Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Coordenadoria de Biblioteca Central – UFMS, Campo Grande, MS, Brasil)
Composição : revista de ciências sociais / Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul. – a. 8, n. 14 (Janeiro – Junho de 2014) - Campo Grande, MS : A
Universidade, 2014. .
Semestral
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ISSN 1983-3784
1. Ciências Sociais - Periódicos. 2. Ciências Humanas – Periódicos. I.
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
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Composição, Revista de Ciências Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso do
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EDITORIAL
É com muita alegria que apresentamos à comunidade acadêmica o número 14 de
Composição, Revista de Ciências Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul. Neste número, estão publicadas as seguintes colaborações: (Des) esperança dos
empregados domésticos: carteira assinada ou não?; Por um outro discurso da realidade: a
questão do Estado-nação e das práticas culturais; Sociabilização e manifestação cultural
atuando na produção de uma identidade comunitária no Conjunto Cidade Satélite
(1982-2010); Contribuições das teorias de Marx e Tocqueville para a Sociologia da Religião;
A ilusão da felicidade: autofagia, angústia e barbárie na sociedade de hiperconsumo;
Movimento Sou Agro: marketing, habitus e estratégias de poder do agronegócio.
Destaca-se que a contribuição de pesquisadores ligados a diversos programas de
pós-graduação de universidades brasileiras como: UNESP, UFPE, UFMS, UFRRJ e
outras, reforçando a proposta de ser um periódico que procurar intercambiar as
diferentes produções da pesquisa em ciências humanas e sociais. Boa leitura.
Prof. Dr. Aparecido Francisco dos Reis - Editor
Sumário
Sociabilização e manifestação cultural atuando na produção de uma identidade
comunitária no Conjunto Cidade Satélite (1982-2010).
Gabriela Fernandes de Siqueira e Thaiany Soares Silva...................................................8
(Des) esperança dos empregados domésticos: carteira assinada ou não?
Nelson Alberto Mucanze e Wladimir Machado Teixeira................................................22
A ilusão da felicidade: autofagia, angústia e barbárie na sociedade de
hiperconsumo.
Wellington Fontes Menezes.............................................................................................41
Por um outro discurso da realidade: a questão do Estado-nação e das práticas
culturais.
Nataniél Dal Moro...........................................................................................................58
Contribuições das teorias de Marx e Tocqueville para a Sociologia da Religião.
Joaquim Alves Ferreira Filho..........................................................................................74
Movimento “Sou Agro”: marketing, habitus e estratégias de poder do agronegócio.
Regina Bruno...................................................................................................................85
Sociabilização e manifestação cultural atuando na produção de uma identidade
comunitária no Conjunto Cidade Satélite (1982-2010)
Socialization and cultural manifestation acting in the production of a community
identity in Cidade Satélite (1982-2010)
Gabriela Fernandes de Siqueira
Thaiany Soares Silva1
Recebido em 07/06/2013; aceito em 25/05/2014
______________________________________________________________________
Resumo: Esse trabalho objetivou apresentar como ocorreu o desenvolvimento de espaços de
sociabilização e de manifestações culturais no Conjunto Cidade Satélite (Natal- RN), contribuindo para a
criação de uma identidade comunitária nesse também denominado ―conjunto dormitório‖. O trabalho
analisou as manifestações culturais do Conjunto desde sua fundação (1982) até os dias atuais, tentando
perceber as modificações desse espaço e de sua identidade (identidades).
Palavras-chave: Sociabilização; identidade; cidade satélite.
Abstract: This study aimed to present as was the development of spaces for socialization and cultural
events in the City Set Satellite (Natal-RN), contributing to the creation of a community identity that also
called "sleeping together." The study examined the cultural manifestations of the set since its inception
(1982) until the present day, trying to understand the changes that space and identity (identities).
Words key: Socialization; identity; cidade satélite.
O processo de urbanização no Brasil intensificou-se a partir do século XX,
possuindo variações de acordo com as peculiaridades locais de cada território. A partir
da década de 1960, o denominado êxodo rural passou a ser mais expressivo no país,
contribuindo para dar destaque às discussões sobre a questão da moradia, já que as
cidades começaram a possuir um maior número de habitantes, não tendo infraestrutura
suficiente para acomodar esses novos moradores. (GOMES et al, 2011).
Segundo Correa, existem três agentes principais atuando na produção do espaço
urbano: proprietários fundiários, promotores imobiliários e Estado. (CORREA, 1989).
O Estado é um dos agentes que mais atua nessa produção espacial, uma vez que age
criando mecanismos de créditos para financiar habitações, estabelecendo ainda normas
regulares do uso do solo. Nesse sentido, o Estado brasileiro tomou algumas iniciativas
1
Mestrandas em História pelo Programa de Pós- Graduação da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte e licenciadas em História pela mesma instituição. E-mail para contato:
[email protected] / [email protected]. Endereço institucional: Avenida Senador
Salgado Filho, 3000 – Lagoa Nova, Natal. Telefone institucional: (84)3214-3119.
8
para tentar sanar o problema da habitação, uma delas foi a criação, em 1964, do Banco
Nacional de Habitação (BNH), objetivando coordenar a política habitacional dos órgãos
públicos, financiando a aquisição da casa própria, estimulando a construção de moradias
populares, entre outras soluções. O BNH, extinto em 1996, foi considerado um dos
agentes financeiros mais expressivos do processo de desenvolvimento urbano brasileiro.
Em relação ao processo de urbanização de Natal, nota-se que até a construção dos
denominados conjuntos habitacionais, a cidade possuía um espaço reduzido, até o início
do século XX era formada por apenas dois bairros, Cidade Alta e Ribeira. Após a
Segunda Guerra Mundial, a cidade passou a receber maior número de migrantes,
fazendo-se ainda mais necessário a construção dos conjuntos habitacionais. Esses
conjuntos passaram a ser construídos em áreas periféricas, proporcionando o surgimento
de ―externalidades positivas‖ para a expansão do capital. (GOMES et al, 2011) Assim, a
cidade começava a ser ligada a áreas até então desocupadas, sendo necessária uma rede
de infraestrutura, dinamizando o espaço e integrando-o à parte central da cidade.
Esse artigo tem como objetivo apresentar um pouco da história de um desses
conjuntos habitacionais projetados no final da década de 1970, o Conjunto Cidade
Satélite, localizado no bairro Pitimbu (Natal/RN), enfatizando a importância das
manifestações culturais na criação de uma identidade comunitária. Compartilhando da
noção de que os indivíduos estão continuamente colocando para si questões
relacionadas ao local onde moram, possuindo senso aguçado de herança (SAMUEL,
1990, p.219); e concebendo a memória como representação seletiva do passado, que
nunca é somente a representação do indivíduo apenas, mas sim de um sujeito inserido
em um contexto familiar, social, nacional (LE GOFF, 1994, p.476-477), optou-se por
utilizar a metodologia da história oral nesse trabalho, visando resgatar diferentes
memórias. A realização de entrevistas possibilitou entrar em contato com a produção
direta de fontes. Foram entrevistadas pessoas da própria comunidade, habitantes que
foram morar em Satélite quando do início de sua fundação, outros que chegaram
posteriormente e jovens que nasceram no Conjunto.
Compartilhou-se da noção de que história oral é uma metodologia fundamental
para o estudo de acontecimentos históricos, instituições, grupos sociais, categorias
profissionais, movimentos e conjunturas à luz de depoimentos de pessoas que deles
participaram ou testemunharam (ALBERTI, 2004). Com a história oral tenta-se ampliar
o conhecimento sobre acontecimentos e conjunturas do passado por meio do estudo
aprofundado de experiências e versões particulares, procurando ainda compreender a
9
sociedade com base no indivíduo que nela viveu, estabelecer relações entre o geral e o
particular por meio da análise comparativa de diferentes testemunhos, e tomar as formas
como o passado é apreendido e interpretado por indivíduos e grupos como dado
objetivo para compreender suas ações.
Como uma “Cidade Satélite” pode forjar uma identidade comunitária?
O Conjunto Cidade Satélite foi projetado no contexto de expansão urbana da
cidade. O programa de habitação popular implantado nessa região foi gerenciado pelo
INOCOOP (Instituto de Orientação às Cooperativas Habitacionais) e coordenado pelo
SFH (Sistema Financeiro de Habitação), por meio do BNH. Quando o Banco Nacional
de Habitação foi extinto, em 1996, coube à Caixa Econômica Federal coordenar o
sistema de financiamento. Projetado pelo arquiteto Acácio Gil Borsoi, em 1976, o
Conjunto seria formado por três etapas. A primeira etapa foi entregue em 1982 e, em
1985, foram concluídas as outras duas etapas.
O Conjunto foi projetado para atender as demandas das classes médias, e,
inicialmente, era habitado por casais jovens, recém-casados, militares e funcionários
públicos. Morar em Cidade Satélite, logo na sua fundação, era uma aventura à parte.
Desde o início de sua construção e, posteriormente, com as entregas das etapas do
Conjunto, verificaram-se desafios presentes para os então novos moradores. Situado já
na região fronteiriça entre Natal e Parnamirim, o Conjunto Cidade Satélite apresentavase como uma região distante do centro da cidade. Ainda assim, desde a entrega de sua
primeira etapa em 1982, logo os primeiros moradores chegaram e estabeleceram-se em
suas moradias, tendo que superar as adversidades: as linhas de transporte eram
precárias; havia apenas um acesso para veículos e as linhas telefônicas eram um luxo
dos mais abastados.
O que caracterizou Cidade Satélite foi seu traçado urbano. Todas as suas ruas
inter-quadradas tinham forma de ‗U‘. O arquiteto adotou esta forma para tentar
amenizar o fluxo de veículos pesados como ônibus e caminhões nas ruas internas do
conjunto. Esse Conjunto foi concebido para ser uma espécie de ―bairro dormitório‖.
Um bairro, comunidade ou cidade dormitório é um espaço de características
residenciais, no qual a maioria dos moradores trabalha em uma cidade próxima ou no
centro dessa cidade ou capital. Geralmente as cidades tidas como dormitórios estão
ligadas por meios de transportes de massa aos locais de trabalho de seus moradores.
10
Para Freitag, uma cidade dormitório tem o mesmo sentido de cidade satélite, uma vez
que o habitante desse local ―não se reconheceria como cidadão da mesma, pois na
medida em que ali não se encontra seu local de trabalho e só serve como dormitório e
residência, ele não teria compromisso efetivo com a cidade‖ (FREITAG apud OJIMA,
2010, p.4). Entretanto, com a pesquisa por meio da história oral, verificou-se que os
primeiros moradores do conjunto desenvolveram relações entre si, contrariando o
planejamento inicial de ser uma cidade dormitório.
As entrevistas realizadas apontaram que manifestações culturais, como a festa do
padroeiro da Paróquia de São Francisco de Assis, festas em algumas ruas do Conjunto,
entre outras formas de expressão cultural e espaços de lazer, foram fundamentais como
espaços de sociabilização e criação de sentimentos de pertença, essenciais para forjar
uma identidade comunitária. Como afirma o geógrafo francês Paul Claval, a cultura não
se constitui em um sistema fechado, podendo ter sua origem em um passado distante
(CLAVAL, 1999, p.3214-3119). Aspectos da cultura podem ser transmitidos por meio
de várias gerações e a cultura não está fechada para as mudanças. Tal consideração
permite que se imaginem as transformações ocorridas no Conjunto Cidade Satélite.
Algumas atividades e hábitos que existiam na década de 1980, passadas quase três
décadas já não podem ser encontrados na comunidade, mas, apesar dessas mudanças, os
moradores ainda possuem um sentimento de pertença, uma identidade com aquele
espaço, como pode ser visto nas entrevistas realizadas. Essas transformações são frutos
do avanço da sociedade urbana, que promove mudanças nas manifestações
socioculturais.
Tendo como base as noções de geógrafo Yi-fu Tuan, o conceito de espaço que
permeou essa pesquisa foi guiado por uma perspectiva cultural. Para tal autor, o espaço
―tem a capacidade de refletir a qualidade dos sentidos do indivíduo, assim como a sua
mentalidade‖ (TUAN, 1983, p.17). Desse modo, Tuan utilizou a cultura como fator
explicativo do significado e organização do espaço, uma vez que a cultura interfere
fortemente no comportamento e nos valores humanos. Seguindo esse conceito, o espaço
não seria algo naturalizado, mas sim construído culturalmente. O conceito de espaço de
Tuan permitiu analisar as modificações que ocorreram ao longo do tempo no conjunto
não apenas quanto aos aspectos físicos, como o surgimento de prédios (os denominados
―espigões‖), e modificação da arquitetura das casas, o que contribuiu para
descaracterizar o modelo de conjunto habitacional tipicamente residencial; esse conceito
de espaço aqui empregado foi muito mais amplo, pretendeu analisar as transformações
11
que vão além do aspecto material, físico e concreto do espaço, atingindo o pensamento e
o sentimento dos indivíduos. Nesse sentido, foram analisadas as mudanças nas
manifestações culturais do conjunto ao longo do tempo, bem como as diferentes
representações que os moradores expressavam sobre as mesmas, de acordo com suas
vivências, e foi investigado como o sentimento de pertença dos moradores foi sendo (re)
construído ao longo do tempo.
Nessa discussão, o conceito de identidade também foi problematizado. Como
afirma Stuart Hall, a globalização interfere nas noções de tempo e espaço dos sujeitos,
que são elementos fundamentais para todo sistema de representação. Nota-se que Hall já
apontava o impacto que a globalização gerava sobre a identidade (identidades), uma vez
que a representação dos sujeitos é fundamental na construção dessa identidade, que está
localizada em um espaço e tempo simbólicos. A globalização foi entendida na pesquisa
enquanto uma série de processos que atuam globalmente, ―integrando e conectando
comunidades e organizações em novas combinações de espaço-tempo, tornando o
mundo, em realidade e em experiência, mais interconectado‖ (HALL, 2005, p.71). O
conceito de globalização aqui empregado vai além das relações econômicas,
perpassando relações sociais, políticas e culturais.
Dessa maneira, com a aceleração dos processos globais as distâncias se tornam
mais curtas e os eventos ocorridos em um lugar outrora longe, passam a ter impactos
imediatos sobre indivíduos e espaços situados a uma grande distância geográfica. Hall
defende que a globalização não destrói simplesmente a identidade local, ao contrário,
produz ―novas identificações ‗globais‘ e novas identificações ‗locais‘‖, tendo, assim, um
efeito pluralizante sobre as identidades, ―produzindo uma variedade de possibilidades e
novas posições de identificação, e tornando as identidades mais posicionadas, mais
políticas, mais plurais e diversas, (...)‖ (HALL, 2005, p.94). Assim, a globalização
possibilita o surgimento de uma pluralização de centros de poder. O descentramento de
referências, também provocado pela globalização, gera uma alteração nas noções de
identidades, que muitas vezes tornam-se contraditórias ou não resolvidas. Dessa
maneira, a identidade passa a ser algo móvel, elaborada e reelaborada continuamente, de
acordo com os sistemas culturais que permeiam os sujeitos.
Ainda segundo Woodwar, a globalização pode fazer com que sejam produzidos
―diferentes resultados em termos de identidade. A homogeneidade cultural promovida
pelo mercado global pode levar ao distanciamento da identidade relativa à comunidade
e à cultura local‖ (WOODWARD, 2000, p.21). No Conjunto Cidade Satélite, ao passar
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do tempo, ocorreram modificações nas manifestações culturais dos moradores. A
própria urbanização, a proximidade com outros bairros e comunidades, sobretudo após
o prolongamento da Avenida Prudente de Morais e construção dos shoppings na parte
central da cidade, provocaram transformações na forma como a comunidade
sociabilizava-se, integrando-a a um conjunto maior, ampliando suas relações com as
demais comunidades. O próprio interesse mercadológico passou a ser mais forte nessas
manifestações, o que pode ter ocasionado esse afastamento da identidade relativa à
comunidade.
O que se percebeu em Cidade Satélite, foi a existência de diferentes espaços de
lazer, que vão modificando-se ao longo do tempo, espaços que foram importantes na
construção identitária da comunidade e também contribuíram para transformá-la. Outra
característica existente foi a ausência de uma única manifestação cultural. Dependendo
da faixa etária, profissão, e mesmo do gosto do indivíduo, os espaços de sociabilização
diferenciam-se. O conjunto surgiu, segundo os depoimentos, na época em que o cantor
Michael Jackson fazia muito sucesso. Havia uma casa de show próxima à Escola
Estadual Djalma Aranha Marinho, e, à noite, essa instituição promovia festas que
sempre tocavam as músicas mais conhecidas do cantor, como Thriller e Billie Jean.
Essa preferência musical da comunidade já apontava como a globalização da década de
1980 interferia nas formas de sociabilização da comunidade, uma vez que o cantor
Michael Jackson começou a fazer sucesso nessa época, inspirando comportamentos e
estilos, inclusive nessa comunidade localizada em uma região outrora periférica de
Natal (RN).
A pesquisa não esteve focada em compreender como a globalização da década de
1980 interferiu no Conjunto Cidade Satélite; o trabalho buscou entender como essas
relações globalizadas (desde a década de 1980 quando o conjunto foi construído até os
dias atuais) e as transformações urbanas interferiram nas manifestações culturais do
Conjunto Cidade Satélite, contribuindo para modificar os espaços de lazer e diversão e,
conseqüentemente, modificar as relações dos moradores com a comunidade. Ao longo
do tempo e com o encurtamento das distâncias (tanto físicas como culturais), esses
moradores passaram a relacionarem-se com outros sujeitos, oriundos de outros espaços.
O Conjunto construído para ser uma verdadeira ―cidade dormitório‖ além de ter
construído uma identidade comunitária, também passou a pluralizar essa identidade,
modificando-a, expandindo-a, passando incorporar novos aspectos ao longo do tempo.
Se o Conjunto foi projetado para ser um local apenas para passar a noite, acabou
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revelando-se uma comunidade integrada. As transformações urbanas, sobretudo o
Prolongamento da Avenida Prudente de Morais, poderiam ter ajudado a concretizar essa
idéia de ―cidade dormitório‖, entretanto, foi essencial para integrar esse Conjunto com
outras comunidades, não solapando a identidade ―sateliteana‖, mas transformando-a.
As gincanas existentes na comunidade também se revelaram como espaços de
socialização e lazer, e contribuíram para criar um sentimento de pertença, uma
identidade comunitária. As gincanas eram divertidas e movimentavam o bairro Pitimbu.
Existiam várias equipes e um dos coordenadores do movimento era Walker Costa, atual
diretor da Escola Estadual Antônio Pinto de Medeiros. Entretanto, os participantes
dessas gincanas começaram a exagerar nas provas e atividades. Muitos alugavam carros
e andavam pelas ruas em alta velocidade.
A dinâmica do conjunto, as transformações
que se processaram, o surgimento de uma nova geração de jovens, entre outros fatores
também foram responsáveis por encerrar as tão movimentadas gincanas. A dinâmica
dessas gincanas envolvia provas inusitadas, que iam desde a caça por um objeto até
provas em que os participantes tinham que achar mulheres grávidas e vesti-las de ―Papai
Noel‖. Ao final, seria vencedora a equipe que realizasse tais provas em menos tempo,
por isso os jovens andavam com os carros em alta velocidade.
As gincanas eram um espaço de diversão e momento de forjar uma identidade
comunitária. A maioria dos moradores narra sobre essas gincanas, mesmo que alguns
não tenham participado das mesmas, sabem que elas existiram e foram importantes para
criar um sentimento de pertença àquele conjunto. Tais gincanas eram financiadas por
alguns vereadores e por algumas pessoas, por meio de iniciativas próprias. Entretanto,
com o tempo, essas gincanas modificaram seu modelo original e, segundo alguns
moradores, só apareciam em época de campanha, modificação que confirma a noção de
mudança cultural em virtude das mudanças urbanas, das transformações do cotidiano
que interferem na variação das formas de lazer e sociabilização.
Walker Costa, principal idealizador das gincanas, afirmou que elas foram,
inicialmente, realizadas durante a festa do padroeiro do Conjunto.
Nesse período
inicial, as provas eram modestas e ocorriam na quadra de esportes da primeira etapa,
possuindo uma premiação simples. Os integrantes das equipes vencedoras ganhavam
refrigerante, medalhas ou algum outro prêmio simbólico. Posteriormente, os
idealizadores dessas gincanas conseguiram patrocinadores e a premiação passou a ser
dada em dinheiro. Inicialmente essas gincanas reuniam apenas os habitantes do
conjunto. Com o passar dos anos, o encurtamento das distâncias possibilitou a
14
integração com outros bairros e comunidades da cidade, uma vez que várias pessoas de
outras localidades iam para o Conjunto Cidade Satélite nos períodos de gincanas. Dessa
maneira, o efeito do encurtamento da distância, fruto da urbanização e da globalização,
interferiu na construção da identidade comunitária, e um evento outrora característico de
Cidade Satélite, passava a receber diversos conjuntos e bairros de Natal, o que
descaracterizava essas gincanas enquanto algo próprio do Conjunto.
O ―Consenso‖, período informativo que circulou pelo Conjunto entre 1993 e
1997, também demonstrou a existência de uma comunidade identitária, já que se tratava
de um jornal que reunia os problemas e acontecimentos daquele espaço, sendo
distribuído entre seus moradores. A proximidade entre leitores e jornalistas dentro de
uma comunidade, possibilita a identificação de opiniões, interesse e posicionamentos.
Os jornais comunitários revelam-se como porta-vozes, manifestando os anseios, as
posturas e as atitudes que os moradores possuem sobre diversas temáticas, bem como as
cobranças feitas às autoridades. Por meio desses periódicos foi possível perceber em
Cidade Satélite uma evolução urbana, uma preocupação dos moradores com o local
onde viviam e com o próximo, por meio da melhoria da qualidade de vida em prol do
bem comum dos habitantes daquela área (como apontam muitas matérias desse
periódico) (SIQUEIRA; SOARES, 2010, p.13-195).
Interessante perceber que apesar de sentir-se um ―cidadão satelitiano‖, os
moradores de Cidade Satélite também conviviam com outras identidades, demonstrando
a idéia de pluralidade das identidades no mundo pós-moderno, como apontaram as
considerações de Hall. Assim, além de ser estudante de história, guitarrista, abcdista, o
jovem Renan Ramalho era também morador de Cidade Satélite; Walker Costa também
não é só um professor, diretor, organizador de eventos, é, entre outras múltiplas
identidades, um habitante da Comunidade Cidade Satélite; Aquino Neto também não é
só vereador, radialista, político, é, um cidadão ―sateliteano‖, entre as várias identidades
que são responsáveis pela sua construção. Percebeu-se como a identidade comunitária
desse Conjunto foi sendo forjada, mas continuou convivendo com outras identidades.
Também existiam algumas festas de forró, que aconteciam, esporadicamente, no
Conjunto e também serviam de espaços de integração e construção da identidade
comunitária. Existiam, ainda, algumas festas que aconteciam nas ruas do Conjunto,
sendo a Rua Piquiá a mais famosa, por ser sede do popular ―Arraiá do Piquiá‖, bem
como de outras festas.
15
O denominado ―Arraiá da Espiga‖ era realizado na quadra localizada na primeira
etapa do Conjunto, nas proximidades da igreja católica. Entretanto, posteriormente,
Aquino Neto, que na época era radialista e já possuía uma grande liderança na
comunidade, passou a conduzir tal festa. Com essa interferência de Aquino Neto, o
arraiá modificou seu nome para ―Arraiá do Aquino‖ e passou a ser realizado durante
muitos anos, crescendo cada vez mais.
Aquino Neto afirmou que, por Cidade Satélite ainda ser carente de autenticidade,
a festa contribuía para manifestar a cultura própria do Conjunto. Em seu depoimento,
percebeu-se uma exaltação para com suas contribuições pessoais para a festa do
Conjunto. Aquino Neto orgulha-se de ter contribuído para que o Arraiá se transformasse
no que ele considera ser a terceira maior festa do país. Eis, pois, uma representação
criada por um determinado sujeito, que é construída por meio das influências e
interesses desse sujeito no espaço em que atua. Aquino Neto foi eleito vereador com
forte apoio da população do Conjunto Cidade Satélite e do Bairro Planalto, essa festa de
São João possivelmente ajudou-o a adquirir simpatia da população dessas comunidades,
amealhando votos para eleger-se. Dessa forma, o discurso de Aquino Neto foi permeado
por exaltação e jamais mencionou que a festa era permeada por interesses
mercadológicos.
Outros eventos aconteciam na comunidade, como a festa do padroeiro São
Francisco de Assis, Festa de Santa Clara, Festa de Nossa Senhora dos Impossíveis,
destacando que a igreja católica exercia certa força na comunidade, uma vez que muitas
manifestações do Conjunto eram vinculadas à Paróquia São Francisco de Assis,
representação da igreja católica na comunidade.
Atualmente, não existem tantas festas e manifestações como no início de
formação da comunidade, na década de 1980. Um dos motivos que contribuiu para o
enfraquecimento de tais manifestações, segundo os depoimentos, foi o aumento da
violência, não só no Conjunto, mas também em todas as cidades, fruto do processo de
globalização e urbanização, sobretudo do encurtamento das distâncias e surgimentos de
outros conjuntos habitacionais (mais carentes) nas proximidades de Cidade Satélite.
