu elementos heterogêneos na constituição de uma “identidade coletiva”. Conforme as idéias apresentadas por Pedro Gómez García (1998), professor da Universidad de Granada, não podemos comprovar totalmente a existência de uma identidade coletiva para certas sociedades, pois, ao analisar a história da América Hispânica, desde sua 194 “Todos los hombres y pueblos son iguales por el hecho de ser distintos; por contar con una personalidad y una individualidad singulares. Nos hallamos ante seres humanos concretos que luchan por hacer patente su identidad, por intervenir como pares junto a los demás. Se afirma la igualdad a partir de las filiaciones peculiares y sin desmedro del entendimiento mutuo”. In: BIAGINI (2002: 39). [Tradução nossa] 209 formação, baseada no encontro de raízes culturais diferentes e ao pensar em indivíduos que se formaram deparando-se com uma realidade nitidamente fragmentada ou até mesmo antes e depois das Independências (e essa conseguida em tempos bastante distintos entre as repúblicas), percebemos, ao certo, a formação de uma identidade plural e abstrata, como mero produto de uma evolução temporal, e que nos permite pensar e compreendê-la como uma identidade fragmentada. Para Hall (2006), à medida que o mundo moderno se torna mais complexo, emerge no sujeito a inexistência de uma identidade única. Ele sabe que não é mais autônomo e auto-suficiente, entretanto, compreende a dependência do outro e observa que, ainda, assume diferentes identidades no decorrer do tempo. Como a identidade do sujeito pode ser mantida numa sociedade em constante mudança? De acordo com Hall (2006, p. 75): [...] Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem ‘flutuar livremente’. Ratificando as considerações anteriores, Bauman (2005, p. 84) confirma que, na falta de uma identidade verdadeira na sociedade global, o que temos seria uma identidade fragmentada e diluída, em constante movimento, capaz de revelar as incertezas e inseguranças de cada indivíduo nesse tempo de valores instáveis, quer dizer, nessa época transitória na qual estamos inseridos. Nesse momento a literatura, por meio da linguagem, representa leituras da realidade, dando voz a autores que retratam essas identidades sempre confusas e conflitantes dentro dos espaços, com um incansável desejo utópico em aproximar indivíduos, cujos pensamentos são divergentes, de modo a contribuir para o bem-estar da nação. Segundo Jozef (1996)195, a conquista de uma identidade cultural própria se dará a 195 “Literatura e identidade”. Palestra proferida pela Professora e crítica literária Dra. Bella Jozef na Universidade Federal Fluminense do Rio de Janeiro em 1996. 210 partir da avaliação e da mudança de nosso papel como seres ativos na história e não somente como observadores dos fatos. Por meio do caos gerado pelo próprio homem na sociedade contemporânea, cada indivíduo se identificará consigo mesmo ou como pertencente a um grupo, e ainda que estabeleça contatos com esses, se limitará a certas particularidades. Cada indivíduo está formado por diversas contribuições e com cada sujeito divide algumas das mesmas, entretanto com ninguém compartilha todas suas experiências. Temos em cada ser um certo espaço restrito, que ao outro não pode ser revelado. O indivíduo, então, deve encontrar-se e sentir sua identidade em suas ações, no que realiza em sociedade. Não podemos pensar que somos seres completos, e que nossa história e identidades estão construídas, e bem fortificadas. Resta-nos um processo de atualização constante. A identidade está em nossas opções, preferências, afinidades, no que escolhemos ser, na bagagem que nos foi dada, de modo que vamos sempre construindo e alterando a mesma ao longo de nossas vidas. Pacheco, ao retratar os problemas que assolam seu país, tenta por meio da sua voz poética reconhecer e mostrar esse sujeito perdido nos espaços, revelando-nos figuras individuais, solitárias e sem voz, pois estas trazem em si um conceito de identidade particular, ou seja, fragmentado, pois são produtos do encontro de suas aspirações pessoais e do que o mundo contemporâneo permite que sejam. Como vimos no capítulo anterior, a cidade sempre foi um espaço de várias identidades, um verdadeiro labirinto. Assim, para Pacheco, as grandes cidades mexicanas, devido às complexas relações econômicas e sociais, impedem que saibamos definir com que espécie de indivíduos estamos vivenciado e dialogando a cada dia, podendo assim as relações humanas e sociais serem corrompidas facilmente. Segundo o sociólogo norte-americano Richard Sennett (1998, p. 153), “a cidade é um grande teatro”, e é nessa cidade que os indivíduos usam máscaras e são atores, e constroem novas realidades, que o encontro do verdadeiro “eu” se torna uma tarefa difícil. 211 A voz de Pacheco, sempre atenta às questões atuais, faz com que não nos submetamos à imagem do vazio gerado pela globalização, como o poeta levanta em uma das epígrafes iniciais desta seção. Sennett revela-nos que cada vez mais com o declínio das cidades, perdemos, aos poucos, uma cultura urbana, cujo indivíduo construía-se na experimentação e vivência de modelos, pois a vida contemporânea gera espaços simplistas, pessoais, de solidão; resumindo, espaços vazios. Vale recorrer ao exposto por Berman (1986, p. 15), que segundo ele, a modernidade, ao mesmo tempo em que une os seres humanos, gera espaços de lutas e desunião nos mesmos. Conforme o teórico alemão Walter Benjamin, o lugar da cultura na vida cotidiana e moderna passa a ser não o “lugar de onde se fala”, porém “o lugar onde a fala foi roubada”196. Esta afirmação se justifica pelo fato de a sociedade estar voltada ao consumo e com olhos direcionados a um futuro em que os homens esquecem seu passado, pouco a pouco, até mesmo porque não o sentem como parte atual de sua vida. Podemos dizer que o indivíduo não estabelece raízes tornando-se, então, uma identidade perdida197. Pacheco, através de seu labor poético, faz com que o indivíduo não seja conduzido a pensar somente o seu mundo, visto como espaço particular, e sim que possa cooperar, por meio de seus atos e idéias, para uma nova identidade mexicana, portanto, uma identidade eternamente em busca. Desse modo, Pacheco mostra uma constante utopia de seguir vivendo. Ao analisar a trajetória literária de diversos escritores e após algumas leituras de suas produções, sempre vemos e sentimos, independente da nacionalidade de cada um desses, um forte desejo em ser o mais fiel possível à realidade de seu povo, ou seja, a realidade que lhe toca viver. Em Pacheco, vemos a realidade mexicana ligada diretamente a sua palavra poética, expressa por imagens que dialogam a todo o 196 BENJAMIM apud MORAES (1997, p. 262). Segundo o escritor mexicano Carlos Fuentes, o valor da história está na cultura de um povo. Quando o indivíduo não lembra mais o passado, deve resgatá-lo pela imaginação. In: MACIEL (1999). 197 212 momento com a história da civilização mexicana e com diversos temas da atualidade desse povo. Ao pensar na expressão poética de um autor é importante ressaltar que essa deve ser lida e compreendida por meio do contexto da época a que as imagens o conduzem. Um texto poético sempre se origina do processo interno de criação literária do escritor, mas, principalmente, das tensões da realidade. O poeta, envolto pela realidade, sente a necessidade de expressar-se por meio do jogo poético, conforme o escritor uruguaio Mario Benedetti (2000, p. 79): Hoje poderíamos dizer que o poeta é talvez menos pragmático. Quando passa pela realidade, esta o envolve, o convoca, o acusa. Para o poeta a realidade é uma rede de sentimentos. E nem sempre pode libertar-se dessa. Transitória ou definitivamente, permanece nela, não como um prisioneiro, mas como alguém que busca ser interrogado, convocado, 198 solicitado . O poeta, ao descrever a realidade de seu país, cria em seus poemas retratos que revelam a leitura de uma época concreta, cujas falhas e virtudes, desse momento histórico, aparecem como representação de certo comportamento da época, e às vezes também como denúncia para os problemas que atingem tal sociedade. Aos olhos de Pacheco, um poema deve servir como testemunho de certo momento, portanto prova viva de fatos que marcam a essência de um homem e que permitem ao poeta revelar o seu ponto de vista sobre o que poetiza. Apesar de mostrar seu tom crítico, parece reconhecer uma dificuldade de distanciar-se de tais problemas que rodeiam o seu país, logo, sua morada simbólica. A partir dessa importância em não copiar o real, mas transformá-lo e revivê-lo, podemos afirmar que os temas da poética de Pacheco são apresentados e entendidos, superando a possível divisão em fases, exposta pela crítica. Ao mesmo tempo em que estilos específicos definem cada fase, a temática proposta por Pacheco em seu discurso poético ultrapassa os limites da denotação: tem-se a verdadeira busca da palavra, 198 “Hoy podría agregar que el poeta es tal vez menos pragmático. Cuando pasa por la realidad, ésta suele rozarlo, aludirlo, convocarlo, acusarlo, indultarlo. Para el poeta la realidad es una malla de sentimientos. Y no siempre puede liberarse de esa red. Transitoria o definitivamente, permanece en ella, no como un cautivo, sino como alguien que busca ser interrogado, convocado, querido”. [Tradução nossa]. 213 que possa gerar o desejo latente pela manutenção de uma identidade cultural para o povo mexicano. A própria ação devastadora do tempo, gerado pela história da sociedade mexicana, constitui o tema que, segundo o crítico Anthony Stanton, conduz toda a obra poética de Pacheco. No poema “Pasatiempo”, Pacheco revela que estamos sujeitos as ações do tempo: El tiempo hace lo que le dicta la eternidad: construye y destruye, se presenta sin avisar y se va cuando quiere (PACHECO, 2000, p. 53) O tempo é visto, na atualidade, pelo poeta mexicano como o responsável pela esperança de melhores momentos para seu país e seus habitantes; tempo que se desprende, aos poucos, da carga nostálgica de retorno a um passado que não há mais como recuperar. Pacheco, através de sua linguagem, revela uma poesia que flutua por diferentes caminhos para realizar-se distinta do real. Ao mesmo tempo em que retrata o real simbólico, essa poesia, por possuir uma voz autônoma, aborda a história como tema e luta pela consciência de outras realidades sociais. A partir dos problemas que atingiram sua vida desde sua infância, o poeta se torna um grande conhecedor dos assuntos que rodeiam o pensamento do mexicano e, às vezes, nos revela certa esperança em sua poesia, mas, em outros casos, demonstra-nos fortemente sua visão trágica e fatalista de seu país. Pacheco revela ao leitor a sua preocupação perante a fugacidade da vida e do desgaste progressivo gerado pelo próprio mundo a seu redor. Esses sentimentos são passíveis de serem discutidos em suas composições poéticas. No poema “Ciudades”, Pacheco mostra a degradação do espaço e das próprias relações pessoais199 entre os indivíduos: Las ciudades se hicieron de pocas cosas: madera (y comenzó la destrucción) lodo piedra agua pieles 199 No poema “Galeotes” (PACHECO, 2009a, p. 22-23), o sujeito poético revela o sofrimento de seguir habitando o mundo e a falta de companheirismo: “De las formas de infierno / diseñadas en este mundo / para hacer indeseable la existencia / la más amarga es nuestra condena […] Todo lo compartimos: el martirio, / la sed, el calor y la desesperanza. / Sin embargo no existe entre nosotros / fraternidad alguna. / Tan sólo la cadena que llevamos / nos ata en la desgracia”. 214 de las bestias cazadas y devoradas Toda ciudad se funda en la violencia y en el crimen de hermano contra hermano. (PACHECO, 1987, p. 91) Pelo sujeito do poema, a violência, responsável pelo caos, apresenta-se na essência de cada indivíduo; desde sua origem e na luta constante pela sobrevivência diante do mundo. O emprego de elementos naturais como a madeira, a água, a carne e as peles dos animais denotam a selvageria convertida em consumo na vida cotidiana. Pacheco anuncia o lado obscuro da violência quando menciona “el crimen de hermano contra hermano”. O escritor parece fazer uma alusão à história bíblica de Caim contra Abel. Enoch, primeira cidade fundada na terra e erguida por Caim, teve a violência e o crime como antecedentes. Pacheco, no poema “Caín”, retrata a presença da imagem do caos desde a origem da primeira urbe. O homem nasce de um enfrentamento com o espaço ao redor: Su nombre es testimonio de la Caída. Caín el can de la corrupción, el perro rabioso que la tribu mata a pedradas... Caín, nuestro padre. El fundador de las ciudades. (PACHECO, 1989, p. 42) A poesia urbana de Pacheco mostra-nos que a “realidade” está fundada no sofrimento. Cabe ao poeta denunciar por sua voz poética a injustiça que vê, porém nem sempre a poesia pode ser entendida e ouvida pelo outro e, neste momento, o poeta, também, permite sentir sua voz em pleno martírio; ao não ser escutada. O escritor lamenta a impotência do seu papel: “Y yo qué hago y yo qué puedo hacer”200. Para Verani (1994, p. 94), Pacheco [...] está fundamentalmente preocupado pelo papel do poeta e da poesia num mundo de guerra cruel, sofrimentos e injustiças universais. Pacheco sempre foi um poeta muito autoconsciente: abundam as alusões à arte do poeta ou sua 201 presença no poema . 200 BINNS (2001). “[…] está fundamentalmente preocupado por el papel del poeta y el significado de la poesía en un mundo de guerra cruel, sufrimientos e injusticias universales. Pacheco siempre ha sido un poeta muy autoconsciente: abundan las alusiones al arte del poeta o su presencia en el poema”. [Tradução nossa] 201 215 O sofrimento e a fugacidade, na obra poética de Pacheco, estão presentes desde a primeira fase poética, em que se percebe a dor perante a precariedade da existência dos indivíduos, até a última fase, em que temos a dor do poeta em relação aos temas físicos e sociais que atingem seu povo, como a doença, a fome, o envelhecimento, a morte, etc. Sem sombra de dúvida, a poesia de Pacheco não se classifica como totalmente negativa; revela-nos a tentativa de luta do poeta contra a devastação do tempo e o desgaste de sua voz em prol de tempos melhores para seu país. Se por um lado esse universo é pessimista, por outro lado, levanta a esperança para o México. A respeito desse olhar dialético de Pacheco, opina o crítico cubano Enrique Sáinz: Esta experiência agonizante do poeta que percebe e suporta a decomposição de um mundo e que observa o surgimento de outro ou entre as imagens do caos e da incapacidade, por um lado, e da possibilidade de uma 202 plenitude, por outra parte . O que Pacheco deixa claro em seus versos é que, sem a passagem do tempo, revelando momentos de plenitude, sua poesia poderia paralisar-se somente nos momentos de sofrimento, criados pela própria história de seu país. Vejamos essa incerteza em seus versos: Triste que todo pase... Pero también qué dicha este gran cambio perpetuo Si pudiéramos detener el instante todo sería mucho más terrible Qué gran tristeza la fugacidad ¿Por qué tenemos que pasar como nubes? (PACHECO, 2000, p. 36). Pacheco, como nos mostra em sua poética, parece já ter vivenciado e cantado diversos temas, e quando, segundo o crítico literário uruguaio Hugo Verani (1994), o poeta já escreveu, inovou e experimentou diversos caminhos, o único que lhe resta é reformular e repensar o até 202 “Esta experiencia agónica del poeta que percibe y padece la descomposición de un mundo y que entrevé la aparción de otro o entre las imágenes del caos y la caducidad, por un lado, y de la posibilidad de una plenitud anhelada, por otra parte”. In: BINNS, N. (2000). [Tradução nossa] 216 então concluído e pensado. Daí, Verani atenta para a poética de Pacheco como uma literatura de agotamiento. Nesse universo ricamente intertextual de sua poética, Pacheco entra em cena com outra temática sempre visível em seus textos. O poeta trabalha com a questão da metapoesía203, à medida que analisa a obra poética em si e a defesa de sua importância para o nosso mundo, ou seja, o tema meta-poético em Pacheco consiste na defesa de sua própria poesia; a sua palavra poética que se faz verdade absoluta. Ao trabalhar com a linguagem, explicando a própria linguagem poética, Pacheco justapõe em sua poesia o passado e o presente, para ressaltar o que está ocorrendo na sociedade atual de seu país. Na medida em que o mundo vai sendo destruído, a poesia deve receber novas funções. No poema “Al fin el porvenir” (PACHECO, 2000, p. 110), o sujeito do poema tece considerações sobre seu canto poético e sobre a realidade mexicana. O eu-lírico revela-nos que, após vivenciar vários estilos poéticos, pode estar experimentando uma fase de maior maturidade: “Al cabo de tanto ayer encontré un gran futuro.”/ “Por fin la edad de oro”/ “el buen tiempo”/ “la bella época”. Ao permitir outra leitura, os mesmos versos nos geram imagens que nos levam a pensar “la bella” como o momento atual por que passa a sociedade mexicana, já que o sujeito do poema complementa com os seguintes versos: “la que soñó cada una”/ “de las generaciones de los muertos”. Temos na figura desses mortos a representação simbólica dos próprios escritores anteriores ao poeta ou dos indivíduos que habitaram o México nos momentos iniciais de sua formação como sociedade. O sujeito do poema que, no início do canto, nos leva a essa dupla leitura, termina o poema com a carga negativa típica do poeta, ao afirmar que: “el futuro también pasó”/ “Hoy se ha perdido en el ayer terrible”. Pelas palavras do eu-lírico, o próprio poeta volta a perder-se em seu estilo, não aderindo em maior proporção a nenhuma 203 característica das gerações vanguardistas anteriores e Conceito retirado de BINNS (2001), citado por Doudoroff em relação à poética de José Emilio Pacheco. Segundo ele, essa meta-poesia se dá de maneira rica a medida que Pacheco neutraliza as experiências entre literatura e qualquer tipo de outra ciência, isso não quer dizer que o poeta confunda realidade e ilusão, mas evidencia ambos saberes na tessitura de seus poemas. Cabe destacar que entendemos a meta-poesia como o discurso na poesia sobre a poesia. 217 mostrando, em outra leitura, que “la bella época” não passa mais uma vez de um sonho de dias melhores para seu país. No poema “Idilio” (PACHECO, 1987, p. 52-54), temos a representação de um espaço rupestre, gerando uma recuperação da liberdade e da tranqüilidade para o mundo: “El mundo”/ “volvía a ser un jardín”, e, nessa imagem do jardim, o sujeito do poema põe em cena a construção de um espaço positivo, que será negado mais adiante, ao representar o som de um “tañido funerario”. O ambiente de paz recebe um “olor de muerte”, as águas calmas do mar “se mancharon de lodo y de veneno”. Toda a linguagem elaborada representa, mais uma vez, um espaço de degradação na poesia, tanto na estrutura, quanto no conteúdo de temática ambiental, espaço sempre deformado para Pacheco. Outro tema que surge das imagens poéticas criadas por Pacheco seria uma poesia voltada para a busca de um novo mundo, sendo essa uma espécie de poesia que busca traços na literatura apocalíptica, em que conforme o crítico Lois Parkinson Zamora204, essa não se resume somente a uma literatura catastrófica, pois existe nela uma tensão muito nítida entre o pessimismo e o otimismo para com a sociedade. Pela tradição bíblica, os presságios e os castigos representam tanto uma punição de Deus, quanto um alerta para o mundo de que as atitudes dos homens devem ser repensadas e, portanto, modificadas. Nessa análise, o caos vivido na sociedade global representa um símbolo de força para que os indivíduos lutem pela manutenção de sua existência e identidade em um espaço cuja voz humana se desintegra cada vez mais. Nessa última instância, está inserida a poesia de Pacheco, ao anunciar, em suas imagens, tal condenação divina e, paralelamente, justiça e salvação aos indivíduos. Pacheco parece anunciar em sua poesia sinais de violência e de destruição no seu poema “El Gran Teatro del Mundo”: Cada noche del año atroz de 1976 deja su cargamento de muertos en Beirut, Belfast, Buenos Aires, Montevideo, Santiago, Sudáfrica... Se abre la tierra, se desploman ciudades, los volcanes florecen de lava, el mar borra las poblaciones de la orilla, cerca el desierto, aumenta el hambre, la violencia se adueña de los agonizantes centros urbanos. Seguimos viviendo el tiempo de los asesinos. 204 ZAMORA apud BINNS (2001). 218 ‘No son signos del juicio final; se trata nada más de los terrores del milenio”, dicen quienes observan como si estuvieran a salvo. “El mundo ha sido siempre el mismo; sólo que ahora estamos mejor informados. Vendrán tiempos mejores. No hay problema’ (PACHECO, 1987, p. 99-100) Pacheco, por meio do título dado a sua composição poética, parece parodiar o título da obra do renomado dramaturgo espanhol Pedro Calderón de la Barca. Não se trata de uma paródia com sentido irônico ou cômico, mas uma tentativa do poeta mexicano de elaborar um pastiche da obra original. A preocupação pelas questões sociais de Pacheco encontra lugar reservado em alguns escritos de Calderón de la Barca, filho de uma família nobre, tendo desde criança uma sólida formação humanística escolar, que possivelmente lhe gerou um certo interesse pelos temas sociais e religiosos, já que se ordenou sacerdote aos cinqüenta e um anos de idade. Outro fator que permite entender tal preocupação do escritor madrilenho para os aspectos sociais de uma nação é o fato de ter exercido funções militares durante uma passagem de sua vida, que explica seu olhar para com os injustiçados e suas imagens trágicas da vida em sociedade. Como merece destacar, nesse momento, a mensagem de uma de suas obras mais difundidas La vida es sueño, em que o dramaturgo mostra o verdadeiro sentido dramático da vida ao deixar evidente a idéia de que a vida seria uma simples farsa. Acreditamos que somos um indivíduo, porém, depois, somos levados a acreditar que não sabemos mais quem somos. O auto-sacramental205, El gran teatro del mundo, escrito por Calderón de la Barca, em 1636, gênero genuinamente espanhol, ao lado da mística e da picaresca, revela a vida como uma representação teatral, de maneira que essa terminará justamente com o desabrochar da morte. O discurso barroco de Calderón de la Barca traz-nos a imagem da 205 Esses auto-sacramentais tinham a função de transmitir o saber teológico ao grande público. O seu teor seria o dogma e o pensamento católico. O teatro europeu mesmo tendo recebido influências da escola greco-latina está intrinsecamente ligado aos princípios da liturgia da Igreja Católica. Reconhece como um gênero grandioso, pois convivem nesse a ideologia, o drama, a poesia, a teatralidade e principalmente a teologia. 219 Espanha decadente, após o período da Reconquista, talvez, por representar um verdadeiro jogo entre luzes e sombra, perdas e vitórias, sonhos e decadências. Por meio da leitura do poema de Pacheco, podemos comprovar que o mundo já não é o mesmo para o poeta, o sofrimento agora toma proporções maiores, o próprio planeta caminha para a destruição de seu estado natural, como também a própria espécie humana. O poeta termina o seu questionamento afirmando que somos espectadores e sobreviventes do drama que enfrenta o mundo, e interrogando, ao final de seu poema, “¿por cuánto tiempo?”, uma pergunta que indaga sobre o limite de tempo que os seres humanos podem suportar. Semelhante a Calderón de la Barca, o poeta mexicano parece colocar em debate206 o sentido e o rumo da vida contemporânea. A destruição e o tempo como um labirinto invadem os versos do poema “Como aguas divididas”: El mundo suena a hueco. En su corteza ha crecido el temor. Un hombre a veces puede mirarse vivo. Pero el tiempo le quitará el orgullo y en su boca hará crecer el polvo, ese lenguaje que hablan todas las cosas. (PACHECO, 1987, p. 18) Em outra composição poética, “Malpaís” (PACHECO, 1987, p. 133135), Pacheco traz a temática apocalíptica207 para a sua própria cidade natal, considerada possivelmente como uma das zonas mais contaminadas do planeta (BECKNER, 2003). Mostra que sua cidade, vista como “ciudad de las montañas”, teve um passado glorioso, em que “desde cualquier esquina se veían las montañas”. Os vulcões Iztaccíhuatl, Popocatépetl e Ajusco perderam suas funções ao serem vedados por um “telón irrespirable”, gerando uma devastação do parque que os rodeia, as proximidades num espaço de puro “asfalto” e de enorme “asfixia” para os seus habitantes. Após uma série de atitudes de degradação ambiental, o sujeito do poema, nas estrofes finais, faz surgir a visão de um novo 206 Pela leitura de alguns auto-sacramentais observa-se que era comum encontrar como protagonistas desses textos a figura de Deus, do homem e do diabo, contando cada um desses com seus aliados. Pacheco ao mencionar no poema o juízo final parecer querer evidenciar ao leitor o encontro possível entre essas três figuras presentes na obra de Calderón de la Barca. 207 A palavra “apocalipse” surge do latim com o significado de “revelação”. In: CHEVALIER & GHEERBRANT (1995). 220 mundo para o povo mexicano, após as catástrofes ocasionadas pelos próprios homens, que utilizaram sua “inmensa capacidad destructiva”. O ressurgimento da vida nessa cidade se dá a partir do momento que [...] renacerán los volcanes Vendrá de lo alto en gran cortejo de lava. El aire inerte se cubrirá de ceniza El mar de fuego lavará la ignominia y en poco tiempo se hará piedra. Entre la roca brotará una planta. Cuando florezca tal vez comience la nueva vida en el desierto de muerte. (PACHECO, 1987, p. 134-135) Pela segunda estrofe, percebemos que o eu-lírico faz uma alusão ao surgimento de uma nova realidade para os mexicanos, relacionada ao desabrochar das flores de um novo tempo: “Cuando florezca tal vez comience”. O surgimento de uma planta em plena rocha simboliza o desejo do poeta de seguir cantando e transformando sua nação. Pacheco, na última parte do poema, mostra a própria ambigüidade de sua poética, pois ao mesmo tempo em que busca soluções para os problemas de seu país, por outro lado, continua gerando imagens negativas da realidade mexicana: [...] Allí estarán, eternamente invencibles astros de ira, soles de lava indiferentes deidades centros de todo en su espantoso silencio, ejes del mundo, los atroces volcanes. (PACHECO, 1987, p. 135) Pelas imagens anteriores, notamos que o sujeito do poema resgata os elementos que destruíram as vidas anteriores e afirma que os mesmos sempre estarão presentes no solo mexicano. Outro poema de mesma temática, “Crónica Mexicáyotl” (PACHECO, 1987, p. 136-137), revela um sujeito que parece resgatar o discurso de seus antepassados massacrados na luta da Conquista, o lamento desses indígenas assemelha-se ao dos vencidos de Tlatelolco208: “añicos y agujeros en red”/ “nuestra herencia de ruinas.” Ao final da composição poética, a voz do sujeito do poema parece realizar uma 208 Fazendo referência aos indígenas do poema “Lectura de los cantares mexicanos: manuscrito de Tlatelolco”. 221 analogia entre o fim dessa civilização e o esgotamento total da Cidade do México: Por fin tenemos que hacerlo todo a partir de esta nada que por fin somos (PACHECO, 1987, p. 137) Nessa estrofe, o eu-lírico, mais uma vez, mostra a esperança de mudança para a sociedade moderna, a partir do nada a que fomos reduzidos. No poema “Lectura de los ‘Cantares mexicanos’: manuscritos de Tlatelolco” (PACHECO, 1987, p. 31-32), temos um canto pensado a partir de narrações orais astecas e da tradução de poesias em náhuatl. Pacheco, ao adotar a técnica cubista, permite ao leitor realizar uma leitura sobre a poesia mexicana de seus antepassados. O eu-lírico revela, desde os momentos iniciais, uma possível luta: “Entonces se oyó el estruendo,”/ “entonces se alzaron los gritos”, passando pela agonia dos astecas a fim de se salvarem dos “hombres en armas de guerra”, e por fim, mostra-nos a lembrança trágica e negativa, que restou no pensamento daqueles que sobreviveram, já que com a batalha “el olor de la sangre manchaba el aire” / “los mexicanos estaban muy temerosos”/ “miedo y verguenza los dominaban”. A partir dessas marcas de existência, o sujeito do poema afirma que a herança do povo mexicano é uma “red de agujeros”, evidenciando, dessa forma, que o caos da sociedade moderna é o reflexo do sofrimento dos antepassados indígenas. Outros temas fazem-se presentes no rico conjunto poético da obra de José Emilio Pacheco, porém os que vimos anteriormente apresentamse de modo implícito e explícito na voz poética do escritor, seja por preferência temática, seja por características de estilo, ou até mesmo de adequação a sua trajetória de vida e seu modo de viver em um país tão marcado pelos fatos históricos. 222 3.2. A cidade e o contista mexicano Mientras existan hombres y ciudades que ansían conocer su pasado las historias quedarán vivas. Eduardo Langagne (2005, p. 45) Siempre he querido escribir cuentos. La novela me parece inalcanzable, y me conformo con leer, a menudo admirar, las que otros hacen. Algunos me han reprochado que escriba cosas tan diversas, que no me ‘centre’ en un solo género. José Emilio Pacheco (1966) A figura do poeta costuma habitar todos os gêneros em que Pacheco percorre, é poeta em tempo completo e antes de tudo no momento de criar. A ficção de Pacheco é independente de sua poesia, mas muitos elementos e muitas imagens surgem dela. Seu verso pode parecer suave, celestial e amoroso em algumas leituras, porém não esconde as garras e a dor da história de seu país e de sua cidade natal. Não importa o gênero para o autor. Seu estilo repete-se nos contos, no romance e em seus ensaios. A mesma voz inconformada com realidade de sua produção poética reflete-se numa prosa com o interesse de mostrar, quase sempre, o sofrimento da sociedade mexicana. A poesia e a prosa dialogam na narrativa num trabalho de criação artística que pretende tecer uma leitura da urbe como organismo vivo, dando conta de uma realidade fragmentada e esfacelada. Uma cidade é um espelho dos sujeitos que vivem nela e suas ruas projetam mistérios. Os versos e a prosa de Pacheco revelam um autor leitor desse espaço urbano, a partir de um conhecimento vivido ou obtido através de leituras e diálogos com outros escritores, com o intuito de desvendar a seu público leitor as experiências urbanas e mostrar a passagem do tempo como o reflexo da deterioração. O fio condutor dos contos de Pacheco é a vida na cidade, discutindo sobre a questão do desconforto do homem no tempo. A literatura de Pacheco quer dar conta da realidade, mas consegue captar o real e transformá-lo em linguagem artística, logrando um jogo de 223 linguagens e imagens para criar uma realidade urbana. Para isso, o escritor rompe com a forma tradicional do conto e adota uma linguagem fragmentária assim como a realidade ao redor. Semelhante à fragmentação e à individualidade do homem moderno, seus contos, como obras cíclicas e abertas, possibilitam ao leitor a (re)construção de seus sentidos. Pacheco não odeia sua cidade ou seu país, mas os valoriza a ponto de mostrá-los como se apresentam, com o intuito de permitir uma reflexão do coletivo. O universo de sua prosa também remete à geografia do espaço da Cidade do México e às colônias em torno da grande metrópole, particularmente a Colônia Roma209. O poema “Alta traición” (PACHECO, 1987, p. 33) resume a visão do autor relativa à cidade: No amo mi patria Si fulgor abstracto es inasible. Pero (aunque suene mal) daría la vida por diez lugares suyos, cierta gente, puertos, bosques, desiertos, fortalezas, una ciudad deshecha, gris, monstruosa, varias figuras de su historia, montañas - y tres o cuatro ríos. Pacheco é uma testemunha da história e, a partir desse olhar, constrói um cenário para seus contos. Por meio de uma rede de elementos históricos ou verossímeis, parece se prender ao real, mas, ao mesmo tempo, manifesta a dúvida. A preocupação pelo México e suas 209 Alguns aspectos da obra de Pacheco aproximam à história de sua vida pessoal. Ele nasceu na Colônia Roma da Cidade do México, em 1939, ano de alguns fatos ou momentos históricos importantes, como por exemplo, o início da Segunda Guerra Mundial, o período em que se consuma a vitória de Franco contra Espanha e contra os republicanos, o México começava a desenvolver sua indústria com o presidente Lázaro Cárdenas. Não havia televisão, o cinema mexicano estava num momento de esplendor e a literatura nacional contava com um público leitor considerável. A capital do país em nada se assemelhava a cidade caótica da contemporaneidade. A Colônia Roma era um espaço híbrido habitado por famílias conservadoras e renomadas e casas mais modestas. A colônia contava com construções enriquecidas pelos elementos de art decó como La Iglesia de la Sagrada Familia e o Club Vanguardias (LANGAGNE, 2005). Quando questionado sobre a presença de traços autobiográficos em sua obra, Pacheco afirma “[...] nunca he hecho ni haré textos confesionales. No sé hablar de mí mismo, aunque es nuestra ocupación predilecta […] Todas mis narraciones son imaginarias […] por supuesto, parten de mi experiencia, la única que tengo, pero nada es literalmente verídico” (BRAVO VARELA, 2009, p.68-70). 224 cidades, seus tempos históricos, o modo de ser de seus habitantes e a atmosfera política e social são temas presentes nas entrelinhas de seus relatos e imprimem um local único para o escritor na vocação historiográfica das Letras Mexicanas. Segundo o crítico cultural e escritor mexicano Juan José Reyes (2005, p. 12-13), Pacheco recolhe o legado de seus antecessores e consegue se distanciar dos mesmos, já que: Rosario Castellanos (dedicada a mostrar as injustiças contra as mulheres e os preconceitos estúpidos da classe média nos relatos admiráveis de Los convidados de agosto ou dos índios chiapanecos em suas outras narrações) ou de José Revueltas (nunca distante do corte eminentemente político) ou Carlos Fuentes (que encarna mitos que se cruzam entre grandes coordenadas temporais, sobre um cenário dramático). Pacheco distancia-se de toda intenção de aquela índole ao colocar literalmente sobre um limpo tabuleiro diante de si e dos leitores, um cenário sobre o que dançará o fogo da história mexicana da segunda metade do século XX, chamas que dão vida a 210 personagens realmente entranháveis Os contos de Pacheco levam-nos a um período da industrialização, anterior ao presente, momento em que a vida é tomada pelos meios de comunicação. O progresso transforma-se no reflexo dos avanços mecânicos e cibernéticos, principal fonte de riqueza da vida moderna. O escritor emprega normalmente o olhar infantil, ora ingênuo, ora selvagem, para mostrar o desencanto do sujeito com o contexto social ao seu redor. Não evita o pessimismo como base desoladora em seus contos. Esse pessimismo provém da forma como o autor configura seus textos, uma narração normalmente dividida em outras, deslocada do presente em direção a um passado, considerado próximo pela vontade de revivê-lo, o cenário da cidade que deixou de ser o que foi. Para Barthes (1973), a escritura é uma realidade formal que se localiza entre a língua e o estilo particular de cada autor. Mediante isso, a escritura estabelece a relação entre a criação e a sociedade, constituindo 210 “Rosario Castellanos (dedicada a mostrar el injusto sometimiento de las mujeres y los prejuicios estúpidos de la clase media en los relatos admirables de Los convidados de agosto o de los indios chiapanecos en sus otras narraciones) o de José Revueltas (nunca lejano del corte eminentemente político) o de Carlos Fuentes (que hace encarnar mitos que se cruzan entre grandes coordenadas temporales, sobre un escenario fársico y dramático en veces alternadas). Pacheco se distancia de toda intención de aquella índole al tender literalmente un limpio tablero delante de sí y de los lectores, un escenario sobre el que danzará el fuego de la historia mexicana de la segunda mitad del siglo XX, llamas que dan vida a personajes de veras entrañables”. [Tradução nossa] 225 uma literatura; a linguagem funciona como meio de se recuperar a memória da coletividade. A escritura surge de um confronto entre o escritor e sua sociedade, sua liberdade está condicionada pela história e pela tradição. Essas imprimem uma carga semântica às palavras, pois se revestem de novos significados de modo que nunca esgotam seus sentidos. Não se pode desarticular a escritura de seu passado histórico. A escritura propõe constantemente um significado que se evapora. A escritura de Pacheco manifesta o trabalho do escritor e do intelectual do século XX e XXI, um culto ao novo, à pluralidade, ao registro aberto, em busca de novos modelos culturais. A escrita nesse estilo não permite a linearidade, mas conduz o leitor à multiplicidade de formas. Segundo Fernando Burgos (1985, p. 103), a escritura deste momento caminha no sentido oposto a toda tentativa convencional ou linear: Transgressões e provocações: [...] modificação da ordem habitual; escritura aleatória, escritura subversiva, transgressão do cânone, transgressão de transgressões, [...] escritura receptiva aberta à novidade [...]. Escrituras de todas as técnicas: mosaico, collage, assemblage e de mesclas de todas 211 as técnicas. Escritura desmembrada, intertextual . A nova escritura reúne linguagens, estilos, realidades, textualidade e intertextualidade212. Seus signos podem provir do real, do social ou do subjetivo. O texto transforma-se em exercício para o leitor. Ele busca desvendar e explorar os desafios textuais propostos pelo autor. Uma das maiores contribuições da narrativa de Pacheco é o protagonista criança ou adolescente que conta sua experiência de descobertas, sua inocência e as frustradas ilusões a partir da vivência num conflituoso “mundo real”. Normalmente, seus personagens são “falsas” crianças e adolescentes213, porque falam desde o tempo presente (fase da vida 211 “Transgresiones y provocaciones: [...] modificación de lo ordinário y habitual; escritura azar; escritura subversiva, transgresión del canon, transgresión de transgresiones, […] escritura receptiva abierta a la novedad […] Escrituras de todas las técnicas: mosaico, collage, ensamblaje y de las mezclas de todas las técnicas. Escritura desmembrada, intertextual”. [Tradução nossa] 212 A intertextualidade será um pouco mais desenvolvida no capítulo de análise do conto “El viento distante”. 213 Ao ser questionado por César Guemes, numa entrevista, sobre seus personagens adolescentes de El viento distante, Pacheco explica sua criação: “Es que no había en 226 adulta), momento da enunciação, sobre imagens do passado. Portanto, os personagens apresentam uma visão crítica para o que narram. Normalmente, os personagens têm características identitárias próximas, como acontece nos relatos “El parque hondo” e Las Batallas en el desierto. O olhar maduro do personagem em direção ao passado, consta abaixo na fala de Jorge, protagonista de “El principio del placer” e na voz do narrador de “Tarde de agosto”, respectivamente: No lo van a creer, dirán que soy un tonto, pero de chico mis ilusiones eran volar, hacerme invisible y ver películas en mi casa. Me decían: espérate a que venga la televisión, será como un cine en tu cuarto. Ahora ya estoy grande y me río de todo eso. Claro, hay televisores por todas partes y sé que nadie puede volar a menos que suba a un aeroplano. La fórmula de la invisibilidad aún no se descubre. (PACHECO, 1997, p. 13) […] Nunca vas a olvidar esta tarde de agosto. Tenías catorce años, ibas a terminar secundaria. No recordabas a tu padre, muerto al poco tiempo de que nacieras. Tu madre trabajaba en una agencia de viajes. Todos los días, de lunes a viernes, te despertabas a las seis y media. Quedaba atrás un sueño de combates a la orilla del mar, ataque a los bastidores de la selva. Desembarcos en tierras enemigas. Y entrabas en el día en que era necesario vivir, crecer, abandonar la infancia. (PACHECO, 2000, p. 21) A criança retratada por Pacheco, normalmente, é o ser ingênuo rumo às descobertas da adolescência; é aquele que apresenta conflitos na família ou vive um conflito por ter uma paternidade problemática ou desconhecida; recebe os cuidados em tempo parcial de uma mulher, não necessariamente sua mãe, o que lhe sugere a orfandade, denunciando sua solidão dentro da imensa cidade. Os relatos de Pacheco denunciam seu inconformismo perante a realidade hostil. Todas as temáticas constantes nos contos do autor anunciam a vida moderna: os segredos familiares, os pecados e as culpas revelam a hipocrisia; o poder se concentra em certa parcela da sociedade; o abandono da criança e da mulher reflete no esquecimento de toda a sociedade, principalmente, das classes menos favorecidas. As fantasias, presentes no imaginário dos personagens, surgem de ese momento niños o adolescentes en la narrativa mexicana. Los hubo después, pero no mientras los escribía” (GUEMES, 2000). 227 outros relatos como os livros de aventuras, de autores mexicanos, norteamericanos, italianos, franceses ou dos cómics, mencionados nos contos de Pacheco. Como exemplo, citamos uma cena do conto “El castillo de la aguja”, em que essa evidência ocorre: Pablo leía El Corsario Negro y Viaje al centro de la tierra”, libros prestados por Gilberto. En eso consistían sus vacaciones y representaban algo parecido a la felicidad. Cuando terminaran volvería al internado y a las obligaciones, regaños, burlas, golpes. (PACHECO, 2000, p. 49). Essas épicas infantis seriam uma preparação ou um reconhecimento por parte do adolescente do mundo da vida adulta, ou seja, o da corrupção moral e política, da infidelidade, das injustiças e das diferenças sociais, do consumismo e da globalização. As ficções de Pacheco retratam esse momento de experimentação da vida adulta e de um olhar crítico sobre a história, haja vista que os narradores de quase todos os contos fazem referências a nomes de presidentes e de datas significativas do contexto mexicano. O romance curto Las Batallas en el desierto214 exemplifica de modo simples o posicionamento do escritor diante da sociedade, tendo em vista que a história ocupa um papel fundamental na obra de Pacheco. Carlitos e Jim, personagens centrais da trama, estudam na mesma escola, mas pertencem a classes sociais distintas: o uso do inglês, os costumes diários e os produtos, por exemplo, constroem a imagem da influência norte-americana na sociedade mexicana. A trama gira em torno da história de Carlitos, cujo destino é ser repudiado pela hipócrita sociedade ao se apaixonar pela mãe de seu melhor amigo. O caso é relatado após muitos anos do possível incidente, por isso o narrador/ protagonista recupera as imagens de sua memória. O sujeito da enunciação e a 214 Sobre esta obra, Pacheco comenta: “El ambiente es real pero la historia es por completo imaginaria. No tuve una adolescencia como la de Carlos, su protagonista. En toda actividad humana hay algo de horrible y en este caso es que ya no puedo disculparme ante mis padres porque muchas personas que me hacen favor de leer el libro creen que fueron como los padres de Carlos, cuando en realidad eran todo lo contrario”. O escritor aborda, ainda, o momento histórico de inspiração para a narrativa quando menciona: “Tal vez para escribir ese libro fue necesaria otra de las muchas muertes de la ciudad de México: la apertura en 1977-1978 de los llamados ‘ejes viales’ que no sirvieron sino para enriquecer aún más a los ladrones que en aras de la codicia han hecho de verdad inhabitable este lugar”. (BRAVO VARELA, 2009, p. 69). 228 história já não são mais os mesmos, o próprio tempo encarregou-se de dar um novo sentido a essas histórias. Normalmente, nas ficções de Pacheco os “de arriba” da sociedade não conseguem se unir aos “de abajo”, porque essa é a forma encontrada pelo escritor para denunciar as relações de interesse, a humilhação, o menosprezo pelo inferior e a crueldade da vida. Nossa visão confirma-se no destino da personagem Mariana, de Las Batallas en el desierto e no interesse do colegial Pablo, protagonista do conto “El castillo en la aguja”, em cortejar e namorar Yolanda, irmã de seu melhor amigo, quando o convite para ir a sua casa se converte na vergonha em ser identificado como filho ilegítimo e de uma criada. Pablo era filho de pai nunca revelado e de Catalina, criada dos Aragón, família que enriqueceu junto à política. Como os Aragón não tinham filhos, resolveram pagar um colégio interno para o menino. Pablo sentia viver numa “casa ajena”, num “castillo en la aguja”, porque fazia alusão à casa de campo da família Aragón, semelhante a um castelo próximo a uma colina. Pablo “nunca entendió por qué estaba en un sitio que no era el suyo” (PACHECO, 2000, p. 50). O narrador do conto reforça essa diferença de classes: A pesar de la amistad Giberto nunca lo había invitado a su casa. Un domingo lo hizo por fin y entonces Pablo conoció a Yolanda. Gilberto los presentó, su hermana retuvo por un instante la mano de Pablo y lo miró a los ojos. (PACHECO, 2000, p. 50) […] Otro domingo fueron a un pueblo a orillas del río. En un restaurante hecho de tablas comieron mojarras y camarones y escucharon música de arpas y guitarras […] El ingeniero le recordó a su esposa que se hallaban en un lugar al que sólo habían ido por la frescura de sus productos recién sacados del agua. Allí había gente de otra clase: indios, negros, obreros, estibadores, sirvientas, empleadas de almacén, personas vulgares. (PACHECO, 2000, p. 51) O fato de Yolanda não ter cumprimentado a Pablo com um aperto de mãos sinaliza a barreira entre os ricos e os pobres no conto. Benavides, engenheiro e pai de Gilberto e Yolanda, marca em seu discurso a divisão de classes presente em alguns contos de Pacheco. O engenheiro enxergava em Pablo um intruso e acreditava que o fato de tê- 229 lo levado numa atividade de sua família lhe seria um grande favor. Inclusive, o narrador destaca o incômodo e a passividade do menino: “Pablo, que no había abierto la boca en toda la tarde, habló al oído de Gilberto” (PACHECO, 2000, p. 51). Pablo convida a família de Gilberto, porque no fundo percebe a distância da família de seu amigo, inclusive se preocupa com Yolanda, já que se interessa por ela. O caminho até a casa dos Aragón possibilita uma aproximação entre Pablo e Yolanda, demonstrada pelo toque das mãos e das pernas. Ao chegar a casa, Pablo “trató de ver a los ojos de Yolanda” e perguntou-lhe se havia gostado do local. A imagem da cena parece sintetizar seu encanto com a menina e a projeção do sonho do casamento, já que aquela casa poderia ser sua futura moradia. No entanto, sofre uma decepção logo ao chegar em “sua casa”, ao ser recebido pela senhora Aragón: “Dile por favorcito a tu mamá que nos prepare café y sirva helados para los niños” (PACHECO, 2000, p. 53). O discurso da senhora Aragón marca a proposta de Pacheco de denunciar a humilhação e a segregação das classes. Essa denúncia não é algo restrito à vida moderna, mas intensificada pela individualidade e pela fragmentação dos valores do homem moderno. O clima de desilusão, tristeza e abandono tomam conta dos relatos de Pacheco. O prazer e a desilusão são temas de outra coletânea de contos de Pacheco, El Principio del placer, homônimo ao título do romance curto que inicia o livro. A última narrativa da obra termina com uma interrogação sinalizadora da angústia que perpassa toda a obra: “Dios mío, ¿cómo pudo pasarnos lo que nos pasó, cómo vamos a vivir en un mundo que ya no es otro mundo?” (PACHECO, 1997, p. 140). A mesma leitura aparece no discurso do adolescente Jorge de “El principio del placer” ao concluir seu diário “Sí, en opinión de mi mamá, esta que vivo es ‘la etapa más feliz de la vida’, cómo estarán las otras, carajo” (PACHECO, 1997, p. 55). A felicidade e o prazer na obra acabam tendo um gosto amargo de sofrimento no decorrer das mudanças físicas e sociais da cidade, visão anunciada ao leitor já na epígrafe da obra “lo que hoy es dicha y placer 230 mañana será amargura y pesar”. No conto “Cuando salí de La Habana, válgame Dios”, os personagens viajam no tempo, partem de La Habana em 1912 e chegam a Veracruz, três dias após, em 2012, num outro mundo, pois não o reconhecem mais como o seu. Estar no navio Churruca representa uma mescla entre estar salvo – no ano de 1912 ocorre uma rebelião travada entre os cubanos e as tropas americanas, que invadem Cuba com o pretexto de proteger interesses americanos naquelas terras – e sofrer por estarem impedidos ou sem condições de deixar o país. O narrador relata o prazer e a desilusão: Qué alegría estar a salvo en un camarote del Churruca, no hay como estos vapores de la Compañía Transatlántica Española, además sirven excelente comida, siento mucho no haberme despedido de quienes fueron tan amables conmigo. (PACHECO, 1997, p. 132) […] A bordo del Churruca la gente parece triste, sólo Dios sabe qué va a pasar en Cuba, toca la orquestra esa habanera tan 215 melancólica, La paloma . (PACHECO, 1997, p. 132) Do mesmo modo que em outros contos do livro, existe um nível na trama cujos acontecimentos se envolvem num mistério revelador. Todo o sentimento de prazer vivenciado pelo personagem no decorrer dos “três dias de viagem” se desvanece na chegada ao porto, pois o personagem não reconhece mais aquele espaço: Es el 23 de noviembre de 2012, algo pasó, nos tardamos en llegar todo un siglo, no puedes imaginarte lo que ha ocurrido en el mundo, no lo podrás creer nunca, mira, asómate, dime si reconoces algo, hasta la gente es por completo distinta, no nos permiten desembarcar. (PACHECO, 1997, p. 140) No final da narrativa, percebemos que os personagens estão mortos e o navio não passa de uma embarcação fantasma, pois “el Churruca de la Compañía Transatlántica Española se perdió en el mar al salir de La Habana en 1912” (PACHECO, 1997, p. 140). Pacheco, em suma, evidencia não haver saída para o peso da história. 215 La Paloma é o título de uma canção de Sebastián Iradier, escrita em 1863, após sua visita a Cuba, em 1861, escrita dois anos após sua morte em Espanha. O título do conto de Pacheco origina-se do primeiro verso da letra. A canção fez-se muito popular do México e era das umas preferidas do Imperador Maximiliano I. O narrador nos fornece, inclusive, essa informação. O tema da letra está relacionado às aves, que entregam as mensagens de amor dos marinheiros, que se perderam no mar, em suas casas. A “paloma” representa o último vínculo do amor entre a morte e a separação. 231 Já o conto “La fiesta brava”, apresenta uma estrutura complexa, há um conto dentro do conto principal e, no final do relato, as duas histórias se cruzam graças a um episódio do primeiro que se repete na “realidade” ficcional do segundo. O personagem Andrés Quintana, o autor da ficção, personifica o papel do escritor hispano-americano, principalmente, na sociedade. Quintana é criticado por tratar temas já discutidos por grandes nomes da literatura, como Carlos Fuentes, Julio Cortázar e Rubén Darío, como se um tema não pudesse ser resgatado ou revisto. Quintana é uma das vítimas do mundo moderno na obra de Pacheco. O autor usa esse conto para mostrar a presença, cada vez menor, do México histórico na vida moderna. No conto “Tenga para que se entretenga”, Pacheco adota a mesma técnica: uma imagem do passado devora o presente. A figura do imperador Maximiliano I com todo seu poder retorna ao mundo moderno para levá-lo ao dos mortos, já que o mesmo se encontra sem salvação. Pacheco busca o reencontro com esse passado, ao mesmo tempo tão presente no México, embora rechaçado, como uma saída para dias melhores. Nos contos de El viento distante, Pacheco retrata ambientes de crueldade, de mistério e de incompreensão em torno da vida do homem, seja ele o adolescente, a mulher feia, o homem de negócios ou o escritor. As palavras introdutórias desta seção funcionam como um convite para a leitura dos próximos capítulos de análise do estilo narrativo de Pacheco. Como forma de verificar o trabalho do escritor em tecer a leitura da cidade e de seus dilemas, analisamos as denúncias sociais dos seguintes textos: duas minificções de La sangre de Medusa y otros cuentos marginales, “Tríptico del Gato” e “Shelter”; o romance curto Las Batallas en el desierto; dois contos de El principio del placer216, “La zarpa” e “La fiesta brava” e três minificções e um conto de El viento distante217, respectivamente, “El parque hondo”, “El viento distante”, “No entenderías” 216 O romance curto “El principio del placer” e o relato “Cuando salí de La Habana, válgame Dios” pertencem a esse livro. 217 Os relatos “Tarde de agosto”, “La cautiva”, “El castillo de la aguja” e “Jericó” pertencem a esse livro. 232 e “La reina”. Outros contos218 são citados no decorrer dos capítulos com a única finalidade de exemplificação de alguma técnica narrativa ou afinidade temática por parte do escritor. 218 Esses outros contos são os mencionados nas notas anteriores. 