Brasil e os
organismos
internacionais face aos
desafios da
inclusão social
O Brasil
e a OIT
CELSO
ntes de tecer alguns comentários
sobre o papel da Organização Internacional do
Trabalho e refletir sobre a participação brasileira,
considero oportuno fornecer ao leitor breve
explicação acerca do histórico e da estrutura da
Organização.
A OIT foi instituída após a Primeira Guerra
Mundial, em 1919, e é, hoje, o único resultado
concreto que perdura do Tratado de Versalhes (que
originou a já extinta Liga das Nações). Em 1946,
com a assinatura da Declaração de Filadélfia, a OIT
foi convertida em agência especializada da então
nascente Organização das Nações Unidas.
Cabe à OIT formular e supervisionar a
aplicação das normas internacionais do trabalho,
AMORIM
elaboradas na forma de Convenções e
Recomendações, que estabelecem padrões mínimos,
universalmente aceitos, em matéria de direitos
trabalhistas. A OIT também presta assistência
técnica aos Estados-membros nos campos da
formação e treinamento profissional, política de
emprego, administração do trabalho, legislação do
trabalho e relações laborais, condições de trabalho,
desenvolvimento gerencial, cooperativas,
previdência social, estatísticas trabalhistas e
segurança e saúde no trabalho. Fomenta o
desenvolvimento de organizações independentes de
trabalhadores e empregadores, os chamados
“parceiros sociais” no jargão da Organização,
facilitando-lhes treinamento e assessoramento
técnicos. Dentro do sistema da ONU, a OIT é o
único exemplo de estrutura tripartite, onde
trabalhadores e empregadores participam em
igualdade com os governos, inclusive no que toca às
votações, nas quais os parceiros sociais em conjunto
têm o mesmo peso dos governos.
A Organização Internacional do Trabalho é
composta dos seguintes órgãos:
a) Conferência Internacional do Trabalho, que se
reúne anualmente em junho em Genebra e
constitui a instância máxima da Organização,
sendo responsável pela adoção das Convenções e
Recomendações.
Participam da Conferência
ìO Conselho foi
delegações tripartites de
capaz de
todos os estados-membros;
encontrar
b) Conselho de
soluÁıes criativas
Administração, órgão
em resposta a
diretivo da OIT, que se
problemas
reúne três vezes ao ano e é
difÌceisî
formado por 28
representantes governamentais; 14 representantes
dos trabalhadores e 14 representantes dos
empregadores. Daqueles 28, dez têm assento
permanente, por representarem países de maior
importância industrial. O Brasil está entre estes dez
países, sendo os demais Alemanha, China, Estados
Unidos, França, Grã-Bretanha, Índia, Itália, Japão e
Rússia. Os 18 restantes são eleitos por um mandato
não renovável de três anos;
c) Bureau Internacional do Trabalho, com sede em
Genebra, chefiado por um Diretor-Geral e
monitorado pelo Conselho de Administração. Tratase do órgão executivo da OIT, encarregado de
implementar os programas e zelar pelo
funcionamento da Organização.
Em 1998, a Conferência Internacional do
Trabalho aprovou a “Declaração da OIT relativa a
princípios e direitos fundamentais no trabalho e seu
seguimento”. Nesse documento, os Estadosmembros assumem um compromisso com o respeito
aos quatro direitos fundamentais do trabalhador
estabelecidos pela Cúpula do Desenvolvimento
Social de Copenhague em 1995: proibição do
trabalho forçado, erradicação do trabalho infantil,
livre-associação sindical e não-discriminação no
emprego. Esses quatro direitos ou princípios estão
ancorados em oito Convenções da OIT: Convenção
nº 29, contra o trabalho forçado, de 1930;
Convenção nº 87, sobre liberdade sindical e
proteção ao direito de sindicalização, de 1948;
Convenção nº 98, sobre direito à sindicalização e
negociação coletiva, de 1949; Convenção nº 100,
sobre igualdade de remuneração, de 1951;
Convenção nº 105, sobre abolição do trabalho
forçado, de 1957; Convenção nº 111, sobre nãodiscriminação no emprego, de 1958; Convenção nº
138, sobre idade mínima para o trabalho, de 1973;
e Convenção nº 182, sobre as piores formas de
trabalho infantil, de 1999.