Quando os eventos são noturnos, há maiores possibilidades de vítimas de assaltos.
Assim, a violência é apontada como o principal fator responsável pelo enfraquecimento
das festas, fator esse que é agravado pela própria configuração de Cidade Satélite. O
Conjunto está dividido em etapas e, entre essas, existem terrenos baldios. Acredita-se
que as pessoas temem passar por esses terrenos à noite e, para não correr riscos, a
16
maioria da população prefere ficar em casa a ir para um evento que ocorra no próprio
Conjunto.
Outros moradores não acreditam que existam festas populares no Conjunto,
considerando como populares manifestações de rua espontâneas. Para esses moradores,
as festas que existem em Cidade Satélite, sobretudo as que festejam o São João, são
frutos de manipulações políticas e não ocorrem para manifestar determinada tradição e,
sim, para representar uma espécie de vitrine de algum político que almeja conquistar
votos.Também ocorreram shows de rock na comunidade. Existiam algumas bandas de
rock e até um evento foi organizado na AMORCISA (Associação dos Moradores da
segunda etapa) reunindo bandas que tocavam esse estilo musical. Entretanto,
movimentos como esses são exceções, a maioria das festas que ocorriam, sobretudo nas
ruas do Conjunto, eram as de São João, revelando a força de tradição que as festas
juninas possuem no Nordeste.
Considerações finais
Como afirma Paul Claval, as transformações são frutos da própria dinâmica das
sociedades urbanas, que, ao longo do tempo, sofrem modificações em virtude do seu
próprio crescimento. Cidade Satélite pode ser um exemplo de uma comunidade que no
início era isolada da cidade, possuía dificuldade de acesso, entre outros problemas como
dificuldades de transporte. Com o encurtamento das distâncias, provocado, sobretudo
pelo prolongamento da Avenida Prudente de Morais, Cidade Satélite modificou sua
dinâmica e a proximidade com bairros mais movimentados pode ter sido um fator
responsável por descaracterizar as festas que aconteciam no Conjunto.
São diversos fatores que caracterizam a modificação dessas manifestações e
espaços de lazer. Diversos também são os discursos e representações dos sujeitos,
moradores do Conjunto. Entretanto, a pesquisa concluiu que apesar das transformações
e das variadas representações de seus moradores, ainda existe uma identidade que os
une, uma identidade comunitária marcada por pontos em comum, por manifestações e
ações que demonstram o que é morar em Cidade Satélite, o que é conviver com a
natureza da região, com os problemas de infraestrutura que persistem, entre uma série
de fatores. Essa identidade modificou-se ao longo do tempo, enfraqueceu-se com os
distanciamentos, com a própria dinâmica fruto da urbanização. Mas, a identidade
comunitária ainda persiste e pode ser notada ao longo das entrevistas. Todos os
moradores entrevistados respondiam, ao final da entrevista, que Cidade Satélite ainda
17
era um dos melhores locais da cidade para morar, que possuía problemas, mas ainda era
um local tranqüilo, com espaço, capaz de atender as necessidades de uma família. Um
conjunto no qual os moradores poderiam até serem distantes um dos outros devido à
dinâmica do mundo contemporâneo, do dia-dia atribulado, mas que, diante de alguma
precisão, estão sempre a postos para ajudar a vizinhança. Morar em Cidade Satélite para
esses depoentes, ainda é conviver com certa tranqüilidade e companheirismo, sabendo
que se pode contar com os vizinhos quando preciso.
Torna-se interessante perceber que as modificações, a construção de outras
identidades, com o crescimento urbano e as influências de um mundo globalizado, não
significou a supressão de uma identidade comunitária, ao contrário, muitas vezes essa
identidade pode até se fortalecer. Enfim, as identidades não se suprimem, hoje, na época
da pós-modernidade, modernidade líquida, modernidade tardia, e outras denominações
utilizadas para definir essa época atual, não existe mais a preocupação com a idéia de
uma única identidade, existe uma multiplicação de identidades frágeis. Dessa maneira, a
permanência de uma identidade comunitária não significa algo estático, parado,
imutável; não significa que o indivíduo não possa ter outras identidades e conviver com
as mesmas. As identidades são múltiplas, passam por transformações, mas podem
persistir, foi isso que aconteceu no Conjunto estudado.
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18
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In: SILVA, Tomaz Tadeu. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais.
RJ: Vozes, 2000.p.21.
Anexos: algumas imagens do Conjunto Cidade Satélite
Imagens do Conjunto no início da década de 1980 (destaque para o formato comum nas casas e para a
grande quantidade de areia existente).
19
Algumas Capas do período informativo ―Consenso‖ que circulou pelo Conjunto.
Descaracterização do Conjunto, com o aparecimento dos denominados ―espigões‖ (edifícios) e casas
reformadas, desobedecendo o padrão original.
20
Imagens do prolongamento da Avenida Prudente de Morais, um dos responsáveis por diversas
transformações ocorridas em Cidade Satélite.
Publicação fruto da pesquisa
21
(Des) esperança dos empregados domésticos: carteira assinada ou não?
Hope or desperation of domestic employees: portfolio signed or not?
Nelson Alberto Mucanze1
Wladimir Machado Teixeira2
Recebido em 12/12/2013; aceito em 25/05/2104.
_____________________________________________________________________
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar o peso da carteira assinada na determinação dos
salários dos empregados domésticos. Nesse contexto este artigo vai estimar uma regressão, utilizando o
modelo log linear de Mincer, que apresente um conjunto de variáveis com características observáveis tais
como: região, sexo, idade, raça, grau de alfabetização, carga horaria, numero de domicílios, recebimento
de auxílios, experiência, sindicatos e anos de estudo.
Palavras-chave: Empregadas domésticas; Salários; Carteira Assinada.
Abstract: This article aims to analyze the weight of the formal contract in determining the wages of
domestic workers. In this context this paper will estimate a regression using the log linear Mincer model,
which presents a set of variables with observable characteristics such as region, gender, age, race, literacy
levels, workload, number of households receiving aid, expertise, and years of education unions.
Words key: Maids; Wages; Formal.
Introdução
A lei nº 5.859, de 1972, define o trabalhador doméstico como aquele que presta
serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família no
âmbito residencial. Nesse contexto, segundo Marinho (2007) pode ser considerado
1
Curso de Ciências
[email protected]
Econômicas.
Universidade
Federal
de
Mato
Grosso
do
Sul
–
UFMS.
E-mail:
2
Esse artigo foi compilado sob orientação do professor doutor Wladimir Machado Teixeira, professor adjunto da UFMS,
unidade X, curso de Ciências Econômicas.
22
empregado doméstico cozinheiro (a), governanta, babá, lavadeira, faxineiro (a), vigia,
motorista particular, jardineiro (a), acompanhante de idosos (as), entre outras. A
categoria de empregados domésticos pode ser dividida em diarista, quinzenalista e
mensalista. A formalização ou não dessa categoria de trabalhadores tem sido motivo de
muitas discussões.
De acordo com uma reportagem do jornal hoje (SAIBA..., 2012), nas capitais
brasileiras as diaristas costumam cobrar 80 reais por dia de trabalho. Isso significa que
se ela trabalhar três vezes por semana ela vai ganhar 960 reais mensais brutos. Uma
controvérsia nesse sentido é o grande esforço por parte do governo para incentivar a
formalização dessa classe para tentar melhorar os baixos salários. Isso mostra como a
questão dos rendimentos dos empregados domésticos no Brasil é complexa. A pergunta
central desse trabalho é: os empregados domésticos com carteira assinada auferem os
maiores salários?
Mesmo o preço médio por dia sendo de R$ 80 a maioria dos empregados
domésticos sem carteira assinada tem rendimentos mensais abaixo do salário mínimo de
2011. Segundo os dados da Pesquisa por Amostra de Domicílios (PNAD) 2011 mais de
63% dos empregados domésticos informais tem salário mensal menor que R$ 545,
desses aproximadamente 37% ganham menos de 300 reais por mês. Portanto os dados
mostram que apesar de termos alguns trabalhadores que prestam serviços informalmente
e tem rendimentos muito maiores que o salário mínimo, esse privilegio é para poucos.
Além disso, é muito difícil fiscalizar um domicilio quando se trata de questões salariais.
Segundo Noronha (2003) a carteira assinada significa uma carteira de identidade
que prova que o trabalhador é confiável ou capaz de permanecer por muitos anos no
mesmo emprego, é compromisso moral do empregador de seguir a legislação do
trabalho. Para Tavares (2004) a informalidade reduz o quadro de associados nos
sindicatos enfraquecendo nesse sentido, o poder de reivindicação dos trabalhadores,
consequentemente os sindicatos se associam ao capital acreditando com isso estarem
defendendo a sobrevivência do trabalhador. Esses argumentos mostram a importância
da carteira assinada na determinação dos salários dos trabalhadores.
Em 1943, na CLT, mais precisamente no seu art. 7º, ―a‖, praticamente excluiu os
preceitos contidos na referida Carta Social aos empregados domésticos, somente se
resolvendo sua situação com a edição da Lei nº 5.859/72 que foi regulamentada pelo
Decreto nº 71.885/73. Desde o momento em que o emprego doméstica se tornaram
23
assalariado e excluído da CLT os empregados domésticos tiveram que se contentar com
baixos salários.
A exclusão da CLT mostra o quanto esse trabalho é desvalorizado. O preço dessa
mão de obra passa a ser regulamentado pala lei da oferta e demanda por trabalho dos
clássicos. Melo (2002) identifica o trabalho das empregadas domésticas como o pior
posto de trabalho, e por ser, é tido como lugar de mulher. Para Souza (2002), este
serviço não é um meio de ascensão social. E Ferreira (2003 apud FEDIUK, [2003])
coloca a herança escravocrata como responsável pela desvalorização do trabalho
doméstico.
Nesse trabalho mostraremos que a carteira assinada é uma variável
importantíssima para garantir melhores rendimentos da categoria. Os dados da PNAD
2011 mostram que os trabalhadores domésticos com carteira assinada tem salário médio
de 682, 09 reais mensais enquanto que aqueles que trabalham na informalidade recebem
em media 419.28 reais mensais no Brasil. Além da careira assinada outras variáveis são
importantes na equação dos salários dos empregados domésticos que são as seguintes:
região, sexo, idade, raça, grau de alfabetização, carga horaria, número de domicílios,
recebimento de auxílios, experiência, sindicatos e anos de estudo.
O presente trabalho tem como objetivo analisar o peso da carteira assinada na
determinação dos salários dos empregados domésticos. Para tanto usaremos o banco de
dados da PNAD 2011, como base teórica a teoria dos salários e a metodologia do
Mincer. Com essa finalidade esse artigo, além dessa introdução e das considerações
finais, foi subdividido da seguinte forma: objetivos, justificativa, hipóteses, evolução da
legislação dos empregados domésticos, fundamentação teórica, procedimentos
metodológicos, análise dos dados e resultados da regressão. Na fundamentação teórica
abordaremos temas relacionados com a teoria dos salários. Nos procedimentos
metodológicos trataremos do modelo de Mincer.
Evolução da legislação dos empregados domésticos
O Brasil tem 7,2 milhões de empregados domésticos, sendo 6,7 milhões de
mulheres e 504 mil homens, e aparece como o país com a maior população de
trabalhadores domésticos do mundo em números absolutos, segundo estudo feito em
117 países e divulgado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) em 2012.
Apesar disso só no final de 2013 e inicio de 2013 que parece que o estado brasileiro
24
resolveu regulamentar algumas leis para equiparar os direitos dos empregados
domésticos aos demais trabalhadores.
Ao longo da história a legislação brasileira com relação ao trabalho doméstico
teve seus avanços.
O empregado doméstico não tinha uma legislação própria e assim sendo
aplicava-se a ele o que se referia aos trabalhadores previstos no Código Civil
de 1916. Após a entrada em vigor de decretos, que foram transformados em
lei, o empregado doméstico passou a ser equiparado ao trabalhador urbano,
mas com a CLT, passou o empregado doméstico a ficar excluído da
legislação, ficando então desprovido de proteção (NOGUEIRA, 2009, p. 1).
O Código Civil de 1916 que regulamentou muitos contratos trabalhistas,
inclusive os domésticos até o surgimento da Consolidação das Leis Trabalhistas.
―Em 1941 baixou-se um decreto que definia os trabalhadores domésticos e
trazia ser: ‗todos aqueles que de qualquer profissão, mediante remuneração,
prestarem serviços em residências particulares ou em beneficio destas‘.
Ocorre que esse decreto não foi regulamentado, pois um artigo do referido
decreto estabelecia que a aplicação de um regulamento devesse ser expedida
pelo Ministério do Trabalho e Ministério da Justiça, o que não foi feito‖
(PAMPLONA FILHO, 1997, p. 24).
Após serem excluídos na emergência da Consolidação das Leis do Trabalho
(CLT Decreto Lei 5.442 de 1º de maio de 1943) que surge para garantir
direitos trabalhistas para os trabalhadores, o trabalho doméstico só passa a ser
regulamentado em 1972 com a edição da Lei 5. 859/72 regulamentada pelo
Decreto nº 71. 885/73 que o define e garante direitos trabalhistas, sociais e
previdenciários com o tratamento diferenciado das demais categorias
profissionais (CRUZ, 2012, p. 20).
A Lei n° 5. 859 estabeleceu um prazo de 90 dias para sua regulamentação, com
sua entrada em vigor 30 dias após a publicação do seu regulamento. Essa
regulamentação especificou os principais direitos para a profissão tais como:
1- Férias de 20 dias úteis a cada doze meses de trabalho prestados;
2- Benefícios assegurados pela lei orgânica da Previdência Social – aposentadoria,
acesso à saúde, auxílios previdenciários;
3- Pagamento de 8%, tanto para o empregado quanto para empregador com vistas a
custear os benefícios da previdência social;
4-
Multas por não cumprimento desse pagamento, variando entre 10% e 50% do
valor do débito.
Em março de 1973, editou-se o Decreto Lei Nº 71.885, que além de manter
os principais direitos estabelecidos na lei de 1972, detalhou a forma do
contrato de trabalho e determinou que as divergências entre empregado
doméstico e empregador, relativas às férias e anotação na Carteira do
25
Trabalho e Previdência Social, ressalvadas as competências da Justiça do
Trabalho, seriam dirimidas pela Delegacia Regional do Trabalho. O Decreto
nº 92.180 de 1985 instituiu o vale-transporte e garantiu para os trabalhadores
domésticos, os mesmo direitos dos demais trabalhadores (BRASIL, 2006, p.
4).
A Constituição Federal de 1988 houve algumas reformulações nas antigas leis e
as trabalhadoras acessaram alguns direitos como, por exemplo, salário mínimo e licença
maternidade de 120 dias.
A peculiaridade de ser uma atividade realizada no domicílio das famílias
coloca algumas dificuldades. De um lado impede a fiscalização de
contratação e de jornadas; por outro, o pouco contato que estas mulheres
mantêm entre si dificulta a formação da noção de classe trabalhadora e a ação
do sindicato. (BRASIL, 2006, p. 2).
Em 2001 a Lei 10.208 foi uma tentativa de garantir ao empregado doméstico
direitos já consagrados para os demais trabalhadores. Porém, o fato de o acesso ao
FGTS ser opcional, não incentivava os empregadores a inscrever o trabalhador
doméstico no FGTS. Além disso, essa legislação garante que só tem acesso ao segurodesemprego quem estiver inscrito no FGTS, sendo assim, mesmo entre os trabalhadores
com carteira assinada, a não inscrição no Fundo de Garantia é uma regra, não uma
exceção.
Em 2006, a Lei 11.324 acrescentou a lei da doméstica alguns artigos reforçando
a lei 5.859 de 11 de dezembro de 1972. Nesse contexto o Governo Federal editou a
Medida Provisória n° 284, que altera a legislação do imposto de renda das pessoas
físicas, introduzindo a possibilidade de deduzir a contribuição patronal paga à
Previdência Social pelo empregador doméstico incidente sobre o valor da remuneração
do empregado. O objetivo desta medida é ampliar o registro em carteira entre os
empregados domésticos, garantindo direitos a estes trabalhadores. Esta dedução:
a) Está limitada a apenas 1 empregado doméstico por declaração, inclusive no caso
da declaração em conjunto;
b) Está limitada ao valor recolhido no ano-calendário a que se referir à declaração;
c) Refere-se ao contribuinte que utilizar o modelo completo de Declaração de
Ajuste Anual;
d) A dedução no imposto de renda não poderá exceder ao valor da contribuição
patronal calculada sobre um salário mínimo mensal.
A limitação desta dedução está no fato de que mesmo que o empregador pague
ao empregado doméstico mais de um salário mínimo, não poderá ter maior dedução.
26
Assim, essa medida poderia induzir a sob-remuneração, de forma que o trabalhador
receberia oficialmente um salário mínimo e, por fora, outra quantia complementar.
Em 2013 foi promulgada a PEC das Domésticas, que iguala os direitos dos
trabalhadores domésticos aos dos demais trabalhadores urbanos e rurais. O quadro
mostra os avanços da PEC 66/2012 em relação à legislação anterior (BRASIL, 2013).
Determinantes dos salários, uma revisão bibliográfica
A questão da determinação da renda dos trabalhadores desafiou economistas de
várias gerações. A abordagem desse tema é importante para identificar fatores que
determinam o nível de emprego com as suas repercussões na oferta e demanda por bens
e serviços. Em Diferentes modelos macroeconômicos, de épocas distintas, a teoria dos
salários
significa
uma
hipótese
decisiva
no
entendimento
de
agregados
macroeconômicos na concepção de politicas econômicas.
De acordo com Dobb (1977, p. 95):
[...] a necessidade de elaborar as teorias dos salários frequentemente elevados
níveis de abstração do mundo real, esboçando apenas os contornos gerais das
características mais obvias na base de um conhecimento genérico, ou na base
de deduções sobre a forma geral que tem as coisas.
Completando com Campos (1991, p. 131) ―[...] limita a sua aplicação em lugares
diferentes ou a períodos posteriores a mudanças de situação e constelação de forças
vigentes.‖
Segundo Campos (1991, p. 132) uma revisão histórica mostra que todas as
escolas de pensamento econômico possuem sua própria interpretação sobre a natureza
das leis de determinação dos salários e todas se complementam no que tange ao corpo
teórico. Cada grupo de pensadores tem um peso nas contribuições acerca do assunto
apesar das controvérsias e diferentes interpretações causadas pela distinção temporária e
contextual.
Nesse contexto pode-se afirmar que as questões que preocuparam os
economistas e pensadores com relação à teoria dos salários não foram sempre as
mesmas. Como argumentou Dunlop (1957), a teoria dos salários vigente em
determinado período deve ser interpretado como produto de vários fatores dentre este
27
podemos citar: a teoria econômica dominante, instituições fixadoras de salários, debates
sobre questões politicas e estagio de desenvolvimento econômico.
Essas considerações iniciais sugerem a necessidade de divisão dessa revisão
bibliográfica, no que tange as teorias de determinação dos salários, em três grandes
períodos divididos por Campos (1991, p. 132). O primeiro é o período clássico
predominante no século XIII. O segundo é o neoclássico que se estendeu até a década
de 30 pouco depois da grande depressão. E o terceiro é o período pós-grande depressão.
Quando as estruturas produtivas de um país se encontram em estágios iniciais a
análise clássica continua tendo relevância para os segmentos de mercado que estão
incorporando mão-de-obra não qualificada. Na medida em que se caminha para
seguimentos da população onde o nível de renda e de ativos das famílias permite aos
trabalhadores a escolha entre trabalhar ou não trabalhar, onde existe alguma
flexibilidade quanto ao volume de horas oferecidas reconhece-se que a análise
neoclássica é útil (MACEDO, 1982).
Contextualização da equação de rendimentos, equação de salários segundo sexo,
raça, educação, setor de atividade, ocupação, região.
Por que as pessoas são remuneradas de forma diferente? Segundo Fernandes
(2002) os motivos dessas desigualdades constituem preocupação antiga de vários
economistas, desde os clássicos até os mais atuais. Quanto menor o período de
treinamento, portanto, que qualquer trabalho exige menor é o custo de produção do
trabalhador e menor o preço de seu trabalho, seus salários. (MACEDO, 1982, p. 73). De
acordo com Mill (1996) de modo geral, as pessoas com salários menores estão alocadas
em postos de trabalho que possuem, também, piores condições de trabalho. Nesse
contexto ele enfatiza a existência de barreiras à entrada nas ocupações de altos salários.
As fontes da desigualdade podem estar associadas às diferenças dos
trabalhadores em relação às suas características produtivas e preferências, e/ou às
imperfeições de mercado que impedem a mobilidade dos trabalhadores dos postos de
trabalho com baixos salários para aqueles com altos salários (FERNANDES, 2002).
―[...] como prêmios salariais crescentes de acordo com o nível educacional; por
outro, certos fatos não destacados pela literatura vêm à tona, como o significativo
impacto da experiência no trabalho.‖ (FERNANDES; CORSEUIL, 2007, p.28). As
fontes de desigualdade salarial podem estar associadas às diferenças dos trabalhadores
28
em relação às suas características produtivas e preferências, e/ou às imperfeições de
mercado que impedem a mobilidade dos trabalhadores dos postos de trabalho com
baixos salários para aqueles com altos salários (FERNANDES, 2002). Teoricamente
esse assunto gera controvérsias, pois depende da visão e o foco de cada escola que o
analisa, sendo clássicos neoclássicos ou institucionalistas.
No Brasil o trabalho de Langoni (1973) foi o pioneiro sobre esse tema. Nesse
trabalho são investigadas as relações entre os diferenciais salarias e nível educacional,
idade, gênero, setor de atividade e região de residência. Ele desenvolve a sua
investigação
considerando
as
disparidades
educacionais
existentes
entre
os
trabalhadores como determinantes para esses diferenciais. Senna (1976) encontrou um
retorno de aproximadamente 14% para um ano adicional de escolaridade no Brasil.
Anuatti Neto e Fernandes (2000) também avaliam o diferencial de salário
associado a etapas do ciclo educacional e comparam os resultados alcançados por
trabalhadores que frequentaram o ensino regular com os alcançados por trabalhadores
que cursaram o supletivo. Os resultados associados ao supletivo são inferiores, no caso
do segundo grau, e semelhantes aos do ensino regular no caso do primeiro grau (sem
padronizar pela quantidade de ano estudada). (COELHO; CORSEUIL, 2002).
Campante et al (2004) analisou as desigualdades salariais entre raças no mercado
de trabalho brasileiro de 1996 a 2000, usando dados da PNAD, do IBGE. Nesse
contexto ele chegou a conclusão que os homens brancos tem em media 2 anos a mais de
estudo do que os negros e pardos portanto a população branca tem maiores rendimentos,
dada a relação positiva entre o nível educacional e os salários.
Dados do IBGE 2011 mostram que Com salário médio de R$ 4.135,06, o pessoal
assalariado de nível superior, no Brasil, apresenta-se 219.4% acima do pessoal sem
faculdade, cuja a medica salarial é de R$ 1.294,70 em 2011. Os dados foram coletados
do Cadastro Central de Empresas (CEMPRE) estes mostram que entidades empresariais
pagam salários mensais mais baixos (em média, R$ 1.592,19), apesar de absorver a
maior parte da mão de obra. A administração pública pagou mais, cerca de R$ 2.478,21,
e entidades sem fins lucrativos pagaram uma media de salários de 1.691,09.
Quanto ao sexo dados do IBGE (2013) mostram que o aumento do número de
mulheres, entre 2010 e 2011, foi superior ao de homens, 5,7% e 4,7% respectivamente,
mas os homens continuam a predominar, numericamente (57,7% contra 42,3%) e
continuam a ganhar mais: em media, R$ 1.962,97, 25,7% a mais do que a media
recebida pelas mulheres (1.561,12). As mulheres receberam o equivalente a 79,5% dos
29
salários dos homens, porém seus salários médios tiveram um aumento real ligeiramente
superior a 2,5% contra 2,4%.
As ocupações com maiores ganhos salariais entre 2010 e 2012, predominam
aquelas típicas do setor público, além de médicos, algumas especializações de
engenharia e arquitetura, pesquisadores em engenharia e em ciências da agricultura e
algumas especializações de professores do ensino superior.Para o nível técnico, as
ocupações que registraram maiores ganhos de remuneração foram os técnicos em
operação de câmara fotográfica, de cinema e de televisão (com aumento real de 51,1%
nos salários), os técnicos de inspeção, fiscalização e coordenação administrativa
(aumento de 41,6%) e os técnicos em laboratório (29,3%). (IPEA,2013).
Para determinar os rendimentos mensais por setor tomamos como exemplo os
dados de mercado de trabalho de 2011 do estado de são Paulo, centro econômico e
financeiro do país, usando os dados da FIESP. O setor industrial tem a maior media de
salários, R$ 2. 287, seguido dos serviços da administração pública, com R$ 2.121,
depois construção civil, com R$ 1.758, o comercio e a agropecuária fecham essa
classificação, com R$ 1.455 e R$ 1.126, respectivamente. Pra completar os dados do
IBGE mostram que entre 2011 e 2013 os maiores salários médios mensais foram pagos
por Eletricidade e gás (R$ 5.567,73), seguido por Atividades financeiras, de seguros e
serviços relacionados (R$ 4.213,65), enquanto os menores foram pagos por Alojamento
e alimentação (R$ 858,92) e Atividades administrativas e serviços complementares (R$
1.110,16).