233 3.2.1. “Tríptico del Gato”: sinais da fragmentação do homem moderno no primeiro conto do autor La literatura de José Emilio saca del olvido los fragmentos de nuestro ser desprendidos durante luchas pasadas, caídos en el olvido y encubiertos con el polvo que levantó el paso del tiempo. La voz narrativa despierta la memoria, individual o colectiva, y la encamina hacia los hechos lejanos Pol Popovic Karic (2006, p. 9) O conto “Tríptico del gato” é o primeiro esboço narrativo escrito por Pacheco, no ano de 1956, aos dezessete anos de idade e publicado na Revista Estaciones. O texto original foi modificado e aparece reeditado no ano de 1990, na coletânea La sangre de Medusa. Atualmente, a crítica especializada compreende a necessidade constante do escritor de revisar e reeditar seus escritos, em sua vontade de entregar um rico material ao leitor que se aproxime pela primeira vez de seu texto. Conforme as palavras de Pacheco, em entrevista a César Guemes (2000): Lo he pensado, pero en cuanto los vuelvo a leer, no resisto. Si resistiera, imagínate cuántos problemas me evitaría. Ahora, si los dejara tal como aparecieron sería privilegiar al autor y no al texto. Y lo que importa es lo escrito. De modo que si vuelve a aparecer, tengo que entregarle a quien vaya a leerlo el mejor trabajo posible. Nesta entrevista cedida, do La Jornada, em agosto de 2000, sobre a publicação de uma nova versão do livro El viento distante, Pacheco (In: GUEMES, 2000) justifica seu trabalho de retornar ao já escrito e publicado: No hablamos de corrección estilística o un intento de mejorar la prosa en que están escritos los cuentos, sino que me pareció que había cabos sueltos en ellos […] Para colmo de contradicciones, cuando corrijo poemas, los voy haciendo más breves. En cambio en la prosa lo que he hecho en varias ocasiones ha sido ampliar. Interessante observar como Pacheco explica o seu ofício de dar vida a antigos textos e sua facilidade de expandir os textos narrativos em comparação aos em verso. Sobre o ato da reescritura, o escritor informa: No creo en el autor intocable. Si puedo mejorar lo que escribo lo haré como se mejoran y actualizan los libros de texto. 234 Muchos autores lo hacen, pocos se dan el valor de confesarlo […] No es algo voluntario: me releo y no puedo evitar el impulso de cambiarlo. Me encantaría preguntarle al joven que fui qué piensa de las modificaciones que le he hecho a su trabajo (BRAVO VARELA, 2009, p. 70) A coletânea El viento distante, publicada pela primeira vez em 1963 reunia seis contos; a edição de 1969 já compilava quatorze textos. Outras edições apareceram em 1990 e 2000 com textos ampliados e corrigidos. O romance Morirás lejos, publicado pela primeira vez em 1967, contava com 137 páginas, já a partir da segunda edição, em 1977, passa para 159 páginas, com o acréscimo de novas cenas. El principio del placer também passou por pequenas mudanças desde sua primeira edição de 1972. Por outro lado, verificamos a preocupação do autor em tornar o argumento mais evidente ao leitor e não modificar ou melhorar a linguagem do material. Ainda sobre este processo, Pacheco complementa: “Es verdaderamente atroz, es muy difícil, porque además no puedes salirte de lo que ya tienes. Simplemente se vuelve al mismo texto y se trata de hacerlo mejor” (GUEMES, 2000). Pacheco afirma, no decorrer da entrevista, que as mudanças realizadas em seus textos são inocentes e, caso os leitores e/ ou críticos discordem de sua prática, ele prefere assumir publicamente sua necessidade de reescrevê-los219 no decorrer dos anos. De acordo com o autor, outros escritores modificam seus originais, mas acabam não esclarecendo tais correções ou acréscimos ao público leitor220. Pacheco revela nesta entrevista que sempre gostou de ler versos desde muito pequeno, mas seu ofício como escritor começa como 219 No poema em prosa, “Un ritual”, Pacheco (2009b, p. 57-58) refere-se ao trabalho do escritor como uma atividade em constante evolução: “Ningún arte llega a aprenderse de verdad. Hasta en la disciplina practicada a diario desde edades tempranas hay siempre fallas, errores, movimientos en falso [...] No importa el tiempo invertido. Así como en el texto mil veces revisado saltan los errores cuando ya no hay remedio, al terminar de afeitarse nunca falta un sector impune, una leve maleza irreductible a las navajas”. Com este poema, o escritor corrobora seu pensamento em relação à necessidade de corrigir seus textos. Numa entrevista a Bravo Varela (2009, p. 68), Pacheco complementa “Con 20 años [de ofício] piensas que tal vez un día llegues a escribir con una facilidad, con una certeza y un conocimiento... Y no, nunca. Siempre es por primera vez, siempre. Y, además, la mayoría de las cosas salen muy mal”. 220 Pacheco cita na entrevista as três versões diferentes do texto El Buscón, de Quevedo e algumas da obra El amante de lady Chaterley, de Lawrence. 235 contista221. A poesia aparece mais tarde, quando ele próprio percebe certa maturidade em seus textos. Ao fazer referência a seu início como contista, Pacheco revela “Con todos estos años que me separan de ese joven escritor no me siento en modo alguno superior a él [...] tiene muchas cosas que enseñarme”. Além disso, no prólogo de La sangre de Medusa, o autor reforça a valorização das vozes anteriores ao seu fazer artístico e a construção de uma literatura coletiva: […] En una época en que se perseguían como crímenes las ‘influencias’ y lo ‘libresco’, mucho antes de que se formulara el concepto de intertextualidad, estos relatos se atrevieron a tomar como punto de partida textos ajenos y a creer que lo leído es tan nuestro como lo vivido. (PACHECO, 1990, p. 10) O conto objeto de análise deste capítulo foi revisado, tem partes comprimidas e outras expandidas pelo escritor maduro em 1990, que através de suas próprias palavras afirmou: Sin que nadie me corrigiera y bajo la noción entonces vigente de la ‘espontaneidad’ (difundir lo que saliera al primer intento, sin reescritura ni versiones sucesivas), estas páginas no podían reaparecer en su estado original. No aconsejo el descenso a los sepulcros hemerográficos para ver las reliquias atroces, pero quien lo desee tiene a su disposición la copia Xerox, la microficha, el fax y el módem. Aunque las he modificado por completo, su primitiva escritura sigue intacta. Podemos cambiar todo menos nuestra visión del mundo y nuestra sintaxis. (PACHECO, 1990, p. 9) Após observar as duas versões do conto, notamos que a estrutura narrativa permanece inalterada, porém a mensagem assume uma maior agilidade devido à retirada de sinais de pontuação (vírgulas, pontos) e diminuição dos adjetivos. A intenção e os sentidos do texto não se alteram, mas sim a forma como se expressam. Segundo Verani (1994), a nova versão imprime um caráter mais preciso à trama narrativa. Ao ler 221 Em outra entrevista, Bravo Varela (2009, p. 70) também o interroga sobre seu fazer literário e o início de suas atividades como contista. O escritor comenta: “Es una iniciación rara porque casi todos comienzan escribiendo versos aunque no vuelvan a hacerlo. Mi proceso fue distinto. Desde niño me gustaba mucho la poesía y la miraba con gran respeto por la extrema dificultad que hay en escribirla, mejor dicho en hacerlo bien”. O autor cita o rádio, nos anos quarenta, como uma máquina de contar histórias e uma fonte de inspiração para suas narrativas: “No sólo trasmitían radionovelas, sino cuentos, adaptaciones de los clásicos, leyendas de las calles de México y obras hechas específicamente para ese medio con autores y actores”. Pacheco informa que o verso era algo cotidiano na família (“nuestros padres y abuelos solían improvisarlos sin ninguna pretensión literaria para referirse al acontecer local y nacional”, nos jornais (“publicaban epigramas”) e na escola (“se enseñaba declamación”). 236 ambas as versões, compreendemos os detalhes aos quais Pacheco se refere quando menciona que todo texto sempre deixa tarefas a realizar. Para ele, a reescritura resulta da “colaboración entre un escritor precoz y otro tardio que aún está aprendiendo su oficio” (PACHECO, 1990, p. 17). Por suas palavras, notamos a simplicidade de um escritor conhecedor dos pormenores da arte de escrever. Por conta disso, adotamos a segunda versão para tecer comentários nesta seção da pesquisa. A primeira dúvida que surge após ler o texto refere-se à classificação genérica do mesmo. Seria um conto? Um exemplo de minificção? Ou uma espécie de um ensaio sobre a história do gato? Ou ainda um informativo técnico sobre a vida dos felinos? Classificamos esse texto como um exemplo de minificção com vestígios de outros gêneros. O dilema sobre a que gênero ao certo pertence o texto não implica em dificuldade de compreensão. Sabemos que o texto da primeira versão era classificado como um conto e o da versão analisada também porque está reunido numa coletânea de textos reconhecidos como contos pelo autor. Mas, talvez, nossa pergunta deveria ser substituída por outra com o intuito de desvendar a real intenção do autor com o relato, com essa tripartição da obra. Em relação à estrutura do texto, esse primeiro já apresenta um aspecto recorrente na maioria dos contos de Pacheco: a divisão da história principal em narrativas menores. Temos três partes que compõem o conto: “Biografía del gato”, “El gato en la noche” e “Los tres pies del gato”. O título do texto já alude à possível divisão em três momentos. Numa primeira leitura, parecem narrativas independentes, mas acabam ligadas graças ao elemento “gato”. De acordo com o pesquisador argentino Pablo Brescia (1998, p. 155), essa técnica narrativa de Pacheco é uma estratégia para “[...] metaforizar a problemática da sociedade moderna”222, conforme é tratado neste e em outros contos do autor. Na primeira parte do texto, intitulada “Biografía del gato”, Pacheco nos apresenta o mundo felino, suas características, história, costumes e 222 “[...] metaforizan la problemática de la sociedad moderna”. [Tradução nossa] 237 alguns traços do comportamento dos animais223. Na segunda parte nomeada “El gato en la noche”, com apenas uma página de extensão, o autor descreve a vida sexual felina como uma sangrenta batalha noturna. Na terceira parte, “Los tres pies del gato”, encontramos sinais para classificação do texto como pertencente à família do conto, pois aparece o protagonista Angelito, sua mãe e a gata Cleo. Toda a trama gira em torno da possibilidade de cortarem uma pata da gata para atender a um recente capricho do protagonista em ter um felino de três patas. Pacheco é um dos primeiros escritores mexicanos de sua geração a empregar a imagem de felinos. Eduardo Lizalde, seu contemporâneo, centra-se em sua poesia, a partir de 1970, na imagem solitária e trágica do tigre. Para Lizalde o mesmo simboliza a imagem suprema da maldade, da morte e da beleza física. Desde a publicação de El Tigre en casa (1970) até Nueva memoria del tigre (2005), última antologia que reúne seus poemas clássicos, Lizalde emprega a imagem do felino na tentativa de aproximar todos os aspectos selvagens do animal aos sentimentos e comportamentos do homem: a inveja, a solidão, o sofrimento, a falta de amor, a desunião e a criminalidade. Segundo o Dicionário de Símbolos de Chevalier & Gheerbrant (1995, p. 884-885), o tigre é um animal que evoca em si “idéias de poder e ferocidade”, caracterizado por ser um elemento capaz de desempenhar forças negativas. Por exemplo, na iconografia hindu, o felino representa um “monstro na escuridão”. Já, na Sibéria, o tigre, através de seus hábitos e ações, assume o papel de um verdadeiro homem, ou seja, sua roupagem de tigre seria uma mera máscara, utilizada pelo sujeito para fugir da realidade ou enganar ao outro. 223 No conto “Parque de diversiones”, Pacheco trata do homem como vítima de uma rebelião de animais, em que uma família é devorada por formigas e cachorros. Em sua poesia, o autor também recorre aos animais para representação de um mundo em decomposição, como registrado nos versos: “las punitivas ratas que se aprestan/ a desbordar el suelo y fieramente/ deshacer la soberbia./ Y los gusanos,/ envidiosos del topo, urden la seda, / la voraz certidumbre del sudario. (PACHECO, 1999, p. 17). Em outro poema, Pacheco denuncia os animais como agentes da natureza que castiga a arrogância humana: “De noche los ratones poseen/ tus orgullosas propiedades privadas/ Los mosquitos lancean el cuerpo que amas/ Las cucarachas burlan tus medidas higiénicas/ Malos sueños afrentan tu respetabilidad/ Bajan los gatos a orinar tu soberbia”. (PACHECO, 1999, p. 66). 238 Lizalde aproxima-se à literatura e à figura do tigre ainda criança. Por meio de seu pai, grande amante da poesia, o então menino demonstra seu interesse pela leitura e começa a esboçar seus primeiros sonetos. Aos seis anos de idade, lê o primeiro romance de sua vida, La perla roja, de Emilio Salgari. A partir de então, apaixona-se pelos romances de Rudyard Kipling e pelas histórias de Tarzán, momento que desvenda seu interesse pela figura do tigre. Pacheco também revela em algumas entrevistas o interesse pelo mesmo tipo de literatura enquanto leitor adolescente. Com seus doze anos de idade, Lizalde já se encontrava envolvido nas leituras de Honoré de Balzac, Émile Zola, William Blake e Rainer María Rilke, grandes pensadores a quem o poeta nunca negou sua admiração, sendo capaz de nomear tais personalidades num de seus ensaios como “tigrómanos ejemplares” (ROJAS, 2005)224, incluindo, ainda, nessa denominação outros dois escritores hispanoamericanos, Jorge Luis Borges e Horacio Quiroga. O professor de Filosofia Plínio Junqueira Smith (2004) relata sua opinião sobre a presença do tigre na poesia de Lizalde225: É impossível não sentir a grandeza da descrição do tigre, animal plástico que representa o ser humano em suas várias facetas e relações; é impossível não reconhecer o impacto de seus poemas sobre o ódio, ódio que constitui a única prova da 226 existência de alguma coisa . Não é aleatório o fato de Pacheco e Lizalde pertencerem a uma mesma geração de escritores e empregarem elementos comuns em seus textos, seja na poesia ou na prosa, a imagem do tigre, do gato ou de outro 224 Texto não paginado. Não é nosso objetivo, neste estudo, comparar a obra de Pacheco à de Eduardo Lizalde. Mas é nossa intenção destacar a presença de elemento felino no pensamento de outro escritor mexicano. Para fins de conhecimento, entre os anos de 1983 e 1985 publicam-se as primeiras recopilações da obra de Lizalde. Nesse momento, muito apreciado pela crítica e com um número considerável de leitores, Lizalde lança suas antologias: Memoria del tigre (1983), mostrando à evolução de sua poesia desde La mala hora até La zorra enferma; Tigre, tigre! (1985), nome originário do primeiro verso do poema “The Tyger”, do pintor e poeta romântico inglês William Blake, incluindo os livros El tigre en la casa e Caza Mayor; e, Antología impersonal (1986), constando de uma seleção de poemas realizada pelo próprio Lizalde, que ainda, empregou o emblema do tigre na capa de tal edição. No Brasil, essa antologia foi traduzida pelo professor Plínio Junqueira Smith. Lizalde, em Otros tigres (1995), volta a resgatar as imagens assumidas pelo tigre, porém, grande parte da obra se resume a uma série de traduções de poemas magistrais que empregam a figura do felino em diversas línguas. 226 Disponível em: <http://www.letraslibres.com/index.php?art=9921>. Último acesso em: 05 nov. 2010. 225 239 felino, mas sim que ambos representam, através da literatura, traços dos sujeitos pertencentes à sociedade mexicana daquele momento. Retornando ao conto de Pacheco, podemos dizer que o texto é pouco comum, não só por seu tema, mas também pela estrutura como demonstramos até esse momento. Esse desconcerto inicial e as dúvidas provocadas no leitor são sinais para que o mesmo perceba a finalidade irônica do conto, estratégia utilizada por Pacheco, que gera a confusão no leitor. Mas como e para que o autor emprega o recurso da ironia em seu texto? Antes de analisar como Pacheco trata tal questão, resta-nos tecer uma breve revisão ao conceito de ironia. Alguns estudos teóricos da retórica mostram que o conceito de ironia faz-se bastante complexo porque é difícil estabelecer os limites que a diferenciam de outras figuras como a sátira, a paródia e o humor, por exemplo. Ou, ainda, os efeitos produzidos por essas figuras se relacionam entre si. O número existente de teóricos com o propósito de definir a ironia já nos revela a complexidade desse conceito. Normalmente, encontramos teóricos que buscam seus próprios métodos para tentar defini-la227. Um ponto de encontro entre diferentes estudiosos do tema é o seu caráter esquivo; identificado algumas vezes com facilidade e outras após muitas leituras, inclusive, podemos imaginar detectá-la onde não está explícita. A ironia é uma figura retórica criada na antiga tradição da arte do bem dizer com a intenção de criar efeito de sentido no receptor da mensagem ao reconhecê-la e, ao mesmo tempo, busca embelezar a linguagem (BERISTÁIN, 2000, p. 277). Em suma, há dois tipos de ironia: figuras de significação (de palavras) e figuras de pensamento. Independente do caso, as palavras assumem um sentido diferente daquele originário dos termos, ou seja, a ironia provoca uma mudança de 227 Linda Hutcheon (2000), no panorama dos estudiosos que, modernamente, têm se dedicado ao estudo da ironia, compreende a ironia como um processo comunicativo, alçando-se muito além do que tem sido colocada pela crítica, ou seja, como uma mera figura de linguagem no estudo da retórica. A teórica inicia sua discussão destacando o papel do interpretante, isto é, daquele que atribui sentidos à ironia, ao precisar levar em conta o contexto específico de cada caso. Hutcheon chama atenção, ainda, em seu estudo, para a “carga efetiva”, que não pode ser descartada quando se busca um sentido irônico. Ela constrói uma teoria em que se estabelece nove funções desempenhadas pela ironia. 240 significado nos sentidos dos vocábulos, a partir do interesse e dos objetivos do sujeito que enuncia, seja o de criticar, de denunciar ou censurar. Cabe ao leitor desvendar uma pista no contexto da mesma frase ou em contexto próximo para descobrir o sentido verdadeiro com que se deve interpretar o discurso do escritor. O sentido produzido pela ironia não é tão simples de ser identificado, porque o mesmo altera a estrutura lógica da mensagem. O leitor precisa recorrer à noção de contexto ampliado da obra, o que o enunciador nos diz em fragmentos anteriores e posteriores ou mesmo a busca por informações implícitas ao texto, trazendo para a leitura o conhecimento das temáticas de um autor, dele próprio e outras. Essa última foi nossa estratégia para compreender o tipo de ironia presente no conto em análise. Em relação à ironia como figura de pensamento, a palavra assume outro sentido a partir da entonação atribuída pelo enunciador, necessitando o ouvinte recursos para poder interpretá-la. De acordo com Zavala (1996), para o reconhecimento da ironia entram em jogo três dimensões comunicativas: a dialógica, competências interpretativas do leitor; a formal, recursos linguísticos e estilísticos; e a funcional, intenções implícitas do autor, sua visão de mundo e de literatura. Ainda que muitos teóricos determinem com precisão diferentes tipos de ironia (dramática, acidental, de caráter, intencional, intraelemental, metafísica...), no geral, entendemos a ironia como o contrário do que as palavras literalmente comunicam. Mas, independente da definição, há uma condição primordial para o entendimento da ironia, o desdobramento de seus sentidos, sejam eles literais ou figurados. Também é tarefa do leitor determinar os limites estabelecidos pelo autor entre um sentido e outro. O escritor Juan Pellicer (1990, p. 57) cita D. C. Muecke como um dos teóricos clássicos para se entender a ironia, responsável por mencionar que cabe aos olhos do espectador reconhecer a beleza da ironia. Pellicer resgata o discurso de Muecke em que podemos encontrar elementos para afirmar que a ironia já estava presente em livros como a 241 Bíblia e a Odisséia, mesmo que ainda não existisse um termo para designá-la. Na República, Platão utiliza pela primeira vez o termo eironeia fazendo referência a um método empregado por Sócrates. A ironia adquire com Aristóteles o sentido retórico de dizer o contrário do que se queria enunciar com finalidade de enganar, envergonhar ou criticar. Durante essa época e na Europa anterior ao século XVIII228, não há oscilação do conceito. Com o Romantismo, a importância da ironia aumenta e seu sentido expande-se. Para os românticos a ironia é uma tentativa de harmonizar o mundo imaginário e o mundo material; como se a ironia resultasse dessa necessidade de unir os opostos. O artista deveria ser realista e idealista, emotivo e racional, criador e crítico para que sua obra representasse o retrato da realidade e a ficção de um tempo; além disso, ele deve ter consciência da ironia do mundo. A ironia romântica pretendeu conciliar a arte com a vida, outorgando um valor estético à ironia e não meramente retórico. O percurso conceitual assumido pela ironia desde a Antiguidade encontrou no Romantismo um importante momento para reafirmar conceitos. Para alguns, possibilitava a arte, a essência máxima da palavra, para outros, pura criação de Deus, aquele que poderia servir de modelo ao qual o artista deveria imitar (BERISTÁIN, 2000). Outros estudiosos chegaram a compará-la ao romance, como sinônimo, já que era uma das principais marcas do Don Quijote de La Mancha, marco clássico do romance moderno da literatura universal. A ironia nunca deixou de intrigar os pesquisadores, e o aparecimento de novos tipos de ironia sinaliza a necessidade de buscar uma definição que melhor explique seu funcionamento (ZAVALA, 1996). Encontramos registros de autores que já empregam marcas gráficas, sejam sinais ou letras em itálico, por exemplo, com o fim de sinalizar para o leitor a presença da linguagem irônica, já que vimos que uma de suas características é o ocultamento, a capacidade do autor em transformar um significado literal em figurado. 228 Cabe ressaltar a importância da ironia como recurso expresso do movimento barroco. 242 Depois dessa breve exposição do conceito de ironia, que não pretende ser completa em se tratando de não ser o tema central deste estudo, passemos ao reconhecimento de algumas marcas irônicas no conto de Pacheco. Entendemos o conto de Pacheco como uma crítica irônica da humanidade e para isso faz-se necessário desvendar a intencionalidade de sua linguagem no decorrer da narrativa tripartida. Como podemos depreender, o discurso de Pacheco menciona no início de seu conto que o gato é a verdadeira origem das espécies, inclusive do homem: “El Génesis lo calla pero el gato debe de haber sido el primer animal sobre la tierra, el núcleo a partir del cual se generaron todas las espécies” (PACHECO, 1990, p. 17). Somente no plano da ironia podemos compreender o verdadeiro sentido das palavras de Pacheco. Pellicer (1999) cita, em seu estudo, a Wayne Clayson Booth, outro teórico da figura retórica, cuja proposta de entendimento da ironia se baseia num modelo capaz de reconstruir o significado das palavras que empregou um autor com o objetivo de desvendar a verdade em seu discurso. Segundo Wayne Booth, o leitor realiza essa reconstrução de sentidos, ainda que não perceba, por meio de quatro etapas: na primeira, não internaliza o sentido literal da expressão porque nota uma incoerência entre o dizer e o que acredita conhecer; na segunda, há a dúvida sobre a equivocação e se essa pode ser intencional ou um erro real do autor; na terceira, a dúvida entre a possibilidade ou não do autor cometer tal irregularidade e, na quarta, opta-se pela adoção de um significado depreendido das palavras do escritor. Esse teórico apresenta também que todo autor em seu processo de criação artística dispõe de quatro a cinco elementos em seu texto para permitir ao leitor identificar seu verdadeiro propósito. A partir da noção de Wayne Booth para a reconstrução de sentidos e das pistas identificáveis num texto, tratamos de apresentar a seguir nossa leitura do conto de Pacheco. O processo de reconstrução de sentidos da leitura do conto de Pacheco começa ao percebermos certa incoerência entre nosso pensamento, ou melhor, o que defendemos e as palavras do autor. Após ler as primeiras linhas do conto, não compartilhamos com o sentido literal do material lido. Quando o autor 243 afirma que todo ser animado sobre a terra, incluindo o homem, provém do gato e que este fato foi um segredo guardado pela religião e pela ciência, tendo em vista ser uma revelação “demasiado incómoda para los sabios” (PACHECO, 1990, p. 17), somos levados a duvidar da realidade fornecida e reconstruir a verdadeira intenção do enunciador do texto. Num primeiro momento, buscamos, de acordo com Booth, o que o teórico chama de advertências no discurso do autor: títulos, epígrafes, pistas diretas, indiretas ou complementares com a finalidade de adiantar ao leitor o trabalho de reconstrução do material a ser lido. Esses elementos funcionam como guias para leitura irônica do texto. O conto de Pacheco não apresenta nenhuma epígrafe que aluda a outras obras, mas sim títulos dados às narrativas. Também alguns elementos no decorrer do texto constituem marcas inconfundíveis de Pacheco. Os títulos “Biografía del gato” e “Los tres pies del gato” devem chamar atenção do leitor desde o início. Ao mesmo tempo em que não podemos desprezar essas pistas, tampouco podemos acreditar em sua veracidade, pois podem ser uma estratégia do autor ou mesmo uma maneira de insinuação, comprovada somente por outras pistas no decorrer do texto. Por meio disso, entendemos com mais segurança outros momentos do texto de Pacheco, como, por exemplo, quando o autor contrapõe o gato ao homem, um mecanismo para ironizar o ser humano: Compartimos algunas semejanzas. Por ejemplo, el cortesano plagia los ardines del gato y todos imitamos su ingratitud. Nunca damos las gracias y siempre dejamos de ronronear en cuanto hemos obtenido lo que esperábamos. […] Durante unas horas serán gatos y luego volverán a transformarse en bestias como nosotros (PACHECO, 1990, p. 18-20) O discurso do narrador do conto de Pacheco permite-nos inferir que a intenção do autor não está simplesmente em narrar ou informar os hábitos dos gatos, mas sim criticar o comportamento do homem mexicano. 244 Também fazemos uso da segunda proposta do modelo de Booth com o fim de reconhecer o começo absurdo do relato, quando somos preparados para encontrar nos demais contextos do relato “equivocações” do autor. Claro que, nessas incongruências do relato, o autor sabe claramente os objetivos que pretende alcançar. Pacheco, ao começar seu conto, não ignora que os leitores conheçam a passagem bíblica da criação presente no livro de Gênesis, mas nos oferece desde o primeiro momento mostras de ironia. Na verdade, o que o autor espera dos leitores é que percebam o sentido da ironia no texto e pensem de modo crítico sobre alguns dados históricos oferecidos. No entanto, Pacheco também sabe que os leitores compartilham de juízos convencionais, porque do contrário sua ironia não se faria compreender. Talvez seja por isso que opte pela escolha do gato para sua narrativa, pois sabe como esses animais foram castigados pela ignorância do homem. O gato é um animal que traz consigo um instinto de selvageria, crueldade e ingratidão. Ou mesmo, animal com certos laços demoníacos, possuidor de uma maldade inata e uma baixeza de sentimentos. Pacheco busca evidenciar nas qualidades do felino as características do homem, que ao relembrar o instinto do animal, também se revolta contra sua maldade e ingratidão. A ironia do conto coloca em similitude o comportamento felino e o humano. O homem não reconhece facilmente seus defeitos e vê no castigo ao animal uma forma de recompensar seus vícios e de toda a impureza humana, por isso ao maltratá-lo acredita conseguir perdão. A terceira etapa da proposta de Booth consiste em encontrar contradições dentro da própria obra com a finalidade de desvendar a presença da ironia. Quase não encontramos, no conto de Pacheco, nenhuma referência direta a contradições, somente nos três fragmentos que formam a narrativa. A tripartição da trama por si só já resulta contrastante. Uma contradição direta está entre as partes “Biografía del gato” e “El gato en la noche”. Na primeira parte, como já apresentado neste capítulo, Pacheco mostra a capacidade engendradora do felino, sua superioridade intelectual diante do homem, lhe atribui a criação de 245 correntes filosóficas como o existencialismo: o autor, no final do texto, ainda o apresenta como aquele capaz de refletir “veinticuatro horas al día en el absurdo y la vacuidad de todo” (PACHECO, 1990, p. 19). Já na outra parte citada, no segundo fragmento do conto, o narrador mostra-o em sua total animalidade. Nessa segunda parte da narrativa, Pacheco, tal qual a um naturalista, descreve com precisão o ato sexual felino com riqueza de detalhes na apreensão dos movimentos e no passo a passo da copulação do animal. O narrador parece reconhecer o feroz e violento ato sexual felino, principalmente, o comportamento da fêmea, que ao se oferecer ao macho e ser penetrada, rechaça-lhe com toda a violência de suas garras e provoca rixas entre outros machos com a intenção de obter o direito de penetrá-la. Nos cinco parágrafos da segunda narrativa, através da ironia, o autor compara a imagem do gato à do homem, quando sabemos que este também demarca limites e sempre reduz questões básicas à dominação e à procriação: Con hermosas palabras el hecho de que la existencia no tiene sino el sentido de prolongar la especie […] Al reducirlo todo a cuestiones básicas: el coito y la guerra (PACHECO, 1990, p. 19) A contradição entre as primeiras partes do conto encontra reforço nas colocações do narrador: onde está o gato que “limó su astucia y su sabiduría” para despetar “el respeto y el recelo que inspira todo ser superior” e que “no reprime sus deseos pero tampoco vive atrapado en ellos” porque “deja para nosotros la esclavitud de la obsesión?” (PACHECO, 1990, p. 17-19). O ódio despertado pelos gatos explica-se pela fácil capacidade do animal procriar-se, mas sem a necessidade interessada do homem em perpetuar sua espécie, já que este visa à manutenção de nomes, riquezas e poder, e não somente o estabelecimento e a proteção de territórios. A quarta etapa da proposta apresentada por Booth é facilmente identificada pela diferença de entonação na narração de cada fragmento 246 do conto. Essa diferença no conto de Pacheco dá-se com o objetivo de desconcertar o leitor e verificar até que ponto este é capaz de descobrir a ironia. O conto de Pacheco reforça o irônico a partir de sua técnica narrativa dividida em três partes, cujo autor adota tons e estilos distintos. Podemos afirmar que esse conto de Pacheco adianta o estilo e os temas recorrentes das obras do escritor. “Biografía del gato” seria uma espécie de crítica à sociedade e preocupação do autor pela história; já em “El gato en la noche”, visualizamos certa linguagem poética presente no seu primeiro livro de poemas, Los elementos de la noche, que se constrói na cena de violência do coito do felino, como podemos ver na descrição abaixo: La noche se derrama en la azotea: tálamo y campo de batalla […] Un gato se encrespa, se arquea, mastica la soledad, la pule en su lengua áspera ya la escupe. Sus maullidos claman piedad en el desierto de este mundo. Pero la luz apaga el esplendor de tantos ojos nocturnos. La sociedad secreta se deshace. El día se lleva la luna y el amor. Si los encuentra vivos, la próxima noche volverá a contemplar la ceremonia erótica. […] Al partir el último gato el lucero del alba se desvanece. (PACHECO, 1990, p. 19-20) “Los tres pies del gato”, terceira parte do conto, destaca o mundo infantil recorrente na contística de Pacheco, no qual o escritor desmitifica a infância como a etapa da pureza, da inocência e da felicidade para destacar a maldade presente em seus protagonistas, como um traço inato do homem. O autor converte a infância numa época incerta e dolorosa. O nome do personagem e protagonista da terceira parte do conto, Angelito, já sinaliza outra ironia do conto. Egoísta, cruel, mimado, caprichoso e corrompido por sua mãe são algumas das características construídas para o personagem, em que o mais importante de sua rotina diária está em sua própria vida, todo o resto não tem nenhuma importância, como por exemplo, o pedido de amputação de uma das patas de sua gata Cleo. Caso o leitor desse conto não desconfie, desde o início, da falta de lógica ou do jogo entre o sentido literal e figurado empregado intencionalmente pelo autor, não verá muito significado e atração no texto, 247 muito menos será capaz de determinar a interpretação mais convincente. Quando percebemos o real propósito irônico da produção de Pacheco – a intolerância em relação ao gato é o reflexo da aversão às atitudes humanas e aquelas mais difíceis de desprendermos – seu conto adquire sentido e dinamismo. Todavia, para captarmos essa sensação faz-se necessário ler as três partes como um todo inseparável. Em “Biografía del gato” temos o maior número de elementos responsáveis por definir a presença da ironia graças também à complementação de sentidos oferecida pelas partes posteriores do texto. Pacheco inicia esse parágrafo relembrando a história do gato, tomado como um deus pelas primitivas religiões, condenado e temido durante a Idade Média, e desde o Renascimento era “parte integrante de la galería familiar” (PACHECO, 1990, p. 17). Relata também a imagem supersticiosa construída para o felino, desde o fato de possuir sete vidas até atrair, no caso de um gato preto, a má sorte, porém, mais adiante, nos informa que nada do relatado importa para sua vida, pois o gato: “sigue tan gato cuando era adorado por los egípcios o lo acosaban la ignorancia y salvajismo de épocas tan oscuras como la nuestra” (PACHECO, 1990, p. 17). A passagem anterior é o outro momento irônico denunciado por Pacheco. Mostra que apesar do tempo e da evolução da humanidade, na atualidade, não deixamos ainda de ser selvagens, muito menos intransigentes. Romper a imagem de homem civilizado é o objetivo de Pacheco em seu conto. Em toda a primeira parte da narrativa, Pacheco pretende, a partir da comparação entre as atitudes do gato e as do homem, informar que o comportamento do animal não está longe da conduta da sociedade, ou pelo menos, de alguns de seus indivíduos. São atitudes que eles mesmos não compreendem: Señor de horca y cuchillo del mundo que alcanza a percibir con sus ojos fosforescentes y sus sensitivos bigotes, aterra verlo cuando tortura un ratón. Esta voluptuosidad de hacer el mal, este afán de sentirse superior, constituyen la parte oscura y abominable del gato, así como el rasgo más humano que pueda hallarse en él (PACHECO, 1990, p. 18). O gato do plano real não se diverte fazendo o mal aos outros. Ao caçar sua presa não tem consciência do sofrimento que provoca, mas sim 248 aprende com as adversidades da vida a caçar para sobreviver. Não aprisiona outro animal por puro prazer ou para sentir-se superior aos demais. Matar por prazer ou conquistar o mundo só o fazem os gatos dos desenhos animados. O homem é a única espécie do reino animal capaz de torturar e sentir prazer ao fazê-lo, sente satisfação e superioridade diante dos demais, aplica dor e, ao mesmo tempo, lamenta as súplicas da mesma. Pacheco acaba por confessar que aos gatos: “Sólo les interesa dormir en lechos de seda, en cajas de cartón o sobre un trapeador; tener caricias, leche, pellejos; ser objetos curiosos, venerados, temidos” (PACHECO, 1990, p. 20). O conto de Pacheco faz oscilar a imagem do gato entre a bondade e a repressão. Trata da maldade e da vileza do animal; trata-o como um animal intrigante, porque ao mesmo tempo em que aceita a companhia e o alimento do homem, não lhe fornece sinais de lealdade ou gratidão; não reconhece as carícias recebidas, pois “en pleno idílio suele clavar las uñas en quien lo mima” (PACHECO, 1990, p. 20). Pacheco revela a todo o momento o sentido real de suas palavras: “como este mundo es un espejo donde todo lo vemos invertido, en la dimensión de la verdad el gato se encuentra muy por encima de nosotros” (PACHECO, 1990, p. 17). Cabe atribuir ao homem e não ao gato as atitudes impiedosas do relato. O jogo de crueldade simbolizado pelo gato é o reflexo da vida nessa cidade de muitas imagens (espelhos), onde impera a crueldade do homem que, ao suprimir o gato, acredita liberar-se de seus demônios internos. A última parte do tríptico, “Los tres pies del gato”, encerra plenamente o sentido irônico da narrativa. Algumas pistas fornecidas nos fragmentos anteriores permitem tal compreensão. Em “Biografía del gato”, ao narrar os aspectos da maternidade felina, esses são confrontados aos da maternidade humana na última narração. A passagem abaixo serve para revelar a ironia final do conto de Pacheco: Atiende a su propio parto [la gata] como si hubiera hecho estudios de medicina. En las semanas que siguen al alumbramiento, se porta como madre ejemplar. Adiestra a los gatitos ciegos y sordos en todas las artes de la supervivencia y luego los enseña a cazar. Cuando pueden valerse por sí 249 mismas no vuelve a ocuparse de sus crías (PACHECO, 1990, p. 18) Neste último episódio do texto conta-se a vida dos Bonilla, uma família rica composta por Santiago Bonilla, “hombre de mucha edad”, sua jovem esposa sem instrução, mas com dinheiro e casada “por conveniencia familiar” e Angelito, filho de ambos, um menino mimado a quem as excessivas permissões de sua mãe o fizeram um sujeito sem limites. De modo oposto ao relatado em relação às gatas e suas crias, que ensinam seus filhotes a serem independentes no futuro, a senhora Bonilla cobre o filho de “exceso y asfixia”, permitindo que o mesmo, com quase oito anos, sinta receio de ir à escola e possa “perder sus privilegios de niño mimado” (PACHECO, 1990, p. 20). Artemio, um amigo de Angelito, quando teve o pedido de copo de um água negado, pelo simples fato da senhora Bonilla proibir a entrada de colegas de seu filho em casa, disse para Angelito: “cómo eres díscolo nomás por ser tan rico. Pero no le andes buscando los tres pies al gato porque ya verás” (PACHECO, 1990, p. 20). O discurso de Artemio parece demonstrar conhecimento do interesse de Angelito em ter um gato com três pés e, mais adiante, no conto, critica o menino por seu caráter impiedoso. A partir dessa conversa, Angelito não hesita em pedir a sua mãe tal proeza. Depois de muita euforia, consegue que sua mãe compartilhe da idéia e veja uma saída possível para realizar o desejo do menino: cortar uma das patas de Cleo, uma gata branca recebida de presente pela avó do garoto. Pacheco novamente coloca o leitor numa situação de desconfiança na confrontação homem x gato, ao tentar fazer com o mesmo descubra aquele mais cruel. Para permitir que o leitor compartilhe da opinião do autor do texto, destaca a resposta do senhor Bonilla a sua mulher quando esta lhe informa sua decisão para o pedido de Angelito: El señor Bonilla golpeó la mesa. - ¿Estás loca? ¿Eso inculcas a tu hijo? Eres un monstruo de crueldad. ¿No te bastas el daño que le hiciste al pobre animal ahogándole a sus gatitos? ¿Acaso por ser gata no siente las cosas? (PACHECO, 1990, p. 21) 250 Nesse momento da narrativa, já sabemos a mensagem que Pacheco quer denunciar: a de uma sociedade cruel, repleta de maldades e de falta de honestidade. Uma sociedade capaz de culpar os outros (nesse caso a vida do gato) em prol de satisfazer pequenos desejos. Todos os adjetivos empregados por Pacheco para fazer alusão às maldades do gato, agora também se aplicam a Angelito e sua mãe. O autor nos faz ver o gato como um ser superior, remarcando a presença da ironia no conto. Após a cena anterior, o senhor Santiago sentindo-se incomodado com a situação, ordena que Angelito se retire e este vai em direção a um quarto da casa até que começa a gritar e chorar após a gata arranhar-lhe o rosto. Sua mãe, ao ver o menino com o rosto ensangüentado, acende o ódio em seu interior e resolve novamente açoitar o animal, o qual como forma defesa, acaba também por arranharlhe a pálpebra. Nesse momento, a narrativa de Pacheco ganha certo dinamismo e provoca o interesse do leitor em desvendar o final da trama. A mãe do menino recorre a José, uma espécie de mordomo da casa, para que ele pegue a gata, como uma forma de fazer justiça, e menciona: “ahora sí, mi hijito, vas a tener tu gato de tres pies”, porém o empregado nega o pedido suplicando: Señora, por la Virgencita del Carmen, usted sabe que la sirvo en lo que le guste y mande, pero no me ordene que mate un gato porque eso trae siete años de mala suerte. Mi comadre ahorcó uno y al poco tiempo se le murieron todos sus hijitos. (PACHECO, 1990, p. 21-22) Essa é a última pista fornecida por Pacheco ao leitor. Motivado por incertezas, mas pensando na recompensa oferecida pela senhora Bonilla, José sobe ao terraço portando uma vassoura para acertar a gata que estava escondida num arbusto. A premonição advertida pelo empregado momentos antes se cumpria fatalmente. O solo do terraço não sustentou seu peso e José caiu ensangüentado diante da outra empregada da casa e da indiferença de Angelito e sua mãe, que pouco se importaram com o fato. Enquanto isso, Cleo deixa a marca de suas patinhas na poeira que se formou no chão da casa dos Bonilla e sai tranqüilamente. As três partes do texto não devem ser lidas de modo independente, porém como componentes de um só conto, um tríptico 251 composto por ironias. O texto avança até levar-nos ao final do conto e a compreender a crítica à conduta humana elaborada pelo autor por meio do recurso da ironia, procurando um leitor partícipe e capaz de descobrir e reconstruir os sentidos da ironia. Podemos afirmar que a minificção “El parque hondo” traz semelhanças se a comparamos ao conto analisado. O tema da crueldade do homem e o desfecho terminando com a fuga do animal repetem-se nos dois contos. Em “El parque hondo”, Arturo, uma criança de nove anos e protagonista do relato, mora com Florencia, sua tia e cartomante, porque foi abandonado pelos pais. Ao receber uma cliente em casa, Arturo escuta sua tia comentar sobre seu passado: Arturo cree que su mamá se fue al cielo y que su papá lo visita sólo de cuando en cuando porque es piloto aviador y siempre anda de viaje. A los niños no se les puede contar la verdad. Ricardo tiene una nueva familia y lo anterior, gracias a Dios, quedó borrado. El chico no es mayor problema. Vive conmigo desde que su madre lo abandonó y, ya ve usted, lo estoy educando como formé a mi hermano (PACHECO, 2000, p. 14) Florencia demonstra ter preocupação no cuidado com o menino, porém, mais adiante, revela “Mi única compañía es mi gatita, porque Arturo es un ingrato y ni siquiera me dirige la palabra...” (PACHECO, 2000, p.14). Já Arturo pensa o contrário, pois acredita que sua tia só encontra tempo para a gata. Arturo sofre consigo da solidão: El mundo se reducía a Florencia, la casa de un piso, la gata que no se deja tocar, la primaria ‘Juan A. Mateos’ y Rafael, su condiscípulo, su amigo, el que lo acompañaba en las funciones de cine y la pesca furtiva en el estanque del parque hondo (PACHECO, 2000, p. 13) Diferente de Angelito, Arturo não possui uma família nos moldes tradicionais e sente ciúmes da gata de sua tia: “Es horrible la gata. No sé cómo la quiere tía Florencia” (PACHECO, 2000, p. 14). A tia e a gata formam uma unidade, em que o menino é visto como um intruso. Para amenizar a solidão do menino, o narrador expõe a tentativa de Arturo de ter um animal de estimação. Arturo leva um sapo e um rato branco para casa, mas não tem êxito nas duas tentativas, pois, na primeira sua tia lança o sapo contra a lareira e na segunda a gata acaba matando o rato, motivo de satisfação para Florencia. 252 Florencia sinaliza sinais de crueldade e insensibilidade, porque não aceita carinhosamente a Arturo, muito menos realiza suas vontades. Ao conversar com uma de suas clientes, demonstra mais sinais de sua personalidade. Sabemos que o menino não vê sua mãe há sete anos e seu pai o visita quando pode. Para Arturo sua mãe havia morrido há pelo menos sete anos, mas, ao escutar a conversa de sua tia, descobre que ela escondeu durante os últimos anos a verdadeira história de sua vida. O clima misterioso e de meias verdades é uma característica particular dos relatos do Pacheco. Para Florencia “a los niños no se les puede decir la verdad”. Arturo, portanto, é fruto de uma união ilícita, foi abandonado por seus pais por ser considerado um martírio. O ponto central da trama não está no melodrama da relação da tia com o menino, mas sim na gata, que se vê doente e sem salvação. Florencia não encontra outro remédio senão o sacrifício. Pede para Arturo levá-la ao consultório, pois só assim diminuiria seu sofrimento e de certa maneira o da gatinha: No quiero que siga sufriendo [...] Florencia la besó, la acarició y la cubrió de lágrimas. Incómoda ante la presencia de Rafael, se sintió obligada a explicar: - No saben lo que siento. Me ha acompañado por más de diez años. No volverá a haber otra igual. La acomodó entre algodones en una bolsa de henequén (PACHECO, 2000, p. 15) Arturo tem a companhia de seu amigo Rafael nessa penosa tarefa. Ambos caminham rumo ao consultório e passam pelo “parque hondo”, descrito na primeira cena do relato. Rafael cumpre uma função diabólica ao lado de Arturo, pois tenta corromper seu caráter. Sugere a Arturo que ambos fiquem com o dinheiro e soltem a gata: “- ¿Cuánto traes? / - ¿Todo eso te dio? / - ¿Sabes qué se me ocurre?: dejarla en el parque y quedarnos con el dinero / - Pero si ya está muriendo ¿No la ves? Haremos una obra de caridad” (PACHECO, 2000, p. 15). As dúvidas envolvem a Arturo, que nega por medo de um possível retorno da gata: “¿Te imaginas si revive y vuelve? Mi tía me mata”. O medo de enfrentar a culpa diante de sua tia gera a dúvida no personagem, apesar disso ele diz “te juro que me da lástima la gata”. Rafael tenta corromper seu amigo de todas as formas e o grau de intensidade das maldades aumenta conforme as dúvidas de Arturo. 253 Primeiro, tenta fazer com que mude de opinião a partir de sonhos consumistas: “Imagínate lo que podemos hacer con ese dinero: ir al cine, a remar en Chapultepec, comprar toda clase de dulces y de refrescos. En fin...” (PACHECO, 2000, p. 16). Depois propõe, na seguinte ordem, dar o felino de presente para alguém, afogá-lo e enforcá-lo. À medida que sugere as possibilidades, Rafael vai conseguindo influenciar Arturo. O menino vai aos poucos concordando com a idéia de Rafael para se vingar do carinho dado pela tia à gata e a indiferença de Florencia para com ele. O autor emprega algumas frases em itálico para indicar a voz interior do protagonista. Seria como a voz de seu inconsciente pedindo que aceite a proposta de Rafael: “Es mala. Florencia la quiere más que a mí […] No debo tener miedo. Mejor acabar con ella de una vez” (PACHECO, 2000, p. 16). Rafael encontra um pedaço de concreto para acertar um golpe certeiro na cabeça da gata. Arturo retira a gata da sacola para acomodála em suas mãos, mas parece não estar seguro de seus atos, pois “[...] se estremeció de frío y chasqueó los dedos”, além disso, relata “Mi tía es capaz de todo si sabe que la desobedecimos y nos robamos el dinero” [...] ¿No hay otro remedio? (PACHECO, 2000, p. 16-17). A gata parece ter pressentido o perigo, desperta, cai ilesa, corre e se esconde no bosque do “parque hondo”. Rafael e Arturo buscam cansativamente entre as árvores, mas a gata não aparece. Arturo teme o retorno da gata a sua casa, teme encontrá-la no sofá. Remoído pela culpa, não consegue confessar a verdade, Arturo, ao chegar a casa e encontrar sua tia jogando cartas e chorando, justifica a demora pelo excesso do número de pessoas no consultório. O menino tem uma noite infernal porque o remorso não lhe permite dormir nenhum instante. O pensamento de Arturo é destacado novamente pelo autor: Qué va a pasar cuando Florencia se entere de que no llegamos al consultorio. No creerá nunca que la gata escapó. Dirá: ‘Tú siempre la odiaste. Fue tu venganza. No te perdonaré nunca. Ese niño es malo. Él te aconsejó. Ustedes la mataron para hacerme daño y robarme el dinero. Maldito, hijo de tu madre tenías que ser. Ahora verás quién soy yo […] Por culpa de Rafael estoy en un lío del que nadie me sacará. (PACHECO, 2000, p. 18) 254 O retorno da gata é a única esperança para Arturo. Pensava inúmeras desculpas para apresentar a sua tia, como por exemplo, faltoulhe coragem para levá-la para matar, a gata reviveu e decidiu deixá-la no parque; também gostava do animal. Finalmente, pegou o dinheiro e resolveu rasgá-lo e lançá-lo da janela, porque, dessa forma, estaria se livrando da culpa e do gesto selvagem. No final da narrativa, Arturo quer fugir daquela casa assim como o vento ao dispersar os pequenos papéis. Pensa que o melhor seria sair de casa e não retornar, mas qual seria seu destino? Arturo pensa consigo “Pero ¿adónde iré si no sé hacer nada y ni siquiera conozco bien la ciudad? (PACHECO, 2000, p. 18). Arturo pode não conhecer a cidade grande porque sua vida sempre se limitou a três espaços: a escola, a casa e o “parque hondo”, onde, neste último, o menino demonstrou sentir medo e serviu de local de fuga para a gata e seu futuro incerto, misterioso como a maioria dos textos de Pacheco. No entanto, os sentimentos cruéis demonstrados por Rafael e por Florencia, o desprezo da tia e a solidão anunciaram a vivência de Arturo diante de alguns dos dilemas da cidade moderna. 3.2.2. Las Batallas en el desierto: México a caminho da Modernidade A memória, na qual cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente e ao futuro. Jacques Le Goff (2003) Várias são as temáticas presentes no romance curto de Pacheco, porém neste capítulo destacaremos a imagem do México pósrevolucionário, em especial a época que consolidou o movimento social de 1910 e as mudanças físicas e sociais ocorridas na cidade e na mentalidade de seu povo mediante a presença da modernidade. “Me acuerdo, no me acuerdo: ¿qué año era aquél?” Desse modo, inicia o romance demarcando uma incerteza cronológica em relação à época enunciada pelo narrador do texto. Mesmo sem uma exatidão do 255 contexto referido por Pacheco, o autor retrata o México do avanço econômico alcançado pelo primeiro civil a chegar à presidência, Miguel Alemán Valdés, que governou entre 1946 e 1952. Apesar de todo crescimento na economia229, o governo também foi acusado por esquemas de corrupções e excesso de poder: La cara del Señorpresidente en dondequiera: dibujos inmersos, retratos idealizados, fotos ubicuas, alegorías del progreso con Miguel Alemán como Dios Padre, caricaturas laudatorias, monumentos (PACHECO, 1981, p. 10) […] Qué importa […] si bajo el régimen de Miguel Alemán ya vivimos hundidos en la mierda (PACHECO, 1981, p. 10) O narrador introduz desde o início da narrativa as imagens de suas recordações do passado e da história. Ao mesmo tempo em que parece fornecer uma informação precisa, em seguida acaba por mudar de opinião. Acreditamos que esse recurso funcione como uma forma de mostrar a oscilação das suas lembranças. Sua memória consegue resgatar muitos detalhes e trazer para o momento da leitura as imagens daquele passado: os objetos e produtos em uso nos anos quarenta, as referências à Guerra, a derrota eleitoral de Miguel Henríquez Guzmán e outros detalhes, cuja função permite ao leitor compartilhar uma visão do passado com informações precisas de acontecimentos locais, nacionais e estrangeiros. A narrativa constrói-se a partir da memória do narradorpersonagem Carlos, que recorda as lembranças de infância e adolescência desde o local onde viveu todo esse período, na Colônia Roma: “Ciudad en penumbra, misteriosa colonia Roma de entonces. 229 No período do governo de Alemán, o Campus Central da Cidade Universitária da UNAM foi construído, junto a conjuntos habitacionais de Juárez e Alemán, na capital mexicana. Foi grande incentivador do Turismo na região, principalmente, no balneário de Acapulco, com vistas ao desenvolvimento do país e o estabelecimento de contatos. Incentivou o desenvolvimento industrial do país, aumentou a malha ferroviária, melhorou a condição das ferrovias e das escolas e incentivou projetos de irrigação rural. Para alcançar tais avanços, contraiu empréstimo com os Estados Unidos no ano de 1947. Afirmou acordos de paz com algumas nações após a Segunda Guerra Mundial. Estabeleceu relações com o governo norte-americano em prol dos trabalhadores ilegais mexicanos nos Estados Unidos. No entanto, seu governo foi acusado por esquemas de corrupção, fatos que permanecem até hoje no imaginário coletivo mexicano. Foi uma época em que os políticos enriqueceram através de contratos do governo federal com empresários estrangeiros, relação essa que perdura até hoje. In: VASCONCELOS (1975). 