A Declaração estabelece ainda um
mecanismo de seguimento de caráter indutivo e
promocional, baseado na elaboração de relatórios
anuais acerca dos progressos alcançados nas quatro
áreas, não somente do ponto de vista legislativo,
mas também em relação à fruição concreta das
liberdades e direitos assegurados e à efetiva
observação das normas. O mecanismo prevê a
divulgação perante a Conferência de um relatório
preparado pelo Diretor-Geral e dedicado, cada ano,
a um dos quatro direitos fundamentais. Procede-se
assim a um levantamento global dos progressos
alcançados e ainda por alcançar, o que permite
avaliar a eficácia dos programas em curso e
estabelecer prioridades e planos de ação para o
futuro.
O impulso para a negociação e aprovação
da Declaração nasceu da preocupação da
comunidade internacional com possíveis
conseqüências sociais indesejáveis do processo de
globalização da economia e liberalização do
comércio internacional, bem como da necessidade
de assegurar padrões trabalhistas universalmente
aceitáveis. Procurou-se igualmente afirmar a
competência precípua da OIT para estabelecer e
supervisionar as normas laborais diante de
crescentes pressões de certos segmentos sociais,
apoiadas por alguns governos, que pretenderiam
inserir o tema dos padrões trabalhistas
fundamentais também na Organização Mundial do
Comércio. Países em desenvolvimento, juntamente
com alguns países industrializados, têm-se oposto
ao conceito de “cláusula social”, o qual encobriria
uma tentativa de legitimar práticas comerciais
protecionistas.
A adoção da Declaração constituiu, assim,
uma resposta da OIT às expectativas da comunidade
internacional. O seguimento da Declaração
ampliou substancialmente o interesse pela
Organização e sua atividade normativa. O êxito que
a OIT vem obtendo, tanto no que tange à aceitação
das Convenções fundamentais – cujo número de
ratificações dobrou nos últimos anos – quanto em
matéria de supervisão, com a adoção de
mecanismos de diligência e cooperação no terreno,
tem contribuído para o aumento da credibilidade da
Organização.
Em esforço complementar, a OIT elaborou
uma “agenda para o trabalho decente”, que
fornece um paradigma teórico destinado a
corroborar o exercício de convencimento da
Organização junto a governos e outras instituições
internacionais. Neste contexto, insere-se a
cooperação com as instituições de Bretton Woods
com vistas a incorporar medidas de alívio aos
efeitos sociais negativos dos programas de ajuste
estrutural por elas preconizados. A “agenda para o
trabalho decente” fundamenta-se em quatro
objetivos estratégicos:
a) promover e realizar os quatro princípios
fundamentais no trabalho mencionados acima;
b) ampliar as oportunidades de emprego para
homens e mulheres em condições que respeitem os
direitos fundamentais no trabalho;
c) aumentar a proteção e a seguridade social para
todos; e
d) fortalecer o tripartismo e o diálogo social.
Essas e outras ações que vêm sendo
adotadas pela OIT, hoje pela primeira vez sob a
liderança de um Diretor-Geral proveniente de país
em desenvolvimento (Embaixador Juan Somavia Chile), coadunam-se com as preocupações e
prioridades Governo brasileiro, o que amplia
significativamente as áreas de intercâmbio e
atuação conjunta.
Somos o 11o país com maior número de
Convenções ratificadas na OIT, num total de 87 (a
Organização possui hoje 183 Convenções, algumas
já ultrapassadas). Aderimos a sete das oito
Convenções fundamentais. Apenas a Convenção n.
87, por exigir alteração constitucional, não foi
ainda ratificada pelo Governo brasileiro.
O Brasil já ocupou a presidência do
Conselho de Administração da OIT em três
oportunidades, sendo a última recentemente, entre
junho de 2000 e junho de 2001. Nossa ativa
participação na Organização tem buscado
sobretudo reafirmar o papel central da OIT nos
temas relativos à proteção dos direitos trabalhistas.