Com relação à região, segundo o IBGE, observa-se que municípios das capitais
localizados nas Regiões Sul e Sudeste, além do Distrito Federal, apresentaram os
maiores valores reais, tanto em 2008 como em 2011, enquanto os localizados nas
Regiões Norte e Nordeste do País apresentaram os menores valores. No caso dos
empregados a região sul apresenta rendimentos médios maiores (R$ 591,65), seguida
das regiões, Sudeste, centro-oeste, norte e nordeste com uma media salarial de: R$
577,10; R$ 529,60; R$ 421,70 e 367,55 respectivamente.
Revisão do Modelo Mincer
Em 1958, Jacob Mincer desenvolveu uma pioneira abordagem importante para
entender como os ganhos são distribuídos por toda a população. Segundo Polachek
(2007) durante este trabalho ele, assim como seus alunos e colegas estenderam o
30
modelo original do capital humano, chegando a conclusões importantes sobre toda uma
série de observações relativas ao bem-estar humano.
Esta linha de pesquisa explicou por que a educação aumenta os ganhos, por que
os ganhos aumentam a um ritmo decrescente ao longo da vida, por que o crescimento
dos rendimentos é menor para aqueles antecipando a participação da força de trabalho
intermitente, por que os homens ganham mais que as mulheres, por que os brancos
ganham mais do que os negros, por que distribuições diferem por gênero, por que a
mobilidade profissional e geográfica predomina entre os jovens, e por muitos outros
fenômenos do mercado de trabalho ocorrer.
Mincer (1974) foi o primeiro a obter uma formulação empírica de rendimentos
sobre o ciclo de vida. Na sua formulação, em qualquer ponto (t) no tempo de vida de um
indivíduo, observaram ganhos [o que equivale a ganhos potenciaisde WK (t) menos
investimento de capital humano (1-s (t)), K (t)] pode ser descrita como uma função
côncava de sua experiência no mercado de trabalho. Supondo-se que a fase de instrução
do investimento dura S anos e que a capacitação da mão de obra diminui linearmente ao
longo do ciclo de vida, a Log-salário é uma função quadrática de experiência no
mercado de trabalho:
i (t) =
+
+
+
+
(2)
Onde Y (t) = WK (t) - s (t), K (t). Aqui
salário inicial,
está relacionada com a capacidade
é a taxa de retorno da educação (assumindo todos os custos de
escolaridade são os custos de oportunidade) e
e
estão relacionados tanto à
quantidade e ao retorno financeiro para a qualificação. A equação (2) é muitas vezes
referida apenas como a função de ganhos Mincer. Derivação de Mincer é engenhosa,
mas ainda mais importante é a interpretação dos parâmetros
,
e
. Ambos são
dados na secção seguinte.
Esse modelo apresenta as seguintes hipóteses segundo Moura ([201-],p. 7):
1Os agentes têm habilidades idênticas e oportunidades iguais de serem
contratados para qualquer ocupação;
2Ocupações diferem na soma de educação requerida, que leva tempo,
postergando os rendimentos individuais;
3Assim, assume-se que a idade de aposentadoria é fixada, ou seja, o
tempo na força de trabalho se reduz para cada ano adicional de treinamento;
4Não existem imperfeições no mercado de crédito;
5Não existe incerteza.
31
Resultados da regressão
As tabelas abaixo de regressão log linear, de Mincer, mostram 11841
observações, a maioria das variáveis explicativas é conjuntamente importante para
explicar a variável porque o seu valor foi significativamente superior. O modelo
encontra-se estatisticamente bem ajustado, porque pela hipótese é estatisticamente igual
à zero. O t individual das variáveis explicativas é significativo por isso o modelo pode
ser aplicado a realidade. Pelo P>|t| grande parte das variáveis explicativas apresenta
significância.
A equação dos salários é dada por:
Lw= 4.047622 + 0.3464214 carteira1 – 0.254146 sindicato1 + 0.0282861educa +
0.047755 idade – 0.0004576 idade² + 0.0044967 exper + 0.0764346 umtrab +
0.1882256 maisumdom + 0.015388cargaho + 0.0445061Moradia + 0.3017893transpor
– 0.2477497 femenino + ε
Na tabela 1 a regressão foi estimada considerando-se as principais variáveis que
determinam o salário dos empregados domésticos. Tais variáveis são: carteira assinada,
sindicato, educação, idade, idade², experiência, quantidade de trabalhos, quantidade de
domicílios, grau de alfabetização, o recebimento de auxílios e o sexo. O coeficiente com
carteira assinada apresenta uma correlação positiva em relação ao lw (logaritmo natural
dos salários). Nesse contexto trabalhar com carteira assinada significa rendimentos
maiores para os empregados domésticos. Nesse contexto pode-se afirmar que o efeito
carteira é de 0.3464214, ou seja, a contribuição da carteira assinada para cada 100 reais
de salários é em torno de 34 reais. Pelo efeito marginal um aumento de 100 reais no
salário dos empregados domésticos faz com que os empregados com carteira assinada
ganhem em torno de 40 reais a mais que os trabalhadores informais.
O coeficiente sindicato apresenta uma correlação negativa com o a variável
dependente. Isso significa que os trabalhadores filiados a sindicatos nessa categoria
estão em uma situação tão desfavorável e buscam nos mesmos uma forma de melhorar
os seus rendimentos. Isso mostra também a fraqueza e a vulnerabilidade dos sindicatos
dos empregados domésticos. Isso comprova a tese de Tavares (2004) que destaca a
informalidade como redutorado quadro de associados nos sindicatos enfraquecendo
32
nesse sentido, o poder de reivindicação dos trabalhadores, consequentemente os
sindicatos se associam ao capital acreditando com isso estarem defendendo a
sobrevivência do trabalhador.
A variável educação apresenta uma correlação positiva, porém o seu coeficiente
(0.0282861) (tabela 1) é menor que o coeficiente do grau de alfabetização (0.2899386)
(tabela 2). Isso mostra os retornos que para os empregados domésticos os retornos da
educação não são tão importantes se comparados com o grau de alfabetização. Nesse
contexto a categoria não exige um grande investimento em educação para auferir
salários maiores basta se alfabetizar para ter um poder de barganha significativo na
renda. A idade também apresenta uma correlação positiva com a renda. Quando
elevamos a idade ao quadrado a correlação fica negativa. Mostrando que o aumento dos
anos de vida eleva o salário a níveis decrescentes.
Os coeficientes do auxilio transporte e auxilio moradia apresentam uma
correlação positiva com a variável dependente. Mostrando assim que não há descontos
dos patrões quando estes disponibilizam esses benefícios aos seus empregados, uma
obediência à lei da lei 5859 de 1972. As desigualdades de sexo são muito grandes entre
os empregados domésticos. Enquanto o coeficiente homem é positivo mostrando a
correlação direta com a variável renda, o coeficiente das mulheres apresenta uma
correlação negativa.
Outra variável que merece destaque na tabela 1 é representada pelo sexo
feminino. Apesar de representarem mais de 90% do total dos empregados domésticos as
mulheres possuem menores salários em relação aos homens. O efeito feminino é de –
0.2477497, ou seja, a cada 100 reais de salários o fato de ser mulher faz com que o
salário reduza mais de 24 reais. Pelo efeito marginal a cada 100 reais de aumento dos
salários das empregadas domésticas o fato de ser mulher faz com que elas ganhem 28,11
reais a menos em relação aos homens.
Tabela 1 - log linear dos salários (principais variáveis)
lw
Coef.
RobustStd. Err. t
P>|t|
[95% Conf Interval]
Carteira1
.3464214
.009792
35.38
0.000 .3272275
.3656154
Sindicato
-. 254146
.0376471
-6.75
0.000 -. 3279405
-. 1803515
Educa
.0282861
.0014048
20.13
0.000 .0255324
.0310398
33
Idade
.047755
.0025067
Idade2
-. 0004576 .000031
-14.79 0.000 -. 0005183
-. 0003969
Exper
.0044967
.0008727
5.15
0.000 .0027861
.0062072
Umtrab
.0764346
.0374465
2.04
0.041 .0030334
.1498359
Maisumdom .1882256
.0118224
15.92
0.000 .1650518
.2113994
Cargahor
.0153883
.0004212
36.54
0.000 .0145627
.0162139
Moradia
.0445061
.018949
2.35
0.019 .0073628
.0816493
Aliment
-. 013542
.0103344
-1.31
0.190 -. 033799
.0067151
Transpor
.3017893
.0100763
29.95
0.000 .282038
.3215406
Feminino
-. 2477497 .0196101
-12.63 0.000 -. 2861887
-. 2093107
_cons
4.047622
62.32
4.174927
.064946
19.05
0.000 .0428414
0.000 3.920318
.0526685
Fonte: IBGE 2011, compilado pelo autor.
Quando incluímos na nossa regressão as raças como mostra a tabela 2, podemos
tirar algumas conclusões. Em primeiro lugar vale destacar que a variável raça branca
será usada como um comparativo em relação às outras raças. Nesse contexto observa-se
que somente as dammies das raças negras e parda deram significância estatística. A raça
amarela e indígena não tem significância estatística devido ao número de observações
dado o tamanho da amostra.
As dammies pardo e negro tem uma relação negativa com o logaritmo natural
dos salários. Isso mostra que o fator origem racial ainda é um fator discriminatório no
mercado de trabalho doméstico brasileiro. A raça parda está em uma situação pior uma
vez que o seu coeficiente é de (- 0.1225842) contra (- 0.0913969) da raça negra. Isso
mostra ainda que um ao mento de 100 reais nos salários dos empregados doméstico os
trabalhadores pardos ganham cerca de 11 reais a menos em relação à raça branca.
Tabela 2 - log linear incluindo as Raças (exceto a raça branca)
lw
Coef.
RobustStd. Err. t
P>|t|
[95% Conf Interval]
Carteira1
.3549807
.010026
35.41
0.000 .3353282
.3746333
Sindicato1
-. 2368578 .039353
-6.02
0.000 -. 3139962
-. 1597195
34
Idade
.0443136
.0026618
16.65
0.000 .0390961
.0495312
Idade2
-. 000437
.000033
-13.24 0.000 -. 0005018
-. 0003723
Exper
.0046416
.000881
5.27
0.000 .0029147
.0063686
Umtrab
.0766763
.037351
2.05
0.000 .0034623
.1498903
Maisumdom .1872123
.011873
15.77
0.000 .1639393
.2104854
Cargahor
.0160299
.0004265
37.58
0.000 .0151939
.0168659
Alfabet
.2899386
.0213529
13.58
0.000 .2480833
.3317938
Moradia
.0886167
.0189683
4.67
0.000 .0514356
.1257977
Aliment
-. 0284662 .010327
-2.76
0.000 -. 0487088
-. 0082237
Transpor
.3037699
29.82
0.000 .2838036
.3237362
Indígena
-. 0390485 .0682481
-0.57
0.567 -. 1728259
.0947289
Amarela
-. 1491271 .0928657
-1.61
0.108 -. 3311592
.032905
Negro
-. 0913969 .0159314
-5.74
0.000 -. 1226251
-. 0601687
Pardo
-. 1225842 .0108623
-11.29
0.000 -. 1438761
-. 1012923
_cons
3.903184
58.12
0.000 3.771543
4.034825
.010186
.0671581
Fonte: IBGE 2011, compilado pelo autor.
Na tabela 3 as regiões norte e nordeste apresentam uma ralação negativa com
logaritmo natural dos salários enquanto o sul apresenta uma relação positiva. Na
situação mais difícil se encontra a região nordeste com o coeficiente de -0.3498838 e
efeito marginal de -0,29523, ou seja, a cada 100 reais no aumento dos salários dos
trabalhadores domésticos os empregados que prestam serviços na região nordeste
recebem cerca de 30 reais a menos que os empregados domésticos da região sudeste.
Tabela 3 - Log linear incluindo regiões (exceto o sudeste)
lw
Coef.
RobustStd. Err. t
P>|t|
[95% Conf Interval]
Carteira1
.3116953
.0100587
30.99
0.000 .2919786
.3314121
Sindicato1
-. 174743
.0364171
-4.80
0.000 -. 2461266
-. 1033594
35
Idade
.0434173
.0027735
Idade2
-. 0004466 .0000348
-12.84 0.000 -. 0005147
-. 0003784
Exper
.005062
.0008626
5.87
0.000 .0033711
.0067529
Umtrab
.0788203
.0353265
2.23
0.026 .0095745
.148066
Maisumdom .1635256
.0115055
14.21
0.000 .1409729
.1860783
Cargahor
.0167652
.0004248
39.46
0.000 .0159325
.0175979
Alfabet
.2343169
.0207647
11.28
0.000 .1936146
.2750192
Moradia
.0936949
.018613
5.03
0.000 .0572103
.1301795
Aliment
-. 0343917 .0099492
-3.46
0.001 -. 0538939
-. 0148896
Transpor
.284841
.0097295
29.28
0.000 .2657696
.3039123
Norte
-. 1135811
.0152106
-7.47
0.000 -. 1433963
-. 0837659
Nordeste
-. 3498838 .0136244
-25.68 0.000 -. 3765898
-. 3231778
Sul
034659
2.43
0.015 .0066714
.0626467
Centro oeste
-. 0035626 .0152104
-0.23
0.815 -. 0333775
.0262523
_cons
4.029453
60.29
0.000 3.898449
4.160456
.0142782
.0668327
15.65
0.000 .0379807
.0488539
Fonte: IBGE 2011, compilado pelo autor.
Nesse contexto observa-se que o efeito sudeste tem uma relação positiva com os
rendimentos dos empregados domésticos. a região sudeste contribui com cerca de 13%
dos rendimentos na equação dos salários dos trabalhadores.
Considerações finais
O trabalho doméstico é a profissão mais desvalorizada do brasil. A carteira
assinada nesse contexto é uma variável muito importante para garantir ao menos que
esses trabalhadores recebam remunerações pouco acima do salário mínimo. O grau de
vulnerabilidade dessa classe de trabalhadores é tão grande que o governo criou em 2006
a lei 11.324, que através da medida provisória n° 284, que altera a legislação do imposto
de renda das pessoas físicas, introduzindo a possibilidade de deduzir a contribuição
patronal paga à Previdência Social pelo empregador doméstico incidente sobre o valor
36
da remuneração do empregado. O objetivo dessa medida era ampliar o registro em
carteira entre esses trabalhadores.
Além do salário mínimo a carteira assinada garante também a integração à
previdência social, folga (aos domingos), férias anuais remuneradas, licença gestante,
licença paternidade e aviso prévio. 70,11% dos trabalhadores domésticos trabalhavam
sem carteira assinada em 2011. Cada variável aqui tem a sua correlação particular com a
variável dependente, renda, no entanto, a variável carteira significa maiores salários se
cruzada com qualquer uma das variáveis.
Tanto as mulheres quanto os homens tem maiores salários quando tem carteira
assinada. O mesmo acontece com trabalhadores: de diferentes regiões, de distintas
raças, diferente idades, diferentes grau de alfabetização, diferentes anos de estudo,
números de trabalho, diferentes cargas horarias etc. Existem trabalhadores domestico no
Brasil que trabalham se carteira assinada e auferem salários maiores que dos
trabalhadores formais, entretanto, os dados mostram que na media os empregados
domésticos formalizados tem maiores salários.
Os resultados da regressão mostram que dentro do mercado de trabalho
doméstico o país ainda precisa vencer alguns gargalos. O coeficiente das mulheres tem
uma relação negativa com os salários, o mesmo ocorre com negros, pardos, e as regiões
norte e nordeste. Isso mostra que as diferenças de gênero, raciais e regionais ainda
continuam fortes. Pessoas com essas características ainda possuem menor grau de
capacitação e consequentemente menores salários. Isso mostra que o passado colonial
ainda é um fator determinante dos rendimentos dos trabalhadores brasileiros.
O próprio trabalho doméstico é exemplo disso. Esse trabalho por muito tempo
exigiu baixa qualificação, e era executado por escravos por isso mesmo depois da
abolição continuou sendo menosprezado e não incluído na CLT quando o governo
decidiu formalizar o mercado de trabalho no país. Mesmo depois de muitos anos de
evolução da legislação dos trabalhadores domésticos eles continuam recebendo em
media menores salários em relação a trabalhadores de outras profissões.
A Pec 66/2012 os empregados domésticos passam a dispor dos mesmos direitos
dos outros trabalhadores brasileiros. Esse avanço deve ser comemorado e observado de
perto pelos futuros trabalhos acerca desse tema.
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TAVARES, M. A. Os fios (in) visíveis da produção capitalista: informalidade e precarização
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40
A ilusão da felicidade: autofagia, angústia e barbárie na sociedade de
hiperconsumo
The illusion of happiness: autophagy, anguish and barbarism in society
hyperconsumption
Wellington Fontes Menezes1
Recebido em 30/03/2014; aceito em 25/05/2014
_____________________________________________________________________________________
Resumo: Nunca na história das sociedades ocidentais foi possível produzir uma miríade de bens
materiais possibilitando a conquista de um elevado padrão de bem-estar. No entanto, com o
hiperconsumo, tudo se configura em mercadorias consumíveis, onde não existem limites na busca
frenética para a saciedade. Todavia, a possibilidade de chegar a mecanismos de satisfação pessoal nunca
se concretiza e os indivíduos convertem um possível advento da felicidade em ansiedade e angústia. A
―hipermodernidade‖ trás conseqüências deletérias para a constituição da sociedade e permite o
aprofundamento do fosso social que gera e amplifica a barbárie.
Palavras-chave: hiperconsumo; barbárie; hipermodernidade.
Abstract: Never in the history of Western societies was possible to produce a myriad of material goods
possible the achievement of a high standard of welfare. However, with the hyper, everything is configured
in consumable goods, where there are no limits in the frantic search for satiety. However, the possibility
of reaching mechanisms of personal satisfaction never materializes and individuals convert a possible
advent of happiness in anxiety and distress. The hypermodernity back deleterious consequences for the
constitution of society and allows deepening the social divide that generates and amplifies barbarism.
Keywords: hyperconsumption; barbarism; hypermodernity.
1. Introdução
A felicidade é uma ilusão? Quase invariavelmente a passagem de Ano Novo, ano
após ano, é sempre um espetáculo de mesmices. Uma miríade de promessas, ilusões
alimentadas e mais um bom número de pedidos irrealizáveis. Gilles Lipovetsky em, ―A
1
Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de Marília.
Professor da Faculdade Cesar Lattes/UNIESP, Itu/SP. Endereço institucional: R. Sorocaba, 936 - Vila Sta.
Terezinha, Itu/SP. Telefone institucional: (11) 4023-2746. E-mail: [email protected]
41
felicidade paradoxal‖ (2007), argumenta que nunca na história do mundo ocidentalizado
conseguiu obter tantas oportunidades e acessos a tal ―felicidade‖ como agora. No
entanto, paradoxalmente ainda continuamos infelizes.
A idéia de hipermodernidade está associada a dois pilares básicos
interdependentes, segundo Lipovetsky, o mercado liberal e a democracia burguesa. A
hipermodernidade transpõe o intrincado mundo da pós-modernidade fomentando
angustias adicionais para o ser humano. Por que não ser feliz na esfera da exuberância
material? A resposta poderá estar diretamente ligada à construção do fantástico mundo
do consumo de massa e suas frivolidades inerentes. A ―civilização do desejo‖
arquitetada pelas sociedades liberais na segunda metade do século XX, esclarece
Lipovetsky, marca o nascedouro de uma nova modernidade. Aparentemente pouca
coisa mudou, ―continuamos a nos mover na sociedade do supermercado e da
publicidade, do automóvel e da televisão‖, escreve Lipovetsky ressaltando o diferencial
que transformou as normas sociais, a ―revolução no consumo‖, o ―hiperconsumo‖ e sua
unidade hiperindividualista básica, o ―hiperconsumidor‖.
Do iogurte, passando pelos mais íntimos sentimentos até à política, o mundo foi
transformado através da esfera do consumo e do marketing. Consumimos de maneira
histriônica toda forma de suvenir que se pode (e o que não se poderia!) colocar entre
prateleiras e sobre o balcão: amor, orgasmo, medicamentos, cultura, ecologia, religião,
ideologias e ódios. Como sintetiza Lipovestky, uma nova fase do capitalismo, ―a
sociedade de hiperconsumo coincide com um estado da economia marcado pela
centralidade do consumidor‖ (LIPOVETSKY, 2007, p. 13). O consumo logo passa da
necessidade fundamental de garantiria básica da existência humana para a ansiedade
agonística e desesperada do hiperconsumidor.
Uma outra característica pertinente que alicerça nossa sociedade hipermoderna é
a amplo apelo ao ―descartável‖ ou ―redundante‖, e que pode ser conhecido como
―refugo‖. Assim Zygmunt Bauman (2005) analisa estas construções sociais ―líquidas‖
da pós-modernidade liberal e ocidentalizada. De sentimentos, telefones móveis a
indivíduos, o refugo é algo que incomoda os indivíduos e que a sociedade desejar
descartar de imediato. A autofagia pelo automatismo é reinante. O ―hoje‖ já passou e
queremos logo o ―amanhã‖. Como na velocidade dos ―cliques no mouse‖ na internet via
banda larga, a vida pós-moderna é na hipermodernidade um acontecimento imediatista.
Quantas pessoas já não ficaram tensas por meros segundos até abrir uma
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correspondência por correio eletrônico? Meros segundos que para elas soaram como um
jazigo eterno!
2. Relacionamentos como commodities
No hiperconsumo daqueles que anseiam por afetividade, o amor e o gozo são
igualmente fúteis e paradoxalmente com inúmeras possibilidades de conhecer ―outras
pessoas‖ na intricada cadeia de relacionamentos precários, autofágicos, evasivos e
redundante frivolidade. Nunca na história das sociedades ocorreram tantas
possibilidades das pessoas se conhecerem e, no entanto, a angústia, depressão e a
quantidade de relacionamentos liquefeitos, diluídos e descartados são crescentes. Os
relacionamentos líquidos se postulam como mercadorias, ou seja, se perfilam na esfera
de commodities do livre mercado. Entende-se aqui a angústia no sentido clássico
psicanalítico como forma de uma auto-proteção diante do desconhecido, inevitável ou
inesperado na busca de uma sobrevida física e mentalmente (EMANUEL, 2005). Erich
Fromm descreve que ―a experiência da separação desperta a ansiedade; é, de fato, a
fonte de toda ansiedade‖ (FROMM, 1966, p. 26). Do sexo de ontem já saciado perdeu a
graça em poucas horas é será trocado pela busca de outros genitais no dia seguinte. A
angústia cresce de maneira desmesurada na ânsia de obter o idílico ―par perfeito‖:
Se a angústia é o primeiro motor da análise e de seu progresso, é que em si
mesma ela é abertura para o enigma do interior, talvez mesmo para os abismos do
interior e, sem dúvida, mais radicalmente, porque é parte beneficiária daquilo que
constitui a interioridade (ANDRE, 2001, p. 104, grifo do autor).
O descarte da parceria é logo feito quando já foi preenchido o gozo imediato. Os
rótulos e os mitos da ―parceria ideal‖ são deflagrados desde os bares de hordas
pansexuais de lobos e lobas famintos na ―caçada‖ aos sítios pagos de relacionamentos
em meios eletrônicos. Desta maneira ―[...] numa sociedade de caçadores, a expectativa
do fim da caçada não é tentadora, mas apavorante – já que esse fim só pode chegar na
forma da derrota e a exclusão pessoais‖ (BAUMAN, 2007, p. 112). A ansiedade é
desencadeada pelo hiperconsumo de prazeres egocêntricos na multidão de gozos
possíveis. Quando ―os corpos são livres, a miséria sexual é persistente‖ (LIPOVETSKY,
2007, p. 17), o desejo nunca é saciado e o resultado dramático é a angústia. A respeito
desta questão, Alan Vanier destaca que:
43
A angústia tem com o nosso corpo a mais estreita vinculação, como nos é
mostrado pela etimologia (do latim angustia): designa um mal-estar psíquico,
mas também físico — sensação de aperto na região epigástrica, de bolo na
garganta, com palpitações, palidez, impressão de que as pernas vacilam,
dificuldade para respirar, em suma, a angústia afeta o corpo (VANIER, 2006, p.
286).
Consequentemente ocorre à depressão pelo vazio incomensurável e pela oferta
frívola de relacionamentos fúteis e, em seguida, logo à tona a decepção. Quando o amor
se reduz a um mero consumo de iogurtes light ou diet, o resultado é o eterno retorno ao
vazio existencial jamais saciado e que ronda os medos mais profundos dos seres
humanos em sociedade. É um eterno recriar de uma ingênua ilusão autofágica da
felicidade pela quantidade hiperconsumidora de parceiros. A falta é a característica
intrínseca do hiperconsumidor e busca manter-se vivo através da sobrevida de suas
ansiedades e desejo:
Embora a falta que marca o sujeito seja percebida por este como a
perda de algo essencial para a jouissance [gozo], é na verdade um
marco da subjetividade – isto é, como o sujeito é marcado por uma
falta, constantemente tenta recuperar o objeto que percebe como a
encarnação do prazer perdido e que pode preencher o vazio. O próprio
fato de o sujeito ser marcado pela falta é então a máquina que mantém
o desejo vivo (SALECL, 2005, p. 24).