256 Átomo del inmenso mundo” (PACHECO, 1981, p. 30). A partir de uma linguagem simples, o narrador adulto revela a complexidade da vida na Cidade do México. Retrata as transformações ocorridas em seu país e em sua cidade como o processo acelerado de industrialização, a expansão da infraestrutura física e de serviços, o crescente processo de transculturação e a mudança de mentalidade e valores dos habitantes. O período retratado também é o do pós-guerra evidenciado em algumas passagens do texto. O discurso de Carlos adulto está impregnado de críticas e de referências históricas, como por exemplo, a dor causada pela explosão da bomba atômica. Pacheco retrata com tanta naturalidade as imagens do México daquele momento que os leitores dos anos quarenta podem acabar comprovando a veracidade ou não das referências históricas da obra. O leitor encontra em suas páginas marcas de produtos comerciais, nomes de filmes e programas de rádio, costumes, dados e outros. Nesse cenário, o narrador descreve a influência externa dos domínios da urbe e seu processo de modernização tecnológica: o excesso de propagandas de produtros de outros países, a circulação de veículos americanos, o crescente uso do spanglish pela classe média e outros, além dos surtos de poliomielite: Ya había supermercado pero no televisión, radio tan sólo [...] Circulaban los primeros coches producidos después de la guerra: Packard, Cadillac, Buick, Chrysler, Mercury, Hudson, Pontiac, Dodge, Plymouth, De Soto (PACHECO, 1981, p. 9) […] Decían los periódicos: el mundo atraviesa por un momento angustioso. El espectro de la guerra final se proyecta en el horizonte. El símbolo sombrío de nuestro tiempo es el hongo atómico […] Mientras tanto nos modernizábamos, incorporábamos a nuestra habla términos que primero habían sonado como pochismos en las películas de Tin Tan y luego insensiblemente se mexicanizaban: tenquíu, oquéi, uasamara, sherap, sorry, uan móment pliis. Empezábamos a comer hamburguesas, páys, donas, jotdogs, malteadas, áiscrim, margarina, mantequilla de cacahuate. La cocacola sepultaba las aguas frescas de jamaica, chía, limón (PACHECO, 1981, p. 11-12) […] Hay que blanquear el gusto de los mexicanos (PACHECO, 1981, p. 12) 257 [...] Fue el año de la poliomielitis: escuelas llenas de niños con aparatos ortopédicos; de la fiebre aftosa: en todo el país fusilaban por decenas de miles de reses enfermas; de las inundaciones: el centro de la ciudad se convertía otra vez en laguna, la gente iba por las calles en lanchas (PACHECO, 1981, p. 10) A reflexão sobre o sentido da história também está presente no romance. Se por um lado, o autor apresenta certos dados como precisos e verdadeiros, por outro conduz o leitor a duvidar de algumas referências do passado, inclusive, porque não expressa de modo direto a data dos acontecimentos. Essa atitude crítica de retratar fatos do passado é uma característica constante no conjunto da obra de Pacheco (VERANI, 1994), independente do gênero, inclusive confirmada pelo escritor em sua coluna Inventario. Claro que a presença desses dados históricos na obra de Pacheco não se explica como uma mera recordação, mas sim, principalmente, com o interesse de reforçar o papel do leitor como crítico do seu próprio meio. Não são poucos os estudos que levantam a presença da história na obra de Pacheco. Aqui resgatamos três dessas leituras com o fim de buscar a explicação para tal vinculação na literatura pachequiana. O escritor e pesquisador mexicano Ignacio Trejo Fuentes (1994), num estudo sobre a prosa de Pacheco, refere-se a três motivos recorrentes: a lembrança por uma cidade antiga, habitável, ingênua comparada à atual; a nostalgia por uma infância e adolescência inocente e uma constante reflexão sobre a identidade mexicana através da história. Já a pesquisadora Cynthia Steele (1994), enuncia que em Batallas, há de modo nítido a visão de história de Pacheco e uma tentativa de explicar a crise política e econômica dos anos oitenta. O crítico e escritor Hugo Verani (1994) afirma como constante em Pacheco a passagem do tempo e os aspectos socioculturais do México moderno. As palavras dos críticos permitem que enxerguemos o romance de Pacheco como denúncia de momentos e situações significativas do período em questão. A vinculação de Batallas com a história reflete as ambigüidades típicas de uma obra literária, que dificilmente retrata de modo fidedigno a 258 realidade. O trabalho de criação artística de Pacheco demonstra a necessidade de envolver o leitor na reconstrução do passado e a presença do mesmo no romance. Pacheco (1985, p. 50) acaba definindo sua narrativa como histórica230 ao mencionar: La novela ha sido desde sus orígenes la privatización de la historia. Gracias a ella la gente común tomó por asalto el mundo de las letras como protagonistas y como autores. Historia de la vida privada, historia de quienes no tienen historia, la novela habla de un ‘aquí’ y un ‘ahora’ que necesariamente son un ‘allá’ y un ‘entonces’, porque sólo es narrable lo que está lejos, lo que ya ha pasado. En este sentido todas las novelas son novelas históricas Além de possibilitar a classificação de seu romance como histórico do ponto de vista da criação literária, o pensamento de Pacheco permite estabelecer um paralelo entre a ficção e a história, tema bastante problematizado por teóricos, historiadores e escritores. Alguns críticos defendem certa proximidade, outros o total distanciamento. Segundo o filósofo francês Paul Ricoeur (1996, p. 780), A reconfiguração do tempo mediante a história e a ficção se concretiza devido aos empréstimos que os dois modos narrativos estabelecem reciprocamente. Estes empréstimos consistirão: que a intencionalidade histórica somente se realize incorporando a seu objetivo os recursos de formalização da ficção que derivam do imaginário narrativo, enquanto que a intencionalidade do relato de ficção produz seus efeitos de detenção e de transformação do obrar e do padecer somente assumindo simetricamente os recursos de formalização da história que lhe oferecem as tentativas de reconstrução do 231 passado efetivo 230 Conforme Menton (1993, p. 44), Pacheco emprega, em 1985, o termo ‘novo romance histórico’ para fazer referência ao seu romance Morirás lejos, em que o autor aproveitase da dificuldade de conhecer o passado para convertê-lo numa fonte de inspiração para sua ficção. Dessa forma, o autor enfatiza a vida cotidiana dos personagens históricos, transformando-os em seres mais humanos. O surgimento desse estilo nasce da necessidade de se realizar uma releitura da história, cujo objetivo é mudar a visão perpetuada pela história oficial. Em 1949, Alejo Carpentier no romance El Reino de este mundo já havia se referido ao gênero. O escritor uruguaio Ángel Rama o emprega em 1981, o mexicano Juan José Barrientos em 1983 e o venezuelano Aléxis Márquez Rodríguez em 1984. Segundo Pacheco, “la Historia con mayúscula no tiene forma ni principio ni fin. Lo que llamamos Historia es la historiografía, su expresión escrita. Lo que no está escrito es como si nunca hubiera sucedido. Y aquí se muestra en su verdadera dimensión la frase de que ‘una imagen vale más que mil palabras” (BRAVO VARELA, 2009, p. 68). 231 “La reconfiguración del tiempo mediante la historia y la ficción se concretiza gracias a los préstamos que los dos modos narrativos se hacen recíprocamente. Estos préstamos consistirán en esto: que la intencionalidad histórica sólo se realiza incorporando a su objetivo los recursos de formalización de ficción que derivan del imaginario narrativo, mientras que la intencionalidad del relato de ficción produce sus efectos de detección y de transformación del obrar y del padecer sólo asumiendo simétricamente los recursos 259 Na concepção do historiador e romancista mexicano Antonio Rubial García (2000, p. 46), para se considerar uma obra literária como histórica É válido construir e reconstruir personagens em situações possíveis e criar interações que não ocorreram [...] mas a recriação de época e o argumento devem estar mais presos a 232 documentação que reflete a realidade que se pretende narrar Cabe destacar a construção dos personagens literários e a realidade ficcional da obra. Podemos dizer que Pacheco tem a mesma idade de Carlitos, no momento em que ocorrem os acontecimentos, porém isso não nos permite classificar a obra como autobiográfica ou, ainda, afirmar que o texto é totalmente fiel à realidade, apesar de o autor ter vivenciado aquele contexto. Identificamos na obra de Pacheco, de modo geral, que seus personagens se constroem sempre à base de elementos fornecidos compartilhadas por pelo vários real, sejam indivíduos da essas sociedade características ou mesmo particulares. Os personagens de Pacheco representam o homem comum do dia-a-dia, mas sofrem manipulações naturais por parte do artista. Independente do ponto de vista do escritor para sua obra, mesmo que a considere histórica, não podemos negar o caráter ficcional de qualquer obra de arte, pois de acordo com a escritora espanhola Esther Tusquets (1990, p. 111) “no momento em que contamos um acontecimento já nos estamos distanciando da realidade objetiva: estamos fantasiando, pondo ordem, inventando233”. Acreditamos que o resgate do passado é uma tarefa problemática dentro da obra de arte, já que implica certos fatores, como a posição ou o lugar de enunciação do narrador, o sentido do tempo e da memória. O acontecimento histórico principal da obra de Pacheco está no processo de modernização industrial ocorrido com o alemanismo. Antes dos anos quarenta do século XX, sob o comando de José de la Cruz de formalización de la historia que le ofrecen los intentos de reconstrucción del pasado efectivo”. [Tradução nossa] 232 “Es válido construir y reconstruir personajes en situaciones posibles y crear interacciones que no sucedieron […] pero la recreación de época y el argumento deben estar lo más apegados a la documentación que refleja la realidad que se pretende narrar”. [Tradução nossa] 233 “En el momento mismo en que contamos un acontecimiento nos estamos alejando ya de la realidad objetiva: estamos fantaseando, poniendo orden, inventando.” [Tradução nossa] 260 Porfirio Díaz, também se encontrou um esforço em prol do desenvolvimento do país. Díaz também se empenhou em contribuir para o crescimento da indústria, do aumento dos serviços públicos e da comunicação interna, decorrentes da tarefa modernizadora do país. O narrador retrata a lembrança da cidade dos tempos de Porfirio Díaz: La plaza Ajusco adonde me llevaban recién nacido a tomar sol y en donde aprendí a caminar. Sus casas porfirianas, algunas ya demolidas para construir edificios horribles. Su fuente en forma de trébol, llena de insectos que se deslizaban sobre el agua (PACHECO, 1981, p. 33) Carlos, já envolto pela atmosfera da vida numa cidade moderna e com inúmeros agravantes, narra com saudade da capital do país antes da mudança sofrida pelo espaço com a construção de arranha-céus e a falta de zelo com o patrimônio público. Após Porfirio Díaz, os vestígios da luta armada para fortalecer os objetivos da Revolução Mexicana e os desdobramentos da Segunda Guerra Mundial não contribuíram para a manutenção do desenvolvimento industrial do país. Alemán ocupou a cadeira presidencial após o final da Segunda Guerra e devido à proximidade com o país vencedor, os Estados Unidos, converteu-se no “mister amigo” por facilitar negociações e compartilhar certos ideais. Os cenários da narrativa são descritos com precisão de modo a permitir ao leitor a reconstrução exata de certas imagens do México daqueles anos; a nostalgia perpassa a obra. O trabalho de linguagem de Pacheco parece fotografar a realidade daquele período de maneira a aproximar o leitor da mensagem do relato. O narrador enuncia, a partir de seu presente, o contexto de uma cidade que se transformou numa megacidade e por isso sofre as consequências dessa transformação, observadas na falta de comunicação entre seus habitantes, na crescente solidão, na mudança de valores sociais e na ineficiência das instituições sociais. As conseqüências da vizinhança com os Estados Unidos e a modernização do país são as questões centrais do romance de Pacheco234, evidentes na própria vida do protagonista e narrador da 234 No conto “La catástrofe”, presente no livro La Sangre de Medusa, Pacheco também se refere aos anos de pós-guerra e ao grande sonho modernizador do governo do presidente Alemán, momentos decisivos na história mexicana. No relato, Pacheco 261 história. Carlos sofre preconceito, na casa de Harry Atherton, com quem estabelece uma breve relação de amizade, por conta de seu comportamento no jantar: Voy a darte un consejo: aprende a usar los cubiertos. Anoche comiste filete con el tenedor del pescado. Y no hagas ruido al tomar la sopa, no hables con la boca llena, mastica despacio trozos pequeños (PACHECO, 1981, p. 25) Este ato simboliza, na narrativa, a subordinação perante o norteamericano, enquanto que em sua amizade com Jim (filho de um norteamericano e uma mexicana), o autor destaca a inferioridade de Carlitos diante de um compatriota, mas que teve acesso à cultura do norte. As palavras abaixo retratam a presença da cultura norte-americana nas ações da família de Atherton a partir do olhar de Carlitos: Millionario frente a Rosales, frente a Harry Atherton yo era un mendigo. El año anterior, cuando aún estudiábamos en el Colegio México, Harry Atherton me invitó una sola vez a su casa en Las Lomas: billar subterráneo, piscina, biblioteca, despensa, cava, gimnasio, vapor, cancha de tenis, seis baños (¿Por qué tendrán tantos baños las casas ricas mexicanas?). Su cuarto daba a un jardín en declive con árboles antiguos y una cascada artificial. A Harry no lo habían puesto en el Americano sino en el México para que conociera un medio totalmente de lengua española y desde temprano se familiarizara con quienes iban a ser sus ayudantes, sus prestanombres, sus eternos aprendices, sus criados (PACHECO, 1981, p. 25) Carlos conhece a mãe de Jim, Mariana, por quem se encanta de imediato porque a mesma é representada como jovem, bela e sensual, o protótipo da mulher moderna oposto à imagem típica da mulher mexicana tradicional. Pelas palavras de Carlinhos vemos como ele constrói a imagem da mãe de Jim, que se opõe claramente à sua mãe. Além disso, também retrata sua surpresa ao presenciar um convívio235 mais moderno entre seu amigo e Mariana: aborda o tema de como os ricos acabam entregando o país às tropas e ao capital estrangeiro, por conta do sentimento de derrotismo presente na sociedade mexicana. Segundo Paz, os mexicanos aprendem, desde pequenos, a aceitar as tristezas e derrotas com dignidade. Já o escritor Carlos Monsiváis resume esse complexo de inferioridade na possível “postración en el subdesarrollo” do país. Pacheco busca na história as causas dessa sensação e encontra nela a explicação para suas hipóteses, principalmente, na dependência, primeiro, a Espanha, e depois aos Estados Unidos. 235 No contexto histórico retratado no relato, ainda estava vigente a distinção de costumes entre a capital e as províncias. O modo de falar dos pais de Carlitos (uso de ‘usted’ pelas famílias procedentes do interior) e os costumes culinários são recursos empregados por Pacheco para reforçar essas diferenças. 262 Nunca pensé que la madre de Jim fuera tan joven, tan elegante y sobre todo tan hermosa. No supe qué decirle. No puedo describir lo que sentí cuando ella me dio la mano. Me hubiera gustado quedarme allí mirándola (PACHECO, 1981, p. 27-28) […] Éramos tantos hermanos que no podía invitar a Jim a mi casa. Mi madre siempre arreglando lo que dejábamos tirado, cocinando, lavando ropa; ansiosa de comprar lavadora, aspiradora, licuadora, olla express, refrigerador eléctrico (el nuestro era de los últimos que funcionaban con un bloque de hielo cambiado todas las mañanas). En esta época mi madre no veía sino el estrecho horizonte que le mostraron en su casa (PACHECO, 1981, p. 22) […] Oye ¿Cómo dijiste que se llama tu mamá? Mariana. Le digo así, no le digo mamá. ¿Y tú? No, pues no, a la mía de usted; ella también les habla de usted a mis abuelitos. No te burles Jim, no te rías (PACHECO, 1981, p. 28) O retrato da mãe do narrador denuncia a servidão a que se submeteu a mulher mexicana dos anos quarenta e cinquenta. Devido ao trabalho intenso desenvolvido em casa, sua mãe aspira às facilidades dos aparelhos eletrônicos intensificados pela era do consumismo. Segundo o sociólogo italiano Mauro Magatti (2009, p. 8), “é nas grandes áreas urbanas que se concentram as funções mais avançadas do capitalismo”. O próprio sistema capitalista é quem dita os moldes culturais a que os sujeitos devem se encaixar. Quando isso não ocorre, sofrem os preconceitos da sociedade moderna que aparenta pregar a liberdade do homem. Para o sociólogo alemão Georg Simmel (1998), o dinheiro tem um papel decisivo no sistema capitalista, porque seria um facilitador entre o homem e seus desejos; uma espécie de “Deus da modernidade”. Ainda de acordo com o pesquisador, “forma-se a idéia de que toda a felicidade e toda satisfação definitiva na vida são ligadas, intrinsecamente, à posse de certa forma de dinheiro” (SIMMEL, 1998, p. 33). O dinheiro permite a independência do sujeito e torna-se o mediador das relações sociais. Há uma crítica de Carlos adulto em relação ao provincianismo de sua mãe. Nesse momento da narrativa, há um primeiro encontro de Carlitos com a modernidade, fazendo com que o mesmo pareça maior de idade. Outra aproximação, do ponto de vista material, foi sua reação ao ver os brinquedos de Jim: 263 Jim me enseñó su colección de plumas atómicas (los bolígrafos apestaban, derramaban tinta viscosa; eran la novedad absoluta aquel año en que por última vez usábamos tintero, manguillo, secante), los juguetes que el Señor le compró en Estados Unidos: cañón que disparaba cohetes de salva, cazabombardero, tanques de cuerda, ametralladoras de plástico (apenas comenzaban los plásticos), tren eléctrico Lionel, radio portátil. No llevo nada de esto a la escuela porque nadie tiene juguetes así en México. No, claro, los niños de la Segunda Guerra Mundial no tuvimos juguetes (PACHECO, 1981, p. 28) Interessante observar a crítica implícita no discurso de Carlitos, ao descrever os brinquedos de seu amigo, quase todos fazendo alusão ao contexto bélico, porém nenhum deles era comum no México daquele momento. O narrador também denuncia a imagem de uma infância proibida, quando se refere às crianças que foram privadas de brincar, no contexto da grande guerra mundial. A adoção de certos vocábulos em inglês, de alimentos e de marcas, referências já destacadas no início deste capítulo, confirmam a influência da cultura norte-americana e as transformações provocadas por elas na sociedade. O protagonista retrata, na primeira parte da narrativa, sua recordação da época chamada como o “mundo antiguo”, lugar da enunciação, aquele em cuja infância também já anunciava sinais de degradação, como percebemos em sua leitura, a qual estava muito influenciada pela opinião de seus pais: Era el mundo antiguo. Los mayores se quejaban de la inflación, los cambios, el tránsito, la inmoralidad, el ruido, la delincuencia, el exceso de gente, la mendicidad, los extranjeros, la corrupción, el enriquecimiento sin límite de unos cuantos y la miseria de casi todos. (PACHECO, 1981, p. 10-11) Esse retrato traçado pelo personagem pode ser entendido como o estado em que se encontrava o país antes do governo de Alemán. O narrador também critica a posição ditatorial da escola e, mais uma vez, acaba por levantar aspectos de transformação do espaço físico: Escribíamos mil veces en el cuaderno de castigos: debo ser obediente, debo ser obediente, debo ser obediente con mis padres y con mis maestros. Nos enseñaban historia patria, lengua nacional, geografía del DF: los ríos (aún quedaban ríos), las montañas (se veían las montañas). (PACHECO, 1981, p. 10) 264 Pelo levantamento dos diálogos e dos acontecimentos recuperados, somos levados a perceber a figura do narrador adulto que ratifica o discurso do menino, protagonista da trama. Existe uma relação constante entre Carlos, o que relembra, e Carlitos, aquele cujo passado é rememorado a partir das principais ações da época. Cada momento de vida do narrador simboliza um momento da história. O narrador adulto traz para a narrativa todas as experiências vividas e as mudanças pelas quais passou, inclusive, as ideológicas. Portanto, podemos afirmar que ao enunciar desde o presente também constam marcas da degradação do tempo no espaço da cidade contemporânea. O passado modela a nossa vida no presente e somos o que somos por conta disso e das informações recuperadas pela memória, corroborada pela escritura. As informações prestadas pela memória de Carlos permitem ao leitor construir certa fidelidade entre o real e a narração, pois somos capazes de reconhecer coerência em suas imagens e o fato ocorrido. Segundo Ricoeur (2003, p. 192): Qualquer que seja a falta originária da confiabilidade do testemunho, não temos em última análise, nada melhor que o testemunho para nos assegurar de que algo ocorreu, algo sobre o que alguém atesta conhecer em pessoa e que o principal, se não o único recurso às vezes, diferente de outras classes de documentos, segue sendo a confrontação entre 236 testemunhos . Durante todo o romance, apreciamos o conflito entre o presente do narrador, que se apóia na memória para trazer os fatos do passado, e o passado dos adultos daquele momento. Isso é evidente, principalmente, nas recordações permanentes da mãe de Carlitos, segundo ela, um tempo maravilhoso. A concepção de Ricoeur refere-se basicamente à história e nos permite contrapor seu pensamento ao romance, já que o autor de uma obra pode transmitir testemunhos de uma época, pelo simples fato de ter presenciado um acontecimento ou participado de uma ação, e o faz com o auxílio da memória. Ao ler um texto literário, somos 236 “Cualquiera que sea la falta originaria de fiabilidad de testimonio, no tenemos en último análisis, nada mejor que el testimonio para asegurarnos de que algo ocurrió, algo sobre lo que alguien atestigua haber conocido en persona, y que el principal, si no el único recurso a veces, aparte de otras clases de documentos, sigue siendo la confrontación entre testimonios”. [Tradução nossa] 265 levados por vezes a acreditar no discurso de certo personagem, apesar de sabermos que o mesmo pode não estar ajustado à realidade. Na passagem abaixo, temos uma recordação de Carlos, a partir do pensamento de Carlitos, logo após conhecer a mãe de Jim. Nesse fragmento, o leitor é capaz de perceber a consciência do narrador sobre a importância daquele dia em sua vida: Miré la avenida Álvaro Obregón y me dije: voy a guardar intacto el recuerdo de este instante porque todo lo que existe ahora mismo nunca volverá a ser igual. Un día lo veré como la más remota prehistoria. Voy a conservarlo intacto porque hoy me enamoré de Mariana. ¿Qué va a pasar? No pasará nada. Es imposible que algo suceda. ¿Qué haré? ¿Cambiarme de escuela para no ver a Jim y por tanto no ver a Mariana? ¿Buscar una niña de mi edad? Pero a mi edad nadie puede buscar a ninguna niña. Lo único que puede es enamorarse en secreto, en silencio, como yo de Mariana. Enamorarse sabiendo que todo está perdido y no hay ninguna esperanza. (PACHECO, 1981, p. 31) A memória ocupa um papel importante na vida do narrador, já que menciona “voy a guardar intacto el recuerdo de este instante”. Mas, nesse momento, o leitor pode questionar se tal consciência ocorre na infância de Carlitos ou de Carlos, que mais maduro, recorda os acontecimentos e lhes atribui o devido valor. Incomoda-nos pensar o fato de um menino da idade de Carlitos ter clareza para avaliar a importância do acontecimento e da memória. De acordo com Verani (1994, p. 264), a narrativa de Pacheco parece simples, porém o leitor deve ser capaz de observar a originalidade do texto, oculta basicamente nesse jogo de narradores, pois “[...] se escutam, constantemente indiferenciadas, a voz do adulto que comunica a visão madura dos fatos e a voz do menino incapaz de elucidar a situação vivida237”. Acreditamos que seja o narrador adulto o responsável por dotar de sentido a consciência do narrador pequeno ao tratar da história com olhar crítico. Pacheco expressa em sua narrativa o crescimento de Carlitos e o da própria cidade, onde ambos são arrastados pelas mudanças impostas pela modernização e pela globalização neoliberal: Sólo en el confinamiento entendemos que vivir es tener espacio. Hubo un tiempo feliz en que podíamos movernos, 237 “[...] se oyen, constantemente indiferenciadas, la voz del adulto que comunica la visión madura de los hechos y la voz del niño incapaz de dilucidar la situación vivida”. [Tradução nossa]. 266 salir, entrar y ponernos de pie o sentarnos. Ahora todo cayó (PACHECO, 1981, p. 64) A globalização acaba por romper as relações entre os sujeitos da cidade, as relações entre a família, os gestos mais humanos como um simples carinho ou um beijo desaparecem. A metrópole tenta sobreviver na constante mutação de suas formas e novos discursos em seu interior. A racionalidade é a única arma de defesa. Ao final do relato, o discurso do narrador resume a indiferença da vida cotidiana e a vontade de apagar da memória o passado de incerteza, dor e angústia: Qué antigua, qué remota, qué imposible esta historia. Pero existió Mariana, existió Jim, existió cuanto me he repetido después de tanto tiempo de rehusarme a enfrentarlo. Nunca sabré si el suicidio fue cierto. Jamás volví a ver a Rosales ni a nadie de aquella época. Demolieron la escuela, demolieron el edificio de Mariana, demolieron mi casa, demolieron la colonia Roma. Se acabó esa ciudad. Terminó aquel país. No hay memoria del México de aquellos años. Y a nadie le importa: de ese horror quién puede tener nostalgia (PACHECO, 1981, p. 67-68) Estudar a história não se resume somente à soma de informações sobre diferentes acontecimentos, muito menos esse é o papel do romance de Pacheco, mas também sobre a valorização dos registros do passado, seus elementos formadores, entre eles a memória. O texto literário funciona como uma mostra fornecida ao leitor para que esse busque o limite do narrado com o real; isto é, o romance vale como um registro simbólico. Interessa-nos destacar no discurso do narrador acima sua inquietude diante da impossibilidade de precisar sua história. Ao mesmo tempo em que o narrador revela uma leitura de um país repleto de problemas, projeta uma imagem de esperança de novos tempos, período marcado no discurso do narrador por meio de um ano específico, o de 1980. Vale ressaltar que um ano após foi a data de publicação da primeira versão da obra. O narrador revela sua imagem de cidade do futuro, que talvez fosse aquela esperada após o período de Alemán no poder: Para el impensable 1980 se auguraba – sin especificar cómo íbamos a lograrlo – un porvenir de plenitud y bienestar universales. Ciudades limpias, sin injusticia, sin pobres, sin violencia, sin congestiones, sin basura. Para cada familia una casa ultramoderna y aerodinámica (palabras de la época). A nadie le faltaría nada. Las máquinas harían todo el trabajo. Calles repletas de árboles y fuentes, cruzadas por vehículos sin 267 humo ni estruendo ni posibilidad de colisiones. El paraíso en la tierra. La utopía al fin conquistada (PACHECO, 1981, p. 11) O discurso do narrador adulto esconde uma dimensão crítica e um forte desengano, características do homem moderno, já que o contexto mexicano retratado era o da multiplicação dos meios de comunicação de massa e a sociedade de consumo. A visão retratada do futuro por Carlos assemelha-se à da propaganda, tanto política como publicitária, sendo essa última aquela dos sonhos de moradia ideal difundida pelos jornais e revistas, além da importação do modelo de vida dos Estados Unidos. O narrador demonstra o crescimento da cidade e o prestígio da figura de Alemán: Afortunadamente en México no había guerra desde que el general Cárdenas venció la sublevación de Saturnino Cedillo. Mis padres no podían creerlo porque su niñez, adolescencia y juventud pasaron sobre un fondo continuo de batallas y fusilamientos. Pero aquel año, al parecer, las cosas andaban muy bien: a cada rato suspendían las clases para llevarnos a la inauguración de carreteras, avenidas, presas, parques deportivos, hospitales, ministerios, edificios inmensos […] Por la regla general era nada más un montón de piedras. El presidente inauguraba enormes monumentos inconclusos a sí mismo. Horas y horas bajo el sol sin movernos ni tomar agua […] esperando la llegada de Miguel de Alemán. Joven, sonriente, simpático, brillante, saludando a bordo de un camión de redilas con su comitiva (PACHECO, 1981, p. 16) Em contrapartida, em várias cenas da narrativa, o governo de Alemán é duramente criticado. A mãe de Carlitos tece uma leitura da Cidade do México como um espaço capaz de corromper a honestidade e os bons costumes de seus habitantes, atribuindo a culpa à falta de medidas mais severas para punir tais culpados. Mas como almejar isso se o próprio sistema é considerado como corrompido? No cesaba de repetir mi madre, estábamos en la maldita ciudad de México. Lugar infame, Sodoma y Gomorra en espera de la lluvia de fuego, infierno donde sucedían monstruosidades nunca vistas en Guadalajara […] Siniestro Distrito Federal en que padecíamos revueltos con gente de lo peor. El contagio, el mal ejemplo. Dime con quién andas y te diré quién eres (PACHECO, 1981, p. 50) A mãe de Carlitos em outra crítica ao governo de Alemán238 nos fornece uma pista exata do momento, portanto, do contexto político, em que o narrador adulto recupera suas lembranças: 238 Após o término do governo de Alemán, o general Miguel Henríquez Guzmán disputa as eleições, em 1952, mas perde para Adolfo Ruiz Cortines, filiado ao Partido 268 Tanto quejarse de los militares, decía, y ya ven cómo anda el país cuando imponen en la presidencia a un civil. Si no le hubieran hecho fraude a mi general Henríquez Guzmán, México estaría tan bien como Argentina con el general Perón. Ya verán, ya verán cómo se van a poner aquí las cosas en 1952. Me canso que, con el PRI o contra el PRI, Henríquez Guzmán va a ser presidente. (PACHECO, 1981, p. 23) Em outro romance curto do autor, El principio del placer239, a trama acontece em Veracruz e também encontramos referências históricas dessa época. O narrador-personagem comenta no relato em forma de diário, suporte escolhido pelo autor para desenvolver a narrativa, a relação entre seu pai, o governo e o exército. Faz menção ao período do presidente Miguel Alemán e do seu sucessor, Ruiz Cortines240: Revolucionário Institucional (PRI) e ex-oficial e chefe da Secretaria de Governo do presidente Alemán (entre 1941 e 1944 e de 1948 a 1951). Em 1952, a vitória de Ruiz Cortines nas urnas levou inúmeros protestos reprimidos com violência em vários locais da República. O segundo lugar obtido por Miguel Henríquez Guzmán gerou intensos protestos dessa camada contrária ao monopólio do Partido Revolucionário Institucional. Apesar disso, os resultados em nada alteraram a realidade dos fatos e Guzmán retirouse da vida pública até sua morte, no ano de 1972. Ruiz Cortines, em seu mandato, apoiou a construção de redes ferroviárias, estradas, escolas, hospitais; promoveu a integração da capital com a região costeira; criou projetos para melhorar as condições de vida da sociedade rural; projetos de reforma agrária; mudou a constituição do país, possibilitando a mulher direitos iguais aos do homem, como o direito ao voto nas eleições federais a partir do ano de 1953; promoveu programas de habitação; o avanço da indústria de pequeno e médio porte; desenvolveu a indústria petroquímica e de energia nuclear; impulsionou a educação em todos os níveis, principalmente melhorando a estrutura e os equipamentos da Universidad Nacional Autónoma de México (VASCONCELOS, 1975). Porém, seu governo também passou por alguns momentos de crise como no ano de 1954, quando se dá a fuga de capital externo e a desvalorização da moeda nacional diante das estrangeiras. Ruiz Cortines, último presidente a participar da Revolução Mexicana, entrega o poder em 1958. A alusão e o desejo da mãe de Carlitos em idealizar um mandato em que Guzmán assumiria a presidência do país por fim não se concretizou na realidade. Cabe ressaltar que Guzmán deixou o PRI no ano de 1951 por desavenças ideológicas. O intelectual mexicano José Vasconcelos, no livro clássico Breve Historia de México, citado inclusive pelo narrador do texto de Pacheco como umas das leituras daquela época, define o PRI: “O partido oficial composto dos militares, os governadores, os presidentes e ex-presidentes, os generais, os chefes e autoridades de todo gênero, tem em suas mãos toda a riqueza do país e acredita que possa reger seus destinos, pelos séculos e séculos. ‘Em prol de um México melhor’ é o lema adotado, fazendo eco do jargão marxista. Sob a autoridade totalitária do PRI, o 238 país não conta sequer com um prefeito que não pertença ao partido oficial” (VASCONCELOS, 1975, p. 565). 239 No capítulo de análise do conto “La fiesta brava”, traçamos um comentário deste relato. Nesta narrativa, semelhante à Las Batallas en el desierto, Pacheco expõe através da voz do narrador-personagem as incertezas de uma sociedade em relação ao governo do presidente Ruiz Cortines. O diário escrito pelo personagem serve para anunciar o contexto histórico. As injustiças, a falsa moralidade, a hipocrisia, o poder e as diferentes manifestações da cultura popular caracterizam a cidade de Veracruz. 240 Outra crítica ao contexto histórico que merece ser pontuada: “Regresó mi padre. Aseguró que había ido a Jalapa a tratar de asuntos militares con el futuro presidente. (Se teme que haya una rebelión pues algunos generales lo acusan de ser un traidor que colaboró con los norteamericanos cuando invadieron Veracruz en 1914. Según mi 269 Las cosas van de mal en peor. Comí en Boca del Río con toda mi familia y Yolanda, una amiga guapísima de mis hermanas. En un momento en que mis padres fueron a otra mesa, para saludar a don Adolfo Ruiz Cortines, el viejito que dentro de pocas semanas será presidente (PACHECO, 1997, p. 35) Retomando a análise de Las Batallas en el desierto, a cidade no decorrer da narrativa vai assumindo sua posição como um personagem, demonstrando seu crescimento rumo a ser uma mega-cidade. As forças de produção capitalista, a promessa de novos empregos e de melhores serviços públicos são pontos positivos vislumbrados no discurso do narrador. A classe média tenta se adaptar ao processo de modernização e à inserção cada vez mais intensa de empresas norte-americanas. No entanto, a presença de camadas marginais na cidade ainda permanece: Si vas a Romita, niño, te secuestran, te sacan los ojos, te cortan las manos y la lengua, te ponen a pedir caridad y el Hombre del Costal se queda con todo. De día es un mendigo; de noche un millonario elegantísimo gracias a la explotación de sus víctimas. El miedo de estar cerca de Romita. El miedo de pasar en tranvía por el puente de avenida Coyoacán: sólo rieles y durmientes; abajo el río sucio de La Piedad que a veces con las lluvias se desborda (PACHECO, 1981, p. 14) Essa dupla permanência é notória na vida daqueles que habitam a cidade contemporânea, gerando um sentimento de medo241. O pensamento da mãe de Carlitos expressa o medo da classe média urbana ao se deslocar dentro de “sua” cidade. De acordo com Magatti (2009, p. 8-9), [...] enquanto os bairros centrais são valorizados e tornam-se objeto de grandes investimentos urbanísticos, outras áreas são corroídas pela degradação e tornam-se marginais. Quem possui recursos econômicos ou tem condições de deslocar-se tenta se defender criando verdadeiros enclaves. Os principais medos presentes no imaginário coletivo são decorrentes da própria humanidade. Num mundo social idealizado, na busca contínua pela segurança e pela proteção, os sofrimentos humanos surgem da própria fragilidade dos nossos corpos e do convívio com os demais. Conforme Bauman (2009, p. 55), “a segurança pessoal tornou-se muito importante, talvez o argumento de venda mais necessário [...] o familia, es una calumnia porque Ruiz Cortines, aunque no sea brillante ni simpático al estilo de Miguel Alemán, es un hombre honrado. Cuando menos no parece un ladrón como los demás […] Tiene casi sesenta años, como el cura Hidalgo y Venustiano Carranza, las momias más vetustas de la historia de México)”. (PACHECO, 1997, p. 36). 241 Buscamos desenvolver mais o tema no capítulo de análise do conto “Shelter”. 270 ‘capital do medo’ pode ser transformado em qualquer tipo de lucro político ou comercial”. Já que a vida na cidade está cada vez mais propensa ao perigo angustiante, um número maior de indivíduos busca áreas residenciais e espaços de lazer isolados. As micrópoles funcionam como um exemplo dessa busca por um refúgio separado da grande cidade. O isolamento é visto como uma alternativa para se obter qualidade de vida, pois se mantêm, teoricamente, fora da desconcertante e ameaçadora vida urbana. Além disso, os moradores de condomínios242, por exemplo, se isolam também de todos aqueles considerados socialmente inferiores. A cidade moderna constrói-se a partir da necessidade de proteção individual. Segundo Bauman (2009, p. 42), a proposta desses espaços vetados “é a de claramente dividir, segregar, excluir, e não criar pontes, convivências agradáveis e locais de encontro, facilitar as comunicações e reunir os habitantes da cidade”. O medo transforma-se numa fonte do capitalismo em nossa sociedade. Ao explorá-lo, os veículos de comunicação acabam por reforçar a sensação de caos em nossas atitudes. Não há como manter uma relação de convívio sem que o medo se expresse, porque o ser humano é alimentado, em grande parte, por diferentes emoções. O medo acompanha-nos e garante nossa sobrevivência física desde o início do percurso histórico e evolutivo. Por ser uma emoção, o medo não resulta de uma experiência obtida de modo passivo, mas sim da resposta do organismo provocada pela consciência de um perigo iminente ou presente, provocada pela vivência num espaço coletivo. O histórico empresarial do pai de Carlitos é descrito pelo narrador como de insucessos: Para colmo mi padre – despreciado, a pesar de su título de ingeniero, por ser hijo de un sastre – dilapidó la herencia del suegro en negocios absurdos como un intento de línea aérea entre las ciudades del centro y otro de exportación de tequila a los Estados Unidos. Luego, a base de préstamos de mis tíos 242 Para garantir essa vida tranqüila e segura, o sujeito busca diferentes proteções: cercas e muros ao redor das casas e dos condomínios, vigilantes diários, câmeras e outros aparelhos de segurança, guardas armados, carros blindados, roupas de proteção, aulas de autodefesa e outros. 271 maternos, compró la fábrica de jabón que anduvo bien durante la guerra y se hundió cuando las compañías norteamericanas invadieron el mercado nacional (PACHECO, 1981, p. 48-49) O pai de Carlos, dono de uma pequena fábrica de sabão, acaba vendendo-a a um poderoso consorcio de detergentes e se vê obrigado a aprender inglês para incorporar-se ao âmbito gerencial: “Mi padre había vendido la fábrica y acababan de nombrarlo gerente al servicio de la empresa norteamericana que absorbió sus marcas de jabones” (PACHECO, 1981, p. 58). Com isso, sua família aproxima-se do mundo capitalista. O narrador nos comenta a atitude de sua mãe em busca dos salões de beleza, já que aquela imagem de mulher mexicana tradicional, a que cuida da casa e do esposo, construída no início da narrativa, é repensada pela própria personagem ao observar as facilidades da vida moderna: “‘Alfonso y Marcos’, donde mi madre se hacía permanente y maniquiur antes de tener coche propio y acudir a un salón de Polanco” (PACHECO, 1981, p. 59). Observamos que a mãe de Carlitos já possui automóvel e se preocupa com sua imagem, em acompanhar a moda. O narrador revela a apreensão de seu pai para dominar a língua dos negócios do mundo capitalista: No conozco otra persona adulta que en efecto haya aprendido a hablar inglés en menos de un año. Ciertamente no le quedaba otro remedio. (PACHECO, 1981, p. 55) […] Acababa de aprobar, el primero en su grupo de adultos, un curso nocturno e intensivo de inglés y diariamente practicaba con discos y manuales (…) Muy de mañana, después del ejercicio y antes del desayuno, repasaba sus verbos irregulares – be, was/ were, been; have, had, had; get, got, gotten; break, broke, broken; forget, forgot, forgotten – y sus pronunciaciones – Apple, wordl, country, people, business – que para Jim eran tan naturales y para él resultaban de lo más complicado. (PACHECO, 1981, p. 47) Pacheco oferece esse exemplo ao leitor como meio de anunciar a reação da classe média às mudanças impostas pela globalização: “Mi padre no salía de su fábrica de jabones que se ahogaba ante la competencia y la publicidad de las marcas norteamericanas” (PACHECO, 1981, p. 23). A globalização trouxe graves consequências aos países latino-americanos. 272 Centramos nossa atenção, a partir deste momento do estudo, na figura de Mariana, personagem objeto de desejo do narrador e imagem de mulher moderna, oposto ao retrato de mulher mexicana do contexto da narrativa, e de demais ações decorrentes dessa relação intencional proposta por Pacheco como denúncia do desgaste do tempo243 nas grandes urbes. Pacheco em Las Batallas en el desierto parece adotar os pressupostos do movimento de arte popular Pop art, principalmente britânico e americano, cuja denominação se empregou pela primeira vez no ano de 1954244, pelo crítico inglês Lawrence Alloway, como forma de destacar o consumismo dos produtos da cultura ocidental, com destaque aos provenientes dos Estados Unidos. A estética Pop Art surge como um tipo de arte com o objetivo de se comunicar com o público através dos símbolos da cultura de massa e do próprio cotidiano, a partir das experiências do artista e do espectador. Nos Estados Unidos, a tendência ganha força nos anos sessenta com repercussão internacional. O mundo descobre os sinais da modernidade, da sociedade de consumo, dos meios de comunicação de massa e do uso intensivo de imagens corriqueiras da televisão, do cinema, dos cartuns e da publicidade, fundamentalmente importadas dos Estados Unidos. Os artistas da Pop Art tinham como objetivo problematizar os conceitos de arte e de cultura a partir da vivência num mundo em 243 Pacheco opina que a passagem do tempo ensina o homem a valorizar mais as coisas ao seu redor. O escritor chega a essa conclusão a partir da recordação do passado: “Quizás hay ahí cierto determinismo por ser yo de Ciudad de México, donde hemos vivido tan claramente ciertas destrucciones. Pasé toda mi vida por la Plaza de Insurgentes, que han destruido, pero ya no recuerdo qué había allí, la destrucción material se lo lleva todo” (ARGUELLES, 2009) 244 Pop Art é uma abreviação em inglês com o significado de Arte Popular. Encontramos indícios que, desde o final da década de 1950, um grupo de artistas já empregava símbolos e imagens do universo da propaganda dos Estados Unidos em temáticas de suas obras. A estética apropriou-se de temas de linha surrealista, cubista (collage) com a noção de fragmentação e do dadaísmo, de Duchamp. A Pop art consta como uma arte divergente ao expressionismo abstrato dominante até o momento da Segunda Guerra Mundial, porque envolve elementos e materiais da realidade na leitura do mundo. A arte é entendida como pertencente à grande massa e recebe novos contornos, cores intensas e tamanhos enormes. A escultura e a pintura aderem novas linguagens e materiais, como o gesso, o plástico, o lixo. Num primeiro momento, a estética parecia uma crítica e um rompimento com as belas artes, porém seu objetivo marca a necessidade de uma releitura da arte em que novas configurações estéticas sejam permitidas e possíveis. In: (HOHL, 2007). 273 constante processo de mudança e de reprodução de imagens e costumes importados. Mas, ao mesmo tempo em que produzia uma crítica, a Pop Art precisava dos símbolos de consumo, promovendo, inclusive, a profusão dos mesmos, como ocorreu, por exemplo, com o trabalho de serigrafia sobre tela de embalagens de latas de sopas Campbell e de garrafas de Coca-Cola, de Warhol. O mesmo artista apropria-se, em 1967, da imagem da atriz norte-americana Marilyn Monroe para denunciar que um mito também pode ser descartável assim como uma lata. Campbell (1968) e Coca-cola (1962), de Andy Warhol O romance de Pacheco está repleto de elementos denunciadores de uma provável aproximação a essa estética. O autor denuncia seu interesse pelas artes plásticas ao intitular o capítulo II como “Los desastres de la guerra”, uma possível alusão à uma série de gravuras do pintor espanhol Francisco de Goya, retratadas entre 1810 e 1815, em que o artista, em sua decadência física, denunciava as torturas cometidas na Guerra da Independência Espanhola. O principal retrato de alusão à Pop Art é o retrato da personagem Mariana, conforme comentaremos mais adiante neste capítulo. Outra referência significativa da proximidade do romance de Pacheco a tal estética artística é o trabalho do pai de Carlitos numa fábrica de sabão, como também já mencionamos neste capítulo. A expansão de mercado, proporcionada pelos detergentes norte- americanos, pode ser compreendida pela voz do narrador-personagem: 274 Anunciaban por radio los nuevos detergentes: Ace, Fab, Vel, y sentenciaban: El jabón pasó a la historia. Aquella espuma que para todos (aún ignorantes de sus daños) significaba limpieza, comodidad, bienestar y, para las mujeres, liberación de horas sin término ante el lavadero, para nosotros representaba la cresta de la ola que se llevaba nuestros privilegios (PACHECO, 1981, p. 23) As caixas de detergente também tiveram uma importância na obra de Andy Warhol, que cria sua Brillo boxes, na Stable Gallery, em 1964, com o objetivo de questionar o conceito de arte (MATOS JÚNIOR, 2009). 245 Brillo boxes (1964), de Andy Warhol Encontramos registros da ajuda financeira de grandes marcas de detergentes e de sabão norte-americanas como patrocinadoras dos meios de comunicação, inclusive, sendo vinculadas à aparição do gênero seriado ou rádio novela, denominado em inglês como soap opera. Isso só deixa mais evidente o uso dos produtos da Pop Art no romance de Pacheco. Essa tentativa de aproximar seu romance à noção de coletividade e rechaço de traços elitistas da Pop Art aparecem nas entrelinhas do seu texto “Una defensa del anonimato”, em que Pacheco (1984) se coloca: Acaso leyó usted que Juan Ramón Jiménez pensó hace medio siglo en editar una revista poética que iba a llamarse Anonimato. Anonimato publicaría poemas, no firmas: estaría hecha de textos y no de autores. Y yo quisiera como el poeta español que la poesía fuese anónima ya que es colectiva (a eso tienden mis versos y mis versiones). 245 As obras de Andy Warhol estão disponíveis no site: <http://www.warhol.org/>. Último acesso em 09 nov. 2010. 275 O desejo e a defesa por um trabalho mais coletivo não impediram a criação de um estilo artístico próprio do escritor mexicano. Pacheco consegue captar os detalhes e os grandes fatos da história. A escolha do título de seu romance curto ressalta sua delicadeza ao usar a linguagem. Pensamos que o título Las Batallas en el desierto faz referência direta a um aspecto da história, aos conflitos, a partir de 1948, entre árabes e israelenses por conta de controles de territórios e de fronteiras. Pacheco consegue retratar tais guerras de modo singular ao transportá-las para o universo infantil e da escola, como recupera Carlos de sua memória: Jugábamos en dos bandos: árabes y judios. Acababa de establecerse Israel y había guerra contra la Liga Árabe. Los niños que de verdad eran árabes y judíos sólo se hablaban para insultarse y pelear. Bernardo Mondragón, nuestro profesor, les decía: Ustedes nacieron aquí. Son tan mexicanos como sus compañeros. No hereden el odio. (PACHECO, 1981, p. 13) O capítulo inicial do romance, “El mundo antiguo”, já mencionado antes neste capítulo, retrata esse ambiente de pós-guerra, evocando a tradicional sociedade mexicana alerta à evolução e ao desenvolvimento das sociedades da América do Norte. Apesar de o narrador relembrar a inexistência da televisão, sem especificar a data haja vista a dúvida temporal gerada na primeira linha da narrativa, não deixa de mencioná-la e em seguida constam inúmeras referências a uma sociedade de consumo principiante e a aparição dos meios de comunicação, configurando a existência de uma cultura popular. O narrador também menciona inúmeros nomes de programas de rádio e de personalidades da época como mecanismo de aproximar o leitor à cultura popular: Las aventuras de Carlos Lacroix, Tarzán, El Llanero Solitario, La Legión de los Madrugadores, Los Ninõs Catedráticos, Leyendas de las calles de México, Panseco, El Doctor I.Q., La Doctora Corazón desde su Clínica de Almas. Paco Malgesto narraba las corridas de toros, Carlos Albert era el cronista de fútbol, el Mago Septién transmitía el beisbol. (PACHECO, 1981, p. 9) Conforme já citamos, o rádio, as marcas de carros norteamericanos e supermercados aparecem como sinais da industrialização do México a caminho da modernização. Além disso, a imprensa e o cinema também são mencionados como meios de comunicação de 276 massa, assumindo um papel relevante no romance, principalmente o último: Decían los periódicos: El mundo atraviesa por un momento angustioso. El espectro de la guerra final se proyecta en el horizonte. (PACHECO, 1981, p. 11) […] Íbamos a ver películas de Errol Flynn y Tyrone Power, a matinés con una de episodios completa: La invasión de Mongo era mi predilecta. (PACHECO, 1981, p. 9) O romance curto de Pacheco está repleto de sinalizadores da transculturação (“el lenguaje importado y la multiplicación de palabras”) vivida pelos mexicanos no período de Alemán, da modernidade (“supermercados”), da sociedade de consumo norte-americana (“radio”, “televisión”, “cine”, “grandes titulares de los periódicos”) e de objetos e imagens (“hamburguesas”, “jotdogs”, “Coca-cola”246) da corrente artística Pop Art, cuja finalidade, como tratamos, era de criar uma arte moderna, de acordo com o progresso, o avanço da industrialização e do consumismo. A Coca-cola aparece em algumas cenas importantes do romance de Pacheco. A primeira na relação dos produtos mexicanos substituídos pelos norte-americanos: “La cocacola sepultaba las águas frescas de jamaica” (PACHECO, 1981, p. 12); a segunda, quando Carlitos visita a Mariana com o intuito de anunciar-lhe seu amor: “¿Quieres un chocolate, una cocacola, un poco de agua mineral?” (PACHECO, 1981, p. 37), pergunta a mãe de Jim. A terceira e última menção dá-se no último encontro entre Carlitos e Rosales: Nos sentamos en la tortería. Pidió una de chorizo, dos de lomo y un Sidral Mundet. ¿Y tú, Carlitos: no vas a comer? No puedo: me esperan en mi casa. Hoy mi mamá hizo rosbif que me encanta. Si ahora pruebo algo, después no como. Tráigame por favor una coca bien fría. (PACHECO, 1981, p. 60) A cena acima revela a transculturação sofrida pela família de Carlitos. Entre os muitos elementos de transculturação dispostos no decorrer da narrativa, destaca-se a Coca-cola, revelando a integração à cultura norte-americana por parte de seus familiares ou dele próprio. 246 Cabe destacar que alguns artistas da Pop Art exploraram o universo do fast food, entre eles destacamos Andy Warhol. 277 Carlitos joga tênis no Junior Club, lê um romance de Perry Mason, sente nojo ao observar a maneira como Rosales se alimenta, viaja a Nova York para passar as férias. A modernidade tomou conta da vida de Carlitos como podemos perceber nas cenas abaixo: Un mediodía yo regresaba de jugar tenis en el Junior Club. Iba leyendo una novelita de Perry Mason en la banca transversal de un Santa María (PACHECO, 1981, p. 58) [...] Trajeron el servicio. Rosales mordió la torta de chorizo. Antes de masticar el bocado tomó un trago de sidral para humedecerlo. Me dio asco [...] Hambre atrasada y ansiedad: devoraba. Con la boca llena me preguntó [...] Temí que se asfixiara [...] Come lo que quieras y cuanto quieras – yo pago. (PACHECO, 1981, p. 60-61) […] Yo con mi raqueta de tenis, mi traje blanco, mi Perry Mason en inglés, mis reservaciones en el Plaza (PACHECO, 1981, p. 6465) Pacheco com seu romance, semelhante aos artistas da Pop Art, defende uma literatura plural; luta contra o caráter individual da obra de arte. Tanto o resgate dos produtos industriais, característico da estética Pop Art, como o emprego por Pacheco de múltiplos símbolos culturais de uma época, entre eles, os programas de rádio, as canções, os filmes, as personagens de filmes e histórias em quadrinho sinalizam o desejo artístico de pensar a arte de modo autenticamente popular e o interesse de inserir tais elementos na realidade cotidiana. Ademais, os produtos e imagens característicos da sociedade de consumo também constituem a essência de uma época, inclusive seus paradoxos, capazes de perpetuarem a memória de um grupo ou suas mudanças históricas na sociedade daquela época. O romance de Pacheco permite ao leitor repensar inúmeras questões e verificar como o autor critica a sociedade, a partir do momento em que trata alguns temas, entre eles, citamos: a uniformização do modo de vida do mexicano, a intensa transculturação, o crescimento desordenado da urbe, a industrialização excessiva, o idealismo pelos objetos da modernidade, o consumismo, o poder, o mercantilismo e a corrupção. Vale a pena resgatar o título irônico do capítulo III da obra, “Alí 278 Babá y los cuarenta ladrones”. Segundo Bauman (1999), temas como esses apresentam um lado positivo e outro negativo para a sociedade, como a busca pelo progresso e o medo à catástrofe, o otimismo e o pessimismo, a riqueza e a pobreza, o sonho e os traumas, o excesso e a simplicidade. O narrador recupera uma passagem em que demonstra uma tentativa de um religioso do país de frear o avanço norte-americano em busca de uma sociedade mais igualitária: “Monseñor Martínez, arzobispo de México, decretó un día de oración y penitencia contra el avance del comunismo” (PACHECO, 1981, p. 23). Outra, no sentido de denunciar a xenofobia gerada pela vida numa cidade caótica. O narrador destaca a aversão de sua mãe pelos mexicanos nascidos na capital e o ensino dado a Carlitos pela escola, após uma briga na escola com Rosales, quando ele o estereotipa de pobre e indígena: Detestaba a quienes no eran de Jalisco. Juzgaba extranjeros al resto de los mexicanos y aborrecía en especial a los capitalinos. Odiaba a la colonia Roma porque empezaban a desertarla las buenas familias y en aquellos años la habitaban árabes y judíos y gente del sur: campechanos, chiapanecos, tabasqueños, yucatecos (PACHECO, 1981, p. 22) […] Gracias a la pelea mi padre me enseñó a no despreciar […] Llamé ‘indio’ a Rosales. Mi padre me dijo que en México todos éramos indios aun sin saberlo ni quererlo, y si los indios no fueran al mismo tiempo los pobres nadie usaría esa palabra a modo de insulto. Me referí a Rosales como ‘pelado’. Mi padre señaló que nadie tiene la culpa de estar en la miseria, y antes de juzgar mal a alguien debía pensar si tuvo las mismas oportunidades que yo (PACHECO, 1981, p. 24) Pacheco constrói um relato em que o retrato de uma época constitui o plano de fundo para tratar do amor impossível de um menino pela mãe de seu amigo. O romance não é totalmente nostálgico, mas adota uma linguagem precisa e um olhar crítico para tratar de questões sociais. Segundo Verani (1994, p. 263), o autor “[...] parte do cotidiano e imediato, do irrelevante mundo da adolescência, com o propósito de 279 reconstruir o espaço sócio-cultural de um momento histórico, o do México da Segunda Guerra Mundial247”. Antes de mencionar o nome da personagem de Mariana ou mesmo tornar mais evidente o tema do amor proibido em seu romance, Pacheco oferece ao leitor algumas pistas para que se construa aos poucos o retrato da mãe de Jim. O narrador menciona, no primeiro capítulo da obra, a letra de um bolero: “Volvía a sonar en todas partes un antiguo bolero puertorriqueño: Por alto esté el cielo en el mundo, por hondo que sea el mar profundo, no habrá una barrera en el mundo que mi amor profundo no rompa por ti” (PACHECO, 1981, p. 9-10). Acreditamos que a recordação dessa música não seja aleatória, contudo uma evidência logo nas primeiras páginas do romance do provável amor de Carlitos por Mariana. A expressão “no habrá” na letra do bolero afirma a inexistência de uma barreira em relação à idealização desse amor, haja vista a diferença de idade entre ambos. Outro sinal da aparição da personagem está na cena cujo narrador descreve a presença das fotos do rosto do presidente em diferentes partes do país graças aos “dibujos inmensos, retratos idealizados, fotos ubicuas, alegorias del progreso [...] alegorias laudatórias” (PACHECO, 1981, p. 10). As referências não possuem um mero intento histórico de cultivar a imagem e a presença de Miguel Alemán no México daquele momento, mas nos conduzem à família de Jim, seu pai, “poderosísimo amigo íntimo y compañero de banca de Miguel Alemán” (PACHECO, 1981, p. 18) e sua mãe, Mariana. Pacheco denuncia a propaganda política no México e a aparição da família de Jim ao citar os retratos em sua obra. Ao mesmo tempo, identificamos mais uma referência à tendência Pop Art: no ano de 1972, o artista Warhol tece um retrato da figura do líder comunista chinês Mao Tse-tung. De acordo com Marco Giannotti (2004), o interesse do artista pela imagem de Mao poderia ser explicado por sua popularidade entre os jovens 247 ocidentais, sua figura carismática e revolucionária. Os “[...] parte de lo cotidiano e inmediato, del intrascendente mundo de la adolescencia, con el propósito de reconstruir el espacio sociocultural de un momento histórico, el de México de la segunda posguerra”. [Tradução nossa] 280 pensamentos do líder chinês também foram publicados em livro, ocasionando um número maior de seguidores, motivo suficiente para chamar a atenção de Warhol. Mao Tse-tung (1972), de Andy Warhol 248 Essa analogia entre as imagens de Alemán e de Mao é intencional, pois as fotos e os retratos assumem um importante papel na obra de Pacheco; demonstram a proliferação dos meios de comunicação, criticam o excesso de imagens na vida moderna e o uso irresponsável das mesmas, seja com fins político, erótico, etc. Ao retratar as inaugurações das obras públicas na cidade e a presença dos alunos nesses atos, o narrador reforça a importância da fotografia no mundo moderno, em que prevalece a aparência, como demonstrada na seguinte cena: “Joven, sonriente, simpático, brillante […], la eterna viejecita que rompe la valla militar y es fotografiada cuando entrega al Señorpresidente un ramo de rosas” (PACHECO, 1981, p. 1617). A imagem na obra é o reflexo da necessidade e da velocidade da vida moderna, em que sobressai a perfeição, a “eterna juventud”, inclusive da senhora, a quem o narrador com o emprego do termo “eterna”, relativo à foto, parece querer imortalizar. O retrato é capaz de vencer as barreiras destrutivas do tempo. Carlos adulto resgata a imagem de Miguel Alemán como o “Dios Padre” do povo mexicano. 