UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS Pós-Graduação em Ciência Ambiental ÍNDIA CLARA LIMEIRA SOUZA DE MEDEIROS AGRICULTURA FAMILIAR E PRODUÇÃO ORGÂNICA DE ALIMENTOS NO MUNICÍCIPIO DE ICONHA, ESPÍRITO SANTO. Niterói 2006 4 ÍNDIA CLARA LIMEIRA SOUZA DE MEDEIROS AGRICULTURA FAMILIAR E PRODUÇÃO ORGÂNICA DE ALIMENTOS NO MUNICÍPIO DE ICONHA, ESPÍRITO SANTO. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre. Orientador: Professor Dr. ACÁCIO GERALDO DE CARVALHO Co-orientador: Professor Dr. CARLOS DOMINGOS DA SILVA Niterói 2006 5 M488 Medeiros, Índia Clara Limeira Souza de. Agricultura familiar e produção orgânica de alimentos no município de Iconha, Espírito Santo / Índia Clara Limeira Souza de Medeiros. – Niterói: [s.n.], 2006. 110 f. Dissertação (Mestrado em Ciência Ambiental) – Universidade Federal Fluminense, 2006. 1.Agricultura familiar. 2.Agricultura orgânica. 3.Ecologia agrícola. I.Título. CDD 338.1098152 6 ÍNDIA CLARA LIMEIRA SOUZA DE MEDEIROS AGRICULTURA FAMILIAR E PRODUÇÃO ORGÂNICA DE ALIMENTOS NO MUNICÍPIO DE ICONHA, ESPÍRITO SANTO. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre. Aprovada em setembro de 2006. BANCA EXAMINADORA _______________________________________________ Prof. Dr. Acácio Geraldo de Carvalho – Orientador UFF ________________________________________________ Prof. Dr. Carlos Domingos da Silva – Coorientador UFRRJ _______________________________________________ Prof. Dr. Célio Mauro Viana UFF ______________________________________________ Profa. Dra. Eliane Maria Ribeiro da Silva EMBRAPA AGROBIOLOGIA Niterói 2006 7 iii Ao Vaner (Guimarães) pelo fato de ter chegado sempre junto, dando “a maior força” para o bom andamento e conclusão da pesquisa. À minhas queridas amigas Lilian e Marize e à minha “irmãzinha” Tanta, pela compreensão. E, finalmente, à minha Vó Néa, pela grande ajuda nos “momentos de necessidade”. À Chica, in memoriam. 8 iv AGRADECIMENTOS A todos aqueles que me ajudaram, principalmente às famílias de produtores rurais. À Marize Bastos de Matos e Rejane Furriel dos Santos, Zootecnistas, pelos trabalhos de pesquisa de campo. À Profa. e amiga, Mara Lúcia, pelas dicas e paciência. Ao Prof. Dr. Carlos Domingos da Silva, pela coorientação e amizade, sempre presentes. Ao Prof. Dr. Acácio Geraldo de Carvalho, pela orientação. Aos mestres do PGCA e colegas da turma 2004, pelos ensinamentos e reflexões críticas proporcionados durante o curso. E, é óbvio, aos meus pais, pelo que sou hoje, como profissional e gente. v9 “Para as massas analfabetas e carentes de instrução do mundo subdesenvolvido, que significação prática podem ter termos como ecossistema, biodiversidade, degradação do meio ambiente, deterioração da camada de ozônio? Que tipo de responsabilidade com relação a estes problemas pode-se exigir de milhões de seres humanos, que a todas as horas do dia, dia após dia, semana após semana, ano após ano, durante toda a vida, estão envolvidos na luta angustiante e desesperançada pela sobrevivência.” (FIDEL CASTRO, 1992) 10 vi Sumário 1 INTRODUÇÃO, 1 2 OBJETIVOS, 6 2.1 Objetivo Geral, 6 2.2 Objetivos Específicos, 6 3 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA, 7 3.1 Crítica à Revolução Verde e ao Modelo Convencional de Produção Agropecuária, 7 3.1.1 Histórico, 3.1.2 O que é um Pacote Tecnológico?, 3.1.3 A entrada da Revolução Verde no Brasil, 3.1.4 Conseqüências da Revolução Verde e do Modelo Convencional de Produção Agropecuária ou Por que a Agricultura Convencional não é Sustentável?, 3.1.4.1 Conseqüências ambientais, 3.1.4.2 Conseqüências socioeconômicas, 3.2 Rumo à Sustentabilidade, 3.2.1 Como chegar a Modelos Sustentáveis, 3.3 Agroecologia como ferramenta, 3.3.1 O que é Agroecologia?, 3.3.2 Implantando a Agroecologia, 3.3.3 Sistemas Orgânicos de Produção, 3.4 Agricultura Familiar e Agroecologia como Fatores de Inclusão Social do Pequeno Agricultor, 3.4.1 Pequeno Histórico da Agricultura Familiar no Brasil, 3.4.2 Daqui em diante, 3.4.3 Importância da Agricultura Orgânica (Agroecologia) para os Pequenos Produtores e para a Agricultura Familiar, 3.4.4 Por que a Agricultura Familiar? Razões para a Defesa da Agricultura Familiar com Enfoque Agroecológico, 3.4.4.1 Razões sociais e culturais, 3.4.4.2 Razões econômicas, 3.4.4.3 Razões ecológicas, 3.4.5 Como promover a Agricultura Familiar Agroecológica?, 11 vii 3.5 Histórico da Região em Estudo e seu Sistema de Produção Agrícola, 4 MATERIAL E MÉTODOS, 5 RESULTADOS E DISCUSSÃO, 5.1 GAOI, 5.2 Vero Sapore, 5.3 Caracterização Socioeconômica das Famílias, 5.4 Caracterização das Propriedades, Construções, Saneamento e Bens, 5.5 Comercialização dos Produtos, 5.6 Assistência Técnica, 5.7 Sistemas de Produção, 5.8 Relação com o Ambiente, 5.9 Dificuldades Atuais 5.10 Perspectivas, 5.11 Impressões, 6 CONCLUSÃO, 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS, 8 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, 9 APÊNDICE, 9.1 Questionário Sócio-econômico-ambiental 10 ANEXO 10.1 Mapa do município de Iconha 12 viii Resumo A perspectiva da evolução para uma agricultura ambientalmente menos impactante já foi incorporada no discurso oficial, principalmente dos países desenvolvidos. Os movimentos no sentido da implantação de uma maior qualidade dos produtos agropecuários cresceram, desenvolvendo-se de forma ímpar. Aparecem então, com mais força no cenário mundial, sistemas de produção agrícolas não convencionais ou sistemas orgânicos de produção. A partir daí, a agropecuária convencional vem perdendo espaço em relação às novas formas produtivas, uma vez que se tornaram evidentes as inúmeras desvantagens que traz à saúde do solo, do ambiente e, principalmente, ao trabalhador rural e ao consumidor. A agricultura orgânica reorganiza e redefine o processo de exploração de recursos naturais, vindo de encontro às necessidades da agricultura familiar e pequena produção, ao gerar empregos na zona rural, melhorar a qualidade de vida dos produtores rurais, diminuir a contaminação ambiental e contribuir para melhoria da saúde da população. O trabalho tem como objetivos caracterizar o GAOI - Grupo de Agroprodutores Orgânicos de Iconha e o Vero Sapore – Associação de Agricultores Orgânicos Agroecológicos e o sistema de produção agropecuário por eles adotado, identificando práticas de proteção da biodiversidade, da conservação do solo e qualidade das águas, adotadas na região sul do Espírito Santo. A Metodologia empregada baseou-se numa aproximação ou fase exploratória aos grupos, seguida pela coleta de dados por meio da aplicação de questionários/entrevistas, observações diretas, inspeções nas propriedades e registros fotográficos. Ficou evidente que a ascensão dos agricultores familiares ao progresso econômico e social depende de significativas e profundas reformas na propriedade da terra, no acesso aos benefícios das políticas governamentais e no reconhecimento da cidadania plena daqueles trabalhadores. Não basta a opção pela agricultura familiar com caráter orgânico de produção; é também necessária uma crítica profunda ao padrão tecnológico dominante. É necessário perceber, não a presença humana como causa dos problemas ambientais da agricultura, mas sim sua atividade inadequada, a qual, como está, deve ser modificada na sua forma de usar os recursos naturais. Palavras-chave: agricultura familiar, agricultura orgânica, agroecologia 13 ix Abstract The perspective on an evolution for an agriculture which can cause less impacts on the environment has already been incorporated to the official speech of the developed countries. Movements towards the introduction of bigger quality farming products has grown up, being developed in such an incomparable way. The world has been the host of unconventional agricultural productions systems or organic production systems. Taking this as a leading point, the conventional farming has lost room to the new ways of productions, as the several disadvantages it brings to the soil, the environment and mainly, to the farm-hand and the customers, have been made more obvious each day. The organic agriculture reorganizes and redefines the natural resources exploration process serving the necessities of the family agriculture and small-scale production as it generates new jobs in the farm area, improves de farmer lifestyle, makes environmental contamination drop dramatically and contributes to the improvement in the population health. The purposes this project are, most of all, to study the characteristics of the GAOI – Grupo de Agroprodutores Orgânicos de Iconha and the ones of the Vero Sapore – Associação de Agricultores Orgânicos Agroecológicos and also, of the farming production system they have adopted, identifying biodiversity protection practices for soil conservation and the quality of the water used in the south region of the state of Espírito Santo, Brazil. The methodology in use has been based on a close approach or “exploring fase” of the groups previously mentioned, followed by data collection – done by questionnaires and interviews, live observation, property inspections and photographic register. It was made obvious that the family agriculture workers access to the social-economic progress depends on profound and effective reform on the land property, on the access to the benefits of governmental policies and the acceptance of those workers as real citizens with equal rights (and not only obligations). Opting for the familiar agriculture based on organic production it not enough. It is also necessary to understand that it is not the human presence that causes the environmental problems related to the agricultural practice but their unsuitable activities which must be modified in its way of dealing with natural resources if to be properly used. Key word: familiar agriculture, organic agriculture, agroecology 1 INTRODUÇÃO Os altos custos de produção do modelo agrícola industrial baseado em maquinarias e insumos caros derivados do petróleo levaram a um inegável empobrecimento do homem do campo, principalmente o pequeno e o médio produtor. Além disso, a utilização de tais recursos provocou uma enorme contaminação ambiental e perda de biodiversidade, trazendo como conseqüência o êxodo rural e um encarecimento do preço dos alimentos, ocasionado pela elevação do custo de sua produção. O modelo da modernização da agricultura, implantado a partir da década de 60, tem apresentado sinais de crise desde o início dos anos 80. No país, a crise agravou-se com a diminuição dos subsídios agrícolas aos produtores, nos anos 90, e com os financiamentos agrícolas a taxas de juros de mercado. Na sua essência, foram esses mecanismos patrocinados pelo Estado que deram impulso à modernização da agricultura, baseada na utilização de insumos industriais, e que, quando da sua diminuição, provocaram a chamada crise de endividamento dos produtores. Com a consolidação dos complexos agroindustriais na década de 70, com a menor participação do Estado na regulamentação do setor, os segmentos industriais de cada complexo passaram a organizar a produção, inclusive com a concessão de créditos aos produtores, e mesmo o fornecimento de insumos e assistência técnica, por meio do assim denominado “sistema de integração”. Portanto, com a retirada do Estado, os segmentos industriais a montante e a jusante da produção agrícola passaram a ter plena liberdade no estabelecimento de normas e de preços pagos aos produtores (CAMPANHOLA, 1999). Após a RIO-92, no Rio de Janeiro, concluiu-se que os padrões de produção e atividades humanas em geral, principalmente no que tange à agropecuária, teriam que ser modificados. Foram criadas e desenvolvidas novas diretrizes às atividades humanas, compiladas na Agenda 21 (CNUMAD, 1997), com o objetivo de ser alcançado um 11 desenvolvimento duradouro e com menor impacto possível, que se chamou de desenvolvimento sustentável e que vem norteando todos os campos de atuação. A perspectiva da evolução para uma agricultura, ambientalmente menos impactante já foi incorporada no discurso oficial, principalmente dos países desenvolvidos. Tecnologias sustentáveis são pesquisadas tanto pelo setor público quanto pelo privado, muito embora a sustentabilidade seja um conceito difuso, e por isso mesmo com forte conteúdo sócioideológico (CARMO, 1999). Assim, os movimentos no sentido da implantação de uma maior qualidade dos produtos agropecuários cresceram, desenvolvendo-se de forma ímpar. Aparece então com mais força no cenário mundial a agropecuária não convencional, também conhecida por orgânica. Com isso, e por trazer – é bom repetir – inúmeras desvantagens à saúde do solo, do ambiente como um todo, desfavores estes extensíveis, principalmente, ao trabalhador rural e ao consumidor, vem a agropecuária hoje dita convencional perdendo espaço em relação às novas formas no setor da produção de que ora se trata, onde se ressalta a modalidade orgânica. Portanto, a sociedade civil deve ficar atenta às novas formas de produção existentes, para que, de forma organizada, possa exigir dos governantes um estímulo aos produtores, para que estes, no cumprimento de suas atribuições, conciliem produção, qualidade, conservação e recuperação dos recursos naturais. Num sistema orgânico de produção é indispensável que as relações entre quem produz e o ambiente sejam pautadas pelo respeito e cuidado com a conservação dos recursos naturais. Considerando que os seres humanos fazem parte do ambiente natural, as relações entre os diferentes sujeitos participantes da cadeia de produtos ecológicos devem ser pautadas pelo respeito e pela ética. Na busca da sustentabilidade, a produção orgânica, tem como elementos fundamentais o respeito à natureza, a viabilidade econômica, a justiça social e a aceitação cultural. Daí que a sustentabilidade de sistemas alimentares deve exigir maior eqüidade entre as pessoas em termos de poder econômico, propriedade e posse da terra, e acesso e controle do conhecimento e dos recursos agrícolas. Em dezenas de países, tanto desenvolvidos quanto em desenvolvimento houve nos últimos anos um verdadeiro aumento na oferta de produtos orgânicos, principalmente os alimentícios. O crescimento deste mercado, no Brasil, vem sendo bastante considerável. Situação ótima para gerar empregos na zona rural, melhorar a qualidade de vida dos produtores rurais, diminuir a contaminação ambiental e contribuir para melhoria da saúde da população brasileira com alimentos de melhor qualidade. 