Na análise pertinente de Fromm, ―numa cultura que prevalece a orientação
mercantil, e em que o sucesso material é o valor predominante, pouca razão há para a
surpresa no fato de seguirem as relações do amor humano os mesmos padrões de troca
que governam os mercados de utilidades e trabalho‖ (FROMM, 1966, p. 21).
3. Rumo ao hiperconsumo: do capitalismo “pesado” ao capitalismo “leve”
Zygmunt Bauman no seu trabalho ―Modernidade Líquida‖ (2001) faz um
pertinente estudo das transformações de nossa época e que passaria da ―solidez‖ de um
capitalismo ―pesado‖ para a fluidez de um capitalismo ―leve‖ que movimenta os
moinhos do hiperconsumo. As metáforas entre ―sólido‖ e ―líquido‖ são muito mais
profundas do que se aparenta, sendo possível criar uma distinção entre estes dois
elementos díspares.
No capitalismo ―pesado‖, o modo de produção é baseado no modelo fordista e
suas ramificações de uma racionalidade hierárquica e tecnoburocrática aprisionando o
trabalhador a uma ―gaiola de ferro‖ ao que tange tanto sua participação quanto seu
44
poder de decisão dentro do processo produtivo. Entretanto o capitalismo ―leve‖ possui
afeições bem diferenciadas na esteira do pós-fordismo com sua associação livre de mãode-obra sem grandes vínculos empregatícios e diluição de direitos trabalhistas
confinando o trabalhador a uma ―gaiola de hélio‖. A flexibilização e as múltiplas formas
de produção tornaram mais instáveis e ―fluídas‖ as relações de trabalho. O cerne
psicanalítico do capitalismo ―pesado‖ estaria ligado à depressão e o motor que
impulsionava era movido a petróleo. Enquanto que o capitalismo ―leve‖ estaria ligado a
uma angústia e conectado na velocidade instantânea das redes de conexões
computacionais.
A construção da intrincada rede de consumo é extremamente relevante. A
intrincada relação consumo e mercadoria vêm gradativamente criando conexões muito
mais orgânicas e nada triviais. No capitalismo ―pesado‖, o excesso é o mote do
consumo que era movido por uma necessidade de acumulação de bens, ou seja, uma
idéia de patrimonialismo. O mito da herança e da relação de sujeição às normas,
ocasionando uma ―prisão pelos objetos‖ mercantis. A anarquia da mercadoria, ou seja,
as transformações do objeto pela inovação é um registro fundamental do capitalismo
―leve‖. Lipovetsky (2007) ressalta que ―Marx e Schumpeter puseram em evidência o
fato de que o capitalismo era um sistema baseado na mudança dos métodos de
produção, na descoberta de novos objetos de consumo e de novos mercados‖. A
inovação cria um novo ―cosmo da hipermercadoria‖, ou seja, ocorre uma
―transubstanciação da mercadoria‖ onde não há fronteiras entre o real e o imaterial no
desenvolvimento de novos produtos dourados por maciças campanhas de marketing em
busca da sedução do consumidor. O mito da escolha do consumidor no universo de
milhares de opções mercantis possíveis do mesmo gênero acarreta uma agonia pelos
objetivos e a incerteza dos meios para ser realizado ou saciado sua necessidade como
ser humano:
Nas novas circunstâncias, o mais provável é que a maior parte da vida humana
e a maioria das vidas humanas consumam-se na agonia quanto à escolha de
objetivos, e não na procura dos meios para os fins, que não exigem tanta
reflexão. Ao contrário do seu antecessor, o capitalismo leve tende a ser
obcecado por valores (BAUMAN, 2001, p. 73).
A pressão e a limitação são inerentes do capitalismo ―pesado‖, calcado na
―solidez dos valores‖ uma era da informação enciclopédica sem reflexão e a castração e
o recalque que fomenta a libido e o desejo. A fluidez dos valores marcada pelo elemento
narcíseo egocêntrico constitui na sensação de liberdade e insaciedade efêmera no afã de
45
pseudo-emancipação na era da informação desprovido de conhecimento permeando o
capitalismo ―leve‖. Todavia, independente da modalidade conceitual do capitalismo,
ocorre o aprisionamento pelo desejo e a constituição do vazio na impossibilidade de
preencher a saciedade.
O excesso e a falta delimitam respectivamente as bordas do capitalismo
―pesado‖ e ―leve‖. O consumo do objeto e a incorporação seu elemento simbólico pelo
consumidor criam diferentes formas de identidade entre dos dois modelos capitalistas
aqui destacados. Na sua face ―pesada‖, as certezas eram trincadas e sem risco, a
identidade
representativa
foi
marcada
pela
―supercastração‖,
limitação
das
oportunidades e uma liberdade encarcerada (totalitarismos e similares), onde de alguma
maneira necessitava salvaguardar uma herança tradicionalista. A expectativa de
felicidade é sempre algo bem distante a ser ―encontrada‖ para o futuro. A face ―leve‖
capitalista imersa na ausência de certezas e plenitude dos riscos é delineada por uma
identidade abstrata, volátil e não-castradora do ―eu‖ onde a liberdade se torna refém da
vigília constante dos equipamentos da suposta segurança coletiva (os olhares atentos do
―Big Brother‖).
A busca frenética pela felicidade imposta pelo mercado e pelas
campanhas publicitárias preconiza o descarte dos momentos tão rápidos quanto à
transferência de uma mensagem em correio eletrônico, ou seja, a atualidade já virou
passado!
O consumo movido à ansiedade transforma a idéia de felicidade em mais um
objeto a ser desejo e adquirido. Para Bauman (2001), ―a infelicidade dos consumidores
deriva do excesso e não da falta de escolha‖. Enquanto o capitalismo ―pesado‖ utilizava
a terceira pessoa de singular, ―ele‖, o capitalismo ―leve‖ é norteado pela primeira pessoa
do singular ―eu‖. O desejo pelo consumo é despertado em ambos através do ―efeito
manada‖ impregnado no inconsciente coletivo. Todavia, a diferenciação entre o
―pesado‖, ou seja, o excesso, e o ―leve‖, falta, registra a diferença transformadora de
cada momento de constituição do capitalismo. A analogia com o copo d´água pode ser
interessante. No excesso, o copo com metade de água está cheio; já na falta, o mesmo
copo com metade de água estará vazio. A mobilização pelo consumo se configurando na
ansiedade pelo excesso ou pelo vazio não completa as necessidades do próprio ―eu‖ da
vida humana.
Na esfera da abundância das opções das mercadorias, o hiperconsumo se
estabelece via ―efeito manado‖ onde os desejos de propensão a consumir ficam
impregnados no que se pode estabelecer de ―inconsciente social‖ através das grandes e
46
milionárias campanhas de marketing nos mais diferentes segmentos de público e faixas
etárias dentro de uma sociedade. Salecl (2005) destaca uma passagem esclarecedora de
Walter Benjamin a respeito da padronização do consumo de massa:
A economia de mercado reforça a fantasmagoria da uniformidade que,
intoxicadora, evidencia ao mesmo tempo a figura central da aparência...
O preço faz a mercadoria idêntica a todas as outras mercadorias que
podem ser compradas pelo mesmo valor. A mercadoria se identifica...
não tanto e não somente como seus compradores mas com o seu preço
(BENJAMIN apud SALECL, 2005, p. 13).
A angústia pela ―liberdade de escolha‖ cria no hiperconsumidor uma sensação de
estar se ―reinventando a si mesmo‖ e escrevendo sua própria história de consumo
andando sobre seus próprios pés. ―Seja você mesmo!‖ é uma ordem nas campanhas
publicitárias procuram impregnar no inconsciente social. Na impossibilidade de
preencher o vazio imposto por uma sociedade da velocidade dos acontecimentos
imediatos, o ato de ―reinvenção de si‖ é uma maneira de recriar sua individualidade a
partir dos valores mercadológicos do consumo de massa. A necessidade de ―ser feliz‖
está no mesmo patamar da necessidade da troca de um aparelho de telefonia móvel,
carro esportivo ou na procura de um novo relacionamento. Como não é possível
estabelecer uma conexão entre reais necessidades e desejos, a ―reinvenção‖ é uma
forma de manter-se aderente a uma sociedade aonde é propalado o elogio ao descartável
e o efêmero.
4. A desterritorização do espaço público: diluição da autoridade e a falácia da
emancipação
O capitalismo ―pesado‖ foi marcado pela era do extremo autoritarismo que
culminou em duas grandes guerras mundiais. O peso das grandes autoridades,
professores e lideranças a serem seguidas e obedecidas quase automaticamente sobre os
destinos relativos à vida e morte das massas. O excesso é regido pelo grande pai
castrador movido pela exacerbação da linguagem da autoridade. A esteira da orfandade
política e metafísica de uma Alemanha arrasada pela guerra perdida, Adolf Hitler se
elevou diante do caos e foi à imagem mítica e emblemática desta liderança que
personificou desejos, angústias e esperanças do povo alemão. A respeito das relações
intestinais entre esclarecimento e poder é destacado por Theodor W. Adorno e Max
Horkheimer no célebre trabalho, ―Dialética do esclarecimento‖:
47
O mito converte-se em esclarecimento e a natureza em mera
objetividade. O preço que os homens pagam pelo aumento de seu
poder é a alienação daquilo sobre o que exercem o poder. O
esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se
comporta com os homens (ADORNO et al., 1985, p. 24).
A crise da autoridade pós-guerra culmina na ―leveza‖ do capitalismo fluído
emanando a era dos conselheiros. Os líderes máximos forma substituídos pelos
norteadores de caminhos na figura destes conselheiros que podem ser contratados ou
demitidos a bel-prazer do contratante. A crise de autoridade é sentida pela falta de
lideranças e substituída pela figura do conselheiro e que se contrapõem ao excesso da
fase anterior:
Tais pessoas ―por dentro‖, mesmo aquelas cujo conhecimento não foi posto
publicamente em dúvida, não são, no entanto, líderes, elas são, no máximo,
conselheiros – e uma diferença crucial entre líderes e conselheiros é que os
primeiros devem ser seguidos e os segundos precisam ser contratados e podem
ser demitidos. Os líderes demandam e esperam disciplina; os conselheiros
podem, na melhor das hipóteses, contar com a boa vontade do outro de ouvir e
prestar atenção (BAUMAN, 2001, p. 77, grifos do autor).
As grandes lideranças perfaziam a interface entre o ―bem individual‖ e o ―bem
de todos‖, ou seja, se postulam como reconhecidos mediadores entre as preocupações
privadas e públicas. Os conselheiros possuem um papel periférico na tomada de
decisões e ―cuidam de nunca pisar fora da área fechada do privado‖ (BAUMAN, 2001,
p. 77).
O individualismo atavicamente narcíseo se torna parte fundamental na
descentralização das atuações políticas. Na busca de soluções para o problema-objeto, a
massa individualizada e pulverizada deseja dos conselheiros a lição-objeto.
A
terceirização das ações políticas pode ser analisa, por exemplo, na construção do que se
denomina Terceiro Setor, povoado pelas Organizações Não-Governamentais (ONGs). A
privatização do coletivo tem como objetivo:
[...] tentar resolver os problemas de outras pessoas nos torna
dependentes, e a dependência oferece reféns ao destino – ou, mais
precisamente, a coisas que não dominamos e as pessoas que não
controlamos; portanto, cuidemos de nossos problemas, e apenas de
nossos problemas, com a consciência limpa (BAUMAN, 2001, p. 77).
Desta maneira, é possível entender o grande sucesso das publicações de autoajuda que loteiam espaço nas livrarias. No amplo espaço do vazio da autoridade e a
privatização da esfera pública, é rotulado por muitos autores desta ―literatura‖ que prega
48
o imediatismo narcisista, o ―amour de soi‖ se constitui na busca de si atado na esfera do
corpo como sua propriedade e seu produto a sua responsabilidade. Ao consumidor desta
literatura, a mensagem é bastante clara: tudo é possível ao leitor e cabe a ele, e somente
ele, ―guiar seu destino‖ e também se redimir dos seus próprios pecados, uma vez que:
[...] você deve a seu corpo cuidado, e se negligenciar esse dever, você
deve sentir-se culpada e envergonhada. Imperfeições de seu corpo são
sua culpa e vergonha. Mas a redenção do pecado está ao alcance das
mãos da pecadora, e só de suas mãos (BAUMAN, 2001, p. 79).
A esfera da falta é preenchida pelo reconhecimento inconsciente de que existe
uma possibilidade de emancipação na fluidez e leveza desta fase do capitalismo. A
política é sucumbida pela via do mercado e a liderança de autoridade é apenas uma
commodity desta liberdade de suposta emancipação, ou seja, a desterritorização do
espaço público. A autonomia quando se é arregimentada pelas ―forças do mercado‖ e
moldada pela tirania das marcas busca esvaziar os sentidos e significados do coletivo
em prol da saciedade nunca satisfeita do indivíduo. Numa passagem a respeito do
resultado do desenvolvimento capitalista e o culto do indivíduo, Istiván Mészáros
salienta:
[...] a noção de um instituto social ―colocado em todos os homens pela
natureza‖ desaparece completamente. As liberdades individuais
parecem pertencer ao reino da ―natureza‖, e os laços sociais, ao
contrário, parecem ser artificiais e impostos, por assim dizer, ―de fora‖
ao indivíduo auto-suficiente (MÉSZÁROS, 2006, p. 233).
Acrescenta Renata Salecl ao fato que ―o capitalismo transforma cada vez mais o
escravo proletário em consumidor livre. De todo modo, consumo sem limites provoca,
paradoxalmente, o momento no qual o sujeito passa a ‗consumir a si mesmo‘‖
(SALECL, 2006, p. 26). Logo, a emancipação desse indivíduo é apenas uma miragem
ilustrada de apetitosos convites ao consumo e a disponibilidade ―democrática‖ das
escolhas de mercadorias.
A esfera pública mantinha sua dominância dos preceitos da esfera privada nas
pesadas engrenagens da primeira fase do capitalismo. A busca pela liderança, desejo por
segurança na padronização da identidade e incorporação e obediência aos padrões préformatados derivavam no que se pode chamar de ―estilo do outro‖. Na fluidez do
capitalismo ―leve‖, a esfera privada conquistou e colonizou os domínios da esfera
pública. A sedução pelo privado movida pelas lições-exemplos para a pulverizada vida
cotidiana. O desejo pela instabilidade rompendo com as tradições mais atávicas
49
acarretando uma busca por auto-identidade do indivíduo ao desvencilhar das normas, ou
seja, o ―estilo do eu‖, uma espécie de aforismo narcíseo das tribos e guetos sociais e a
suposta ―individualização‖ do estilo. Desta maneira, ―o desejo constantemente une o
fluxo contínuo e objetos parciais que são por natureza fragmentários e fragmentados‖
(DELEUZE ; GUATTARI apud BAUMAN, 2001, p. 97-98).
O espaço público deixa de ser a alegoria política e social do coletivo e é
subjugado pelas forças imperiosas do consumo hedonista e imediatista. A revelação
como parte constitutiva do pesado tear do capitalismo do excesso simbólico. O
indivíduo preconiza o desejo de se constituir ―dentro‖, onde a figura do ―outro‖ é o seu
espelho norteador e condutor o qual é possível identificar uma subserviência castradora.
Na fluidez da era do capitalismo ―leve‖, a revelação atua como resignificação do ―eu‖
(vontades e desejos) perante um mundo e a necessidade de se constituir para ―fora‖
desta esfera. Agora, o espelho coletivo é enterrado e ―eu‖ sou a face do mundo, o
espelho de Narciso perante o corpo social, ou seja, a eclosão da subserviência narcísea
do indivíduo.
5. A efêmera fluidez da sociedade movida pelo hiperconsumo
A sociedade de hiperconsumo desagrega as culturas de classe e promove a
homogeneização do que Lipovetsky (2007) chama de ―modelo consumista-emocionalindividualista‖ para todos os segmentos etários. O hiperconsumo abarrotou as
possibilidades das sociedades parirem e cuidarem de suas próprias crianças sem que elas
não se transformem em futuros adultos hiperconsumidores dependentes químicos ou
com profundas carências psicanalíticas. Na medida em que o consumo segmenta cada
vez mais faixas etárias, excetuando as crianças na primeira infância, não existe mais
exclusão dentro do fantástico universo do hiperconsumo. Fomentado a quintessência do
consumo, as escolas de orientação mercantil promovem com algum estofamento
cultural os futuros alunos hiperconsumidores.
Por sua vez, os pais hiperconsumidores não querem mais ser responsáveis em
solitude pela criação dos filhos e delegam à própria prole a divisão da educação. Em
nome de uma equivocada retórica de ―responsabilidade não-autoritária‖, os pais ―legais,
bonzinhos e bacanas‖ estimulam seus filhos ao consumo e fazem deles os próprios
hiperconsumidores. Movidas por um espetáculo da publicidade infanto-juvenil, crianças
como ―pequenos imperadores‖ ditam as regras para os pais do que comprar e decidem
pelas suas mercadorias fazendo suas próprias escolhas. Logo, saciado o desejo imediato
50
do ―imperador-mirim‖, os pais ―compram a paz‖ e se deliciam momentaneamente na
felicidade promovida pela indústria da diversão infanto-juvenil. Assim, os pais
procuram o auto-perdão por longas ausências ou negligencias sentimentais perante a
prole, ao mesmo tempo em que acreditam cederem ―pedagogicamente‖ um direito ao
filho à felicidade, aos prazeres e ao individualismo narcisista.
Existe felicidade no trabalho? O ―refugo humano‖ é um conceito mais profundo.
O uso e o descarte de pessoas atiradas ao lixo. Os mundos do trabalho pós-fordista se
constituíram numa miríade de ilações a respeito das estruturas trabalhistas. A
informalidade em nome da ―eficiência‖ neoliberal produziu variantes do emprego que
podemos classificar em: o ―emprego tradicional”, o subemprego, desempregado e a
escória. O ―emprego tradicional” é aquele onde o quadro de pessoal é ―enxuto‖ em
nome do pomposo da ―reengenharia‖ (ou algum outro rótulo de falácias administrativas)
e o trabalhador que sobrou ao expurgo é segregado a uma série de tarefas alucinadas e
sobrecarregadas bem ao estilo ―tudo-ao-mesmo-tempo-agora‖. O subemprego se situa
na marginalidade (geralmente é refém da ―flexibilização do emprego‖), pode ser o
empregado que não tem segurado suas garantias trabalhistas da economia formal ou
trabalhador de rua (ou seja, o popular ―camelô‖). O desempregado é aquele trabalhador
pendular atemporal onde, em poucas semanas, ora alguma exercendo alguma ocupação
com mínima renda, ora esta na busca interminável por emprego. A escória, essa massa
amorfa e sem vida perante o mercado, é o descarte de pessoas que definitivamente não
entrarão mais no mercado de trabalho formal. Para a maioria dos trabalhadores
assalariados, a felicidade pelo emprego se tornou a mero alívio de alguma renda no final
do mês. A felicidade faz a transubstanciação por um mero pedaço de pão diário e
existem aqueles que ―agradecem aos Céus‖ por isto! A maioria dos que se alimenta até
enfartarem tem ojeriza os que nada tem para comer. A pobreza incomoda a paisagem e
―suja‖ as cidades. Logo existe um alívio de felicidade quando moradores de rua,
integrantes da escória, são banidos como cães das áreas nobres das grandes cidades.
Para uma ―felicidade burguesa‖, aqui se referindo a um tipo de comportamento de
classe social derivada de um egocentrismo peculiar, a ―higienização social‖ esteriliza as
ruas nobres eliminando a qualquer custo o refugo humano, assim os componentes desta
classe podem desfilar com credenciais pitorescas de mercadorias de desmedida luxúria.
O hiperconsumo é um espetáculo do conforto. Aos que possuem poder aquisitivo
pode consumir segurança e luxo descartáveis em ruas que são verdadeiros ―bunkers de
paz‖ em meio à dispersão da violência. O templo da felicidade do hiperconsumo de
51
massa, o shopping center é o retrato da negação da cidade e dá a sensação de segurança
e felicidade das compras com tranquilidade.
No verão de 2014, esta ―tranquilidade‖ se viu rompida por arrastões de jovens
das zonas periféricas desejosos por consumo. Um curioso fenômeno ocorreu em alguns
shopping centers na cidade de São Paulo. Por via das redes sociais da internet, como o
Facebook, grupos de jovens de periferia da cidade invadiram tais templos de
consumismo para ―caminharem‖ por entre as lojas. O movimento que causou muita
polêmica agregou um rótulo que foi batizado por seus organizadores pelo prosaico
nome de ―rolezinhos‖. Em alguns casos, houve confusão entre estes jovens e seguranças
dos shopping centers e pontuais focos de vandalismo, sendo a polícia acionada para
―controlar a situação‖. Curiosamente, não se tratava de algum tipo de protesto
ideológico de ―luta de classes‖, como alguns mais alardeados entusiastas radicais
escreveram no período em sites e jornais, mas a manifestação de um reprimido desejo
altamente narcísico de jovens pobres se tornarem consumidores vorazes do luxo
supérfluo das camadas mais ricas da população. Logo, ao contrário que muitos disseram
na época, não era o desejo de ―transgredir a norma em prol de alguma hipotética
revolução dos jovens‖, mas simplesmente se ―inserir‖ no fantástico mundo das
mercadorias alucinógenas. A trilha sonora destes jovens dos ―rolezinhos‖ era a base do
que se chamou ―funk ostentação‖, cuja batida sonora repetitiva e letras são de alienante
apologia ao hiperconsumismo.
O consumo não é apenas uma amálgama entre necessidade e disponibilidade,
mas comprar evasivamente se tornou um ato de prazer com características sexuais (em
referência ao gozo freudiano). A felicidade diante de uma compra abstrata e utilidade
pífia realçam as características de ansiedade do hiperconsumidor. O desejo de comprar
cada vez mais torna o consumo como um ato de felicidade propriamente dita. O
marketing de massa sabe exatamente destas características dos consumidores e
exploram a exaustão o viés da angústia e o desejo pelo fetiche da mercadoria através da
pasteurização
e
homogeneização
das
necessidades
humanas:
―Você
precisa
experimentar o produto ―A‖, porque ―A‖ vai fazer sua vida mais feliz!‖. A ―felicidade
instantânea‖ se configura em um autômato saciar da necessidade passageira e, por sua
vez, a publicidade capta tão eloquentemente suas matrizes do adornamento da
mercadoria como objeto simbólico constituinte de uma miríade de desejos consumistas.
Assim que o desejo da aquisição for concretizado via cartão de crédito ou débito
automático, uma nova carência surgirá e renovará todo o processo de angustia pela
52
saciedade do consumo. O livre mercado não prioriza o que produzir ou vender, mas
somente o que vai dar lucro e ponto final. Existem inúmeras retóricas politicamente
corretas a respeito da ―responsabilidade social‖ das empresas, mas ninguém questiona,
por exemplo, para situar alguns segmentos, qual a ―responsabilidade social‖ dos
fabricantes de armas, cigarros, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, pesticidas, publicidade e
empresas de agiotagem profissional de ―micro-crédito‖? Ainda existem os que
defendem o uso maciço do hiperconsumo para garantir os famigerados ―postos de
trabalho‖, mas nunca especificam as suas margens de lucros das empresas que ganham
com os louros da mais-valia. A felicidade pelos lucros independe da desgraça alheia,
afinal, para os arautos do neoliberalismo, a verdadeira ―responsabilidade social‖ é do
Estado, o resto é a vantajosa dedução dos ―custos sociais‖ no imposto de renda de
―pessoa jurídica‖.
O hiperconsumo não poupa nem mesmo a religião que se transformou num nos
espetáculos de dispersão cultural e socioeconômico mais evidente na era da
globalização. Não é apenas a avidez pelo bem-estar material buscada ansiosamente pelo
hiperconsumidor, ―mas ele aparece como um solicitante exponencial do conforto
psíquico, de harmonia interior, cujas técnicas do desenvolvimento pessoal são disso
fundamentais testemunhas do desenvolvimento de um mercado da alma‖ (EWALD et
al., 2007, p. 25).
Na atual construção imediatista da pós-moderna, o niilismo da fé é o paradoxo
da busca frenética por Deus. Agora, não mais para a redenção contra os maus agouros
do destino, mas somente o alívio das satisfações das emoções imediatas. Os templos da
fé proliferam em todos os segmentos da sociedade prometendo a tal ―cura espiritual‖ e
todos os sortilégios da alma mediante a crença em Deus e o pagamento de dízimos
religiosamente. Uma série de outras crenças, com ênfase nas religiões orientais, abarrota
um leque de diversas opções para aqueles que carecem ansiosamente de ―fé espiritual‖,
e que sua vez, nunca saciadas definitivamente pelo consumo materialista. Não é a toa
que toda a literatura de ―auto-ajuda‖ se consolidou como uma metástase dentro das
livrarias e gerando grande parte dos lucros das editoras.
6. Identidade, felicidade e angústia
O culto e o consumo da marca vão além da mera aquisição de uma mercadoria.
No plano do inconsciente social, uma marca é exibida e ostentada como forma de
integrar um indivíduo, buscando sair do anonimato e da impessoalidade para a adesão à
53
esfera de aceitação pelo grupo a qual deseja se inserir ou interagir, ou seja, o
reconhecimento pelo outro.