248 Disponível em: <http://www.warhol.org/>. Último acesso em 09 nov. 2010. 281 Outro enigma relacionado ao tema da imagem (retrato/foto) no romance, nesse trajeto que nos leva a Mariana, está na forma como o narrador constrói a imagem do pai de Jim. A descrição desse personagem é um tanto misteriosa: En las inauguraciones, que ya formaban parte natural de la vida, Jim decía: Hoy va a venir mi papá. Y luego: ¿Lo ven? Es el de la corbata azulmarina. Allí está junto al presidente Alemán. Pero nadie podía distinguirlo entre la cabecitas bien peinadas con linaza o Glostora. Eso sí: a menudo se publicaban sus fotos. (PACHECO, 1981, p. 17) Fato esse bastante questionado pelos amigos de escola de Jim, já que seu pai só existia nas imagens dos jornais e devido às fotos oficiais do governo: “Jim cargaba los recortes en su mochila. ¿Ya viste a mi papá en el Excélsior? Qué raro: no se parecen en nada. Bueno, dicen que salí a mi mamá. Voy a parecerme a él cuando crezca” (PACHECO, 1981, p. 17). O narrador resgata da memória a cena da desconfiança dos amigos de Jim, devido ao fato de ele não se parecer com o pai. O narrador, o adulto do nosso ponto de vista, também desconfia de aspectos da vida de Jim, como por exemplo, o de estudar numa escola de classe média, o de morar num bairro simples, como podemos ver na lembrança a seguir: Era extraño que si su padre tenía un puesto tan importante en el gobierno y una influencia decisiva en los negocios, Jim estudiara en un colegio de mediopelo, propio para quienes vivíamos en la misma colonia Roma […] Aún más indescifrable resultaba que Jim viviera con su madre no en una casa de Las Lomas, o cuando menos Polanco, sino en un departamento en un tercer piso cerca de la escuela. Qué raro (PACHECO, 1981, p. 18-19) Os meninos da escola e o narrador compartilham as mesmas imagens, dúvidas e acusações à família de Jim e a seu pai: [...] Se decía en los recreos: la mamá de Jim es la querida de ese tipo. La esposa es una vieja horrible que sale mucho en sociales. Fíjate cuando haya algo para los niños pobres (je je mi papá dice primero que los hacen pobres y luego les dan limosna) y la verás retratada: espantosa, gordísima. Parece guacamaya o mamut. Y él, terciaba Ayala, no es hijo de ese cabrón ratero que está chingando a México sino de un periodista gringo que se llevó a la mamá a San Francisco y nunca se casó con ella. El Señor no trata muy bien al pobre de Jim. Dicen que tienen mujeres por todas partes. Hasta estrellas de cine y toda la cosa. La mamá de Jim sólo es una entre muchas (PACHECO, 1981, p. 19) 282 Na cena anterior, aparece a primeira alusão direta à mãe de Jim, a partir de alguns comentários envolvendo os mistérios da vida do menino. A existência de outra mulher, a esposa oficial, é mencionada pelas notas e fotos dos jornais. As fotos de Alemán, as do pai de Jim e as de sua esposa oficial nos aproximam de Mariana, por quem vai se apaixonar Carlitos. Em Batallas, a história coletiva serve para filtrar a história pessoal de Carlos. A menção à dessemelhança entre Jim e seu pai, criando uma possibilidade de filiação menos prestigiosa e uma atmosfera de mistérios, também, está retratada no fragmento anterior. A mãe de Carlitos também levanta suspeitas e tece leituras da mãe de Jim: “[...] Porque en realidad no se sabe quién habrá sido el padre entre todos los clientes de esa ramera pervertidora de menores” (PACHECO, 1981, p. 50). O nome de Jim de origem norte-americana também gera incertezas e, talvez, explicase pela origem de seu verdadeiro pai. A beleza da mãe de Jim começa a ser destacada, “[...] la mamá de Jim es joven, muy guapa, algunos creen que es su hermana” (PACHECO, 1981, p. 19) em oposição ao espantoso retrato da mulher oficial do Señor, sinalização utilizada na obra para se referir ao “suposto pai” de Jim. A imagem da esposa oficial, aquela responsável pelas atividades caseiras, envolvida em atividades sociais e envelhecida pelo matrimônio, retrata novamente a imagem da mulher mexicana tradicional, escrava da dominação masculina e do machismo, em contraste com a beleza e a elegância de Mariana, fruto da industrialização e dos modelos norteamericanos. No decorrer da narrativa, o retrato da mãe de Carlitos vai sendo construído para o leitor. No início, ela é refém do conservadorismo, mas acaba por evoluir devido à modernização da cidade e do país, além de se estabelecer como pertencente à classe média mexicana. O retrato da mãe de Rosales também consta no relato, mas plasma uma pessoa maltratada, seja pelas adversidades da vida, seja pelo domínio do homem, mas também representa o oposto da jovialidade da mãe de Jim: “A los veintisiete años su madre parecía de cincuenta […] Rosales dormía 283 sobre un petate en la sala. El nuevo hombre de su madre lo había expulsado del único cuarto” (PACHECO, 1981, p. 26). O texto associa a mãe de Jim às estrelas do cinema, mais uma referência direta aos novos meios de comunicação, ao mencionar que o Señor possuía várias mulheres, inclusive estrelas de cinema. Mariana era um desses muitos casos. Em contrapartida, a mulher oficial só aparece em atividades decorrentes do trabalho do marido, em funções que lhe exigiam compaixão e caridade. Outra referência ao cinema aparece quando o narrador descreve a empolgação de Carlitos e Jim ao assistirem algumas produções norteamericanas: Los viernes, a la salida de la escuela, iba con Jim al Roma, el Royal, el Balmori, cines que ya no existen. Películas de Lassie o Elizabeth Taylor adolescente. Y nuestro predilecto: programa triple visto mil veces: Frankenstein, Drácula, El Hombre Lobo. O programa doble: Aventuras en Birmania y Dios es mi copiloto. O bien [...] Adiós, míster Chips. Me dio tanta tristeza como Bambi. Cuando a los tres o cuatro años vi esta película de Walt Disney, tuvieron que sacarme del cine llorando porque los cazadores mataban a la mamá de Bambi (PACHECO, 1981, p. 20-21) Ao recordar a tristeza pelo assassinato ficcional da mãe de 249 Bambi , Carlitos retrata as imagens atrozes da vida nas grandes urbes e o vestígio do caos gerado pelas temidas guerras: En la guerra asesinaban a millones de madres. Pero no lo sabía, no lloraba por ellas ni por sus hijos; aunque en el Cinelandia – junto a las caricaturas del Pato Donald, el Ratón Mickey, Popeye el Marino, el Pájaro Loco y Bugs Bunny – pasaban los noticieros: formación de bombas cayendo a plomo sobre las ciudades, cañones, batallas, incendios, ruinas, cadáveres (PACHECO, 1981, p. 21) As figuras dos personagens infantis norte-americanos predominam no imaginário das crianças daquele momento. O narrador apresenta tal influência quando mostra a diminuição do interesse pelas leituras das aventuras dos clássicos infantis nacionais ou hispânicos. A amizade de Jim influencia a mudança de hábitos do narrador-personagem: Una y otra vez le rogaba que me llevara a su casa para ver los juguetes, los libros ilustrados, los cómics. Jim leía cómics en inglés que Mariana le compraba en Sanborn´s. Por tanto 249 O filme de animação, considerado um clássico, produzido pelos estúdios Disney foi lançado pela primeira vez em 13 de agosto de 1942. Acreditamos que a data possibilita contextualizar o leitor na leitura do romance, já que Pacheco alguns dados verídicos. 284 despreciaba nuestras lecturas: Pepín, Paquín, Chamaco, Cartones, para algunos privilegiados el Billiken argentino o El Peneca chileno (PACHECO, 1981, p. 34) O narrador relembra não gostar dos comentários entre os meninos da escola sobre a vida de Jim (“No es cierto, les contestaba yo. No sean así”). Porém, ao mesmo tempo em que demonstra uma preocupação com a privacidade da vida de seu amigo, acaba por desconfiar do caráter de seu pai e do governo de Alemán, ao recuperar as imagens abaixo. Paulatinamente, o leitor aproxima-se da história do pai de Jim por conta da alusão do narrador aos retratos de Alemán e aos atos públicos acompanhados pelos alunos. [...] el ganador de millones y millones a cada iniciativa del presidente: contratos por todas partes, terrenos en Acapulco, permisos de importación, constructoras, autorizaciones para establecer filiales de compañías norteamericanas; asbestos, leyes para cubrir todas las azoteas con tinacos de asbesto cancerígeno; reventa de leche en polvo hurtada a los desayunos gratuitos en las escuelas populares, falsificación de vacunas y medicinas, enormes contrabandos de oro y plata, inmensas extensiones compradas a centavos por metro, semanas antes de que se anunciaran la carretera o las obras de urbanización que elevarían diez mil veces el valor de aquel suelo; cien millón de pesos cambiados en dólares y depositados en Suiza el día anterior a la devaluación (PACHECO, 1981, p. 18-19) O narrador retrata-nos algumas recordações que podemos classificar como contraditórias, como as anunciadas no parágrafo anterior. Carlitos menciona a hipocrisia como um defeito humano e também faz revelações de seu pai, atitudes que fogem dos bons costumes e do modelo de família tradicional, corrompido com o sistema capitalista: Todos somos hipócritas, no podemos vernos ni juzgarnos como vemos y juzgamos a los demás. Hasta yo que me daba cuenta de nada sabía que mi padre llevaba años manteniendo la casa chica de una señora, su exsecretaria, con la que tuvo dos niñas (PACHECO, 1981, p. 41-42) Ninguém se atrevia a fazer tão cruéis críticas ou revelações a Jim, mas o mesmo parecia já prever os comentários e sempre se justificava, brigava e se indispunha com os meninos da escola, exceto com Carlitos, já que o próprio narrador comenta “Jim se ha hecho mi amigo porque no soy su juez” (PACHECO, 1981, p. 20). O narrador recupera a leitura de Alcaraz em relação ao pai de Jim, corroborando com a imagem do sistema de corrupção descrita na cena anterior: 285 [...] ‘Trabajando a servicio de México’: Alí Babá y los cuarenta ladrones. Dicen en mi casa que están robando hasta lo que no hay. Todos en el gobierno de Alemán son una bola de ladrones. Ya que te compre otro suetercito con lo que nos roba (PACHECO, 1981, p. 20) A construção e a compreensão do retrato de Mariana dependem desse percurso traçado por nós. No capítulo V da narrativa, Pacheco retoma a letra do bolero anunciado no primeiro capítulo como título, “Por hondo que sea el mar profundo”, possibilitando o anúncio do amor entre Carlitos e Mariana. Vale a pena destacar que para chegar nesse momento, o narrador já traz consigo algumas visitas a casa de outros amigos, como na de Rosales e Harry, e reconhece o papel delas no lar e na própria sociedade mexicana250. Não acontece diferente ao visitar a casa de seu amigo Jim. O ambiente é o primeiro a chamar a atenção do narrador, tanto pelo cheiro quanto pelos objetos “El departamento olía a perfume, estaba ordenado y muy limpio. Muebles flamantes de Sears Roebuck” (PACHECO, 1981, p. 27). O narrador imagina qual seria o segredo dessa mulher já que era bonita, se cuidava e mantinha um apartamento arrumado, inclusive Jim informa que eles não tinham empregada. Novamente o narrador reforça a diferença entre o contexto de Mariana e o de sua mãe. O cheiro do perfume parecia envolver-lhe numa atmosfera de curiosidade e sensualidade. As fotos afirmam mais uma vez sua importância na obra. Elas vão conduzir à obsessão do narrador por Mariana. No início, ele descreve as imagens da sala como um mero espectador: “Una foto de la señora por Semo, otra de Jim cuando cumplió un año (al fondo el Golden Gate), varias del Señor con el presidente en ceremonias, en inauguraciones” (PACHECO, 1981, p. 27). O contato com Mariana e as fotos fazem com que ela se transforme em objeto de desejo e de pura fascinação por Carlitos, como ele mesmo coloca “Me hubiera gustado quedarme allí mirándola” (PACHECO, 1981, p. 27). Novamente, reforçamos que esse 250 O papel assumido pela mulher na sociedade mexicana constitui mais uma referência histórica na obra, pois foi no governo de Ruiz Cortines que elas começam a lutar em prol de direitos. Outra menção na narrativa aparece quando Rosales comenta da atitude de sua mãe: “Mi mamá se quedó sin trabajo porque trató de formar un sindicato en el hospital” (PACHECO, 1981, p. 61). 286 encontro possibilita o amadurecimento de Carlitos: “Pero no me importaban los juguetes. Oye, ¿cómo dijiste que se llama tu mamá?” (PACHECO, 1981, p. 28). O desejo é a busca por uma auto-afirmação do personagem. O narrador revela que Jim a chama pelo nome e isso acaba por simbolizar um diferencial entre ela e as outras mães, escapando ao destino de progenitora. Ao preparar um lanche para Carlitos e Jim, a admiração por Mariana aumenta, e a comida parece lhe envolver ainda mais naquele ambiente. A situação constrói a imagem de uma mulher fascinante e desejada: Y nos sentamos. Yo frente a ella, mirándola. No sabía qué hacer: no probar bocado o devorarlo todo para halagarla […] Me encantan, señora, nunca había comido nada tan delicioso. Pan Bimbo, jamón, queso Kraft, tocino, mantequilla, ketchup, mayonesa, mostaza […] ¿Quieres más platos voladores? Con mucho gusto te los preparo (PACHECO, 1981, p. 29) A forma como foi recebido por Mariana fez o narrador, mais uma vez, comparar a realidade de sua casa e uma experiência na de Rosales, o que deixou aparente a distância entre as realidades presenciadas. Os produtos e os objetos utilizados pela mãe de Jim não faziam ainda parte do contexto das outras mães: Eran todo lo contrario del pozole, la birria, las tostadas de pata, el chicharrón en salsa verde que hacía mi madre (PACHECO, 1981, p. 29) […] Me recibió muy amable y, aunque no estaba invitado, me hizo compartir la cena. Quesadillas de sesos. Me dieron asco. Chorreaban una grasa extrañísima semejante al aceite para coches (PACHECO, 1981, p. 26) Ao se despedir, Carlitos avisa que pedirá a sua mãe que lhe prepare aqueles sanduíches (“platos voladores”) ou utilize tais produtos (“asador”), porém, como intervém Jim, “No hay en México [...] Si quieres te lo traigo ahora que vaya a los Estados Unidos” (PACHECO, 1981, p. 30). Além disso, a fascinação mais intensa é a de permanecer naquele apartamento ou pelo menos levar uma foto de Mariana como lembrança daquele instante único. O narrador expressa essa sensação atordoante: “Como me hubiera gustado permanecer allí para siempre o cuando menos llevarme la foto de Mariana que estaba en la sala”. (PACHECO, 287 1981, p. 30). O encontro despertou também a sensibilidade do narrador para o sentimento do amor expresso numa letra de bolero, ouvida numa estação de rádio: Hasta ese momento la música había sido nada más el Himno Nacional, los cánticos de mayo en la iglesia, CriCri, sus canciones infantiles […] y la melodía circular, envolvente, húmeda de Ravel con que la XEQ iniciaba sus transmisiones a las seis y media, cuando mi padre encendía la radio para despertarme con el estruendo de La Legión de los Madrugadores. Al escuchar el otro bolero que nada tenía que ver con el de Ravel, me llamó la atención la letra. Por alto esté el cielo en el mundo, por hondo que sea el mar profundo (PACHECO, 1981, p. 30-31) O capítulo V é o primeiro momento em que o narrador resolve chamar de amor ao que está sentido por Mariana (“Hoy me enamoré de Mariana”), porém em seguida não sabe como conseguirá manter esse sentimento em se tratando da mãe de seu melhor amigo e pelo fato da idade de Mariana: ¿Qué va a pasar? [...] Es imposible que algo suceda. ¿Qué haré? ¿Cambiarme de escuela para no ver a Jim y por tanto no ver a Mariana? ¿Buscar una niña de mi edad? Pero a mi edad nadie puede buscar a ninguna niña. Lo único que puede es enamorarse en secreto, en silencio, como yo de Mariana. Enamorarse sabiendo que todo está perdido y no hay ninguna esperanza (PACHECO, 1981, p. 31) Carlitos demonstra durante a narrativa ser uma criança curiosa. Já o narrador adulto nos dá sinais de um sujeito dúbio, afinal recorda melancólico daquele amor e da própria vida numa época melhor, comparada à cidade desde o presente que enuncia. Carlitos não possui idade para o namoro, tanto que confirma isso em seu discurso. O amor de Mariana não poderá ser correspondido e Carlitos parece ter consciência disso, porém o bolero, ao fundo, possibilita-lhe acreditar em suas emoções. A última frase de seu discurso resume a impossibilidade desse amor já apresentada ao leitor e, de certo modo, o tema do desengano traçado na obra de Pacheco. O capítulo VI revela no título “obsesión” como se resume a vida de Carlitos após aquela descoberta do amor na casa de Jim. Não podemos afirmar se Carlitos (o narrador criança) teria condições de se posicionar de modo tão crítico e expressivo em relação aos seus sentimentos ou se na verdade Carlos (o narrador adulto) demonstra, após ter vivenciado 288 outras experiências, aquela loucura de infância. O narrador reconhece nesse capítulo o erro de ter construído esse amor: “¿Cómo puedes haberte enamorado de Mariana si sólo la has visto una vez y por su edad podría ser tu madre? Es idiota y ridículo porque no hay ninguna posibilidad de que te corresponda” (PACHECO, 1981, p. 33-34). O narrador dialoga com a voz de seu interior, como num solilóquio, e reconhece que tudo será em vão. No entanto, em seguida, mostra não conseguir controlar sua obsessão em rever Mariana: “[...] únicamente repetía su nombre como si el pronunciarlo fuera a acercarla [...] Mariana se había convertido en mi obsesión” (PACHECO, 1981, p. 34-35). Carlitos criava situações para ir à casa de Jim. Como mencionado no capítulo III, os dois tinham o hábito de ir ao cinema às sextas e depois Carlitos aproveitava o ensejo para tentar rever Mariana: Como siempre nos dejaban mucha tarea sólo podía ir los viernes a casa de Jim. A esa hora Mariana se hallaba invariablemente en el salón de belleza, arreglándose para salir de noche con el Señor. Volvía a las ocho y media o nueve y jamás pude quedarme a esperarla (PACHECO, 1981, p. 34) O narrador levanta uma questão relacionada à intimidade de Mariana, quando nos demonstra mais uma vez o tema da beleza e o da sedução na obra. Parece que Pacheco quis retratar uma espécie de prática do voyeurismo, cujo leitor e o narrador vão descobrindo aos poucos os segredos e as armas de sedução de Mariana. Carlitos retrata ter visto outra foto de Mariana nua, quando bebê, o que nos demonstra outra cena puramente erotizada, cujo corpo transforma-se em objeto de fetiche e pensamentos afetuosos: Una vez, al abrir Jim un closet, cayó una foto de Mariana a los seis meses, desnuda sobre una piel de tigre. Sentí una gran ternura al pensar en lo que por obvio nunca se piensa: Mariana también fue niña, también tuvo mi edad, también sería una mujer como mi madre y después una anciana como mi abuela. Pero en aquel entonces era la más hermosa del mundo (PACHECO, 1981, p. 35) A pele de tigre é outro elemento para aguçar a imaginação e o desejo de Carlitos. Nesse momento, ele percebe a evolução do corpo de Mariana até assumir o objeto de obsessão que o envolve. A foto, mais uma vez na narrativa, reforça o amor do personagem. Segundo Guberman (1998, p. 33), “a sociedade capitalista desenvolveu técnicas de 289 produção acelerada, introduzindo como instrumento de propaganda o próprio corpo251”. De acordo com Paz (1993), na modernidade, a família, os valores, as crenças e as instituições evoluem e ganham novos sentidos. Para Paz, a modernidade dessacralizou o sentido do corpo252, pois para o ensaísta mexicano o mesmo nunca esteve oculto, mas coube ao homem moderno reconhecer seu verdadeiro significado. O capítulo termina com o resgate da letra de bolero, que remete à profundidade do mar (“por hondo que sea el mar profundo”), fazendo possivelmente uma alusão erótica à Mariana253. A umidade do mar é simbolizada como elemento representativo do corpo feminino. Mariana é um retrato fiel da Pop Art, da mulher moderna anunciada nas propagandas e nos meios de comunicação que chegam ao universo cultural mexicano. Mariana é a imagem da mulher mexicana contemporânea, aquela que mantém o diálogo, compreensiva, tolerante, que mora num apartamento repleto de produtos e tecnologias da sociedade norte-americana, espaço de desejo de muitos. A mãe de Jim é construída quase como um ser vazio, sem profundidade, uma imagem publicitária. A personagem parece querer denunciar os retratos de personalidades vazias e impessoais retratadas por Andy Warhol, como as estrelas da música e do cinema. No capítulo III, a imagem de Mariana é retratada como uma “estrella de cine”. Pacheco critica a imagem pela imagem, a imagem estática, a artificial, a da publicidade e do cinema de Hollywood, a dos cartuns. Vale assinalar que, todas as sextas, o cinema fornece imagens de mulheres dos anos quarenta e cinqüenta, nas quais o narrador evoca as atrizes Elizabeth Taylor, adolescente, e Rita Hayworth. Pacheco pode ter se 251 “La sociedad capitalista desarrolló técnicas de producción acelerada, introduciendo como instrumento de propaganda el propio cuerpo”. [Tradução nossa] 252 Para aprofundamento desse tema, sugerimos a leitura de Goldenberg (2007). 253 No conto “La cautiva”, de Pacheco, o narrador personagem relata a descoberta de um corpo feminino nas ruínas de um antigo convento, mulher essa que em vida teve um caso extraconjugal com um monge. O personagem do padre refere-se à mulher como “la puerta del demonio. Por ella entró el Mal en el paraíso y lo convirtió en este valle de lágrimas” (PACHECO, 2000, p. 45). A imagem de Mariana pode ser vista como a de uma mulher pervertedora de menores, ou seja, a imagem do mal que desvirtua o caminho da boa moral. 290 baseado nos “cómics en inglés”, os quais Mariana comprava254 para Jim em lojas importadas e fascinavam tanto a Carlitos, para construir a imagem dessa mulher. Carlitos resolve, após muito pensar consigo mesmo, declarar seu amor a Mariana no capítulo “Hoy como nunca”. Aparece novamente a referência à idéia de umidade ao empregar o termo “nublado”: “Hasta que un día – un día nublado de los que me encantan y no le gustan a nadie – sentí que era imposible resistir más” (PACHECO, 1981, p. 36). Como narrado no capítulo anterior, Pacheco escreve o texto de modo que Carlitos revele aos poucos a vida privada de Mariana, como num ritual de voyeurismo. Carlitos estava na escola assistindo aula de língua nacional, primeira alusão à aprendizagem de algo da própria cultura, quando resolve sair em segredo e visitar a Mariana para lhe contar o que não consegue mais esconder. A cena descrita permite ao narrador idealizar ainda mais a mãe de Jim como um objeto sexual: Toqué el timbre del departamento 4. Una dos tres veces. Al fin me abrió Mariana: fresca, hermosísima, sin maquillaje. Llevaba un kimono de seda. Tenía en la mano un rastrillo como el de mi padre pero en miniatura. Cuando llegué se estaba afeitando las axilas, las piernas. Por supuesto se asombró al verme [...] De algún modo los dos nos sentamos en el sofá. Mariana cruzó las piernas. Por un segundo el kimono se entreabrió levemente. Las rodillas, los muslos, los senos, el vientre plano, el misterioso sexo escondido. (PACHECO, 1981, p. 36-37) Mesmo sem maquiagem, o narrador revela a beleza de Mariana. Carlitos parece percorrer o corpo de Mariana ao desvendar sua intimidade. A alusão aos pelos de seu corpo permite-nos novamente enxergar o fetiche provocado por Mariana no protagonista. O retrato descrito de Mariana remete mais uma vez à imagem de glamour das mulheres retratadas no cinema e das revistas de publicidade. Essa imagem das mulheres norte-americanas aparece mais adiante na narrativa, quando o pai do narrador lê algumas revistas em inglês: “Mi padre me esperaba muy serio en la antesala, entre números maltratados 254 Os brinquedos norte-americanos de Jim, mencionados no capítulo V do romance, aludem à obra de outro artista da Pop Art, ao pintor estado-unidense Roy Lichtenstein, cujo universo artístico girava ao redor do tema de armas, aviões e explosões. Ou seja, retratos dos brinquedos trazidos pelo “pai” de Jim dos Estados Unidos. O artista também retratou temas americanos em suas histórias em quadrinhos, com o predomínio de imagens de mulheres artificiais, sanduíches e outros símbolos do consumismo. 291 de Life, Look, Holiday” (PACHECO, 1981, p. 47). A recordação de Carlitos revela imagens de uma sexualidade invisível (“sin maquillaje”, “Mariana cruzó las piernas”, “el sexo escondido”) e ao mesmo tempo visível (“fresca”, “hermosísima”, “el kimono se entreabrió levemente”) para ser fruto de desejo do homem, seja do Señor ou de Carlitos. A pesquisadora Cynthia Steele (1994, p. 284) define a imagem de Mariana da seguinte maneira: [...] é o máximo consumidor e o máximo produtor de consumo, eternamente adquirindo móveis, artigos de cozinha, roupa e cosméticos, porém produzindo unicamente imagens comerciais 255 de si mesma como fetiche para o consumidor masculino . A imagem de Mariana reflete a sociedade de consumo da vida moderna, em que ela se submete à economia do desejo. Sua exibição a transforma numa mercadoria. Apesar da imagem de mulher moderna, ela não deixa de ser submissa ao homem, já que é um homem, o Señor, que a mantém, mas, por outro lado, também a domina como um objeto sexual. Isso reforça a imagem da personagem como uma mulher passiva, cuja vida depende do dinheiro e do desejo de um homem. Mariana não representa o modelo ultrapassado de mulher mexicana, “escrava do lar”, já que tem acesso aos produtos e às facilidades norte-americanas, porém acaba sendo uma escrava daquele que lhe proporciona tal “liberdade”. A aproximação de Carlitos ao corpo feminino também começa quando o mesmo vai ao cabeleireiro e se depara com algumas revistas do gênero. O espaço do salão de beleza não é aleatório no texto de Pacheco, pois remete a outro lugar característico da beleza e da feminilidade: Junto a las revistas políticas estaban Vea y Vodevil. Aproveché que el peluquero y su cliente, absortos, hablablan mal del gobierno. Escondí el Vea dentro del Hoy y miré las fotos de Tongolele, Su Muy Key, Kalantán, casi desnudas. Las piernas, los senos, la boca, la cintura, las caderas, el misterioso sexo escondido. (PACHECO, 1981, p. 42) A cena de Carlitos, recordando as imagens das mulheres da revista, também evoca a noção de visível e invisível do corpo feminino. O 255 “[…] es a la vez el máximo consumidor y el máximo producto de consumo, eternamente adquiriendo muebles, artilugios de cocina, ropa y cosméticos, y sin embargo produciendo únicamente imágenes comerciales de sí misma como fetiche para el consumidor masculino”. [Tradução nossa] 292 narrador diz que precisou esconder a revista dentro de um jornal para conseguir observar, mesmo que por alguns minutos, o “misterioso sexo escondido”. Segundo a pesquisadora Cynthia Steele (1994, p. 283), a imagem de Mariana nua, vestida de roupão de seda e portando uma espécie de barbeador eletrônico, evidencia o erotismo e o perigo, a beleza e a tecnologia a serviço do homem e antecipa a imagem do suicídio da personagem, ocorrido no final da trama. Começamos a desconfiar do desejo erótico camuflado pelo menino já em sua infância, ao relembrar as imagens das revistas destinadas a adultos, dos detalhes do corpo de atrizes do cinema e da beleza da empregada de sua casa. Além disso, em sua própria casa, o menino nos revela não ter bons exemplos. O próprio Carlitos sabia da outra família de seu pai, e seu irmão, Héctor, tinha um passado obscuro, envolvimento com drogas e com a violação de mulheres, como podemos perceber abaixo: […] en aquella época: sirvientas que huían porque ‘el joven’ trataba de violarlas (guiado por la divisa de su pandilla: ‘Carne de gata, buena y barata’, Héctor irrumpía a medianoche, desnudo y erecto, enloquecido por sus novelitas, en el cuarto de la azotea; forcejeaba con las muchachas y durante los ataques y defensas Héctor eyaculaba en sus camisones sin lograr penetrarlas: los gritos despertaban mis padres; subían; mis hermanas y yo observábamos todo agazapados en la escalera de caracol […] Héctor se endrogó con sus amigos del parque Urueta e hizo destrozos en un café de chinos. (PACHECO, 1981, p. 52) A convivência com Héctor poderia ter provocado no narrador os mesmos sintomas de certo desespero sexual do irmão mais velho? O narrador não responde diretamente a tal pergunta, tenta buscar explicações para seu desejo incontrolável por Mariana, mas acaba por acreditar que todas suas loucuras sejam explicadas pelo simples fato do amor. Após a família descobrir sua paixão, o narrador se justifica “Pero no estaba arrepentido ni me sentía culpable: querer a alguien no es pecado, el amor está bien, lo único demoniaco es el odio” (PACHECO, 1981, p. 44). 293 Carlos adulto conduz o leitor ao presente da enunciação quando expõe a imagem regenerada de seu irmão. O próprio narrador parece não acreditar na possibilidade tão notória de mudança: Héctor, quién lo viera ahora. El cincuentón enjuto, calvo, solemne y elegante en que ha convertido mi hermano. Tan grave, tan serio, tan devoto, tan respetable, tan digno en su papel de hombre de empresa al servicio de las transnacionales. Caballero católico, padre de once hijos, gran señor de la extrema derecha mexicana. (PACHECO, 1981, p. 51) Retornando ao momento da reveleção de Carlitos à Mariana, a cena do roupão faz analogia à outra pintura da Pop Art, a Woman in bath, de 1963, do artista norte-americano Rony Lichtenstein, em que uma mulher bonita e sorridente, típica imagem publicitária da mulher feliz, está numa banheira segurando uma esponja, outra referência possível à empresa de sabão e detergentes norte-americanos da obra, presente no romance e financiadora de propagandas, já que esses produtos veiculam o cuidado ao corpo e a preocupação com a higiene. Destacamos também que graças à venda desses produtos, a família de Carlitos assume a posição de classe media alta na sociedade mexicana e começa a adotar costumes dos Estados Unidos. O emprego do pai de Carlitos proporcionou, inclusive, a educação de seus irmãos no exterior: “Héctor estudiaba en la Universidad de Chicago y mis hermanas mayores en Texas” (PACHECO, 1981, p. 58). Woman in bath (1963), de Roy Lichtenstein 256 256 Disponível no site: < http://www.lichtensteinfoundation.org/>. Acesso: 09 nov. 2010. 294 Carlitos expressa seus sentimentos à Mariana e essa recebe a notícia sem se assustar com a sinceridade do menino: Te entiendo perfectamente [...] Ahora tienes que comprenderme y darte cuenta de que eres un niño como mi hijo y yo para ti soy una anciana: acabo de cumplir veintiocho años. De modo que ni ahora ni nunca podrá haber nada entre nosotros. (PACHECO, 1981, p. 38) As palavras de Mariana ressaltam sua preocupação em fazer com que Carlitos não sofra no presente e mesmo no futuro: “¿Verdad que me entiendes? No quiero que sufras” (PACHECO, 1981, p. 38). O narrador descreve toda a confusão de sentimentos e a tristeza que o assola, mas destaca com suavidade o momento em que Mariana pede para lhe segurar suas mãos e o beijo no rosto. O beijo recebido foi simples, como aqueles recebidos por Jim ao chegar da escola, mas Carlitos sente seu corpo estremecer ao ser beijado. A mãe de Carlitos, ao tomar conhecimento da relação e do amor deste por Mariana e de saber que o mesmo lhe revelou seu sentimento, fica indignada e busca explicações para tal tragédia, inclusive recorre à religião. Nunca havia acontecido um fato semelhante em sua família conforme aparece no discurso do narrador: Mi madre insistía en que la nuestra – es decir, la suya – era una de las mejores familias de Guadalajara. Nunca un escándalo como el mío. Hombres honrados y trabajadores. Mujeres devotas, esposas abnegadas, madres ejemplares. Hijos obedientes y respetuosos. (PACHECO, 1981, p. 49) Ela sabe que a vida na cidade grande é repleta de imoralidades, e talvez esteja aí a explicação para tal ato de impudor de Carlitos. A mãe de Carlitos reconhece nos meios de comunicação de massa a sua parcela de culpa, porque acabam criando ilusões nas cabeças dos jovens: “Ve las revistas, la radio, las películas: todo está hecho para corromper al inocente” (PACHECO, 1981, p.56). O pensamento da mãe de Carlitos destaca de forma nítida seu olhar em relação à sociedade moderna. O texto de Pacheco denuncia a mudança do homem, dos valores e da família diante da vida contemporânea, corroborando a visão de Berman (1986), Bauman (2005) e García Canclini (1999) para as mudanças da mentalidade do sujeito na vida moderna. A vida errante de Héctor também seria, segundo a mãe do 295 narrador, uma motivação para que esse se desviasse do caminho do bem e da moral: Nunca pensé que fueras un monstruo. ¿Cuándo has visto aquí malos ejemplos? Dime que fue Héctor quien te indujo a esta barbaridad. El que corrompe a un niño merece la muerte lenta y todos los castigos del infierno. Anda, habla, no te quedes llorando como una mujerzuela. Di que tu hermano te malaconsejó para que lo hicieras […] Todavía tienes el cinismo de alegar que no has hecho nada malo. En cuanto se te baje la fiebre vas a confesarte y a comulgar para que Dios Nuestro Padre perdone tu pecado. (PACHECO, 1981, p. 41) O discurso da mãe de Carlitos está fortemente marcado pelo catolicismo como salvação para o pecado do mundo. No confessionário257 e movido pelas rezas de sua mãe, o narrador reconhece seu desvio: [...] Gracias a mis primeros viernes, seguía acumulando indulgencias. Mi madre se quedó en una banca, rezando por mi alma en peligro de eterna condenación. Me hinqué ante el confesionario. Muerto de pena, le dije todo al padre Ferrán (PACHECO, 1981, p. 43) Porém, a conversa com o padre da Igreja de Nossa Senhora do Rosário lhe inculcou mais dúvidas e lhe gerou a imaginação de cenas proibidas não pensadas por ele a partir das perguntas induzidas pelo padre: ¿Estaba desnuda? ¿Había un hombre en la sala? ¿Crees que antes de abrirte la puerta cometió un acto sucio? […] ¿Has tenido malos tactos? ¿Has provocado derrame? No sé que es eso, padre. Me dio una explicación muy amplia. Luego se arrepintió, cayó en cuenta de que hablaba con un niño incapaz de producir todavía la materia prima para el derrame, y me echó un discurso que no entendí: Por obra del pecado original, el demonio es el príncipe de este mundo y nos tiende trampas, nos presenta ocasiones para desviarnos del amor a Dios y obligarnos a pecar: una espina más en la corona que hace sufrir a Nuestro Señor Jesuscristo (PACHECO, 1981, p. 43-44) O discurso do padre parece não levar em conta seu diálogo com um menino da idade de Carlitos, contudo revela o desejo de alimentar sua curiosidade. Os argumentos e a “involuntaria guia práctica para la masturbación” referidos pelo padre Ferrán impressionam de tal modo a Carlitos, a ponto desse revelar “Llegué a mi casa con ganas de intentar los malos tactos y conseguir el derrame. No lo hice. Recé veinte padresnuestros y cincuenta avesmarías. Comulgué al día siguiente” (PACHECO, 1981, p. 44). O desespero da família de Carlitos era tanto 257 A imagem do confessionário será empregada por Pacheco em outro conto denominado “La zarpa” analisado também nesta tese. 296 que o levaram ao consultório psiquiátrico. Os médicos também não chegam a um consenso do problema do menino: Es un problema edípico clarísimo, doctor. El niño tiene una inteligencia muy por debajo de lo normal. Está sobreprotegido y es sumiso […] Discúlpeme, Elisita, pero creo todo lo contrario: el chico es listísimo y extraordinariamente precoz […] La conducta atípica se debe a que padece desprotección, rigor excesivo de ambos progenitores, agudos sentimientos de inferioridad: es, no lo olvide, de muy corta estatura para su edad y resulta el último de los hermanos varones […] Anda en busca del afecto que no encuentra en la constelación familiar (PACHECO, 1981, p. 46) Carlitos indigna-se com a conversa dos médicos diante de si, do envio futuro das respostas dos testes a seus pais e revolta-se porque diz sofrer simplesmente de amor: Me dieron ganas de gritarles: imbéciles, siquiera pónganse de acuerdo antes de seguir diciendo pendejadas en un lenguaje que ni ustedes mismos entienden […] ¿Por qué no se dan cuenta de que uno simplemente se enamora de alguien? ¿Ustedes nunca se han enamorado de nadie? (PACHECO, 1981, p. 47) Para Carlitos passar por tudo isso foi um sofrimento terrível. Somente Héctor parecia entender seus motivos, apesar de ser irônico com a situação. A imagem cinematográfica da personagem de Mariana reaparece quando Héctor parabeniza Carlitos pela aventura e astúcia e a compara com uma diva dos anos quarenta: Me pareció estupenda puntada. Mira que meterte a tu edad con esa tipa que es un auténtico mango, de veras está más buena que Rita Hayworth. Qué no harás, pinche Carlos, cuando seas grande. Haces bien lanzándote desde ahora a tratar de coger, aunque no puedas todavía […] Qué espléndido que con tantas hermanas tú y yo no salimos para nada maricones (PACHECO, 1981, p. 48) O discurso de Héctor está impregnado de machismo e também sugere a iniciação da vida sexual assim com o fez o padre, intencionalmente ou não. Por via das dúvidas, seus pais proibiram que Carlitos continuasse dividindo o mesmo quarto com sua irmã caçula, Estelita, e também o proibiram de compartilhar o espaço com Héctor. Carlos revive tais lembranças: Cuando me declararon perverso, mi madre juzgó que la niña corría peligro. La cambiaron a la pieza de las mayores, con gran disgusto de Isabel, que estudiaba en la Preparatoria, y de 297 Rosa María que acababa de recibirse de secretaria en inglés y español (PACHECO, 1981, p. 54) […] Héctor pidió que compartiéramos la habitación. Mis padres se negaron. A raíz de sus hazañas policiales y su último intento de forzar a una criada, Héctor dormía bajo candado en el sótano (PACHECO, 1981, p. 55) A mãe de Carlitos trocou-o de escola como forma de distanciá-lo de Jim, das demais más companhias e da vergonha, pois todos souberam do caso de seu filho. Carlitos relata sua insatisfação na nova escola e a constante fixação da imagem de Mariana: “No conocía a nadie. Una vez más fui el intruso extranjero. No había árabes y judíos ni becarios pobres ni batallas en el desierto – aunque sí, como siempre, inglés obligatorio” (PACHECO, 1981, p. 56). Os pais de Carlitos acreditavam na cura do menino por conta do castigo, da confissão e dos testes psiquiátricos aos quais se submeteu. Como forma de estar mais próximo de Mariana, ao menos em pensamento, Carlitos: [...] compraba Vera y Vodevil, practicaba los malos tactos sin conseguir el derrame. La imagen de Mariana reaparecía por encima de Tongolele, Kalantán, Su Muy Key […] el amor es una enfermedad en un mundo en que lo único natural es el odio (PACHECO, 1981, p. 56) Carlitos relaciona a imagem da mãe de Jim à de uma estrela de cinema. O destino da falsa atriz Mariana caminha na mesma direção daquele do personagem Esteban, namorado de Isabel e ator nos anos trinta quando jovem, porque ambos sofrem desilusões. Pacheco emprega o casal Isabel e Esteban para igualá-los ao de Mariana e Carlitos, porém com a diferença que, no primeiro, é a mulher, Isabel, quem se fascina pelo homem: “en los años treinta Esteban había sido famoso como actor infantil. Lógicamente, al crecer perdió su vocecita y su cara de inocencia. Ya no le dieron papeles en cine ni en teatro” (PACHECO, 1981, p. 53). O narrador fornece pistas para expor a semelhança de sua relação com Mariana na história de Isabel e Esteban: Isabel era aficionada fanática. Esteban le parecía maravilloso porque Isabel lo vio en época de oro y, a falta de Tyrone Power, Errol Flynn, Clark Gable, Robert Mitchum, o Cary Grant, Esteban representaba su única posibilidad de besar a un artista 298 de cine. Aunque fuera de cine mexicano (PACHECO, 1981, p. 53). Semelhante a sua irmã que se apaixonou pela eterna imagem do jovem Esteban, Carlitos sentiu o mesmo pelas imagens e fotos da jovialidade de Mariana, considerando-se também como fanático. Carlitos pode ter se apegado à imagem de Mariana na impossibilidade de estar ao lado de atrizes como Rita Hayworth e Liz Taylor, citadas por ele. Mesmo que represente uma atriz de forma indireta e possa ser considerada uma fantasia (talvez, um fantasma) na vida de Carlitos, Mariana vai imitar o trágico destino de Esteban e cometer suicídio. De modo significativo, Pacheco atribui o título de “espectros” ao capítulo. Em relação ao destino de Esteban, o narrador comenta: Llegaba a verla borracho, sin corbata, oliendo a rayos, con el traje manchado y luido, los zapatos sucios [...] aniquilado por el fracaso, la miseria y el alcoholismo, Esteban se ahorcó en un íntimo hotel de Tacubaya. A veces pasan por televisión sus películas y me parece que contemplo a un fantasma (PACHECO, 1981, p. 53-54) A lembrança de Carlos adulto daquele amor do passado parece querer denunciar um arrependimento em tê-lo declarado públicamente: “Qué estupidez meterme en un lío que pude haber evitado con solo resistirme a mi imbécil declaración de amor” (PACHECO, 1981, p. 57). Mas, sabe que não é possível voltar ao tempo passado, somente pela memória e, imediatamente, se arrepende e retifica o mencionado “[...] hice lo que debía y ni siquiera ahora, tantos años después, voy a negar que me enamoré de Mariana” (PACHECO, 1981, p. 57). A morte de Mariana é revelada ao narrador por seu amigo Rosales, sinalizando de certa forma um retorno de Carlitos às origens. O narrador destaca sua surpresa diante das mudanças ocorridas na Colônia Roma: Los Packards, los Buicks, los Hudsons, los tranvías amarillos, los postes plateados, los autobuses de colores, los transeúntes todavía con sombrero (PACHECO, 1981, p. 60) A Colônia passou pela mesma transformação e destruição ocorrida no centro da capital mexicana, levando Pacheco (1966, p. 254) a comentar essa perda do encantamento pelo espaço urbano e da constante transição da história ao pronunciar: 299 He visto, en la damnificada zona antigua de la capital, que cuando cae un maravilloso edificio de la colonia o el siglo XIX, invariablemente lo sustituye un bodrio indómito que bulle en fachaletas y cristales […] Creer que todo empezó con nosotros, por nosotros, y terminará cuando acabemos, me parece l’illusion comique de las generaciones […] La gran enseñanza del siglo XX es la conciencia de que cuanto hacemos es provisional y lo que hoy tuvo valor y sentido no lo tendrá mañana […] Ni mundo ni arte se conciben sin cambios y movimientos, muertes y resurrecciones. La historia no se detiene: todo instante es transición. Essas mudanças são sinalizadas por Pacheco no romance curto, no qual o crescimento da classe média proporciona uma modernização do espaço e um rompimento com certos costumes para adoção de novos. A família de Carlitos enriquece, mas o narrador sinaliza o momento de crise atravessado pelo país ao mencionar: “Yo que nunca había trabajado […] Yo el magnánimo que a pesar de la devaluación y de la inflación tenía dinero de sobra” (PACHECO, 1981, p. 59). Pacheco introduz novamente um acontecimento do passado mexicano. A que tudo indica se refere ao governo de Ruiz Cortines, no ano de 1954, momento de desvalorização da moeda nacional e fuga do capital estrangeiro. Antes de Rosales anunciar o trágico destino de Mariana, comenta com Carlitos como estão todos da escola e como repercutiu sua aventura. Em vários momentos tenta ir direto ao assunto, mas tem receio e por vezes muda de tema para reiniciar o problema: Bueno, Carlitos, es que, mira, no sé cómo decirte: en nuestro salón se supo todo. Eso de la mamá. Jim lo comentó con cada uno de nosotros. Te odia. Nos dio harta risa no que hiciste. Qué loco. Para colmo, alguien te vio en la iglesia confesándote después de tu declaración de amor. Y en alguna forma se corrió la voz de que te habían llevado con el loquero. (PACHECO, 1981, p. 61) Carlitos nada comenta, somente escuta a Rosales, todavia percebendo que esse lhe queria dizer algo grave, em vários momentos titubeia na conversa, altera a voz e demonstra nervosismo: “Anda ya de una vez [...] Di lo que me ibas a decir”. Rosales não encontra saída e declara “Es que mira, Carlos, no sé cómo decirte: la mamá de Jim murió” (PACHECO, 1981, p. 62). Carlitos recebe a notícia de modo atônito e aos poucos vai recuperando a consciência à medida que Rosales lhe explica os motivos. Nesse momento, também fica comprovado que o verdadeiro 300 pai de Jim vive em San Francisco, Califórnia, e, com a morte de Mariana, veio em busca do filho. De acordo com o discurso de Rosales, a morte de Mariana também se relaciona à situação econômica e política do país naquele momento, já que ela resolve denunciar os roubos no governo num jantar ao lado do Señor, como aparece na memória do narrador: Estaban él y la señora – se llamaba Mariana ¿no es cierto? – en un cabaret, en un restorán o en una fiesta muy elegante en Las Lomas. Discutieron por algo que ella dijo de los robos en el gobierno, de cómo se derrochaba el dinero arrebatado a los pobres. Al Señor no le gustó que le alzara la voz allí delante de sus amigos poderosísimos: ministros, extranjeros millonarios, grandes socios de sus enjuages, en fin. Y la abofetó delante de todo el mundo y le gritó que ella no tenía derecho de hablar de honradez porque era una puta (PACHECO, 1981, p. 62) Ao não saber o nome da mãe de Jim, Rosales confirma a imagem fantasmal de Mariana. O fato da desavença acontecer num cabaré ou num restaurante revela uma intenção de Pacheco por detrás disso. Sua opção por um lugar público pode reforçar o fato de Mariana ser hostilizada pelo homem que a mantém, afinal ele a ridiculariza diante da “boa sociedade”, ou seja, daqueles políticos locais e dos contribuintes das trapaças e armações (“extranjeros millionarios”) do governo; o verdadeiro capital externo responsável pela presença cada vez menor de produtos e marcas nacionais. Vale a pena lembrar que o governo do presidente Alemán foi acusado por sistema de corrupção, em que os políticos recebiam constantes ajudas financeiras (VASCONCELOS, 1975). O choque causado em Carlinhos ao ver a morte da mãe de Bambi pelos caçadores, representada no filme, pode ser revivido, em seu imaginário, na morte de Mariana. Os caçadores seriam o político e seus súditos e Jim encarnaria a figura de Bambi, o cervo que junto a seu pai aprende a dar continuidade a sua vida. Rosales não narra com exatidão os últimos momentos da vida de Mariana após pegar um libre, um táxi, como se ela estivesse livre da relação de dependência com o Señor: Mariana se levantó y se fue a su casa en un libre y se tomó un frasco de Nembutal o se abrió las venas con una hoja de rasurar o se pegó un tiro o hizo todo esto junto, no sé bien cómo estuvo. El caso es que al despetar Jim la encontró muerta, bañada en sangre (PACHECO, 1981, p. 62) 301 O final de Mariana está repleto de dúvidas, como uma verdadeira história de ficção, uma novela televisiva, uma sucessão de clichês, em que Mariana assume o lugar da atriz. Rosales evoca inúmeras imagens que permitem ao leitor aferir essa imagem. O próprio narrador tem dificuldades em acreditar na veracidade dos fatos: Mariana encontrada bañada en sangre por su hijo […] Yo no me atreví a verla muerta, pero cuando la sacaron en camilla las sábanas estaban todas llenas de sangre […] Su mamá le dejó a Jim una carta en inglés, una carta muy larga en que le pedía perdón y le explicaba lo que te conté. Creo que también escribió otros recados – a lo mejor había uno para ti, cómo saberlo – aunque se hicieron humo (PACHECO, 1981, p. 6263) Além de informações importantes retratadas por Rosales com certo voyeurismo e até mesmo em tom acusativo, já que revela o poder do político em esconder a história do suicídio de Mariana, pois afinal a carta deixada por ela podia conter informações ameaçadoras e precisou ser queimada: “el Señor de inmediato le echó tierra al asunto y nos prohibieron hacer comentarios entre nosotros y sobre todo en nuestras casas” (PACHECO, 1981, p. 63). Numa atitude ditatorial, o político resolve calar as possíveis testemunhas. A dúvida plantada por Rosales sobre o que poderia estar escrito na carta destinada a Carlitos o perturba ainda mais. Entretanto, ao mesmo tempo, o narrador não acredita na veracidade do que escutou, pois mais parece um melodrama: Rosales, no es posible. Me estás vacilando. Todo eso que me cuentas lo inventaste. Lo viste en una pinche película mexicana de las que te gustan. Lo escuchaste en una radionovela cursi de la XEW. Esas cosas no pueden pasar. No me hagas bromas por favor (PACHECO, 1981, p. 63) A imagem do sofrimento de Mariana, retratado no último capítulo da obra, também se assemelha, novamente, à mulher chorando presente nos quadros de Pop Art, Crying Girl (1963) e Hopeless (1967), ambos de Roy Lichtenstein. O leitor depara-se num primeiro momento com uma narrativa linear, mas acaba descobrindo inúmeros intertextos no decorrer da leitura e releituras. Desde o início da narração do último capítulo, tudo remete à ficção, ao melodrama; como se o autor tivesse a intenção de contaminar a realidade com o universo dos meios de comunicação, dos cartuns, das 302 novelas radiofônicas, do cinema – outras formas criadoras de ficção. Como se o narrador-personagem também tivesse participado desse jogo, afinal menciona “Yo en el papel de la Doctora Corazón desde su Clínica de Almas” (PACHECO, 1981, p. 59), aludindo a essa troca de realidades. O que seria identificado como um programa de ficção se transforma em parte da realidade, em que não há limite entre o ficcional e o real. Crying Girl (1963) e Hopeless (1967), de Roy Lichtenstein 258 O suicídio de Mariana e de Esteban demonstra a essência da sociedade de consumo, em que os próprios sujeitos consumistas acabam por sofrer as consequências do avanço da mesma e se transformam em vítimas. Mariana tenta revoltar-se contra o sistema numa atitude corajosa e pública revelando a corrupção de seu amante, porém, apesar de tudo, seu discurso é silenciado. O suicídio mostra a outra face da sociedade capitalista e individualista. Ambos os personagem presenciam uma vida repleta de contradições: felicidade/ desgraça, abundância/ ausência, amor/ solidão e outros. Após rever o retrato de Mariana no decorrer da obra, principalmente, seu desfecho, no último capítulo, como um possível melodrama mexicano ou a rádio-novela, a nosso ver intensifica a 258 Disponível no site: < http://www.lichtensteinfoundation.org/>. Acesso: 09 nov. 2010. 