Durante a última presidência brasileira,
que tive o privilégio de exercer, ocorreram
acontecimentos importantes e inovadores na vida
da Organização. Foi iniciado um processo de
revisão de normas, que deverá, ao cabo de alguns
anos, modificar substancialmente a elaboração e a
supervisão dos instrumentos normativos
(Convenções e Recomendações), que passarão a ser
discutidos de maneira integrada, segundo temas ou
“famílias”. Os primeiros exemplos serão as áreas de
segurança e saúde no trabalho e o das normas sobre
trabalho marítimo, para as
ìO Brasil tem
quais se tenciona elaborar
apoiado firmemente
“códigos” que compilem os
os esforÁos
vários instrumentos da OIT
internacionais de
na matéria. Trouxemos
promoÁ„o e
igualmente o tema HIV/
realizaÁ„o de padrıes
AIDS para a Organização,
trabalhistas justos e
com a elaboração de um
adequadosî
“Código de
recomendações práticas sobre HIV/AIDS no
mundo do trabalho”, que visa a prevenir a
transmissão da doença no local de trabalho. O
código foi apresentado à Sessão Especial das Nações
Unidas sobre HIV/AIDS, em junho de 2001.
O Conselho foi capaz de encontrar soluções
criativas em resposta a problemas difíceis, como a
nomeação de um Representante Especial do DiretorGeral para Cooperação com a Colômbia. A constituição
da figura do representante especial, utilizada pela
primeira vez na OIT, em substituição a tradicional
Comissão de Inquérito, derivou do reconhecimento de
que as violações das liberdades sindicais na Colômbia,
notadamente pelo assassinato de sindicalistas,
extrapolam o contexto meramente trabalhista e se
inserem no quadro de violência generalizada por que
atravessa o país em decorrência do prolongado conflito
interno. A nomeação de um representante especial
representou assim uma resposta positiva da comunidade
internacional que viabilizou o reforço da cooperação
OIT-Colômbia, vindo ao encontro dos esforços de
pacificação promovidos pelo governo do Presidente
Pastrana.
Outra questão bastante complexa foi a
imposição pela 88a Conferência Internacional do
Trabalho (junho de 2000) das medidas previstas no art.
33 da Constituição da OIT contra Mianmar. O art. 33
permite que a Conferência adote, após recomendação do
Conselho, “as ações que considere necessárias para
garantir o cumprimento de recomendações
emanadas de uma Comissão de Inquérito”. As
medidas adotadas consistiram em recomendar aos
demais estados-membros da OIT e a outras organizações
que revisassem suas relações com Mianmar com vistas a
evitar a que as mesmas pudessem contribuir, direta ou
indiretamente, para a continuação da prática de
trabalho forçado naquele país. Adicionalmente,
recomendou-se a incorporação do item na agenda do
ECOSOC (órgão que supervisiona todas as agências
especializadas da ONU) com vistas a um possível envio
da questão, na falta de progressos concretos, à
Assembléia Geral das Nações Unidas. A aplicação,
também inédita, deste artigo buscou, no caso concreto,
fazer cessar a prática de trabalho forçado vigente
naquele país. Estava em jogo a credibilidade da própria
OIT e o poder de fazer cumprir suas recomendações. O
resultado dessa ação até o momento pode ser
considerado positivo, pois levou o Governo mianma a
implementar uma série de medidas legislativas e
administrativas destinadas a coibir a prática de trabalho
forçado, assim como a aceitar receber uma missão de
verificação de alto-nível da OIT para avaliar a
efetividade prática das medidas.