O ―eu‖ só existe na medida em que o ―outro‖ passa a reconhecê-lo como tal e
aceita-lo conforme padrões pré-estabelecidos ou a ser estabelecer dentro de uma esfera
social. Neste sentido,
[...] a compra de um produto de marca não é apenas uma manifestação de
hedonismo individualista, visa também responder às novas incertezas
provocadas pela multiplicação dos referenciais, bem como às novas
expectativas de segurança estética ou sanitária (LIPOVETSKY, 2007, p. 49)
A configuração de uma identidade pelo logotipo da marca pode ser vista como
uma busca pela ruptura da herança familiar ou patrimonialista para a conquista de sua
própria personalidade. Independente de esta trajetória ser constituída de alienações e
vazios, as implicações simbólicas vão bem além do mero logotipo mercantil. Na
sociedade de hiperconsumo, a marca simboliza a valorização do individuo como
consumidor potencial e efetivo, ou seja, a aparência transgride as fronteiras da essência.
A mercadoria deixa de ser um mero objeto inanimado para vir a se constituir na
projeção alegórica de um ser que tem vida própria. Como salienta Lipovetsky (2007), ―o
hiperconsumidor já não consome apenas coisas e símbolos, consome o que ainda não
tem concretização material‖. A mercadoria enquanto objeto, transubstancia-se para além
de sua matéria e simboliza espaços e sentidos que agrega no consumidor um status
social e afetivo, ou seja, a marca agrega significados e significantes exteriores à
essência plasmada do indivíduo. A ―personificação das coisas‖ ou sua ―reinvenção‖ das
relações de produção foi antevista por Karl Marx numa passagem contundente com sua
crítica ao caráter fetichista da mercadoria:
O materialismo grosseiro dos economistas que consideram como propriedades
naturais das coisas as relações de produção entre as pessoas e qualidades que as
coisas adquirem porque estão subunidas a essas relações é, ao mesmo tempo,
um idealismo igualmente grosseiro, um fetichismo mesmo, já que atribui a
coisas as relações sociais como características que lhes são inerentes e, com
isto, as mistificam (MARX, 1973, p. 687)
A mistificação e o caráter fetichista fazem com que as mercadorias assumam
significados que ultrapassam as suas bordas de meros objetos inanimados e adquirem
vida autônoma no lastro do mercado. Neste ínterim, pessoas e coisas assumem formas
equivalentes e possuidoras de mesmas considerações e feições. O valor e o poder
54
constituinte da marca é seu sucesso imaterial no inconsciente social do
hiperconsumidor:
A força das imagens que contribui para edificar as grandes marcas não
institui uma ordem tirânica, mas o universo das marcas-estrelas
planetárias: a época do hiperconsumo coincide com o triunfo da marca
como moda e como mundo (LIPOVETSKY, 2007, p. 97).
O desenvolvimento do que se pode considerar uma ―hiperpublicidade‖ com o
lastro de programas de marketing agressivos e milionários doura incessantemente a
marca de um produto e não apenas como mera mercadoria, mas reforçam
constantemente a imagem como ―estilo de vida‖ a ser cultuado pelo hiperconsumidor. O
avanço tecnológico significou uma revolução nos modos de produção mercantil e
produziu um novo paradoxo no mal-estar da hipermodernidade na ostensiva
padronização da dinâmica da individualização das mercadorias. A inovação permitiu a
personalização da produção em modos de produção seriado. Quanto mais às
mercadorias e o consumo se individualizam mais seguem um modelo padronizado e
globalizado. Assim ressalta Gilles Lipovetsky:
A dinâmica de individualização dos produtos só pôde efetuar-se graças à alta
tecnologia baseada na microeletrônica e na informática. As novas tecnologias
industriais permitiram o desenvolvimento de uma ―produção personalizada de
massa‖ que consiste em montar, de maneira individualizada, módulos préfabricados (LIPOVETSKY, 2001, p. 79).
A tecnologia aliada ao capital sempre se configurou em uma simetria frutífera
nas revoluções do modo de produção capitalista. A reorganização pós-fordista
representou um avanço nunca visto antes na esfera capitalista no que tange a
exponencial produtividade e exorbitante lucratividade. As diversas campanhas de
marketing dão ao hiperconsumidor a falaciosa sensação que ele é ―único‖ em meio aos
milhões de outros hiperconsumidores. É como se toda a planta de uma transnacional foi
elaborada exclusivamente para servir os desejos narcíseos de um único consumidor! A
felicidade no hiperconsumo estaria então correlacionada à angústia das escolhas e a
satisfação imediata dos desejos insatisfeitos através das mercadorias e suas marcas
imateriais.
7. Considerações finais
Não há ilusões perante a felicidade fabricada e preconizada pela sociedade de
hiperconsumo. O homem hiperconsumidor possui um atávico niilismo existencial e
devoto acirrado das veleidades do marketing de massa. Do morador de algum barraco
55
em algum vilarejo de pau-a-pique aos sedutores palacetes da burguesia paulistana da
região dos Jardins, todos são seduzidos pelo hiperconsumo com abissais poderes de
compra.
A vida na hipermoderna se tornou um fantástico mundo da aquisição de bens
materiais,
psicológicas,
sexuais
e
sentimentais.
É
importante
ressaltar
os
questionamentos de Erich Fromm quanto às supostas certezas de ―mentalidade sadias‖
tão alardeadas orgulhosamente pelas sociedades ocidentalizadas: ―Podemos estar tão
seguros de que não nos estamos iludindo?‖ (FROMM, 1974, p. 17).
Na hipermodernidade, a felicidade se realiza como mera ilusão e não será
possível ser duradoura, mas apenas saciada momentaneamente a espera de uma nova e
feliz aquisição mercantil mediado pelo desejo do indivíduo de hiperconsumir uma
esfera esvaziada. Joel Birman esclarece que o mal-estar na atualidade está atavicamente
ancorado no vazio das trocas inter-humanas que culmina na eclosão e dispersão do
embrutecimento e agressividade dos indivíduos:
Os destinos do desejo assumem, pois, uma direção marcadamente
exibicionista e autocentrada, na qual o horizonte intersubjetivo se
encontra esvaziado e desinvestido das trocas inter-humanas. Esse é o
trágico cenário para a implosão e a explosão da violência que marca a
atualidade (BIRMAN, 2000, p. 24).
O fenômeno dos ―rolezinhos‖ conforme citado anteriormente, foi um exemplo
deste paradoxo onde se viu uma mobilização de jovens não para ―reivindicar‖ mudanças
de paradigma social, mas simplesmente, um desejo por introdução real ao espetáculo do
consumismo. Pode-se entender que a sociedade se adentrou a um novo patamar do
Capitalismo como forma de força motriz de modo de produção de riquezas e agregados
socioeconômicos, de forma mais intensa que adentra no inconsciente do indivíduo,
transformando seu imaginário a partir do cotidiano, produzindo um nível de
participação ativa de forma visceral dentro das novas e metabólicas estruturas de
hiperconsumo.
Leopoldo e Silva (2007) destaca que ―a riqueza de meios é proporcional à
pobreza dos fins, e que a pletora de realizações tecnocientíficas convive com a
indigência ética‖. Assim, continua a descrever o autor a respeito deste ―vácuo
existencial‖ presente nas sociedades: ―[...] um grande poder e um grande vazio atuam,
numa convergência perigosa, não apenas para desorientar o indivíduo, mas também para
induzi-lo a reduzir drasticamente o horizonte de sua humanidade‖. Neste caminho da
segregação e culto ao individualismo narcíseo entre os que consomem e os que assistem
56
de barrigas vazias os outros consumirem, abre-se lastros torrenciais para a escala sem
precedentes de uma autofágica sociedade rumo à uma espécie de barbárie estrutural sob
a naturalização das diferenças e dos sofrimentos humanos.
Referências
ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento:
fragmentos filosóficos Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
ANDRE, Jacques. Entre angústia e desamparo. Ágora, vol.4, no. 2, pp.95-109, 2001.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2001.
BAUMAN, Zygmunt. Vidas Desperdiçadas, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
BAUMAN, Zygmunt. Tempos Líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.
BIRMAN, Joel. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de
subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
FROMM, Erich. A arte de amar. Belo Horizonte: Itatiaia, 5ª. Ed, 1996.
FROMM, Erich. Psicanálise da Sociedade Contemporânea, Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 7ª. Ed, 1974.
EMANUEL, Ricky. Angústia. São Paulo: Segmento-Duetto, 2005.
EWALD, Ariane Patrícia e SOARES, Jorge Coelho. Identidade e subjetividade numa
era de incerteza. Estudos de Psicologia, 12(1), pp. 23-30, 2007.
LEOPOLDO E SILVA, Franklin. Felicidade: dos filósofos pré-socráticos aos
contemporâneos. São Paulo: Claridade, 2007.
LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de
hiperconsumo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
MARX, Karl. Grundrisse. London: Peguin, 1973.
MÉZÁROS, István (2006), A teoria da alienação em Marx, São Paulo: Boitempo,
2006.
SALECL, Renata. Sobre a felicidade: ansiedade e consumo na era do
hipercapitalismo. São Paulo: Alameda, 2005.
VANIER, Alain. Temos medo de quê?. Agora, vol.9, no 2, p.285-298, 2006.
57
Por um outro discurso da realidade: a questão do Estado-nação e das práticas
culturais
For another discourse of the reality: the matter of the State-nation and the cultural
practices
Nataniél Dal Moro1
Recebido em 13/02/2104; aceito em 25/05/2014
_____________________________________________________________________
Resumo: Cada vez mais a realidade histórica explicita-se como múltipla e aleatória, não mais passível de
enquadramento em conceitos teóricos universais. É nesse sentido que se torna marcante a presença de
identidades e de representações que antes não se faziam notar ou que academicamente não eram
consideradas. Nesta perspectiva, nas últimas décadas do século XX e nos primeiros anos do século XXI,
os discursos históricos sobre o Estado-nação e as práticas culturais, por exemplo, foram teoricamente
revistos e, com isso, outras identidades e outras representações tiveram espaço no saber disciplinar, que
nesse caso é principalmente o da História, qual seja, a do Estado-nação que não é mais uno e a das
práticas culturais que são pós-coloniais e híbridas.
Palavras-chave: História; identidades; representações.
Abstract: The historic reality increasingly explains itself as multiple and fortuitous, instead of susceptible
of being classified in universal theoretical concepts. It is in this sense that the presence of identities and
representations which before were not perceivable or that academically were not considerable, becomes
outstanding. Under this perspective, in the last decades of the 20 th century and in the firsts years of the
21st century, the historical discourses about the State-nation and the cultural practices, for example, were
theoretically reviewed, and thus, other identities and other representations gained ground in the
disciplinary knowledge, which in this case is mainly the History‘s, that is, the one of the State-nation that
is not unique anymore, and the one of the cultural practices that are post-colonial and hybrids.
Key words: History; identities; representations.
1 – Identidades e representações
As identidades e as suas representações são conceitos historicamente
1
Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). E-mail: . Rua
Monte Alegre, 984 - Perdizes, São Paulo - SP, 05014-901. Tel:.(11) 3670-8000.
[email protected].
58
variáveis.2 Entendemos por identidade as características que compõem determinada
pessoa ou objeto. Já por representação, compreendemos o discurso que é feito sobre a
identidade de uma pessoa ou de um objeto, sendo que tais definições, seja de identidade
ou de representação, podem ser, perfeitamente, alteradas, tanto parcial como totalmente,
no decurso do tempo e do espaço ao qual estão inseridas. Porém, e justamente por isso,
as concepções de identidade e de representação nem sempre foram estas. Sendo assim, é
relevante explicitarmos quais foram algumas dessas outras e, não menos, também
variadas concepções de identidade e de representação que existiram, ou que ainda
existem na sociedade.
Segundo escreveu o sociólogo jamaicano Stuart Hall (2001), na obra A
identidade cultural na pós-modernidade, atualmente, diante das contribuições
historiográficas existentes, ―[...] é impossível oferecer afirmações conclusivas ou fazer
julgamentos seguros sobre as alegações e proposições teóricas que estão sendo
apresentadas.‖ (HALL, 2001, p. 8-9). No século XVIII, o sujeito existente, no Ocidente
europeu, era o do Iluminismo e sua identidade era muito bem definida, isto é, o sujeito
era ―[...] um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão,
de consciência e de ação, cujo ―centro‖ consistia num núcleo interior [...]‖ (HALL,
2001, p. 10) que nunca, teoricamente, seria alterado.
No século XIX, o mundo europeu sofreu a Segunda Revolução Industrial e
teve parte de suas relações sociais muito alteradas. A sociologia, em especial pelas
contribuições de estudos realizados na França, produziu novas formas de caracterizar as
pessoas. A identidade do sujeito tornou-se, então, mais complexa e mais condizente com
a realidade histórica e científica. Este sujeito foi caracterizado como sociológico. Sua
identidade refletiu ―[...] a crescente complexidade do mundo moderno e a consciência
de que este núcleo interior do sujeito não era autônomo e auto-suficiente, mas formado
com ―outras pessoas importantes para ―ele‖ [...]‖ (HALL, 2001, p. 11). Cabe lembrar,
também, que o sujeito sociológico já admite a presença do sexo feminino como
constituinte da identidade sociológica, pois antes isso não havia. Mesmo tendo
representado um avanço significativo para a compreensão da realidade histórica, o
2
Neste texto, a palavra conceito é compreendida como “[...] todo processo que torne possível a
descrição, a classificação e a previsão dos objetos cognoscíveis. Assim entendido, esse termo tem
significado generalíssimo e pode incluir qualquer espécie de sinal ou procedimento semântico, seja qual
for o objeto a que se refere, abstrato ou concreto, próximo ou distante, universal ou individual.”
(ABBAGNANO, 1998, p. 164).
59
conceito de sujeito sociológico não conseguiu abarcar, em sua explicação, muitas das
características constitutivas da identidade – de inúmeros outros – sujeitos.
Na tentativa que explicar melhor a identidade dos muitos e contraditórios
sujeitos do globo, desenvolveu-se a teoria da concepção de sujeito pós-moderno. A
identidade passou a ser concebida como algo que é construído cotidianamente. Este fato
tornou-se possível porque existem outros sujeitos que também constróem diariamente
suas identidades, pois possuem a imagem dos outros para que tal prática seja realizada.
O sujeito pós-moderno é, portanto, ―[...] fragmentado; composto não de uma única, mas
de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas.‖ (HALL, 2001,
p. 12).
Segundo Hall (2001, p. 13):
Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes
direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente
deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o
nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória
sobre nós mesmos ou uma confortadora ―narrativa do eu‖ [...]. A identidade
plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia.
Com essa afirmação, podemos compreender que as identidades impostas
culturalmente aos sujeitos, sejam eles do sexo masculino ou do feminino, ocidentais ou
orientais, brancos ou negros, tanto da concepção Iluminista como da sociológica, foram
refutadas, pois a identidade do sujeito pós-moderno calcou-se justamente na
possibilidade deste mesmo sujeito construir-se, ou, também, desconstruir-se, levando
em conta não mais apenas as imposições externas, mas, sobretudo, os seus anseios
internos.
A identidade do sujeito pós-moderno passa a ser, portanto, um local em que
existem várias identidades, mas não identidades fechadas. Estas identidades estão
apenas articuladas de forma parcial, ou seja, ―[...] a estrutura permanece aberta [...]‖
(HALL, 2001, p. 17) e, com isso, é possível haver a constante construção da identidade
e, também, o constante aparecimento de outras representações. Desta forma, a
representação, que é muito mais produzida pelo discurso histórico do que a identidade,
mas que também serve para a construção do conhecimento histórico, forma-se coletiva
e/ou individualmente, tendo como propósito o de representar algo ou alguém, seja
objetiva/subjetivamente, seja social/juridicamente, seja no senso comum ou no
conhecimento científico.
O historiador Francisco J. Calazans Falcon ([s.d], p. 1-4) afirma, no texto
História e representação, que a representação possui duas vertentes interpretativas: a 1a)
60
é moderna, sendo de base epistemológica e a 2a) é pós-moderna, sendo de base
narrativista/hermenêutica. Entretanto, seja a primeira ou a segunda, ambas servem para
analisar a realidade histórica, porém, o que muda substancialmente é o conteúdo e o
significado científico que é produzido por estas teorias.
Na tentativa de analisar esta realidade histórica é que podemos compreender
melhor quais as características de cada uma destas vertentes interpretativas da
representação. Pelo fato da primeira ser epistemológica, isto é, estudar criticamente os
princípios, as hipóteses e os resultados das ciências já constituídas, elaborando a teoria
do conhecimento, seu caminho é na tentativa de estabelecer distinções entre os
elementos que estão presentes no senso comum. Já a segunda, por ser
hermenêutica/lingüística/literária,
procura
explicitar
as
identidades
de
cada
sujeito/objeto que analisa.
A representação epistemológica encontra sua base nas teorias idealistas,
positivistas, historicistas e marxistas que tiveram seus desenvolvimentos nos séculos
XIX e XX. Nestas teorias, os documentos, com os quais a História é construída, são
portadores de fatos e, quando analisados à luz das ciências, produzem verdades sobre a
História, mesmo que estas possam ser questionadas por meio de outras teorias
epistemológicas.
Entretanto, com a emergência da representação hermenêutica nas décadas de
1960-1970, a representação epistemológica foi, na teoria e na prática, questionada, pois
as fontes de pesquisa e as análises, bem como os procedimentos metodológicos e as
técnicas de pesquisa, foram caracterizadas não mais como portadoras de fatos reais, mas
sim como simples representações de representações.
Em síntese, trata-se da ―crise da representação‖, ou seja, da idéia moderna de
representação, e sua substituição pela idéia que, como ―representação‖, o
texto histórico é um ―artefato‖ lingüístico elaborado segundo princípios
literários que remetem às estruturas da ―narrativa‖ sendo sua referencialidade
unicamente de ordem intra e intertextual. (FALCON, [s.d], p. 3).
Nesta perspectiva, as teorias clássicas sobre representação e construção da
História como uma ciência que produzia algum tipo de verdade, foram, paulatinamente,
em especial pelo trabalho do filósofo francês Michel Foucault, sobretudo na obra,
publicada pela primeira vez em 1969 e que explicita conceitualmente a maior parte de
sua teoria, que pode ser considerada como revolucionária, Arqueologia do saber (1987),
colocadas em cheque.
O que antes era certeza, como a verdade científica produzida na análise
61
científica do documento, tornou-se dúvida, afinal, tudo que era verdade foi questionado,
uma vez que tudo, na ciência, passa a ser discurso de uma representação discursiva.
Com isso, segundo Foucault (1987), é preciso, mas também extremamente necessário
para a produção do conhecimento histórico desestoricizado, que o historiador realize
―[...] a crítica do documento [...]‖ (FOUCAULT, 1987, p. 7), tanto externa como interna,
que ele utiliza. Isto é, da(s) representação(ões) contida(s) no(s) fato(s) que o documento
possui.
Em decorrência disso, os objetos que serviam para produzir conhecimento
verdadeiro e racional e os sujeitos que eram os produtores de conhecimento científico,
agora, com a crise da representação, passaram a ser portadores de verdades hipotéticas,
uma vez que o real e o irreal não podem mais ser definidos cientificamente, já que a
teoria epistemológica teve sua sustentação fragmentada pelos conceitos e práticas
históricas desconstrucionistas.
A verdade histórica foi, então, definida historiograficamente como um discurso
não hierárquico que é calcado, ora em fatos, ora em dados ficcionais, mas que, mesmo
assim, ainda emana do agente, seja consciente ou inconscientemente, que a produz, isto
é, do pesquisador, que a elabora e procura re-apresentá-la aos demais indivíduos e estes,
por sua vez, também podem realizar o mesmo processo, porém, é claro, produzindo
outras representações dos fatos e da ficção. Por isso, conforme Falcon ([s.d], p. 18-20),
a representação, que era concebida na historiografia moderna/modernista como algo que
possibilita a construção da verdade, passa a ser considerada, na historiografia pósmoderna/pós-modernista, ―[...] apenas (como) um texto, equivalente a tantos outros,
cuja ―realidade‖ é somente o resultado dos ―efeitos de realidade‖ que esse texto possa
criar, na dependência da leitura ou recepção pelo público leitor.‖ (FALCON, [s.d], p.
23).
Desta forma, a utilidade teórica e prática da representação, como portadora de
verdade sobre o passado, é questionada em sua essência epistemológica, pois se tudo
que é produzido de conhecimento histórico pelo historiador, ou outros estudiosos, sobre
a realidade histórica passa a ser simplesmente mais uma representação, as verdades
históricas, nesta perspectiva, também se tornam verdades relativas, isto é, discursos
relativos. Não há mais, com isso, a necessidade ímpar de se utilizar o conceito de
representação, portanto, na historiografia pós-moderna, que ao invés do termo verdade
prefere o termo fragmento, o conceito de representação torna-se ultrapassado.
Finalizando essa parte, pode-se afirmar, e também no intuito de simplificar a
62
exposição, que a identidade e suas representações, na teoria moderna, são originadas
dos fatos históricos analisados pelos historiadores, sendo que tais fatos, mesmo que com
interpretações divergentes, portavam determinadas verdades e não eram apenas
discursos irreais ou ficcionais, mas sim discursos verdadeiros.
Entretanto, a identidade e suas representações, na teoria pós-moderna, não
possuem mais como base de suas fontes a busca pela verdade científica e racional
formulada discursivamente no século XIX, seja ela de viés positivista ou não, dos fatos
históricos, uma vez que o próprio sujeito-cientista, que antes produzia a verdade mais
aceitável, deixa de ser portador de meios para produzir o que se denominava de verdade.
Afinal, como afirmou Foucault (1999, p. 511), na obra As palavras e as coisas: uma
arqueologia das ciências humanas, publicado na França em 1966, ―[...] o homem
achou-se vazio de história [...]‖, porém, em nossa análise deste processo, concebemos
que este mesmo homem tornou-se, agora, cheio, seja nas suas essências ou nas suas
fronteiras, de abertas e, por isso, relativas, identidades e representações, tanto dos fatos
existentes como do próprio homem, isto é, de todos os seres humanos.
2 – Estado-nação: das origens à pós-modernidade
A palavra Estado-nação moderno encontra sua história de criação no decorrer
do século XIX, sendo, portanto, historicamente bem recente. Antes, a palavra nação era
utilizada para denominar sujeitos biologicamente diferentes. Neste sentido, os índios
eram considerados como uma nação indígena, porém, no século XIX, sobretudo a partir
de 1830, a palavra Estado-nação passou a significar politicamente a possibilidade de
resolver problemas e tornar os sujeitos, tanto os ricos como os pobres, tanto os
capitalistas como os socialistas, pessoas prontas para defender a soberania do território
que habitavam, bem como todas as outras características do Estado-nação, que são,
resumidamente: povo, leis, cultura nacional, língua oficial (não mais, portanto, o latim)
e o próprio sentimento de nacionalismo (CHAUI, 2000, p. 14-17).
Porém, os primórdios das alterações mais significativas remontam ao início da
Idade Moderna, pois foram nos séculos XV-XVI que a Europa teve, segundo Benedict
Anderson (1989), no livro Nação e consciência nacional, um enfraquecimento do latim,
a delimitação de territórios geográficos, a queda do poder religioso da Igreja Católica e
algumas mudanças econômicas, sociais e políticas que proporcionaram a criação das
raízes históricas de vários Estados-nações, sendo exemplos disso a Inglaterra e a França.
Foram criadas, então, as chamadas comunidades imaginadas das nações que
63
surgiram com o enfraquecimento e/ou a saída da comunidade religiosa, a decadência
dos reinos dinásticos, o pouco uso do latim e, principalmente, devido a formação de
novos ―modos de apreender o mundo‖, segundo Anderson (1989, p. 31). São exemplos
desse novo modo de apreender o mundo, o próprio sistema capitalista, a
industrialização, o êxodo rural, as leis que passaram a se calcar em um mundo objetivo
e não mais em um universo divino, o capital financeiro (capital industrial + capital
bancário) e os movimentos sociais, como as greves e os protestos por menores jornadas
de trabalho e com melhores condições de labor.
Entretanto, quais foram, e ainda são, os elementos necessários para a clássica
composição de um Estado-nação: 1°) soberania legal e territorial; 2°) enfraquecimento
da Igreja Católica e o conseqüente pluralismo religioso e 3°) comunidade nacional
culturalmente coesa dentro de costumes e tradições com as quais a maioria das pessoas
sinta-se identificada, bem como unidade lingüística para a compreensão e a aplicação de
leis.
Outro ponto relevante das origens do Estado-nação é a concepção de tempo.
Antes do surgimento do Estado-nação o tempo era concebido como linear, ou seja, uma
coisa acontecia para depois a outra poder acontecer. Já com o Estado-nação, o tempo
passou a ser simultâneo, isto é, muitas coisas podem acontecer ao mesmo tempo, porém,
os indivíduos, necessariamente, não precisam saber, ou não possuem formas de saber,
que o outro existe e também realiza ações para que a vida social do Estado-nação que
habitam continue existindo. É preciso, portanto, confiar integralmente no poder
benéfico do Estado-nação para com os seus nacionais, bem como destes nacionais para
com o Estado-nação.