303 presença da estética Pop Art no texto de Pacheco. A história de Mariana assemelha-se a da diva do cinema Marilyn Monroe, retrata por And Warhol259, a partir de 1962 (The two Marilyns). The two Marilyns (1962), de Andy Warhol 260 Alguns fatores permitem-nos fazer essa analogia: a semelhança entre seus nomes; a figura sexual de ambas; o fato de Monroe ter sido amante do presidente John Kennedy, já no caso de Mariana, ela também era amante de um influente político próximo a Alemán e o final trágico do suicídio. A atriz norte-americana faleceu261, em 1962, enquanto dormia em sua casa e sua morte levantou inúmeras suspeitas, prevalecendo a versão de overdose. Encontramos informações que os dados sobre as gravações de seus telefonemas, bem como a documentação do FBI sobre sua morte desapareceram. Amigos e familiares com interesse em buscar 259 Vale destacar que Warhol só começa a pensar nos retratos e serigrafia da artista após sua morte. Desse modo, ele foi um dos primeiros a eternizar a imagem da atriz, cujo sucesso após a morte parece em maior proporção que em vida. O artista demonstra interessar-se por temas reveladores da fraqueza humana, além do sucesso instantâneo. Marilyn teve um final trágico, Elvis Presley teve depressão e problemas com drogas, já Elizabeth Taylor, depressão e doenças graves. Os três foram retratados pelo talento de Warhol. 260 Disponível em: <http://www.warhol.org/>. Último acesso em 09 nov. 2010. 261 A alusão em sua obra da vida de Monroe e, principalmente, o ano de sua morte são pistas para que o leitor desvende o contexto histórico da obra de Pacheco. 304 evidências receberam ameaças. Tal aproximação do texto de Pacheco à vida da artista não deve ser mera coincidência. Mariana é a pura imagem do consumismo no romance de Pacheco, seja do cinema, da publicidade ou como objeto de desejo. No final do relato, Carlitos quer comprovar que Mariana não está morta e começa a se deparar com a morte em todos os lados da cidade: “Vi la muerte por todas partes […] Vi la muerte en los refrescos: Mission Orange, Spur, Ferroquina. En los cigarros: Belmont, Gratos, Elegantes, Casinos (PACHECO, 1981, p. 64)”. Ao buscar sinais da existência de Mariana e Jim, o narrador surpreende-se mais ainda, pois ninguém os conhecia: Pues no. Estoy en este edificio desde 1939 y, que yo sepa, nunca ha vivido aquí ninguna señora Mariana. ¿Jim? Tampoco lo conocemos. En el ocho hay un niño más o menos de tu edad pero se llama Everardo. ¿En el departamento cuatro? No, allí vivía un matrimonio de viejitos sin hijos. Pero si vine un millón de veces a casa de Jim y de la señora Mariana. Cosas que te imaginas, niño (PACHECO, 1981, p. 66-67) Teria sido o relato uma pura fantasia do narrador? O narrador informa “Qué antigua, qué remota, qué imposible esta historia” (PACHECO, 1981, p. 67). A mesma imprecisão do início do relato consta no final “Me acuerdo, no me acuerdo ni siquiera del año”. Carlos adulto é o narrador do término do relato, aquele que, após a morte de Mariana, se muda para Nova York e tenta apagar essas memórias, caso sejam reais, mas parece não conseguir, inclusive, a letra do bolero não lhe sai da cabeça: Me acuerdo, no me acuerdo ni siquiera del año. Sólo estas ráfagas, estos destellos que vuelven con todo y las palabras exactas. Sólo aquella cancioncita que no escucharé nunca. Por alto esté el cielo en el mundo, por hondo que sea el mar profundo. (PACHECO, 1981, p. 67) O narrador afirma nunca mais escutar a canção, porque parece reconhecer a morte de Mariana e com ela a beleza da vida, afinal o mesmo evoca: Demolieron la escuela, demolieron el edificio de Mariana, demolieron mi casa, demolieron la colonia Roma. Se acabó esa ciudad. Terminó aquel país. No hay memoria del México de aquellos años (PACHECO, 1981, p. 67) Somos levados a duvidar da veracidade do relato, no entanto o narrador nos fornece um importante elemento para continuar a acreditar 305 no passado do protagonista: “Nunca sabré si aún vive Mariana. Si viviera tendría sesenta años” (PACHECO, 1981, p. 68). Nesse trecho, ele marca sua maturidade e a eterna imagem de Mariana em sua memória, aquela mulher moderna e bonita. O desgaste do tempo é uma constante na obra de Pacheco. Ao empregar o verbo “demolieron”, o narrador faz referência às lembranças do seu passado, de Mariana e de seus sonhos, como também mostra o surgimento de uma nova cidade, de um novo país, de uma nova sociedade mexicana, onde só resta a esperança de tempos melhores, pois “de ese horror quién puede tener nostalgia” (PACHECO, 1981, p. 68). A ficção, assim como a vida, também é alimentada por esperança. 3.2.3. “El viento distante”: a solidão na urbe Con todo lo que pasa en el país y en el mundo se necesitaría mucha indiferencia o mucha insensibilidad para decir que uno es absolutamente feliz José Emilio Pacheco (2000a) Dentro da classificação da minificção proposta por Zavala (2006), o relato “El viento distante”, de Pacheco, corpus selecionado para este capítulo classifica-se como cuento corto, um exemplo da minificção do autor. Os cuentos cortos recebem diferentes denominações se analisarmos as antologias internacionais, como por exemplo, sudden fiction (por Charles Baxter), cuentos breves (por Julio Cortázar), short shorts (pelo crítico americano Irving Howe), cuentos microcósmicos (pela ciência ficção), porém todas culminam na defesa de histórias completas em suas tramas, com personagens e clímax desenvolvidos, ainda que um dos elementos narrativos seja condensado. O conto selecionado é homônimo da antologia de quatorze textos do escritor mexicano. Segundo a crítica especializada, o livro é sutil, irônico e melancólico, cujas experiências da infância – às vezes repleta de aventuras cotidianas e misteriosas – revelam a profunda e a perplexa vida 306 humana, os anos distantes de um país, cujas protagonistas são capazes de encarnar os sofrimentos mais profundos a uma vida sem alegria ou de paixões enganosas. O livro condensa imagens e temas recontextualizados em outros textos de Pacheco, a partir de suas próprias percepções e intenções. Pacheco, como fiel amante da literatura de Jorge Luis Borges e da sua noção de intertextualidade262, defende que um texto nunca deixa de se escrever, independente do gênero. A minificção “El viento distante” aparece originalmente em 1963, corrigido e aumentado em 1969 e sujeito, desde então, ao trabalho constante de aperfeiçoamento defendido pelo próprio escritor cuja preocupação está na qualidade da leitura oferecida ao público leitor. Esse livro demonstra até hoje um exemplo do cânone literário mexicano. Nossa análise baseia-se na versão da edição de 2000. No novo texto, encontramos marcas do anterior, porém elementos novos foram acrescentados. O conto permite questionar o modo como se processa a intertextualidade na obra de Pacheco. O conto está dividido em três partes como uma espécie de narração de micro-relatos. Um narrador onisciente conta em tempo presente a imagem de um homem que se encontra numa barraca de espelhos, próximo a um aquário, sujeito esse que aparece fumando, transpirando e olhando atentamente para uma tartaruga dentro deste aquário. A barraca é descrita como “sola”, “miserable” e localizada numa feira “ambulante”. O narrador relata a seguinte imagem: En un extremo de la barraca el hombre cubierto de sudor fuma, se mira al espejo, ve el humo al fondo del cristal. Se apaga la luz. [...] El hombre va hasta el acuario, enciende un fósforo, lo deja arder y mira la tortuga que yace bajo el agua. (PACHECO, 2000, p. 27) A ação principal realizada pelo homem descrito é o olhar, seu rosto aparece refletido no espelho, a fumaça no fundo de cristal e, depois, através do vidro e, ainda, no que está embaixo da água. Percebemos o emprego, desde o título do relato, dos quatro elementos da natureza: “el viento”, “el aire”, “el agua”, “el humo”. O vento é uma corrente de ar 262 Segundo Gérard Genette (1989), a intertextualidade trata da relação de co-presença entre dois ou mais textos mediante a citação, o plágio ou a mera alusão. O termo consegue explicar a relação dialógica entre textos de épocas e contextos diferentes. 307 constante e não se paralisa; o ar detém-se como a água do aquário; a fumaça desprende-se de modo rápido, restando apenas as cinzas do cigarro. Os fluídos parecem levar a recordação de um tempo já vivenciado por aquele homem. Não há claridade nas imagens refletidas no espelho e no aquário. O tempo parece estar estacionado naquele momento em que o homem fuma e observa o redor: primeiro, graças à luz do cigarro; depois, a do fósforo. Não encontramos outros sinais, como barulhos ou pessoas, denotando a passagem do tempo. O homem, possivelmente, reflete sobre um acontecimento num espaço e num tempo diferente daquele onde se concentra: “Piensa en el tiempo que los separa y en los días que se llevó un viento distante” (PACHECO, 2000, p. 27). O cenário da narrativa aparece nesse primeiro momento como um local de clima caloroso, denso e triste ao ser revelado pelo narrador como “sólo hay silencio en la feria ambulante [...] El aire parece detenido”. A noite é descrita como densa, árida e escura, adjetivos capazes de aludir à vida do homem observada pelo narrador do texto. O leitor começa aos poucos a construir uma imagem do contexto da narrativa, não muito evidente até esse momento. Temos um grande interrogante e enigma que perpassa o imaginário do leitor: que homem é esse? Onde ele está? Que barraca de espelhos é essa? Uma tartaruga? Na segunda divisão do conto, o narrador personagem descreve com nitidez o tempo e o espaço em que se desenvolvem a narrativa. Descreve certas imagens de uma tarde de domingo numa espécie de feira ambulante. No decorrer da narrativa, identificamos o cenário como um possível parque de diversões, muito comum em pequenos povoados e que estão sempre em processo de deslocamento para outras cidades. Nesse momento do relato, também fica clara a presença de uma mulher chamada Adriana, que acompanha o narrador. O espaço da narrativa vai ficando mais nítido à medida que o leitor percorre as duas únicas páginas do texto. O narrador nos fornece a seguinte descrição como possível mostra do espaço da narrativa: En una plaza hallamos una feria ambulante y Adriana se obstinó en que subiéramos a algunos aparatos. Al bajar de la rueda de la fortuna, el látigo, las sillas voladoras, aún tuve puntería para abatir con diecisiete perdigones once oscilantes figuritas de plomo. Luego enlacé objetos de barro, resistí 308 toques eléctricos y obtuve de un canario amaestrado un papel rojo que develaba el porvenir (PACHECO, 2000, p. 27) O narrador emprega o tempo verbal passado para fazer referência às ações realizadas por ele e Adriana no momento da enunciação do relato. O discurso do narrador revela que a ida a feira e as ações realizadas ocorrem por acaso, já que relata: “Para matar las horas, para olvidarnos de nosostros mismos. Adriana y yo vagábamos por las desiertas calles de la aldea” (PACHECO, 2000, p. 27). A forma como o narrador constrói a narrativa demonstra que os personagens por alguns instantes esqueceram-se do mundo real, de suas inquietações e do próprio tempo, pois menciona: Adriana era feliz regresando a una estéril infancia. Hastiados del amor, de las palabras, de todo lo que dejan las palabras, encontramos aquella tarde de domingo un sitio primitivo que concedía el olvido y la inocencia (PACHECO, 2000, p. 27) Em contraste com o ato de observar da primeira parte da narrativa, a ação principal da segunda parte é a de regressar a um tempo de ingenuidade. O narrador retoma, através da imagem de felicidade de Adriana, seu prazer por relembrar alguns momentos de seu passado como uma criança livre na imensidão da grande urbe. Além disso, os personagens são levados a enxergar aquele espaço e tempo como um momento distante, ou melhor, um viento distante, decorrente de uma imagem de inocência resgatada pela memória. Talvez, essa seja a primeira referência ao leitor da urbe e de seus dilemas. Num certo momento da narrativa, os personagens avistam uma cabana, de aspecto pobre, localizada nas redondezas da feira, lugar esse onde funciona uma espécie de jogo de espelhos. O narrador, numa primeira resposta, nega a se aproximar e entrar na cabana (talvez seja uma sinalização do autor em relação à impossibilidade do homem moderno de recuperar traços de ingenuidade numa vida cada vez mais individualista), mas eles acabam sendo atraídos pelas palavras do misterioso homem e entram naquela espécie de tenda. A entrada na cabana é uma forma de reviver mais uma vez a infância, mesmo que essa seja ilusória. Nesta cena da narrativa, o homem sugere a entrada dos personagens para que escutem a história 309 trágica de uma menina chamada Madreselva, que se converteu em tartaruga após desobedecer a seus pais por não ir à missa aos domingos e como resposta a um castigo divino. O homem padece e demonstra solidão. O movimento realizado pelos personagens possibilita chegar a essa imagem: aldea, plaza, barraca en la orilla de una feria, acuario. Os personagens tendem à consciência ou à ilusão como duas possibilidades da captar a realidade. A terceira seção da narrativa descreve o que foi visto pela dupla por meio do emprego do tempo verbal presente. O narrador descreve o espaço da cabana como uma espécie de “un acuario iluminado”, onde encontraram uma pequena menina disfarçada de tartaruga. Pela descrição do homem, possivelmente pai da menina, desde a primeira parte do relato, depreendemos certa solidão e nostalgia em suas ações; além disso, sua barraca está um pouco distante da feira ambulante, ou seja, reforçando sua presença/ausência naquele espaço. O olhar da dupla para a cena de transformação da menina dentro daquele aquário também era uma mescla de tristeza, dor e incerteza: Adriana y yo sentimos vergüenza de estar allí y disfrutar la humillación del hombre y de una niña que con toda probabilidad era su hija (PACHECO, 2000, p. 27) […] Es horrible, es infame – dijo Adriana en cuanto salimos de la barraca […] Cada uno se gana la vida como puede. Hay cosas mucho más infames. Mira, el hombre es un ventrílocuo (PACHECO, 2000, p. 28) Ao mesmo tempo, o próprio olhar da menina representa um pedido de salvação. Dessa forma o narrador relata: “Cuando acabó el relato, la tortuga nos miró a través del acuario con el gesto rendido de la bestia que se desangra bajo los pies del cazador” (PACHECO, 2000, p. 27). O aquário pode servir de espelho permitindo à dupla se identificar com o lamento da menina. Há uma intenção do autor em querer colocar a figura da menina/tartaruga numa posição de destaque diante dos observadores, porque esse animal pode viver em meios diferentes (na água e na terra). A água do aquário reforça o aprisionamento da menina. Os personagens, ao visualizarem a cena, pensam no jogo de poder imposto pelo possível pai à menina. Mas, ao mesmo tempo em que o 310 autor tece uma leitura de cunho social, quando deixa evidente a atitude do homem em explorar a pequena, fazendo com que ela se fantasie e engane aqueles que entram em tal cabana; por outro lado, também realiza outra leitura, que busca a explicação para a transformação física da menina numa tartaruga. A menina converte-se num animal milenário. Segundo o Dicionário de Símbolos de Juan Eduardo Cirlot (1992, p. 447), a lentidão do réptil pode simbolizar a evolução natural do homem. Paul Ricoeur (1995), num estudo sobre os símbolos, demonstra uma tendência à duplicidade de sentido dos mesmos, possibilitando novas dimensões da realidade. No conto, a carapaça da tartaruga pode simbolizar a busca por proteção, porque a infância é uma fase remota e, ao mesmo tempo, separação, ruptura com essa fase. A luz cotidiana da tarde e a iluminação do aquário escondem a verdade sobre a aparente normalidade da cena presenciada por eles. O narrador busca desmascarar toda a ilusão do homem. Convida Adriana a conhecer o “verdadero juego”. Explica-lhe o jogo de imagens e a voz do homem, que modificada parece ser a da menina relatando sua tragédia ao se apresentar aos pagantes. Conforme o narrador “la niña se coloca de rodillas en la parte posterior del acuario. La ilusión óptica te hace creer que en realidad tiene cuerpo de tortuga. Es simple como todos los trucos” (PACHECO, 2000, p. 28). Como forma de comprovar o mencionado, o narrador resolve retornar à cabana sem ser notado e busca um lugar entre as tábuas para revelar à Adriana uma visão racional para o ocorrido, novamente temos na narrativa a imagem de um tempo concentrado. Há uma busca pela consciência como ocorreu na reflexão do homem na primeira parte do relato. Contudo, uma imagem acaba surpreendendo-os e fazendo com que eles nunca voltem a falar daquela tarde de domingo. Visualizam lágrimas nos olhos da menina que profere palavras, mas que não são ouvidas ou não podem ser atendidas naquele momento: “La tortuga se quita la cabeza de niña. Su verdadera boca dice oscuras palabras que no se escuchan fuera del agua” (PACHECO, 2000, p. 28). Ao tentarem descobrir o “verdadero juego”, os personagens percebem uma realidade da qual eles mesmos não conheciam ou se 311 distanciavam, a solidão que acompanha o homem. Nesse momento, o narrador constata a inexistência de maldade naquele homem, porque percebe que ele se aproxima com carinho da menina e demonstra sofrer junto com ela. O homem também se reconhece naquele corpo de tartaruga, na verdade, chora sobre sua projeção. O narrador compreende a dor e a solidão sentida por ambos. Pacheco adota-os como exemplos dos muitos sujeitos reféns das desigualdades existentes dentro da sociedade mexicana, como se verifica pela voz do narrador descrevendo a cena: El hombre se arrodilla, la toma en sus brazos, la atrae a su pecho, la besa y llora sobre el caparazón húmedo y duro. Nadie entendería que la quiere ni la infinita soledad que comparten. Durante unos minutos permanecen unidos en silencio (PACHECO, 2000, p. 28) Ao final do conto, o narrador evoca o sentimento de tristeza perante a impossibilidade de mudança daquela situação, já que a menina recoloca a cabeça de plástico, afoga o choro e, outra vez, retorna ao centro do aquário para pronunciar seu relato, enquanto seu pai começa novamente a venda de entradas. O aquário concentra a idéia de sofrimento e dor, ele simboliza a separação entre o que está dentro e fora. O olhar de dor da menina, captado pela dupla, reflete a imensa aflição e incompreensão do sujeito diante de uma etapa da vida que nunca poderá ser recuperada. O tempo como agente destruidor é um tema bastante recorrente na obra de Pacheco, principalmente, em sua poesia. O crítico Anthony Stanton, estudioso de poesia mexicana, aborda as mudanças de estilo de Pacheco no decorrer do tempo, entretanto afirma que o tempo é um assunto latente na obra do escritor. Para Stanton (1991, p.12): “[...] se as técnicas e o tom mudam, se a poesia de sua segunda etapa é menos filosófica e menos abstrata, não é por isso que deixa de existir uma profunda continuidade temática e espiritual”263. Pacheco mostra o esgotamento da unidade do tempo, instalando uma atmosfera de degradação e de medo. 263 “[...] si las técnicas y el tono cambian, si la poesía de su segunda etapa es menos filosófica y menos abstracta, no por eso deja de haber una profunda continuidad temática y espiritual”. [Tradução nossa] 312 Pacheco plasma a imagem do vento em sua obra para simbolizar a passagem do tempo, a recordação de um momento proveitoso, como se nota na voz do narrador de um de seus contos: “El viento disperso aquellos trozos de papel y no deshizo el miedo” (PACHECO, 2000, p. 22). O narrador do conto “El castillo de la aguja”, vê no passado a plenitude do tempo quando recorda o sussurro do vento (“Por la noche, antes de quedarse dormido, escuchaba el galope del viento sobre el campo de espigas”). No tempo presente, levanta os estragos causados pelo vento quando menciona “el viento del norte empieza a correr sobre el campo y dobla y quiebra las espigas [...] Las ventanas se abren y el viento y la arena entran en la casa y se adueñan de todo y lo destruyen” (PACHECO, 2000, p. 53). Em outros contos do livro El viento distante, o autor trata da solidão, da intolerância e da violência decorrente do contexto do pós-guerra, do avance norte-americano e do crescimento sem controle da urbe. Pacheco repete temas, símbolos e imagens em sua narrativa e em sua poesia, o que possibilita encontrar certas semelhanças entre o conto “El viento distante” e alguns de seus poemas. A idéia da infância como período de unidade e de comunhão com o mundo é retomado por Pacheco no poema “Jardín de niños” (PACHECO, 1987, p. 106-119), cujo eu-lírico compara a criança a um poeta, mas devido aos atropelos da vida, “ahora en definitiva es otro mundo”, acaba perdendo sua inocência. “Los juguetes, las fotos, los cuadernos casi ilegibles hallados de repende al limpiar la casa” constituem as “ruinas” da “infancia irrestituible”. No poema 19 de “Jardín de niños” (PACHECO, 1987, p.117), Pacheco elabora um paralelismo entre os homens e os peixes. O símbolo do aquário aparece como cárcere, mas o sujeito poético alude uma esperança de salvação: Como del fondo sube una burbuja y los peces, encadenados al acuario, horadan el tedio en feroces o mansas coreografías, nosotros estamos ciegos para ver más allá del gran vidrio, del agua turbia que llamamos el tiempo. Somos los peces de este ahora que velozmente se transforma en entonces. Los prisioneros, los reducidos a soñar un futuro que otros muchos soñaron y ya es este 313 presente miserable No poema “La sirena” (PACHECO, 1987, p. 85-86), o autor recupera as imagens da feira e do aquário na tentativa de tratar o tema do tempo e da solidão: En el domingo de la plaza la feria y la barraca y el acuario con tristes algas de plásticos fraudulentos corales Cabeza al aire la humillada sirena acaso hermana de quien cuenta su historia Pero el relato se equivoca: De cuándo acá las sirenas son monstruos o están así por castigo divino Más bien ocurre lo contrario Son libres son instrumentos de poesía Lo único malo es que no existen Lo realmente funesto es que sean imposibles O único lugar possível para se encontrar uma sereia é na poesia. O sujeito poético lamenta-se pela inexistência desse símbolo de encantamento. Representa a feira como um lugar de fraudes e de exposição de aparentes monstros. A voz que narra a história da sereia quer vê-la como monstro. A tristeza da sereia e a solidão da mulher/sereia também se encontram mergulhadas no aquário. Há uma continuidade temática na obra de Pacheco e o leitor é capaz de perceber facilmente a repetição de idéias e imagens. O próprio autor converte-se em leitor de sua obra e usa seus textos para suscitar outros novos. Tal prática demonstra a idéia da autoria coletiva e da necessidade de reescritura, ambas defendidas pelo escritor. Para ele, não há textos mortos e concluídos. Além disso, Pacheco admite uma leitura de múltiplas interpretações para seu texto porque o leitor se converte num co-autor. Toda leitura é capaz de gerar outra escritura como busca ou resposta a alguma inquietação. 314 3.2.4. O medo perante a urbe em “Shelter” ¿En dónde queda el tiempo, en dónde estamos? José Emilio Pacheco (2000, p. 26) Neste capítulo analisamos a minificção “Shelter”, na qual o escritor emprega o solilóquio como recurso de estilo para lograr o medo, a insegurança e a solidão que assolam a sociedade contemporânea e geram um homem refém das atrocidades provocadas pelo convívio social proporcionado pelo espaço urbano. Ao iniciar a leitura de “Shelter”, notamos que o tema do medo e da loucura surge a partir da vivência em uma sociedade capitalista, individual e obscura, cujos problemas sociais atormentam e conduzem o homem a desvendar suas vozes silenciosas, permitindo que o mesmo desenvolva um olhar crítico na tentativa de compreender o caos instaurado na sociedade contemporânea. De acordo com Bauman (2009, p. 16), [...] poderíamos dizer que a insegurança moderna, em suas várias manifestações, é caracterizada pelo medo [...] Suspeitamos dos outros e de suas intenções, nos recusamos a confiar (ou não conseguimos fazê-lo) na constância e na regularidade da solidariedade humana Bauman parece encontrar respaldo no individualismo moderno, na tarefa do indivíduo cuidar de si próprio e de lutar por si mesmo contra toda a insegurança e o perigo inerentes à sociedade, mas com uma diferença, não se pensa mais em uma comunidade sólida e unida. As colocações de Eduardo Galeano (2008) e Michel Foucault (2006) corroboram nossas análises e reflexões em considerar o medo e a loucura como temáticas recorrentes da sociedade moderna. Todo o homem é passível de sentir o medo e transmiti-lo264 de inúmeras formas: tristeza, solidão, loucura, porque constituem um conjunto de emoções que compõem a sua condição de existência. Cada sociedade, a partir de aspectos políticos, econômicos, temporais e espaciais, apresenta 264 Diferentes fatores causam o medo e expressam o temor do homem. Entre esses fatores, podemos citar: a morte, o terror, a violência, as guerras, as doenças, o outro, aquilo que é conhecido ou até mesmo o desconhecido. 315 inquietações para certos perigos e a intensidade varia de acordo com os aspectos mencionados. O escritor uruguaio Eduardo Galeano (2008), quando questionado numa entrevista, sobre uma palavra que nunca deveria ser dita, menciona o medo como resposta, pois segundo ele: Creio que estamos vivendo uma ditadura do medo na balança universal. Então, para mim é a pior palavra, mas o que significa medo? É uma paralisia das melhores energias que o ser humano contem, energia de comunicação, das ousadias, das valentias, todas proibidas pelo medo: ‘Isso não se pode fazer, isso não se pode dizer, não faça...’ O medo de viver, o medo de relembrar, o medo de falar, é o signo do nosso tempo. O 265 medo de caminhar, o pânico da insegurança [...] A insegurança é o medo, o medo do outro, do vizinho, do ser humano que nem parece humano porque é pobre, não tem dinheiro, é um perigo público que é uma ameaça e não uma promessa, é uma ameaça, está aí se ameaçando. Então, creio que o ar está sendo muito 266 intoxicado por esse medo Galeano leva-nos a identificar um paradoxo ao se pensar na idéia de cidade como proteção – aquela que na origem nasce com o intuito de garantir a segurança de seus habitantes – porque, na contemporaneidade, as cidades estão cada vez mais associadas ao perigo e ao medo. As cidades (re) constroem-se constantemente, porém o medo aumentou. O medo pode ser compreendido tanto de uma forma negativa quanto positiva por cada sujeito da sociedade. O lado positivo está no alarme diante de situações de risco capazes de provocar males de naturezas variáveis, inclusive à morte. Contudo, o lado negativo do medo pode ser aquele direcionado a uma lembrança do passado ou em relação a algo do futuro. 265 “Creo que estamos viviendo una dictadura del miedo en la balanza universal. Entonces, para mí es la peor palabra, pero, ¿qué significa el miedo? Es una parálisis de las mejores energías que el ser humano contiene, energía de comunicación, de las osadías, de las valentías, todas prohibidas por el miedo: “Eso no se puede hacer, eso no puede decir, no haga....” El miedo de vivir, el miedo de recordar, el miedo de hablar, es el signo de nuestro tiempo. El miedo de caminar, el pánico de la inseguridad”. [Tradução nossa]. 266 “La inseguridad es el miedo, el miedo del otro, del vecino, de ser humano que ni parece humano porque es pobre, no tiene dinero, es un peligro público que es una amenaza y no una promesa, es una amenaza, esta ahí amenazándote. Entonces, creo que el aire está siendo muy intoxicado por ese miedo”. [Tradução nossa]. 316 A apreensão do medo sofreu alterações no decorrer dos tempos e foram motivadas por aspectos diferentes dependendo da sociedade. Segundo o historiador francês Jean Delumeau (1989), o medo já era uma condição imposta e controlada pelos deuses na Grécia Antiga. Para os gregos, o sentimento do medo era resultante da punição dos deuses Deimos267 e Phobos268, por isso o povo buscava manter uma relação de harmonia com eles. Para os gregos antigos, o medo era indiferente a suas vontades, pois era um elemento externo a eles, podendo ser projetado pelos deuses. Por isso, assumia um papel importante no destino de cada homem. A valentia gerada pela ausência do medo e a garantia de que estava presente no íntimo dos adversários constituíram atributos que determinaram as epopéias e as muitas lutas reais provocadas pelos gregos antigos. Na Idade Média, os intelectuais da Igreja Católica modificam o pensamento em relação ao medo exteriorizado porque defendem a interiorização dele por conta da onipresença e onipotência de Deus. A introspecção das emoções esteve circunscrita à relevância e à função do cristianismo no contexto social e na mentalidade da época. A mudança do pecado como algo inerente à humanidade encontra-se numa fronteira entre o bem e o mal, tendo o corpo como território demarcador. O respeito às normas morais estabelecidas pela Igreja e a remissão aos pecados poderiam assegurar o direito do homem de ir para o paraíso, portanto, afugentando de maneira definitiva a temerosa e agonizante vida no inferno, após o dia do Juízo Final. O controle das emoções, das ações, das paixões e do controle da sexualidade eram responsabilidades de cada sujeito e determinavam a vida no paraíso ou no inferno (Delumeau, 1989). O medo da condenação eterna, de não encontrar Deus e do inferno foram os principais reguladores do comportamento do sujeito, buscando em si combater todos os pecados, a pureza de espírito e o equilíbrio. 267 Na mitologia grega, Deimos é um dos filhos de Ares (Marte) e Afrodite (Venus). Deimos é um vocábulo grego cujo significado expressa "pânico". 268 Na mitologia grega, Fobos também é um dos filhos de Ares (Marte) e Afrodite (Venus). Phobos é o vocábulo grego que significa "medo" e funcionou de raiz para a palavra "fobia". 317 O medo e o mal-estar269 observados na época contemporânea diferem daquele de épocas anteriores mencionados até esse momento. De acordo com os professores Josepa Bru e Joan Vicente (2005), três aspectos são identificados como fontes geradoras do medo e, por conseguinte, de uma sensação de mal-estar, são eles: a diversidade, a desigualdade e a incerteza. Habitar a cidade é compreender esse espaço da diversidade, da convivência, sendo ela conflitante ou não, e da presença múltipla da diferença (étnica, religiosa, sexual). Não conhecer ou respeitar o outro e seu espaço como ser social gera conflitos, receios, leituras estereotipadas e intolerância, contribuindo para a instalação do medo nas urbes. O grupo ameaçado recorre a atos de violência como combate à intolerância, ocasionando a cultura do amedrontamento ou da insegurança (BAUMAN, 2009). Quando a desigualdade e as condições de distribuição de renda dos indivíduos não se assemelham, há um mal-estar nas cidades que provoca o crescimento dos índices de marginalização. A incerteza é materializada pelo medo do futuro, criando uma sensação de angústia perante inúmeras questões da vida, às vezes, as dúvidas envolvem a um todo coletivo. A minificção “Shelter” centra-se no discurso de um personagem como forma de representar o seu olhar de desespero para a sociedade ao seu redor. Tanto medo gera-lhe momentos de fuga do real, em que 269 Sugerimos a leitura de O mal-estar na civilização (1978), de Sigmund Freud, em que o psicanalista afirma que a civilização ao produzir um mal-estar tinha uma condição intrínseca e imutável que possibilitava a ordem da sociedade moderna (repressão dos instintos e dos desejos, maior rigidez, controle da liberdade do sujeito). Critica a impossibilidade da utilização dos progressos científicos e tecnológicos como benefício para a humanidade em relação ao alcance de uma maior felicidade. Aborda, ainda, do sentimento de frustração imposto pela civilização aos sujeitos. Porém, sua leitura sobre os sofrimentos da civilização se dá baseado na sociedade antiga, muito mais rígida, comparada à atual, fragmentada, desnorteante e em constante processo de mudança. Os desejos na sociedade atual estão alicerçados no universo capitalista, na capacidade de consumir bens. Desta maneira, a realização dos desejos não se contempla sem que se provoquem sofrimentos, seja daqueles que buscam o prazer e não o realizam por algum motivo ou daqueles sem condições, principalmente econômicas, de concretizar seus desejos. O medo e a produção do mal-estar não são apagados porque são condições intrínsecas do indivíduo. Os desejos reprimidos e não satisfeitos produzem mal-estar, porque normalmente esse desejo está ligado ao consumo e a lógica de mercado. Bauman (2009) informa que o sujeito abandona sua segurança em prol da felicidade proporcionada pelo poder de consumir bens materiais. 318 percebemos certo desvio psíquico em suas ações. De acordo com Bauman (2009), o sentimento de medo está relacionado a um estado psíquico cuja reação normalmente é passageira. Pacheco constrói uma narrativa intimista, na qual o narrador-personagem se mantém no anonimato no decorrer do texto e revela seu pavor e agonia de habitar a Cidade do México, empregada como representação do mundo que rodeia o protagonista da história. Alguns pequenos dados sobre sua identidade são oferecidos ao leitor, pseudo-interlocutor do texto, como recurso para que este entenda a personalidade e visualize os atos do narrador-personagem da história. Entre eles, temos o resgate da solidão na infância e na adolescência, o fato de ser uma pessoa contrária ao matrimônio, um ser humano egoísta e desenhista de profissão. A leitura do personagem constrói-se nas primeiras linhas do texto: No hay infierno. Aquí pagamos todo. De niño pensé que el infierno era un lugar lleno de miedo y soledad. Y siempre estuve solo y sentí miedo. Al cumplir sesenta años volvió a obsesionarme la idea infantil. Junto a mí todos compartían lo peor y lo mejor con los demás. Yo no. Ni siquiera pensé en casarme: temí que de hacerlo sólo añadiría problemas y malestares a los que ya me agobiaban. Roído por todos los pecados del egoísmo, sólo tuve un don: buena mano para dibujar. (PACHECO, 1990, p. 90) Pelo discurso do personagem sentimos a solidão como uma constante em sua vida desde a infância, responsável possível pela amargura e pelo medo desenvolvido pelo narrador no decorrer do conto. No final do fragmento, o narrador-personagem aponta como uma de suas vantagens para o fato de desenhar; por outro lado, informa ao interlocutor do texto um malefício em sua atividade quando nos revela “gracias sobre todo a los aviones que contribuí a producir entre 1941 y 1945 y arrasaron tantas ciudades alemanas y japonesas, acumulé fortuna” (PACHECO, 1990, p. 90). Notamos, no momento da enunciação, a preocupação do personagem em destacar que o seu prazer foi utilizado novamente a favor da desgraça alheia. Ao narrar, faz uma alusão às cenas de caos provocadas pelos atos de barbárie dos idealizadores da Segunda Guerra Mundial. 319 Os danos da guerra foram avassaladores, em grande proporção, para os países envolvidos. Foram milhões de mortos e feridos, cidades destruídas, indústrias e zonas rurais arrasadas e dívidas incalculáveis. O racismo esteve presente e deixou uma ferida grave, principalmente na Alemanha, onde os nazistas mandaram para campos de concentração e mataram aproximadamente seis milhões de judeus. O Japão sofreu um forte ataque dos Estados Unidos, que despejou bombas atômicas sobre as cidades de Hiroshima e Nagazaki. Uma ação desnecessária que provocou a morte de milhares de cidadãos japoneses inocentes, deixando um rastro de destruição nestas cidades. Nos tempos atuais, os principais motivos dos perigos e riscos para a humanidade têm origem nela própria. O legado político-econômico, social e cultural são os principais responsáveis pela produção dos medos e da sensação de mal-estar. O narrador-personagem mostra sua parcela de culpa na criação, em seu imaginário, de um sentimento de medo e de terrorismo, que rondam a sociedade moderna. Isso comprova o medo com um sentimento intríseco ao homem, além disso, ressalta a cultura do amedrontamento (BAUMAN, 2009) na qual estamos imersos. No conto “La cautiva”, Pacheco também aborda essa temática. O narrador adulto resgata suas lembranças de infância em que vemos que o medo é alimentado pelo discurso dos mais velhos da região, pois relacionam a ocorrência de tremores de terras e de terremotos a um castigo de Deus para com o homem. A ação responsável pelo desencadeamento da trama é o terror diante do terremoto: A las seis de la mañana un sacudimiento pareció arrancar de cuajo al pueblo entero. Salimos a la calle con miedo de que los techos se desplomaran sobre nosotros. Luego temimos que el suelo se abriera para devorarnos. Calmado el temblor, nuestras madres seguían rezando. Algunos juraban que el sismo iba a repetirse con mayor fuerza. (PACHECO, 2000, p. 41) O medo aumenta na narrativa à medida que os personagens percorrem as ruínas de um antigo convento, porque como diz o narrador “El terremoto nos ha permitido apreciar la superioridad de lo moderno sobre lo antiguo. Como pueden ver, los más dañados son los edificios coloniales” (PACHECO, 2000, p. 41). Os personagens visitam o convento como uma saída de enfrentar e combater o medo interior, porém, quando 320 se deparam com um corpo mumificado de uma mulher, que se desfaz ao ter contato com as mãos do narrador, a sensação de insegurança e de temor é novamente resgatada. A menção feita pelo narrador às diferentes construções arquitetônicas e a permanência de certos vestígios na vida moderna é bastante significativa. Nessa imagem, vemos a intenção de Pacheco em tratar do mito da Modernidade, que pode ser interpretado como a demolição do velho para a construção do novo, que será velho amanhã, é o eterno movimento cíclico: desconstruir para reconstruir. O narrador do conto “La cautiva” descobre, ao conversar com o padre da comunidade, o motivo pelo qual a mulher foi castigada; ela era casada e manteve relações com um monge. O assunto provoca muitas dúvidas nos habitantes da cidade, mas o professor e o padre da localidade conseguem encontrar uma saída racional para a descoberta dos meninos. O narrador adulto demonstra, em seu discurso, que o medo é uma sensação constante em sua vida: Pasó el tiempo. Los niños de 1934 nos hicimos adultos y nos dispersamos […] Pero cada temblor me llena de pánico. Siento que la tierra devolverá a sus cadáveres para que mi mano les dé al fin el reposo, la otra muerte (PACHECO, 2000, p. 45) No conto “Jericó”, o narrador observa com tristeza a vida da capital mexicana, pois o próprio homem destrói o ambiente e apresenta sinais de violência: Antes de levantarse, junta la hierba seca y prende fuego as las ruinas. El aire se impregna de un olor extraño […] H llega a las montañas que dominan la capital. De pie en los acantilados ve por un instante el terror, el caos, las llamas que arrasan la ciudad, los edificios desplomados, el aire letal que todo lo devora mientras el hongo de humo y escombros se eleva el sol fijo o en el espacio (PACHECO, 2000, p. 132) Retornando à análise da minificção “Shelter”, o narradorpersonagem direciona seu olhar para a sociedade e acredita na ocorrência de um possível apocalipse nuclear ou uma espécie de Terceira Guerra Mundial, em que nenhum homem conseguiria salvação. Sendo assim, o personagem visualiza uma única solução possível para seu problema, erguer uma espécie de refúgio subterrâneo e anti-atômico, nomeado pelo personagem como “mi shelter”, com a ajuda de homens 321 estranhos de cidades vizinhas, pois, além de não possuir amigos, seria um projeto secreto. Segundo Bauman (2009, p. 41): A incerteza do futuro, a fragilidade da posição social e a insegurança da existência – que sempre e em toda parte acompanham a vida na modernidade líquida, mas tem raízes remotas e escapam ao controle dos indivíduos – tendem a convergir para objetivos mais próximos e a assumir a forma de questões referentes à segurança pessoal: situações desse tipo transformam-se facilmente em incitações à segregaçãoexclusão A fuga simboliza uma resposta imediata do organismo para se livrar de uma situação de risco. Ela é o recurso encontrado pelo narradorpersonagem para superar a situação de perigo. De acordo com Bauman (2009), a ação de fuga provocada pelo medo, evita o sofrimento diante do perigo e pode impedir o enfrentamento do sujeito com os conflitos decorrentes da sensação de insegurança. Dessa maneira, o medo permite o combate do mesmo, possibilitando condições para o sujeito superá-lo mediante vivência do problema. Na minificção de Pacheco, dois possíveis interlocutores do narrador são mencionados: os construtores e os demais indivíduos da sociedade. O narrador-personagem não busca uma alternativa para ajudá-los, pois afirma “que los demás se salvaran por sus medios”. O fragmento vai de encontro com o sentimento de individualizações da sociedade moderna, em que cada um deve se preocupar com a vida individual, não compartilhando experiências, pois conforme Bauman (2008, p. 115-116), “Neste mundo, os laços humanos são segmentados, as identidades, em máscaras usadas sucessivamente [...] desde o princípio dos tempos modernos, as cidades têm sido reuniões de multidões anônimas”. A passagem seguinte mostra-nos a preparação para a nova vida e o sentimento de medo do personagem diante da possibilidade de mudança a qualquer momento: Durante años cuidé hasta el mínimo detalle, abastecí mi casa subterránea con todo lo necesario para sobrevivir al holocausto en vida, pero mantuve la sangre fría pese a las noticias alarmantes que nos bombardeaban a todas horas [...] Me rodeaban muros invulnerables, depósitos de agua pura, miles de latas de conservas, toneladas de frutas y verduras en los congeladores, energía eléctrica suficiente para medio siglo, quinientos discos de música 322 clásica y popular, ochocientas novelas policiales y ciencia-ficción (PACHECO, 1990, p. 91) O próprio personagem constrói mentalmente um universo fantasioso. Suas desconfianças atordoam-lhe o pensamento até um dia em que, segundo o texto “la crisis estalló”, ele se encontra num shopping center270 comprando utensílios e comida para sua futura vida em prisão. Nesse momento, o narrador-personagem parece perder um pouco da consciência, pois começa a agir através do seu inconsciente, ou melhor, das imagens vazias capturadas por viver numa época de insegurança e medo. Isso gera-lhe uma mudança natural de seu estado psíquico, como se observa no fragmento a seguir: Intenté controlarme y llamé por teléfono a la estación [...] Me asomé a la ventana. No había nadie en la calle. Me aterró el estruendo de los aviones supersónicos sobre la ciudad. Del edificio vecino salió un grito: - ¡Ha estallado la guerra! – y una invocación a la piedad de Dios [...] Bajé al refugio. Estaba a salvo. Cerré la puerta secreta que iba a defenderme de la explosión, las llamas, el estroncio 90 (PACHECO, 1990, p. 92) A reação do narrador- personagem leva o leitor a desconfiar em vários momentos de seu estado psíquico, pois conforme o filósofo francês Michel Foucault (2006, p. 120): Ainda no começo da idade clássica, a loucura era vista como pertencendo às quimeras do mundo; [o homem] podia viver no meio delas e só seria separada no caso de tomar formas extremas ou perigosas. O olhar do personagem e suas ações transportam-nos para um real simbólico construído por seu imaginário. As palavras lançadas por ele são projeções do real, no entanto, fruto de uma leitura antecipada dos 270 Acreditamos que seja intencional por parte do autor o emprego desse local no texto, porque, além do shopping center ser um símbolo da modernidade, sinaliza outro exemplo de uma micrópole, onde o sujeito também se isola do mundo externo, mas diferente de um condomínio de luxo, por exemplo, o centro comercial não exclui. O shopping como uma cidade de serviços foi erguido para substituir a cidade real. De acordo com Beatriz Sarlo (2009, p. 18-19), “El shopping center asegura algunos de los requisitos que se exigen de una ciudad: orden, claridad, limpieza, seguridad, y que no están garantizados en las ciudades de los países pobres o sólo se obtienen parcialmente fuera de los enclaves del capitalismo globalizado. El shopping de la ilusión de independizarse de la ciudad y del clima: la luz es inalterable y los olores son siempre los mismos […] en el shopping los viejos y los adolescentes pueden pasear seguros, hay servicios al alcance de todo el mundo, es muy difícil robar o ser robado, y lo que se da para ver es lo que todos quieren mirar […]. El shopping es de las familias, de los pobres decentes, de las capas medias cuando pueden comprar y también cuando no pueden”. O shopping como um espaço público oferece novos modelos e novas formas de agrupar pessoas, sem que essas assumam laços sociais. 323 fatos visíveis no decorrer de sua vida e a partir das ações humanas ocorridas na sociedade. Ainda segundo Foucault (2006, p. 113): [...] nem tudo é verdadeiro; mas em todo lugar e a todo momento existe uma verdade a ser dita e a ser vista, uma verdade talvez adormecida, mas que no entanto está somente à espera de nosso olhar para aparecer, à espera de nossa mão para ser desvelada. O discurso do filófoso francês somente ratifica o mencionado anteriormente, porque em nosso inconsciente já temos planificado imagens projetadas de nossa vida, sejam elas otimistas ou pessimistas. O personagem construiu seu refugio como estratégia de fuga do real, já que após estar encarcerado revela: “por fortuna evité que hubiera comunicaciones de ningún tipo; ni radio ni teléfono no televisor. ¿Para qué?” (PACHECO, 1990, p. 92). Com essas palavras, ele afirma o desejo de desvencilhar-se do tempo presente, das notícias sangrentas, de lutas e de revoltas. Conforme Bauman (2009, p. 25), “existem, em muitas áreas urbanas, um pouco no mundo todo, casas construídas para proteger seus habitantes, e não para integrá-los nas comunidades às quais pertencem”. A sensação de viver numa eterna situação de perigo provoca reações como a do protagonista da minificção: a construção de uma espécie de casa subterrânea para obter segurança e diminuir o medo e o mal-estar. O narrador-personagem refugia-se no espaço subterrâneo na tentativa de se distanciar dos perigos e do caos instaurado na sociedade, garantindo, dessa forma, sua existência após novas guerras idealizadas por ele, contudo seu olhar para o futuro também se apresenta contaminado pelo sentimento de medo e horror: Si años más tarde, cuando las nubes y el polvo radiactivo se hubieran alejado, otros hombres salían de sus refugios con la esperanza de fundar un mundo nuevo, yo no iba a estar entre ellos. Jamás regresaría a la tierra devastada para vivir entre monstruos cubiertos de pústulas y escamas. No me forjaba ilusiones. El shelter sería por lo pronto mi salvación y dentro de algunos años mi tumba. (PACHECO, 1990, p. 93) O narrador-personagem resume os mais de dez anos em que esteve refugiado a espera da salvação, mesmo que ilusória, para os problemas da humanidade. A agonia não foi retirada de dentro de si em 324 nenhum momento, pois a todo instante, em seu relato, surgem cenas de devaneio e constante preocupação. Analisemos nos fragmentos abaixo: Pasé despierto las primeras noches, torturado por la sensación de que allá arriba todo se quemaba, se asfixiaba, se corrompía. Meses depués el terror me sobrecogió al escuchar ruidos levísimos en la puerta [...] Nadie podría descubrir nunca. [...] Me estremecí de sólo imaginar a aquellos seres deformes y el horror de sus llagas [...] Mi soledad quedó obsesionada por el pánico. [...] Me revolví en las tinieblas durante muchas horas, temiendo la visión infernal que iba a encontrar afuera. (PACHECO, 1990, p. 92-93) O narrador-personagem não consegue suportar tais dúvidas, além disso, a fome e a sede se instalam em seu corpo. Por outro lado, podemos fazer uma análise baseada num retorno do personagem ao mundo real, porém, ao acompanhar passo a passo de seu discurso, notamos que o surto provocado nele pelo medo da vida turbulenta continua ou, ainda, foi mais intensificado, pois o personagem regressa a sua rotina diária e se depara com uma nova realidade: Ya a punto de morir de sed, abrí la puerta, ascendí hacia la oscuridad que se había adueñado de la Tierra, caminé a ciegas y escuché de repente los gritos de lo que (supuse) había sido una mujer (PACHECO, 1990, p. 93) [...] Quise acercarme. Ella escapó. Golpeándome contra las paredes me interné en un laberinto. A trechos veía algo semejante a una luz rojiza. Tropecé y caí de bruces. Poco a poco recobré algo de vista. Con asombro y pavor me di cuenta de que la casa era mi casa (PACHECO, 1990, p. 93) O personagem retorna pouco a pouco à realidade de sua casa, da rua, da cidade, porém confessa não pertencer mais a essa sociedade, porque o medo lhe sufocou e fez com que fugisse do próprio real. Ele, após ser reconhecido como o vizinho desconhecido, se auto-descreve “mi mal olor, mis larguísimos cabellos blancos, mis ojos dementes, mi boca desdentada y carcomida por el escorbuto, mi piel llena de pústulas y escamas” (PACHECO, 1990, p. 93). No final, após todo o seu sofrimento, 325 descobre que “no hubo guerras [...] el mundo estaba en paz y había destruido todas sus armas nucleares” (PACHECO, 1990, p. 93). Logo, o personagem principal do relato pode representar a todos aqueles homens comuns que cruzam o espaço citadino, vivenciando e observando nele inúmeras contradições e um certo caminhar sem rumo. O personagem só comprova um fato verídico de nossa sociedade: muitos são os casos de identidades perdidas ou desencontradas na imensidão dos espaços das grandes urbes. Toda a narrativa constrói-se a partir de um tempo presente – momento da enunciação do personagem – e num ambiente específico, o “hospital en que ahora agonizo”. De acordo com Foucault (2006, p. 118), “até pouco tempo o hospital foi um lugar ambíguo: de constatação para uma verdade escondida e de prova para uma verdade a ser produzida”. O filósofo ainda analisa sobre a funcionalidade do hospital “permitir a descoberta da verdade da doença mental, afastar tudo aquilo que, no meio do doente, possa mascará-la, confundí-la, dar-lhe formas aberrantes, alimentá-la e também estimulá-la” (FOUCAULT, 2006, p. 121). Dessa forma, concluimos que a vivência num mundo de caos e de relações conflitantes pode gerar imagens de indivíduos frios, violentos e agressivos, podendo cada um, desenvolver tais sintomas de inúmeras formas, refugiando-se pelo medo de tudo, lutando ou adaptando-se ao sistema já corrompido. A minificção “Shelter” destaca a figura de um homem comum da sociedade mexicana, num momento de fuga do real, expondo a trajetória de sua vida repleta de medos, dores e dúvidas. A temática do medo aparece, no relato, na força simbólica das ações realizadas pelo enunciador do texto. O discurso do narrador-personagem envolve o leitor numa reflexão sobre o espaço citadino habitado por todos e como este se transforma no decorrer dos séculos, provocando inúmeras sensações nos indivíduos que habitam esses espaços. Em outra minificção intitulada “No entenderías”, Pacheco aborda, principalmente, o tema da mixofobia (BAUMAN, 2009) – medo de misturar-se – focando no racismo como um dos resultados do medo 326 cultural da sociedade. A sociedade moderna e da globalização impôs um ambiente plural, em que os mais variados tipos humanos, estilos de vida, crenças, ideais culturais e línguas percorrem a urbe, gerando uma sensação de incômodo e de desordem. Apesar da idéia de unificação proposta pela globalização, o caos é recorrente na Babel em que o mundo se transformou devido ao próprio homem. A vida na cidade moderna retoma o castigo e a maldição da narrativa bíblica. Pacheco demonstra em sua literatura a nostalgia de um tempo que se foi, de uma memória perdida e de um presente que se anuncia como pesadelo. Em “No entenderias”, temos o diálogo entre um pai e sua filha percorrendo as ruas da capital mexicana até o momento em que presenciam uma cena de violência na entrada de um parque público. O narrador-personagem é a imagem do homem conhecedor dos perigos da cidade quando menciona “caminaba rápido y la niña tenía que esforzarse para avanzar a mi paso” (PACHECO, 2000, p. 107). Já a menina é representada como ingênua, indefesa e sem maldade. Enquanto o pai caminhava apreensivo pelas vias, a menina queria aproveitar o momento para brincar. Além disso, fazia inúmeras perguntas, que seu pai não sabia como lhe responder ou, simplesmente, não podia dizer a verdade. Antes de ambos presenciarem a cena de violência contra um menino, o ambiente da cidade é descrito pelo narrador com um ar de certo mistério como se anunciasse o perigo: Obscureció. El firmamento estaba lleno de nubes plomizas. En los botes de basura se pudrían los desechos. Bajo el rumor lejano del tránsito se escuchaban caer gotas de lluvia escurridas de las ramas […] En ese instante los gritos llegaron hasta nosotros. (PACHECO, 2000, p. 107-108) […] El parque me parecía interminable. Nunca íbamos a alcanzar la estación del metro, jamás regresaríamos a casa, la niña no cesaría de preguntarme ni yo de darle respuestas inútiles, las mismas que recibí a su edad (PACHECO, 2000, p. 109) Um menino é espancado dentro do parque por um grupo, mas o narrador não nos revela naquele momento o motivo de tal agressão, somente descreve a cena. O pai e a menina observavam tudo atrás de uma árvore. O pai estava imóvel diante do perigo, não pensou em ajudar 327 ou pedir auxílio, porém a menina, mesmo sem entender aquelas imagens, cobra uma atitude do pai. O temor do narrador para o ato de violência é transmitido da seguinte maneira: Diez o doce niños habían cercado a otro […] Entonces se lanzaron contra él […] Vi la cara oscura enrojecida por las manos blancas […] El muchacho se desplomó y ya en tierra lo patearon entre todos. Alguien lo puso de pie y los demás lo abofetearon de nuevo (PACHECO, 2000, p. 108) O narrador relata o sofrimento do rapaz. Nenhuma informação ou causa para tal incidente nos é apresentada. Somente sabemos da agressão a um menino de pele escura, conforme o narrador o descreve. O pai, ao presenciar a cena, tenta disfarçar seu medo diante da menina e busca retirá-la daquele local, já que a mesma se surpreende: - ¿Qué están haciendo? - Peleando. Vámonos de aquí. La presión de sus dedos fue como un reproche. Se había dado cuenta. Yo era responsable ante ella. A su vez la niña significaba para mí una coartada, una defensa contra el miedo y la culpa […] La niña observaba la escena sin parpadear - Diles que no hagan eso - Vámonos. Apúrate (PACHECO, 2000, p. 108) O narrador explica-nos o motivo de sua não intervenção na briga. Somente mostra uma tentativa de apartar a violência com um grito, mas revela: “sólo uno de ellos se volvió a mirarme y me despachó con un doble gesto de amenaza y desdén” (PACHECO, 2000, p. 108). O narrador sabia que não conseguiria lutar contra eles e precisava proteger sua filha. Isso ele não revela para sua filha, mas conversa consigo mesmo. O grito pode ter sido uma forma encontrada de extravasar o medo guardado. Os vândalos nem se preocuparam em insultar ao pai e a menina. Ela questiona o pai sobre os motivos da agressão do menino e, novamente, lhe dirige novas perguntas: - ¿Por qué le pegaron si él no les había hecho nada? - Se pelearon, no sé - Ellos eran muchos. Son malos ¿verdad? [...] - Entonces es bueno el niño al que le sacaron sangre los otros - Sí, es decir, no sé - ¿O es malo también? - No, los malos son los otros porque no se debe actuar así (PACHECO, 2000, p. 109) 328 As perguntas da menina eram tantas que o caminho de retorno a casa parecia cada vez mais longo. A sensação de insegurança na cidade faz com que o pai não saiba mais diferenciar entre as pessoas boas e as más. De acordo com o professor mexicano José Luis Cisneros (2008), a sociedade atual apresenta inúmeras formas ilegais de sobrevivência, produtos da insegurança econômica e social, constituindo uma nova ordem. Para o pesquisador, um dos motivos do aumento da delinqüência na Cidade do México está no seguinte fato: [...] é o incremento constante da participação de jovens ou grupos de adolescentes que se apoderam de ruas da cidade como parte do seu habitat natural, emergindo de maneira considerável em quase todas as zonas da Cidade do México. 