Caberia mencionar ainda o papel do Grupo de
Trabalho (GT) sobre Dimensões Sociais da
Globalização. Esse grupo, criado em 1995, constitui foro
para discussão das repercussões sociais de fenômenos
surgidos com a crescente integração dos mercados, tais
como a liberalização do comércio internacional e os
movimentos de capitais, bem como a necessidade de
formular uma estratégia integrada, dentro do sistema
das Nações Unidas, para ampliar as oportunidades e
minimizar os efeitos excludentes desses fenômenos. Na
última reunião do Conselho (junho 2001) foi aprovada
a idéia de ampliar as funções do Grupo de Trabalho, por
meio de ações como: reforço da sua capacidade técnica
para a preparação de estudos específicos, o que seria
alcançado mediante a cooperação com outras
organizações e a realização de seminários; criação de
um segmento de alto-nível, que estimularia a presença
de personalidades eminentes, como diretores de outras
agências e organizações; elaboração de um estudo
global com vistas a fornecer um marco integrado de
análise sobre as dimensões sociais da globalização. Em
relação a este último ponto, o Conselho encorajou o
Diretor-Geral a iniciar consultas visando à constituição
de uma comissão de personalidades eminentes para
dirigir a elaboração do estudo.
O Brasil tem apoiado firmemente os esforços
internacionais de promoção e realização de padrões
trabalhistas justos e adequados, objetivo que está
inserido em nossa política social e de emprego.
Consideramos que situações de desrespeito aos direitos
fundamentais do trabalhador, como o trabalho forçado
ou infantil, devem ser tratadas de maneira estrita e
condenadas com vigor. Por outro lado, estamos
conscientes do risco de que o tema dos padrões
trabalhistas, se tratado de maneira incorreta e em foro
inadequado, possa ser usado para fins protecionistas,
negando acesso a mercados a produtos brasileiros e de
outros países em desenvolvimento. Sanções comerciais
certamente não constituem a melhor forma de tratar o
problema. Além do inevitável grau de arbitrariedade,
tais medidas acabam por agravar, pela perda de
receitas, problemas como desemprego e exclusão social.
Como visto acima, exemplos recentes têm
reforçado a tese de que a via da cooperação e do diálogo,
assim como outras medidas previstas no marco
institucional da OIT, não devem ser subestimadas na
resolução de questões de desrespeito aos padrões laborais.
Em não poucas ocasiões, países têm-se mostrado dispostos a
percorrer um longo caminho, e inclusive a aceitar
mecanismos de supervisão e monitoramento da
Organização para evitar o peso de uma condenação moral
ou política, ou do isolamento internacional. Um conjunto
abrangente de fatores deve ser levado em conta no
equacionamento dessas questões. A melhora das condições
de trabalho aparece freqüentemente associada ao
desenvolvimento econômico e à promoção de valores
democráticos. Dada sua singular estrutura tripartite, a OIT
possui inequívoca vocação para o tratamento dos temas
sociais, tendo sido capaz de forjar uma longa tradição de
diálogo e concertação política. Tais atributos transformamna no foro por excelência para a discussão e promoção dos
direitos trabalhistas. Ao Brasil interessa continuar
prestigiando a afirmação e a ampliação desse espaço.
Celso Amorim é embaixador do Brasil junto à ONU e demais organizações internacionais em Genebra e presidiu o
Conselho de Administração da OIT de junho de 2000 a junho de 2001.
Por uma
comunidade
fraterna: CPLP
JOS… FL¡VIO SOMBRA SARAIVA
inda que pareça ululante, a
dimensão fraterna de uma comunidade de países
que possuem em comum o lastro da língua
portuguesa necessita ser sublinhada diante da
ameaça de modelos culturais que buscam
hegemonia global na esteira da mundialização.
Ainda que desconhecida do grande público, existe
uma nascente comunidade, juridicamente
formulada, que visa a aproximar os sete países que,
em três continentes, expressam a língua
portuguesa como língua oficial. Ainda que
desdenhada, a Comunidade dos Países de Língua
Portuguesa (CPLP) poderá vir a se tornar uma
frutífera experiência de concertação diplomática,
cultural e social dos povos e nações que abraçam,
por meio de uma forma cultural que lhes é própria
— a língua portuguesa —, os novos tempos da
globalização.
