Brasil e os organismos internacionais face aos desafios da inclusão social O Brasil e a OIT CELSO ntes de tecer alguns comentários sobre o papel da Organização Internacional do Trabalho e refletir sobre a participação brasileira, considero oportuno fornecer ao leitor breve explicação acerca do histórico e da estrutura da Organização. A OIT foi instituída após a Primeira Guerra Mundial, em 1919, e é, hoje, o único resultado concreto que perdura do Tratado de Versalhes (que originou a já extinta Liga das Nações). Em 1946, com a assinatura da Declaração de Filadélfia, a OIT foi convertida em agência especializada da então nascente Organização das Nações Unidas. Cabe à OIT formular e supervisionar a aplicação das normas internacionais do trabalho, AMORIM elaboradas na forma de Convenções e Recomendações, que estabelecem padrões mínimos, universalmente aceitos, em matéria de direitos trabalhistas. A OIT também presta assistência técnica aos Estados-membros nos campos da formação e treinamento profissional, política de emprego, administração do trabalho, legislação do trabalho e relações laborais, condições de trabalho, desenvolvimento gerencial, cooperativas, previdência social, estatísticas trabalhistas e segurança e saúde no trabalho. Fomenta o desenvolvimento de organizações independentes de trabalhadores e empregadores, os chamados “parceiros sociais” no jargão da Organização, facilitando-lhes treinamento e assessoramento técnicos. Dentro do sistema da ONU, a OIT é o único exemplo de estrutura tripartite, onde trabalhadores e empregadores participam em igualdade com os governos, inclusive no que toca às votações, nas quais os parceiros sociais em conjunto têm o mesmo peso dos governos. A Organização Internacional do Trabalho é composta dos seguintes órgãos: a) Conferência Internacional do Trabalho, que se reúne anualmente em junho em Genebra e constitui a instância máxima da Organização, sendo responsável pela adoção das Convenções e Recomendações. Participam da Conferência ìO Conselho foi delegações tripartites de capaz de todos os estados-membros; encontrar b) Conselho de soluÁıes criativas Administração, órgão em resposta a diretivo da OIT, que se problemas reúne três vezes ao ano e é difÌceisî formado por 28 representantes governamentais; 14 representantes dos trabalhadores e 14 representantes dos empregadores. Daqueles 28, dez têm assento permanente, por representarem países de maior importância industrial. O Brasil está entre estes dez países, sendo os demais Alemanha, China, Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, Índia, Itália, Japão e Rússia. Os 18 restantes são eleitos por um mandato não renovável de três anos; c) Bureau Internacional do Trabalho, com sede em Genebra, chefiado por um Diretor-Geral e monitorado pelo Conselho de Administração. Tratase do órgão executivo da OIT, encarregado de implementar os programas e zelar pelo funcionamento da Organização. Em 1998, a Conferência Internacional do Trabalho aprovou a “Declaração da OIT relativa a princípios e direitos fundamentais no trabalho e seu seguimento”. Nesse documento, os Estadosmembros assumem um compromisso com o respeito aos quatro direitos fundamentais do trabalhador estabelecidos pela Cúpula do Desenvolvimento Social de Copenhague em 1995: proibição do trabalho forçado, erradicação do trabalho infantil, livre-associação sindical e não-discriminação no emprego. Esses quatro direitos ou princípios estão ancorados em oito Convenções da OIT: Convenção nº 29, contra o trabalho forçado, de 1930; Convenção nº 87, sobre liberdade sindical e proteção ao direito de sindicalização, de 1948; Convenção nº 98, sobre direito à sindicalização e negociação coletiva, de 1949; Convenção nº 100, sobre igualdade de remuneração, de 1951; Convenção nº 105, sobre abolição do trabalho forçado, de 1957; Convenção nº 111, sobre nãodiscriminação no emprego, de 1958; Convenção nº 138, sobre idade mínima para o trabalho, de 1973; e Convenção nº 182, sobre as piores formas de trabalho infantil, de 1999. A Declaração estabelece ainda um mecanismo de seguimento de caráter indutivo e promocional, baseado na elaboração de relatórios anuais acerca dos progressos alcançados nas quatro áreas, não somente do ponto de vista legislativo, mas também em relação à fruição concreta das liberdades e direitos assegurados e à efetiva observação das normas. O mecanismo prevê a divulgação perante a Conferência de um relatório preparado pelo Diretor-Geral e