É importante ressaltar que as pessoas não possuem nomes como elemento que
às identifique, exceto legalmente, pois são apenas indivíduos de um Estado e não mais
pessoas de uma aldeia ou de uma vila medieval, como outrora ocorria. É no todo do
Estado-nação que estas pessoas tornam-se alguma coisa, isto é, assumem uma
identidade diante das demais pessoas e dos demais Estados-nações. Por mais
significativo que seja ter nascido no norte da França ao invés do sul, todos os nascidos,
seja no norte ou no sul, são, agora, franceses.
Para Anderson (1989), tanto o romance como o jornal ajudaram na construção
do que ele denominou comunidades imaginadas, pois construíram conceitos abstratos
na coletividade de determinados territórios, fazendo com que os sujeitos pensassem que
eram portadores de uma consciência nacional coletiva e diferente das demais
64
consciências nacionais (formada pela decadência do latim e pelo impacto da Reforma
religiosa) de outros Estados-nações.
Segundo Anderson (1989, p. 46-56), as origens da consciência nacional estão
calcadas em diversos dialetos que foram agrupados e deram origem às línguas
nacionais, sendo que no século XVII já tinham suas formas modernas; na erosão da
comunidade sagrada imaginada; no surgimento de novas comunidades nacionais; no
aparecimento de um sistema de produção e de relações produtivas (capitalismo).
Entretanto, a unificação lingüística era uma irrealidade nas nações, mas, mesmo assim,
ela serviu para tornar um conceito errôneo em algo verdadeiro e, sobretudo, concreto,
pois se incutiu nos sujeitos que eles eram iguais e tinham os mesmos direitos pelo fato
de estarem naquele e não em outro Estado-nação.
Teoricamente, a origem do Estado- (termo jurídico) nação (termo sociológico)
serviu para tranqüilizar os indivíduos. A criação e a aplicabilidade de leis é um exemplo.
Podemos resumir as conclusões que se podem tirar da exposição até
este ponto, dizendo que a convergência do capitalismo e da tecnologia
da imprensa sobre a diversidade fatal das línguas humanas criou a
possibilidade de uma nova forma de comunidade imaginada que, em
sua morfologia básica, prepara o cenário da nação moderna
(ANDERSON, 1989, p. 56).
Para Anderson (1989, p. 14), a nação ―[...] é uma comunidade política
imaginada – e imaginada como implicitamente limitada e soberana.‖ Com isso, para que
a nação possa existir é preciso que ―[...] os indivíduos tenham muitas coisas em comum
e, também, que todos tenham esquecido muitas coisas [...]‖ (ANDERSON, 1989, p. 14).
Isto quer dizer que o Estado-nação é uma criação social abstrata feita pelas pessoas e
não algo que sempre esteve presente e é indispensável para a sobrevivência dos
indivíduos.
Anderson (1989, p. 15) afirma, também, que a ―[...] nação é imaginada como
limitada, porque até mesmo a maior delas, que abarca talvez um bilhão de seres
humanos, possui fronteiras finitas, ainda que elásticas, para além das quais encontramse outras nações.‖
Com o advento do Estado-nação as pessoas, que antes davam suas vidas pela
Igreja Católica passaram, por exemplo, a oferecer suas vidas e suas mentes para o bem
superior do Estado-nação. Ou seja, as pessoas dão suas vidas pelo fato de que se
morrerem, como em uma guerra, terão como recompensa o fato de terem morrido em
prol do seu Estado-nação, com isso os indivíduos não morrem mais por causa da fé, mas
65
sim por causa do ideal nacionalista.
Um exemplo de Estado-nação que criou um monumento para homenagear os
soldados mortos em combate é a França. O Arco do Triunfo, obra localizada na capital
francesa – Paris, é um memorial em nome dos soldados franceses que foram mortos em
nome do Estado-nação francês, porém, não há corpos no local, é somente algo que
imaginamos sobre o fato, ou seja, sobre os soldados que morreram. Porém,
simbolicamente os soldados estão presentes.
Já para o historiador Eric J. Hobsbawm (1994, p. 27), o principal elemento do
Estado-nação moderno é a sua própria noção política de modernidade. Para ele, o
conceito atualmente em voga de Estado-nação passou a existir no século XIX,
sobretudo a partir de 1850. Entretanto, a idéia geral do senso comum e dos discursos
políticos enfatiza que o Estado-nação sempre existiu e que sua origem está em tempo e
em espaço imemoriáveis, mas que existiram, entretanto, não podem ser encontrados.
Este discurso é necessário para criar uma concepção de unidade abstrata, tanto
legal, territorial, étnica, lingüística e cultural, uma vez que se os indivíduos não mais
acreditarem que o Estado-nação realmente sempre existiu, e continua a existir, ele será
colocado em questionamento e sua sólida unidade imaginada, na prática, desmoronará,
já que ela, de fato, não existe.
Mas o Estado-nação na – e da – pós-modernidade assume outras
características. Se o Estado-nação era concebido, segundo afirmação de Anderson
(1989, p. 31-45), como uma comunidade política imaginada, na pós-modernidade o
mesmo deixa de existir como tentativa de explicar teoricamente a realidade histórica.
Sua principal característica passa a ser um tempo e um espaço nos quais a realidade
história não é mais homogênea, mas sim totalmente heterogênea.
Surgem, para exemplificar, cidadãos nacionais e minorias étnicas e/ou culturais
que não são mais nacionalistas. Estes sujeitos preferem, muitas vezes, simpatizar e/ou
apoiar moralmente as – supostas – verdades de outros Estados-nações ou optam pela
criação de novos Estados-nações, pois querem que seus anseios sejam materializados.
O povo, que antes era peça-chave para o discurso coeso do Estado-nação, passa
a ser, agora,
[...] nem o princípio nem o fim da narrativa nacional; ele representa o tênue
limite entre os poderes totalizadores do social como comunidade homogênea,
consensual, e as forças que significam a interpelação mais específica a
interesses e identidades contenciosos, desiguais, no interior de uma
população (BHABHA, 1998, p. 207).
66
As fronteiras, marcos legais de delimitação da existência física do Estadonação, são constantemente ameaçadas. Livros e roupas de outros territórios,
contrabando de entorpecentes, trabalhadores ilegais que se deslocam para outros
Estados-nações com a intenção de conseguir trabalho/emprego, refugiados políticos,
transporte de mercadorias, ligações telefônicas internacionais, mensagens eletrônicas e
tantos outros meios de interação e de comunicação social e econômica que são
características essenciais do Estado-nação pós-moderno e que conseguiram abalar o
discurso, até então firme, do Estado-nação moderno.
Este Estado-nação pós-moderno, portanto, passa a ser portador de um tempo e
de um espaço que não admite mais as relações inflexíveis e o nacionalismo exacerbado,
que possui pseudo-verdades e que todo mundo, ou seja, todo cidadão, precisa acreditar,
pois é por meio deste processo de imaginação que o Estado-nação assume importância
abstrata e material no cotidiano de muitos indivíduos.
O Estado-nação ―[...] se transforma de símbolo da modernidade em sintoma de
uma etnografia do ―contemporâneo‖ dentro da cultura moderna.‖ (BHABHA, 1998, p.
209). Afinal, o sentido de comunidade imaginada que existe por si só não mais se
sustenta, uma vez que alguns dos sujeitos que estão no Estado-nação já não mais se
imaginam neste contexto abstrato.
Por sua vez, os discursos históricos de unidade legal, território seguro,
soberania nacional inabalável, povo unido culturalmente e língua nacional mostram que
quando a análise é menos pedagógica (tradicional) e mais performativa (pós-moderna),
visando construir diariamente o mundo cultural, como teorizou Homi Bhabha (1998, p.
198-207), muitas incoerências históricas emergem e descaracterizam o que
conceitualmente é denominado de Estado-nação, pois, na prática, o mesmo é um mito.
A nação não é mais o signo de modernidade sob o qual diferenças culturais
são homogeneizadas na visão ―horizontal‖ da sociedade. A nação revela, em
sua representação ambivalente e vacilante, uma etnografia de sua própria
afirmação de ser a norma da contemporaneidade social (BHABHA, 1998, p.
212).
O tempo do Estado-nação, algo vazio e homogêneo, deixa de ser pontual e
sincrônico e torna-se um tempo de duplicação, algo que não significa tempo plural. O
espaço histórico passa a comportar novas e, em algumas vezes, menos poderosas, vozes
de grupos que estavam na condição de periféricos. Desta forma, o ―[...] discurso da
minoria revela a ambivalência intransponível que estrutura o movimento equívoco do
tempo histórico.‖ (BHABHA, 1998, p. 222). Com isso, o Estado-nação explicita, por
67
meio das vozes da minoria, suas fissuras e suas contradições discursivas, afinal,
propagava-se, teoricamente, a afirmação de que sob o tempo/espaço do Estado-nação a
realidade era uma só, isto é, algo uno e indivisível, e as pessoas que faziam parte dele
tinham, em última análise, muitos elementos que as caracterizavam como iguais.
Entretanto, na realidade, e é isto que o Estado-nação da pós-modernidade
procura evidenciar, o tempo/espaço coeso e homogêneo, bem como a narrativa oficial e
o nacionalismo, que é ―[...] uma forma obscura de viver a localidade da cultura [...]‖
(BHABHA, 1998, p. 199), não encontram, agora, mais sustentação. O Estado-nação –
concomitantemente com o tradicional, a nacionalidade, o povo, o tradicional e os muitos
outros elementos que o constituem, como a soberania – passa a ser concebido como
algo que é, em seu interior, dividido. Contudo, tenta, seja na teoria e/ou na prática, com
os instrumentos que possui, como as leis nacionais e as práticas culturais
inventadas/criadas, articular os seus habitantes e transformá-los, o quanto mais for
possível, em pessoas que concebam que o lugar no qual residem é um espaço ímpar e,
por isso, não igual aos outros tempos/espaços, isto é, os demais Estados-nações.
3 – Práticas culturais: pós-colonialismo e hibridismo
As palavras pós-colonialismo e hibridismo, na leitura das obras de autores
como Hall (2003), Canclini (1998), Gruzinski (2001) e Bhabha (1998), são entendidas
como necessárias para analisar, dentro de um outro contexto, a História e as demais
disciplinas acadêmicas, uma vez que as teorias positivistas, historicistas/historistas e
marxistas não enfocavam explicitamente a existência do mundo caótico e fragmentado,
algo que é proposto por meio da teoria pós-moderna.
O pós-colonialismo propõe que os estudiosos, sejam eles historiadores ou não,
compreendam a realidade que analisam como algo não dicotômico e nem homogêneo,
recusando, portanto, a idéia do discurso binário. No pós-colonialismo, as grandes
narrativas do Estado-nação são recusadas, tanto na análise da realidade como na
produção da teoria, e emergem, com isso, vozes de diversas periferias, tanto de pessoas
residentes nas zonas desenvolvidas, como das pessoas imigrantes, ou nas zonas
subdesenvolvidas, como dos indígenas.
Para Stuart Hall (2003, p. 109), que está radicado na Inglaterra desde 1951, o
pós-colonialismo é ―[...] parte de um processo global essencialmente transnacional e
transcultural – e que produz uma reescrita descentrada, diaspórica ou ―global‖ das
grandes narrativas impressas do passado, centradas na nação.‖
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Já para Serge Gruzinski (2001, p. 41), historiador francês, o pós-colonialismo
significa o poder de se fazer presente ―[...] em espaços intermediários, situados entre o
Ocidente e suas antigas possessões, a emergência de ―quadros conceituais híbridos que
produzem novos modos de conhecimento‖.‖
Porém, para Homi Bhabha (1998, p. 217), indiano que reside na Grã-Bretanha,
o pós-colonialismo representa o tempo que ―[...] questiona as tradições teleológicas de
passado e presente e a sensibilidade polarizada historicista do arcaico e do moderno.‖
Com isso, o pós-colonialismo é um tempo no qual o além, que é denominado
como ―distância espacial‖ (BHABHA, 1998, p. 23), se faz presente como uma
necessidade, sobretudo o além da nação imaginada, pois a realidade pluralista aparece
como um objeto negado pelas arcaicas concepções teóricas, como a Iluminista, porém,
existente e que deve, portanto, ser reconhecida e analisada cientificamente.
Bhabha (1998, p. 25) afirma que o pós-colonialismo – mas também o pósmoderno – não pode ser confundido, simplesmente, como uma história que cria vozes
para os sujeitos excluídos. Para ele, o
[...] efeito mais significativo desse processo não é a proliferação de ―histórias
alternativas dos excluídos‖, que produziriam, segundo alguns, uma anarquia
pluralista. O que meus exemplos mostram é uma base alterada para o
estabelecimento de conexões internacionais.
O pós-colonialismo, portanto, não é, nem pode ser confundido com, a história
social, teoricamente renovada em suas teorias, métodos e objetos, sobretudo a partir da
década de 1960 e 1970, inicialmente na Inglaterra e na França e, posteriormente, em
muitos outros locais do globo, como no Brasil.
Trabalhos acadêmicos, agora já clássicos, que compõem parte de uma
biblioteca da história social renovada, e que não devem, de forma alguma, ser
confundidos e/ou mencionados como portadores de uma mesma teoria, ou seja, da
teoria pós-colonial, são: A formação da classe operária inglesa (THOMPSON, 1987, 3
vols.), Os trabalhadores (HOBSBAWM, 2000), A multidão na História (RUDÉ, 1991)
e Mundos do trabalho (HOBSBAWM, 1988).
Sendo assim, o pós-colonialismo não aceita ―[...] a racionalidade da escolha
política ser dividida entre as esferas polares do privado e do público.‖ (BHABHA,
1998, p. 217). É preciso pensar que a realidade, na concepção pós-colonial, acontece de
formas diferentes e que são estas diferenças que conferem as singularidades que são, ao
mesmo tempo, duplicações das vidas individuais e dos projetos coletivos.
Tudo isso faz com que surja teoricamente a possibilidade de se analisar a
69
realidade com mais intensidade e de se enfocar que a mesma não é, nem nunca foi, algo
coeso, já que era isso que as grandes narrativas centrais defendiam e as leis dos Estadosnações impunham, ou ainda impõem, culturalmente aos seus habitantes.
Desta forma, o pós-colonialismo é uma narrativa descentrada, isto é, uma voz
que vem de outros lugares, sobretudo de pessoas do Terceiro Mundo, e de outros tempos
e de outros espaços. Uma voz que não é mais apenas da metrópole e dos metropolitanos,
mas sim dos diversos e diferentes indivíduos que estão presentes e, agora, procuram
fazer com que suas afirmações sejam ouvidas e tornem-se um poder válido que vá além
do que existia no mundo colonial.
É possível afirmar também que o pós-colonialismo, ao questionar as muitas
verdades que constituíam o discurso do colonial, cria novos e, por vezes, conflituosos
espaços de poder, uma vez que o pós-colonialismo nega as explicações da história
colonial e propõe uma re-escrita daquilo que era considerado como verdade sólida e
nunca, ou quase sempre, inquestionável.
Quanto ao hibridismo, que cada vez mais nega a existência prática do exótico,
de forma bem genérica, significa que as relações, tanto objetivas como subjetivas, são
entrelaçadas de essências não puras. Isto é, o hibridismo representa uma realidade que é
construída por várias outras realidades e, por vezes, dissonantes vozes individuais e/ou
coletivas que vivem e pensam, sobretudo o campo cultural, como algo em constante
fluidez e contrário às dicotomias conceituais.
Nesta análise, o tempo e o espaço históricos nunca são lineares e homogêneos,
pois a história linear pressupõe a existência de uma linha do tempo e do espaço e,
portanto, aceita a afirmação teórica de um tempo e de um passado em que o original e o
tradicional existem e devem ser resgatados para que tenhamos a ―verdadeira história‖.
Não são homogêneos porque a realidade não é una, mas sim multifacetada.
Néstor García Canclini (1998), argentino radicado no México e doutor em
Filosofia pela Universidade de Paris, afirma que as culturas se relacionam com outras
culturas constantemente. Este fato proporciona um processo no qual o isolamento, na
prática, não existe, afinal, este isolamento só pode existir em teorias errôneas.
Segundo Canclini (1998, p. 19), que opta pela palavra hibridação ao invés de
hibridismo, pois ―[...] abrange diversas mesclas interculturais [...]‖, nós devemos
compreender a hibridação como um conceito que admite diversas características
culturais em uma mesma cultura, e, por isso, também afirma que a mesma sempre está
em formação. Desta forma, a cultura é entendida como híbrida e o estudo dela deve ser
70
por meio do ―[...] trabalho transdisciplinar. Não digo interdisciplinar porque isto
costuma significar que os diversos especialistas justapõem conhecimentos obtidos
fragmentária e paralelamente.‖ (CANCLINI, 1998, p. 281). Um exemplo, segundo
Canclini (1998, p. 300), é o dos monumentos públicos nas grandes cidades, pois estes
possuem vários elementos, já que não são, na maioria das vezes, construídos no tempo e
no espaço históricos em que se fazem presentes.
Mas para Gruzinski (2001, p. 62), que estudou a realidade histórica da América
Central e referente ao tempo do século XVI, a hibridação é concebida como as ―[...]
misturas que se desenvolveram dentro de uma mesma civilização ou de um mesmo
conjunto histórico – a Europa cristã, a Mesoamérica – e entre tradições que, muitas
vezes, coexistem há séculos.‖ Sendo assim, a teoria binária, que divide a cultura em:
cultura popular e cultura erudita, não possui validade para analisarmos o nosso tempo e
o nosso espaço históricos, uma vez que o hibridismo está em todas as realidades, pois,
como escreveu Gruzinski (2001, p. 41), ―[...] todas as culturas são híbridas [...]‖ e,
segundo Canclini (1998, p. 348), também são ―[...] culturas de fronteira [...]‖.
Ao mencionarmos o que vem a ser o conceito de hibridismo, trazemos à cena,
inevitavelmente, a palavra cultura, ou culturas, já que ela perpassa todas as obras e é
muito explicitada no livro Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da
modernidade, de Canclini (1998).
Para Roger Chartier (1995), historiador francês, a cultura possui uma história
impressa construída segundo os anseios de algumas pessoas, porém, na realidade, esta
história não existe, já que as pessoas que não escreveram a história da cultura estavam
mais preocupadas em viver diariamente a cultura do que enquadrá-la em conceitos
científicos. No artigo “Cultura popular”: revisitando um conceito historiográfico,
Chartier (1995, p. 179) escreveu que ―[...] é possível reduzir as inúmeras definições da
cultura popular a dois grandes modelos de descrição e interpretação.‖ O primeiro afirma
que a cultura popular é coerente e autônoma e o segundo que ela é o oposto da cultura
dominante que possui como origem as classes sociais mais abastadas.
Para Chartier (1995, p. 183), não é relevante estabelecer esta dicotomia teórica,
afinal, não existe cultura legítima ou cultura desqualificada, mas sim saber o que as
culturas possuíam e o que elas possuem, ou seja, o trabalho do historiador é
compreender, e não julgar, a importância da cultura para os sujeitos que, em certo tempo
e espaço, viveram e praticaram determinadas práticas culturais, uma vez que elas eram,
seja material ou simbolicamente, necessárias para a cultura daqueles indivíduos.
71
Um exemplo de cultura híbrida, existente na realidade brasileira, é o das festas
juninas. No texto Cultura popular: um conceito e várias histórias, de autoria da
professora Martha Abreu (2003, p. 96-100), as festas juninas são concebidas como
totalmente carregadas por elementos que não são puros e nem tradicionais das festas
juninas de origem européia. Para Abreu (2003), as festas juninas e as práticas culturais
que as compõem precisam ser entendidas no contexto histórico em que surgiram e não
por meio da realidade cultural do estudioso que as analisa. Como exemplo prático,
tendo por base o espaço territorial do Estado do Rio de Janeiro, ela afirma que não há
problema algum se os adolescentes quiseram colocar músicas de funk nas festas juninas,
pois até a década de 1950, segundo materiais pesquisados pela autora, as festas juninas
não tinham os elementos que as caracterizam, hoje, como festas juninas ―tradicionais‖.
Neste sentido, manipular o que é o conteúdo do híbrido e o que vem a ser o
conteúdo da cultura brasileira significa tentar controlar um determinado poder, porém,
nada pode assegurar que realmente a realidade seja moldada conforme se pretende. Daí
a afirmação de que o hibridismo, e também a cultura, precisam ser vividas para terem
significados e não serem teorizadas e/ou controladas para, então, passarem a possuir
algum significado. Porém, quando isso ocorre, verificamos a idealização, e que sempre
é estereotipada, do híbrido e da cultura.
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CHARTIER, Roger. ―Cultura popular‖: revisitando um conceito historiográfico.
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72
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73
Contribuições das teorias de Marx e Tocqueville para a Sociologia da Religião
Contributions of the theories of Marx and Tocqueville for the Sociology of Religion
Joaquim Alves Ferreira Filho1
Recebido em 14/02/2013; aceito em 25/05/2014
______________________________________________________________________
Resumo: Considerando a recorrência e importância do fenômeno religioso como uma das chaves para a
compreensão do mundo da pós-modernidade, o presente texto pretende atualizar importantes
contribuições da teoria sociológica clássica ao corpo de analise da Sociologia da Religião ao utilizar
referenciais teóricos contidos nas obras de Karl Marx e Alexis de Tocqueville.
Palavras-chave: Religião; Sociologia da Religião; marxismo.
Abstract: Considering the importance and recurrence the religious phenomenon as a key to
understanding the world of postmodernity, this paper aims to update important contributions of classical
sociological theory to analyze the body Sociology of Religion by using theoretical references contained in
the works of Karl Marx and Alexis de Tocqueville.
Words key: Religion; Sociology of Religion; marxism.
Introdução
Nos últimos trinta anos processou-se uma mudança positiva na perspectiva dos
estudos da Sociologia da Religião revelada pelo aumento dos núcleos, centros e
organismos de pesquisa da religião e seus fenômenos correlatos à sociedade.
1
Pós-graduado no curso de Especialização em Sociologia Urbana pela Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (UERJ). Mestrando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (PPGCS/UFRRJ) - Campus Seropédica- BR
465/ Km 7, SeropédicaRJ -CEP: 23890-000 - Tel.: (21) 2681-4707 - e-mail:
[email protected]
74
A importância também se processou em termos acadêmicos com um aumento
substancial na produção intelectual da área e na sua correspondente influência na
sociedade. No sentido, por exemplo, de contribuir para a formulação de políticas
publicas.
Tais mudanças poderiam ser resumidas a partir de dois aspectos.
O primeiro deles refere-se, conforme Daniele Hervieu-Léger e Paul Willaime, à
existência epistemológica e metodológica na própria tradição dos clássicos da
Sociologia e no seu confronto com a análise do religioso.
Conforme os autores,
Todos os grandes clássicos da Sociologia se confrontaram com a analise do
religioso e essa analise ocupa frequentemente um lugar não pequeno no
conjunto de sua obra. É que o nascimento da Sociologia como disciplina
cientifica encontrou-se fortemente ligado a uma interrogação sobre o futuro
do religioso nas sociedades modernas. É pelo fato de os autores clássicos da
Sociologia terem sido sociólogos da modernidade (...) por terem sido
habitados pela consciência histórica de um sentimento de ruptura com o
passado (...) É e justamente por sua problemática – retomada, transformada,
desviada – continuar a inspirar as pesquisas atuais, que nos pareceu
importante voltar aos clássicos. Tal retorno é mais imperativo ainda pelo fato
de que o abalo de alguns grandes paradigmas interpretativos – como da
secularização- arrisca-se tanto na Sociologia das religiões como em outros
domínios da Sociologia , a reduzir a investigação sociológica para formas
mais ou meso sofisticadas de positivismo dos dados, esquecendo as grandes
interrogações epistemológicas e a profundidade histórica dos grandes
clássicos da
Sociologia .(...) para analisar as mutações religiosas
contemporâneas. (Hervieu-Léger e Willaime, 2009. p.10).
Os autores enfatizam a importância dos pensadores clássicos da teoria
sociológica. Destaco os casos de Karl Marx, Max Weber, e Emile Durkheim que
revelam nas suas obras uma adequação com esse primeiro aspecto. No estagio do
desenvolvimento atual da teoria sociológica, mesmo com perspectivas diversas, os
autores citados são presentes e fundamentais em qualquer analise contemporânea das
relações entre a religião e a sociedade. Não há como negar, portanto, o caráter de
centralidade da religião nas abordagens teóricas clássicas da Sociologia.
Com isso, a Sociologia da Religião dinamizou-se em ritmo tão acelerado que
com as conformidades do mundo atual, o sentido da teoria clássica foi redimensionado
originando a necessidade de outros autores contribuírem para a formação do complexo
teórico necessário à Sociologia da Religião.
75
O segundo aspecto refere-se à própria mudança social no sentido da
configuração de mundo em termos de pós-modernidade, nesse caso utilizando-se a
acepção de Anthony Giddens:
(...) muita gente argumenta que estamos no limiar de uma nova era, a qual as
ciências sociais devem responder e que está nos levando para além da
própria modernidade (...) a pós-modernidade se refere a um deslocamento das
tentativas de fundamentar a epistemologia, e da fé no progresso planejado
humanamente condição da pós-modernidade é caracterizada por uma
evaporação da grand narrative- "o enredo"dominante por meio do qual somos
inseridos na história.(...) A perspectiva pós-moderna vê uma pluralidade de
reivindicações heterogêneas de conhecimento, na qual a ciência não tem um
lugar privilegiado.(Giddens, 1991 , pp.10-12).