O nascedouro
Reunidos no Centro Cultural de Belém, em
Lisboa, no dia 17 de julho de 1996, os Chefes de
Estado e de Governo de Angola, Brasil, Cabo Verde,
Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e
Príncipe decidiram dar institucionalidade à
primeira organização internacional voltada para a
construção da comunidade fraterna da língua
portuguesa. Nascia a CPLP para valorizar a
identidade lingüística, a cooperação entre os países
e a dimensão da concertação diplomática e política
dos sete. O Timor Leste viria se tornar, mais tarde,
observador convidado e se prepara, nesse momento,
para tornar-se membro pleno. A CPLP estará,
assim, em quatro continentes.
Houve várias motivações animadoras do
nascimento da CPLP. Registre-se a dimensão
histórica do longo prazo, lembrada por vários
autores brasileiros, portugueses e africanos, que
exploraram o passado comum. Para esses autores, a
CPLP, em sua acepção mais profunda, remonta ao
entrelaçamento do Atlântico Sul nos Tempos
Modernos, às relações especiais do Brasil com a
costa africana nos séculos
“dimensão fraterna
XVII e XVIII bem como à
de uma
criação, nos tempos de D.
comunidade de
João VI, de uma
países que
possuem em
comunidade lusocomum o lastro da
brasileira, vinculando
língua portuguesa
Portugal, suas possessões
necessita ser
sublinhada”
ultramarinas e o Brasil em
processo de independência.
Lembremo-nos também do ideário políticoliterário que levaria Sílvio Romero, no início do
século XX, a defender a idéia de uma federação
luso-brasileira. Marcantes também foram as
reflexões, ao longo do século passado, das idéias
provocativas da sociologia de Gilberto Freyre (19001987). Autor de obras fundamentais para a
compreensão das matrizes africana e portuguesa do
Brasil, foi ele o primeiro a semear, em ambiente
intelectual e diplomático mais amplo, a fecunda
mensagem da criação de uma comunidade
internacional no qual não apenas vigorasse
relações desiguais e coloniais entre os falantes da
língua portuguesa.
Incompreendido no Brasil, em Portugal e
na África, o autor teve sua obra monumental revisada
no centenário de seu nascimento, no ano 2000. O debate
serviu para passar em revista a contribuição do mais
importante intelectual brasileiro celebrado no exterior.
E também para rever certos equívocos produzidos em
torno da sua fórmula de sucesso e impacto mundial —
o luso-tropicalismo —, atribuída ao gênio inventivo do
homem, mas que nasceu, na prática, nas terras
portuguesas do Terceiro Império, onde viria se tornar
propaganda política de regime autocrático e
instrumento de política colonial ferrenha.
Essa é a razão pela qual, ao se propor a nova
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa,
tenhamos que reconhecer que ela, embora tenha algo de
freyreana, não pode ser apenas freyreana. A menção ao
luso-tropicalismo, embora evoque caminhos oblíquos,
não tem no Brasil a mesma acepção que se observa em
Portugal e na África. Aqui, para o pai da idéia de uma
comunidade afro-luso-brasileira, o luso-tropicalismo
associa-se à mestiçagem, à gestão utópica da igualdade
impossível, à vontade positiva de nos vermos como algo
novo, distintos da dicotomia que nos reduzia ao Brasil
dos brancos versus o Brasil dos negros. Em Portugal, ao
contrário, o luso-tropicalismo reverberou como projeto e
ação colonizadora.
Assim, não é na pia de batismo brasileira que a
CPLP suscita nostalgias e rancores. Em Portugal e nas
suas antigas colônias africanas, em especial, causa
espécie a evocação a uma comunidade semi-fraterna,
marcada ainda pelos fantasmas da colonização. Não se
pode assim, na nova comunidade, costurar, com outras
linhas, antigos impérios, nem experiências coloniais ou
neocoloniais. O sentido deve ser o da modernidade,
expressa no sentimento de que a nova forma de
convivência entre os países da mesma língua possa
responder aos desígnios e aos desafios do mundo
contemporâneo.