dedicado, cada ano, a um dos quatro direitos fundamentais. Procede-se assim a um levantamento global dos progressos alcançados e ainda por alcançar, o que permite avaliar a eficácia dos programas em curso e estabelecer prioridades e planos de ação para o futuro. O impulso para a negociação e aprovação da Declaração nasceu da preocupação da comunidade internacional com possíveis conseqüências sociais indesejáveis do processo de globalização da economia e liberalização do comércio internacional, bem como da necessidade de assegurar padrões trabalhistas universalmente aceitáveis. Procurou-se igualmente afirmar a competência precípua da OIT para estabelecer e supervisionar as normas laborais diante de crescentes pressões de certos segmentos sociais, apoiadas por alguns governos, que pretenderiam inserir o tema dos padrões trabalhistas fundamentais também na Organização Mundial do Comércio. Países em desenvolvimento, juntamente com alguns países industrializados, têm-se oposto ao conceito de “cláusula social”, o qual encobriria uma tentativa de legitimar práticas comerciais protecionistas. A adoção da Declaração constituiu, assim, uma resposta da OIT às expectativas da comunidade internacional. O seguimento da Declaração ampliou substancialmente o interesse pela Organização e sua atividade normativa. O êxito que a OIT vem obtendo, tanto no que tange à aceitação das Convenções fundamentais – cujo número de ratificações dobrou nos últimos anos – quanto em matéria de supervisão, com a adoção de mecanismos de diligência e cooperação no terreno, tem contribuído para o aumento da credibilidade da Organização. Em esforço complementar, a OIT elaborou uma “agenda para o trabalho decente”, que fornece um paradigma teórico destinado a corroborar o exercício de convencimento da Organização junto a governos e outras instituições internacionais. Neste contexto, insere-se a cooperação com as instituições de Bretton Woods com vistas a incorporar medidas de alívio aos efeitos sociais negativos dos programas de ajuste estrutural por elas preconizados. A “agenda para o trabalho decente” fundamenta-se em quatro objetivos estratégicos: a) promover e realizar os quatro princípios fundamentais no trabalho mencionados acima; b) ampliar as oportunidades de emprego para homens e mulheres em condições que respeitem os direitos fundamentais no trabalho; c) aumentar a proteção e a seguridade social para todos; e d) fortalecer o tripartismo e o diálogo social. Essas e outras ações que vêm sendo adotadas pela OIT, hoje pela primeira vez sob a liderança de um Diretor-Geral proveniente de país em desenvolvimento (Embaixador Juan Somavia Chile), coadunam-se com as preocupações e prioridades Governo brasileiro, o que amplia significativamente as áreas de intercâmbio e atuação conjunta. Somos o 11o país com maior número de Convenções ratificadas na OIT, num total de 87 (a Organização possui hoje 183 Convenções, algumas já ultrapassadas). Aderimos a sete das oito Convenções fundamentais. Apenas a Convenção n. 87, por exigir alteração constitucional, não foi ainda ratificada pelo Governo brasileiro. O Brasil já ocupou a presidência do Conselho de Administração da OIT em três oportunidades, sendo a última recentemente, entre junho de 2000 e junho de 2001. Nossa ativa participação na Organização tem buscado sobretudo reafirmar o papel central da OIT nos temas relativos à proteção dos direitos trabalhistas. Durante a última presidência brasileira, que tive o privilégio de exercer, ocorreram acontecimentos importantes e inovadores na vida da Organização. Foi iniciado um processo de revisão de normas, que deverá, ao cabo de alguns anos, modificar substancialmente a elaboração e a supervisão dos instrumentos normativos (Convenções e Recomendações), que passarão a ser discutidos de maneira integrada, segundo temas ou “famílias”. Os primeiros exemplos serão as áreas de segurança e saúde no trabalho e o das normas sobre trabalho marítimo, para as ìO Brasil tem quais se tenciona elaborar apoiado firmemente “códigos” que compilem os os esforÁos vários instrumentos da OIT internacionais de na matéria. Trouxemos promoÁ„o e igualmente o tema HIV/ realizaÁ„o de padrıes AIDS para a Organização, trabalhistas justos e com a elaboração de um adequadosî “Código de recomendações práticas sobre HIV/AIDS no mundo do trabalho”, que visa a prevenir a transmissão da doença no local de trabalho. O código foi apresentado à Sessão Especial das Nações Unidas sobre