271 (CISNEROS, 2008, p. 60) A participação cada vez maior de jovens em atos delinqüentes ou em organizações de crimes organizados, o crescimento urbano e os estereótipos dos sujeitos difundidos pelos meios de comunicação criam um ambiente social estigmatizado, de segregação e de medo do uso do espaço público da cidade. Isso favorece a criação de espaços de terror. Segundo Cisneros, A insegurança que se vive na Cidade do México propiciou uma imagem de não proteção e perigo constante, que em muitos casos é real e em outros se encontra constituído por um horizonte de imaginários sociais da delinqüência e da violência. A manutenção dessa representação é constituída pelos meios de comunicação de massas, os quais produzem uma dramatização das ações, ao difundir de maneira espetacular os 272 crimes violentos, os seqüestros e os roubos (CISNEROS, 2008, p. 62) [...] [...] os medos culturais invadem ao indivíduo e debilitam as coletividades, de modo que se constrói um medo do outro. Um medo que se mostra pela perda de controle do espaço, pela 271 “[...] es el incremento constante de la participación de jóvenes o agrupaciones de adolescentes que se apoderan de las calles de la ciudad como parte de su hábitat natural, emergiendo de manera considerable en casi todas las zonas de la ciudad de México”. [Tradução nossa] 272 “La inseguridad que se vive en la ciudad de México ha propiciado una imagen de desprotección y peligro constante, que en muchos casos es real y en otro tanto se encuentra constituido por un horizonte de imaginarios sociales de la delincuencia y la violencia. El mantenimiento de esta representación, es constituido por los medios de comunicación de masas, los cuales producen una dramatización de las acciones, al difundir de manera espectacular los crímenes violentos, los secuestros y los robos”. [Tradução nossa] 329 gente desconhecida, pela diferença de costumes, 273 comportamentos, códigos e práticas diferentes a nós (CISNEROS, 2008, p. 60) O menino agredido também olha com desprezo ao homem e ignora sua ajuda, apesar de estar machucado. Seria uma revolta por esse ter observado tudo e nada ter feito ou, simplesmente, impera seu individualismo e acredita não precisar do outro? Os fragmentos abaixo demonstram o mencionado: Ya a salvo, nos acercamos. El muchacho golpeado se incorporó. Sangraba por las narices y la boca. Le dije: Permítame ayudarlo. Lo llevaré… [...] Me vio sin responder. Se limpió la sangre con los puños de la camisa a cuadros. Le ofrecí un clínex. No hubo siquiera una negativa, sólo desprecio en sus ojos […] El muchacho nos volvió la espalda sin decir nada y se alejó arrastrando los pies sobre la tierra húmeda (PACHECO, 2000, p. 108-109) O relato de Pacheco apresenta a destruição do espaço citadino não através da maldição profetizada do fogo da Babilônia bíblica, mas por meio da capacidade destrutiva do sujeito contra seu semelhante. O pai detecta temor nos olhos do menino e de sua filha como uma espécie de cobrança por uma atitude não tomada. O narrador relata o encontro com o policial e o momento em que a menina lhe conta em poucas palavras o ocorrido. O policial considera adequada a atitude do homem em nada ter feito, pois segundo seu discurso: “- Es irremediable. Pasa a todas horas. Hizo bien en no entrometerse. Son peligrosos. Andan armados. Dicen que el parque es sólo para blancos y todo negro que entre en él pagará las consecuencias” (PACHECO, 2000, p. 109). As palavras do oficial explicam o ato de violência do grupo, porém no surpreendem por sua passividade em se tratando de um oficial da lei. As palavras de Cisneros (2008, p. 59) corroboram nosso ponto de vista quando ele menciona: 273 “[...] los miedos culturales invaden al individuo y debilitan las colectividades, de modo que se construye un miedo al otro. Un miedo que se muestra por la pérdida de control del espacio, por la gente desconocida, por la diferencia de costumbres, comportamientos, códigos y prácticas diferentes a nosotros”. [Tradução nossa] 330 [...] as instituições encarregadas de outorgar segurança aos cidadãos mostram suas dificuldades para estabelecer um nível de contenção, aparece um ambiente de perda de credibilidade e confiança que dificulta ainda mais a tarefa destas instituições, e junto a isso se constrói também um imaginário social formado por espaços de tensão que costumam ser expressos pelos cidadãos como espaços de terror e medo, produto da 274 insegurança que se vive na Cidade do México As palavras do policial apresentam aquele espaço da cidade como um local de segregação, onde os habitantes do bairro não aceitam pessoas negras dividindo os mesmos espaços que os brancos, prevalecendo o desejo do homem de se fechar em grupos com interesses iguais. Trata-se do medo da desordem, do caos e da incerteza. O homem teme a seu semelhante porque sabe que ele não é diferente a si próprio e que esse outro também tenta se defender, portanto a discórdia será permanente. O pai da menina, desde o início da narrativa, sinalizou a presença do medo, apesar de senti-lo, não defende a segregação dos grupos e discorda do pensamento do policial. Na saída do parque, ao cruzar com três jovens negros, volta a sentir um mal-estar somente pelo olhar dos meninos: “Nadie me había mirando nunca en esa forma. Vi las navajas de resorte y pensé que iban a atacarnos. Pasaron de largo y se internaron en la arboleda” (PACHECO, 2000, p. 110). A menina também sentindo-se coagida, questiona seu pai perguntando-lhe o motivo de tanta discórdia. O pai novamente se vê numa situação difícil, acreditando que a mesma não entenderia, ou melhor, seria muito pequena para passar por tamanho sofrimento. O pai dá-lhe um abraço como uma forma de simbolizar sua proteção diante daquela cidade, cujo destino era retornar à selvageria, já que o narrador coloca “La estreché levemente, con ternura y con miedo [...] El parque avanzaba sobre la ciudad. Todo iba a ser de nuevo selva” (PACHECO, 2000, p. 110). 274 “[...] las instituciones encargadas de otorgar seguridad a los ciudadanos, muestran sus dificultades para establecer un nivel de contención, aparece un ambiente de pérdida de credibilidad y confianza que dificulta aún más la tarea de estas instituciones, y junto a ello se construye también un imaginario social formado por espacios de tensión que suelen ser expresados por los ciudadanos como espacios del terror y miedo, producto de la inseguridad que se vive en la Ciudad de México”. [Tradução nossa] 331 Os atos de delinqüência são o reflexo da urbe como produtora de medo pelos acontecimentos violentos nela vividos, mas também como o resultado de um imaginário criado e propagado pelos meios de comunicação. O medo do outro dilui o sentimento de pertencer a um grupo social e o de compartilhar uma identidade urbana. No contexto deste conflito, a percepção da desordem na urbe pode ser resumida pela existência de algumas questões, entre elas: a diminuição ou extinção do diálogo entre os grupos sociais; o isolamento dos mesmos; a busca e a identificação da origem do medo como responsabilidade do outro que está ao nosso lado, normalmente mais fraco e a estigmatização de certos ambientes da cidade classificados como perigosos. 3.2.5. O poder das palavras na confissão de “La zarpa” Si supiera quién eres y quién soy, si supiese por qué eres y por qué soy, la vida perdería su intensidad lacerante. José Emilio Pacheco (2009a, p. 182) A necessidade de narrar acompanha toda a história do ser humano. Sempre existiu no decorrer da história da humanidade uma vontade de escutar relatos do já vivido e os anseios do porvir. O conto “La Zarpa”, de Pacheco, é a comprovação do poder que as palavras assumem no momento de sua enunciação. O conto fundamenta-se numa confissão da narradora-personagem Zenobia, quando ela relata ao padre toda sua solidão, amargura, tristeza e inveja, principalmente, em relação a sua amiga de infância Rosalba. O conceito de poder, no conto de Pacheco, associa-se a todo o momento ao discurso de Zenobia em relação à posição que ocupa como o “eu” central da narrativa. O título do conto alude à palavra “zarpa”, as garras – verdadeiras palavras – utilizadas e pronunciadas por Zenobia no decorrer da confissão. Pacheco conduz os leitores para o mundo 332 simbólico do conto. Trata-se de uma narrativa intimista, na qual a narradora-personagem revela seus problemas e a sociedade que a cerca. Segundo o filósofo francês Michel Foucault (1985, p. 185), “o poder não é algo que se possa dividir entre os que o possuem e o aplicam e os que não o possuem e lhe são submetidos”. Para o filósofo, o poder representa algo que vai além de uma simples forma de atuação dos mais fortes, ou seja, de forças políticas autoritárias sobre outras. Para que seja verdadeiramente subjugado de um para o outro, o poder deve movimentar-se em cadeia através de mecanismos. Vemos nesses “mecanismos de poder” a atuação de Zenobia através da imagem de si mesma e de suas palavras. O poder no conto de Pacheco está no momento em que o autor dá voz ao sujeito discursivo do relato. O poder é exercido por Zenobia e, paralelamente, sofrido por ela no momento que retoma o seu passado de amargura. O autor emprega, em seu conto, um exercício hermenêutico, pois cada palavra pode apresentar um duplo sentido dentro da trama narrativa. Desde o primeiro momento do relato, temos uma voz enunciativa – Zenobia275 – que expõe sua experiência em primeira pessoa do singular num solilóquio em que surge um pseudo-interlocutor, “el cura”. Num segundo plano da narrativa, está a figura do padre (ou do leitor) como ser passivo durante todo o ato da confissão. A personagem protagonista centraliza em seu discurso o verdadeiro motivo e o agente principal de suas dores e problemas no tempo real da enunciação – a figura que traz de Rosalba desde sua imagem do passado. O gênero confissão assume a posição de intertexto ao inserir-se no conto do escritor mexicano. Na confissão não se narra realmente como são os fatos, mas, segundo o olhar e o poder das palavras de quem enuncia, ou seja, o poder de decidir fatos relevantes pela palavra. O sujeito enunciativo a partir das interferências de sua própria história de vida, contrariando todo o ritual moralista que pressupõe o ato da 275 O leitor escuta somente na narrativa a voz dessa mulher confessando, técnica que nos recorda Juan Rulfo, em “Lluvina”. 333 confissão, relata a sua versão dos fatos. Para a filósofa e ensaísta espanhola María Zambrano (2001, p. 35): A confissão tem também um começo desesperado. Confessamos o cansaço de ser homem, de si mesmo. É uma fuga que, ao mesmo tempo, quer perpetuar o que ocorreu, aquilo do que fugimos. Quer expressá-lo para distanciá-lo e para ser outra coisa, porém quer, ao 276 mesmo tempo, deixá-lo para assim, realizá-lo Através das palavras de Zambrano, percebemos a necessidade do indivíduo de escapar de si mesmo, de seus próprios medos e angústias internas. Por outro lado, ao resgatar muitos momentos de sua história individual e, indiscutivelmente, coletiva, temos a falta de sorte de relembrar alguns inconvenientes, mas, nesse segundo momento, como uma saída para resolução de possíveis pendências. No instante em que Zenobia expõe sua vida ao padre de sua Igreja, percebemos seu questionamento interno: “No sabe cuánto me apena quitarle tiempo con mis problemas, pero ¿a quién si no a usted puedo confiarme? De verdad no sé cómo empezar” (PACHECO, 1997, p. 59) A confissão pressupõe reconhecer o poder da palavra e dos atos sobre si mesmo – inversão do poder –, sendo que o reconhecimento de uma culpa sempre vem seguido de uma penitência. O ato da confissão constitui um ritual em que manifestamos a preocupação e o arrependimento por nossos pecados277, principalmente, quando se aproximam as datas importantes para a Igreja Católica como, por exemplo, a Semana Santa ou o Natal. Entretanto, nem sempre nossas faltas são totalmente expostas ou demonstramos nossa sincera culpa. O ritual da confissão só se concretiza quando é repassada a “sentença” do sacerdote como meio de amenizar a gravidade dos pecados; sejam eles pagos em orações ou em ações em benefício do próximo. 276 “La confesión tiene también un comienzo desesperado. Se confiesa el cansado de ser hombre, de sí mismo. Es una huída que al mismo tiempo quiere perpetuar lo que fue, aquello de que se huye. Quiere expresarlo para alejarlo y para ser ya otra cosa, pero quiere al mismo tiempo dejarlo ahí, realizarlo.” [Tradução nossa] 277 Segundo a tradição bíblica, os primeiros pecados eram mais simples, verdadeiros deslizes por parte dos que lhe cometiam, muitas vezes ocasionados por falta de conhecimento. Os segundos classificavam-se em pecados graves e excluíam aqueles que os cometesse da vida espiritual ao lado de Deus. 334 Um ato exemplar de perdão na tradição cristã mostra-se na imagem de Jesus Cristo na cruz, no momento de sua morte, como um dos legados mais fortes do cristianismo. No conto, observamos o oposto. Em muitas ocasiões da vida não pedimos perdão aos outros e, também, não somos humanos o suficiente para perdoar, contrariando, assim, os princípios recebidos pela Igreja por meio do sacramento do batismo ou da penitência. Segundo Bauman (2009, p. 21): Quando a solidariedade é substituída pela competição, os indivíduos se sentem abandonados a si mesmos, entregues a seus próprios recursos – escassos e claramente inadequados. A corrosão e a dissolução dos laços comunitários nos transformaram, sem pedir nossa aprovação Na tradição bíblica, a liberação do pecador de suas culpas é a exposição de suas faltas cometidas e não a recordação dos atos positivos, conforme podemos ver nos Provérbios (28,13): “Quem esconde suas faltas jamais tem sucesso; mas quem as confessa e abandona, obtém compaixão”. Conforme o Dicionário de Símbolos de Chevalier e Gheerbrant (2006, p. 271), “o pecado é um laço, um nó espiritual”. Sendo assim, só a confissão é capaz de desatar os obstáculos e dar liberdade ao homem, portanto, o ato da confissão tem o poder de retirar o indivíduo do caminho da perdição e do mal. A confissão, do ponto de vista narrativo, baseia-se, em suma, no poder do relato, ou seja, na narração do próprio indivíduo num momento humilde, livre e consciente que faz de sua vida diante de alguém com o objetivo de justificá-la. A voz narrativa assumida pelo sujeito no relato de suas ações identifica-o como ponto central da confissão. O sujeito impõe uma identidade narrativa ao indagar e responder questões sobre sua vida. Para María Zambrano, as narrações e os sonhos complementam o imaginário de todo ser humano. A filósofa entende o ato da confissão como uma possível forma de sonho, cujo homem traz, no momento de seu discurso, imagens do inconsciente, pois a confissão, como revelação da alma, funciona como uma “espécie de processão dos sonhos 335 objetivados que o ser humano revela a si mesmo e busca seu lugar no universo278” (ZAMBRANO, 1986, p. 77). O poder da confissão centra-se na figura do “eu” evocativo que sempre demonstra a dificuldade de sua vida, por conseguinte, expressa suas ausências, insatisfações e carências. Esse “eu” assume o poder da narração, pois ultrapassa a concepção do relato ao imaginar e criar novas realidades279. Para Foucault (1985), o poder não é algo que podemos deter, mas sim uma força manifestada sempre por alguém: no conto de Pacheco, a figura de Zenobia sempre assume a posição de enunciadora. Conforme o filósofo, existem “manifestações de poder”, as quais se desenvolvem de maneira diferente segundo o ambiente, o contexto e a situação estabelecida. Por isso, pelo poder ser instável, o “eu” que detêm o poder, Zenobia, repassa e recebe ao mesmo tempo ações do próprio poder de suas palavras. Elas atuam sobre Rosalba e essa, também, atua significativamente sobre sua pessoa, como uma catarsis. Ninguém detém o poder para si, a pessoa manifesta-o em seu ambiente ou no ato da enunciação. A partir do momento em que muda de posição ou ambiente, qualquer pessoa está submetida aos “mecanismos de poder”. Por isso, o poder pode ser manifestado de diferentes formas em múltiplas situações. María Zambrano classifica a confissão como um gênero literário superior ao relato, pois não se prende a uma temática ou estilo específico. A confissão surge a partir da necessidade individual em transmitir experiências. No conto em questão, desde o início da narrativa, Zenobia apresenta a causa do sentimento de inveja perante Rosalba, de modo que suas ações e conclusões, mesmo que precipitadas e infundadas, são o resultado de sua vivência. A confissão, tanto como gênero e ato, revela a identidade de seu enunciador, já que as palavras nos orientam o caminho percorrido por seus atos. O indivíduo constrói e questiona sua identidade narrativa no 278 “Especie de procesión de los sueños objetivados en que el ser humano se revela a sí mismo y busca su lugar en el universo.” [Tradução nossa]. 279 Rousseau e Santo Agostinho, ao escreverem suas Confissões, partem do olhar de insatisfação da vida à criação de uma nova realidade por meio da escritura. 336 decorrer do relato através de suas ações. Zenobia reconhece sua inveja e avalia seu rancor com Rosalba num momento de indagação: Ese encuentro se me grabó en el alma. Si iba al cine o me sentaba a ver la televisión o a hojear revistas siempre encontraba mujeres hermosas parecidas a Rosalba. Cuando en el trabajo me tocaba atender a una muchacha que tuviera algún rasgo de ella, la trataba mal, le inventaba dificultades, buscaba formas de humillarla delante de los otros empleados para sentir: Me estoy vengando de Rosalba (PACHECO, 1997, p. 63) […] Usted me preguntará, padre, qué me hizo Rosalba. Nada, lo que se llama nada. Eso era lo peor y lo que más furia me daba. Insisto, padre: siempre fue buena y cariñosa conmigo. Pero me hundió, me arruinó la vida, sólo por existir, por ser tan bella, tan inteligente, tan rica, tan todo (PACHECO, 1997, p. 63-64) Nas palavras de Zenobia, vemos sua verdadeira essência. A imagem construída de si mesma e a formada pelos outros permitiu que gerasse um ódio a Rosalba pelo simples fato de esta ser atraente, simpática, inteligente. No pensamento de Zenobia não havia nenhum motivo para justificar seus atos e questionamentos, pois Rosalba nunca lhe fez mal, pelo contrário, sempre se mostrou amável. Zenobia atua de acordo com a insatisfação do rumo que levou sua vida, questionando, assim, a própria vontade de Deus. Ao final da narrativa, todos os problemas de Zenobia são resolvidos com a confissão. Não podemos explicar os atos da protagonista, baseando-nos somente no poder de crescimento e no avanço das cidades e na sua total perda de comunicação entre os indivíduos que a habitam, mas também pelos modelos impostos pela Modernidade, pelo poder do capital, que possibilita a freqüência às academias de ginástica, ao dermatologista, ao endocrinologista, por exemplo. Zenobia ao mencionar “no la monstruosidad que padecemos ahora en 1971” (PACHECO, 1997, p. 59) expõe o presente da narrativa, o momento atual em que se insere sua confissão. No decorrer da narrativa, duas são as referências ao tempo real dos fatos mencionados na confissão: “Sería época de Ávila Camacho o Alemán” (PACHECO, 1997, p. 62) – alusão ao governo presidencial da época – e “Aquella reunión en 337 Santa María debe de haber sido en 1946” (PACHECO, 1997, p. 64). Ambas sentenças são formas empregadas pelo sujeito discursivo para mostrar o imaginário e o retrato político-social do México daquele momento; a passagem de um país rural a moderno. Zenobia acaba agindo com esse olhar transitório dos tempos. A monstruosidade, referida pela personagem principal, do presente da narrativa gera-se no passado e explica o olhar agressivo da mesma ao recordar os fatos. O sentimento de repúdio contra Rosalba brota da leitura de si mesma: “¿por qué las cosas están mal repartidas? ¿Por qué a Rosalba le tocó lo bueno y a mí lo malo? Fea, gorda, bruta, antipática, grosera, díscola, malgeniosa. En fin...” (PACHECO, 1997, p. 60). Zenobia ao descrever-se como “antipática” e “malgeniosa” realiza uma leitura negativa de sua identidade que se reforça no emprego das reticências, porque sabe que lhe resta assumir o papel criado por seu interior. Nessa leitura de si, a protagonista, ao mesmo tempo em que está segura de suas angústias e atos, levanta a dúvida sobre a vontade de Deus, porém, em seguida, recupera sua identidade deturpada e nos aponta um referencial do início do desafeto com Rosalba: Qué injusticia ¿no cree? Nadie escoge su cara. Si alguien nace fea por fuera la gente se las arregla para que también se vaya haciendo horrible por dentro. A los quince años, padre, ya estaba amargada. Odiaba a mi mejor amiga y no podía demostrarlo porque ella era siempre buena, amable, cariñosa conmigo (PACHECO, 1997, p. 60) Por suas palavras, notamos certa carga do agir conforme as ações do coletivo do México daquele momento. Zenobia, no seu interior, não sabe ao certo o porquê de seu ódio. A protagonista ao assumir o centro da narrativa – como já abordado, pois não temos marcas de interlocução, ou seja, existe um padre fictício que pode ser o leitor –, demonstra tudo que lhe inquieta ou o que lhe parece mais relevante a ser exposto. Segundo Zambrano (1993), a revelação do nosso interior pode: Chegar a um exorcismo que o ser distancia e retira do seu coração o que lhe obscurece: uma purificação extrema, portanto: uma purificação que não pode ser verificada, mas sim reconhecida em todos os erros, a partir de algum, pois sempre que há algum delito dotado de capacidade de gerar indefinitivamente, ou de 338 multiplicar-se alucinadamente na galeria de espelhos do tempo sucessivo. A confissão, como gênero e ato, transmite uma explicação vital que pode ou não ser entendida pelo interlocutor como uma verdade. No decorrer da leitura do texto de Pacheco, o leitor tenta construir essa verdade. Zenobia teve toda sua vida para elaborar sua confissão e gerar no leitor uma imagem verídica. Com essa tentativa, ela confessa no final do seu relato: Yo sé lo que es estar en el infierno, padre. Sin embargo, no hay plazo que no se cumpla ni deuda que no se pague. Aquella reunión en Santa María debe de haber sido en 1946. De modo que esperé un cuarto de siglo. Y al fin hoy, padre, esta mañana la vi en la esquina de Madero y Palma. Primero de lejos, después muy de cerca. No puede imaginarse, padre: ese cuerpo maravilloso, esa cara, esas piernas, esos ojos, ese cabello, se perdieron para siempre en un tonel de manteca, bolsas, manchas, arrugas, papadas, várices, canas, maquillaje, colorete, rímel, dientes falsos, pestañas postizas...(PACHECO, 1997, p. 64) O relato-confissão redigido por Pacheco apresenta a história de vida de Zenobia e, indiretamente, a de Rosalba, desde o momento que suas identidades se cruzam. Vejamos esse cruzamento no seguinte fragmento: Mire, Rosalba y yo nacimos en edificios de la misma calle, con apenas tres meses de diferencia. Nuestras madres eran muy amigas. Nos llevaban juntas a la Alameda y a Chapultepec. Juntas nos enseñaron a hablar y a caminar. Desde que entramos en la escuela de párvulos Rosalba fue la más linda, la más graciosa, la más inteligente. Le caía bien a todos, era amable con todos. En primaria y secundaria lo mismo: la mejor alumna, la que portaba la bandera en las ceremonias, bailaba, actuaba o recitaba en los festivales. ‘No me cuesta trabajo estudiar’, decía. ‘Me basta oír algo para aprendérmelo de memoria’. (PACHECO, 1997, p. 59-60) A identidade de Rosalba forma-se por meio do olhar disperso, perturbado, confuso e anti-reflexivo de Zenobia, que numa situação específica – a da confissão –, decide lembrar e contar sua vida. Ao mesmo tempo em que suas palavras têm o poder de desconfigurar a identidade de Rosalba, demonstra-nos que o narrador-personagem descobre a si mesmo. Quando se encontra com seu passado e busca explicações para experiências não vividas, Zenobia procura uma nova 339 solução, um novo rumo para sua vida, cabendo ao leitor reconhecer a verdade em suas palavras. A confissão, conforme María Zambrano (2001, p. 78), é um pensamento do homem real com problemas que relata seu interior na tentativa de desfazer e livrar-se de suas angústias mundanas. O indivíduo transforma sua vida a partir da recordação das experiências vividas. A personagem de Pacheco, Zenobia, foge de si e dos demais, porém sabe que não há como negar a realidade. No momento que assume a culpa, a protagonista mostra-se mais humilde e capaz de enxergar uma saída. No final do relato, reconhece não haver mais diferenças e rancor devido a seu amadurecimento como ser humano: Me apresuré a besarla y abrazarla. Había acabado lo que nos separó. No importaba lo de antes. Ya nunca más seríamos una la fea y otra la bonita. Ahora Rosalba y yo somos iguales. Ahora la vejez nos ha hecho iguales (PACHECO, 1997, p. 64) Segundo o pensamento de María Zambrano, o homem deve confessar-se e revelar seus medos intrínsecos como forma de reconciliarse com seu interior. O relato de Zenobia permite encontrar a própria identidade perdida, sua condição de mulher excluída – feia, gorda e de condição social inferior – e de compreender o resultado de suas ações: Me quedé arrumbada en el departamento donde nací, en las calles de Pino. Santa María perdió su esplendor de comienzos de siglo y se vino abajo. Para entonces mi madre ya había muerto en medio de sufrimientos terribles, mi padre estaba ciego por sus vicios de juventud, mi hermano era un borracho que tocaba la guitarra, hacía canciones y ambicionaba la gloria y la fortuna de Agustín Lara. Pobre de mi hermano: toda la vida quiso hacerse digno de Rosalba y murió asesinado en un tugurio de Nonoalco (PACHECO, 1997, p. 61) Na confissão, o outro recebe um papel de destaque. O outro, também, pode ser o leitor que escuta, lê e completa a teia de sentidos. Zenobia só consegue formar sua identidade simbólica ao se dirigir ao outro. Este último esconde-se no próprio discurso da protagonista: Me reclamó que no la buscara, aunque ella me mandaba cada año tarjetas de Navidad. Me dijo que el próximo domingo el chofer iría a recogerme para que cenáramos en su casa. Cuando llegamos, por cortesía la invité a pasar. Y aceptó, padre, imagínese: aceptó. Ya se figurará la pena que me dio mostrarle el departamento a ella que vivía entre tantos lujos y comodidades. Aunque limpio y arreglado, aquello era el mismo 340 cuchitril que conoció Rosalba cuando andaba también de pobretona. Todo tan viejo y miserable que por poco me suelto a llorar de rabia y de vergüenza […] Para qué exponerme a ser comparada de nuevo con Rosalba. No seré nadie pero tengo mi orgullo, Padre (PACHECO, 1997, p. 62-63) Zenobia oprimida por sua vida invisível e indefinida encontra no padre uma figura de conforto, uma figura que a completa, pois segundo a pensadora Zambrano (1993): O ser visto é requisito indispensável para ver a si mesmo. Somente nos vemos em outro quando alguém recolheu nossa história, a história de nossos castigos, de nossa animação e de nosso fracasso, então sabemos nós mesmos. Como conhecer as pessoas se ninguém nos conhece. Nas palavras de Zambrano podemos identificar essa mulher ficcional e, muitas das vezes, sem o poder da voz, cuja imagem é levantada pelo autor em seu conto. Pacheco consegue revelar, totalmente, na tessitura de seu conto, a identidade simbólica de Zenobia no momento em que sua vida se esclarece e a personagem torna-se mais evidente. No desenrolar da confissão, a vida de Zenobia converte-se mais visível e compreensível aos demais. A inveja e as amarguras sentidas se desfazem no instante em que Zenobia encontra o outro atribuindo valor a suas palavras. No momento que Zenobia assume o “eu” do discurso, a narrativa nasce como sujeito poético e constrói um rosto próprio numa viagem de aprendizagem e sentimentos. Zebonia, durante todo o relato, experimenta um conflito interior, entre o mundo que habita, a cidade real, e o mundo desejado, a cidade ideal. No final da narrativa, entendemos a cidade ideal como algo utópico, difícil de existir no plano real, mas sim no simbólico. Ela pode ser sonhada, imaginada e construída nos discursos dos antepassados existentes no espaço social. No conto “La zarpa”, Pacheco emprega o tema da confissão de uma mulher como forma de representar a realidade mexicana e seus problemas sociais. Com isso, o autor induz o leitor a complementar a leitura do conto com suas reflexões sobre o que está nas entrelinhas do texto, fazendo com que esse caminhe mais além do código escrito. 341 3.2.6. “La Reina”: representações do sujeito na cidade Acabou nosso carnaval, ninguém ouve cantar canções Ninguém passa mais brincando feliz E nos corações Saudades e cinzas foi o que restou [...] Vinicius de Moraes e Carlos Lyra 280 No conto “La Reina” o foco da narrativa centra-se na figura de uma adolescente obesa, habitante da cidade de Vera Cruz, no México. Pacheco inicia o conto com palavras do escritor colombiano Porfirio Barba Jacob como recurso para apresentar a personalidade de Adelina, protagonista do conto, classificando-a como “rencorosa” e “enlutada”. O uso da letra maiúscula no título do texto permite o questionamento do leitor em relação à figura dessa rainha. Ela não seria uma mera rainha, mas sim a rainha. Quando pensamos em reis e rainhas somos levados a imaginar contextos históricos, famílias reais, poder, ambição, inveja. De certa forma, alguns dos temas expostos estão presentes no conto de Pacheco, porém o autor desenvolve a narrativa numa ambientação urbana e, ainda, na época de Carnaval. Portanto, o termo “Reina” refere-se à mulher mais representativa dessa festa popular em que não há separação entre classes e todos os seres humanos são iguais. Nas passagens a seguir notamos o cenário e o contexto da narrativa de Pacheco: Eran las diez de la mañana. Todo lo impregnaba el calor. Un organillero tocaba el vals Sobre las olas. Lo silenció el estruendo de un carro de sonido en que vibraban voces incomprensibles (PACHECO, 2000, p. 63) [...] No había tránsito: la gente caminaba por la calle tapizada de serpentinas, latas y cascos de cerveza. Encapuchados, mosqueteros, payasos, legionarios romanos, ballerinas, circasianas, amazonas, damas de la corte, piratas, napoleones, astronautas, guerreros aztecas y grupos y familias con máscaras, gorritos de cartón, sombreros zapatistas o sin disfraz avanzaban hacia la calle principal (PACHECO, 2000, p. 68) 280 In: Marcha da quarta feira de cinzas. Disponível http://www.revista.agulha.nom.br/vm1.html>. Último acesso em 04 fev. 2010. em: < 342 Através dos elementos acima, percebemos certa agitação e confusão, características de qualquer festa de Carnaval celebrada num grande centro urbano. O autor recria o cenário de consumo do Carnaval de Vera Cruz. Pacheco, ao utilizar esse contexto para sua narrativa, tem por objetivo mostrar até que ponto o homem reage às provocações do meio ao seu redor. Pacheco emprega estratégias discursivas, que implícita ou explicitamente, configuram as crises, os desencantos, os atos de fé e as diferentes relações de poder aparentes numa cidade moderna. O Carnaval atrai grande atenção do público, convidado a consumir bebidas e drogas, provocando extravagâncias e certos desejos. Pacheco utiliza o olhar de Adelina para percorrer as ruas em festa da cidade de Veracruz, observando o colorido, as máscaras e os disfarces dos personagens fantásticos, reais e os fatos mais representativos ao longo da história como: Cavernarios, kukluxklanes, Luis XV y la nobleza de Francia con sus blancas pelucas entalcadas y sus falsos lunares, Blanca Nieves y los siete enanos, Barbazul en plena tortura y asesinato de sus mujeres, Maximiliano y Carlota en Chapultepec, pieles rojas, caníbales teñidos de betún y adornados con huesos humanos, Romeo y Julieta en el balcón de Verona, Hitler y sus mariscales, llenos de suásticas y monóculos, gigantes y cabezudos, James Dean al frente de sus rebeldes sin causa, Pierrot, Arlequín y Colombina, doce Elvis Presleys que trataban de cantar en inglês y moverse como él (Adelina cerró los ojos ante el brillo del sol y el caos de épocas, personajes, historias) (PACHECO, 2000, p. 69) A identidade narrativa de Adelina se constrói no transcorrer do conto, porém, no início da narrativa, já percebemos que ela sofre de inúmeros traumas e cobranças de uma sociedade individualista e capitalista: o fato de ser gorda, de se achar feia, de não ser compreendida pela família, amigos e conhecidos, de ser ridicularizada e ter um amor não correspondido. A personagem principal é vítima dessa sociedade moderna retratada por Pacheco. Aliado a isso, o narrador do conto destaca todo o rancor de Adelina na busca de um sonho. A personagem principal lamenta-se, no decorrer da narrativa, pelo fato de não ter condições de ser a “Reina” do Carnaval, e isso faz com que ela reaja negativamente à Letícia, a verdadeira rainha da festa, a quem Adelina classificava como 343 uma “negra débil mental”. Ainda complementa “no es reina ni es nada: su familia compró todos los votos y ella se acostó hasta con el barrendero de la comisión organizadora. Así quién no” (PACHECO, 2000, p. 65). Segundo Bauman (2009, p. 48): A arte de viver pacífica e alegremente com as diferenças e de extrair benefícios dessa variedade de estímulos e oportunidades está se transformando na mais importante das aptidões que um citadino precisa aprender e exercitar Nas palavras de Adelina está o resultado da convivência num espaço onde o que vale é o poder da aparência, da beleza, do corpo, resumindo, da imagem. Ela reage de acordo com as provocações do ambiente ao redor. Notamos que a modernidade é responsável pela dissolução da solidariedade e pela desestabilização da unidade do sujeito da narrativa. O autor do conto mostra a competitividade para chegar ou estar na classe mais alta da sociedade. Adelina era uma mulher de classe média e desejava ser rainha do Carnaval para ocupar um lugar, nas altas esferas da sociedade, haja vista o status do reconhecimento pela beleza. Uma mostra dessa separação de classes aparece na cena: Desde un inesperado balcón las Osorio, muertas de risa, se hicieron escuchar bajo el estruendo del carnaval: - Gorda, gorda: sube. ¿Qué andas haciendo allí abajo revuelta, con la peble y los chilangos? ¿Ya no te acuerdas de que la gente decente de Veracruz no se mezcla con los fuereños, y mucho menos en carnaval? (PACHECO, 2000, p. 70) Pacheco, neste conto, também aborda a instabilidade do poder, demonstrado pelos atos de Adelina e Letícia. Nenhuma delas detém o poder para si, mas sim o submetem. Letícia pouco aparece no relato, mesmo assim se mostra superior a Adelina: Leticia, toda rubores, toda sonrisitas, entre los bucles artificiales que sostenían la corona de hojalata, saludaba a izquierda y derecha, sonreía, enviaba besos al aire [...] Atronaban aplausos. Leticia Primera recibía feliz la gloria que iba a durar unas cuantas horas, en un trono destinado a amanecer en la basura. Sin embargo, Leticia era la reina y estaba cinco metros por encima de Adelina que – la cara sombria, el odio en la mirada – la observaba sin aplaudir ni agitar la mano (PACHECO, 2000, p. 70) Adelina também exerce o poder de sua maneira, mas esse sendo representado por sentimentos negativos, como por exemplo, quase que 344 rezando para que sua rival caia do carro alegórico, rasgue a fantasia, ou ainda, questionando o excesso de maquiagem de Leticia. Observemos o sentimento de rancor expresso pela protagonista: - Cómo puede cambiar la gente cuando está bien maquillada [...] - Ojalá se caiga, ojalá quede en ridículo, ojalá de tan apretado le estalle el disfraz y vean el relleno de hulespuma en sus tetas (PACHECO, 2000, p. 70) O desejo de pertencer ao grupo dominante da sociedade é muito intenso. Numa outra cena, Adelina, novamente, exerce poder sobre Leticia no momento em que ameaça roubar seu posto no próximo carnaval: “Ya verá. Ya verá el año que entra: los lugares van a cambiarse. Leticia estará aquí muerta de envidia y yo...” (PACHECO, 2000, p. 70). A certeza da protagonista é marcada pelo uso do advérbio “aquí” como recurso sinalizador da troca de papéis, proporcionando a Adelina uma posição superior e de destaque expressa pelo uso das reticências. Numa conversa telefônica com seu irmão Óscar, Adelina demonstra todo seu mau-humor, incrementado pelas ações da vida em sociedade, vejamos: - ¿Qué quieres, pinche enano maldito? - Cálmate, gorda, es un recado de our father. ¿Por qué amaneciste tan furiosa, Adelina? Debes de haber subido otros cien kilos. - Qué te importa, idiota, imbécil. Ya dime lo que vas a decirme. Tengo prisa. - La verdad, gorda, es que te mueres de envidia. Qué darías por estar ahora arreglándose para el desfile en vez de Leticia. - ¿El desfile? Ja ja, no me importa el desfile. Tú, Leticia y todo el carnaval me valen una pura chingada. - Que bonito trompabulario. Dime dónde lo aprendiste. No te lo conocía. - Vete al carajo. - Ya cálmate, gorda. ¿Qué pasa? ¿De cuál fumaste? Ni me dejas hablar... - Cierra el hocico y ya no estés jodiendo. - Voy a desquitarme, gorda maldita. Te vas a acordar de mí, bola de manteca (PACHECO, 2000, p. 65) Óscar, ao iniciar a conversa, aborda de imediato um ponto que incomoda sua irmã. Tais provocações encontram-se no modo como ele se refere à Adelina (“Gorda”, “bola de manteca”) e, principalmente, ao mencionar seu despeito para com Leticia. Ao mesmo tempo em que o discurso de Adelina mostra sua imparcialidade em relação às 345 provocações de seu irmão, o léxico empregado por ela comprova sua revolta, ódio, inveja e raiva, características evidentes da sociedade dita globalizada. A cena inicial do conto de Pacheco demonstra a preocupação de Adelina com seu corpo. Ela aparenta preparar-se para alguma festa arrumando-se com diversos acessórios e um excesso de maquiagem. No momento da escolha pela roupa, o narrador comenta “escogió un vestido floreado. La crinolina ya no se usaba pero, según la modista, no había mejor recurso para ocultar un cuerpo como el suyo” (PACHECO, 2000, p. 63). Sabemos que o corpo representa um elemento importante no jogo da sedução, porque através dele a mulher é capaz de atrair para si olhares e aumentar sua própria auto-estima. O conceito de corpo281 na história da humanidade demonstra importantes concepções filosóficas, tendo em vista sempre o privilégio da mente em detrimento ao do corpo. Enquanto o homem está vivo, a mente e o corpo são elementos indissociáveis, desfazendo-se após a morte, porque só a alma é imortal, já o corpo se descompõe. Para os filósofos Platão e Aristóteles, o corpo fere os princípios da razão, da mente e da alma. Tal visão se apóia na tradição cristã, em que a mente e o corpo se comparam à distinção do que é imortal e mortal. O pensamento ocidental é marcado pelo cartesianismo e apresenta algumas leituras contemporâneas para o corpo: instrumento para as ciências humanas, veículo à disposição da consciência e símbolo de expressão social. Em todas essas concepções, notamos uma verdadeira desvalorização social do corpo. O corpo pode ser compreendido segundo o olhar do dualismo cartesiano, à luz das teorias feministas e apoiado pelo pensamento de Espinosa, Foucault e Deleuze, cujo corpo é entendido como uma tessitura histórica e cultural. 281 Não nos propomos nesta tese a realizar um estudo profundo para a questão do corpo físico, já que nosso interesse está em desvendar a cidade e os problemas decorrentes da vida moderna. No caso de Adelina, vemos que a não aceitação de seu corpo provoca um sujeito perdido no corpo da cidade. Para embasamento teórico da temática do corpo, indicamos a leitura de Foucalt (1980) e de Guberman (1998;1999), neste último, a autora tece uma trajetória do corpo na historiografia literária e o relaciona à sensualidade e ao desejo. 346 Para as feministas Julia Kristeva e Nancy Chodorow, o corpo marca socialmente o masculino e o feminino como opostos, porque elas entendem o corpo como elemento da representação ideológica buscando, assim, a mudança de valores, crenças e atitudes. Já para Simone de Beauvoir, o corpo da mulher é importante, mas não é totalmente diferente ao do homem. Segundo ela: A sujeição da mulher à espécie, os limites de suas capacidades individuais são fatos de extrema importância; o corpo da mulher é um dos elementos essenciais da situação que ela ocupa neste mundo. Mas não é ele tampouco que basta para a definir. Ele só tem realidade vivida enquanto assumido pela consciência através das ações e no seio de uma sociedade; a biologia não basta para fornecer uma resposta à pergunta que nos preocupa: por que a mulher é o Outro? Trata-se de saber como a natureza foi nela revista através da história; trata-se de saber o que a humanidade fez da fêmea humana (BEAUVOIR, 1980, p. 57) Outras teorias feministas ainda apontam para o corpo como espelho de lutas econômicas, sexuais, políticas e intelectuais. Seguindo essa linha, as teóricas Luce Irigaray (2008) e Judith Butler (2003) concebem o corpo como instrumento cultural e retrato fiel de diferentes culturas. Em resumo, existem tipos específicos de corpos, reconhecidos pelo nível sócio-econômico-cultural, pela etnia e pelo sexo, ou seja, com características particulares e únicas. Por isso, acreditamos que os corpos devem ser entendidos mais em sua concepção histórica do que, simplesmente, por seu caráter biológico. O corpo, ao longo dos anos, representa uma marca indiscutível das representações identitárias dentro de uma sociedade, principalmente, o corpo feminino, que ocupa espaço de destaque na indústria cultural, seja literária, cinematográfica, publicitária ou da moda. Na contemporaneidade, o corpo deixa de representar a identidade do indivíduo a partir do momento que o mesmo recorre a tratamentos estéticos ou, ainda, situações onde órgãos artificiais substituem os naturais (HARAWAY, 1980). Retornando à análise do conto, vemos que Adelina assume estar acima do peso e diz tentar reduzi-lo através de dietas e de exercícios, porém, naquele dia, antes de sair de casa, ela, ainda, recorre à balança do banheiro da casa, conforme o relato do narrador: 347 [...] subió a la balanza. Se descalzó, incrédula. Pisó de nuevo la cubierta de hule. Se desnudó y probó por tercera vez. La balanza marcaba ochenta kilos. Debía estar descompuesta: era el mismo peso registrado una semana atrás al iniciar la dieta y ejercicio (PACHECO, 2000, p. 63) O desejo de ficar magra ou de, pelo menos, se sentir melhor leva Adelina a retirar sua roupa por não se conformar com o mesmo peso. Tal ação só constata dados da personalidade da personagem, como por exemplo, a obsessão por um corpo magro e bonito. A imagem da personagem reflete a maioria das mulheres de nossa sociedade, levadas pelos meios de comunicação e propagandas a utilizar produtos emagrecedores, remédios, equipamentos de ginástica e operações cirúrgicas em prol da beleza e da moda. Como tratamos em Las Batallas en el desierto, a imagem da mulher norte-americana influencia os hábitos e o pensamento da mulher mexicana tradicional. Numa das cenas do conto, Adelina encaminha-se à cozinha e encontra fotos antigas que permitem um retorno a seu passado, quando aos seis meses de idade já ganhava o concurso “El bebé más robusto de Veracruz”. O narrador leva o leitor a percorrer momentos da vida da protagonista como a declamação do poema “Madre o mamá”, de Juan de Dios Peza, aos nove anos, ou ainda, lembranças da valsa catastrófica encenada por ela e seu pai na festa dos quinze anos. Adelina, ao pensar nessas cenas, fala sozinha “Qué triste todo eso”. Nesse instante, ela acredita que tal lembrança se dá pela falta do café da manhã naquele dia. Após este episódio, prepara um milk shake de banana com leite condensado e começa a ler o romance sentimental Huracán de amor que estava esquecido na cozinha. Sua mãe Hortensia não permitia que Adelina lesse esse tipo de história, porque ainda a via como uma menina. Um dos fragmentos da obra chama a atenção do leitor para Adelina, ao expressar “No hay más ley que nuestro deseo” (PACHECO, 2008, p. 64). O leitor melhor compreende a colocação da personagem ao descobrir sua paixão não correspondida pelo cadete Alberto. Adelina já estava pronta para sair quando recebe a ligação de seu irmão já relatada anteriormente. Após essa briga, sente vontade de chorar e busca seu diário junto ao armário infantil localizado em seu quarto, que 348 segundo o narrador, ainda contém adesivos e enfeites de Walt Disney. Mais uma vez, o narrador revela traços de uma sociedade de consumo, onde o império do lucro e da moda envolvem o sujeito narrativo. Temos como exemplos latentes “los pañuelos clínex”, “el Listerine”, “las calcomanías de Walt Disney” e “el despertador de Bugs Bunny”. Até esse momento da narrativa, acreditamos que Adelina é uma adolescente em via de transformação em mulher adulta e ciente de sua fala, porém, através desses elementos em seu quarto, vemos que o narrador revela dados de ingenuidade da personagem. Há uma digressão da história principal a ser narrada. No instante em que Adelina senta na sala de jantar para escrever em seu diário, a saída da casa para ir à festa foi interrompida. O tempo da outra narrativa passa a ser divergente. Adelina, ao redigir o diário, sai do tempo cronológico, portanto do mundo exterior, para entregar-se a um tempo interior, cujas aflições de amor por Alberto e sua rivalidade perante Leticia a rodeiam. Adelina desafoga a frustração imposta pela vida a partir do momento que começa a escrever em seu diário282. Ela inicia o texto evidenciando seu cansaço em repetir tal ação: “Por milésima vez hago en este cuaderno una carta que no te mandaré nunca” (PACHECO, 2000, p. 66). O diário representa para Adelina a possibilidade de dirigir-se diretamente a Alberto, já que na vida real não consegue se declarar totalmente, além disso, seus escritos funcionam como fuga da realidade diante de seus olhos. Vejamos esses exemplos no seguinte fragmento: Alberto mío, dentro de un rato voy a salir. Te veré de nuevo, por más que tú no me mires, cuando pases en el carro alegórico de Leticia. Te lo digo de verdad: ella no te merece. Te 282 O narrador-personagem do romance curto El principio del placer também emprega o gênero diário como um modo de manter em segredo seus sentimentos eróticos pela personagem de Ana Luisa. Em ambos os relatos, encontramos intertextos em formato de cartas, bilhetes e avisos. O desejo transforma-se na busca constante pela escritura, cujo prazer se concretiza. Entre as características do gênero diário, citamos: a espontaneidade na descrição dos acontecimentos, a exposição fragmentada, a presença de marcas temporais no texto, a narração em primeira pessoa, a escritura surge de acordo com os impactos dos acontecimentos, o autor do diário também é seu leitor, o diário converte-se numa fuga, cuja escritura irônica reflete o desagrado do homem com o mundo externo. Semelhante à autobiografia ou às memórias, o autor do diário trata de acontecimentos vividos, tece reflexões e comentários, nomeia as pessoas com quem se relaciona (KOHAN, 2000). Através do diário, o leitor também participa dos segredos de Adelina. Valenzuela (2003) informa que não existe literatura sem segredo haja vista o jogo possível entre racionalidade e ficcionalidade no trabalho com a linguagem. A escrita transforma-se num meio de desvendar e anunciar os mistérios da realidade. 349 ves tan... tan, no sé cómo decirlo, con tu uniforme de cadete. No ha habido en toda la historia un cadete como tú. (PACHECO, 2000, p. 66) O tom depreciativo da protagonista em relação à Leticia se mantém no decorrer do escrito no diário. Adelina define-a como “muy vulgar”, “muy corriente”, “[...] es tan coqueta”, “se cree muchísimo”. Ademais, sempre relata a perseguição de outros para com ela, como por exemplo, Las Osorio. Vejamos: […] se juntan para bularse de mí porque soy más inteligente y saco mejor calificaciones. Claro, es natural: no ando en fiestas ni cosas de ésas, los domingos no voy a dar vueltas al Zócalo, ni salgo todo el tiempo con muchachos. (PACHECO, 2000, p. 66) O discurso de Adelina é preconceituoso ao dividir as mulheres da sociedade em dois grupos. Ela acaba inserindo-se no grupo das mulheres de boa índole e de bons costumes. O marco central da Cidade do México, o Zócalo, é utilizado, no conto, como um local negativo onde há vulgaridade. As brigas com seu irmão e seus pais, sua visão sobre Leticia e Las Osorio, suas declarações de amor por Alberto e as faltas cometidas por ele, ao não comparecer a certos compromissos, são os assuntos sempre recorrentes de suas cartas. Durante todo o relato, Adelina espera ser correspondida pelo cadete, mas há momentos em que não identificamos se o sentimento é correspondido ou se suas palavras chegam até Alberto: “Pero tú, Alberto, ¿me recuerdas? ¿Te has olvidado de que nos conocimos hace dos años – acababas de entrar en La Naval – una vez que acompañé a mi papá a Antón Lizardo?” (PACHECO, 2000, p. 66-67). Uma prova da não resposta de Alberto aos pedidos de Adelina está no fragmento em que a mesma relata sua reação após o não comparecimento dele na sorveteria “Yucatán”: Te esperé todo el día ansiosamente. Lloré tanto esa noche... Pero luego comprendí: no llegaste para que nadie dijese que te interesaba cortejarme por ser hija de alguien tan importante en la Armada como mi padre (PACHECO, 2000, p. 67) Adelina não quer enxergar a realidade dos fatos: seu amor não é recíproco. Vê o poder e o nome de sua família como barreiras para aproximação do amado. Porém, em seguida, Adelina, na tentativa de ter a 350 presença do cadete ao seu lado, acaba propondo algo contrário a sua visão de mulher correta “quedamos en vernos el domingo para ir al Zócalo” (PACHECO, 2000, p. 67). A vontade de ser centro do olhar e objeto de desejo de Alberto, além de obter poder é demonstrada pela voz narrativa da protagonista quando a mesma anuncia: Te prometo que esta vez sí adelgazaré y en el próximo carnaval, como lo oyes, yo voy a ser ¡LA REINA! (Mi cara no es FEA, todos lo dicen) [...] Pero el año próximo, te juro, tendré un cuerpo más hermoso y más esbelto que el suyo (PACHECO, 2000, p. 67) Suas palavras destacam a constante preocupação com a imagem do corpo e a vontade desmedida de representar a dama maior da referida festa popular. Outros momentos da narrativa denunciam novamente a postura de Adelina como figura central dos olhares externos e a propagadora do poder, reforçado através de sua união a Alberto e provável redução de peso, mesmo que ilusória: “Todos los que nos miren te envidiarán por llevarme del brazo” (PACHECO, 2000, p. 67). A protagonista luta para pertencer a uma classe social mais alta ou, simplesmente, tenta conseguir destaque nas altas esferas da sociedade de Vera Cruz, sinais reveladores da necessidade de reprodução ou manutenção de certos modelos pelo homem moderno. Pacheco mostra a cobiça como fruto do problema de ordem econômica, mas com a intenção de gerar, na realidade, um caminho em direção ao socialismo. O narrador emprega o cenário do Carnaval como forma de representar o humanismo entre as classes, pois nessa festa não há distinção de classes, todos interagem, todos transgridem, usam máscaras, subvertem a realidade. O narrador do conto retoma sua voz a partir do momento que a personagem principal regressa a seu quarto, abandona o diário sobre a cama e retoca a maquiagem e os cosméticos de sua mãe para sair para a festa. Nas cenas seguintes, há um reforço da imagem ridicularizada de Adelina através do olhar do outro, seja ele conhecido ou não pela personagem. Esse emprego enfatiza a imagem dos habitantes como vítimas de uma sociedade de consumo, na qual Adelina está imersa, 351 prejudicando de certa forma sua auto-estima. Analisemos esses momentos de desprezo da figura da adolescente: Al verla maquillada le preguntaron si iba a participar en el concurso de disfraces o si acababa de lanzar su candidatura para Rey Feo [...] Cuatro muchachas se volvieron, la observaron y la dejaron atrás. Escuchó su risa unánime y pensó que se estarían burlando de ella como los amigos de Óscar [...] Advirtió que varias mujeres la escrutaban con sorna (PACHECO, 2000, p. 68) [...] La sobresaltaron un aliento húmedo de tequila y una caricia envolvente: - Véngase, mamasota, que aquí está su Rey (PACHECO, 2000, p. 69) [...] Todo el mundo pareció descubrirla, escudriñarla, repudiarla (PACHECO, 2000, p. 70) O narrador revela as provocações e as ofensas cometidas contra Adelina, mas por outro lado não especifica claramente qual seria o motivo de tal desrespeito pelo ser humano. O cenário em que se passa a história narrada contribui para isso? A zombaria seria uma mera brincadeira ou a protagonista acaba sendo menosprezada por não pertencer ao discurso dominante, ou seja, por não ter um corpo perfeito? Adelina foge dos padrões estéticos impostos pelos ideais de beleza da modernidade? As palavras do narrador reforçam o jogo de poder centrado ora num indivíduo, ora em outro. Afirmarmos que Adelina não exerce poder sobre os demais, pelo contrário, ela atua em diversos momentos da narrativa como peça central dos males da sociedade moderna. Ao mesmo tempo em que Adelina283 busca entender as piadas e o porquê das pessoas agirem daquela forma, ela repassa sentimentos de ódio, inveja e rancor. A temática central do conto de Pacheco é o desejo de uma adolescente ocupar o posto de rainha do carnaval de sua cidade. A festa acaba por problematizar questões da personalidade da protagonista e, ainda, revela as conturbadas relações de poder e de solidão dentro dos centros urbanos. Apesar de estar numa festa de Carnaval, vemos Adelina 283 A participação da mulher em festejos populares sempre foi alvo de muitas críticas, pois segundo os ideais burgueses, essa deveria simbolizar a castidade e a honra. Muitas críticas foram dirigidas às mulheres, inclusive, às esposas e às mães, que em situações como a de Carnaval, desfrutavam de certa liberdade, pois se fantasiavam, se maquiavam e dançavam nas ruas e blocos. 