A afirmação
A afirmação política da comunidade
fraterna é, portanto, um fenômeno dos anos 90. E
isso foi feito por meio de um claro sentido de
modernidade, no ato criador da CPLP, em Lisboa,
em 17 de julho de 1996. Como bem expressa o texto
da Declaração Constitutiva da CPLP, aprovada pelos
chefes de governo e Estado naquela data,
considerou-se imperativo:
“ – Consolidar a realidade cultural nacional e
plurinacional que confere identidade própria aos
Países de Língua Portuguesa, refletindo o
relacionamento especial existente entre eles e a
experiência acumulada em anos de profícua
concertação e cooperação;
- Encarecer a progressiva afirmação
internacional do conjunto dos Países de Língua
Portuguesa que constituem um espaço
geograficamente descontínuo mas identificado pelo
idioma comum;
- Reiterar (...) o compromisso de reforçar os
laços de solidariedade e de cooperação que os
unem, conjugando iniciativas para a promoção do
desenvolvimento econômico e social dos seus Povos
e para a afirmação e divulgação cada vez maiores
da Língua Portuguesa.”
O gesto político do Centro Cultural de
Belém traduzia, assim, uma nova história, bastante
mais recente, de recriação dos laços de
solidariedade no espaço dos países da língua
portuguesa. A animação dos interesses lusófonos, a
exemplo das posições do ministro português Jaime
Gama, já em 1983, associados aos projetos
brasileiros de discussão do acordo ortográfico da
língua portuguesa, a partir da presidência de José
Sarney (1985-1989), foram elementos essenciais no
relançamento da velha idéia comunitária. Papel
fundamental viria ocupar o ministro da Cultura,
José Aparecido de Oliveira, depois Embaixador do
Brasil em Portugal. Envolvido com a gestação da
política africana brasileira durante a presidência de
Jânio Quadros (1961), retoma, na geração da idéia
da formação da CPLP, um antigo objetivo político,
apenas idealizado nas circunstâncias do início da
década de 1960.
A afirmação política da CPLP veio
acompanhada por outra vertente, a da afirmação
jurídica. Ambas vêm permitindo que a CPLP
amadureça sem pressa, sem açodamento, por meio
de vigorosa diplomacia parlamentar e de
concertação de alto nível. Ainda que surjam críticas
ao ritmo relativamente lento do seu
desenvolvimento, incluem-se aspectos altamente
positivos na sua construção jurídica e prática.
Destacam-se, especialmente, os novos espaços
criados para afirmar-se, no conjunto de objetivos da
CPLP, aquele atinente ao alargamento e ao
aprofundamento da cooperação entre os países na
forma da concertação político-diplomática,
particularmente no âmbito das organizações
internacionais, de forma que dê expressão crescente
aos interesses e necessidades comuns no seio da
comunidade internacional.
Nessa mesma direção inscreve-se o mais
recente instrumento jurídico da CPLP, emanado da
terceira Conferência de Chefes de Estado e de
Governo, realizada em julho de 2000, em Maputo,
Moçambique. Um dos mais relevantes aspectos foi o
da inclusão, nos documentos finais da conferência,
de recomendações no sentido da consolidação e do
aperfeiçoamento das instituições democráticas nos
Estados-membros em consonância com as legítimas
aspirações dos seus povos, bem como a proposição
da ampliação da agenda política da CPLP tendo em
vista discutir os grandes temas da atualidade.
Na direção do alargamento dos temas
políticos, incluiu-se em Maputo uma interessante
declaração intitulada “Declaração sobre
cooperação, desenvolvimento e democracia na
era da globalização”, na qual se afirmam
compromissos de participação dos cidadãos no
reforço da democracia, na manutenção de um
diálogo permanente entre todas as forças da
sociedade e da participação individual no processo
de desenvolvimento socioeconômico. Assumem os
chefes de Estado e de Governo o compromisso de
promover iniciativas
ìA afirmaÁ„o
econômicas, sociais e
polÌtica da
culturais com os fins
comunidade
principais de erradicar a
fraterna È,
pobreza e promover o
portanto, um
desenvolvimento
fenÙmeno dos
sustentável, o dinamismo
anos 90.î
econômico, o equilíbrio
macroeconômico, a
estabilidade financeira e a concorrência; aliviar os
encargos da dívida externa dos países mais pobres,
mais endividados e mais apenados com esses
encargos; ampliar o comércio; estimular o
desenvolvimento tecnológico e compartilhar
tecnologias; além de garantir a segurança dos
cidadãos e a luta contra o crime, especialmente no
caso do combate ao crime organizado e
transnacinal.