HIV/AIDS, em junho de 2001. O Conselho foi capaz de encontrar soluções criativas em resposta a problemas difíceis, como a nomeação de um Representante Especial do DiretorGeral para Cooperação com a Colômbia. A constituição da figura do representante especial, utilizada pela primeira vez na OIT, em substituição a tradicional Comissão de Inquérito, derivou do reconhecimento de que as violações das liberdades sindicais na Colômbia, notadamente pelo assassinato de sindicalistas, extrapolam o contexto meramente trabalhista e se inserem no quadro de violência generalizada por que atravessa o país em decorrência do prolongado conflito interno. A nomeação de um representante especial representou assim uma resposta positiva da comunidade internacional que viabilizou o reforço da cooperação OIT-Colômbia, vindo ao encontro dos esforços de pacificação promovidos pelo governo do Presidente Pastrana. Outra questão bastante complexa foi a imposição pela 88a Conferência Internacional do Trabalho (junho de 2000) das medidas previstas no art. 33 da Constituição da OIT contra Mianmar. O art. 33 permite que a Conferência adote, após recomendação do Conselho, “as ações que considere necessárias para garantir o cumprimento de recomendações emanadas de uma Comissão de Inquérito”. As medidas adotadas consistiram em recomendar aos demais estados-membros da OIT e a outras organizações que revisassem suas relações com Mianmar com vistas a evitar a que as mesmas pudessem contribuir, direta ou indiretamente, para a continuação da prática de trabalho forçado naquele país. Adicionalmente, recomendou-se a incorporação do item na agenda do ECOSOC (órgão que supervisiona todas as agências especializadas da ONU) com vistas a um possível envio da questão, na falta de progressos concretos, à Assembléia Geral das Nações Unidas. A aplicação, também inédita, deste artigo buscou, no caso concreto, fazer cessar a prática de trabalho forçado vigente naquele país. Estava em jogo a credibilidade da própria OIT e o poder de fazer cumprir suas recomendações. O resultado dessa ação até o momento pode ser considerado positivo, pois levou o Governo mianma a implementar uma série de medidas legislativas e administrativas destinadas a coibir a prática de trabalho forçado, assim como a aceitar receber uma missão de verificação de alto-nível da OIT para avaliar a efetividade prática das medidas. Caberia mencionar ainda o papel do Grupo de Trabalho (GT) sobre Dimensões Sociais da Globalização. Esse grupo, criado em 1995, constitui foro para discussão das repercussões sociais de fenômenos surgidos com a crescente integração dos mercados, tais como a liberalização do comércio internacional e os movimentos de capitais, bem como a necessidade de formular uma estratégia integrada, dentro do sistema das Nações Unidas, para ampliar as oportunidades e minimizar os efeitos excludentes desses fenômenos. Na última reunião do Conselho (junho 2001) foi aprovada a idéia de ampliar as funções do Grupo de Trabalho, por meio de ações como: reforço da sua capacidade técnica para a preparação de estudos específicos, o que seria alcançado mediante a cooperação com outras organizações e a realização de seminários; criação de um segmento de alto-nível, que estimularia a presença de personalidades eminentes, como diretores de outras agências e organizações; elaboração de um estudo global com vistas a fornecer um marco integrado de análise sobre as dimensões sociais da globalização. Em relação a este último ponto, o Conselho encorajou o Diretor-Geral a iniciar consultas visando à constituição de uma comissão de personalidades eminentes para dirigir a elaboração do estudo. O Brasil tem apoiado firmemente os esforços internacionais de promoção e realização de padrões trabalhistas justos e adequados, objetivo que está inserido em nossa política social e de emprego. Consideramos que situações de desrespeito aos direitos fundamentais do trabalhador, como o trabalho forçado ou infantil, devem ser tratadas de maneira estrita e condenadas com vigor. Por outro lado, estamos conscientes do risco de que o tema dos padrões trabalhistas, se tratado de maneira incorreta e em foro inadequado, possa ser usado para fins protecionistas, negando acesso a mercados a produtos brasileiros e de outros países em desenvolvimento. Sanções comerciais certamente não constituem a melhor forma de tratar o problema. Além do inevitável grau de arbitrariedade, tais medidas acabam por agravar, pela