Mudanças de paradigmas, imbricações nas diversas esferas sociais, confusões
entre público e privado, "religiogizar categorias políticas em detrimento" a "politização
de categorias religiosas‖ (NOVAES, 2002), aumentaram a necessidade de se estudar o
fenômeno religioso como importante na constituição e na dinâmica das sociedades,
buscando nas teorias clássicas sociológicas o principal aporte teórico.
Portanto, destaco os casos de Aléxis de Tocqueville e de Karl Marx que possuem
importantes contribuições para a Sociologia da Religião, algumas naturalizadas e outras
esquematicamente inseridas no contexto mecânico e binário de mundo que já não existe
mais. O que formou a Sociologia como ciência. A intenção é desnaturalizar essas
contribuições e atualizá-las no contexto líquido, fluido e incerto da pós-modernidade.
Tocqueville: democracia e religião:
Alexis de Tocqueville (1805-1859) pertenceu a uma grande família aristocrática e
católica da antiga Normandia. Duas de suas obras: ―A Democracia na América‖
(1835/1840) e ―O Antigo Regime e a Revolução‖ (1856), são consideradas
fundamentais para a teoria política moderna.
Tocqueville ,em primeira analise, é consagrado como autor clássico da Ciência
Política. Entretanto, a divisão das Ciências Sociais em disciplinas estanques e sem
comunicação não serve à compreensão do mundo, pois este requer uma totalidade
compreensiva. Deste modo, uma leitura atenta, atualizada e articulada com o mundo
atual, não só coloca Tocqueville no nível da teoria clássica, mas também revela
importantes aspectos para os estudos da Sociologia da Religião.
76
Sobre o aspecto de teórico fundador da teoria social, Aron comenta que
em geral Tocqueville não figura entre os inspiradores do pensamento
sociológico. Esta falta de reconhecimento de uma obra importante me parece
injusta. Contudo tenho outra razão para analisar seu pensamento (...) Em vez
de pintar a preponderância do fato industrial, como Comte , ou do fato
capitalista , como Marx ele atribui primazia ao fato democrático (Aron,
2002,p.317).
Nesse sentido, sua oposição aos sociólogos considerados como clássicos
resume-se ―a rejeição das sínteses amplas que pretendem prever o curso da história.
Não acredita que a história passada tenha sido determinada por leis inexoráveis e que
os acontecimentos futuros estejam pré-determinados‖. (Aron, 2003, pp.376-377).
Na interpretação de Aron, a concepção teórica de Tocqueville afirma que este
deseja tornar a história inteligível e não quer suprimi-la: ‖Ora os sociólogos do tipo de
Comte e de Marx estão sempre inclinados a suprimir a história, pois conhecê-la antes
de que se realize é tirar-lhe a dimensão propriamente humana, a da ação e da
imprevisibilidade‖ (Aron ,2003. pp.377). Enfim, da subjetividade também.
É importante certo aporte teórico e biográfico de Tocqueville para frisar suas
concepções e convicções políticas que influenciaram seu trabalho teórico.
Segundo François Furet (1989), Tocqueville era "pouco inclinado’ as
simplificações inseparáveis da vida pública, e mesmo ainda aos compromissos
necessários a conquista do poder”. (p.1064), ainda que ele tenha exercido cargos
públicos.
Assim, redimensionada ao posto de Teoria Clássica, a Sociologia tocquevilliana
contribui com importantes aspectos para a compreensão do fenômeno religioso em
geral.
A religião é, na visão de Tocqueville, uma peça-chave na conservação das
instituições políticas e democráticas. Ao estudar a democracia nos Estados Unidos, ele
atribui à religião o papel de manutenção da ordem a partir do momento em que com seu
repertório moral e persuasivo contribui para evitar excessos, especialmente àqueles
ligados aos prazeres mundanos materiais. Para Tocqueville, os costumes, valores,
hábitos e crenças, incluída nessa sequência a religião, balizam a existência de uma
sociedade que se quer dotada de liberdade e, por conseguinte, de estabilidade.
Devido ao próprio ethos de Tocqueville e por sua ambição teórica de pensar a
questão da igualdade e da liberdade, sua teoria incide ainda em considerações
77
especificas sobre o
catolicismo. Partindo de reflexões sobre o fundamentalismo
religioso da democracia norte-americana, seu ponto de vista um tanto superficial mostra
como ―entre as diversas confissões cristãs, o catolicismo é uma das mais favoráveis à
igualdade das condições. Para os católicos, a sociedade religiosa compõe-se apenas de
dois elementos: o padre e o povo. Apenas o padre se eleva acima dos fieis: abaixo dele
todos são iguais". (Tocqueville apud Cipriani, 2007, p.51).
Mesmo assim, Tocqueville é importante para o aprofundamento de uma
tendência da vida social atual que aponta para certa visão de comunitarismo e da vida
em comunidade recorrentes às origens do catolicismo, em meio às incertezas pósmodernas.
Sobre isso, Marcelo Camurça (2010) comenta que
No seio do catolicismo, o ideal comunitário é algo que compõe sua
configuração desde a época remota de suas origens. Ela se articula com
outras instâncias mais hierárquicas da Igreja, compondo a grande constelação
católica. A modalidade pela qual as comunidades se constituíram no seio da
Igreja Católica aponta para uma pluralidade de ordens e congregações
religiosas masculinas e femininas, por grupos profissionais e segmentos
sociais, umas intramundanas e outras extramundanas, dos monacatos e
abadias, (...) a fim de viver de acordo com os preceitos dos apóstolos numa
disciplina de santidade e ascetismo (2010, p.76).
Embora a ideia original de comunidade seja associada à tradição do catolicismo
parece que ela é atualizada no período da pós-modernidade. Com o surgimento das
―novas comunidades católicas" 2: ―Esses grupos combinam de forma original o ideal
ascético e de santidade (que marcaram as comunidades clássicas) com a subjetividade
moderna e os estilos e tecnologias contemporâneas (como a mídia, a internet, o lazer e
o consumo)." (Camurça, 2010, p.76).
É oportuno considerar que os textos fundamentais de Tocqueville, mostram que
o espírito religioso que ele encontrou nos Estados Unidos da América não foi
encontrado na Europa, precisamente na França balançada pela Revolução de 1789 com
a defesa da igualdade. Para ele, a igualdade levava a uma uniformidade de paixões e
seus desenfreamentos políticos em todo o mundo e a experiência da Revolução
2
Para aprofundamento sobre as ―Novas Comunidades Católicas‖, ver CARRANZA, Brenda;
CAMURÇA, Marcelo e MARIZ, Cecília. Novas Comunidades Católicas: buscade espaços na pósmodernidade. Aparecida,SP: Editora Idéias e Letras,2009. Para aprofundamento sobre a questão das
comunidades ver BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de
Janeiro. Jorge Zahar Editores, 2003..
78
Americana do século XVIII era o modelo de como organizar essas paixões e refreá-las
em leis e costumes, subtendida a religião nesse caso.
Tocqueville ―quis comparar uma democracia que não encontrou adversários,
como a República dos Estados Unidos, com uma democracia que teve de derrubar um
mundo, como a Revolução Francesa” (Furet, p.1066,1989). A concepção democrática
tocquevilleana tinha nos Estados Unidos o verdadeiro tipo ideal da sociedade.
Se na obra ―O Antigo Regime e a Revolução", Tocqueville vê na secularização
como fruto de uma revolução política que ―quis desenraizar, ao mesmo tempo em que a
sociedade aristocrática, o fundo das crenças religiosas" (Furet, p.107,1989), em ―A
Democracia na América‖, Tocqueville afirma que
ao mesmo tempo em que a lei permite ao povo americano tudo fazer, a
religião impede-o de tudo conceber e proíbe-lhe tudo ousar. A religião, que
entre os americanos nunca se mistura diretamente no governo da sociedade,
deve, pois ser considerada como a primeira das suas instituições políticas,
pois, se não lhes dá o gosto à liberdade, facilita-lhes singularmente o seu uso
.(TOCQUEVILLE, 1998, p. 225).
Temos, portanto a comprovação de que as nações europeias saídas do Antigo
Regime, principalmente a França, chegaram a um Estado democrático sem a
correspondente criação de instituições sociais correspondentes ou tradições políticas e
religiosas que equilibrassem a democracia.
A teoria acima, portanto, constrói um caminho que, na sua conclusão, vislumbra
uma outra contribuição da teoria de Tocqueville para importante fenômeno do mundo
atual marcado por incertezas da religião hierarquizada
e por expectativas da
religiosidade latente: o fenômeno da secularização, ou seja
o processo pelo qual setores da sociedade e da cultura são subtraídos à
dominação das instituições e símbolos religiosos. (...) ela afeta a totalidade da
vida cultural e da ideação e pode ser observada no declínio dos conteúdos
religiosos na arte, na filosofia, na literatura e, sobretudo, na ascensão da
ciência, como uma perspectiva autônoma e inteiramente secular, do
mundo.‖(Berger,1985, p.119).
Tocqueville defendeu a separação completa entre o Estado e a religião, pois para
ele o espírito da religião e o da liberdade se completam e se entendem bem: “Aliandose a um poder político , a religião aumenta seu poder sobre alguns e perde a esperança
de reinar sobre todos” .(Tocqueville apud Hervieu--Léger e Willaime2009.p.62).
79
A experiência da religião é garantida pelo seu enraizamento na experiência
individual e sobrevive sem o Estado.A garantia para isso é unicamente a fé.
Portanto, conforme Hervieu--Léger e Willaime
Defendendo a separação entre as Igrejas e o estado, Tocqueville avaliza a
diferenciação funcional da própria modernidade. Se ele atribui um grande
lugar á religião, isso não é para lhe dar o poder;ao contrário é para que ela
permaneça confinada á esfera que lhe é própria: apenas nessa condição ela
poderá ter esse efeito moderador nas sociedades democráticas.(2009, p.63).
A Sociologia dos conflitos: Marx e a religião:
Considerada também como elemento fundador da Sociologia , a teoria social de
Karl Marx (1818-1883) e também de Friedrich Engels (1820-1895) diferencia-se dos
dois outros conjuntos teóricos seminais, o de Durkheim e o de Weber .
A Sociologia Funcionalista de Durkheim considera que cada instituição
desempenha um papel específico na sociedade e seu funcionamento insuficiente
constitui um desregramento no âmbito social - a anomia. A interpretação durkheimiana
de sociedade está diretamente relacionada à força do fato social, ou seja, a própria
sociedade.
Por outro lado, a chamada Sociologia Compreensiva de Weber parte do ponto da
analise da ação social da conduta humana dotada de sentido, isto é, de uma justificativa
subjetivamente elaborada.
Tão importante quanto às elaborações de Durkheim e Weber, o marxismo
contribuiu para o desenvolvimento do pensamento sociológico, não só pelo método
proposto – o materialismo histórico- contraposto a toda metafísica e construções
idealistas -, mas também pela original proposição de uma radical transformação da
sociedade em todos os seus níveis.
O complexo teórico de Marx costuma ser mais enfatizado com a perspectiva
econômica das análises infraestruturais e nos aspectos constitutivos do Estado pelas
influencias da luta entre as classes relacionadas à base material inscrita na totalidade
social.
Segundo Marx, a infraestrutura, modo como define a base econômica da
sociedade, determina a superestrutura que é dividida em ideológica (idéias políticas,
80
religiosas, morais, filosóficas) e política (Estado, polícia, exército, leis, tribunais). O
marxismo considera também que a visão que temos do mundo e a nossa psicologia e
construções mentais são reflexos da base econômica da sociedade.
Outros termos de fundação das Ciências Sociais classificam Durkheim e Weber,
diferente de Marx, como os teóricos mais proeminentes e inscritos no desenvolvimento
da Sociologia da Religião. Contudo, Hervieu-Léger e Willaime afirmam que
conhecemos melhor Marx e Engels como críticos filosóficos e políticos da
religião (...) do que como sociólogos dos fatos religiosos. Se for verdade que
elementos de analise do fato religioso que encontramos em Marx e Engels –
em Engels mais que em Marx- estão englobados em um critica de conjunto
da religião, não será menos verdade que Marx e Engels forneceram
elementos essenciais de análise e colocaram questões que pertencem sem
dúvida a abordagem sociológica (...): a religião como alienação que
obscurece a percepção do mundo social, a religião como legitimação da
dominação, a religião atravessada pelos conflitos de classes.( (2009,p.17).
Por isso é fundamental um exercício de desnaturalização de um aspecto que,
vulgarmente, quer classificar a teoria social de Karl Marx e Friedrich Engels no tocante
a religião como fechada e desimportante .
As considerações são originadas da naturalização contida na
conhecida
afirmação de Marx da religião ser o ópio do povo: ―A religião é o soluço da criatura
oprimida, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação carente de
espírito. É o ópio do povo‖. (MARX, 1844)
Nesse sentido, Marx indica o autoritarismo das chamadas religiões
salvacionistas, as grandes religiões, hierarquizadas, incrustadas no Estado, – o judaísmo,
o cristianismo e o islamismo. Portanto, a religião como categoria superestrutural do
marxismo serviria as classes dominantes como instrumento de opressão.
Esse conjunto de religiões, as grandes religiões, conforme Marilena Chauí
(2000), ‖amortece a combatividade dos oprimidos e explorados, porque lhes promete
uma vida futura feliz. Na esperança de felicidade e justiça no outro mundo, os
despossuídos, explorados e humilhados deixam de combater as causas de suas misérias
nesse mundo‖ (p.309).
Marx (1844), afirma ainda que do sentimento religioso extrai-se uma lógica
popular e um entusiasmo para a construção de um espírito num mundo sem espírito.
A religião quando se relaciona a aspectos que além de observar quer também
transformar a realidade pela ação política, é um complexo de manifestações populares
que permite a luta contra poderes autoritários instituídos a partir da aplicação dos
81
saberes religiosos populares. ―Se por um lado na religião há a face opiácia do
conformismo, há por outro lado, a face combativa dos que usam o saber religioso
contra as instituições legitimadas pelo poder teológico-político” (CHAUÍ, 2000,
p.310).
Nesse sentido, as considerações de Engels a seguir servem para desnaturalizar
em grande parte a face alienadora da religião:
A história do cristianismo primitivo oferece notáveis pontos de semelhança
com o movimento moderno da classe operária. Como este, o cristianismo foi
em suas origens um movimento de homens oprimidos (...). Tanto o
cristianismo como o socialismo dos operários pregam a próxima salvação da
miséria e da escravidão; o cristianismo situa esta salvação numa vida futura,
depois da morte, no céu. O socialismo a situa neste mundo, numa
transformação da sociedade. Ambos são perseguidos e acuados, seus adeptos
são desprezados e convertidos em objetos de lei exclusivas, os primeiros
como inimigos da raça humana, os últimos como inimigos do Estado,
inimigos da religião, da família, da ordem social.(ENGELS apud.
LESBAUPIN, 2003, pp.17-18).
Assim, para Engels são evidentes os pontos semelhantes e de contato entre o
socialismo marxista e o cristianismo primitivo, ambos considerados como formas de
transformação social. Deste modo, a origem social dos respectivos adeptos, suas
mensagens de libertação e o incômodo deixado para as classes dominantes são pontos
de convergência nessa relação entre religião, política e marxismo.
Um dado concreto e inscrito na História fornece a religião
um viés de
transformação exemplificada pela incorporação de categorias marxistas pela Teologia
da Libertação adequada a uma realidade social de circunstâncias econômicas, políticas
e culturais diversificadas: a América Latina nas décadas de 1960 e 1970.
Por uma exigência da reflexão teológica crítico-concreta a partir dos pobres e
oprimidos é que o instrumental das ciências humanas, particularmente do
marxismo, tornou-se necessário. É a primeira teologia que utiliza esse
instrumento analítico na história, e o adota a partir das exigências da fé,
evitando o economicismo, o materialismo dialético ingênuo, o dogmatismo
abstrato. Pode então criticar o capital e a dependência como pecado (...). Não
estabelece alternativas políticas – pois esta não é uma função da teologia-,
mas evita cair no ‗terceirismo‘ (nem capitalismo, nem socialismo, mas uma
solução cristã política). Não deixa por isso de ser uma teologia ortodoxa (que
surge da ortopraxia) tradicional (...). Entra missionariamente em diálogo com
o marxismo (dos partidos ou movimentos políticos latino-americanos)
(DUSSEL, 1999, p. 495).
De igual importância para atualização da Sociologia de Marx e sua utilização
nos estudos da
Sociologia
da Religião são desenvolvidos e analisados em um
82
importante e elucidativo texto de Michael Löwy .O texto comporta atualizações que
percorrem uma escala muita variada do pensamento marxista acerca da religião. De
Gramsci, passando por Ernst Bloch até a Escola de Frankfurt, o autor, retira
definitivamente o senso-comum da expressão ―o ópio do povo”.
Ao
desnaturalizar essa questão,
componente de transformação
o autor abre caminho para vincular
o
da religião às classes populares. O texto de Löwy
também atualiza a critica citada por Marx e Engels sobre o poder das grandes religiões
que, nos dias de hoje, está misturado e influente nas esferas públicas, no Estado e nos
centros políticos de decisões, mesmo considerando que historicamente o papel da Igreja
Católica e seu caráter institucional é de defender seus interesses pela defesa de uma fé
sincera. O texto relativiza a fé.
A religião ainda é tal como Marx e Engels a entendiam no século XIX, um
baluarte de reação, obscurantismo e conservadorismo? Brevemente, sim, é.
Seu ponto de vista se aplica ainda a muitas instituições católicas (a Opus Dei
é só o exemplo mais claro), ao uso fundamentalista corrente das principais
confissões (cristã, judia, muçulmana), à maioria dos grupos evangélicos (e
sua expressão na denominada ―igreja eletrônica". (...) Entretanto, a
emergência do cristianismo revolucionário e da teologia da libertação na
América Latina (e em outras partes) abre um capítulo histórico e eleva novas
e excitantes questões que não podem ser respondidas sem uma renovação da
análise marxista da religião. (Löwy apud Boron,2006,p.5)
Portanto, para a Sociologia em geral e, especificamente para seus estudos acerca
da religião, a análise marxista conserva ainda importantes referências que, conforme
Hervieu-Léger e Willaime comportam
Uma referencia metodológica, com a preocupação constante de por em
evidencia a interação das diversas instancias da sociedade, ou seja, a
preocupação da globalidade, que convida a restituir cada fato social,
particularmente tudo aquilo que se refere ao mundo das representações e das
idéias,em um conjunto que inclui todas as dimensões do social (...) Uma
referencia temática atribuída aos meios sociais (as classes sociais na
terminologia marxista)(...) Uma referencia que nos lembra que, se ‗a verdade
do mundo social é um jogo de lutas‘(Pierre Bordieu),podemos dizer também
que a verdade de cada religião é um jogo de lutas, tanto mais que toda
expressão religiosa (...) não para de se redefinir de modo conflituoso em
contextos socioculturais mutantes .Uma referência política com a importância
atribuída aos sistemas de dominação e as legitimações do poder (...) por
legitimarem a dominação ou por alimentarem o protesto, colocando-a em
questão.(2009,pp.39-40)
83
Deste modo considero que o texto apresentado contribui para que a Sociologia
da Religião, cada vez mais, se utilize do caminho da utilização de referências da Teoria
Sociológica Clássica na perspectiva da sua atualização para a compreensão do mundo.
Referências
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n.2, pp. 74-89. Disponivel em http://www.scielo.br/pdf/rs/v30n2/a05v30n2.pdf .
Acessado em 19/12/2012
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DUSSEL, Enrique. 1990.Teologia da libertação e marxismo. In: O marxismo na
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Editora Fundação Perseu Abramo, 1999.
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Janeiro,Nova Fronteira, 1989.
GIDDENS, Anthony As conseqüências da modernidade. São Paulo: Editora UNESP,
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MARX, Karl . Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel.(1844).
Disponível
em
84
www.marxists.org/portugues/marx/1844/criticafilosofiadireito/index.htm.Acesso
10/12/2012.
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NOVAES, Regina. Crenças religiosas e convicções políticas: fronteiras e passagens. In:
Política e cultura: século XXI. (L.C. Fridman, org). Rio de Janeiro, RJ. RelumeDumará: ALERJ, 2002
TOCQUEVILLE, Aléxis de. A Democracia na América (Livro II): Sentimentos e
Opiniões. São Paulo, Martins Fontes, 2004
TOCQUEVILLE, Aléxis de. O Antigo Regime e a Revolução. Coleção Os Pensadores,
São Paulo, Abril Cultural, 1985.
.
Movimento “Sou Agro”: marketing, habitus e estratégias de poder do agronegócio1
―I'm Agro‖ motion: marketing, habitus and power strategies of agribusiness
Regina Bruno2
Recebido em 30/04/2014; aceito em 25/05/2014
______________________________________________________________________
Resumo: O objetivo do artigo é analisar o Movimento Sou Agro, que despontou na mídia em meados de
2011, como lugar de institucionalização de interesses do patronato rural e do agronegócio. Procuro
também mostrar que a necessidade de fabricação de uma imagem como expressão da modernidade no
campo tem como objetivo afastar a identificação negativa que associa o agronegócio à depredação do
meio ambiente e à destruição das florestas.
Palavras-chave: Patronato rural , agronegócio, representação; institucionalização de interesses
1
Versão modificada do texto apresentado no 36º Encontro Anual da Anpocs, GT 16- Grupos
Dirigentes e Estruturas de Poder, 2012.
2
Doutora em Sociologia pela Unicamp. Professora do Programa de Pós-Graduação de Ciências
Sociais em Agricultura, Desenvolvimento e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de JaneiroCPDA/UFRRJ. Av. Presidente Vargas, 401/8 andar Rio de Janeiro-RJ (21)2284-8577 sala 211
[email protected]
85
Abstract: This article aims to analyse the Sou Agro Movement, that appeared in the media in mid-2011
as a place of institutionalization of the interests of rural and agribusiness' patrons. I also try to show that
the need of building an image of modernity intends to avoid the negative image of agribusiness
destroying the environment.
Words key: Rural patronage, agribusiness, representation and institutionalization of interests
Introdução
Em meados de julho de 2011, os meios de comunicação de massa veicularam
filmes publicitários que ressaltavam o dinamismo do agronegócio e sua conexão com o
dia a dia da sociedade. O horário nobre nos trouxe, como protagonistas dos filmes, Lima
Duarte – de origem rural e ator de inúmeros papéis identificados com o campo – e
Giovanna Antonelli, carioca, atriz global, representante de uma nova geração de atores.
Nos anúncios, enquanto o primeiro louva a ―Bendita Terra‖3, a segunda transformava,
simbolicamente, sua geladeira em uma fazenda45.
As cenas de Lima Duarte buscam construir simbolicamente a noção de terra e
suas inúmeras significações: terra, raiz da gente brasileira; terra fartura; terra respeito
para quem trabalha; terra, lugar de todas as raças e alimentos do país e do mundo; terra
Brasil – uma das maiores agronações do planeta; terra, motivo de orgulho de todos.
Enfim, terra abençoada. Como imagem de fundo, uma representação do Brasil da
fartura, da tecnologia sofisticada, da felicidade. Entretanto o que vemos nessa
representação é um Brasil sem gente, sem trabalhador, feito só de máquinas.
Giovanna Antonelli, por sua vez, chamou a atenção para a fazenda existente em
todos os lares brasileiros. ―Todo mundo tem uma fazenda. É só abrir a geladeira‖, disse.
3
O vídeo pode ser assistido em www.souagro.com.br/bendita-terra .
4
O vídeo pode ser assistido em http://www.youtube.com/watch?v=s7Cl8zpQeCY
5
Entretanto, da mesma forma que irromperam nos lares brasileiros, Lima Duarte e Giovanna
Antonelli
desapareceram da mídia televisiva. Segundo o jornal "Brasil de Fato", a campanha saiu do ar
porque não deixava claro quem era o anunciante. www.brasildefato.com.br/node/7054
86
O pomar, o gado de corte, a soja, além da plantação de algodão transformada em lençol
e o canavial convertido em etanol. Tudo é agro. ―É o Brasil pra frente‖, enunciava
Antonelli.
As peças publicitárias, patrocinadas pela Associação Brasileira de Marketing
Rural e Agronegócio (ABMR&A), fazem parte do Movimento de Valorização do Agro
– Sou Agro, definido por seus idealizadores como ―uma iniciativa multisetorial de
empresas e entidades de representação do agronegócio brasileiro e produtores rurais‖
que objetiva promover um melhor conhecimento sobre a importância do agronegócio de
modo a reduzir o ―descompasso existente entre a realidade produtiva atual e as
percepções equivocadas sobre o universo agrícola‖6. Para tanto, torna-se fundamental
―reposicionar‖ a imagem do agronegócio nacional na sociedade, destacando suas
contribuições econômicas e sua agenda social e ambiental7 de maneira a provar não ser
destruidor do meio ambiente.