Em outras palavras, há avanços jurídicos e
práticos que demonstram a forma positiva e
construtiva com que os países-membros da CPLP
investem seu capital cooperativo na idéia de
construção de espaço próprio, sem excluir outras
opções disponíveis de afirmação, para a inserção
internacional dos países de língua oficial
portuguesa nos tempos da globalização. Exemplo
notável é a aposta da CPLP na vocação democrática
dos seus Estados-membros. Avançou-se, em Maputo,
de forma considerável na construção desse
consenso, ainda que não se tenha aprovado ainda a
cláusula democrática, nos moldes do Mercosul.
O constrangimento
A CPLP abriga, no entanto, áreas de
constrangimento. No caso brasileiro, o surgimento
da CPLP coincide com um certo ciclo de
retraimento nas relações comerciais, diplomáticas e
estratégicas com os países africanos. As relações do
Brasil com a África nos anos 1990 foram de
ajustamento a um contexto atlântico menos
relevante para a inserção internacional do Brasil.
Para trás ficaram os anos de ativa cooperação
mútua e empreendimentos comuns sustentados na
determinação do Estado brasileiro em desenvolver
projetos econômicos para a África, diversificando os
parceiros do comércio internacional do país e
subtraindo as dificuldades geradas pela
vulnerabilidade energética dos anos 1970 e parte
dos anos 1980. A própria sociedade civil brasileira
perdeu, nos anos 1990, parte do encanto
anteriormente nutrido acerca das possibilidades
alvissareiras na forte presença brasileira na África.
Os antigos objetivos diplomáticos de projetar a
imagem de um poder tropical e industrial que um
dia fora também colônia e de convencer aos Estados
africanos que as relações históricas do Brasil com
Portugal não inibiam o desenvolvimento de
relações bilaterais com parceiros africanos foram
gradualmente perdendo a força de antes.
Há, da mesma forma, um rol de
dificuldades que dificulta a inserção positiva dos
cinco países africanos da CPLP. Cada um deles é
bastante diferente um do outro e tem objetivos e
interesses distintos em relação aos objetivos da
CPLP. Estados que derivam sua modernidade de um
processo tardio de descolonização atabalhoada,
algumas dessas cinco nações estão esgarçadas por
guerras fratricidas ou desinteligências
domésticas que comprometem a transformação
positiva. Países que contextualizam suas
políticas exteriores em meio a tragédias sociais e
políticas tão graves não possuem peso relativo no
cenário internacional. A redução dos países
africanos a mera peça marginal no xadrez das
novas formas de organização da ordem
internacional faz com que a concertação de
países sem excedentes de poder na cena
internacional não encontre ambiente propício
para sua afirmação soberana.
Do ponto de vista da inserção portuguesa
na CPLP, é ilusório afirmar que Portugal tenha
exagerado interesse na instituição. Mas é
inocente a idéia de que a europeização de
Portugal afastou os lusitanos da África. Basta ver
o nível de sensibilidade com que os assuntos
africanos são tratados pela imprensa e pela
opinião pública portuguesas. Vários setores em
Portugal, no entanto, temem que a CPLP possa
ser vista como palco para posturas concorrentes
aos interesses lusos na África. Ao mesmo tempo,
Portugal foi uma metrópole que ficou muito
tempo no continente africano. Há ainda uma
memória anticolonial nos países africanos de
língua oficial portuguesa, criando, em certos
casos, resistências subterrâneas à CPLP.