perda de receitas, problemas como desemprego e exclusão social. Como visto acima, exemplos recentes têm reforçado a tese de que a via da cooperação e do diálogo, assim como outras medidas previstas no marco institucional da OIT, não devem ser subestimadas na resolução de questões de desrespeito aos padrões laborais. Em não poucas ocasiões, países têm-se mostrado dispostos a percorrer um longo caminho, e inclusive a aceitar mecanismos de supervisão e monitoramento da Organização para evitar o peso de uma condenação moral ou política, ou do isolamento internacional. Um conjunto abrangente de fatores deve ser levado em conta no equacionamento dessas questões. A melhora das condições de trabalho aparece freqüentemente associada ao desenvolvimento econômico e à promoção de valores democráticos. Dada sua singular estrutura tripartite, a OIT possui inequívoca vocação para o tratamento dos temas sociais, tendo sido capaz de forjar uma longa tradição de diálogo e concertação política. Tais atributos transformamna no foro por excelência para a discussão e promoção dos direitos trabalhistas. Ao Brasil interessa continuar prestigiando a afirmação e a ampliação desse espaço. Celso Amorim é embaixador do Brasil junto à ONU e demais organizações internacionais em Genebra e presidiu o Conselho de Administração da OIT de junho de 2000 a junho de 2001. Por uma comunidade fraterna: CPLP JOS… FL¡VIO SOMBRA SARAIVA inda que pareça ululante, a dimensão fraterna de uma comunidade de países que possuem em comum o lastro da língua portuguesa necessita ser sublinhada diante da ameaça de modelos culturais que buscam hegemonia global na esteira da mundialização. Ainda que desconhecida do grande público, existe uma nascente comunidade, juridicamente formulada, que visa a aproximar os sete países que, em três continentes, expressam a língua portuguesa como língua oficial. Ainda que desdenhada, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) poderá vir a se tornar uma frutífera experiência de concertação diplomática, cultural e social dos povos e nações que abraçam, por meio de uma forma cultural que lhes é própria — a língua portuguesa —, os novos tempos da globalização. O nascedouro Reunidos no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, no dia 17 de julho de 1996, os Chefes de Estado e de Governo de Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe decidiram dar institucionalidade à primeira organização internacional voltada para a construção da comunidade fraterna da língua portuguesa. Nascia a CPLP para valorizar a identidade lingüística, a cooperação entre os países e a dimensão da concertação diplomática e política dos sete. O Timor Leste viria se tornar, mais tarde, observador convidado e se prepara, nesse momento, para tornar-se membro pleno. A CPLP estará, assim, em quatro continentes. Houve várias motivações animadoras do nascimento da CPLP. Registre-se a dimensão histórica do longo prazo, lembrada por vários autores brasileiros, portugueses e africanos, que exploraram o passado comum. Para esses autores, a CPLP, em sua acepção mais profunda, remonta ao entrelaçamento do Atlântico Sul nos Tempos Modernos, às relações especiais do Brasil com a costa africana nos séculos “dimensão fraterna XVII e XVIII bem como à de uma criação, nos tempos de D. comunidade de João VI, de uma países que possuem em comunidade lusocomum o lastro da brasileira, vinculando língua portuguesa Portugal, suas possessões necessita ser sublinhada” ultramarinas e o Brasil em processo de independência. Lembremo-nos também do ideário políticoliterário que levaria Sílvio Romero, no início do século XX, a defender a idéia de uma federação luso-brasileira. Marcantes também foram as reflexões, ao longo do século passado, das idéias provocativas da sociologia de Gilberto Freyre (19001987). Autor de obras fundamentais para a compreensão das matrizes africana e portuguesa do Brasil, foi ele o primeiro a semear, em ambiente intelectual e diplomático mais amplo, a fecunda mensagem da criação de uma comunidade internacional no qual não apenas vigorasse relações desiguais e coloniais entre os falantes da língua portuguesa. Incompreendido no Brasil, em Portugal e na África, o autor teve sua obra monumental revisada no centenário de seu nascimento, no ano 2000. O debate serviu para passar em revista a contribuição do mais importante intelectual brasileiro celebrado no exterior. E também para rever certos equívocos produzidos em torno da