12 Diferentes categorias de agricultores e empresas já estão utilizando o sistema orgânico de produção; vão desde pequenas unidades familiares em pequenas propriedades, passando pelas unidades médias de produção, até os empreendimentos de maior expressão, e vulto, sejam os empreendimentos empresariais, sejam os individuais. Em termos numéricos, as unidades familiares de produção constituem a maioria, segundo Ormond et al. (2002). No Brasil, a chamada “Agricultura Familiar” é o maior segmento em número de estabelecimentos agrícolas e tem significativa importância econômica em diversas cadeias produtivas. Apesar disso, este segmento ainda não foi incluído de forma definitiva nas políticas de apoio ao desenvolvimento rural brasileiro. É preciso, portanto, revisar a política agrícola nacional, no sentido de reconhecer a importância econômica e social desses agricultores no processo de desenvolvimento (SILVESTRO; MELLO; DORIGON, 2001), quando transcendem à própria inserção familiar para ficarem inscritos no âmbito do interesse maior da sociedade. Bottechia (1998) deixa claro que propostas de desenvolvimento rural com enfoque agroecológico apresentam como característica marcante a abordagem sistêmica sobre a problemática rural, ou seja, uma abordagem sensível à diversidade ambiental, às interrelações entre os seres vivos, à complementariedade entre as explorações, ao equilíbrio e harmonia dos processos. Para o alcance da sustentabilidade dos agrossistemas, a agroecologia adota como princípios básicos a menor dependência possível de insumos externos e a conservação dos recursos naturais, buscando maximizar a reciclagem de energia e nutrientes, de forma a minimizar a perda destes recursos durante os processos produtivos. Para viabilizar esta estratégia, a agroecologia pressupõe o desenho de sistemas produtivos integrados e diversificados através da manutenção de policultivos anuais e perenes associados com criações animais e exploração florestal. Com a diversificação e a integração, estes sistemas tornam-se mais estáveis por aumentarem a capacidade de absorver as perturbações inerentes ao processo produtivo da agricultura (sobretudo as flutuações mercadológicas e climáticas). De acordo com a Companhia Nacional de Abastecimento – CONAB, vinculada ao MAPA, no Brasil a Agricultura Familiar é responsável por sete de cada dez empregos gerados no campo e por cerca de 40% de toda a produção agrícola nacional. A atividade é estratégica face ao desenvolvimento nacional, quer pela oportunidade de gerar emprego e renda, quer pela importância na oferta de alimentos. Segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Agrário - MDA, a agricultura familiar responde por 84% da mandioca produzida no país, 67% do feijão, 58% dos suínos e frangos, 49% do milho, 31% do arroz, 32% das exportações de 13 soja e 25% do café. Do total da área de cultivo no país, 25% correspondem à agricultura familiar (CONAB, 2005). Em tal contexto, dados da Secretaria de Agricultura, Abastecimento, Aqüicultura e Pesca (SEAG) do Estado do Espírito Santo caracterizam aquela unidade federativa como sendo predominantemente de agricultura familiar. Possuindo cerca de 80,2% dos estabelecimentos rurais com área de até 50 ha, totalizando 58.707 propriedades, a Agricultura Familiar emprega aproximadamente 70% dos trabalhadores rurais e ocupa 60% da área cultivada, representando a expressiva taxa de 36% do valor bruto da produção agropecuária (ESPÍRITO SANTO, 2005). A opção do Espírito Santo pelo desenvolvimento sustentável faz do cultivo dos alimentos orgânicos uma forte estratégia para o desenvolvimento do Estado, que se apresenta como um dos que possuem a melhor divisão fundiária do país, apresentando um cenário excelente para o fortalecimento da agricultura familiar e o desenvolvimento de atividades econômicas alternativas como o agroturismo, o turismo ecológico e a agroindústria artesanal. Com uma localização privilegiada, o Espírito Santo é um dos estados mais dinâmicos do Brasil. Encontra-se estrategicamente situado próximo aos grandes centros urbanos e industriais, onde está concentrada grande parte do PIB brasileiro. O seu imenso litoral com águas profundas permite o tráfego de grandes navios. Essa característica permitiu a criação de um dos complexos portuários mais importantes do país, responsável por 25% da movimentação do comércio exterior nacional (ESPÍRITO SANTO, op. cit.). A crescente onda de problemas ambientais faz com que as atenções dos consumidores se voltem cada vez mais para a qualidade dos alimentos. Neste cenário surge, então, a proposta agroecológica, que se baseia no uso adequado dos recursos naturais, de forma a minimizar os impactos negativos ou não agredir o ambiente, através da prática de uma agropecuária que esteja em harmonia com a natureza, valorizando-se aí, obviamente, as relações ecológicas. Essa prática apresenta-se conjugada com ações participativas, de respeito e valorização do saber local, num aprendizado permanente das lições de tal saber, ou até saberes, diversificadamente, visando à promoção do desenvolvimento rural sustentável, principalmente através da agricultura tipificada como familiar. Os pequenos produtores, compelidos por uma necessidade de diversificação da produção, o que intrínseco aos seus objetivos de vida, têm uma maior facilidade de adaptação aos princípios da agricultura orgânica (diversificação; integração da propriedade; reciclagem de nutrientes; uso de preparados e substâncias caseiras de fácil obtenção no combate, controle, indução de equilíbrio ecológico; conservação e aumento da fertilidade do solo). 14 Assim, a agricultura orgânica, por reorganizar e redefinir o processo de exploração de recursos naturais na propriedade, vem ao encontro das necessidades da Agricultura Familiar e da sua pequena, mas expressiva produção. O Estado do Espírito Santo vem realizando, de forma gradual e sistemática, ações para o desenvolvimento da agricultura orgânica. Através de um programa discutido com a sociedade civil organizada, a agricultura orgânica foi inserida no planejamento da SEAG, sendo criada a Gerência da Agricultura Orgânica, o que fortaleceu as ações agroecológicas do INCAPER (Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural), com o objetivo de construir processos que assegurem ganhos de sustentabilidade econômica, ambiental e social. A produção orgânica, em maior ou menor escala, está presente na maioria dos municípios daquele Estado, principalmente nas propriedades de base familiar. Há, em todos os cantos, experiências de produção, algumas já em escala comercial e outras para mercados locais e regionais, destacando-se o café, frutas tropicais, olerícolas, pimenta-do-reino, coco verde, aves e ovos e, em menor escala, pecuária bovina. A agricultura orgânica no Espírito Santo comemora mais de 20 anos de história. Sua estrutura fundiária é baseada na Agricultura Familiar, contando com a participação da sociedade civil, ações governamentais e da iniciativa privada, que foram fatores determinantes para conquistar o seu espaço no Estado. De acordo com a SEAG (ESPÍRITO SANTO, 2005), atualmente a produção orgânica já está presente em mais de 53 dos 78 municípios do Estado, sendo orgânica ou em processo de conversão, cerca de 1,5% da área cultivada de uma ampla gama de produtos. No sul do Estado existe uma lacuna a ser preenchida quanto à disseminação da agricultura orgânica. Neste cenário aparece o município de Iconha, como mantenedor e difusor do movimento agroecológico através de dois grupos ali estabelecidos, o GAOI (Grupo de Agroprodutores Orgânicos de Iconha) e o Vero Sapore (Associação de Produtores Agroecológicos Orgânicos). 15 2 OBJETIVOS 2.1 Objetivo Geral Identificar os benefícios da adoção das práticas não convencionais em agropecuária para o desenvolvimento rural sustentável, apresentando uma visão panorâmica dos impactos positivos da agricultura orgânica sobre o ambiente, na região de abrangência do GAOI e o Vero Sapore, em Iconha, Espírito Santo. 2.2 Objetivos Específicos • Caracterizar o GAOI e o Vero Sapore, constituído por agricultores familiares, no Sul do ES, e o sistema de produção agropecuário por eles adotado; • Identificar e caracterizar as práticas de proteção da biodiversidade, da conservação do solo e qualidade das águas adotadas na região; 16 3 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 3.1 Crítica à Revolução Verde e ao Modelo Convencional de Produção Agropecuária “A modernização não beneficiou os agricultores pobres na América Latina. Aumentou a produtividade agrícola e a produção total, mas também trouxe conseqüências ambientais e sociais significativas em muitas regiões. A modernização não teve êxito no melhoramento da agricultura familiar, uma vez que depende de tecnologias que desestruturam a natureza e aumentam as distâncias entre os processos sociais e ecológicos.” (ALTIERI, 2002). 3.1.1 Histórico Durante boa parte do século XIX e início do XX se foi configurando como hegemônico o modelo produtivo urbano-industrial cuja lógica, de mover pessoas até onde se concentrava o capital, foi consolidando uma estrutura de poder que situava o campo e as comunidades rurais em uma posição cada vez mais marginalizada e dependente das cidades, que por sua vez vieram incrementando seu poder com a hegemonia industrial (GUZMÁN, 200-). Assim, a evolução da agricultura convencional baseada no modelo da Revolução Verde é, na verdade, “a penetração capitalista no campo” (TAMBARA, 19851 apud ZAMBERLAN; FRONCHETI, 2002), tendo como objetivo a maximização produtiva que objetivamente usa a natureza para “maximização dos lucros”, sem se preocupar com efeitos da tecnologia empregada sobre o ambiente. Mas o que é a Revolução Verde? Segundo Zamberlam e Froncheti (op. cit.) é o período marcado por geração de conhecimentos tecnológicos destinados à agropecuária do mundo inteiro e sistematizado em pacotes tecnológicos abrangendo a área da 1 TAMBARA, E. RS: modernização e crise na agricultura. Porto Alegre: Ed. Mercado Aberto, 1985. 17 química, da mecânica e da biologia. Já Brum (19902, apud ZAMBERLAN; FRONCHETI, op. cit.) considera como um programa com o objetivo aparente de contribuir para o aumento da produção e da produtividade agrícola no mundo, através dos conhecidos “pacotes tecnológicos”. 3.1.2 O que é um Pacote Tecnológico? Pacotes Tecnológicos podem ser entendidos como formas de organizar a produção, segundo um “conjunto de técnicas, práticas e procedimentos agronômicos que se articulam entre si e que são empregados indivisivelmente numa lavoura ou criação, seguindo padrões estabelecidos pela pesquisa” (AGUIAR, 19863 apud ZAMBERLAN; FRONCHETI, 2002). Surgiram do grande “capital imperialista monopolista” do pós-guerra mundial, quando grandes empresários perceberam que um dos caminhos do lucro permanente seria direcionado aos alimentos. E, possuindo grandes sobras de material de guerra (indústria química e mecânica), direcionaram tais sobras para a agricultura. Encarregaram, pois, as fundações Ford e Rockfeller, mais o Banco Mundial, entre outros, para sistematizar o processo (DAVID et al., 1994). Em outras palavras o pacote tecnológico é como se fosse uma linha de montagem onde o agricultor, entre outras coisas, depende (1) da mecanização intensa com redução da mão-de-obra ao mínimo; (2) do uso maciço de produtos químicos artificiais tanto para repor os nutrientes absorvidos pelas plantas (fertilizantes sintéticos), como para combater os inimigos destas (herbicidas, inseticidas, fungicidas, por exemplo) e (3) da adoção do regime agrícola de monocultura, com concentração de capital e recursos físicos (MOREIRA, 2000). Os pacotes tecnológicos extinguem as variedades tradicionais, introduzindo novas variedades. “Quando se extingue variedades tradicionais, as comunidades perdem um fragmento de sua história e de sua cultura. As espécies vegetais perdem um fragmento de sua diversidade genética. As gerações futuras perdem algumas opções e a geração perde a confiança em si mesma.” (HOBBLINK, 19904 apud ZAMBERLAN; FRONCHETI, op. cit.). 2 BRUM, A. J. Modernização da agricultura – trigo e soja. Petrópolis: Ed. Vozes, 1988. AGUIAR, R. C. Abrindo o pacote tecnológico. São Paulo: Polis/CNPq, 1986. 4 HOBBELINK, H. Biotecnologia: muito além da revolução verde. Porto Alegre: AGE, 1990. 3 18 Busca-se incrementar uma agricultura tão artificial que, mais do que controlar a natureza quer superá-la, isto é, produzir sem qualquer relação com ela. Neste sentido: “A modernização é simplesmente a mecanização e quimificação da agricultura, fazendo com que ‘agricultores modernos’ sejam os que aceitam logo e de bom grado a nova tecnologia.” (HOBBLINK, 19904 apud ZAMBERLAN; FRONCHETI, 2002). No Brasil, os pacotes tecnológicos, além de seletivos em inúmeros casos foram ineficientes, pois não previam a diversidade de clima, solo, disponibilidade de equipamentos de mão-de-obra treinada na regulagem de equipamentos, e precisavam de produtos caros e venenosos. Isto, porque partiam de uma concepção limitada da realidade, que, na prática, procurava substituir assistência técnica por “folhetos de recomendações técnicas” (MENEGAZ, 199-). 3.1.3 A entrada da Revolução Verde no Brasil “A visão de progresso como sinônimo de crescimento, considerava que se as nações mais pobres conseguissem crescer, automaticamente, toda a população do país se beneficiaria deste progresso, o que na prática não ocorreu em país algum do mundo que experimentou este modelo. Pelo contrário, agravou os problemas da pobreza, da concentração da renda e da degradação ambiental.” (MENEGETTI, 200-). De acordo com Martine e Garcia (19875, apud BRACAGIOLI, 2003), em meados dos anos 60, passou a ser difundido no Brasil o pacote tecnológico da Revolução Verde. Esse processo foi articulado com os interesses do complexo industrial internacional e da oligarquia rural. O primeiro, interessado na ampliação de seus mercados, e a segunda, preocupada com a efervescência dos movimentos sociais (medo da reforma agrária). Este projeto buscava economicamente abrir o mercado brasileiro para as grandes corporações multinacionais, comerciantes de grãos e produtores de insumos modernos para a agricultura. Visava ainda à criação de uma fonte produtora de proteína vegetal (soja), para viabilizar o método de confinamento praticado pelos produtores americanos na engorda de 5 MARTINE, G.; GARCIA, R. C. (org.). Os impactos sociais da modernização agrícola. São Paulo: Caetés, 1987. 19 animais, e bem assim deslocar trabalhadores rurais para os setores industriais e de serviço, a fim de permitir a industrialização do país (MENEGAZ, op. cit.). Zamberlam e Froncheti (2002) e Petersen (1997) expõem que no início da década de 60 eram discutidos no Brasil dois caminhos para atingir e elevação da produção de alimentos (1) fazer a reforma agrária, para mais agricultores terem terra para produzir (evitando o êxodo rural), retirando-se das mãos dos latifundiários; (2) adotar “pacotes tecnológicos” para aumentar a produção via produtividade, sem mexer na estrutura de posse da terra. Os governos, federal e dos estados, assumiram a implantação da “modernização da agricultura”, via pacotes tecnológicos, tomando as providências de, segundo Martine e Garcia (19875), criar uma estrutura de crédito rural subsidiado e, paralelamente, uma estrutura de ensino, pesquisa e extensão rural. Numa perspectiva mecanicista, a engrenagem funcionaria da seguinte forma: o produtor produziria matérias-primas alimentares e consumiria bens de capital; o extensionista difundiria inovações e viabilizaria o crédito rural (SIQUEIRA, 1993); a pesquisa testaria pacotes, dosagens, aplicações e controles; o Estado financiaria; e o complexo agroindustrial produziria insumos químicos, biológicos e mecânicos. Como resultado dessa máquina, teríamos o aumento do número de empregos, da produção e produtividade agrícola e, conseqüentemente, auto-suficiência alimentar e excedentes agrícolas negociáveis no mercado externo, gerando diminuição da miséria e pobreza, e, portanto, desenvolvimento socioeconômico. Em busca deste objetivo, o governo foi extremamente tecnocrata e autoritário. Baixou normas de crédito rural inflexíveis atingindo toda a enorme variabilidade de condições no país inteiro, e determinou linhas de conduta, metodológicas de planejamento e de controle e objetivos a serem alcançados para o Sistema de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural. Produziu ainda alterações no sistema cooperativista, através da obrigatoriedade de enquadramento nos estatutos padrão do INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Também interveio nas áreas de educação (Reforma do Ensino – Ensino Profissionalizante), nas comunicações sociais e na repressão política aos sindicatos (MENEGAZ, 199-). Socialmente seletivo em termos de produtores beneficiados, o processo modernizante foi igualmente seletivo em termos de produtos e de regiões. Claramente, os principais focos de interesse deste processo, foram a região Centro-Sul e, posteriormente, a Centro-Oeste, bem como as atividades voltadas para o comércio internacional e/ou vinculadas aos complexos agroindustriais. Os instrumentos das sucessivas políticas agrícolas se orientaram 20 prioritariamente para garantir e reforçar a expansão das produções exportáveis como a soja, a cana-de-açúcar, o café, a laranja, enquanto estagnaram ou recuaram os cultivos alimentares de arroz, feijão, milho e mandioca (PETERSEN, 1997). Este caráter desigual da modernização acentuou a diferenciação social do meio rural e consolidou a histórica dualidade existente na estrutura produtiva do setor agropecuário. Além das seculares características distintivas entre o padrão produtivo dos agricultores patronais e familiares, a modernização incorporou uma nova marca, que concorreu pra acirrar ainda mais o distanciamento entre esses padrões: o modelo tecnológico empregado (ZAMBERLAN; FRONCHETI, 2002). De acordo com David et al. (1994), desse direcionamento das políticas públicas para o modelo da “modernização” agrícola resulta uma crescente monopolização agroeconômica e uma tendência à uniformização dos sistemas produtivos. Tal modelo de produção abriu as portas para uma prática de exploração agropecuária que visa unicamente a maximizar lucros imediatos, usando o meio ambiente como um mero substrato de riquezas, sem nenhuma preocupação com sua sustentabilidade a longo prazo. Do ponto de vista econômico, científico e tecnológico, este modelo impôs ao Brasil uma profunda dependência internacional e uma subordinação da agricultura ao setor financeiro e agroindustrial. Diante de tais conseqüências, os beneficiários deste modelo vêm procurando adequarse às novas circunstâncias dizendo que os problemas ambientais são uma simples questão técnica. Como saída, apontam tecnologias supostamente “limpas”, como as biotecnologias (dos alimentos transgênicos, por exemplo). Tais tecnologias, não bastasse o flanco de risco à biodiversidade que representam, agravam ainda mais as relações de dominação, pois submetem os produtores ao controle econômico e político dos grupos monopolistas nacionais e transnacionais. Atualmente o país passa por um novo estágio de modernização da agricultura proposto pelo grande capital (agroindustrial e financeiro), a partir da década de 80. Trabalha o desgaste e o empobrecimento dos solos como o grande problema da agricultura. Como solução, defende o uso de novos tratos culturais (antes apenas terraceamento), como plantio na palha, rotação de culturas, construção de microbacias e uso de novas máquinas e equipamentos mais modernos. Faz experimentos de consorciamento de adubação verde com venenos agrícolas e adubos químicos. Contudo, dados sinalizam elevação de insumos nesse novo modelo (ZAMBERLAN; FRONCHETI, 2002), que continua a ser capitalista, associado, dependente, concentrador, exportador e excludente (DAVID et al., op. cit). 