Há, finalmente, constrangimentos
internacionais que se abatem sobre Portugal, a
ex-metrópole do esquema da CPLP, mas que
também se fazem presentes sobre o Brasil e, mais
ainda, sobre os países africanos. Nenhum desses
países possui excedentes de poder capazes de
mobilizar a comunidade internacional para
apoios automáticos a projetos de
desenvolvimento no espaço comunitário.
A perspectiva
Mas nem tudo é fatalismo na via complexa
de construção de uma comunidade fraterna de
países de língua portuguesa. Nem toda a verdade
está com os otimistas, contentes com o andar lento
e calculado do andor. Tampouco a CPLP caminha
ao lado dos pessimistas que pouco percebem o
ambiente difícil em torno do qual a CPLP vem
atuando.
O encapsular dos constrangimentos iniciase pela compreensão de que eles existem, têm força
de contenção de iniciativas, mas podem ser
superados. Essa é a primeira lição que terá de
aprender a nova secretária-executiva da CPLP, a
embaixadora Dulce Pereira. A preocupação em
expandir dimensões extralingüísticas e o cuidado
em conter a vertende obsessivamente culturalista no
tratamento das iniciativas da comunidade parecem
constituir um segundo aspecto altamente
recomendável para os novos desafios da CPLP.
Não há afetividade que
resista à ausência de
ìH·, portanto,
propostas. O lastro da
motivos para
língua comum e da sua
apostar
valorização não bastam em
positivamente na
si mesmos. É preciso que se
infanta
encaminhem propostas
instituiÁ„o.î
concretas nos campos da
educação social e do treinamento para o trabalho.
Tais iniciativas mudam o rumo das percepções
acerca do que fazer com populações marcadas pelos
conflitos e agruras impostas pela “periferização”
dos países africanos de língua oficial portuguesa.
A tragédia da guerra pode ser amenizada
com o esforço de povos amigos, como brasileiros e
portugueses, que, dispostos a valorizar a língua que
falam e escrevem, também cooperam para o bemestar daqueles que estão mais à margem do
processo de internacionalização dos ganhos da
globalização econômica e da mundialização da
cultura. Ela, a língua, deve-se traduzir em elevação
da qualidade de vida e afirmação da dignidade
humana. Se isso não for feito, a CPLP fenecerá.
Além disso, há um novo ambiente nas
relações luso-brasileiras que fornece substrato
inédito à CPLP quando comparado ao momento de
sua gestação. Há uma superação, apenas a partir de
1996, dos tempos em que as relações entre o Brasil e
Portugal não ultrapassavam senão os limites do
formalismo improdutivo. Deixa-se para trás a
quadratura na qual a diplomacia de punhos de
renda se esmerava em exaltar a convivência
fraterna e os traços culturais comuns.
O momento presente é alvissareiro e pode
possibilitar uma engenharia política nova entre
Brasil e Portugal no quadro de atuação bilateral,
com impactos no espaço comunitário da CPLP. Os
investimentos portugueses no Brasil, o turismo
crescente de lado a lado, a presença portuguesa nas
comemorações da viagem de Cabral, a consolidação
dos tratados assinados em Porto Seguro em abril de
2000, entre outros aspectos, parecem indicar uma
mudança de rumo, modificando-se a letargia do
passado. Tudo isso poderá dar fôlego à cooperação
Brasil-Portugal no contexto do fortalecimento da
CPLP.
Há, portanto, motivos para apostar
positivamente na infanta instituição. Ela veio para
ficar e está pronta para ser um novo marco para a
reinserção internacional de países mais à margem
da globalização por intermédio de seus primos mais
afortunados. Esse espírito de fraternidade alicerçará
a necessária solidariedade e a conseqüente ação
política em prol da afirmação do espaço da língua
portuguesa no mundo. A CPLP, entre outros espaços
de atuação de cada país que da comunidade faz
parte, é também nosso lugar na globalização.
O Dr. José Flávio Sombra Saraiva È Diretor Geral do Instituto Brasileiro de RelaÁıes Internacionais e Professor de
HistÛria das RelaÁıes Internacionais da Universidade de BrasÌlia - UnB
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Brasil e os organismos internacionais face aos desafios da inclusão