sua fórmula de sucesso e impacto mundial — o luso-tropicalismo —, atribuída ao gênio inventivo do homem, mas que nasceu, na prática, nas terras portuguesas do Terceiro Império, onde viria se tornar propaganda política de regime autocrático e instrumento de política colonial ferrenha. Essa é a razão pela qual, ao se propor a nova Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, tenhamos que reconhecer que ela, embora tenha algo de freyreana, não pode ser apenas freyreana. A menção ao luso-tropicalismo, embora evoque caminhos oblíquos, não tem no Brasil a mesma acepção que se observa em Portugal e na África. Aqui, para o pai da idéia de uma comunidade afro-luso-brasileira, o luso-tropicalismo associa-se à mestiçagem, à gestão utópica da igualdade impossível, à vontade positiva de nos vermos como algo novo, distintos da dicotomia que nos reduzia ao Brasil dos brancos versus o Brasil dos negros. Em Portugal, ao contrário, o luso-tropicalismo reverberou como projeto e ação colonizadora. Assim, não é na pia de batismo brasileira que a CPLP suscita nostalgias e rancores. Em Portugal e nas suas antigas colônias africanas, em especial, causa espécie a evocação a uma comunidade semi-fraterna, marcada ainda pelos fantasmas da colonização. Não se pode assim, na nova comunidade, costurar, com outras linhas, antigos impérios, nem experiências coloniais ou neocoloniais. O sentido deve ser o da modernidade, expressa no sentimento de que a nova forma de convivência entre os países da mesma língua possa responder aos desígnios e aos desafios do mundo contemporâneo. A afirmação A afirmação política da comunidade fraterna é, portanto, um fenômeno dos anos 90. E isso foi feito por meio de um claro sentido de modernidade, no ato criador da CPLP, em Lisboa, em 17 de julho de 1996. Como bem expressa o texto da Declaração Constitutiva da CPLP, aprovada pelos chefes de governo e Estado naquela data, considerou-se imperativo: “ – Consolidar a realidade cultural nacional e plurinacional que confere identidade própria aos Países de Língua Portuguesa, refletindo o relacionamento especial existente entre eles e a experiência acumulada em anos de profícua concertação e cooperação; - Encarecer a progressiva afirmação internacional do conjunto dos Países de Língua Portuguesa que constituem um espaço geograficamente descontínuo mas identificado pelo idioma comum; - Reiterar (...) o compromisso de reforçar os laços de solidariedade e de cooperação que os unem, conjugando iniciativas para a promoção do desenvolvimento econômico e social dos seus Povos e para a afirmação e divulgação cada vez maiores da Língua Portuguesa.” O gesto político do Centro Cultural de Belém traduzia, assim, uma nova história, bastante mais recente, de recriação dos laços de solidariedade no espaço dos países da língua portuguesa. A animação dos interesses lusófonos, a exemplo das posições do ministro português Jaime Gama, já em 1983, associados aos projetos brasileiros de discussão do acordo ortográfico da língua portuguesa, a partir da presidência de José Sarney (1985-1989), foram elementos essenciais no relançamento da velha idéia comunitária. Papel fundamental viria ocupar o ministro da Cultura, José Aparecido de Oliveira, depois Embaixador do Brasil em Portugal. Envolvido com a gestação da política africana brasileira durante a presidência de Jânio Quadros (1961), retoma, na geração da idéia da formação da CPLP, um antigo objetivo político, apenas idealizado nas circunstâncias do início da década de 1960. A afirmação política da CPLP veio acompanhada por outra vertente, a da afirmação jurídica. Ambas vêm permitindo que a CPLP amadureça sem pressa, sem açodamento, por meio de vigorosa diplomacia parlamentar e de concertação de alto nível. Ainda que surjam críticas ao ritmo relativamente lento do seu desenvolvimento, incluem-se aspectos altamente positivos na sua construção jurídica e prática. Destacam-se, especialmente, os novos espaços criados para afirmar-se, no conjunto de objetivos da CPLP, aquele atinente ao alargamento e ao aprofundamento da cooperação entre os países na forma da concertação político-diplomática, particularmente no âmbito das organizações internacionais, de forma que dê expressão crescente aos interesses e necessidades comuns no seio da comunidade internacional. Nessa mesma direção inscreve-se o mais recente instrumento jurídico da CPLP, emanado da terceira Conferência de Chefes de Estado e de Governo, realizada em julho de 