É sobre o movimento Sou Agro concebido como lugar de institucionalização de
interesses de grandes proprietários de terra, empresários rurais e agronegócio de que
trata este artigo. Procuro mostrar que o imperativo de uma campanha de valorização do
agronegócio teve como objetivo primeiro afastar a identificação negativa que associa o
agronegócio à depredação do meio ambiente e à destruição das florestas, além de
estimular uma representação do setor como expressão da modernidade. Ao mesmo
tempo em que disputa política e ideologicamente com os demais grupos sociais e
procura impor a marca e a sua versão sobre alguns temas objeto de debate na sociedade
civil.
Lançado em 18 de julho de 2011 na sede da Federação das Indústrias do Estado
de São Paulo (Fiesp), o Movimento Sou Agro contou com a presença do ex-ministro
Roberto Rodrigues8, seu principal ideólogo, representantes dos setores ligados ao
6
www.souagro.com.br
7
Destacam-se a geração de emprego e renda para a população, o alto padrão tecnológico utilizado
na produção, a garantia de abastecimento interno com contribuições no aumento do poder de compra das
famílias, boas práticas de produção, além de seu papel histórico para o desempenho positivo da nossa
balança comercial e para o desenvolvimento do Brasil.(www.souagro.com.br)
8
Ministro da Agricultura do governo de Luiz Inácio (Lula) da Silva de 2003 a 2006, representante
histórico do cooperativismo empresarial por meio da Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB), e
um dos principais mentores da Associação Brasileira de Agribusiness (Abag). Sobre Roberto Rodrigues
ver o artigo de Mario GRYNZPAN www.fae.unicamp.br/focus/textos/grynspan-mario
87
agronegócio e produtores rurais. E conta com apoio político, financeiro e institucional
das seguintes entidades de representação: Associação Brasileira do Agronegócio (Abag),
Associação Nacional de Defesa Vegetal (Andef), Associação dos Produtores de Soja e
Milho do Estado de Mato Grosso (Aprosoja), Associação Brasileira de Celulose e Papel
(Bracelpa), Associação Brasileira dos Produtores de Algodão (Abrapa), União da
Indústria de Cana de Açúcar (Unica), Organização das Cooperativas do Brasil (OCB),
Associação Brasileira dos Criadores de Zebu (ABCZ), Federação das Indústrias do
Estado de São Paulo (Fiesp), Sindicato Nacional das Indústrias de Alimentos Animais
(Sindirações) e Instituto Nacional de Embalagens Vazias ( Inpev) .
Encontram-se também representados os setores de grãos, de algodão, o setor
sucroenergético e a produção de defensivos, entre outros. A tradicional ABCZ responde
pelos interesses dos grandes pecuaristas. Pelo setor multinacional, Bunge, Cargill, Vale
Fertilizantes, Monsanto e Nestlé. Reafirma-se a proximidade do agronegócio com a
Fiesp, que atualmente possui departamento voltado exclusivamente para o agronegócio.
Propaganda, marketing, consultoria e gestão se fazem representar de modo expressivo
por meio de Accenture, ABMR&A e Valley.
Ancorado no tripé ações de comunicação, campanhas publicitárias e portais e
redes sociais, o Movimento Sou Agro evidencia a importância da propaganda e do
marketing na construção da imagem pública e na reprodução social do patronato rural e
do agronegócio no Brasil. Imagem, mídia e marketing cada vez mais se apresentam
como organizadores da construção simbólica do poder e se encontram na base da ação e
da retórica de legitimação patronal rural.
A campanha de valorização do agro, expressa também uma necessidade de
prestígio por parte dos grupos patronais que dela participam e lhe apóiam. A
constituição do agronegócio, se de um lado implicou em intensa acumulação de riqueza
e na formação de grupos sociais poderosos, de outro não obteve distinção – um dos
mais eficazes símbolos de prestígio esperada, mostrando-nos que poder e riqueza não
necessariamente se constituem em prestígio social. Portanto, ―reposicionar‖ a imagem
do agro, a palavra-chave ordenadora da campanha e reproduzida nos portais das
parcerias e das entidades de representação de classe, significa também ser ―valorizado‖,
―ter distinção‖, ―conquistar o reconhecimento‖
88
A construção da imagem do agro, pretendida pelas elites patronais rurais e do
agronegócio e objetivada no Movimento Sou Agro, busca ampliar indefinidamente a
concepção de agro a todos os agentes e processos sociais da sociedade,
comprometendo-os e consequentemente se desresponsabilizando por possíveis
problemas e impasses existentes.
Enquanto artifício de comprometimento de todos e como imperativo do
engajamento em favor do agronegócio, o movimento Sou Agro busca ligar os
pressupostos de suas argumentações a um fundamento normativo suscetível de
mobilizar ideias em comum e alcançar os indivíduos em seus contextos particulares – a
―agroestudante‖, a ―agromãe‖, o ―agrochef‖, o ―agrotaxista‖, o ―agroator‖,
―agrocidadão‖, ―agrogente‖, ―agrofamília‖, o ―agrobrasileiro‖, que se senta diariamente
à mesa para fazer suas refeições, o ―agroprodutor‖, que desde a pré-história leva o
alimento até à mesa do ser humano‖9 e outros.
Sou Agro simboliza, então, o princípio da universalização. Todos são agro, e se
ainda não o são, deveriam sê-lo, dizem seus porta-vozes. A abrangência da noção de
agro é parte de um habitus de classe, patronal, que consiste em considerar seus
interesses como se fossem de toda a sociedade. Se na década de 1960 as elites rurais
defendiam um ―Brasil vocação agrícola‖, o agronegócio apregoa que ―o planeta é agro‖,
basta apenas reconhecermos esta realidade. Como veremos, são valores ―inseparáveis da
relação com a linguagem e com o tempo (...,) que funciona como materialização da
memória coletiva‖ (BOURDIEU, 2009:90).
Outro estratagema das elites patronais representadas pelo Movimento Sou Agro
é vincular o imperativo da produtividade em nome da necessidade de produção de
alimentos à preservação do meio ambiente, como se fossem processos indissociáveis e
indiferenciados, assim garantindo a continuidade de um processo de desenvolvimento
até agora implementado: excludente, concentrador de terras e condicionador do meio
ambiente aos interesses do capital.
Por fim vemos a elegia ao ―produtor rural empreendedor‖ e ao empresário do
agronegócio como artifício em defesa da retidão de seus propósitos, com o fito de
desfazer a imagem de devastadores do meio ambiente. Na linguagem e mensagens
9
www.andef.com.br/home
89
veiculadas pelo movimento abundam elogios ao produtor do agro referentes ao ―afinco‖
no trabalho, à ―ética‖ e ao ―otimismo‖ demonstrado mesmo nas situações mais
desfavoráveis. Os produtores são concebidos como pessoas ―surpreendentes‖, pois
conseguem, ao mesmo tempo, ser agrônomos, conservacionistas, meteorologistas e
economistas. São ―admiráveis‖ porque conseguem reter em suas mentes conhecimentos
sobre leis, impostos, pragas, commodities, taxa de câmbio, chuva, granizo e geada e
mesmo assim ser competitivos. Diz o vídeo da Basf10: "O mundo não vive sem
agricultores, são eles que alimentam a nação, o planeta. Então, a próxima vez que
encontrar um agricultor experimente dizer obrigado".
Brasil celeiro de alimentos
O movimento Sou Agro e seus parceiros também defendem um Brasil que seja
―celeiro de alimentos para o mundo‖ (Andef) e uma ―potência da energia limpa e dos
produtos advindos da combinação da ciência com a megabiodiversidade‖ (Basf).
Consideram a ―valorização do agro e valorização da classe‖ como processos
indissociáveis (Aprosoja) e defendem como missão do agro a geração de alimentos de
―qualidade‖ e energia renovável para a humanidade. Consideram ainda o Brasil um país
―tipicamente‖ agropecuário (OCB)
É marcada a preocupação em mostrar que o aumento da produção e da
produtividade não resultou da ampliação da área plantada e sim do padrão tecnológico
implementado pelo agronegócio. ―O Brasil se transformou de importador em um dos
maiores exportadores de alimentos utilizando apenas 9% do seu território‖, declaram110
Segundo seus porta-vozes, a terra, concebida como meio de produção, já não se
apresenta mais como determinante. Importante é pesquisa e desenvolvimento, condições
para ingresso no mercado:
10
Disponível em www.basf.com.br/default.asp?id=6343
11
Um planeta faminto e a agricultura brasileira. www.basf.com.br/default.asp?id=6343
90
Grande é a preocupação em fundir o interesse dos grandes proprietários com o
dos pequenos. Todos preconizam o respeito à propriedade da terra e privilegiam uma
representação da terra como expressão da existência humana. Sob esse ponto de vista,
Sou Agro procura convencer pequenos proprietários, sitiantes, agricultores familiares e
pequenos produtores cooperativados que o Código Florestal então vigente é ―prejudicial
aos desfavorecidos‖ pela possibilidade de eles perderem suas propriedades. A garantia
de um futuro promissor e de felicidade decorre tão somente do ―simples contato com a
terra‖, dizem 121.
Ao dirigir-se aos trabalhadores para falar sobre a terra e os perigos do Código
Florestal, Sou Agro busca se apropriar dos poemas de Cora Coralina (1889-1985) 132,
em especial o Cântico da Terra – referência histórica dos movimentos camponeses e
populares de luta pela terra e por direitos rurais no Brasil.
Se a defesa da concentração fundiária remonta a tempos imemoriais, alimenta
uma visão de propriedade da terra como direito absoluto e constitui a porta de entrada
da tradição como explicativa do moderno, a representação do setor procura voltar-se
para o futuro: ―quem planta floresta, pensa no futuro‖ (Bracelpa); ―semeando o futuro‖
(Aprosoja); ―para quem tem um pé no campo e um olho no futuro‖ (Bunge);
―defendendo a agricultura e sustentando o futuro‖ (Andef); ―Zebu, o futuro em boas
mãos‖ (ABCZ), entre outros.
O movimento Sou Agro e seus porta-vozes também se apresentam como únicos
detentores da ―arte de cultivar o solo‖. Também enfatizam seu compromisso com a
produção de ―alimentos do campo para os lares‖ e com a garantia da ―mesa farta‖, em
uma clara desqualificação da agricultura familiar, principal responsável pela produção
de alimentos para consumo interno. ―Alimentar ideias, alimentar pessoas‖ 143, anuncia a
Cargill.
12
www.souagro.com.br
13
Ver www.releituras.com/coracoralina-cantico.asp. No poema Cântico da Terra Cora Coralina
enfatiza a noção de terra como ―fonte original de toda a vida‖. Terra como ―mãe universal‖ e ―gestação‖.
Lugar do lavrar, plantar, e cuidar. A fartura e a felicidade do dono da terra.
14
www.cargill.com.br/pt/sobre-cargill-brasil/index.jsp
91
Por um desenvolvimento sustentável
Como parte da disputa política e ideológica pelo poder de representações, todos,
consideram-se igualmente agentes do desenvolvimento sustentável. As pressões por um
planeta mais sustentável, a cobrança pela mudança de uso do solo e a preocupação de
consumidores com a forma com que os alimentos são produzidos os têm forçado a
buscar matrizes energéticas mais limpas e novas práticas de produção. O agronegócio
está ciente das pressões existentes e das penalizações e cada vez mais expressões como
desenvolvimento sustentável e defesa do meio ambiente passam a ser incorporadas ao
discurso patronal rural e do agronegócio.
Contudo, as diferentes concepções de sustentabilidade se confundem com os
interesses do agronegócio, seja quando este considera a ―proteção da agricultura‖ como
atividade primeira do desenvolvimento, seja quando reivindica a garantia da
―competitividade‖ e o ―acesso aos mercados‖ como dimensões fundadoras da
sustentabilidade, seja ainda ao associar ―desenvolvimento‖ a ―conservação‖.
Pela preservação do meio ambiente
O discurso patronal sobre o meio ambiente é diversificado e complexo. Não se
resume a uma só atitude e argumento. O dito o qualifica enquanto o não dito o
desqualifica. O discurso do movimento Sou Agro oscila entre a defesa de todos em
favor do meio ambiente, o empenho em mudar comportamentos e atitudes, a realização
de estudos e pesquisa, a omissão diante de práticas degradantes por parte do patronato e
o apoio ao posicionamento no debate sobre o novo Código Florestal.
Destaca-se, primeiramente, o empenho em mostrar que a preservação do meio
ambiente é uma necessidade que independe deste ou daquele setor, grupo social ou
pessoa. Ou seja, a busca de fontes renováveis, uma necessidade do planeta, seria um
processo objetivo.
92
Em segundo lugar, porta-vozes e parceiros argumentam fazer parte da tradição,
do aprendizado e da formação dos produtores e agricultores tratar a terra com amor e
carinho. ―O ser humano sempre amou as coisas de madeira e as florestas‖154.
Terceiro, afirmam que defesa da ideia de que a produção agrícola é
conservacionista165, pois a inovação tecnológica evoluiu tanto quanto as técnicas para
conservar, métodos que evitam a erosão dos solos. Portanto, a agricultura brasileira
pode alimentar o mundo sem destruir a natureza.176
Consequentemente, existe uma associação entre preservação e negócio que
desponta como se fossem processos indissociáveis. A preservação do meio ambiente é
considerada parte do negócio do produtor. ―Para que prevaleça uma agricultura de baixo
impacto ambiental, é fundamental que todos os produtores entendam a preservação
como parte de seu negócio‖, dizem.187
E, na visão dos porta-vozes patronais, os ideais do agronegócio ―aliam
desenvolvimento e conservação e não apenas crescimento acelerado‖. Vemos ainda a
associação entre desenvolvimento sustentável e ―proatividade‖, ―livre iniciativa‖,
―inovação‖, ―governança‖ e ―profissionalismo‖. 198
Ou seja, a responsabilidade socioambiental, quando entendida como um
conjunto de ações voltadas para educação e treinamento do homem do campo e como
necessidade de conscientização do trabalhador rural, transforma a preservação do meio
ambiente em questão para o outro, e não para proprietários e empresários do
agronegócio. A estes caberia tão somente a missão de lhes ensinar, treiná-los.
Por sua vez, multinacionais parceiras do movimento Sou Agro, como a Bunge,
fazem questão de afirmar que se encontram profundamente ligadas aos costumes da
15
www.celsofoelkel.com.br/artigos/Palestras/Silvicultura%20&%20Meio%20Ambiente.%20Vers
%E3o%20final.pdf
16
Alguns reconhecem que a postura conservacionista do agronegócio decorre, fundamentalmente,
das restrições internacionais de mercado.
17
http://www.souagro.com.br/sou-agro-completa-um-ano
18
http://www.souagro.com.br/sou-agro-completa-um-ano
19
http://www.souagro.com.br/sou-agro-completa-um-ano
93
nação brasileira, aos seus habitus, portanto, fazem-se brasileiras, possuem uma mesma
identidade. Mas o modo como chamam para si a responsabilidade pelo ―pioneirismo
tecnológico‖, pela ―pesquisa científica‖ e ―geração de profissionais‖ revela que são
estrangeiras.
Muitos integrantes do movimento não admitem ser vistos como destruidores da
natureza. ―Nós agricultores cuidamos da terra com o mesmo cuidado que cuidamos dos
filhos‖. ―Sabedoria no agro inclui a preocupação como o meio ambiente‖, argumentam.
Maior proximidade entre rural e urbano
O interesse em maior proximidade entre rural e urbano a fim de melhorar as
relações existentes, significa, a meu ver, uma ―costura simbólica‖ no plano da retórica
de um processo de interdependência e de diferenciação já existente entre setores e
cadeias agroindustriais, com a instituição e consolidação do agronegócio no Brasil. No
caso, a tentativa de uma costura de apaziguamento de tensões e divergências diante de
interesses e propostas diferenciadas.
O curioso é que se recoloca, mais uma vez, as noções de rural e urbano para
caracterizar a sociedade brasileira. E a divisão entre rural e urbano passa a fazer parte de
embates e relações. Expressam essa divisão os enunciados: os ―da cidade‖, que ignoram
o produtor rural; o ―produtor de alimentos‖ diante da ―população urbana‖; a necessidade
de uma ―conscientização urbana‖; a ―cidade e o campo‖; ―a cidade contra o campo‖; o
―homem urbano‖ e o ―homem rural‖; ―cotidiano urbano‖ e ―cotidiano rural‖; ―público
urbano‖; ―centros urbanos‖ e ―meio urbano‖; ―dia a dia urbano‖. Também expressam a
representação da sociedade a defesa de uma sociedade urbana como parte do agro e o
agro se fazendo globalmente presente.
Mídia, marketing e imagens
Se na primeira metade da década de 1980, dois aspectos eram muito caros aos
representantes dos grandes proprietários de terra e empresários agroindustriais: o
fortalecimento de uma assessoria jurídica e a renovação da assessoria responsável por
94
propaganda e marketing. Hoje, o recurso à mídia e ao marketing na construção da
imagem assume um papel cada vez mais expressivo.
As lideranças do movimento defendem maior investimento em marketing e
propaganda como meio de garantir maior produtividade, tranquilidade e mais dinheiro
no bolso do produtor
209
. As imagens veiculadas nos portais e na mídia apresentam
plantadeiras e colhedoras sofisticadas e plantações a perder de vista, comprovação do
alto padrão tecnológico, e fornecem uma considerável contribuição para visibilidade do
que se quer divulgar. Procuram orientar as pessoas como interpretar o que vêem,
persuadi-los210. Uma imagem que procura encantar, a mise en scène que exalta o agro e
na qual técnica e política se confundem numa estratégia permanente de intervenção.
Imagem que desponta como linguagem de ação.
Funcionam também como emblema da ostentação e da riqueza do agronegócio.
São constitutivos de seu poder e amiúde ganham dimensões maiores do que realmente
têm. Outras, quando relacionadas à bandeira do Brasil, incentivam a sociedade a se
reconhecer como agro e a ver o agro como expressão da sociedade. E todos de um modo
ou de outro procuram se inscrever na memória das pessoas
Parte importante da construção da imagem do agro são as comemorações.
Comemora-se no portal do movimento o Dia do Agricultor, o Dia Internacional da
Mulher, o Dia do Meio Ambiente, o Dia do Artesão e outros. Em comemoração ao Dia
Internacional da Mulher, celebrado em 8 de março, o Sou Agro trouxe para seu portal
Mônica Bergamaschi, secretária de Agricultura de São Paulo, e a senadora Kátia Abreu,
presidente da Confederação Nacional da Agricultura (CNA). ―São mulheres que fazem
o agro acontecer‖
221
, anuncia. ―É a soma da sensibilidade, instinto de proteção e
capricho – traços da alma feminina, com competência e destreza profissional‖. São
20
www.souagro.com.br
Para Burke persuasão e conversão quase sempre são semelhantes. Diz ele, ―o conceito moderno
de propaganda remonta ao fim do século XVIII, quando as técnicas de persuasão usada pelos defensores
da Revolução Francesa foram comparadas ás técnicas cristãs de conversão‖ (BURKE,2009:16)
21
22
www.souagro.com.br
95
pessoas que ―representam o agro nacional junto ao poder público, no mundo dos
negócios e no trabalho direto com a terra‖. 232
Juntamente com as comemorações e inúmeras atividades, projetos e programas
são enunciados no Portal do movimento, como é o caso do Programa de Agricultura
Urbana e Periurbano de São Paulo (Prourb) 243, do qual faz parte o Projeto Plantando na
Cidade, que consiste na implantação de hortas em terraços de edifícios, lages, terrenos
de imóveis, residências. ―Sou Agro vai atrás de iniciativas que têm contribuído para
aumentar o lado verde da selva de pedras‖, anuncia o portal
Criticas, adesões e tensões
O lançamento do movimento Sou Agro se fez acompanhar pela constituição de
amplo e diversificado campo de adesão e de críticas que tanto incorpora novos
argumentos, quanto retoma antigas premissas de um Brasil onde ―em se plantando tudo
dá‖. Um campo de conflitividade estruturado em torno de algumas questões
consideradas centrais, como preservação do meio ambiente, sustentabilidade, relações
de trabalho, o lugar da agricultura no desenvolvimento, a relação entre público e
privado e outras.
Como parte das tensões entre partidários e críticos do movimento, a adesão
proclamada na saudação ―Por isso digo com orgulho, Sou Agro!‖ se fez acompanhar
pela reação dos adversários: ―Sou Agromentira‖, ―Sou Agrotóxico‖, ―Sou Ogro‖254.
Os críticos, em sua maioria pessoas ligadas a organizações de base, mediadores e
ONGs, reconhecem a força política dos proprietários de terra e os consideram um
entrave à mudança. Outros avaliam que há um aumento da consciência do trabalhador,
mas que a mobilização ainda é insuficiente. A quem interessa o sucesso do agro?,
indagam, e ao mesmo tempo procuram colocar face a face o desempenho da agricultura
familiar ao do agronegócio.
23
www.souagro.com.br
24
www.souagro.com.br/plantando-nas-cidades (Acessado em 2/9/2012)
25
Exemplo pode ser visto na paródia http://www.youtube.com/watch?v=lJgZdi4HcO0
96
Uns identificam no movimento a defesa de interesses específicos em nome do
interesse nacional. Outros afirmam que Sou Agro tem como fim ―esconder a
escandalosa verdade‖, ―minimizar os crimes‖, ―respaldar pioras na lei‖ do Código
Florestal brasileiro265. ―Mais uma campanha para iludir a população quanto aos
gravíssimos impactos ambientais do agro‖ 276
Vários adversários do movimento Sou Agro declaram que proprietários e
empresários do agronegócio não conseguem ser fiéis à proposta de sustentabilidade
porque encarnam práticas vinculadas ao exercício das relações de produção, de
propriedade e de trabalho que desrespeitam profundamente o ambiente e o outro: a
contaminação por agrotóxico, o desmatamento ilegal, o assoreamento e poluição de
cursos d‘água. Pessoas que ―passaram por cima do verde‖ e deram uma ―tratorada sobre
o código florestal‖. 287
Proprietários e empresários do agronegócio não conseguem ser fiéis à proposta
de sustentabilidade por causa, também, da superexploração do trabalho e do ―trabalho
escravo velho de guerra‖; do desrespeito às comunidades tradicionais (ribeirinhos,
caiçaras, quilombolas e indígenas), da violência e dos recentes assassinatos de
trabalhadores rurais e da concentração de terras298.
Considerações finais
De fato, o movimento Sou Agro em muito contribuiu para a institucionalização
de interesses e o fortalecimento da rede de interdependência existente entre os diversos
setores patronais do agronegócio e suas elites, conformando, assim, uma nova
identidade – a identidade agro – e fortalecendo
relações de poder.
Entretanto o
reposicionamento da imagem do agro, ao que parece, não correspondeu ao imenso
esforço pretendido.
26
www.mst.org.br/o-ogro-do-campo.
27
www.souagro.com.br/campanha-do-movimento-sou-agro-estreia-nos-meios-de-comunicaçao
28
www.reformaagraria.blog.br/category/1-raio-x-do-campo-e-impactos-do-agronegocio
29
www.reformaagraria.blog.br/category/1-raio-x-do-campo-e-impactos-do-agronegocio
97
Se de um lado houve uma reafirmação da importância econômica do
agronegócio e uma representação ancorada na sofisticação tecnológica da atividade
produtiva, de outro, permaneceu sedimentada a visão do agro como destruidor do meio
ambiente, alimentada pela continuidade de práticas identificadas com a depredação
ambiental e pela postura de seus parlamentares e lideranças patronais rurais durante os
debates sobre o Código Florestal brasileiro no Congresso Nacional. Ou seja,
inevitavelmente trouxe à luz outra face do processo de modernização no campo, a
crítica e as tensões inerentes.309
O movimento de valorização do agro não correspondeu ao esforço pretendido
porque é conformado e orientado por normas, valores e interesses patronais que
reproduzem um conjunto de práticas associadas à depredação do meio ambiente, ao uso
do trabalho degradante, à violência, à intolerância, à dificuldade de negociação e à
defesa intransigente da concentração fundiária que, inevitavelmente, vão de encontro à
linguagem da preservação do meio ambiente, do diálogo e do respeito à pessoa.
Além disso, ao procurar tornar-se conhecido e sensibilizar o cidadão urbano, Sou
Agro recorreu aos mesmos argumentos, concepções e práticas geradoras de
preconceitos, tensões e conflitividades de ambas as partes. A mão, quando estendida,
esbarrou em interesses e visões de mundo diferenciadas.
Sou Ago apropriou-se da linguagem dos novos movimentos sociais (SHERERWARREN, 2012) que expressa o exercício de novos modos de cidadania, contudo, sem
incorporar a prática e o projeto de civilização enunciado pela linguagem.
Referências
Avalia Maria da Conceição Tavares: ―Marcado pela expansão desordenada da fronteira agrícola,
sem ruptura do iníquo padrão fundiário, os resultados do processo de transformação capitalista acelerada
da agricultura brasileira são conhecidos: ao mesmo tempo que expandiu extraordinariamente a
produtividade e a capacidade produtiva agrícola em algumas regiões do pais, aumentou notavelmente a
exclusão social a par com a concentração econômica e fundiária. Este é o problema de fundo que revela a
natureza estrutural do conflito atual, do qual a nossa sociedade só se apercebe quando toma consciência
das tensões dele resultantes, explicitadas na violência contra os trabalhadores do campo‖
(TAVARES,1997:1)
30
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Décima Quarta edição - Composição