21 3.1.4 Conseqüências da Revolução Verde e do Modelo Convencional de Produção Agropecuária ou Por que a Agricultura Convencional não é sustentável? “Enquanto agricultura e economia aparentemente apresentam bom desempenho, cresceram os problemas na área social e ambiental e, em muitos casos, observou-se aceleração do êxodo rural e rejeição, sobretudo por parte dos agricultores familiares, das tecnologias propostas pelo modelo hegemônico, ao qual pesquisa/extensão serviram de instrumento.” (MUSSOI; PINHEIRO, 2003). De acordo com Altieri (2002) a Revolução Verde teve conseqüências nas áreas rurais que, geralmente, serviram para marginalizar grande parte da população rural. Primeiramente, seus benefícios foram direcionados aos produtores já ricos em recursos, acelerando as diferenças entre esses e outros habitantes rurais, de maneira que a desigualdade no meio rural sempre aumentava. Em segundo lugar, foram minadas muitas formas de acesso à terra e aos recursos, tais como cultivos compartilhados, arrendamento de trabalho, acesso às fontes de água e às pastagens. Isto reduziu a diversidade de estratégias de subsistência viáveis às famílias rurais e, conseqüentemente, aumentou sua dependência da produção agrícola. Com o estreitamento das bases genéticas da agricultura, aumentou-se o risco, porque as culturas ficaram mais vulneráveis a pragas, doenças e variações climáticas. A modernização também impôs um enorme dano ambiental (FAO, 19886; LACDE, 19907 apud ALTIERI, 2002). A super-exploração dos recursos naturais, em razão da pobreza, do abandono de práticas agrícolas tradicionais e da intensa transformação do ambiente nas áreas de colonização recente, provocou erosão, perda da fertilidade do solo e sedimentação dos rios. Foram erodidos os recursos genéticos. Utilizaram-se demasiada e/ou inadequadamente os fertilizantes, inseticidas e herbicidas, exercendo-se assim danos diretos à saúde humana através da toxicidade desses fatores e conseqüências mais indiretas através dos danos ambientais. Dessa forma, existe um processo de causa cumulativa, em que as desigualdades na distribuição dos benefícios do desenvolvimento geram subdesenvolvimento, provocando pobreza e má utilização dos recursos naturais e do ambiente e, com, isso, maior 6 FAO (Food and Agriculture Organization). Potentials for agricultural and rural development in Latin America and the Caribbean. Main Report and 5 annexes. Rome, Italy: FAO, 1988. 7 LACDE (Latin American Commission on development and Environment). Our own agenda. New York: InterAmerican Development Bank UNEP, 1990. 22 subdesenvolvimento. Enfim, segundo Pádua (2003), é preciso considerar que a implantação do modelo da modernização conservadora se deu de forma desigual e concentradora, privilegiando algumas regiões e grupos sociais em detrimento de outros. 3.1.4.1 Conseqüências Ambientais A agricultura convencional está construída em torno de dois objetivos que se relacionam: a maximização da produção e a do lucro. Na busca dessas metas, um rol de práticas foi desenvolvido sem atentar para as conseqüências não intencionais, de longo prazo, e sem considerar a dinâmica ecológica dos agroecossistemas. Seis práticas básicas – cultivo intensivo do solo, monocultura, irrigação, aplicação de fertilizante inorgânico de alta solubilidade, controle químico de pragas e manipulação genética das plantas cultivadas – formam a espinha dorsal da agricultura moderna. Cada uma é usada por sua contribuição individual à produtividade, mas, como um todo, formam um sistema interativo no qual cada uma depende das outras e reforça a necessidade de usá-las (GLIESSMAN, 2005). Do ponto de vista ambiental, a tendência à homogeneização das práticas produtivas, à simplificação e à artificialização extremada do meio natural induzida pelos padrões produtivos da Revolução Verde, acompanhou-se de impactos ambientais que se irradiaram a todos os ecossistemas do país: degradação dos solos agrícolas, comprometimento da qualidade e da quantidade dos recursos hídricos, devastação das florestas e campos nativos, empobrecimento da diversidade genética dos cultivares, plantas e animais e contaminação de alimentos consumidos pela população (PETERSEN, 1997; CAPORAL, 2004 ?). Mas por quê? Porque este modelo é originário da Europa e dos Estados Unidos e seus fundamentos foram desenvolvidos para serem postos em prática em condições de clima temperado, onde a diversidade ambiental é sensivelmente menor do que a dos trópicos (SIQUEIRA, 1993; PETERSEN, 1997; ALMEIDA; PETERSEN; CORDEIRO, 2001; PIÑEIRO; TRIGO, 19838; JANVRY; DETHIER, 19859; apud ALTIERI, 2002). 8 PIÑEIRO, M.; TRIGO, E. (eds.). Technical Change and Social Conflict in Agriculture: Latin American perspectives. Boulder: Westview Press, 1983. 9 JANVRY, A. de; DETHIER, J. Technological innovation in agriculture: the political economy of its rate and bias. Consultative Group on International agricultural Research. Study Paper; n. 1. Washington, D. C. : The World Bank, 1985. 23 A única vantagem da simplificação dos agroecossistemas (ou diminuição da diversidade) é a maior possibilidade de mecanização; porém, as conseqüências ecológicas da redução da diversidade são múltiplas e decisivas na quebra do equilíbrio e sustentabilidade ambiental dos sistemas produtivos (PETERSEN, op.cit.). Segundo Costa (1994b), a agricultura é o setor que causa o maior impacto ambiental. Com isso, são crescentes o esgotamento e a contaminação dos recursos naturais (DAVID et al., 1994), descritos resumidamente a seguir: a) Degradação dos solos – as práticas de manejo utilizadas estão levando à perda gradativa da fertilidade, erosão e contaminação dos solos. A matéria orgânica é reduzida, como resultado da falta de cobertura, e o solo é compactado pelo trânsito repetitivo de máquinas. A perda de matéria-orgânica reduz a fertilidade do solo e degrada sua estrutura (GLIESSMAN, 2005). A necessidade, por parte dos sistemas convencionais, do uso intensivo de máquinas agrícolas, obriga o desrespeito às recomendações técnicas sobre: tipo de implemento, velocidade de trabalho, umidade e profundidade trabalhada do solo. As conseqüências são alterações na estrutura deste, o que, além de trazer efeitos danosos sobre a microbiologia da área cultivada, ainda mais facilita seu processo de erosão. As várias formas de erosão decorrentes deste processo são extremamente prejudiciais à própria atividade agrícola. Além destes prejuízos, que já constituem impactos negativos, eles, por sua vez, levam ao aumento dos custos de produção e diminuição da lucratividade nos atuais níveis de produtividade, o que, por vezes, causa uma intensificação ainda maior do processo produtivo, fechando um ciclo de degradação no agroecossistema (CAMPANHOLA; LUIZ; LUCCHIARI JUNIOR, 1997). b) Contaminação das águas – o uso de produtos químicos (fertilizantes e agrotóxicos), aliados ao desmatamento e à erosão do solo está causando sérios problemas de contaminação das águas. Segundo Campanhola, Luiz e Lucchiari Júnior (op. cit.), também são danos oriundos disto, as restrições ao abastecimento de água potável, prejuízos à geração de energia hidroelétrica, alteração na biodiversidade aquática e a diminuição do potencial de uso do recurso hídrico para lazer. c) Desperdício e uso exagerado de água – a agricultura é responsável por aproximadamente dois terços do uso global da água e é uma das principais causas de 24 sua falta em algumas regiões. Ela usa tanta água, em parte, porque a desperdiça. Mais da metade da água aplicada nas culturas nunca é absorvida pelas plantas às quais se destina (VAN TUIJL, 199310 apud GLIESSMAN, 2005): evapora ou é drenada para fora da área. Algum desperdício de água é inevitável, mas grande parte dele poderia ser eliminado, se práticas agrícolas fossem orientadas para sua conservação, e não para a maximização da produção. d) Desmatamento – o incentivo à derrubada das matas, para a implantação de monoculturas em vastas áreas, tem atingido toda a biodiversidade do ecossistema, provocando perigosos desequilíbrios ambientais. As conseqüências mais evidentes disso são o surgimento e proliferação de determinadas espécies, que acabam se tornando “pragas” para o sistema de produção. O desmatamento tem impactos negativos nos ecossistemas locais e regionais, induzindo mudanças no microclima, nos padrões de evapotranspiração, no albedo de superfície e no ciclo dos nutrientes. A destruição de florestas geralmente acelera a erosão do solo e resulta na degradação dele, particularmente em áreas tropicais. Em nível global, o desmatamento contribui para problemas como aquecimento da terra e perda de biodiversidade (ALTIERI; MASERA, 1997). e) Contaminação por agrotóxicos – pesquisas realizadas com os alimentos que diariamente vão à mesa dos brasileiros indicam a existência de agrotóxicos em níveis superiores aos tolerados pela OMS (Organização Mundial da Saúde), daí que Caporal (2004?) considera este, um dos problemas mais graves para a população. Existem dois tipos de contaminação: a aguda, cujos efeitos causam sintomas visíveis imediatos ou em curto prazo, e a crônica, cujos efeitos só são sentidos através dos anos, com manifestações em cânceres, filhos com malformação congênita, insuficiência respiratória, baixa resistência a doenças, entre outros. As populações urbanas são vítimas das intoxicações crônicas, e por isto não tem grande consciência deste problema (MENEGAZ, 199-). Muitos pesticidas proibidos em países desenvolvidos são largamente utilizados na América Latina. Então, os impactos do uso desses produtos incluem envenenamento humano, poluição das bacias hidrográficas e ressurgimento de 10 VAN TUIJL, W. Improving water use in agriculture: experiences in the Middle East and North Africa. Report # 201, World Bank, 1993. 25 doenças (como malária), em razão direta da maior resistência dos vetores (inseto, entre outros), criada inadvertida e artificialmente. Os pesticidas também aumentaram os custos econômicos para a agricultura, tanto pela necessidade de doses mais intensivas, quanto pela redução dos lucros – esta, causada pela resistência agregada dos insetos nas monoculturas (ALTIERI, 2002). f) Monocultura – tende a favorecer o cultivo intensivo do solo, a aplicação de fertilizantes inorgânicos, a irrigação, o controle químico de pragas e as variedades especializadas de plantas (favorecendo a erosão genética/ vide letra g a seguir). A relação com agrotóxicos é particularmente forte, pois vastos cultivos da mesma planta são mais suscetíveis a ataques devastadores de pragas específicas e requerem proteção química (GLIESSMAN, 2005). g) Erosão genética – quanto ao uso de sementes e mudas geneticamente melhoradas, os danos são decorrentes da especialização cada vez maior das espécies utilizadas, levando à uniformização do material genético numa propriedade ou mesmo na região, o que ocasiona uma especialização correspondente das plantas daninhas, insetospragas e dos microrganismos patogênicos. Isto causa desequilíbrio no próprio agroecossistema, com prejuízos à produtividade, e também no ambiente, alterando a biodiversidade (CAMPANHOLA; LUIZ; LUCCHIARI JUNIOR, 1997). A América Latina possui vários centros de diversidade e, portanto, é um repositório de recursos genéticos de cultivos, incluindo variedades tradicionais, espécies de solo típicas e espécies de cultivos silvestres. A maior ameaça às variedades tradicionais na região é o processo de modernização agrícola (ALTIERI, 2002). 3.1.4.2 Conseqüências Socioeconômicas Do ponto de vista social, a modernização da agricultura provocou impactos negativos de ampla magnitude. Primeiramente deve-se considerar que o uso de todos aqueles insumos, já descritos no item anterior, visa a uma pretensa maior eficiência do processo produtivo; e, como resultado, tem-se, para muitas situações, um menor uso de mão-de-obra por área, o que 26 leva ao desemprego rural. Ao direcionar o processo modernizante fundamentalmente para as culturas de exportação e/ou para as vinculadas aos complexos agroindustriais, o Estado provocou uma intensificação exacerbada da tendência à monocultura. Essa tendência veio associada à moto-mecanização como base no uso do espaço agrícola e teve um duplo efeito: substituir mão-de-obra e substituir culturas alimentares (CAMPANHOLA; LUIZ; LUCCHIARI JÚNIOR, 1997; PETERSEN, 1997). Outro efeito da intensificação dos sistemas produtivos em áreas já ocupadas é a valorização da terra. A combinação destes dois fatos leva à alteração do preço, do uso e da posse da terra, ocasionando conflitos fundiários e êxodo rural, que são impactos sociais negativos (CAMPANHOLA; LUIZ; LUCCHIARI JÚNIOR, op. cit.). Ao tentarem se inserir no processo “moderno”, muitos pequenos agricultores se endividaram, tendo que abandonar suas terras para saldarem as dívidas (WEID, 1997a11 apud PETERSEN, op. cit.) abrindo caminho para que os grandes as adquirissem a preços baixos (PETERSEN, 1997). Apesar de não serem diretamente afetados pelo processo modernizante, os agricultores familiares mais empobrecidos, praticantes do modelo tradicional, também vão sendo gradativamente expulsos da terra. Em muitas regiões do país a população rural continua crescendo e provocando a fragmentação das pequenas propriedades. Com isso, atomizados, por assim dizer, esses agricultores assistem à diminuição de suas possibilidades de reprodução social. Assim, um país como o Brasil, dotado de território rico e diversificado e de população relativamente pequena, em grande parte pobre e desprovida dos empoderamentos necessários para melhorar suas condições de vida, continua expulsando mão-de-obra para as cidades, que são incapazes de assimilar com um mínimo de dignidade estes contingentes. Resultado: uma realidade de precariedade, marginalidade e violência, que hoje constitui um dos grandes problemas nacionais (PÁDUA, 2003). A concentração de renda e da terra, com expulsão dos agricultores familiares do meio rural, o latifúndio priorizando as culturas de exportação em detrimento da produção de alimentos básicos, e os altos custos de produção do modelo do capital, são fatores que determinam os aumentos nos preços dos alimentos, em relação ao poder aquisitivo da grande massa de consumidores. Sem contar que a oferta de alimentos cai, uma vez que aqueles agricultores familiares são, apesar de sempre terem ficado à margem das diretrizes governamentais, os responsáveis por significativa parcela da produção de alimentos básicos que abastece o mercado interno (PETERSEN, op. cit.). Este fenômeno compromete 11 WEID, J. M. von der. Fome em meio à abundância. Rio de Janeiro : FASE, 1997a. 27 decisivamente a segurança alimentar do país e, por conseqüência, põe em xeque a própria soberania nacional (DAVID et al., 1994); logo, o modelo em que se insere, não é seguro nem desenvolvimentista, sendo, isto sim, socialmente desagregador e altamente negativista. As práticas agrícolas modernas aumentam as distâncias entre os processos sociais e os ecológicos (ALTIERI, 2002). Assim, nota-se que várias práticas da agricultura convencional tendem a comprometer a produtividade futura em favor da alta produtividade no presente. Então, observa-se que a agricultura convencional alcançou seus altos rendimentos principalmente por aumentar o uso de insumos agrícolas. Estes, como visto anteriormente, compreendem substâncias como água para irrigação, fertilizantes e agrotóxicos; a energia usada para fabricá-las e para operar maquinaria agrícola e bombas de irrigação; e tecnologia, na forma de sementes híbridas, novos agrotóxicos e maquinaria agrícola. Todos esses insumos vêm de fora do agroecossistema em si; seu uso extensivo tem conseqüências sobre o lucro dos produtores, sobre o uso de recursos não renováveis e sobre quem controla a produção agrícola. A agricultura não pode ser sustentável enquanto permanecer nessa dependência de insumos. Primeiro, os recursos naturais, dos quais muitos insumos derivam-se, não são renováveis e suas reservas são finitas. Segundo, a dependência de insumos externos deixa produtores, regiões e países vulneráveis à falta de fornecimento, flutuações de mercado e aumento de preços. 