2000, em Maputo, Moçambique. Um dos mais relevantes aspectos foi o da inclusão, nos documentos finais da conferência, de recomendações no sentido da consolidação e do aperfeiçoamento das instituições democráticas nos Estados-membros em consonância com as legítimas aspirações dos seus povos, bem como a proposição da ampliação da agenda política da CPLP tendo em vista discutir os grandes temas da atualidade. Na direção do alargamento dos temas políticos, incluiu-se em Maputo uma interessante declaração intitulada “Declaração sobre cooperação, desenvolvimento e democracia na era da globalização”, na qual se afirmam compromissos de participação dos cidadãos no reforço da democracia, na manutenção de um diálogo permanente entre todas as forças da sociedade e da participação individual no processo de desenvolvimento socioeconômico. Assumem os chefes de Estado e de Governo o compromisso de promover iniciativas ìA afirmaÁ„o econômicas, sociais e polÌtica da culturais com os fins comunidade principais de erradicar a fraterna È, pobreza e promover o portanto, um desenvolvimento fenÙmeno dos sustentável, o dinamismo anos 90.î econômico, o equilíbrio macroeconômico, a estabilidade financeira e a concorrência; aliviar os encargos da dívida externa dos países mais pobres, mais endividados e mais apenados com esses encargos; ampliar o comércio; estimular o desenvolvimento tecnológico e compartilhar tecnologias; além de garantir a segurança dos cidadãos e a luta contra o crime, especialmente no caso do combate ao crime organizado e transnacinal. Em outras palavras, há avanços jurídicos e práticos que demonstram a forma positiva e construtiva com que os países-membros da CPLP investem seu capital cooperativo na idéia de construção de espaço próprio, sem excluir outras opções disponíveis de afirmação, para a inserção internacional dos países de língua oficial portuguesa nos tempos da globalização. Exemplo notável é a aposta da CPLP na vocação democrática dos seus Estados-membros. Avançou-se, em Maputo, de forma considerável na construção desse consenso, ainda que não se tenha aprovado ainda a cláusula democrática, nos moldes do Mercosul. O constrangimento A CPLP abriga, no entanto, áreas de constrangimento. No caso brasileiro, o surgimento da CPLP coincide com um certo ciclo de retraimento nas relações comerciais, diplomáticas e estratégicas com os países africanos. As relações do Brasil com a África nos anos 1990 foram de ajustamento a um contexto atlântico menos relevante para a inserção internacional do Brasil. Para trás ficaram os anos de ativa cooperação mútua e empreendimentos comuns sustentados na determinação do Estado brasileiro em desenvolver projetos econômicos para a África, diversificando os parceiros do comércio internacional do país e subtraindo as dificuldades geradas pela vulnerabilidade energética dos anos 1970 e parte dos anos 1980. A própria sociedade civil brasileira perdeu, nos anos 1990, parte do encanto anteriormente nutrido acerca das possibilidades alvissareiras na forte presença brasileira na África. Os antigos objetivos diplomáticos de projetar a imagem de um poder tropical e industrial que um dia fora também colônia e de convencer aos Estados africanos que as relações históricas do Brasil com Portugal não inibiam o desenvolvimento de relações bilaterais com parceiros africanos foram gradualmente perdendo a força de antes. Há, da mesma forma, um rol de dificuldades que dificulta a inserção positiva dos cinco países africanos da CPLP. Cada um deles é bastante diferente um do outro e tem objetivos e interesses distintos em relação aos objetivos da CPLP. Estados que derivam sua modernidade de um processo tardio de descolonização atabalhoada, algumas dessas cinco nações estão esgarçadas por guerras fratricidas ou desinteligências domésticas que comprometem a transformação positiva. Países que contextualizam suas políticas exteriores em meio a tragédias sociais e políticas tão graves não possuem peso relativo no cenário internacional. A redução dos países africanos a mera peça marginal no xadrez das novas formas de organização da ordem internacional faz com que a concertação de países sem excedentes de poder na cena internacional não encontre ambiente propício para sua afirmação soberana. Do ponto de vista da inserção portuguesa na CPLP, é ilusório afirmar que Portugal tenha exagerado interesse na instituição. Mas é inocente a idéia de que a europeização de Portugal afastou os lusitanos