352 como uma identidade solitária e perdida no corpo da cidade. O contexto escolhido para o conto retrata bem o carnaval como sinônimo da interação de classes, da liberação e da quebra de regras em que a sexualidade, a bebida e a comida ganham destaque. A mulher ao assumir sua sensualidade, seja em festas ou em rituais, demonstra sua resistência em relação ao discurso de uma sociedade autoritária e uma defesa pela cidadania feminina. Temos tais ideais no pensamento da professora e pesquisadora brasileira Rachel Soihet (2003, p. 195), quando afirma: A sensualidade, por longo tempo vista como apanágio da negra e da mulata, torna-se visível nas mulheres de todas as cores e segmentos, que a exercem com garra invejável, negando estereótipos de longa data. Acelera-se o passo rumo ao reino da liberdade, que encontra no Carnaval um momento de expressão maior. Para Bakhtin (1987), o corpo sempre é utilizado pelos populares como um centro de luta e resistência, principalmente, de significados oficiais. O Carnaval acaba assumindo, nos contos, uma valorização do corpo feminino e da sexualidade na vida real. A protagonista do conto de Pacheco percorre as ruas da cidade com uma miscelânea de sentimentos e questionamentos dentro de si. Vejamos como o narrador retrata essas imagens: Los miró con furia y desprecio [...] Adelina apretó el paso [...] Pensó en sacar de su bolsa el espejito para ver si, inexperta, se había maquillado en exceso [...] Con grandes dificultades llegó a la esquina elegida. El calor, la promiscua cercanía de tantos extraños y el estruendo informe le provocaban un malestar confuso [...] Adelina sentía que la empujaban y manoseaban [...] La transpiración humedecía su espalda (PACHECO, 2000, p. 68-69) Adelina circulava em meio a carros alegóricos, guindastes e pessoas mascaradas. Inúmeras épocas e personagens históricos e fantasiosos passavam diante de seus olhos contribuindo para o aumento da sensação de mal estar e solidão dentro da própria urbe. Ela não era capaz de identificar, naquela multidão brincalhona ou entusiasmada pelo álcool, os culpados por tanta frustração. No instante em que passava o carro com a rainha do carnaval, Adelina parecia querer repassar todo rancor concentrado em si contra Leticia. Entretanto, acaba sendo, novamente, vítima de humilhação 353 quando lançam uma bolsa de anilina sobre sua cabeça, justamente no momento da passagem do carro alegórico com Alberto e Leticia. O rapaz interrompe a pose de estátua para soltar um riso irônico e Leticia percebe no meio da multidão o fato e age com risos. Além disso, após ter limpado o rosto com as mangas de seu vestido, uma chuva de confete recai sobre sua pele úmida. Havia acabado a festa para Adelina. Ela tentava correr, fugir, fazer-se transparente no meio da multidão, no seguinte cenário: Las calles estaban repletas de chilangos, de jotos, de mariguanos, de hostiles enmascarados y encapuchados que seguían aventando confeti a la boca de Adelina entreabierta por el jadeo, bailoteaban para cerrarle el paso, aplastaban las manos en sus senos, desplegaban espantasuegras en su cara, la picaban con varitas labradas de Apizaco (PACHECO, 2000, p. 71) Na tentativa de chegar a casa o mais rápido possível, Adelina, ainda, encontra um casal de vizinhos árabes, com quem não tem um bom convívio e eles aproveitam tais circunstâncias para humilhar mais a menina já entristecida, porque em nenhum momento seu amado resolve descer do carro para defendê-la ou vingá-la: Y bajo unas máscaras de Drácula y de Frankestein surgían Aziyadé y Nadir, la acosaban en su huida, le cantaban, humillante y angustiosamente cantaban, un estribillo interminable: - A Adelina/ le echaron anilina/ por no tomar Delgadina./ Poor noo toomaar Deelgaadiinaa (PACHECO, 2000, p. 71) O casal provoca Adelina fazendo uma analogia entre o nome de um remédio de emagrecimento, a anilina lançada sobre seu rosto e a sonoridade de seu nome. A protagonista não pode menos que ficar enfurecida e revida a provocação com tapas e pontapés até ser contida por participantes da festa. A humilhação passada naquele dia era tamanha que Adelina foge no meio da multidão com o intuito de esconderse em sua casa, porém ao chegar a seu quarto, novamente, a menina sente sua intimidade invadida quando percebe que seu diário estava remexido, no chão, com marcas de digitais de tinta fresca, possivelmente, de Óscar e seu grupo de amigos. Mais uma vez, Adelina sofre abuso de poder de outra pessoa sobre si. Ela imagina que, possivelmente, tenha sido seu irmão aquele responsável por lhe lançar bolsas de anilina, ovos 354 podres e confete, valendo-se dos disfarces e máscaras para não ser reconhecido. Naquele momento, Adelina não se contém de tanta raiva guardada em seu coração e se revolta contra todos a partir do momento em que enuncia: - Maldito, puto, enano cabrón, hijo de la chingada. Ojalá te peguen. Ojalá te den en toda la madre y regreses chillandro como un perro. Ojalá te mueras. Ojalá se mueran tú y la puta de Leticia y las pendejas de las Osorio y el cretino cadetito de mierda y el pinche carnaval y el mundo entero (PACHECO, 2000, p. 72) A própria seleção vocabular de Adelina revela o reflexo do poder exercido por todos aqueles que a fizeram sofrer de alguma forma. Alberto transforma-se de homem amado a odiado pelo sentimento da protagonista, seja ele momentâneo ou duradouro, não podemos assegurar. A cena demonstra um momento de evasão de Adelina do mundo que a cerca. O conto termina com a protagonista diante do espelho olhando a si mesma, seu cabelo loiro e seus olhos verdes aliados a um rosto coberto de anilina, suor, gordura, maquiagem e lágrimas. O choro de Adelina não denota somente a tristeza e a vergonha pelo fato ocorrido, contudo a promessa de buscar uma reviravolta em sua vida, já que a mesma termina a narrativa dizendo “- Ya verán, ya verán el año que entra” (PACHECO, 2000, p. 72). O discurso de Adelina comprova muito claramente que o indivíduo impõe um limite de convívio entre o eu e o outro da sociedade para um relacionamento mais harmônico. Esse limite, no conto, logo é rompido pelas constantes oscilações do poder. Adelina não se enxerga como uma mulher bonita, digna de ser a rainha do carnaval ou, ainda, ter um amado, porque atua como reflexo da sociedade que rechaça certos modelos, como por exemplo, o feio, o gordo, o negro, o homossexual, o pobre e outros tantos estereótipos. Dessa forma, seguindo os pressupostos de Foucault, todos os segmentos da sociedade exercem relações de poder. O conto tomado como corpus destaca a figura de uma adolescente insegura por sua aparência tendo sua visão corroborada pela sociedade capitalista. Essa questão desencadeou outros temas como a 355 superioridade entre os indivíduos, o discurso dominante e a sensualidade revelada pelo corpo. A temática do poder aparece, no conto, na força simbólica das ações realizadas pelo enunciador do texto. O relato do narrador-personagem envolve o leitor numa reflexão sobre o espaço citadino habitado por todos e como este se deturpa cada vez mais no decorrer dos séculos, provocando inúmeras sensações nos indivíduos que habitam esses espaços. 3.2.7. “La fiesta brava”: entre a tradição e a modernidade mexicana Ayer no resucita. Lo que hay atrás no cuenta. Lo que vivimos ya no está. El amanecer nos entrega la primera hora y el primer ahora en otra vida. Lo único de verdad nuestro es el día que comienza. José Emilio Pacheco (2009c) O conceito de literatura e sua relação com a realidade são novamente problematizados por Pacheco no livro El principio del placer, que contém um romance curto homônimo e um conjunto de cinco contos, dois quais analisamos o relato “La fiesta brava”. O interesse desta coletânea está em problematizar o desconforto do homem perante a complexidade da vida. No romance curto El principio del placer, o autor recorre ao gênero diário para configurar o texto, aborda o tema da escritura a partir da vida de um adolescente no início de sua vida sexual. O despertar da sexualidade, que indica o final da adolescência, também adianta a entrada do jovem no mundo da hipocrisia, no universo dos adultos. No romance, a escritura volta-se como uma necessidade, uma ponte com o leitor, que compartilha o segredo, e uma conexão entre o presente e o passado (entre a ingenuidade da infância e a vida adulta repleta de corrupção) mediante o diário. O leitor faz-se cúmplice das memórias relatadas no diário do narrador. O narrador em primeira pessoa constrói sua identidade por meio da escritura e nessa deposita suas experiências. O protagonista permite-nos 356 conhecer seu mundo interior por meio das dúvidas e apreensões sobre os acontecimentos do cotidiano. Jorge, o protagonista, e sua família deslocam-se da Cidade do México a Vera Cruz, ao final do governo do Alemán, ou seja, no momento em que o país caminhava para a modernização284. O caminho narrativo do protagonista começa na capital mexicana transformada pela influência dos Estados Unidos. A noção de coletividade vê-se afetada pela presença dos meios de comunicação de massa, dos costumes e das tradições modificadas pela novidade da televisão, segundo a voz do narrador: Me acuerdo de la primera vez. Pusieron un aparato Regalos Nieto y en esquina de avenida Juárez y San Juan de Letrán había tumultos para ver las figuritas. Pasaban nada más documentales: perros de caza, esquiadores, playas de Hawai, osos polares, aviones supersónicos (PACHECO, 1997, p. 13) A cidade de Vera Cruz é onde o protagonista começa sua viagem emocial e experimenta seu processo de iniciação à vida sexual. Jorge muda-se de cidade para acompanhar seu pai a serviço do Governo de Miguel Alemán. O contexto social não é o mesmo da Cidade do México, porque o narrador retrata a dificuldade em se relacionar com as pessoas. O ambiente é provinciano e conservador. A forma de vida é tradicional porque, ainda, não foi influenciada pela televisão: Dejé varios meses en blanco. De hoy en adelante trataré de hacer unas líneas todos los días o cuando menos una vez por semana. El silencio se debió a que nos cambiamos a Veracruz. Mi padre fue nombrado jefe de la zona militar. No me acostumbro a este clima, duermo mal y se me ha hecho muy pesada la escuela […] sólo hay tres cines y todavía no llega la televisión” (PACHECO, 1997, p. 14-15) A partir de seu olhar para a realidade e para as pessoas que o cercam, ele constrói, em seu diário, sua percepção sobre o espaço urbano de Vera Cruz, mas isso se modifica ou deixa de ser um problema ao se apaixonar por Ana Luisa. 284 Alguns dados do romance (o lugar, o momento e os costumes do menino) coincidem, mais ou menos, com a biografia de Pacheco. O autor relata “pasé la mitad de mi infancia con mis abuelos en Veracruz. Ellos me enseñaron a leer. Obsequio a mi aplicación fue un resumen infantil de Quo Vadis?, el primer libro que leí. Como la mayor parte de los niños prehistóricos que apenas conocieron la televisión y los comics, recorrí la obra completa de Emilio Salgari” (PACHECO, 1966, p. 244). Acreditamos que o caráter autobiográfico é inevitável em toda a obra de qualquer escritor. 357 A partir deste momento, centramos nosso estudo na análise do conto “La fiesta brava”, com o objetivo de elucidar como o texto de Pacheco retrata o contexto social no qual se desenvolvem as ações e com que finalidade. Entendemos por realidade aquela verificável e comum à experiência coletiva. A crítica analisou o conto destacando inúmeros pontos, a ironia, o papel do intelectual, o caráter metaficcional, o fantástico, o prazer estético. Alguns estudiosos visualizaram no conto uma crítica aos escritores mexicanos colonizados (JIMÉNEZ DE BÁEZ, 1959); outros um jogo entre a realidade e a ficção mediante a poética do fantástico (MELÉNDEZ, 1988); Zavala (1997) defende a presença da intertextualidade e o exercício da meta-ficção irônica; Gray Díaz (1984) trata do aspecto social. Independente do direcionamento dos pesquisadores houve um consenso em reconhecer o tema da identidade nacional como uma indagação da obra de Pacheco. A questão da identidade do sujeito, como já deixamos evidente neste estudo, é um tema problematizado pela maioria dos escritores latino-americanos. De acordo com o intelectual mexicano Pedro Henríquez Ureña (1949), o tema da identidade é muito importante para a cultura hispanoamericana porque reflete o contato intercultural com os europeus, fato histórico que mudou a forma de organização dessas culturas, em diferentes níveis e proporções. Nossas colocações, neste capítulo caminham em busca do diálogo do texto com a representação do México dos anos sessenta e setenta, elaborada pelo autor, possivelmente comprovado pela história. O ano de 1971 é citado como o ano em que se desenvolvem os acontecimentos da narrativa e, novamente, o espaço da Colonia Roma é o cenário central do relato de Pacheco. Em “La fiesta brava” o autor trata do tema da escritura para convidar o leitor a um jogo da ficção dentro da ficção. A estrutura do conto inclui mini-narrativas relacionadas pelo eixo da própria escritura, mescla de discursos, espaço de ficção em que personagem e escritor possuem o mesmo destino, a morte. 358 O conto critica a invasão norte-americana existente no México, geradora de relações de dependência na econômica e no campo cultural. O texto constrói um passado nostálgico, cuja palavra “nostalgia”, repetida três vezes, conduz o leitor ao tema do conto, o da resistência cultural e o da tentativa de manutenção da identidade nacional, um “regreso a lo indígena”. Acreditamos que seja um convite do autor para repensar a questão em todo o continente. A forma como o conto de Pacheco apresenta-se resgata a definição do gênero atribuída pelo escritor argentino Ricardo Piglia (2001, p. 123): Um conto sempre conta duas histórias. O conto clássico (Poe, Quiroga) narra em primeiro plano a história um e constrói em segredo a história dois. A arte do contista consiste em saber decifrar a história dois nos interstícios da história um. Um relato visível esconde um relato secreto, narrado de modo elíptico e 285 fragmentário . Somos capazes de identificar que o conto trabalha com dois níveis ficcionais, semelhante a alguns contos de Julio Cortázar, num jogo entre realidade ficcional e realidade crível. Podemos encontrar três mininarrações no conto de Pacheco286: a primeira narração, o conto de um escritor (Andrés Quintana287); a segunda, relata a história de Andrés Quintana e o processo de escritura de seu conto; a terceira, um intertexto, um anúncio de jornal, logo na primeira página do conto, retratando o desaparecimento de Quintana no dia 13 de agosto de 1971. O jogo do tempo e do espaço se encontra presente desde o início do conto. O conto escrito por Quintana também se chama “La fiesta brava” e relata a história de Mr. Keller numa visita a Cidade do México. Keller é um militar norte-americano que esteve no Vietnam, dono de um caráter impiedoso e que espera uma oportunidade de ser convidado por seu país para um trabalho civil. O nome atribuído ao turista é uma possível 285 “Un cuento siempre cuenta dos historias. El cuento clásico (Poe, Quiroga) narra en primer plano la historia 1 y construye en secreto la historia 2. El arte del cuentista consiste en saber cifrar la historia 2 en los intersticios de la historia 1. Un relato visible esconde un relato secreto, narrado de un modo elíptico y fragmentario”. [Tradução nossa] 286 Esta é uma característica adotada pelo escritor em muitos relatos, basta recordar que seu primeiro conto publicado, aos dezessete anos, já trazia uma tripartição. 287 Na primeira narrativa, atribui-se a autoria da narrativa à Andrés Quintana. 359 analogia à expressão serial killer (assassino), sinalizando a carga negativa e o passado do personagem. O conto de Andrés Quintana começa expondo a imagem do caos e das atrocidades provocadas pelo militar no Vietnam. O tema de guerras (armadas e interiores que aparentam alguns personagens) é uma constante na obra de Pacheco: La tierra parece ascender, los arrozales flotan en el aire, se agrandan los árboles comidos por el defoliador, bajo el estruendo concéntrico de las aspas el helicóptero hace su aterrizaje vertical, otros quince se posan en los alrededores, usted salta a tierra metralleta en mano, dispara y ordena disparar contra todo lo que se mueva y aun lo inmóvil, no quedará bambú sobre bambú, no habrá ningún sobreviviente en lo que fue una aldea o orillas del río de sangre, bala, cuchillo, bayoneta, granada, lanzallamas, culata, todo se vuelve instrumento de muerte, al terminar con los habitantes incendian las chozas y vuelven a los helicópteros, usted, capitán Keller, siente la paz del deber cumplido, arden entre las ruinas cadáveres de mujeres, niños, ancianos, no queda nadie porque, como usted dice, todos los pobladores pueden ser del Vietcong, sus hombres regresan sin una baja y con un sentimiento opuesto a la compasión, el asco y el horror que les causaron los primeros combates (PACHECO, 1997, p. 68) Keller recorda numa visita a um museu, ao escutar o relato de uma guia turística, o trágico passado mexicano e o compara às cenas de violência e de inferno daquela terra arrasada por ele e pelo napalm. Da mesma forma que não possuía nenhuma compaixão pelos vietnamitas e suas vidas destroçadas, sentimento semelhante se repetia ao ouvir o relato da guia e ver aquelas imagens de uma cultura rememorável como foi a dos astecas. Nada lhe provocava emoção: Camisa verde, Rolleiflex, de pie en la Sala Maya del Museo de Antropología, atiende las explicaciones de una muchacha que describe en inglés cómo fue hallada la tumba en el Templo de las Inscripciones en Palenque […] En realidad nada le ha impresionado […] no le producen mayor emoción los vestigios de un mundo aniquilado por un imperio que fue tan poderoso como el suyo (PACHECO, 1997, p. 69) Porém, a percepção de uma imagem da cultura asteca, poderosa em seu tempo, envolve-lhe quando chega à Sala Mexica: Vamos a ver, dice la guía, apenas una mínima parte de lo que se calcula produjeron los artistas aztecas sin instrumentos de metal ni ruedas para transportar los grandes bloques de piedra, aquí está casi todo lo que sobrevivió a la destrucción de México-Tenochtitlan, la gran ciudad enterrada bajo el mismo suelo que, señoras y señores, pisan ustedes […] La violencia inmóvil de la escultura azteca provoca una respuesta que ninguna obra de arte le había suscitado […] Coatlicue, madre de todas las deidades, del sol, la luna y las estrellas, diosa que 360 crea la vida en este planeta y recibe a los muertos en su cuerpo (PACHECO, 1997, p. 69-70) A imagem da deusa Coatlicue fascina-lhe de tal modo que o mesmo não consegue entender. Acreditamos que seja pela síntese de vida e o poder de destruição representado por esse símbolo da cultura: “violencia inmóvil”. A imagem pode ser o símbolo que o levará ao sacrifício no final do conto. Keller deixa de realizar outros passeios previstos na viagem e, numa atitude estranha para os trabalhadores do museu, senta-se diante dessa estátua, que tanto lhe fascina, três dias seguidos. Os amigos de viagem começam a desconfiar de seu sumiço e pedem para que ele tenha cuidado em se tratando da violência e do perigo da capital mexicana. Esse seria o primeiro momento, em que Pacheco traz um dado da realidade passível de se acreditar dentro da narrativa de Quintana. A imagem do caos urbano é plasmada no conto: [...] en donde se ha metido durante estos días, ¿acaso no leyó a D.H. Lawrence, no sabe que la ciudad de México es siniestra y en cada esquina acecha un peligro mortal?, no, no, jamás salga solo, capitán Keller, con estos mexicanos nunca se sabe, no se preocupen, me sé cuidar (PACHECO, 1997, p. 70) Outra cena em relação à vida e aos costumes mexicanos surge quando, Keller, no domingo, resolve deixar de retornar ao museu para ver a estátua e acompanha o grupo dos demais turistas numa festa chamada de “Fiesta Brava”, um espetáculo de touros. Keller choca-se com as imagens presenciadas, o que revela uma nítida ironia tendo em vista seu passado: […] sale el primer toro, lo capotean, pican, banderillean y matan, usted se horroriza ante el espectáculo, no resiste ver lo que le hacen al toro, y dice a sus compatriotas, salvajes mexicanos, cómo se puede torturar así a los animales, qué país, esta maldita FIESTA BRAVA explica su atraso, su miseria, su servilismo, su agresividad, no tienen ningún futuro, habría que fusilarlos a todos, usted se levanta, abandona la plaza, toma un taxi, vuelve al Museo a contemplar a la diosa (PACHECO, 1997, p. 71) Keller intriga-se com a morte de animais. Os assassinatos cometidos por ele não teriam uma carga fatalista maior? A ironia está mais uma vez implícita nas entrelinhas da literatura pachequiana. Keller resolve não ficar até o final da tourada e, ao sair, caminha pelas ruas da cidade até o momento em que é abordado, na altura do 361 Castillo de Chapultepec, por um vendedor de sorvetes, que faz suposições sobre o interesse de Keller em relação à cultura asteca e lhe pergunta do interesse em ver algo nunca antes visto. O vendedor promete-lhe uma experiência inesquecível. A fascinação, ou melhor, a curiosidade pelo passado simbólico dos astecas será o caminho de sua destruição. Com o intuito de fazer com que Keller não desconfie de seu caráter, pois sabe que ele traz consigo uma leitura negativa dos mexicanos, o vendedor tenta desfazer tal imagem deturpada: “puede confiar en mí, señor, no trato de venderle nada, no soy un estafador de turistas, lo que le ofrezco no le costará un solo centavo” (PACHECO, 1997, p. 71). Porém, no final da narrativa, os atos do vendedor revelam o contrário. A partir desse encontro, para alguns críticos, instala-se o fantástico288 na narrativa289. Como dissemos no início deste capítulo, nosso interesse está em verificar as referências históricas possíveis na narrativa. Como vimos, a primeira narrativa trata do conto de autoria de Andrés Quintana, personagem protagonista da segunda narrativa de Pacheco. Apesar de sabermos o caráter ficcional da primeira narrativa, somos levados a encontrar referências históricas e sociais da cultura mexicana. Será a partir do encontro de Keller com o vendedor que o leitor perceberá uma mudança de realidade na narrativa. Acontecem fatos que não podem ser explicados dentro da racionalidade do mundo. O vendedor dá a Keller algumas orientações para que ele chegue ao local combinado, na sexta-feira, dia 13 de agosto. Um dado chama nossa atenção, pois a data combinada com Keller é a mesma do sumiço de Quintana, constante no anúncio de jornal (terceira narrativa): [...] sólo tiene que subirse al último carro del último metro el viernes 13 de agosto en la estación Insurgentes, cuando el tren se detenga en el túnel entre Isabel la Católica y Pino Suárez y las puertas se abran por un instante, baje usted y camine hacia el oriente por el lado derecho de la vía hasta encontrar una luz verde, si tiene la bondad de aceptar mi invitación lo estaré esperando. (PACHECO, 1997, p. 72) 288 Não é nosso objetivo, neste estudo, abordar a vertente fantástica em alguns contos de Pacheco. 289 Indicamos a leitura de Meléndez (1988). 362 Nesse instante, o vendedor aborda um táxi e orienta o taxista a levar o turista ao seu hotel, mas, vale ressaltar, que em nenhum momento lhe foi informado o nome ou o endereço do mesmo. A caminho do hotel, Keller fica pensativo e acredita que tudo não passou de uma brincadeira de mau gosto contra um turista americano, mas depois acaba mudando de opinião. Percebemos, nessa parte do relato, as primeiras alusões à quebra de uma racionalidade, de uma sequência “real” possível nas ações da trama. Keller resolve ir ao encontro no dia combinado com uma camisa verde, talvez a mesma com que estava no museu ou, ainda, uma camisa tipo militar. Nota-se que umas das referências dadas ao turista seria a de caminhar, após descer na estação determinada, até que encontrasse uma luz verde na imensidão do túnel subterrâneo. A maior parte da narração é em segunda pessoa, como se outra pessoa (outra voz) estivesse guiando o protagonista e indicando-lhe o caminho a ser percorrido rumo a um destino final. Seria talvez a voz da imaginação de Keller? Um sonho do protagonista do conto de Quintana? O túnel290 do metrô parece simbolizar o caminho do personagem a outra realidade, a qual não conhece. Keller é conduzido pela voz até o encontro com o vendedor no local combinado e ambos começam o trajeto por uma galeria de pedra até a chegada ao local prometido. O ambiente, o forte cheiro, as infiltrações, a falta de ar, tudo parece conduzir Keller a outra realidade. O odor (“todo huele a encierro y a tumba, el pasadizo es un inmenso sepulcro) e a conversa do vendedor deixa-o cansado, receoso e, principalmente, confuso “todo es tan irreal, parece tan ilógico y tan absurdo” (PACHECO, 1997, p. 75). Mas, por alguns instantes, parece retornar a razão, a achar que está sendo assaltado e a sentir medo. Keller confessa sentir mais medo que o terror provocado no Vietnam: “quiero salir, sáqueme de aquí, le pago lo que sea [...] quiero irme ahora mismo le digo, usted no sabe quién soy yo [...] en qué lío puede meterse si no me obedece” (PACHECO, 1997, p. 74). 290 O túnel representa também o passado subterrâneo do México. Ao entrar no túnel, o sujeito não pode sair mais, porque se vê fascinado por um mundo oculto e obscuro, incompreensível, porém vivo, trazendo certas marcas para a cultura mexicana atual. 363 O vendedor explica ao turista que ele foi o único “hombre blanco” escolhido para conhecer a Piedra Pintada – quando esse questiona por que estava ali e para onde estava sendo levado – a maior escultura asteca em comemoração às conquistas do imperador Ahuizotl, nunca antes descoberta, nem mesmo durante as escavações do metrô. Não podemos esquecer que o metrô é uma facilidade da vida moderna. O guia parece ser um grande conhecedor dos mistérios ancestrais e recorda a Keller a grandeza do passado asteca e a barbárie espanhola. Há uma crítica aos invasores a favor da manutenção da tradição e dos costumes indígenas: Usted, capitán Keller, fue elegido, usted será el primer blanco que la vea desde que los españoles la sepultaron en el lodo para que los vencidos perdieran la memoria de su pasada grandeza y pudieran ser despojados de todo, marcados a hierro, convertidos en bestias de trabajo y de carga (PACHECO, 1997, p. 73) No percurso, encontramos mais referências históricas ao passado mexicano, mencionadas pela voz do vendedor. Esse sempre marca em seu discurso a grandeza dos astecas, o sofrimento dos antepassados, a tentativa do colonizador em apagar a memória dos indígenas, em tratá-los como mercadorias e o presente/passado da capital mexicana. Abaixo temos essas referências: [...] el olor a cieno en el lecho del lago muerto sobre el que se levanta la ciudad […] los que llamamos indios llegaron por el Estrecho de Bering, ¿no es así? México también es asiático, podría decirse […] puesto que ha descendido a otro infierno espera el premio de encontrar una ciudad subterránea que reproduzca al detalle la México-Tenochtitlan con sus lagos y sus canales como la representan las maquetas del Museo, pero, capitán Keller, no hay nada semejante, sólo de trecho en trecho aparecen ruinas, fragmentos de adoratorios y palacios aztecas, cuatro siglos atrás sus piedras se emplearon como base, cimiento y relleno de la ciudad española […] el pasadizo es un inmenso sepulcro, abajo está el lago muerto, arriba la ciudad moderna, ignorante de lo que lleva en sus entrañas (PACHECO, 1997, p. 73-74) Por que Keller foi escolhido? Seria uma espécie de castigo por seus atos no Vietnam? O personagem principal, a todo o momento, parece estar em transe entre a normalidade e certo delírio: [...] qué vine a hacer aqui, quién demonios me mandó venir a este maldito país, cómo pude ser tan idiota de aceptar una invitación a ser asaltado, pronto llegarán a quitarme la cámara, 364 los cheques de viajero y el pasaporte, son simples ladrones, no se atreverán a matarme (PACHECO, 1997, p. 75) Keller acredita que será assaltado e seus pertences levados. Em alguns momentos do relato, afirma ser perigoso. O vendedor ironiza a Keller, quando menciona: “usted no ruega, no pide, manda, impone, humilla, está acostumbrado a dar órdenes, los inferiores tienen que obedecerlas, la firmeza siempre da resultado” (PACHECO, 1997, p. 75), pois sabe que nada poderá afastá-lo de seu trágico destino. O forte cheiro funciona como uma espécie de alucinógeno. Escuta conversas ao longe num idioma estranho. Keller acaba adormecendo e ao despertar imagina ter tido um pesadelo, talvez não devesse ter “cenado esa atroz comida mexicana”, pois ela seria a responsável por essas imagens confusas em seu inconsciente: “[...] el Museo, la escultura azteca, el vendedor de helados, el Metro, los túneles extraños y amenazantes del ferrocarril subterrâneo” (PACHECO, 1997, p. 76). Imagina ter acordado no quarto do hotel Holiday Inn após o horror vivenciado. O transe de realidades permanece. No conto, no plano da realidade “aparente”, a idéia de um possível acerto de contas do mexicano contra a resistência cultural e o norteamericano são leituras possíveis da primeira narrativa. No plano simbólico, a trama permite inferir um acerto de contas de Keller consigo mesmo, devido aos atos de barbárie cometidos (“¿habrá gritado en el sueño?, menos mal que no fue el otro, el de los vietnamitas que salen de la fosa común en las mismas condiciones en que usted los dejó pero agravadas por los años de corrupción” (PACHECO, 1997, p. 76). A última cena da narrativa de Quintana mostra o desfecho do destino de Keller. Sua morte lembra os constantes rituais de sacrifícios dos indígenas prisioneiros oriundos de combates, porque para os astecas os deuses deveriam ser alimentados de corações palpitantes dos guerreiros, para que mantivessem sempre o nascimento do deus do Sol e a harmonia no império. Os maias também acreditam na necessidade do auto-sacrifício como mecanismo para agradar aos deuses: [...] la gran mesa circular acanalada, en una de las pirámides gemelas que forman el Templo Mayor de México-Tenochtitlan, 365 lo aseguran contra la superficie de basalto, le abren el pecho con un cuchillo de obsidiana, le arrancan el corazón, abajo danzan, abajo tocan su música tristísima, y lo levantan para ofrecerlo como alimento sagrado al dios-jaguar, al sol que viajó por las selvas de la noche […] de la sangre que acaban de ofrendarle el sol renace en forma de águila sobre MéxicoTenochtitlan, el sol eterno entre los volcanes (PACHECO, 1997, p. 76) Um ritual é, em seu sentido mais restrito, um ato de repetição de uma ação, cujo momento de criação não queremos que desapareça. De acordo com Octavio Paz, o ritual é um eterno retornar, não há regresso a um tempo sem um ritual, sem encarnação ou manifestação da data sagrada. Sem ritual não há regresso ao passado. Desta forma, o sacrifício encerra o conto de Quintana e a primeira narrativa de Pacheco. Conseguimos evidenciar a presença da intertextualidade entre o conto de Quintana e o do escritor nicaragüense Rubén Darío, “Huitzilopochtli”, cuja trama gira em torno da destruição de um norte-americano. A morte de Keller é uma forma encontrada por Pacheco para o acerto de contas do personagem com seu passado. O autor parece ter a intenção de comparar o sacrifício do ritual asteca com a violência exercida por Keller no Vietnam, universos e épocas diferentes, mas enlaçados pela ficção. As três narrativas começam de modo enigmático e também terminam da mesma forma, corroborando com os estudos sobre a minificção de Zavala (2008), além disso, há uma relação nítida entre as três. Dentro da divisão estabelecida por nós, o conto de Pacheco apresenta-se na seguinte ordem: narrativa três, um e dois. A narrativa três só faz sentido após a leitura da primeira e da segunda e a primeira é decorrente da atividade profissional do personagem da segunda. Porém, para compreender o destino do personagem da narrativa dois, anunciado na narrativa três, é necessário retornar a narrativa um. Portanto, há um cruzamento entre as histórias e um embate entre as realidades ficcionais. Após tratarmos da primeira narrativa, começamos a desvendar os momentos mais significantes, dentro de nossa proposta de análise, da segunda narrativa do conto de Pacheco, cuja trama gira em torno à vida de Andrés Quintana, um escritor decadente e tradutor. O conto tem início 366 com o personagem em seu apartamento, meditando sobre os melhores termos para uma tradução que realiza e sua insatisfação com seu ofício. Para Quintana, a criação literária ficou esquecida no passado, em sua época de juventude e de universidade. O ambiente inicial da narrativa conspira a presença norteamericana na residência e nos hábitos de Quintana e, inclusive, de seus vizinhos. Quintana escreve numa máquina elétrica Smith-Corona, lê e traduz The Population Bomb291, consulta o dicionário New World, ouve o eco da palavra FBI, reproduzida pela televisão do apartamento ao lado, e seus vizinhos da frente formam um conjunto de rock e cantam em inglês. Ao longo do texto, outros exemplos de produtos funcionais são citados: o papel de escrever (Bond Kimberley Clark), os cigarros (Viceroy, Benson & Hedges, Raleigh) e a bebida (Coca-cola). Além disso, Quintana traduz do inglês para o espanhol. O narrador destaca um exemplo de seu ofício: En 1979 el gobierno de México (¿el gobierno mexicano?), último no-comunista que quedaba en América Latina (¿Latinoamérica, Hispanoamérica, Iberoamérica, la América española?), es reemplazado (¿derrocado?) por una junta militar apoyada por China (¿con respaldo chino?) (PACHECO, 1997, p. 78) Quintana é um escritor passivo e insensível aos textos que traduz, pois acaba prestando mais atenção à forma que ao conteúdo. Parece não enxergar a promoção norte-americana diante dos textos que traduz, evidenciado, no final da narrativa, ao passar por um anúncio com uma inscrição sobre os assassinatos de Tlatelolco. Limita-se a corrigir mentalmente (porque não mecanicamente) um desvio da norma e não reage ao contexto de enunciação da mensagem. O conto contextualiza-se no ano de 1971, período de profunda dependência do país aos Estados Unidos e às empresas internacionais. Temos, nesse momento, um cenário de expansão comercial, caracterizado em tempos modernos como o fenômeno da globalização. O 291 A tradução para o português da expressão é “A explosão demográfica”. Livro publicado em 1968 de autoria de Paul Ralph Ehrlich. O texto é claramente representativo da ideologia dominante norte-americana, imperialista e expansionista, trata da destruição acelerada e total do ser humano e do mundo (In: JIMÉNEZ DE BÁEZ, 1979). 367 texto traduzido por Quintana projeta um futuro duvidoso para o país. Suas dúvidas, dispostas entre parênteses, nos remetem a questões históricas importantes não só para o sujeito mexicano, mas também para todo o continente. As dúvidas funcionando como uma crítica implícita do autor em busca de uma revisão dos acontecimentos da história. Após desconsiderar a leitura em voz alta do esboço de sua tradução, Quintana critica seu próprio trabalho (“suena horrible [...] qué prosa. Cada vez traduzco peor”) e resolve descartá-lo. Enquanto se questiona sobre a qualidade de sua tradução, toca o telefone, um antigo colega e editor da revista Trinchera da época da universidade, Ricardo Arbeláez, o convida para publicar um conto numa nova revista internacional, em que ele era editor e o editor chefe um senhor chamado Mr. Hardwick. A ligação292 de Arbeláez pode significar um novo reencontro de Andrés com a literatura. Arbeláez demonstra o interesse de colocá-la em circulação a partir de dezembro daquele ano, por conta do número de anunciantes, publicitários e patrocinadores. Pacheco denuncia mais uma vez a penetração e o domínio do território mexicano pelos meios de comunicação norte-americanos. A todo o momento, o personagem de Arbeláez faz referência ao México empregando o diminutivo (Mexiquito), não num sentido carinhoso, porém depreciativo, como uma forma de criticar os diferentes setores da sociedade e, claramente, querendo passar uma visão de país atrasado e subdesenvolvido: “Ya es hora de que se nos quite lo subdesarrollados y aprendamos a cobrar nuestro trabajo” (PACHECO, 1997, p. 80). Quintana empolga-se com o convite porque afinal não escreve há muito tempo e pensa que a revista seja totalmente literária, porém fica um pouco desenganado com a resposta de Arbeláez: Vamos a sacar una revista como no hay otra en Mexiquito […] Se trata de hacer una especie de Esquire en español. Mejor dicho, una mezcla de Esquire, Playboy, Penthouse y The New 292 A ligação interrompe a vida frustrada de Andrés, semelhante ao que ocorre, na primeira narrativa, em que o encontro de Keller com o vendedor de sorvetes tem a mesma função. 368 Yorker - ¿no te parece una locura: - pero desde luego con una proyección latina […] Hay dinero, anunciantes, distribución, equipo: todo. Meteremos publicidad distinta según los países […] Queremos que en cada número haya reportajes, crónicas, entrevistas, caricaturas, críticas, humor, secciones fijas, un ‘desnudo del mes’ y otras dos encueradas, por supuesto, y también un cuento inédito escrito en español (PACHECO, 1997, p. 79) A descrição do estilo da revista feita por Arbeláez foge um pouco ao modelo mexicano daquele momento. A criação da revista ao estilo das citadas e com um editor norte-americano é mais um exemplo do domínio e ocupação dos Estados Unidos no território mexicano e latino-americano. Arbeláez é mexicano, contudo sua convivência com o diretor da revista altera completamente as tradições e os hábitos mexicanos. A ideologia norte-americana está evidente no discurso de Arbeláez, que recebe ordens de um americano. À medida que a revista ganhe público-leitor, serão difundidos, mais os costumes e a ideologia do americano. Pacheco parece denunciar uma segunda colonização, mas, agora, por parte dos norte-americanos. Arbeláez informa a Quintana de seu interesse em “lanzar con proyección continental a un autor mexicano”, por isso pensou nele, contudo revela a verdadeira intenção do diretor da revista “Para el primero se había pensado en comprarle uno a Gabo...” (PACHECO, 1997, p. 79). Essa informação já soa um tanto misteriosa. Por que abriria mão de Gabriel García Márquez em favor de um escritor sem sucesso como Quintana? Como já sinalizou Arbeláez o problema não era financeiro, entretanto o interesse em ajudar a divulgar um talento nacional das Letras. Quintana fica empolgado com o convite, principalmente, ao ser informado da quantia paga pela revista, no entanto, apreensivo porque não dispõe de nenhum texto novo e sabe que tarda a escrever (“Ricardo, sabes que me tado siglos con un cuento... Hago diez o doce versiones293”). Arbeláez critica o pouco reconhecimento do papel e do trabalho do escritor mexicano ao afirmar: 293 O discurso de Quintana assemelha-se ao de Pacheco. Como já expusemos, o autor defende a reescritura em busca da qualidade de leitura para o público leitor. 369 Debo decirte que por primera vez en este pinche país se trata de pagar bien, como se merece, un texto literario. A nivel internacional no es gran cosa, pero con base en lo que suelen darte en Mexiquito es una fortura. He pedido para ti mil quinientos dólares (PACHECO, 1997, p. 80) Quintana parece não acreditar na quantia oferecida e, nesse momento, percebemos através de sua empolgação uma provável dificuldade financeira em sua vida. O editor novamente tenta mostrar vantagem dos norte-americanos em relação aos mexicanos, pois serão eles os responsáveis por melhorar a remuneração dos escritores locais. Ao mesmo tempo em que parece ser favorável à divulgação da literatura mexicana, o discurso de Arbeláez acaba por menosprezar o trabalho dos mesmos ao dar a entender que aceitam qualquer quantia por seus textos. Quintana anota o endereço e a direção da revista no único papel existente, na margem esquerda do jornal, em que aparecia o título de uma matéria, destacada pelo narrador, em caixa alta: “HAY QUE FORTALECER LA SITUACIÓN PRIVILEGIADA QUE TIENE MÉXICO DENTRO DEL TURISMO MUNDIAL” (PACHECO, 1997, p. 80-81). O desenvolvimento do turismo no país era uma meta do programa de governo de muitos candidatos, desde Alemán. Além disso, já sabemos que a ação geradora do clímax da primeira narrativa acontece com um turista norte-americano em visita à Cidade do México. Quintana esperou a chegada de sua mulher, Hilda, com ansiedade, idealizando começar e acabar o conto numa única noite. Já tinha o título e as primeiras palavras. A dependência econômica e intelectual do México de uma cultura dominante, a comercialização da cultura mexicana transformada numa sociedade de consumo, a degradação dos valores nacionais, do passado pré-hispânico e contemporâneo, colocam em evidência o caminho do país desde o governo de Miguel Alemán (1946-1952), primeiro presidente a desenvolver o turismo como fonte de economia. Pacheco trata, nesse conto e em boa parte de sua obra, da vida caótica da Cidade do México e de um modo de vida baseado num passado de traições à cultura e aos valores nacionais. 370 A partir disso, ocorre uma digressão na narrativa, um retorno ao passado de três personagens do conto (Quintana, Ricardo e Hilda) e da articulação entre suas vidas. Quintana conhece a Arbeláez na universidade, este tinha uma relação suspeita com Hilda. De acordo com o narrador, a vida de Ricardo era um mistério, inclusive, para seus amigos mais próximos: “Se murmuraba que tenía esposa e hijos y, contra sus ideas, trabajaba por las mañanas en el bufete de un abogángster, defensor de los indefendibles” (PACHECO, 1997, p. 82). Ricardo era graduado em Direito e também se converte num abogángster, uma primeira evidência do caráter duvidoso do personagem, somando-se a outros quando veio a ser editor de uma revista financiada por capital norte-americano. Porém, numa viagem de Ricardo a Cuba, Quintana e Hilda se aproximam: Hilda se fijó en Andrés. Entre todos los de Trinchera sólo él sabía escucharla y apreciar sus poemas […] Hilda estaba siempre al lado de Ricardo. Su relación jamás quedó clara. A veces parecía la intocada discípula y admiradora de quien les indicaba qué leer, qué opinar, cómo escribir, a quién admirar o detestar. En ocasiones, a pesar de la diferencia de edades, Ricardo la trataba como a una novia de aquella época y de cuando en cuando todo indicaba que tenían una relación mucho más íntima […] Durante su ausencia Hilda y Quintana se vieron todos los días y a toda hora. Convencidos de que no podrían separarse, decidieron hablar con Ricardo en cuanto volviera de Cuba […] Arbeláez no objetó la unión de sus amigos pero se apartó de ellos y no volvió a Filosofía y Letras (PACHECO, 1997, p. 82-83) O narrador apresenta referências históricas para o reconhecimento daqueles anos como os do governo de Adolfo Ruiz Cortines (1952 a 1958). O contexto do conto, também, retrata anos difíceis e de catástrofes que entraram para a história da sociedade mexicana: En la Ciudad Universitaria recién inaugurada Andrés conoció al grupo de la revista Trinchera, impresa en papel sobrante de un diario de nota roja, y a su director Ricardo Arbeláez, que sin decirlo actuaba como maestro de esos jóvenes […] Arbeláez quería doctorarse en literatura y convertirse en el gran crítico que iba a establecer un nuevo orden en las letras mexicanas […] su obra se limitaba a reseñas siempre adversas y a textos contra el PRI y el gobierno de Ruiz Cortines (PACHECO, 1997, p. 81-82) […] 371 Arbeláez pasó unas semanas en Cuba para hacer un libro, que no llegó a escribir, sobre los primeros meses de la revolución. Insinuó que él había presentado a Ernesto Guevara y a Fidel Castro y en agradecimiento ambos lo invitaban a celebrar el triunfo […] La misma tarde de la conversación en el café Palermo, el 28 de marzo de 1959, las fuerzas armadas rompieron la huelga ferroviaria y detuvieron a su líder Demetrio Vallejo (PACHECO, 1997, p. 83) A Universidad Nacional Autónoma de México obteve sua autonomia no ano de 1929 e, entre os anos de 1949 e 1952, ainda no governo de Alemán, ocorreram as obras de construção do Campus Central da Cidade Universitária, cujo conjunto arquitetônico é dotado de inúmeras referências às tradições locais e, especialmente, ao passado pré-hispânico, sendo considerado um dos mais importantes ícones da modernidade latino-americana. Como sinalizamos no capítulo de análise de Las Batallas, houve no México certa resistência ao governo de Ruiz Cortines (1952-1958), sucessor de Alemán, e a supremacia política do Partido Revolucionário Institucional294. Uma alusão à Revolução Cubana (1959) também consta quando o narrador menciona o incerto encontro entre Ricardo, Guevara e Fidel Castro. Vale a pena recordar a importância desse fato histórico na vida de Pacheco, como ele mesmo coloca: Para los que teníamos veinte años en 1959, la Revolución Cubana fue un acontecimiento que nos sacudió con la misma fuerza que la Guerra de España debe de haber ejercido en la generación de Paz y Efraín Huerta. Fin de una era y comienzo de otra, espada de fuego, nos arrojó de una arcadia apolítica, de un limbo estetizante donde el mayor problema era la lucha contra el que o el exterminio radical del gerundio (PACHECO, 1966, p. 248). O relato de intelectuais e escritores sobre suas impressões diante de grandes repercussões históricas é bastante comum. Porém, no caso de Pacheco, os mesmos permitiram um questionamento por parte do autor do direcionamento de sua escritura diante da angustiante vivência no mundo moderno dominado pela violência e injustiça, como podemos depreender de suas palavras: 294 Nome dado ao antigo Partido da Revolução Mexicana que, a partir de 1946, adota tal denominação com o objetivo de enfatizar um novo momento para o governo mexicano, em que esse não seria mais liderado por revolucionários, contudo por instituições sociais originárias a partir da guerra civil. O presidente Miguel Alemán foi o principal artífice da mudança de nome do partido. 372 ¿Qué puede hacer el escritor en un mundo en que millones de seres mueren de hambre, y otros son incinerados en los arrozales de Vietnam, y otros se suicidan al no resistir las tensiones de una sociedad tecnológica cuyo fin es la abundancia de objetos que cosifican y enajenan? [...] Si no se puede transformar un mundo que pertenece a los técnicos y a los empresarios, a los políticos y los militares, lo mejor ¿no es desertar? Ya que casi la única manera de no ser cómplice en nuestra época es la resistencia pasiva, el silencio puede ser un modo de protesta contra la injusticia y la abyección contemporánea. Pero este nihilismo es hoy una actitud profundamente reaccionaria: es necesario escribir precisamente porque hacerlo se ha vuelto una actividad imposible. (PACHECO, 1966, p. 260) Esta atitude de Pacheco procede do sentido ético atribuído a sua escritura, com base numa concepção estética de pensar a arte como meio capaz de proporcionar uma rápida mudança em nossas sociedades. A presença do mundo norte-americano na sociedade de Quintana é inevitável, apesar disso, o texto apresenta sinais dessa resistência cultural, ainda que sejam reprimidos por essa ordem vigente. Há três momentos que marcam uma resistência social de setores da sociedade mexicana contra a entrega do México ao capital estrangeiro. As datas aparecem cronologicamente na narrativa: 1959, ano de greves ferroviárias; 1968, período de demonstrações estudantis e do massacre na Praça das Três Culturas, em Tlatelolco e 1971, sob a presidência de Luis Echeverría Álvarez (1970 a 1976), ano da manifestação estudantil na Cidade do México em apoio aos estudantes de Monterrey, ocasionando o assassinato de vários universitários por forças paramilitares denominadas Los halcones. Só restam as marcas de uma resistência ativa, mesmo que minoritária, do ano de 1971, contexto do presente conto, como indica o grafite político295, observado por Quintana na estação de metrô, numa propaganda de Coca-cola: “Asesinos, no olvidamos Tlatelolco y San Cosme” (PACHECO, 1997, p. 98). 295 Aparece na página 84 do conto uma referência à CIA (Central Intelligence Agency), agência governamental dos Estados Unidos, responsável por analisar casos de ameaças à segurança nacional do país por governos, corporações ou indivíduos, a partir de uma matéria publicada por Arbeláez num jornal mexicano. Em 2006, Echeverría Álvarez foi decretado, em juízo, culpado pelos assassinatos de 1968 e 1971, meses depois voltam ao caso e ele é absolvido do genocídio. Também encontramos indícios da colaboração do ex-presidente como informante da CIA. 373 A narrativa apresenta a evolução dos personagens no decorrer dos anos, outra pista para identificação do contexto ao qual se criaram os mesmos. Quintana nunca escondeu de seus pais a paixão pelas Letras. O narrador revela a assistência do jovem a alguns cursos da Faculdade de Filosofia e Letras, local esse onde conhece Ricardo e Hilda. O narrador reforça a paixão de Quintana, desde pequeno, ao universo do conto: Andrés halló de niño su vocación de cuentista y quiso dedicarse sólo a este género [...] Contra la dispersión de sus amigos él se enorgullecía de casi no leer poemas, novelas, ensayos, dramas, filosofía, historia, libros políticos, y frecuentar en cambio los cuentos de los grandes narradores vivos y muertos (PACHECO, 1997, p. 81) A narrativa destaca a mudança de status social sofrida por Quintana no decorrer de sua história pessoal. Quintana é descrito como o estudante de arquitetura, obrigado como filho único a dar continuidade à carreira do pai, porém nunca se identificou com o curso, além disso, não conclui a faculdade por conta da gravidez inesperada de Hilda, no ano de 1960: Los señores Quintana lo consideraron una equivocación: a punto de cumplir veinticinco años Andrés dejaba los estudios cuando ya sólo le faltaba presentar la tesis y no podría sobrevivir como escritor (PACHECO, 1997, p. 84) Quintana nunca hesitou em assumir o filho e em casar com Hilda. Os pais de Quintana ajudaram o casal com dinheiro e construindo uma casa, no bairro de classe média de Coyoacán. Após seis meses de gestação, Hilda perde o filho e a capacidade de gerar, e também muda o rumo de sua vida ao abandonar a universidade e suas poesias. Quintana precisou alugar a casa de Coyoacán para complementar a renda, já que escrevia contos e traduzia para uma empresa norte-americana, e se “mudaron a un sombrío departamento interior de la colonia Roma” (PACHECO, 1997, p. 84). Alguns familiares conseguiram-lhe uma vaga na Secretaria de Obras Públicas e Hilda começou a trabalhar com sua irmã na butique de Madame Marnat. Quintana começa a atuar como tradutor porque já não consegue se sustentar da própria arte. No início da narrativa, expressa o desagrado 374 também com essa atividade. A empresa que o contratou para realizar as traduções não comercializava textos literários dos Estados Unidos, entretanto, propagava a promoção da ideologia norte-americana com o intuito de apoiar a campanha da “Alianza para el Progreso y la imagem de John Fiztgerald Kennedy296” (PACHECO, 1997, p. 84), ao que tudo indica uma alternativa estratégica dos Estados Unidos para controlar o avanço das forças sociais alternativas inspiradas na Revolução Cubana. Quintana não conseguia êxito em nenhum projeto, em contrapartida a vida de Arbeláez é apresentada com muitas conquistas. O retrato construído por Pacheco para cada personagem parece ser intencional, um deles simboliza o homem/escritor mexicano passivo e o outro, o mais ativo. Quintana representa aquele escritor mexicano (ou latino-americano) que não participa do avanço capitalista e dos meios de massa, porque ninguém o convida: Nunca escribió notas ni reseñas. Ya que no podía dedicarse al periodismo, mientras intentaba abrirse paso como guionista de cine tuvo que redactar las memorias de un general revolucionario. Ningún script satisfizo a los productores […] El general murió cuando Andrés iba a la mitad del segundo volumen. Los herederos cancelaron el proyecto […] Por su parte Arbeláez empezó a colaborar cada semana en México en la Cultura (PACHECO, 1997, p. 84) […] Lo último que supieron Hilda y Andrés fue que había emigrado a Washington y trabajaba para la OEA (PACHECO, 1997, p. 86) O narrador cita dois fatos importantes da historiografia literária mexicana, relacionados à ficcionalidade do conto de Pacheco. Como Andrés Quintana era um escritor em busca de oportunidades, encontrou na coleção Ficción, da Universidad Veracruzana, organizada pelo escritor mexicano Sergio Galindo e na Revista El Cuento, dirigida por Edmundo Valadés, uma possibilidade de divulgar sua arte. Pacheco mostra uma época muito significativa para a literatura mexicana, pois convida o leitor a visitar momentos importantes para a vida intelectual mexicana, e essa é mais uma relação do conto com o tema da escritura. O narrador trata do 296 John Kennedy foi presidente dos Estados Unidos entre os anos de 1961 e 1963. 