3.2 Rumo à Sustentabilidade “Embora a desigualdade sempre tenha existido entre países e entre grupos dentro de países, a modernização da agricultura tendeu a acentuá-la, porque seus benefícios não são distribuídos uniformemente. Aqueles com mais terras e recursos têm tido maior acesso às novas tecnologias. Conseqüentemente, enquanto a agricultura convencional estiver baseada em tecnologia de primeiro mundo e os insumos externos forem acessíveis a tão poucos, a prática da agricultura perpetuará a desigualdade, que permanecerá como uma barreira à sustentabilidade.” (GLIESSMAN, 2005). Diante do imperativo ambiental, que leva a uma crescente demanda da sociedade por modelos de desenvolvimento sustentável, ficou evidente a necessidade de mudanças no modelo convencional de agricultura instituído a partir da Revolução Verde (CAPORAL, 2004?), principalmente por ser um modelo que não foi adequado à realidade cultural da maioria dos agricultores. 28 De acordo com Menegetti (200-), o desenvolvimento rural estruturado sobre o paradigma da modernização dá sinais de que não é sustentável, deixando uma série de conseqüências que fazem repensar o processo de desenvolvimento rural. No plano da agricultura, o modelo se mostrou insustentável, principalmente porque o processo de modernização foi seletivo, excluindo a maior parte dos pequenos agricultores familiares. Os agricultores familiares que de forma marginal se inseriram no novo sistema de produção, viram a renda agrícola cair ao longo do tempo. Esta queda se deveu à degradação dos recursos naturais pelo sistema de produção adotado e pelo aumento dos custos de produção, em função, principalmente, do custo dos insumos, sempre em crescente elevação e requeridos em doses cada vez maiores. A insustentabilidade pode ser observada no aumento dos níveis de pobreza e êxodo rural. Ainda pode ser observada pela dependência dos agricultores em relação ao restante da cadeia produtiva, pela poluição e degradação do meio, pela erosão biológica, cultural, enfim, por uma série de conseqüências econômicas, sociais e ambientais que demonstram que este modelo não se sustenta ao longo do tempo (MENEGETTI, 200-; CAPORAL; COSTABEBER, 2004). Apesar de todos os avanços técnicos da agricultura moderna, ela ainda continua a depender de processos e recursos naturais. E a degradação desses recursos pode inviabilizar os atuais sistemas de produção agrícola, além de comprometer o uso para gerações futuras (MENEGETTI, op. cit.; PETERSEN, 1997). Desta forma,conforme ora se quer demonstrar, se uma agricultura sustentável é aquela capaz de suprir as necessidades básicas das gerações atuais, sem comprometer as das gerações futuras, a agricultura brasileira já deve ser considerada insustentável, levando em conta que amplas parcelas da população estão alijadas até do consumo alimentar básico, condição elementar para uma existência digna (PETERSEN, op. cit.; REIJNTJES; HAVERKORT; WATERS-BAYER, 1999). Está claro e evidente que a despeito dos aumentos na produtividade e produção, a fome persiste em todo o globo. Existem enormes disparidades na gestão de calorias e na segurança alimentar entre pessoas de nações desenvolvidas e aquelas das nações em desenvolvimento. Com freqüência, as nações em desenvolvimento produzem principalmente para exportação para países desenvolvidos, usando insumos externos comprados destes. Enquanto os lucros da venda dos produtos de exportação enriquecem um número reduzido da elite de proprietários de terras, muitas pessoas, famílias inteiras até, nas nações em desenvolvimento, passam fome. Além disto, aqueles com pouca terra são deslocados à medida que a elite procura mais área para culturas de exportação (GLIESSMAN, 2005). 29 Os sinais de que o modelo de desenvolvimento rural atual se esgotou podem ser constatados nos sistemas de produção agrícola, que carregam um elevado grau de ineficiência energética e causam impactos ambientais. O grande sinal da insustentabilidade do modelo agrícola brasileiro em vigor é o fato de ele não admitir ou ignorar a participação das pessoas, de modo especial os pequenos agricultores, na discussão, formulação de propostas e gestão social dos planos de desenvolvimento rural. Ele obstaculiza o exercício da cidadania (MENEGETTI, 200-). Em resumo, a agricultura moderna e insustentável não pode continuar a produzir comida suficiente para a população global, porque deteriora as condições que a tornam possível (GLIESSMAN, op. cit.). Então, no atual estágio é mais fácil abandonar este modelo do que tentar corrigi-lo, promovendo-se uma transição gradual e segura do sistema convencional para um alternativo; agora, porém, com níveis de conhecimento e consciência mais elevados. Para reverter conscientemente um processo de longo período de destruição, é preciso adotar-se desde já um modelo de agricultura que seja regenerativo. A sustentabilidade da agricultura requer profunda reorientação dos padrões vigentes de organização socioeconômica, técnica e espacial do meio rural. Trata-se na realidade de um complexo processo de transformações que não dizem respeito apenas ao “setor rural”, mas que envolvem um amplo espectro de instituições da sociedade (ALMEIDA; PETERSEN; CORDEIRO, 2001). Assim, a idéia de um mundo rural sustentável – e adequado à crítica das sociedades e tecnologias industriais – aparece associada a uma mudança do acesso aos recursos produtivos, com mudanças na distribuição da propriedade rural, sugerindo que políticas significativas de reforma agrária seriam necessárias para o desenvolvimento sustentável autônomo dos países periféricos. Autonomia aqui significa tanto uma não-dependência em relação aos países industrializados, quanto a valorização de processos políticos participativos em nível local (MOREIRA, 2000). Para Veiga (199312 apud STROPASOLAS, 1995), há uma forte exigência social por novos métodos de produção e transformação dos alimentos que venham a reduzir os impactos ambientais adversos e assegurar altos níveis de pureza e não toxicidade; ou seja, uma ampla gama de manifestações sociais permite perceber que a crescente preocupação com uma alimentação mais saudável tende a estar cada vez mais ligada à preservação dos recursos naturais usados em sua produção. 12 VEIGA, J. E. da. O berço do agribusiness está ficando verde. Revista da ABRA, v. 23, 1993. 30 No Brasil, a preocupação com a qualidade dos produtos agrícolas é bastante limitada. Entre os segmentos sociais de maior poder aquisitivo e com maior nível de instrução, valoriza-se, sobretudo, a aparência externa dos produtos, o preço e a quantidade; não há uma exigência quanto à qualidade dos alimentos no que diz respeito aos resíduos químicos e manutenção do ambiente. Em função do desconhecimento do consumidor, ele rechaça certos produtos de acordo com o preço, a aparência ou sabores padronizados. Não conhece conceitos de sazonalidade dos produtos orgânicos, pois muitos produtos agrícolas não são disponibilizados o ano inteiro, mas obedecem aos ritmos das estações e à época apropriada para o plantio (AZEVEDO, 2003). Já entre os setores populares, a preocupação maior é com a luta cotidiana pelo acesso à alimentação, dura realidade de uma sociedade de escassez. Assim, o parâmetro qualidade é dado mais pela estética e acabamento final, que pelo valor em si do produto, computada nesse valorímetro a forma de produção, bem como as características intrínsecas do produto, como valor nutritivo, sabor, textura e outras (MENEGETTI, 200-). Observa-se, então que as necessidades para se desenvolver uma agricultura sustentável não são apenas biológicas ou técnicas, mas também sociais, econômicas e políticas, ilustrando os fatores necessários para se criar uma sociedade sustentável. É inconcebível promover mudanças ecológicas no setor agrícola sem a defesa de mudanças comparáveis nas outras áreas correlacionadas da sociedade (MEIRELLES, 2003; GLIESSMAN, 2005). Percebe-se que a sustentabilidade ambiental é uma condição necessária, mas não suficiente para se atingir um desenvolvimento sustentável. Torna-se fundamental colocar ao seu lado a sustentabilidade social como outro eixo de apoio, sem o qual qualquer avanço das forças produtivas só fará aumentar seu deslocamento das relações sociais de produção. A insustentabilidade social no Brasil tem impedido avanços na direção de uma sustentabilidade ambiental, seja na cidade ou no campo (CARMO, 1999). 3.2.1 Como chegar a Modelos Sustentáveis “A agricultura é sustentável quando é ecologicamente correta, economicamente viável, socialmente justa, humana e adaptável.” (GIPS, 198613 apud REIJNTJES; HAVERKORT; WATERS-BAYER, 1999). 13 GIPS, T. What is sustainable agriculture? In: ALLEN, P.; DUSEN, D. van, eds. Global perspectives on agroecology and sustainable agricultural systems: proceedings of the 6th International Scientific Conference of the International Federation of Organic Agriculture Movements (IFOAM). Santa Cruz: Agroecology Program, University of California, v.1, 1986. p. 63-74. 31 No contexto da agricultura, a sustentabilidade diz respeito à capacidade de se garantir a permanência da produtividade, ao mesmo tempo em que se mantém a base de recursos (REIJNTJES; HAVERKORT; WATERS-BAYER, op. cit.). A busca de sistemas agrícolas auto-suficientes e diversificados, de baixa utilização de insumos, e que utilizam eficientemente a energia, é atualmente motivo de preocupação de pesquisadores, agricultores e políticos em todo o mundo. A estratégia chave da agricultura sustentável é a restauração da diversidade na paisagem agrícola (ALTIERI, 198714 apud ALTIERI, 2002). A diversidade pode ser aumentada no tempo, mediante o uso de rotações de culturas ou cultivos seqüenciais, e no espaço, através do uso de culturas de cobertura, cultivos intercalados, sistemas agroflorestais e sistemas integrados de produção vegetal e animal. A diversificação da vegetação tem como resultado, tanto o controle das pragas, pela restauração dos agentes naturais, como também a otimização da reciclagem de nutrientes, maior conservação do solo, da energia e menor dependência de insumos externos. A agricultura sustentável geralmente refere-se à busca de rendimentos duráveis, através do uso de tecnologias de manejo ecologicamente adequadas. Isto requer que o sistema agrícola seja considerado como um ecossistema (daí o termo agroecossistema), pois a agricultura e a pesquisa agrícola não são orientadas ao rendimento máximo de qualquer produto específico, mas sim à otimização do sistema como um todo; além disso, é preciso considerar não apenas a produção econômica, mas também a questão vital da estabilidade ecológica e da sustentabilidade (ALTIERI, op. cit.). Mas a problemática agricultura/ ambiente não está circunscrita apenas ao meio rural; daí, a necessidade de uma abordagem holística, intra e extra-setorial, para sua identificação. A alteração deste cenário, em prol de uma agricultura com maior racionalidade energética e menor impacto ambiental e social, implica na adoção de várias medidas, intra e extra setoriais, tais como (ALTIERI, 199515 apud ALTIERI, op. cit.): • adoção de esquemas mais eficientes de reciclagem de resíduos orgânicos e não orgânicos potencialmente úteis à agricultura; • reorientação do melhoramento genético para a busca de resistência de plantas e animais às pragas, doenças e zoonoses, associado à produtividade; 14 ALTIERI, M. A. The significance of diversity in the maintenance of the sustainability of traditional agroecosystems. ILEIA, v.3, n.2, p.3-7, 1987. 15 ALTIERI, M. A. Agroecology: the science of sustainable agriculture. 2nd ed. Boulder Clor: Westview Press, 1995. 32 • desenvolvimento e disseminação, junto ao setor produtivo agrícola, das práticas biológicas e vegetativas, que propiciem a redução e/ou eliminação do uso de agroquímicos no ciclo produtivo (exemplo: adubação verde, controle biológico de pragas e doenças, cultivo mínimo e plantio direto, dentre outras), reduzindo as perdas de nutrientes e controlando eficazmente a lixiviação, o escorrimento superficial e a erosão; • melhor adequação dos equipamentos mecânicos às distintas escalas de produção e realidades edafo-climáticas do agro, e identificação de alternativas energéticas ao petróleo, fundamentadas em fontes renováveis e não poluentes dos ecossistemas; • redução do uso de energia e de recursos e controle do uso da energia em geral, de maneira que a relação dos produtos/insumos externos seja elevada; • estímulo à produção local de alimentos adaptados ao contexto natural e socioeconômico. Esta transição está centrada na cidadania e em bases democráticas, pressupondo a utilização de metodologias de intervenção participativa, capazes de incluir as pessoas nos processos decisórios. A busca por melhor qualidade de vida das comunidades, com respeito ao conhecimento local, estabelecimento de metas compatíveis com condições sócioeconômicas e com os interesses e necessidades das populações participantes do processo de construção de novos estilos de desenvolvimento rural e agricultura sustentável – estas devem ser as ferramentas. Assim, apesar de todos os obstáculos e limitações de natureza técnico-científica, econômica e metodológica, é possível criar condições para que se possa ter uma agricultura sustentável, reduzindo os impactos ao ambiente, ao mesmo tempo que se estimula a inclusão social da população rural, utilizando a Agroecologia (CAPORAL, 2004 ?). 3.3 Agroecologia como ferramenta “Em termos globais, há comida demais, não há escassez. O problema é a pobreza. Muitas pessoas são pobres demais para comprar os alimentos que existem ou não têm terra para produção própria.” (BOUCINHA; BRIXIUS, 2002). 33 3.3.1 O que é Agroecologia? Segundo Assis (2002), Agroecologia é uma ciência surgida na década de 1970 como forma de estabelecer uma base teórica para diferentes movimentos da agricultura alternativa, que então ganhavam força com os sinais de esgotamento da agricultura moderna. Apesar de ser um termo que surgiu vizinho às diferentes correntes da agricultura alternativa, não deve ser entendida como uma prática agrícola, mas sim definida como uma ciência que busca o entendimento do funcionamento de agroecossistemas complexos, bem como das diferentes interações presentes neste, tendo como princípio a conservação e a ampliação da biodiversidade dos sistemas agrícolas como base para produzir auto-regulação e consequentemente sustentabilidade. Para Gliessman (2005) Agroecologia é uma ciência que aplica conceitos e princípios ecológicos no desenho e manejo de agroecossistemas sustentáveis, proporcionando o conhecimento e a metodologia necessários para desenvolver uma agricultura que é ambientalmente consistente, altamente produtiva e economicamente viável. Valoriza o conhecimento local e empírico dos agricultores, a socialização desse conhecimento e sua aplicação ao objetivo comum da sustentabilidade. Feiden (2001), Altieri (2002) e EMBRAPA (2006) descrevem a Agroecologia não como uma disciplina específica, mas como uma abordagem que integra concepções e métodos de diversas outras áreas do conhecimento, tendo raízes nas ciências agrícolas, no movimento ambiental, na ecologia, nas análises de agroecossistemas indígenas e em estudos de desenvolvimento rural, e fornecendo abordagem e diretrizes para uma agricultura mais diversificada e produtiva mais adequada ambientalmente e, também, capaz de preservar a estrutura social das comunidades rurais (PRETTY, 199516 apud ALTIERI, op. cit.). Essa visão sugere, além de uma transição agroambiental nos sistemas de produção, perspectivas de promover transformações estruturais nos atuais sistemas de industrialização e de comercialização, com possibilidades de distribuição mais justa de renda, poder e responsabilidades entre os atores envolvidos (MUSSOI; PINHEIRO, 2003). Sendo uma nova estratégia para o desenvolvimento agrícola, a Agroecologia considera como critérios de desempenho dos programas a sustentabilidade ambiental e eqüidade social, juntamente com o objetivo geral de alcançar e manter bons níveis de produtividade dos 16 PRETTY, J. N. Regenerating agriculture. London: Earthscan, 1995. 