da África. Basta ver o nível de sensibilidade com que os assuntos africanos são tratados pela imprensa e pela opinião pública portuguesas. Vários setores em Portugal, no entanto, temem que a CPLP possa ser vista como palco para posturas concorrentes aos interesses lusos na África. Ao mesmo tempo, Portugal foi uma metrópole que ficou muito tempo no continente africano. Há ainda uma memória anticolonial nos países africanos de língua oficial portuguesa, criando, em certos casos, resistências subterrâneas à CPLP. Há, finalmente, constrangimentos internacionais que se abatem sobre Portugal, a ex-metrópole do esquema da CPLP, mas que também se fazem presentes sobre o Brasil e, mais ainda, sobre os países africanos. Nenhum desses países possui excedentes de poder capazes de mobilizar a comunidade internacional para apoios automáticos a projetos de desenvolvimento no espaço comunitário. A perspectiva Mas nem tudo é fatalismo na via complexa de construção de uma comunidade fraterna de países de língua portuguesa. Nem toda a verdade está com os otimistas, contentes com o andar lento e calculado do andor. Tampouco a CPLP caminha ao lado dos pessimistas que pouco percebem o ambiente difícil em torno do qual a CPLP vem atuando. O encapsular dos constrangimentos iniciase pela compreensão de que eles existem, têm força de contenção de iniciativas, mas podem ser superados. Essa é a primeira lição que terá de aprender a nova secretária-executiva da CPLP, a embaixadora Dulce Pereira. A preocupação em expandir dimensões extralingüísticas e o cuidado em conter a vertende obsessivamente culturalista no tratamento das iniciativas da comunidade parecem constituir um segundo aspecto altamente recomendável para os novos desafios da CPLP. Não há afetividade que resista à ausência de ìH·, portanto, propostas. O lastro da motivos para língua comum e da sua apostar valorização não bastam em positivamente na si mesmos. É preciso que se infanta encaminhem propostas instituiÁ„o.î concretas nos campos da educação social e do treinamento para o trabalho. Tais iniciativas mudam o rumo das percepções acerca do que fazer com populações marcadas pelos conflitos e agruras impostas pela “periferização” dos países africanos de língua oficial portuguesa. A tragédia da guerra pode ser amenizada com o esforço de povos amigos, como brasileiros e portugueses, que, dispostos a valorizar a língua que falam e escrevem, também cooperam para o bemestar daqueles que estão mais à margem do processo de internacionalização dos ganhos da globalização econômica e da mundialização da cultura. Ela, a língua, deve-se traduzir em elevação da qualidade de vida e afirmação da dignidade humana. Se isso não for feito, a CPLP fenecerá. Além disso, há um novo ambiente nas relações luso-brasileiras que fornece substrato inédito à CPLP quando comparado ao momento de sua gestação. Há uma superação, apenas a partir de 1996, dos tempos em que as relações entre o Brasil e Portugal não ultrapassavam senão os limites do formalismo improdutivo. Deixa-se para trás a quadratura na qual a diplomacia de punhos de renda se esmerava em exaltar a convivência fraterna e os traços culturais comuns. O momento presente é alvissareiro e pode possibilitar uma engenharia política nova entre Brasil e Portugal no quadro de atuação bilateral, com impactos no espaço comunitário da CPLP. Os investimentos portugueses no Brasil, o turismo crescente de lado a lado, a presença portuguesa nas comemorações da viagem de Cabral, a consolidação dos tratados assinados em Porto Seguro em abril de 2000, entre outros aspectos, parecem indicar uma mudança de rumo, modificando-se a letargia do passado. Tudo isso poderá dar fôlego à cooperação Brasil-Portugal no contexto do fortalecimento da CPLP. Há, portanto, motivos para apostar positivamente na infanta instituição. Ela veio para ficar e está pronta para ser um novo marco para a reinserção internacional de países mais à margem da globalização por intermédio de seus primos mais afortunados. Esse espírito de fraternidade alicerçará a necessária solidariedade e a conseqüente ação política em prol da afirmação do espaço da língua portuguesa no mundo. A CPLP, entre outros espaços de atuação de cada país que da comunidade faz parte, é também nosso lugar na globalização. O Dr. José Flávio Sombra Saraiva È Diretor Geral do Instituto Brasileiro de RelaÁıes Internacionais e Professor de HistÛria das RelaÁıes Internacionais da Universidade de BrasÌlia - UnB