375 esquecimento do conto devido ao boom da narrativa hispano-americana e a redução do espaço destinado ao gênero em revistas. Ambos buscavam difundir obras e autores, que com o tempo, se converteram em modelo de arte, de pensamento e criação literária no continente latino-americano: En 1962 Sergio Galindo, en la Serie Ficción de la Universidad Veracruzana, publicó Fabulaciones, el primer y último libro de Andrés Quintana […] Después las revistas mexicanas dejaron durante mucho tiempo de publicar narraciones breves y el auge de la novela hizo que ya muy pocos se interesaran por escribirlas. Edmundo Valadés inició El Cuento en 1964 y reprodujo a lo largo de varios años algunos textos de Fabulaciones (PACHECO, 1997, p. 85) Andrés não teve êxito com a publicação de Fabulaciones, do total de 2000 exemplares, vendeu 134 livros e comprou outros 75. Segundo o narrador, o autor não teve sorte porque García Márquez lançou dois de seus livros na mesma época: Fabulaciones tuvo la mala suerte de salir al mismo tiempo y en la misma colección que la segunda obra de Gabriel García Márquez, Los funerales de la Mamá Grande, y en los meses de Aura y La muerte de Artemio Cruz (PACHECO, 1997, p. 85) O livro de Andrés teve uma única resenha publicada no suplemento La Cultura en México, escrita por Ricardo. Quintana envia-lhe uma carta de agradecimento, mas nunca obteve resposta. Além da pouca recepção da obra e de não ter conseguido sucesso no concurso para uma bolsa do Centro Mexicano de Escritores, Quintana decide parar de escrever por um período até resolver seus problemas financeiros. No momento posterior à chamada telefônica de Ricardo, que relembra de Andrés após muitos anos, há o retorno ao tempo presente da narrativa. De qualquer forma não lhe aparecia nenhum trabalho, contudo achava que as traduções e os ofícios burocráticos não deixavam de ser uma forma de escritura. Quintana critica os escritores contemporâneos e defensores de ideáis consumistas: “Además no quiero competir con los escritorzuelos mexicanos inflados por la publicidad; noveluchas como las que ahora tanto elogian los seudocríticos que padecemos” (PACHECO, 1997, p. 87). Em outra crítica, Quintana responsabiliza o novo estilo de literatura imposto pelos meios de comunicação de massa como o responsável pelo apagamento da leitura de seu livro: “En el subdesarrollo 376 no se puede ser escritor./ Estamos en 1971: el libro ha muerto: nadie volverá a leer nunca: ahora lo que interesa son los mass media” (PACHECO, 1997, p. 87). Quintana é um escritor ressentido pela escassa recepção de Fabulaciones, apesar disso, acredita que sua literatura seja superior à literatura de consumo de massas, considerada como inferior. Em contrapartida, reconhece a possibilidade de extrair dos meios de comunicação de massa experiências para construir sua literatura. Quintana não pensa duas vezes antes de aceitar a proposta de Ricardo porque dessa forma poderia “pagar sus deudas de oficina, a comprarse las cosas que le faltaban, a comer en restaurantes, a irse de vacaciones con Hilda” (PACHECO, 1997, p. 87). O valor pago pelo conto corresponderia a três meses de salário por suas traduções. Numa mescla de frustração e ressentimento, deixa de dormir para escrever “La fiesta brava” (narrativa um), porque esta produção poderia possibilitar-lhe projeções internacionais, mesmo que a revista fosse de corte norteamericano. Nunca antes Quintana havia conseguido escrever um conto em tão pouco tempo, numa única noite: A las cinco de la mañana puso el punto final ‘entre los dos volcanes’. Leyó sus páginas y sintió una plenitud desconocida. Cuando se fue a dormir se había fumado una cajetilla de Viceroy y bebido cuatro coca colas pero acababa de terminar LA FIESTA BRAVA (PACHECO, 1997, p. 88) Quintana criticava os hábitos e os produtos norte-americanos, mas, sem mesmo se dar conta, acaba sendo o reflexo da sociedade consumista, haja vista o consumo de cigarro importado, da coca-cola e de seus sonhos consumistas, como ir a um bom restaurante ou viajar nas férias. Não há como fugir do processo de modernização do México daquele tempo. Com todo seu nervosismo, Andrés consegue combinar um horário com Ricardo para entregar-lhe o conto. Não se viam há exatos doze anos, desde 28 de março de 1959. Andrés imaginava como seria esse encontro e as conversas como forma de recuperar os momentos felizes do passado, mas ledo engano. O abraço de Ricardo conforta-lhe, porém não é suficiente para se sentir à vontade naquele escritório: “Andrés volvió a sentirse fuera de lugar en aquella oficina de ventanas sobre la Alameda y 377 paredes cubiertas de fotomurales con viejas litografías de la ciudad” (PACHECO, 1997, p. 89). O narrador reforça as impressões e as diferenças entre ambos os personagens: Andrés llegó puntual a la oficina [...] La secretaria era tan hermosa que él se avergonzó de su delgadez, su baja estatura, su ropa gastada, su mano tullida […] Arbeláez le pareció irreconocible con el traje de Shantung azul-turquesa, las patillas, el bigote, los anteojos sin aro, el pelo entrecano […] Andrés sintió forzada la actitud antinostálgica, de como decíamos ayer, que adoptaba Ricardo. Ni una palabra acerca de la vieja época, ninguna pregunta sobre Hilda, ni el menor intento de ponerse al corriente y hablar de sus vidas durante el largo tiempo en que dejaron de verse […] Para romper la tensión Arbeláez lo invitó a sentarse en el sofá de cuero negro. Se colocó frente a él y le ofreció un Benson & Hedges (antes fumaba Delicados) (PACHECO, 1997, p. 89) Viviana, a secretaria, é o símbolo da mulher moderna e atualizada. Sua beleza é o primeiro indício do cenário capitalista do escritório da revista. Tudo é oposto à simplicidade demonstrada por Andrés. Em algum momento, ele visualiza Hilda em Viviana, quando sua esposa podia se vestir com roupas do estilo da butique de Madame Marnat, “pero no alcanzaba comprarse” pelas dificuldades financeiras de ambos. A entrada na sala de Ricardo representa o convite para que Andrés conheça o universo capitalista e o poder do editor. Pacheco usa o reencontro entre Andrés e Ricardo para criticar a relação escritor-capital. No final, o rechaço do texto de Andrés confirmará o poder de Ricardo ou um possível ajuste de contas com o passado. A mudança dos hábitos (a roupa, a marca do cigarro, a cordialidade com certa distância) de Arbeláez faz dele um novo homem. Andrés questionava-se em como o editor da antiga Trinchera e crítico severo das corrupções literárias e humanas do México se converteu naquele homem disposto a fazer uma revista contrária a tudo o que lutaram juntos no passado. Quintana parece encontrar uma resposta para sua dúvida ao se colocar numa situação parecida: “¿Por qué yo mismo respondí con tal entusiasmo a una oferta sin explicación posible?” (PACHECO, 1997, p. 92). Pacheco denuncia a mudança do homem diante dos bens e dos produtos da sociedade capitalista. Quintana acaba por concluir: “Tan terrible es el país, tan terrible es el mundo, que en él 378 todas las cosas son corruptas o corruptoras y nadie puede salvarse” (PACHECO, 1997, p. 92). Pacheco interroga a função do escritor latinoamericano na sociedade capitalista. Andrés aguarda na sala de Ricardo, enquanto esse e Mr. Hardwick se reúnem para a leitura de seu texto, não conseguindo controlar sua inquietude. Aquela situação era tão estranha, tão outra, tão nova, da mesma forma que a cidade vista pela janela da sala, “la Alameda sombría, la misteriosa ciudad, sus luces indescifrables” (PACHECO, 1997, p. 90). As fotos das paredes faziam-lhe retornar a um passado nostálgico da cidade: “Lamento la muerte de aquella ciudad de México”. Andrés já esperava por duas horas naquele escritório, o tempo converte-se no seu pior inimigo. Ele se questiona sobre aquele procedimento de análise do texto: ¿Por qué este procedimiento insólito cuando lo habitual es dejarle el texto al editor y esperar sus noticias para dentro de quince días o un mes? / ¿Cómo es posible que permanezcan hasta medianoche con el único objeto de decidir ahora mismo sobre la colaboración más entre las muchas solicitadas para una revista que va a salir en diciembre? (PACHECO, 1997, p. 93) Ao olhar as imagens da antiga cidade e relembrá-las, Quintana começa a se fazer perguntas sem resposta, a levantar suposições num jogo de retorno ao passado: o convite de Ricardo seria intencional para destacar seu fracasso? Ricardo queria aproximar-se novamente de Hilda? Será que o convidou somente porque sabia das dificuldades de Hilda? Seria uma gentileza ou insulto da parte de Ricardo? Quintana questiona, inclusive, do seu casamento: ¿Me tendieron una trampa, me cazaron para casarme a fin de que él, en teoría, pudiera seguir libre de obligaciones domésticas, irse de México, realizarse como escritor en vez de terminar como un burócrata que traduce ilegibros pagados a trasmano por la CIA? (PACHECO, 1997, p. 91-92) Num momento, Quintana busca uma explicação para seu insucesso como escritor. Ele demonstra ser um escritor de ambições nacionais, mas, por adversidades da vida e/ou de não se permitir arriscar, acaba se transformando numa pessoa frustrada, num tradutor refém da política norte-americana. De imediato, se dá conta da injustiça que 379 pensara ao desconfiar da esposa, que já passou por tantas dificuldades e depressões a seu lado, e de Ricardo, seu mestre e amigo, que sempre o elogiou e por generosidade lhe oferecera aquela oportunidade de recomeço. Depois de pouco mais de duas horas, “nos tardamos siglos [...] estuvimos dándole vueltas y vueltas a tu historia” (PACHECO, 1997, p. 93), Ricardo aparece na sala e Quintana parece prever a resposta ao refletir sobre este instante: “Ya viví este momento. / Puedo recitar la continuación [...] Sin esperanza, seguro de la respuesta” (PACHECO, 1997, p. 93). Quintana não se enganara. Ricardo emprega o termo “historia” para se referir ao conto de Andrés, porém este não se incomoda e acredita que o mesmo cometeu um anglicismo ou uma tradução mental a partir de “story” ou “short story”. Ricardo também parecia não estar à vontade ao mencionar: “Mira, no sé cómo decirte. Tu narración me gusta, es interesante, está bien escrita...” (PACHECO, 1997, p. 93). O uso das reticências passa a idéia da aprovação de Ricardo pela “história”, mas um desagrado do editor chefe. Nossa visão é comprovada quando Ricardo comenta “De verdad créemelo, no sabes cuánto lamento esta situación. Me hubiera encantando que Mr. Hardwick aceptara LA FIESTA BRAVA. Ya ves, fuiste el primero a quien le hablé” (PACHECO, 1997, p. 94). O conto é ferozmente criticado e descartado pelos dois editores da revista por duas características básicas: problemas de forma – a estrutura é confusa, deficiente e copia outros contos existentes, apresentando problema de conteúdo – pois é uma provocação ao norte-americano. Ricardo impõe inúmeras críticas ao conto e ao desempenho de Quintana como escritor. Emprega a primeira pessoa do plural como forma de amenizar a crítica num primeiro momento, mas no fundo seu discurso mostra o consenso entre ele e o editor chefe da revista norte-americana. Ricardo, ao citar Chejov e Maupassant, ironiza ferozmente o fato de Andrés ter escrito o conto numa noite: Como en Mexiquito no somos profesionales, no estamos habituados a hacer cosas sobre pedido, sin darte cuenta bajaste el nivel, te echaste algo como para otra revista, no para la nuestra. ¿Me explico? LA FIESTA BRAVA resulta un 380 maquinazo, tienes que reconocerlo […] Sólo Chejov y Maupassant pudieron hacer un gran cuento en tan poco tiempo (PACHECO, 1997, p. 93) Ricardo inferioriza a capacidade do escritor mexicano de um modo geral. Andrés escutou com atenção as críticas e em alguns momentos pensou em revidar ou contra-argumentar, mas não o fez. Sua atitude demonstra a passividade já comentada por nós em relação a Andrés. Pacheco emprega-o como imagem do mexicano que teve sua voz silenciada ao longo da história, seja pelo colonizador espanhol, pelo imperialismo norte-americano, por outras forças potencializadoras da globalização. Andrés recordou as árduas horas da noite anterior na construção de seu conto, mas tinha claro que o mesmo era o reflexo do estudo e de seus pensamentos de anos inteiros na trama ideal para “La fiesta brava”. Além disso, Andrés comentou “me duele menos perder el dinero que el fracaso literario y la humillación ante Arbeláez” (PACHECO, 1997, p. 94). Após escutar tantos rodeios e não saber o verdadeiro motivo do não aceite do conto, Quintana parece reagir ao dizer “las excusas salen sobrando: di que no sirve y se acabó. No hay ningún problema” (PACHECO, 1997, p. 94). Com o comentário, Arbeláez ofende-se e direciona-lhe mais críticas ofensivas, como a falta de precisão e de símbolos no texto, os parágrafos confusos, o uso da segunda pessoa, em suma, um escritor ainda reproduzindo um estilo de 1962: Sí hay problemas. Te falta precisión. No se ve al personaje. Tienes párrafos confusos – el último, por ejemplo – gracias a tu capricho de sustituir por comas los demás signos de puntuación. ¿Vanguardismo a estas alturas? Por favor, Andrés, estamos en 1971, Joyce escribió hace medio siglo. Bueno, si te parece poco, tu anécdota es irreal en el peor sentido. Además eso del ‘sustrato prehispánico enterrado pero vivo’ ya no aguanta, en serio ya no aguanta. Carlos Fuentes agotó el tema. Desde luego tú lo ves desde un ángulo distinto, pero de todos modos… El asunto se complica porque empleas la segunda persona, un recurso que hace mucho perdió su novedad y acentúa el parecido con Aura y La muerte de Artemio Cruz. Sigues en 1962, tal parece (PACHECO, 1997, p. 94) […] El final sugiere algo que no está en el texto y que, si me perdonas, considero estúpido. No entiendo (PACHECO, 1997, p. 95) 381 Não há intervenção nesse momento. Andrés escuta calado a todas as críticas. O narrador não nos revela nenhuma informação sobre sua reação ou seu comportamento. Ricardo defende a idéia de que “ya todo se ha escrito. Cada cuento sale de otro cuento” (PACHECO, 1997, p. 94) e diz que o conto de Andrés recorda a “La noche boca arriba”, de Julio Cortázar e “Huitzilopochtli”, de Rubén Darío. Ricardo menospreza o texto de Andrés por este dar voz ao indígena e resgatar o passado préhispânico numa época em que o mundo já é outro. Refere-se a Fuentes, como o escritor responsável por explorar bastante o passado indígena mexicano. Andrés afirma não ler literatura mexicana: “Jamás he leído un libro suyo. No leo literatura mexicana... Por higiene mental” (PACHECO, 1997, p. 94). O discurso da revista é a forma encontrada por Pacheco para denunciar o olhar preconceituoso do estrangeiro para a produção local. Ricardo sempre discrimina seu país; o uso do diminutivo Mexiquito resume seu olhar de inferioridade para a nação. Andrés compreende o rancor contra a literatura mexicana na fala de Ricardo. O mesmo no passado recebeu comentários contrários ao que defendia em sua tese sobre o romance mexicano: El gran esfuerzo de revisar la novela mexicana halló un sólo eco: Rubén Salazar Mallén, uno de los más antiguos críticos, lamentó como finalmente reaccionaria la aplicación dogmática de las teorías de Georg Lucáks. El rechazo de su modelo a cuanto significara vanguardismo, fragmentación, alienación, condenaba a Arbeláez a no entender los libros de aquel momento y destruía sus pretensiones de novedad y originalidad. Hasta entonces Ricardo había sido el juez y no el juzgado. Se deprimió (PACHECO, 1997, p. 86) O resgate da desilusão sofrida por Ricardo explica sua aproximação, adoção e defesa de costumes norte-americanos, uma verdadeira transculturação. Darío (1975) já se perguntava, no ano de 1905, se a intervenção de capital americano no continente latinoamericano seria idêntica à espanhola: “Seremos entregues aos bárbaros ferozes? / Tantos milhões de homens falaremos em inglês?297”. A 297 “¿Seremos entregados a los bárbaros fieros? / ¿Tantos millones de hombres hablaremos inglés?”. [Tradução nossa] 382 resposta a essa pergunta, no contexto mexicano retratado no conto de Pacheco, seria sim. Andrés não fala inglês por vergonha, mas traduz mediante pagamento. Segundo as palavras de Ricardo, não há mais salvação para o país, porque “México será la tumba del imperialismo norteamericano, del mismo modo que en el siglo XIX hundió las aspiraciones de Luis Bonaparte, Napoleón III298” (PACHECO, 1997, p. 95). De alguma forma, Andrés reage ao sistema dominante e à resistência cultural externa. O escritor, deslocado da fama, do centro e do status que o país lhe outorga, parece vingar-se com seu conto “La fiesta brava”, em que propõe um ritual asteca (retorno ao passado indígena) como mecanismo de controle às forças estrangeiras (a morte de um militar norte-americano). Os motivos pelos quais Quintana elabora seu conto são nítidos: romper a resistência cultural e castigar o invasor anglosaxão. Atos que anunciam a compreensão final do conto de Pacheco. Parece que esse retorno a uma identidade nacional, proposta do conto de Quintana, também é uma denúncia de Pacheco. Infelizmente, Andrés não prevê o poder de seu cliente, Mr. Hardwick, tampouco sabe como reagir. O editor chefe da revista simboliza a imagem da cultura destruída no conto de Quintana. Ricardo comenta: Pero, Andrés, en qué cabeza cabe, a quién cabe, a quién se le ocurre traer a una revista con fondos de allá arriba un cuento en que proyectas deseos – conscientes, inconscientes o 298 O personagem faz alusão ao período entre 1862 e 1867, quando Bonaparte interveio no México, numa guerra que arruinou as finanças francesas. Com a finalidade de manter o comércio francês na América, controlar a crescente hegemonia norte-americana e acabar à instabilidade política entre grupos locais, as tropas francesas invadiram e prestaram apoio à oposição ao governo do México, derrubando seu presidente Benito Juárez. Bonaparte e os monarquistas mexicanos conseguem nomear imperador Maximiliano de Habsburgo-Lorena, que governa com muitas dificuldades, de 1964 a 1967. O governo do presidente Juárez é citado por Pacheco no conto “La cautiva” quando o narrador se refere a um convento utilizado como quartel pelas tropas francesas: “En el siglo XIX lo expropió el gobierno Juárez y durante la intervención francesa sirvió como cuartel. Por su importancia estratégica fue bombardeado en los años revolucionarios y la guerra cristera condujo a su abandono definitivo en 1929” (PACHECO, 2008, p. 41). Segundo Bruley (2009), "é difícil imaginar, hoje, o quanto o México fascinava a Europa em meados do século XIX. Naqueles anos de otimismo e audácia inusitados, os intelectuais já estudavam os maias e os astecas, sua escrita misteriosa e seus monumentos enigmáticos [...] Os franceses passaram a imaginar um tipo de efeito dominó: depois do México, haveria um modelo a ser seguido por quase todas as ex-colônias tornadas repúblicas nas Américas". 383 subconscientes – […] de chingarte a los gringos (PACHECO, 1997, p. 95) Ricardo questiona a ingenuidade de Andrés escrever um conto com desejos de afastar o turismo do país e de atacar ferozmente aos gringos numa revista mantida com o capital norte-americano. Imbuídos por seus ideais compatriotas, não é aleatória a acusação de Mr. Hardwick ao conto “[...] la trama le pareció burda y tercermundista, de un antiyanquismo barato” (PACHECO, 1997, p. 95). Após esta crítica, Quintana rompe o silêncio e simula ter aceitado a opinião de Ricardo sobre a agressão disfarçada aos Estados Unidos em seu conto: “Quizás tengas razón. A lo mejor yo solo me puse la trampa” (PACHECO, 1997, p. 96). Ricardo dá algum dinheiro a Andrés pelo trabalho realizado e solicita que o mesmo apresente outra idéia, mesmo que não seja para o primeiro número. Na verdade, pede-lhe para que reveja seus posicionamentos. Mais críticas ao país surgem nas palavras de Ricardo, ao perceber o receio de Quintana em receber a quantia: Esta revista no trabaja a la mexicana: lo que se encarga se paga. Aquí tienes: son doscientos dólares nada más, pero algo es algo. Ricardo tomó de su cartera diez billetes de veinte dólares […] No te sientas mal aceptándolos. Es la costumbre en Estados Unidos […] fírmame este recibo y déjame unos días tu original para mostrárselo al administrador y justificar el pago. Después te lo mando con un office boy, porque el correo en este país… […] Oye, el pago no te compromete a nada: puedes meterte tu historia en cualquier revista local. (PACHECO, 1997, p. 96) As palavras de Ricardo denotam o desprezo pelo conto de Quintana, o mesmo não vale mais que duzentos dólares, além de dispensar reter uma cópia do texto. O personagem faz uma crítica ao sentimento paternalista das revistas mexicanas daquele tempo interessadas, sobretudo, na divulgação e no reconhecimento de novos talentos locais. Andrés sai daquela sala rumo ao metrô querendo esquecer toda aquela agonia e conversa. O narrador descreve sua saída do prédio e do caminho até a estação num tom um pouco sombrio: 384 Andrés regresó a la noche de México. Fue hasta la estación Juárez y bajó a los andenes solitarios […] Hacía calor en el túnel. De pronto lo bañó el aire desplazado por el convoy que se detuvo sin ruido. Subió, hizo otra vez el cambio en Balderas […] sólo había tres pasajeros adormilados. (PACHECO, 1997, p. 97) Andrés retira da pasta a última cópia de seu conto e decide rasgálo e descartá-lo. Retira do bolso os dólares, os contempla por alguns minutos, mas pensa na tamanha humilhação a que fora submetido e em como contaria tudo à Hilda. Andrés via sua imagem refletida no carro do metrô devido ao jogo de luzes e reflete: Cara de imbécil. / Si en la calle me topara conmigo mismo sentiría un infinito desprecio. / Cómo pude exponerme a una humillación de esta naturaleza […] Todo es siniestro. / Por qué no chocará el metro. / Quisiera morirme. (PACHECO, 1997, p. 97) Os três homens presentes no vagão o observavam, talvez Andrés estivesse falando em voz alta todos seus pensamentos. Nesse momento, a história “real” de Andrés parece cruzar-se a do personagem Keller de seu conto. Acreditamos que Quintana tenha percebido algo, porque “desvió la mirada y para ocuparse en algo descorrió el cierre del portafolios y cambió de lugar los dólares” (PACHECO, 1997, p. 98). Desceu na estação de Insurgentes com seus portfólios, escutou pelo altofalante o anúncio da última viagem da noite. Nisso, avistou uma inscrição num cartaz com a seguinte mensagem “Asesinos, no olvidamos Tlatelolco y San Cosme”. Andrés identifica e corrige mentalmente o erro na frase, seu emprego não é aleatório. Possivelmente, critica o mandato de Echeverría Álvarez e sua ligação com os Estados Unidos.299 Não se dá conta da mensagem política presente no escrito, na demanda contra a violência dos mexicanos contra mexicanos. 299 O massacre de Tlatelolco ocorreu, no dia 02 de outubro de 1968, na Plaza de las Tres Culturas, em Tlatelolco, na Cidade do México, dez dias antes do início das Olimpíadas, naquele ano, celebradas no México. O genocídio partiu de meses de instabilidade política na capital mexicana, eco do local das manifestações e de rebeliões estudantis. Com a atenção do mundo focada no México por conta dos jogos, os estudantes exploram essa oportunidade para protestar. O presidente Gustavo Díaz Ordaz Bolaños ordena que o exército ocupe o campus da Universidad Nacional Autónoma de México e controle as manifestações ocorridas na Plaza. Especula-se a participação dos Estados Unidos nessa matança, porém o certo é que, por conta da segurança dos jogos, forneceram ao México equipamentos de comunicação, armas, munição, material de treino para controle de atentados e outros. 385 O cenário parece muito ao ambientado pelo próprio Andrés em seu conto. Seu personagem embarca no último vagão do metrô, numa sextafeira, 13 de agosto, à noite, na estação de Insurgentes, rumo ao desconhecido, à morte. Enquanto caminhava na estação, Andrés acompanhou o trem que ganhava velocidade no sentido da estação Zaragoza, e conseguiu observar um homem de aspecto norte-americano e camisa verde no último vagão. Nesse momento, podemos afirmar que há o enlace entre as duas narrativas (a primeira e a segunda, de acordo com nossa divisão) até aquele momento separadas, inclusive, com realidades distintas, pois uma seria “real” (a vida de Andrés Quintana) e a outra “ficcional” (um conto criado por Quintana). Ambas conduzem o leitor à terceira narrativa. O homem do último vagão avistado por Quintana seria Keller. O narrador da primeira narrativa narra o momento exato do cruzamento de ambos: [...] y por la noche del viernes señalado, camisa verde, Rolleiflex, descenderá a la estación Insurgentes y cuando los magnavoces anuncien que el tren subterráneo se halla a punto de iniciar su recorrido final, usted subirá al último vagón, en él sólo hallará a unos cuantos trabajadores que vuelven a su casa en Ciudad Nezahualcóyotl, al arrancar el convoy usted verá en el andén opuesto a un hombre de baja estatura que lleva un portafolios bajo el brazo y grita algo que usted no alcanzará a escuchar (PACHECO, 1997, p. 72) Andrés, na plataforma do metrô e portando seus portfólios, tentou gritar, porém não conseguiu ser ouvido. Keller encontra-se em outro nível do “real” e não escuta o aviso de Andrés. O que Andrés teria a dizer aquele homem? Será que percebeu a coincidência dos “fatos reais” com a história escrita por ele na noite anterior? O homem do último trem seria Keller? Ou qualquer outro homem? As ações e a descrição elaboradas pelo narrador da primeira história assemelham-se à “vida real” de Andrés. A segunda narrativa termina com a seguinte imagem: El capitán Keller ya no alcanzó a escuchar el grito que se perdió en la boca del túnel. Andrés Quintana se apresuró a subir las escaleras en busca de aire libre. Al llegar a la superficie, con su mano hábil empujó la puerta giratoria. No pudo ni siquiera abrir la boca cuando lo capturaron los tres hombres que estaban al acecho. (PACHECO, 1997, p. 98) 386 Algumas pistas permitem traçar leituras possíveis para o final de Andrés, restando ao leitor chegar a uma conclusão possível. Na passagem acima, Andrés parece sentir a mesma falta de ar do personagem de seu conto. No conto de Quintana, o personagem Keller buscou, em vários momentos, encontrar uma saída, uma porta ou uma passagem entre as galerias do túnel que o levassem à saída, Andrés consegue, mas é capturado na saída do metrô. Ambos são acometidos pelo mesmo fim, a morte, consequente com o momento histórico em que se encontram. Quem teria capturado a Andrés? Seriam os mesmos homens de camisa verde que o observavam no vagão? Seriam norteamericanos? Ao se despedir de Ricardo, Andrés convida-o para partirem juntos, porém esse não aceita porque ainda precisava dar alguns telefonemas. Andrés suspeita desta atitude por conta do horário, afinal eram umas onze da noite. Teria Ricardo contratado alguém para castigar Andrés devido à ideologia de seu conto? Seria Andrés uma ameaça ao avanço norte-americano? Ou ele também poderia ter sido capturado por criminosos mexicanos, habitantes da cidade caótica? Ou, ainda, poderia ter sido capturado pelos astecas da Guerra Florida? A terceira narrativa representa o anúncio publicado num jornal em que se recompensa “AL TAXISTA o a cualquier persona que informe sobre el paradero del señor Andrés Quintana” (PACHECO, 1997, p. 67). Ao especificar um grupo (o dos taxistas) dentro do demais, verificamos que há outra relação com o conto escrito por Quintana, pois, um táxi suspeito também conduziu Keller do Castillo de Chapultepec até seu hotel. Keller foi conduzido até a morte por meio das estações do metrô da cidade, já o táxi pode ser o meio de transportar Quintana até seu fim trágico. O conto de Pacheco mostra uma tentativa de regresso à cultura indígena através da primeira narrativa (o conto de Quintana). O “sustrato prehispánico enterrado pero vivo”, ao qual Arbeláez se refere de modo irônico como um tema “literário” totalmente explorado por Fuentes, sai da “ficção” e passa ao “real” e isso é mais um elemento que comprova o 387 cruzamento dos “reais ficcionais” da história de Andrés e Keller. A esperança de retorno ao passado indígena como forma de resolver o problema da identidade fragmentada dos mexicanos e a dependência cultural aos Estados Unidos se vê cancelada por duas ações da narrativa: a primeira quando o próprio Quintana descarta o original de seu conto e, a segunda, quando ele é capturado e desaparece na saída do metrô, independente de quem o captou. Pacheco ao empregar o cenário do metrô (a estação Insurgentes anuncia e cancela a proposta indígena), um dos símbolos de uma cidade/ sociedade moderna, parece, dotado de seu papel intelectual, anunciar a ruptura entre o México histórico e o contemporâneo. A nostalgia indígena é tida como uma realidade impossível diante dos símbolos e elementos da sociedade globalizada. O escritor se dá conta, talvez, de uma realidade óbvia: nada irá recuperar a noção de uma identidade nacional ou reafirmar os direitos indígenas, porque esses também já são herdeiros de um tempo de degradação, de marginalização e de caos. O papel do escritor mexicano está em insistir na formação da nacionalidade, criticá-la, revisá-la, melhorá-la e construí-la com os outros. A partir do monstruoso crescimento da cidade do México e da corrupção política evidente nos anos setenta, Pacheco transfere os conflitos sociais ao terreno da literatura. Retoma a história e problematiza fases obscuras para projetá-las desde seu olhar e sua verdade. Pacheco manifesta, em sua obra, a corrupção, a violência, a solidão, o vazio, entre outros males da sociedade, como temas que não encontram uma solução sem que haja o controle do caos provocado pelos modelos e discursos hegemônicos. 388 CONCLUSÃO A análise detalhada da obra de José Emilio Pacheco, por meio de uma fundamentação teórica pertinente para corroborar nossa leitura e hipótese, nos permite destacar e concluir pontos importantes para a compreensão do estilo literário desse escritor. Na primeira parte deste estudo, revelamos a figura de Pacheco como intelectual, humanista, eterno leitor e defensor da literatura como obra coletiva. Além disso, o escritor é um observador e crítico severo das questões políticas e sociais de seu país. Constatamos que para uma melhor compreensão da obra de Pacheco faz-se fundamental o conhecimento da notória contribuição das civilizações indígenas do México. Isso comprova que a história do passado contribui na leitura do momento presente, sendo o próprio texto literário o mediador e o responsável pelo enlace desses tempos. Ao tomar a história como plano de fundo de sua arte, Pacheco, em seu momento de inspiração e criação literária, cria um discurso ficcional a partir do seu olhar para a realidade, sabendo também que é tarefa do escritor criar novas realidades ilusórias. Pela leitura de sua obra, podemos compreendê-la como recriação e tentativa de resgate de inúmeras realidades. Independente de suas temáticas, expressa o desejo de Pacheco em deixar transparecer os problemas mais latentes que atingem o homem mexicano — desde o seu passado pré-hispânico até à contemporaneidade — e, principalmente, o entorno histórico que envolveu os momentos de formação de sua identidade cultural. No primeiro capítulo da pesquisa, a necessidade de compreender o fazer artístico de Pacheco exigiu nossa atenção para os dois gêneros em que o escritor mais publicou. A classificação da literatura em gêneros inicia-se com os estudos de Platão e de Aristóteles. Desde então, a teoria proposta pelos dois filósofos modela-se e complementa-se, no decorrer dos séculos, na tentativa de dar sentido à materialidade dos textos. Em contrapartida, outros teóricos se mostraram contrários à divisão dos textos em gêneros. No México, o uso da palavra como representação artística 389 fez-se presente desde os poemas e as narrativas orais dos astecas, que propagavam sua cultura, seus feitos históricos e suas mágoas; passou por escritores crioulos e mexicanos, que construíram, cada qual a sua maneira, uma literatura autêntica com fortes preocupações na vida cotidiana. Na visão de Pacheco, a arte de criação artística é um trabalho solitário, pois o escritor pode decidir os contornos de um texto a partir da necessidade temática e, ao mesmo tempo, coletivo, quando temos em mente que todo discurso traz implícito diversas vozes. Buscamos traçar a presença e o desenvolvimento do gênero conto no cenário hispano-americano para compreender o modo como Pacheco o idealiza. Afinal, a primeira experiência literária do autor se deu no campo da narrativa, no texto “Tríptico del gato”, cuja trama se divide em três relatos. Pacheco rompe com a linguagem tradicional e mostra, através da forma como escreve, o pensamento de um sujeito moderno. A realidade fragmentada da sociedade do século XXI reflete, numa narrativa de começo e final inesperados, o caos, a violência, o medo e a solidão de habitar a metrópole mexicana. Para alcançar essa essência de uma realidade esfacelada, o escritor dialoga sua prosa com sua linguagem poética e outras influências artísticas. A arte de escrever contos funcionou para Pacheco como um laboratório para experimentação de novas textualidades. Compreendemos que para o escritor, o trabalho de criação do conto trava uma batalha entre a realidade visível e a realidade imaginada. Através de imagens significativas, o autor transmite a alquimia que lhe é significante num espaço sintetizado, pois o conto, desde suas origens, se preocupou em ser breve. Diferente do romance, o conto limitou-se a recortar uma ampla imagem da realidade, semelhante ao papel de uma máquina fotográfica, ao captar uma imagem estática e reduzida de uma pessoa, lugar ou objeto, para plasmá-la numa linguagem que ultrapasse os limites constantes de uma folha de papel. 390 Os discursos introduzidos pela vanguarda mexicana, representada pelos movimentos poéticos Estridentista e Contemporáneos, souberam expor suas ideologias e defender a inovação estética da linguagem como símbolo de liberdade. É notório nos movimentos vanguardistas mexicanos, certas parcelas de influência da Generación del 27, da escritura proposta por Valéry e Breton e da literatura norte-americana. Portanto, sempre há um diálogo permanente entre a renovação e a tradição. Também não podemos esquecer a contribuição da geração Taller, no desenvolvimento do canto pessimista de Pacheco. A partir dessa voz, não há como negar a influência dos movimentos anteriores à sua poesia. Pacheco afirma, de modo semelhante à trajetória literária de Octavio Paz, que cabe ao escritor vivenciar todas as formas de manifestação da linguagem, extraindo as sementes inspiradoras para a constituição de sua arte. No caso da poética de Pacheco, sobressai a vertente da poesia de caráter social, devido também a seu interesse e experiência por temas jornalísticos. O texto, para Pacheco, é a única forma de comunicação capaz de revelar os sentimentos mais intrínsecos do ser, pois resulta, no ato de sua leitura, de um espaço de encontro de experiências. A vivência em sociedades multiculturais, marcadas pelo avanço da tecnologia, reflete, de modo direto, na configuração de novas formas literárias contemporâneas. O miniconto, a minificção e o poema em prosa não são gêneros tão recentes, porém adquirem novas roupagens na literatura pachequiana. Vimos que, constantemente, a linguagem necessita se remodelar para captar a cidade como um corpo vivo. A complexidade, a presença de diferentes culturas e o individualismo exacerbado resumem o factual cotidiano da urbe dos últimos anos, e o projeto literário alimentado por Pacheco ao assimilar um discurso bem próximo da realidade que o ampara. Ao propor, neste estudo, uma análise do espaço urbano mexicano na produção em verso e em prosa de Pacheco, não queremos afirmar a existência de uma hibridação genérica no modo como o autor projeta seus textos, no entanto, reconhecemos sua capacidade em diversificar 391 sua arte num trabalho coerente do ponto de vista temático. Além do mais, respondendo a uma pergunta proposta na introdução deste estudo, o autor mantém uma mesma leitura da urbe mexicana no decorrer de sua produção e nos distintos gêneros. Na obra de Pacheco, identificamos a presença de um tom ensaístico em suas entrelinhas, possivelmente, explicado pelo contato do escritor com o universo dos jornais e das revistas mexicanas, para os quais contribuiu como crítico literário. Não podemos esquecer que a escritura de Pacheco é a de um indivíduo mexicano, filho de um militar assassinado à queima roupa, que não aceitou ser corrompido pelo sistema político de sua época. Portanto, a voz do escritor luta pela sobrevivência num país desigual e injusto. Acreditamos que isso tenha implicado o seu modo de pensar e fazer literatura, ou seja, na forma de narrar, de selecionar as imagens poéticas ou na escolha da linguagem ideal de seus escritos. No segundo capítulo deste estudo, apresentamos nossa definição para o conceito de cidade, corroborada pelas leituras de Néstor García Canclini e Renato Cordeiro Gomes. Traçamos um percurso pela capital mexicana desde sua fundação pelos astecas até sua disposição como cidade caótica. Também, expressamos nossa defesa pelo conceito de “cidade vídeo-clip” atribuído por Néstor García Canclini para a Cidade do México, porque consideramos que ela apresenta, na atualidade, vestígios das cidades que a antecederam. Os espanhóis, ao chegarem em terras americanas, trazem consigo ideais voltados para as intenções da Coroa espanhola, fato que confirma o olhar do “não-lugar” desenvolvido por eles ao observarem as cidades mexicanas desde sua formação. O não estabelecimento de uma identidade com o espaço social corrobora as ações destrutivas que fizeram desaparecer, de modo parcial, grande parte das ruínas de Tenochititlan. Observamos, então, que o espaço citadino sempre foi alvo de espectadores, podendo esses sujeitos desenvolverem diferentes olhares, com diferentes objetivos. 392 A cidade e seus constituintes são grande força motriz no estabelecimento das relações entre os sujeitos que se reconhecem nesses espaços. Ao mesmo tempo, leva-os a uma recordação de toda a história dos seus antepassados, e essa estará sendo reconstruída dia a dia, a partir do momento em que o indivíduo visualiza o ambiente ao seu redor, e esse ambiente, de certa maneira, também o observa em suas ações e seus posicionamentos. O conceito de caos urbano sintetiza, de acordo com nossa interpretação, as angústias e os problemas enfrentados pelos sujeitos da cidade. A violência, o medo, a solidão são sinais reveladores da urbe mergulhada no caos, que denunciados, através da voz singular de Pacheco, representam o desejo de inúmeros anônimos da sociedade. O retrato da Cidade do México, traçado por Pacheco como um lugar sem salvação, representa uma ressemantização do mito bíblico de Babel, portanto a capital mexicana também pode ser lida como babélica. A falta de planejamento urbano, aliada ao número elevado de seus habitantes, constrói a imagem dessa cidade estilhaçada, sem solução aparente para ordenar o caos. A variedade de costumes culturais presentes no país, ora influência européia, ora norte-americana, também intensifica a releitura do mito. A ruína, entendida como destruição, é a única maldição da Babel contemporânea. No mito bíblico, a destruição simbólica da torre representou a dispersão dos homens. Já a Babel mexicana, idealizada e expressada pelo pessimismo do escritor, caminha para o apocalipse, ou seja, para a impossibilidade de se tornar feliz. Por meio do contexto apresentado acima e do olhar pessimista de Pacheco para a capital mexicana, desenvolvemos, no terceiro capítulo, a análise do corpus da pesquisa, adotando uma divisão entre a poesia e a prosa, meramente didática. Como esboçamos, no início desta conclusão, percebemos na obra de Pacheco um projeto literário de denúncia da realidade como uma verdade linear. Em ambos os gêneros, a imagem da cidade não é um mero pano de fundo de sua obra, porém um personagem complexo. Com uma única diferença, comparando seus textos em prosa e em verso, o autor, em seu discurso narrativo, intensifica 393 cenas e exemplos denunciadores da entrada do capital financeiro e cultural norte-americano, bem como referências históricas mexicanas mais concretas. O autor não tenta ordenar o caos com seu discurso, mesmo porque ele não acredita em salvação, contudo tenta alertar ao leitor da existência de uma vida cada vez mais fragmentada. Os problemas e as angústias que rondam a vida dos habitantes da urbe povoam as imagens dos sujeitos poéticos de seus textos, a vida de seus personagens aparecem nos flashes da memória de seus narradores. Em suma, a cidade é um desafio para a literatura, porque suas inúmeras possibilidades de representação extrapolam o texto literário. A poesia contemporânea de Pacheco só pode ser compreendida se mantivermos a memória das culturas pré-colombianas. A contribuição das culturas anteriores à chegada dos espanhóis, — principalmente, a dos astecas — em solo mexicano, não se constitui somente pelo legado artístico e arquitetônico, mas sim por permitir que os sujeitos da contemporaneidade tenham dentro de si o espírito aventureiro de tais povos. Podemos confirmar que a carga fatalista, presente no imaginário indígena, permanece até os dias atuais nas ações do homem moderno mexicano, obrigado a estabelecer contato com novas culturas e suas ideologias, fato derradeiro da globalização dos tempos. Desde os primeiros discursos dos conquistadores, com o objetivo de retratar o continente, nunca o homem americano foi centro de discussões e atenções. Sempre esteve à margem da sociedade européia, responsável por contar a verdade dos fatos, já que segundo critica Walter Benjamin, cabe aos vencedores expor os fatos aos oprimidos. Principalmente, no México, tal colocação ajuda a entender a diminuição do ideal coletivo nos espaços urbanos, devido ao fato de seu passado possuir não só uma marca sangrenta, mas também outros acontecimentos trágicos em sua história. A poesia de Pacheco evidenciou que a vida contemporânea necessita de um sujeito mais ativo em suas relações, e que o contato com 394 o outro se faz muito relevante na luta contra o individualismo. Pensar o sujeito na sociedade global é tentar levá-lo a compreender novos tempos, novas buscas e novos discursos. Com isso, o diálogo passa a ser central na vida contemporânea, já que tudo pode ser construído e confirmado pelo poder da palavra. Percebemos, por meio da voz do sujeito de seus poemas, que Pacheco se insere no grupo dos poetas de denúncia, pelo emprego exemplar, em sua produção, de uma leitura crítica dos vários momentos vividos pelo México, e porque se mostra preocupado com o caos urbano, originado pela aglomeração de pessoas que vivem nesse mesmo espaço. Pacheco permitiu que pensássemos, junto ao sujeito poético de seus textos, soluções e possíveis caminhos para seu país, onde seus governantes oferecem quase sempre falsas esperanças. Às vezes, essas falsas esperanças não nos permitem reconhecer certos momentos de felicidade na poética de Pacheco, porém baseado nessas falhas, o poeta busca forças para cantar em prol de seu país, na construção de novos tempos. Para Pacheco, o tempo é como um mero objeto de reflexão da própria história de seu povo, e de meta para novas descobertas. Pacheco afirma que cabe à poesia o papel de revelar nossos desejos mais profundos, deixando transparecer o que não conseguimos dizer na vida real. Desse modo, a poesia é capaz de desvendar o que em um primeiro momento não seria visto por um simples olhar, sem o mesmo ser crítico e perspicaz. Apesar de a crítica especializada considerar que a poesia de Pacheco divide-se em fases, defendemos o ponto de vista de que, em se tratando de um poeta que sempre buscou uma escritura polifônica entre seus textos, não podemos limitar seu canto a três momentos. Pacheco defende e pratica a idéia da reescritura de seus próprios escritos, dificultando com isso, uma mera divisão de estilo de sua produção. Na produção poética de Pacheco, as transformações do corpo físico e social da cidade assumem um importante valor simbólico, pois são centro das atenções do olhar do poeta, sendo através desse que o escritor poetiza as causas mais latentes da vida mexicana. A contribuição 395 de Charles Baudelaire sobre o olhar para o espaço urbano permitiu tal leitura. A produção poética do escritor mexicano parte do seu olhar crítico e nostálgico, desde a retomada da história de seus antepassados até a fragmentação imposta pela modernidade, como preferimos caracterizar essa época. Defendemos a idéia de que a atmosfera do caos, das individualizações e das incertezas é uma constante na vida do sujeito moderno. Nesta época dos “valores líquidos”, segundo Bauman, resta aos escritores e artistas assimilarem o vazio dos tempos e denunciarem as injustiças humanas e sociais. A imagem do caos, na poética de Pacheco, ao mesmo tempo que revela a incerteza do homem mexicano perante sua existência, repleta de tristezas, mágoas e recordações, permite ao homem repensar as questões mais palpitantes que atingem o imaginário de sua cidade/país no cenário global. A construção de uma autêntica identidade no cenário da globalização, mesmo que coletiva, necessita de um maior encontro dos discursos que se lançam no corpo da cidade, porque é a partir da linguagem que o indivíduo constrói o seu caminho na história, e troca experiências com os demais sujeitos. Pensar a identidade na época global é pensá-la na sua construção e discussão com os demais sujeitos urbanos. Em relação à prosa de Pacheco, apresentada e analisada no terceiro capítulo, destacamos, primeiro, a variedade narrativa adotada pelo escritor para dar forma ao múltiplo retrato da Cidade do México. Sua narrativa pode ser classificada como contemporânea. Por meio do uso de uma linguagem fragmentada, da intertextualidade e da aproximação com o movimento estético do Pop Art, o autor mostrou uma crítica ao crescimento desmedido da capital mexicana, o processo de modernização em que o elemento local se desvaloriza, a invasão dos meios de comunicação, o consumismo e a invasão norte-americana. Pacheco, em sua forma de narrar, remete à tradição com uma nova proposta de escritura e inova na adoção de protagonistas crianças ou 396 adolescentes, mas que demonstram, em sua grande maioria, atitudes e uma mentalidade de sujeitos adultos. Por meio das vozes e das atitudes desses personagens, conhecemos os problemas da desordem social que contagia as cidades mexicanas. A violência e o medo, na narrativa, não são gerados pelo narcotráfico como ocorre nas periferias das grandes cidades da América Latina, todavia pela própria batalha das relações humanas. A desilusão e outros mal-estares transformam-se em rotinas diárias na vida do homem moderno. Pacheco os retrata de diferentes modos, às vezes, cria situações que se aproximam ao fantástico como nos relatos “El viento distante” e “La fiesta brava”, trazendo à tona os limites entre o real e o imaginário. Em Las Batallas en el desierto, Pacheco não poupa o uso de referências históricas em seu texto para corroborar seu projeto literário e a tessitura do retrato sociológico da metrópole mexicana. Através da história e da realidade visível, o escritor mostra a aparição do neoliberalismo no cenário político e a evolução das comunicações nos anos oitenta do México. Tal política neoliberal encontra mais facilidades de propagação numa sociedade globalizada e homogênea, por isso, o interesse em anunciar a transculturação proposta pelo consumismo norteamericano. A mudança de costumes e a rápida ascensão social da família de Carlitos, a figura da mãe de Jim como símbolo da mulher moderna e objeto sexual e a corrupção política são críticas diretas do autor ao avanço norte-americano sobre a cultura mexicana. A atração de Carlitos pela mãe de Jim é um pretexto, empregado pelo autor, para denunciar o consumismo e o corpo como objeto de desejo. Nos contos “La reina” e “La zarpa”, o escritor também se refere (in)diretamente ao tema corpo, mas esse com um sentido de representar poder sobre outro ou personificar um conflito interno do sujeito na imensidão e na agitação da urbe. Na minificção “Shelter”, o tema do medo aparece como um dos efeitos provocados pela violência e o mal-estar do caos urbano. A possibilidade de um acidente nuclear fez com que o personagem se 397 distanciasse da vida real e criasse uma nova realidade, pelo menos em seu inconsciente. O medo, neste relato, é fruto do isolamento imposto pelo novo modo de habitar a cidade, no qual o indivíduo não sabe mais em que e quem acreditar. Apesar da correria da vida moderna não possibilitar mais um olhar atento por parte do sujeito, o mesmo não ocorre com o projeto literário de Pacheco. O autor, por meio de um olhar investigativo, reflexivo, contempla a urbe através de uma literatura capaz de reunir os diferentes tipos humanos que fazem parte da cidade, traçando para o leitor um grande álbum da condição humana, uma das principais responsáveis por intensificar o caos urbano e seus desdobramentos. Para concluir, nenhuma imagem ou palavra é aleatória na obra de Pacheco. O autor percorreu todos os gêneros literários, logrando a tessitura de uma arte literária que dialoga com o próprio projeto literário do escritor e com os demais intelectuais do contexto hispano-americano. Sua obra mais parece um canto único de defesa pela construção de um pensamento sobre a nova configuração da mexicanidade, já realizada por Octavio Paz. O leitor de Pacheco parece estar diante de uma literatura linear, mas se engana ao descobrir inúmeros intertextos e referências históricas em sua obra, inclusive, em seus ensaios, pouco estudados pela crítica, reveladores de um elaborado trabalho de linguagem. Esta pesquisa contribuiu, certamente, para aumentar a fortuna crítica existente sobre a obra do escritor mexicano, principalmente, no Brasil, em se tratando de um autor que começa a ocupar a atenção dos pesquisadores da área. Além disso, são poucos os estudos críticos sobre o tema do caos e os quais denominamos de seus desdobramentos. Isso nos instigou a propor esta pesquisa, tendo em vista que o discurso de Pacheco é considerado como canônico. Assistimos, normalmente, o tema do caos, do medo e da violência como um fenômeno encontrado nas literaturas marginais, mais recentes, a partir dos novos discursos da (pós) modernidade, que tentam dar conta do cenário político-econômico atual de algumas cidades latino-americanas, impregnado de horror e violência urbana. Obras essas retratadas por autores, considerados como não 398 canônicos, e que vão sendo incorporadas na tentativa de abarcar novos sentidos a complexidade cultural da América Latina. Tem-se na obra de José Emilio Pacheco o desejo de vivenciar novos tempos e criar diferentes realidades, a partir das experiências diárias mais comuns ao indivíduo. Pacheco mostra-nos que sua literatura é o resultado de uma prática diária de vida, ou seja, de vivenciar e de experimentar cada vez mais o momento, o instante. Não há como programar um discurso, já que, segundo o escritor, o mesmo forma-se a partir da experimentação de uma realidade histórica do homem. Cabe destacar que, finalmente, numa literatura tão diversificada, não se esgota o universo de leituras possíveis incitadas por sua obra, sendo necessária uma eterna busca por novas linguagens e novos sentidos em suas entrelinhas. 399 BIBLIOGRAFIA Obras do autor Poesia PACHECO, José Emilio. Los trabajos del mar. México: Ediciones Era, 1984. ------, Antología: Fin de siglo y otros poemas. Cuba; La Habana: Casa de las Américas, 1987. ------. La ciudad de la memoria. México: Ediciones Era, 1989. ------. El silencio de la luna. México: Ediciones Era, 1994. ------. El reposo del fuego. 2ed. México: Ediciones Era, 1999. ------. La arena errante. México: Ediciones Era, 2000a. ------, Como la lluvia. México. Ediciones Era, 2009a. ------, La edad de las tinieblas. Ediciones Era, 2009b. Narrativa PACHECO, José Emilio. Las Batallas en el desierto. 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