34 cultivos e das criações. Portanto, além da dimensão econômica das atividades produtivas, ela pressupõe a otimização das variáveis ambientais dos agroecossistemas através de um processo de gestão e manejo dos recursos naturais, harmônico com as qualidades específicas de amplitude e tolerância ecológica dos distintos ecossistemas (ALMEIDA; PETERSEN; CORDEIRO, 2001). As tecnologias e instituições de enfoque agroecológico têm um potencial significativo para resolver os problemas da pobreza rural, da insegurança alimentar e da degradação ambiental. Elas não enfatizam as elevadas produtividades, possíveis através de tecnologias como as da Revolução Verde, que apenas funcionam em condições ótimas; elas garantem a constância de produção, mesmo quando submetidas às mais diversas condições edafoclimáticas – e ainda sob condições marginais, que prevalecem na agricultura familiar (ALTIERI, 2002). Foi fundamentalmente na última década, à medida que as conseqüências da utilização da tecnologia dominante tornaram-se mais evidentes, que a necessidade de uma transformação visando à sustentabilidade agrícola obteve o reconhecimento como alternativa economicamente viável (GUIVANT, 2002). Vê-se, porém, que os problemas para uma generalização da Agroecologia são, por um lado, os sistemas de créditos e incentivos à produção dos países desenvolvidos, favorecendo/protegendo as monoculturas agroquímicas e inibindo os sistemas diversificados agroecológicos; por outro lado, a Agroecologia exige informações qualificadas para cada ecossistema e impossibilita o uso de pacotes tecnológicos simplificados, típicos do modelo agroquímico. A produção deste conhecimento e sua difusão implicam na mudança dos rumos do ensino, pesquisa e extensão rural (WEID, 1998; SARANDÓN, 2002). 3.3.2 Implantando a Agroecologia O processo de inclusão de princípios ecológicos na agricultura se dá ao longo do tempo e, portanto, mediante uma transição agroecológica, que se constitui na passagem do modelo produtivista da agricultura convencional a estilos de produção mais complexos sob o ponto de vista da conservação e manejo dos recursos naturais, ou seja, um processo social orientado à obtenção de índices mais equilibrados de sustentabilidade, estabilidade, produtividade, eqüidade e qualidade de vida na atividade agrícola. Logo, a transição 35 agroecológica se refere a um processo gradual de mudança, através do tempo, nas formas de manejo dos agroecossistemas, tendo como meta a passagem de um modelo agroquímico de produção à estilos de agricultura que incorporem princípios, métodos e tecnologias com base ecológica (CAPORAL; COSTABEBER, 2004). Por se tratar de um processo social, a transição agroecológica implica, inclusive, numa mudança nas atitudes e valores dos atores sociais em relação ao manejo e conservação dos recursos naturais, não dispensando o progresso técnico e o avanço do conhecimento científico (COSTABEBER, 199817 apud CAPORAL, 2004?). Este processo, como ensina Gliessman (200018 apud CAPORAL, op. cit.), exige, entre outras coisas, uma nova e qualificada aproximação entre Agronomia e Ecologia. Segundo Gliessman (2005), diversos fatores estão encorajando os produtores a começarem esse processo de transição, a saber: • o custo crescente da energia; • as baixas margens de lucro das práticas convencionais; • o desenvolvimento de novas práticas que são vistas como opções viáveis; • o aumento da consciência ambiental entre consumidores, produtores e legisladores; e • novos e mais consistentes mercados para produtos agrícolas cultivados e processados de forma alternativa. É uma alternativa crescentemente reconhecida por diversos segmentos sociais (agricultores, pesquisadores, extensionistas, políticos) como a melhor opção para promover o desenvolvimento rural e agrícola sustentável e uma agricultura socialmente apropriada e conservadora dos recursos naturais, como foi concertado na Agenda 21 durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992, no Rio de Janeiro (PETERSEN, 1997; ALMEIDA; PETERSEN; CORDEIRO, 2001). 17 COSTABEBER, J. A. Acción colectiva y procesos de transición agroecológica en Rio Grande do Sul, Brasil. Córdoba, 1998. 422f. (Tese de Doctorado) Programa de Doctorado en Agroecología, Campesinado e Historia, ISEC-ETSIAN, Universidad de Córdoba, España, 1998. 18 GLIESSMAN, S. R. Agroecologia: processos ecológicos em agricultura sustentável. Porto Alegre: Editora da Universidade – UFRGS, 2000. 36 3.3.3 Sistemas Orgânicos de Produção A adoção de sistemas orgânicos de produção pode em muito minimizar os problemas ambientais decorrentes da atividade agrícola, conforme reconhecido pelo Ministério da Agricultura dos Estados Unidos da América (USDA, 1984) e enfatizado por diversos autores (PASCHOAL, 1994; ZIMMERMANN, 198519; ALTIERI et. al., 198720; COSTA, 198721; DULLEY & CARMO, 198722; ALTIERI, 198923; MIYASAKA & NAKAMURA, 198924; EHLERS, 199525; GIORDANO, 199526; MEJÍA, 199527; SARANDÓN, 199628 apud ALMEIDA, 2000). De acordo com a Lei no 10.831 de 23/12/2003 (BRASIL, 2003), do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), conforme o art 1º (caput) e incisos I a IX do 19 ZIMMERMANN, J. Perspectivas da Agricultura Alternativa no Brasil. In: ENCONTRO BRASILEIRO DE AGRICULTURA ALTERNATIVA, 2., 1984, Petrópolis. Anais... Rio de Janeiro: Federação das Associações de Engenheiros Agrônomos do Brasil / Associação de Engenheiros Agrônomos do Estado do Rio de Janeiro, 1985. p.66-72. 20 ALTIERI, M.A.; NORGAARD, R.B.; HECHT, S.B.; FARREL, J.G.; LIEBMAN, M. Agroecology: the scientific basis for alternative agriculture. Boulder: Westview Agroecology Press, 1987. 227p. 21 COSTA, M. B. B. da. Agricultura moderna e sua crítica: uma saída em relação as vertentes da agricultura alternativa. In: SEMINÁRIO DE PESQUISA EM AGRICULTURA ALTERNATIVA, Londrina, 1984. Anais... Londrina: Fundação Instituto Agronômico do Paraná (IAPAR), 1987. p.68-91. 22 DULLEY, R. D.; CARMO, M. S. Viabilidade econômica do sistema de produção na agricultura alternativa. Revista de Economia Rural, Brasília, v.25, n.2, p.225-250, 1987. 23 ALTIERI, M.A. Agroecologia: as bases científicas da agricultura alternativa. 2.ed.. Rio de Janeiro: PTA/FASE, 1989. 240p. 24 MIYASAKA, S.; NAKAMURA, Y. Agricultura natural da MOA. Associação Mokiti Okada do Brasil (MOA)/Departamento de Agricultura Natural, São Paulo, 1989. 64p. (Boletim n. 1, Série - Agr. Natural MOA). 25 EHLERS, E. Possíveis veredas da transição à agricultura sustentável. Agricultura Sustentável, Jaguariúna, v.2, n.2, p.1-74, 1995. 26 GIORDANO, S. R. Agricultura sustentável: novos desafios para o agribusiness. Revista de Administração, São Paulo, v.30, p.77-82, 1995. 27 MEJÍA, M. A. Agricultura tradicional, revolución verde y agricultura alternativa. Agricultura Sustentável, Jaguariúna, v. 2, n. 1, p. 38-44, 1995. 28 SARADÓN, S. Impacto ambiental de la agricultura: el enfoque agroecológico como necesidad para el logro de una agricultura sostenible. In: Sistemas Agrícolas Sustentables. Santiago: CLADES/Facultad de Ciencias Agricolas, Universidad Central de Ecuador, 1996. 86p. 37 seu § 1º, sistema orgânico de produção agropecuária e industrial, seria, com suas respectivas finalidades: “Art. 1° - Considera-se sistema orgânico de produção agropecuária todo aquele em que se adotam técnicas específicas, mediante a otimização do uso dos recursos naturais e socioeconômicos disponíveis e o respeito à integridade cultural das comunidades rurais, tendo por objetivo a sustentabilidade econômica e ecológica, a maximização dos benefícios sociais, a minimização da dependência de energia não-renovável, empregando, sempre que possível, métodos culturais, biológicos e mecânicos, em contraposição ao uso de materiais sintéticos, a eliminação do uso de organismos geneticamente modificados e radiações ionizantes, em qualquer fase do processo de produção, processamento, armazenamento, distribuição e comercialização, e a proteção do meio ambiente. § 1° - A finalidade de um sistema de produção orgânico é: I – a oferta de produtos saudáveis isentos de contaminantes intencionais; II – a preservação da diversidade biológica dos ecossistemas naturais e a recomposição ou incremento da diversidade biológica dos ecossistemas modificados em que se insere o sistema de produção; III – incrementar a atividade biológica do solo; IV – promover um uso saudável do solo, da água e do ar, e reduzir ao mínimo todas as formas de contaminação desses elementos que possam resultar das práticas agrícolas; V – manter ou incrementar a fertilidade do solo a longo prazo; VI – a reciclagem de resíduos de origem orgânica, reduzindo ao mínimo o emprego de recursos não-renováveis; VII – basear-se em recursos renováveis e em sistemas agrícolas organizados localmente; VIII – incentivar a integração entre os diferentes segmentos da cadeia produtiva e de consumo de produtos orgânicos e a regionalização da produção e comércio desses produtos; IX – manipular os produtos agrícolas com base no uso de métodos de elaboração cuidadosos, com o propósito de manter a integridade orgânica e as qualidades vitais do produto em todas as etapas.” Em decorrência da baixa dependência de insumos externos, pelo aumento de valor agregado ao produto com conseqüente aumento de renda para o agricultor e por propiciar a conservação dos recursos naturais, a agricultura orgânica apresenta-se como um mercado inovador. Cria oportunidades, principalmente para pequenos e médios produtores, inclusive 38 comunidades de agricultores familiares e vários outros segmentos da cadeia produtiva, o que pode auxiliar o desenvolvimento das áreas rurais próximas aos grandes centros urbanos e aos corredores de exportação (ALMEIDA, 2000). O termo orgânico é caracterizado como originário de "organismo", significando que todas as atividades da fazenda (olericultura, fruticultura, criações, por exemplo) seriam partes de um corpo dinâmico, interagindo entre si (ASSIS et al., 199829 apud FEIDEN, 2001). Por isto, parte do princípio de estabelecer sistemas de produção com base em um conjunto de procedimentos que envolvam a planta, o solo e as condições climáticas, tendo como objetivo a produção de um alimento sadio e com suas características e sabor originais (FEIDEN, op. cit.). Para Schmidt (2001), a agricultura orgânica tem sido apontada como um meio para a construção de um novo padrão de produção agropecuária e, por decorrência material, para a reconstrução da cidadania no campo. Para isso, é necessário ampliar fortemente e em um prazo relativamente curto o número de agricultores que a praticam; o que, na prática, exige a mudança dos circuitos de comercialização. Apesar de um suposto modismo, a agricultura orgânica continua representando uma baixa parcela da produção agrícola brasileira, com apenas 6,5 dos 152 milhões de hectares existentes (IBGE, 2006b). Antes, ela foi encarada fundamentalmente como uma estratégia de resistência e de permanência de agricultores familiares no campo - no período em que as idéias da modernização "conservadora" e "dolorosa" seguiam um pensamento único – e foi defendida e implantada quase que exclusivamente por organizações não-governamentais de assessoria e apoio. Agora, com a explicitação da crise e de sistemas agrícolas que não contemplam a sustentabilidade, a agricultura orgânica passou a ser uma idéia veiculada também por instituições governamentais ou internacionais que antes faziam apologia à modernidade industrial. É que, na prática, não havia outro caminho para elas, com o fortalecimento da proposta de um desenvolvimento sustentável e a clara mudança na postura do consumidor, que passa a estar preocupado com sua saúde e com a qualidade de vida em geral, passando por uma conscientização ecológica, de interesse planetário. A melhor maneira de evitar uma especialização, uma concentração da produção, um nivelamento por baixo dos preços e da qualidade na agricultura orgânica, é associá-la diretamente com a agricultura familiar e com propostas de desenvolvimento regional 29 ASSIS, R. L. de; AREZZO, D. C. de; ALMEIDA, D. L. de; DE-POLLI, H. Aspectos técnicos da agricultura orgânica fluminense. Revista Universidade Rural - Série Ciências da Vida, Seropédica, v.20, n.1-2, p.1-16, 1998. 39 sustentável. Ora, para ser reconhecida como sustentável, a agricultura orgânica deve manter a sua dimensão ética. Para isso, precisa haver a construção de instrumentos que façam saber ao consumidor que é este tipo de agricultor que produz essa qualidade, graças aos seus conhecimentos, ao seu trabalho e ao seu talento – e mormente aos seus propósitos éticos. E a certificação pode servir como um instrumento de reforço a esta estratégia. Uma vez informados, os consumidores de produtos orgânicos também devem fazer sua escolha, optando por uma agricultura orgânica que esteja contribuindo, de fato, para a construção de um meio rural vivo e mais equilibrado em termos sociais e ambientais. Em suma, pode não ser necessário para a agricultura orgânica escolher entre ética e mercado, se a ética se impuser como uma condição para a participação no mercado de produtos orgânicos. A associação entre Agricultura Orgânica, com base na abordagem agroecológica, e Agricultura Familiar é a melhor forma de fazer prevalecer, quer no mercado quer entre os atores da cadeia produtiva, as dimensões éticas da agricultura orgânica (SCHMIDT, 2001). 3.4 Agricultura Familiar e Agroecologia como Fatores de Inclusão Social do Pequeno Agricultor A lógica dos sistemas orgânicos de produção com abordagem agroecológica assemelha-se à dos sistemas tradicionais. Por esse motivo, essa opção para o desenvolvimento agrícola tem sido duramente combatida e desqualificada em alguns meios que argumentam uma hipotética desvantagem da rentabilidade econômica e das produtividades desses sistemas quando comparadas com a dos sistemas químico-mecanizados, o que provocaria sérios problemas de segurança alimentar caso fosse generalizada. No Brasil, as informações geradas pelo monitoramento econômico e agronômico da exploração agroecológica são ainda dispersas e não sistematizadas. Análises rigorosas de experiências em outros países, porém, têm demonstrado, não só a viabilidade técnica, como também resultados econômicos similares ou superiores aos dos sistemas químico-mecanizados, mesmo quando não são contabilizados os custos de degradação socioambiental por estes gerados (ALMEIDA; PETERSEN; CORDEIRO, 2001). De acordo com Denardi (2001) e Wilkinson (2000) o conceito de Agricultura Familiar é relativamente recente, pelo menos no Brasil. Tem, talvez, uns dez anos. Antes disso, falavase em pequena produção, pequeno agricultor e, um pouco antes, ainda se utilizava o termo 40 camponês. O fato é que os empreendimentos familiares têm duas características principais: eles são administrados pela própria família; e neles a família trabalha diretamente, com ou sem o auxílio de terceiros. Geralmente são lotes de 5 a 50 hectares que, tradicionalmente, misturam atividades de subsistência, produção comercial e em menor grau integração agroindustrial. A gestão e o trabalho é predominantemente familiar. Assim, um estabelecimento familiar é, ao mesmo tempo, uma unidade de produção e de consumo; uma unidade de produção e de reprodução social. Em colaboração com outros estudiosos houve um esforço de revalorização conceitual e empírica da produção familiar. A produção familiar agora torna-se a âncora de um modelo econômico, ao mesmo tempo, mais eqüitativo (na distribuição de renda) e mais eficiente (no abastecimento alimentar mais barato). Desta forma, os males da sociedade brasileira (péssima distribuição de renda e falta de densidade endógena dos mercados) são reinseridos na herança da estrutura fundiária. Estas análises tentam mostrar que a produção familiar ainda é responsável por uma parte substancial dos bens alimentares, apesar do viés a favor da grande propriedade em todos os mecanismos de modernização (WILKINSON, 2000). 3.4.1 Pequeno histórico da agricultura familiar no Brasil “Insistiu-se que, o modelo de desenvolvimento rural dos países ricos era possível e bom para todos os povos. A modernização, da forma como foi concebida, era o único caminho para o desenvolvimento. A diferenciação e a diversidade da agricultura só atrapalhavam. A irracionalidade deste padrão levou muitos pequenos agricultores familiares à miséria, à dependência, à perda de identidade e ao êxodo rural.” (MENEGETTI, 200-). Conseqüentemente ao acesso marginal ao crédito, os produtores familiares foram alijados do processo de modernização da agricultura no Brasil. Os que tiveram acesso, o fizeram por estarem ligados ao capital agroindustrial. A estrutura agrária, aliada a questão do crédito e acesso a tecnologias adequadas de produção, fizeram com que muitos pequenos agricultores abandonassem o campo ou lá permanecessem em estado de pobreza (DELGADO, 198630 apud MENEGETTI, 200-). Mais de 40 milhões de pessoas migraram do meio rural para o urbano nessa época, de transição,segundo Menegaz (199-). 30 DELGADO, N.G. Política econômica, ajuste externo e agricultura. Debates - CPDA, nº 7, set./1998, Rio de Janeiro, 1998. 44 p. CPDA, Debates, 7. 41 Por fim, para fechar o círculo, os recursos desviados do crédito agrícola, serviram para os grandes produtores comprar as terras dos pequenos produtores endividados ou falidos, num processo de concentração fundiária, e de rendas, talvez nunca antes visto em todo o mundo, pela velocidade e amplitude que lhe foi característica. A presença do governo no INCRA e nos sindicatos, a influência da propaganda ideológica, das maravilhas do modelo americano, e do atraso da nossa agricultura, a desvalorização cultural, a alienação, a marginalização do sistema político, a desestruturação social, eram o pano de fundo sobre o qual se operaram estas transformações. A falta de transporte, de habitação, a quase inexistência de sistema de saúde e de escolas, também eram outros pontos vitais de desestruturação do meio social rural (MENEGAZ, op. cit.). O governo brasileiro, literalmente “virou as costas” para o pequeno agricultor e para suas necessidades. Partiu da visão econômica tantas vezes manifestada por Delfim Neto, e por outras figuras de destaque do seu período, de influência, segundo a qual a pequena propriedade é inviável economicamente, ou seja, não possui capacidade concorrencial num regime de livre iniciativa. A partir desta visão, há uma necessidade de se integrar aos mercados mundiais, o que requer produtividade, o que só é obtido pela especialização. A agricultura não produz mais alimentos e sim mercadorias – commodities. O que importa é ir em busca de divisas, e não considerando a importância da integração ao mercado interno, visão típica dos liberais. Isso, mesmo sabendo que os pequenos eram responsáveis por 6080% da oferta de alimentos para o mercado interno (MENEGAZ, 199-). A exportação, contudo, era o alvo das diretrizes do modelo econômico então implantado. Numa tentativa de compensar o processo marginal a que foram submetidos ao longo dos anos, a partir da década de 80, dentro de um plano de produção interna na lógica da modernização, os agricultores familiares tiveram uma pequena redução nas taxas de juros nos financiamentos de custeio. Mas, mesmo com taxas de juros menores, estas eram positivas, sem contemplações de ordem social que as minimizassem acaso. Evidentemente, os pequenos agricultores foram novamente os mais prejudicados com as mudanças, porque o volume de dinheiro a eles destinado continuou sendo pequeno (MENEGETTI, 200-), e pesado o fardo da cobrança em prazos exíguos. A década de 90 é marcada pelos planos de estabilização da economia e pela liberalização dos mercados. A agricultura, como os demais setores da economia, é submetida a uma concorrência internacional severa. A produção familiar, principalmente, é submetida a um jogo de concorrência internacional, num contexto de forte protecionismo por parte dos EUA, Europa e Japão, na maioria das vezes. Internamente, a agricultura familiar é afetada 42 pela questão dos juros, pela pouca disponibilidade de crédito, e por especificidades inerentes a ela, como a impossibilidade de produção em escala, dificuldade de acesso a tecnologias, e é afetada também pelo ambiente concorrencial que a submete a um processo de seleção para o fornecimento de matéria-prima para as agroindústrias (PETERSEN, 1997). Para Denardi (2001), no que tange às políticas públicas destinadas à agricultura familiar, destacam-se hoje no país, a Previdência Social e o PRONAF – Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar. Considera a Previdência como a mais importante política social para os agricultores familiares brasileiros. As aposentadorias e pensões mensais recebidas por grande número de beneficiários de famílias pobres fazem da Previdência Rural a política pública de maior alcance social no país. O PRONAF é considerado a primeira política pública diferenciada em favor dos agricultores familiares brasileiros. É uma conquista dos movimentos sociais e sindicais de trabalhadores rurais nas últimas décadas. Até agora, tem permitido a massificação ou socialização do acesso ao crédito de custeio para considerável número de agricultores familiares. Esse inquestionável aumento quantitativo no acesso ao crédito, no entanto, não representou ainda nenhum grande avanço em termos qualitativos. E por quê? Porque, a rigor, é um crédito rural tradicional: financia o custeio de tecnologias convencionais para produtos tradicionais. Falta crédito para investimentos e, principalmente, para financiar mudanças nos sistemas de produção, para reconversão produtiva e para atividades não-agrícolas no meio rural. Embora as normas do PRONAF permitam, e existam algumas "orientações" que "estimulam" esse tipo de financiamento, existe uma distância entre o que as autoridades de Brasília dizem e o que, de fato, acontece na agricultura brasileira. Pouco se poderá avançar enquanto os agricultores familiares dependerem do sistema tradicional de crédito, isto é, da estrutura bancária (DENARDI, op. cit.; ALMEIDA, 2000). 3.4.2 Daqui em diante De acordo com David et al. (1994) o desenvolvimento rural, concebido como sinônimo de modernização teve implicâncias sérias na questão da sustentabilidade, tanto econômica, como social e ambiental, dentro da agricultura de um modo geral, e principalmente, dentro da agricultura familiar. 43 Falando especificamente da agricultura familiar, a modernização que conseguiu inserir nos mercados uma parcela de agricultores, mesmo que de forma subordinada ao capital agroindustrial, comercial ou financeiro, no Brasil, também é responsável pela marginalização de um número muito grande de famílias de pequenos agricultores familiares. Hoje, é fato que a especificidade do trabalho familiar, conhecimento das condições locais próprias desses agricultores e a escassez de recursos financeiros que possuem, ou a que têm acesso, são considerados como elementos positivos à aplicação de novas práticas produtivas – todas elas vinculadas ao saber camponês que foi renegado durante a Revolução Verde. A revalorização destas práticas teria, assim, as características de rompimento com a monocultura, a redução de custos monetários e a ampliação de emprego no campo (MOREIRA, 2000). É fundamental haver a preservação e o incentivo da pequena propriedade, da propriedade familiar e comunitária, e das formas associativas/políticas de produção e de consumo (MENEGAZ,199-). De acordo com Almeida (2002), parcelas cada vez mais amplas da sociedade – e também de vários setores da organização estatal – têm dado claros sinais de que esperam da agricultura e de outras formas de manejo de recursos mais do que simplesmente produção, produtividade e competitividade. Esperam a preservação ambiental e dos recursos naturais, a geração de emprego e renda, a produção de alimentos saudáveis, a segurança alimentar das populações, vendo na agricultura familiar e no agroextrativismo um fator de desenvolvimento e de combate à pobreza rural e urbana. Socialmente, torna-se cada vez mais evidente que só a produção familiar pode cumprir essa multiplicidade de funções positivas. As organizações dos trabalhadores rurais estão hoje convencidas de que é preciso substituir esse modelo que leva ao endividamento, à dependência das indústrias, ao crescente aumento dos custos de produção, à contaminação dos alimentos, à degradação ambiental e à intoxicação das famílias, por um modelo alternativo no qual as tecnologias sejam pouco dependentes de insumos industriais, garantam autonomia às economias familiares, preservem o meio ambiente e a saúde, e não forcem a transferência de riquezas geradas pelas famílias para as indústrias, justamente o que propõe a ciência da agroecologia. Essa forma de fazer a agricultura com e não contra a natureza é muito próxima da lógica dos sistemas agrícolas familiares, voltados para a diversidade produtiva e para a valorização dos recursos locais. 44 3.4.3 Importância da Agricultura Orgânica (Agroecologia) para os Pequenos Produtores e para a Agricultura Familiar Segundo Altieri (2002), hoje já é bem reconhecido que as tecnologias da Revolução Verde só podem ser aplicadas em áreas limitadas e diversos cientistas do desenvolvimento rural têm assumido uma postura clara no sentido de redirecionar as pesquisas aos produtores pobres. Em todo o mundo, existem mais de um bilhão de agricultores com grandes limitações de recursos financeiros, de renda e de fluxos de produção, os quais trabalham num contexto agrícola de extrema marginalidade. Os modelos agrícolas que enfatizam pacotes tecnológicos, geralmente requerem recursos inacessíveis à maioria dos produtores de todo o mundo. De acordo com Harkaly (1999), os pequenos produtores, por terem uma necessidade de diversificação da produção intrínseca aos seus objetivos de vida, têm uma maior facilidade de adaptação aos princípios da agricultura orgânica que são: • diversificação; • integração da propriedade; • reciclagem de nutrientes; • uso de preparados e substâncias caseiras de fácil obtenção no combate, controle, indução de equilíbrio ecológico; • conservação e aumento da fertilidade do solo. Agricultores familiares podem ser considerados mantenedores do fornecimento estratégico de alimentos regionalmente. Eles mantêm matas, rios e bosques, cercas vivas e animais silvestres, além de cuidar da agricultura. Com a perda do subsídio e com a pressão sobre os preços da matéria-prima, estes passam a ter de se dedicar integralmente à produção, e a incorporar no seu bojo de matérias-primas recursos naturais, de maneira exagerada, degradando-os. Assim, a agricultura orgânica, por reorganizar e redefinir o processo de exploração de recursos naturais na propriedade, vem ao encontro das necessidades da agricultura familiar. Então, para Altieri (2002), nota-se que, coceitualmente, a Agricultura Orgânica adapta-se bem às questões tecnológicas que demandam práticas agrícolas mais equilibradas 45 em relação ao ambiente e freqüentemente está de acordo com as perspectivas filosóficas do desenvolvimento ambiental e participativo. A abordagem agroecológica é culturalmente compatível, uma vez que é construída a partir do conhecimento tradicional da produção combinado com elementos da Ciência Agrícola moderna. As técnicas resultantes são ecologicamente seguras porque não modificam nem transformam radicalmente o ecossistema das pequenas propriedades, mas identificam elementos de manejo tradicionais e/ou novos que uma vez incorporados, otimizam a unidade de produção. Ao enfatizar o uso dos recursos disponíveis no local, as tecnologias agroecológicas também se tornam economicamente mais viáveis. Hoje é amplamente aceito que a agricultura orgânica não representa uma volta aos métodos pré-revolução industrial, mas uma combinação de técnicas de produção tradicional com tecnologias modernas. Os produtores orgânicos usam equipamentos modernos e sementes certificadas, adotam práticas de conservação do solo e da água e as mais recentes inovações na alimentação e manejo animal. 3.4.4 Por que a agricultura familiar? Razões para a Defesa da Agricultura Familiar com Enfoque Agroecológico De acordo com Veiga (1994), a agricultura patronal, com suas levas de bóias-frias e alguns trabalhadores residentes vigiados por fiscais e dirigidos por agentes, engendra forte concentração de renda e exclusão social, enquanto a agricultura familiar, ao contrário, apresenta um perfil essencialmente distributivo, além de ser incomparavelmente melhor em termos socioculturais. Sob o prisma da sustentabilidade (estabilidade, resiliência e equidade), são imensas as vantagens apresentadas pela organização familiar na produção agropecuária, pela ênfase que empresta à diversificação e, bem assim, pela maior maleabilidade de seu processo decisório. As características essenciais das duas principais formas de produção agropecuária podem ser resumidas no Quadro 1. Infelizmente, a sociedade brasileira ainda não se deu conta das vantagens de uma estratégia de desenvolvimento rural que priorize a promoção da agricultura familiar. A visão convencional considera que a maior eficiência técnico-econômica da forma patronal de 46 produzir é um proveito que suplanta todos os outros. Daí a importância de uma avaliação concentrada no desempenho econômico dessas duas formas de produção agropecuária. Quadro 1: Características do modelo patronal x modelo familiar Modelo Patronal Modelo Familiar Completa separação entre gestão e trabalho Trabalho e gestão intimamente relacionados Organização centralizada Direção do processo produtivo assegurada diretamente pelos proprietários Ênfase na especialização Ênfase na diversificação Ênfase em praticas agrícolas padronizáveis Ênfase na durabilidade dos recursos naturais e na qualidade da vida Trabalho assalariado predominante Trabalho assalariado complementar Tecnologias dirigidas à eliminação das decisões “de terreno” e “de momento” Decisões imediatas, adequadas ao alto grau de imprevisibilidade do processo produtivo. Tecnologias voltadas principalmente à redução das necessidades de mão-de-obra Tomada de decisões “in loco”, condicionada pelas especificidades do processo produtivo. Pesada dependência de insumos comprados Ênfase no uso de insumos internos Fonte: Veiga (1994). Sidersky (1994) e Veiga (1996) fazem uma boa comparação por meio de duas amostras, formadas pelos estabelecimentos dos estratos de área “20 a 100 ha" e “50 a 10000 ha", bastante representativas dos segmentos familiar e patronal. Apesar dos primeiros disporem de uma área de apenas 58 milhões de hectares, contra os 150 milhões dos segundo, esse confronto mostra: a) que as lavouras são três vezes mais importantes no segmento familiar; e que nas lavouras permanentes essa relação chega a cinco vezes; b) que o segmento familiar tende a prevalecer na criação de pequenos animais, sem deixar de ter também certo peso na pecuária bovina; c) que, apesar de muito especial, a modernização tecnológica do segmento patronal é superior à do segmento familiar, particularmente no uso de defensivos animais, de tração mecânica, de energia elétrica e de assistência técnica; mas que ela não chega a ser 47 significativa no uso de defensivos vegetais, fertilizantes, corretivos, conservação de solo, irrigação, ou mesmo na obtenção de financiamentos; d) que na oferta agropecuária, o segmento patronal supera o familiar em quatro importantes produtos: carne bovina, cana-de-açúcar, arroz e soja; mas que o inverso ocorre no fornecimento de 15 outros importantes produtos: carnes suínas e de aves, leite, ovos, batata, trigo, cacau, café, milho, feijão, arroz, algodão, tomate, mandioca e laranja; e) que em mais da metade das atividades, a agricultura familiar consegue rendimentos físicos superiores ou idênticos à patronal. Algumas estimativas baseadas em projeções dos censos agropecuários indicam também que, apesar de disporem de uma área três vezes menor que a detida pelas fazendas do grupo patronal, os estabelecimentos de caráter familiar têm quase a mesma participação na produção total. E por terem sistemas de produção mais intensivos, permitem a manutenção de quase sete vezes mais postos de trabalho por unidade de área. Enquanto na agricultura patronal são necessários cerca de 60 hectares para a geração de um emprego, na agricultura familiar bastam 9 hectares (VEIGA, 1994; 1996). Nos países em que as políticas públicas já vêm reagindo à nova exigência social, começa a ficar clara a complexidade dessa transição. O processo está bem mais atrasado na América Latina, mas já entrou nas prioridades de instituições regionais, tornando perceptíveis alguns avanços. Fica cada vez mais claro que, neste aspecto, são imensas as vantagens comparativas da agricultura familiar, pois sua principal característica é a diversificação (VEIGA, 1996; SCHNEIDER, 2006). A promoção da agricultura familiar como linha estratégica de desenvolvimento rural está finalmente entrando na agenda política do Brasil. Com um século de atraso, as elites dirigentes começam a se dar conta das vantagens de uma agricultura organizada primordialmente por empresas de caráter familiar. Mas essa conversão insere uma grande ambigüidade, pois tende a valorizar apenas as virtudes sociais da agricultura familiar, sem romper com o mito da superioridade econômica da agricultura patronal. Além de chamar a atenção para tal incongruência, esta comunicação procurou rebater, também, dois fatalismos muito comuns entre os que cultivam o mito da superioridade da agricultura patronal: a agricultura familiar brasileira já estaria atrofiada e o pouco que restou seria liquidado pela próxima onda de inovação tecnológica. 48 3.4.4.1 Razões sociais e culturais De acordo com Veiga (1994) e Caporal (2004?), várias razões sócio-culturais podem ser apontadas para que se continue defendendo a agricultura familiar como modo de produção a agricultura do país. Serão apontados resumidamente algumas dessas razões. Verifica-se que mesmo com reduzidos recursos financeiros a agricultura familiar é capaz de promover oportunidades de emprego da mão-de-obra disponível para produzir alimentos sadios, de baixo custo para o consumo e para o mercado. Dessa forma integra ao desenvolvimento econômico e social, grande parte dos brasileiros excluídos do processo de modernização em curso. O incentivo à agricultura familiar permite o resgate de importantes valores culturais, bem como do modo de vida da maioria da população brasileira, que abandonou o campo para formar as grandes concentrações metropolitanas. O produtor tem domínio da gestão da propriedade, possuindo liberdade para trabalhar e viver da maneira que bem entende. A base das atividades familiares é construída no conhecimento e na cultura dos habitantes locais A proximidade entre local de trabalho e moradia otimiza a vida familiar e a convivência entre pais e filhos. Uma vida integrada nas comunidades rurais também oferece boas condições de bem estar. O sistema dos mutirões, de ajuda mútua entre as famílias, as festas folclóricas, as danças, músicas regionais, entre outros elementos culturais autênticos, podem assegurar uma rica vida cultural no interior, assegurando os direitos de cidadania aos 30% da população brasileira que ainda vive no meio rural, e criando condições para a reversão do êxodo rural. As atividades associativas, além do seu eventual sentido econômico, também são um meio de promover a confraternização e a formação das pessoas. As relações afetivas que a família rural estabelece com o trabalho, com a terra, com os animais e plantações possuem profundo valor para o seu bem estar. 3.4.4.2 Razões econômicas Segundo Caporal e Costabeber (2004), são inúmeras as razões econômicas que demonstram que a agricultura familiar deve ser tomada como exemplo para o restante dos sistemas de produção existentes atualmente, como se vê a seguir. 49 Através da agricultura familiar há maior possibilidade de se considerar o fator humano na gestão dos recursos naturais. Sem contar que proporciona diversidade de tarefas e atividades econômicas, possibilitando uma melhor ocupação dos recursos humanos. A mão-deobra disponível na família tende a se ajustar com o trabalho a ser feito. É crescente a importância das pequenas e médias empresas em função de aceleração do processo de inovação tecnológica, que exige uma ágil e permanente reestruturação das unidades produtivas. Desde que se equacionem com as exigências externas – de economia de escala – a agricultura familiar pode produzir a baixo custo e com qualidade. Por exemplo, no sistema convencional, os custos dos agrotóxicos, adubos químicos e preparo motomecanizado do solo provocam uma significativa elevação dos custos unitários de produção. Já a produção familiar utilizando tração animal e adubos orgânicos, por exemplo, diminui esses custos. A agricultura familiar utiliza também implementos agrícolas modernos. Todavia, enquanto a agricultura convencional emprega pouco número de grandes máquinas, a agricultura familiar usa muitos implementos de pequeno porte. Estes em grande parte podem ser fabricados e consertados pela própria indústria local, dinamizando a economia das comunidades. Desta forma podem-se afirmar mais empregos indiretos em relação à agricultura convencional. O fato da agricultura familiar depender menos de máquinas e insumos industriais importados contribui para reduzir a dívida externa e melhorar o saldo da balança comercial do país. Manter ou assentar uma família no meio rural é muito mais barato para a sociedade que implantar as estruturas necessárias para criar empregos e moradias nos centros urbanos. A agricultura familiar produz os próprios alimentos para o autoconsumo, como também produz insumos e matérias-primas utilizados na propriedade. Por possuir estrutura produtiva diversificada a agricultura familiar tem grande capacidade de se adaptar as variações do mercado, produzindo alimentos com grande regularidade e estabilidade. Desta forma se torna um fator de extrema importância na segurança alimentar do país e do Mundo. 50 3.4.4.3 Razões ecológicas Por último, têm-se as razões ecológicas, que determinam a necessidade da agricultura familiar como de grande importância para o desenvolvimento rural sustentável do país (GLIESSMAN, 2005; SCHNEIDER, 2006). A agricultura familiar possibilita um convívio mais construtivo e responsável com a natureza, pois oferece mais condições de se estabelecerem relações afetivas e de conhecimentos históricos com os recursos naturais locais. Portanto, o agricultor que trabalha em regime familiar, tende a construir um processo de gestão econômica menos imediatista e compatível com os ecossistemas nos quais se insere. A produção familiar considera a reciclagem da produção e de subprodutos, não apenas em função da eficiência, mas também para preservar o equilíbrio natural e otimizar o emprego dos fatores produtivos. Há maior compatibilidade com a diversidade existente na própria natureza. Tem como forte característica a produção em menor escala e de maneira diversificada, integrando a produção animal e vegetal, até mesmo pela sua vocação de unidade de produção e consumo. Por conseqüência, se torna menos vulnerável ao ataque de moléstias, reduzindo a necessidade de emprego de agrotóxicos, e tendendo a uma certa autonomia. Também em razão do emprego de menor escala de produção, o agricultor familiar cria maiores possibilidades de viabilizar o uso de técnicas alternativas. Em função da resistência cultural do pequeno agricultor em empregar agrotóxicos, hormônios, entre outros, há maior segurança de obtenção de alimentos saudáveis. Há economia de energia por causa da descentralização da população, daí decorrendo a menor necessidade de transporte das matérias-primas e produtos finais e também em razão do reduzido emprego de insumos industriais de alto custo. Isto reduz a oportunidade de nutrientes residuais no solo, que possam estar sujeitos à lixiviação. Fazendo uso intenso de recursos renováveis e disponíveis localmente, tornam-se adaptados ou tolerantes às condições locais, em vez de dependentes de alteração ou controle intenso do ambiente. Trabalhando com sistemas orgânicos evitam ou restringem muito o uso de pesticidas em suas atividades. Um decréscimo neste uso pode ajudar a reduzir o escoamento de produtos químicos agrícolas em algumas áreas, bem como a propagação de resíduos no meio ambiente. Práticas usadas extensivamente por agricultores familiares orgânicos (inclusive rotações de pastos, culturas de cobertura, adubação verde, tipos de cultivo do solo que 51 mantiveram suas camadas e manejo da matéria orgânica), todas ajudam a controlar a erosão do solo. A agricultura familiar, pela sua peculiar maneira de se organizar internamente, é capaz de formar no seu conjunto uma paisagem agradável e equilibrada esteticamente, contribuindo para a boa saúde física e mental dos seus habitantes, sejam agricultores ou simples moradores que desempenham suas atividades em outros locais. Essa organização espacial e toda a forma de vida do meio rural podem também trazer dividendos econômicos através do incremento do turismo rural. 3.4.5 Como promover a Agricultura Familiar Agroecológica? O acesso a uma tecnologia adequada será crucial para o sucesso da economia da agricultura familiar. O governo deveria reorientar a pesquisa agronômica para produzir tecnologia agroecológica, assim como reciclar técnicos em trabalhos conjuntos com agricultores familiares, para que aqueles dominem o novo conhecimento destes. Será fundamental a participação dos próprios agricultores na geração e difusão de tecnologia agroecológica; e, para isto, tanto os pesquisadores como os extensionistas deverão ser formados em métodos participativos, com recursos alocados para facilitar tal participação. O governo, ao promover estas metodologias participativas, poderia economizar recursos para assistência técnica, que permite uma relação entre técnico e agricultores assistidos na base de 1: 600 em média (quatro vezes melhor que nos sistemas convencionais) (WEID, 1998; GLIESSMAN, 2005). Altieri (2002) diz que existem muitos obstáculos políticos que impedem os agricultores familiares de competir no mercado, limitando assim as chances de qualquer estratégia agroecológica ser assumida. Para abrandar as restrições políticas, três medidas, pelo menos, devem ser adotadas, no sentido de eliminar terminantemente: 1º) preconceitos contra a agricultura familiar no acesso ao crédito, na pesquisa e nas recomendações técnicas; 2º) a permanente falta de investimento social nas comunidades rurais em educação, saúde e infra-estrutura; e 3º) subsídios à agricultura intensiva comercial baseada em agroquímicos. 52 Além disso, é importante e imperiosa a criação de um clima político que melhore as condições de comercialização para a pequena produção, atacando o monopólio dos pequenos comerciantes das comunidades (promovendo a competição neste mercado) e permitindo que os agricultores possam aproveitar as externalidades que a agricultura familiar sustentável produz. Essas mudanças precisam definir uma tributação adequada aos intermediários que tiram vantagem dos esforços dos agricultores. Uma política econômica desta natureza poderia ajudar criando subsídios que motivassem os pequenos produtores a adotar práticas sustentáveis (JANVRY et al., 198731 apud ALTIERI, op. cit.). 3.5 Histórico da Região em Estudo e seu Sistema de Produção Agrícola O Município de Iconha localiza-se na região sul do Estado do Espírito Santo. Está a 20º47’38” de latitude sul e a 40º48’37” a oeste do meridiano de Greenwich. Altitude: 8 metros. Limita-se ao norte com os Município de Alfredo Chaves e Anchieta; ao sul, com Rio Novo do Sul e Piúma; a leste, com Anchieta; e a oeste, com Rio Novo do Sul (Anexo 1). Geologicamente está numa região que sofreu dobramentos em sua superfície, ocasionando-se, assim, o surgimento de elevações montanhosas fortemente onduladas, que caracterizam hoje o relevo predominante do Município, que é o planalto (superfícies irregulares em altitudes relativamente elevadas). O clima é o tropical, com temperatura média de 23º C, sendo a média anual do índice pluviométrico, aproximadamente, 1350 mm. De uma forma geral, o clima do município propicia, e muito, o desenvolvimento da agricultura, principalmente a bananicultura (CAPRINI et al, 2004). Onde hoje é o município de Iconha, viviam muitos índios que, em grande parte habitavam o Vale do Orobó, região que fica entre Iconha e Piúma, formada por várzeas. Os índios davam-lhe o nome icoon porque a turfa (espécie de hulha de formação recente, de cor escura, leve e esponjosa, produzida por matérias vegetais carbonizadas) do Vale do Orobó, pegava fogo e fazia a água das várzeas esquentar. Uma outra probabilidade para o nome “Iconha”, é que os índios davam o nome de iconho a um morro ligado a outro, uma 31 JANVRY, A. de; RUMSTEM, D.; SADOULET, E. Technological innovations in Latin American agriculture. Instituto Interamericano de Cooperacion para la Agricultura (Prog. Paper series). San Jose, Costa Rica: 1987. 53 característica da cidade; alguns escritores dizem, ainda, que o nome Iconha deveria ser escrito y-cõia, que também significaria rios unidos ou duplos (OLIVEIRA, 1975). Até o ano de 1500, o litoral brasileiro era ocupado por vários grupos indígenas. Por volta de 1551, chegou à capitania do Espírito Santo um grupo de jesuítas encarregados de catequizar os nativos. O padre jesuíta José de Anchieta organizou vários aldeamentos indígenas, incluindo a Missão do Orobó, na região pertencente hoje a Piúma e Iconha, construindo em 1580 a capela de Nossa Senhora do Bom Sucesso, da qual hoje não existem nem as ruínas (ROSA, 1986). Segundo relatos, o primeiro grupo de europeus a chegar em Iconha foi o dos alemães, não permanecendo muito tempo no local. Mais tarde vieram os ingleses, por volta de 1850 e 1860 (CAPRINI et al., 2004), que rapidamente construíram um porto com o objetivo de facilitar o desenvolvimento comercial da região. Interessados em fundar um núcleo de povoamento interior, compraram uma grande propriedade rural, instalando famílias inglesas para trabalhar na produção agrícola e extração de madeira, “ajudados” pelos escravos africanos. Por volta de 1906 a maioria dos ingleses retornou para a Inglaterra, após sérios problemas econômicos. De acordo com Oliveira (1975), a região onde hoje é o Município de Iconha era grande fornecedora de matérias-primas como a madeira, ervas e material para fabricar tijolos. Tudo isso era levado para a vila de Piúma e, de lá, ia para o Rio de Janeiro pelo mar e, depois, mandado para a Europa. Ainda na década de 1870, as empresa que compravam os produtos de Iconha resolveram aumentar seus negócios e colocaram filiais em Piúma e Iconha. Uma das primeiras firmas foi a Natividade, representada pelo funcionário Antônio José Duarte, que se tornou um grande comerciante, homenageado com seu nome na placa denominativa do principal logradouro público da cidade: Avenida Antônio José Duarte. Ainda de acordo com aquele autor, a firma Duarte e Beiriz comprou as terras do interior de Iconha e, mais tarde, aí por volta de 1877, começou a vendê-las para os italianos que queriam terras para trabalhar e, geralmente, pagavam os lotes com a colheita do café. Assim, os italianos foram responsáveis pelo povoamento do interior daquele município. Aos poucos as famílias foram aumentando e formando as comunidades. O interior foi transformado em lavouras, trazendo riquezas para o município, como a do café. Os imigrantes não possuíam grandes propriedades de terra, produzindo tudo na pequena propriedade, pelo trabalho dos membros da família. Segundo Castro (2003), até 1891, o que é hoje Piúma e Iconha pertencia aos limites de Anchieta (chamada de Benevente). Depois dessa data, surgiu o município de Piúma. Em 1924, 54 passa a se chamar Município de Iconha e Piúma. Em 1964, Piúma se emancipa, separando-se de Iconha. Até 1930, Iconha produzia uma grande quantidade de café, que era exportado pelo porto de Piúma. A partir de 1929, o café perde sua importância econômica e surgem culturas intermediárias, como o arroz e o feijão. Essas lavouras vão assumir grande importância para o desenvolvimento do município. No final da década de 1950, chega a Iconha o produto que vai caracterizar a economia e dar projeção nacional à cidade, que se torna o segundo produtor estadual de banana; no entanto, o café continua sendo cultivado até hoje. Entre 1980 e 1990, a banana se desvaloriza e o preço do café aumenta, sendo que nesta última década passada, o município teve um crescimento no comércio, impulsionado pela BR-101, que leva a um aumento na venda de produtos de auto-peças, destacando o setor de transportes. Iconha acaba tendo uma das maiores frotas de transporte do país, o que coloca a cidade em segundo lugar, no Brasil, em número de caminhões por habitante (CAPRINI et al., 2004). Em pesquisa realizada pelo PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - Iconha ocupa, em relação ao Espírito Santo, o 3º lugar no ranking do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), no ano 2000, divulgado em 2003 (MUNICÍPIO, 2006). No município de Iconha 92% dos agricultores são pequenos proprietários, ocupando áreas consideradas, muitas vezes, impróprias para a agricultura, com solos pobres e topografia acidentada. Estima-se, porém, que a agricultura familiar do município produza anualmente 50 mil sacas de café e 800.000 caixas de banana, além dos outros produtos (ICONHA, 2006). Atualmente, Iconha é um dos municípios pioneiros na Agricultura Orgânica no Espírito Santo. Com o apoio da Associação de Programas em Tecnologias Alternativas – APTA, algumas famílias - após várias reuniões e visitas técnicas, onde se abordaram temas como os males causados pelos agrotóxicos e alternativas de manejo em relação à agricultura convencional - iniciaram as práticas agroecológicas em suas propriedades. As famílias pioneiras passaram por momentos difíceis, mas, pela insistência delas mesmas e com o apoio da APTA, muitas lutaram, e tem conseguido dar continuidade ao seu trabalho pioneiro até hoje, tornando o município referência no estado (ICONHA, 2005). No momento, poucas famílias têm sua propriedade certificada. A maioria delas tem seu pleito em tramitação desde junho de 2004. A produção orgânica atual é superior a 232 toneladas anualmente. Na época do levantamento realizado pela Prefeitura daquele município, em 2005, a Agricultura Orgânica estava presente em 08 comunidades de Iconha: Bom Destino, Cachoeira do Meio, Crubixá, Córrego da Cecília, Campinho, Morro da Palha, Pedra Lisa Alta e Tocaia, envolvendo cerca de 20 famílias, sendo que 11 destas já estão com as 55 propriedades certificadas. Existem dois grupos organizados: o Vero Sapore – Associação de Agricultores Orgânicos Agroecológicos, de Campinho, localizada na comunidade de mesmo nome, e o GAOI – Grupo de Agroprodutores Orgânicos de Iconha, com agricultores de Córrego da Cecília, Tocaia, Morro da Palha e Bom Destino, mas nem todas as famílias pertenciam a algum grupo (ICONHA, 2006). O apoio da prefeitura municipal, através da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural – SEMAR, iniciou-se a partir da atual administração eleita (20052008), com a implantação do Programa Municipal de Agricultura Orgânica, contratação de um técnico para acompanhar as famílias e participação de eventos fora do município, tudo no sentido de fortalecer e divulgar as ações desenvolvidas no âmbito dessa iniciativa. As comunidades em destaque serão as descritas a seguir por se constituírem naquelas envolvidas com os grupos Vero Sapore e GAOI. De acordo com Tallon (1999), a comunidade de Campinho é formada basicamente por italianos e seus descendentes, que ali se instalaram por volta de 1880. A região é formada por montanhas, todas antes cobertas por densas matas. Entre as montanhas, havia somente uma pequena área de várzea descoberta, daí o nome Campinho. A primeira escola funcionava numa pequena casa de madeira, que ficava ao lado do campo. Mais tarde foi construída outra escola, que é a atual, tendo aproximadamente 50 anos. Na comunidade também está a “Escola Família Agrícola de Campinho” do MEPES (Movimento de Educação Promocional do Espírito Santo) e uma pré-escola. A comunidade de Córrego de Cecília é assim chamada porque lá havia uma jovem de nome Cecília que dizia ver a imagem da Virgem Maria. Este fato veio despertar a fé em muitas pessoas, que vinham visitar o local, para tentar ver a imagem da Virgem. Tocaia é um nome indígena. No local existiam muitos índios Tapuios, que ali tocaiavam os animais durante a caça. Já Morro da Palha é uma comunidade originada do desmembramento da fazenda Tocaia, comprada pela firma Duarte & Beiriz em 1880. O nome Morro da Palha deve-se à fuga de alguns italianos da fazenda Itapemirim, onde o coronel queria que eles trabalhassem como escravos. Esses italianos ao chegarem, construíram perto de um morro, um galpão coberto de palha. A comunidade também possui uma escola de Ensino Fundamental, que atende alunos da pré-escola à 4ª série. Já Bom Destino é considerado bairro, desde dezembro de 2002, sendo o acesso ao centro de Iconha bastante facilitado, através de rua pavimentada, o que favorece o fluxo comercial da região (TALLON, op. cit.). 56 4 MATERIAL E MÉTODOS O presente trabalho foi desenvolvido no município de Iconha, que constitui, na atualidade, uma área de produção orgânica no sul do Estado do Espírito Santo, praticamente isolada de todas as outras (Figura 1), o que caracteriza um fator de resistência social. As famílias estudadas estão relacionadas ou ao GAOI (Grupo de Agroprodutores Orgânicos de Iconha) ou ao Vero Sapore (Associação de Agricultores Orgânicos Agroecológicos), que são grupos de agricultores familiares que vêm utilizando o sistema orgânico de produção em suas pequenas propriedades naquele local. Iconha é um dos 78 municípios do estado do Espírito Santo. Possui, segundo o IBGE (2006), uma população estimada de 12.302 habitantes, numa área de 203 Km2. São 885 propriedades rurais, numa área de aproximadamente 16137 ha, sendo 1359 ha ocupados por matas, 6121 ha com lavouras e 7161 ha com pastagens. A Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural (SEMAR) de Iconha, junto com a INCAPER - ES está fazendo o cadastramento de todos os agricultores do município e ainda não tem condição de informar a produção agrícola atual, bem como a dos anos anteriores. Inicialmente, no ano de 2005, foi realizada a aproximação ou fase exploratória, propiciando a obtenção de informações sobre a dinâmica do GAOI e Vero Sapore, seu sistema de produção, comercialização, religião, cultura e relação com o ambiente. O que permitiu obter-se uma visão preliminar do objeto de estudo, a criação de estratégias para o desenvolvimento do trabalho e uma base para a formulação das perguntas que constaram do questionário sócio-econômico-ambiental (Apêndice 1). 57 Figura 1: Distribuição da Agricultura Orgânica no estado do Espírito Santo (ESPIRITO SANTO, 2005). Verificou-se a área de abrangência dos dois grupos, procurando-se delimitar o universo de agricultores a ser estudado de acordo com o objetivo pretendido e compatibilizando a necessidade de buscar representatividade com a operacionalidade do trabalho. Tendo como critério as recomendações de Thiollent (1987), e Alves-Mazzotti e Gewandsznajder (2002), buscando garantir o máximo da representatividade entre o universo dos entrevistados, os dados foram obtidos por meio da aplicação de questionários e inspeções nas propriedades, entre os meses de dezembro de 2005 a maio do ano de 2006. Para a realização das entrevistas, utilizou-se, inclusive, roteiro com perguntas que permitiam respostas abertas, posteriormente agrupadas e analisadas em função da idéia geral do 58 pensamento apresentado pelos agricultores em relação a cada questionamento (ASSIS, 2002). Aquele tipo de pergunta (aberta) permitiu uma maior liberdade de expressão aos entrevistados. Procurando retratar, através de documentação fotográfica, aspectos da região, métodos de cultivo e questões ambientais, as situações foram fotografadas a fim de mostrar a atividade agropecuária durante o período, a interferência no ambiente natural, bem como a sua importância econômica e social para os agricultores. Os locais de abrangência dos grupos são as comunidades de Campinho (para o Vero Sapore) e Córrego da Cecília, Bom Destino, Tocaia e Morro da Palha (para o GAOI) (Figura 2). Figura 2: Mapa do Município de Iconha com a localização das comunidades estudadas (CAPRINI et al., 2006). 59 5 RESULTADOS E DISCUSSÃO Do GAOI foram entrevistadas 6 (75%) das 8 famílias, sendo um total de 23 membros, pois a maioria das famílias tem mais de um membro no grupo. Do Vero Sapore foram entrevistadas 7 (78%) das 9 famílias integrantes, num total de 16 membros. Do GAOI, as famílias não entrevistadas eram representadas por (1) um produtor que era membro, mas trabalhava com compra e venda de grãos para fabrico convencional de ração animal (não vendendo nenhum produto produzido em sua própria propriedade) e (2) um casal novato, recentemente admitido no grupo, e que, por isso, não participava das mesmas experiências que os demais. Do Vero Sapore, duas famílias não foram entrevistadas por estarem sendo representadas por senhoras que não eram produtoras propriamente, mas que participavam na confecção dos derivados da agroindústria, e por isso não se encaixariam no questionário constituído para este trabalho. 5.1 GAOI O Grupo de Agricultores Orgânicos de Iconha – GAOI é um dos dois grupos de pequenos produtores orgânicos, presentes atualmente no município de Iconha, no Estado do Espírito Santo. O Presidente é o Sr. Natanael Adami Justi; o Conselheiro Vice-Presidente, o Sr. Delnir Faria, e o Tesoureiro, Sr. Romildo Gambini. Segundo o Conselheiro Vice-Presidente o grupo é formado atualmente por 8 famílias rurais que trabalham na linha de produção orgânica, visando a oferecer ao mercado artigos de qualidade certificada. Constituído somente no final de setembro do ano de 2005, vem desde 60 1999 participando de feiras livres orgânicas, exposições e outros eventos, para inserir socialmente famílias de pequenos produtores rurais da região que, sem perspectiva de vida, engrossavam as fileiras do êxodo rural. As reuniões ordinárias ocorrem na primeira segundafeira de cada mês. Recebem apoio da Prefeitura de Iconha, Secretaria de Agricultura do Estado (SEAG), INCAPER-ES, Chão Vivo (Certificadora) e Ministério das Minas e Energia. 5.2 Vero Sapore Vero Sapore, nome fantasia da Associação de Produtores Agroecológicos Orgânicos, é constituído por 9 famílias de pequenos produtores. A Presidente é a Sra. Erenilda Luzia Chuina Ferreira Guio; o Secretário, Sr. Giovanni Fusi; e o Tesoureiro, Sr. Robson Cremonini Ronquete. De acordo com a Presidente, o grupo tem na sua formação atual famílias rurais que trabalham na linha de produção orgânica agroecológica, com o intuito de oferecer produtos de excelente qualidade nutricional, bem como resgatar a cultura italiana. Apesar de ter sido constituído como pessoa jurídica no final do ano de 2004, já participava desde 2000 da feira de produtores familiares de Iconha, como grupo APACAPI (Associação de Pequenos Agricultores de Campinho e Pedra Lisa Alta de Iconha). As reuniões ordinárias ocorrem no último domingo do mês. Também recebem apoio da Prefeitura de Iconha, Secretaria de Agricultura do Estado (SEAG), INCAPER e Chão Vivo (Certificadora). Essas instituições vêm ajudando o grupo a viabilizar sua participação numa sociedade mais justa, considerando a atuação do Vero Sapore na contribuição com a preservação do ecossistema, através do uso de tecnologias alternativas de produção orgânica focadas na agroecologia e preservação ambiental. 5.3 Caracterização Socioeconômica das Famílias Em relação à constituição das famílias, em sua maioria são casados (Figura 3), católicos praticantes e têm em média dois filhos (Figuras 4 e 5). Todos os filhos em idade escolar estudam. A escolaridade mínima dos pais é a 4ª série do 1º grau, quando abaixo de 45 anos. 61 O acesso à escola é fácil para todos, pois a prefeitura disponibiliza condução própria. As compras de supermercado são realizadas no Centro de Iconha. E como atividades de lazer têm as festas paroquiais da própria comunidade e das comunidades vizinhas, os bingos, também incentivados pela igreja, futebol (homens) e televisão (mulheres). O Vero Sapore também realiza festas com os integrantes do grupo, para comemorar, por exemplo, aniversários. 14% 7% Casado Separado Outros 79% Figura 3: Estado civil dos componentes dos grupos GAOI e Vero Sapore. Iconha, ES. 2006. F Famílias E D Feminino C Masculino B A 0 2 4 6 Núm ero de Filhos Figura 4: Número e sexo dos filhos das famílias componentes do grupo GAOI. Iconha, ES. 2006. 62 M Famílias L K Masculino J Feminino I H G 0 2 4 6 Núm ero de Filhos Figura 5: Número e sexo dos filhos das famílias componentes do grupo Vero Sapore. Iconha, ES. 2006. As unidades produtivas funcionam, predominantemente, com base na utilização da força de trabalho dos membros da família (SCHNEIDER, 2006), que, por sua vez, contrata, em caráter temporário, outros trabalhadores. As famílias que possuem filhos que já terminaram o 1º grau, muitas vezes não contam com ajuda desses filhos na lavoura (Figuras 6 e 7). Eles trabalham em outras atividades, como por exemplo, o comércio do Centro de Iconha, e cerca de 30% nem residem mais com os pais. No caso das filhas maiores de dezesseis anos, muitas já estão casadas. Quando não há qualquer familiar acima de 65 anos recebendo aposentadoria, cerca de 70% das famílias não possuem outra fonte de renda que não a da atividade agropecuária. A renda fica em torno de 1 a 2 salários mínimos mensais, dependendo da época da colheita das frutas, principalmente (Figuras 8 e 9). Numa região em que segundo o IBGE (2006), o rendimento mensal médio é de R$ 640, 97, quando o salário mínimo é de R$ 350,00, a renda das famílias pode ser considerada como equilibrada, apesar do poder aquisitivo continuar baixo. De acordo com Denardi (2001), é de grande importância os benefícios da previdência social rural, principalmente nas regiões mais pobres. O pagamento de benefícios previdenciários é fundamental para a economia desses municípios, além de ser um poderoso instrumento para evitar o agravamento da exclusão social. Os impactos socioeconômicos da previdência rural são, de fato, muito expressivos. 63 25% Sim Não 75% Figura 6: Porcentagem de integrantes das famílias que residem na mesma propriedade GAOI. Iconha, ES. 2006. 43% Sim 57% Não Figura 7: Porcentagem de integrantes das famílias que residem na mesma propriedade Vero Sapore. Iconha, ES. 2006. 64 1 Salário Mínimo 14% 43% 1 -2 Salários Mínimos 2-3 Salários Mínimos 29% 14% 3-4 Salários Mínimos Figura 8: Renda obtida com a atividade agropecuária no grupo GAOI. Iconha, ES. 2006. 17% 17% 1 Salário Mínimo 1 -2 Salários Mínimos 66% 2-3 Salários Mínimos Figura 9: Renda obtida com a atividade agropecuária no grupo GAOI. Iconha, ES. 2006. 5.4 Caracterização das Propriedades, Construções, Saneamento e Bens Quanto à caracterização física, todos são proprietários de suas terras, em conjunto com suas famílias, exceto um dos entrevistados que, praticamente arrendou as terras do pai. A maior parte dos entrevistados (67%) reside nas suas comunidades desde que nasceram (Figuras 10 e 11), apesar de terem adquirido a posse legal de parte das propriedades há pouco tempo, no caso daqueles que antes eram meeiros. Em média o tamanho das propriedades fica em torno de 17 ha (GAOI) e 7,5 ha (Vero Sapore), sendo a menor propriedade 1 ha e a maior 39 ha (Figuras 12 e 13). 65 F Famílias E D C B A 0 20 40 60 Anos Figura 10: Tempo de residência das famílias integrantes do grupo GAOI. Iconha, ES. 2006. M Famílias L K Ie J H G 0 20 40 60 Anos Figura 11: Tempo de residência das famílias integrantes do grupo Vero Sapore. Iconha, ES. 2006. 66 40 35 30 25 Hectares 20 15 10 5 0 A B C D E F Famílias Figura 12: Área das propriedades das famílias integrantes do grupo GAOI. Iconha, ES. 2006. 18 16 14 12 10 Hectares 8 6 4 2 0 G H Ie J K L M Fam ílias Figura 13: Área das propriedades das famílias integrantes do grupo Vero Sapore. Iconha, ES. 2006. No GAOI, todas as famílias possuem residências construídas em alvenaria, 49% com laje (Figura 14). Já no Vero Sapore, por serem além de produtores familiares orgânicos, um núcleo de resistência de descendentes de italiano, há muitas casas (Figura 15) típicas daqueles imigrantes. Todas são amplas, com um número grande de cômodos, principalmente 67 quartos. Todas possuem sanitário em seu interior. Todos gostam de suas casas, apesar de às vezes comentarem que ela precisaria de reforma ou ampliação. 13% Laje 49% 38% Telha Colonial Figura 14: Tipo de construção das residências das famílias do grupo GAOI. Iconha, ES. 2006. 14% Laje 43% Telha 43% Italiana Figura 15: Tipo de construção das residências das famílias do grupo GAOI. Iconha, ES. 2006. A água utilizada pelos integrantes do GAOI é proveniente de nascentes para aqueles mais afastados dos centros urbanos (75% dos casos), os outros utilizam a água encanada e tratada da abastecedora da cidade (SAAE – Serviço Autônomo de Água e Esgoto, uma autarquia municipal). Todos os integrantes do Vero Sapore utilizam água de nascente. Aqueles que utilizam água de nascente informaram que a mesma não recebia nenhum tipo de tratamento. Apenas canalizaram e/ou protegeram a captação das nascentes com manilhas. Poucos (entre 25-30%) realizaram análise da água de suas nascentes para verificar a 68 potabilidade da mesma. Os que o fizeram informaram que foi constatada a presença de coliformes fecais e já estavam providenciando uma proteção melhor das nascentes, como afastamento/impedimento do acesso dos animais àquelas áreas. Todas as residências possuem fossa séptica ou sumidouro para o esgoto proveniente do sanitário, no caso dos membros do GAOI; já da parte do Vero Sapore, 17% ainda canalizam para um curso de água, mas já estavam construindo suas fossas (Figuras 16 e 17). O esgoto da cozinha e área de serviço é canalizado para o próprio quintal, a céu aberto em 62% dos casos para o GAOI e em 50% para o Vero Sapore (Figuras 18 e 19). Em relação ao lixo, o do sanitário e a porção inorgânica da cozinha são coletados pela prefeitura. A porção orgânica é aproveitada como alimento para os animais criados para o consumo da casa (galinhas e porcos), ou mesmo como adubo para as plantas, sendo distribuída ou enterrada nos arredores. Os resíduos orgânicos, além de fertilizarem o solo, são ativadores da microvida, melhoram a estrutura, aeração, aumentam a matéria orgânica e a infiltração da água das chuvas (PAULUS; MULLER; BARCELLOS, 2000). 25% Fossa Séptica Sumidouro 75% Figura 16: Destino do Esgoto dos sanitários das residências das famílias integrantes do grupo GAOI. Iconha, ES. 2006. 69 17% Fossa Séptica Rio 83% Figura 17: Destino do Esgoto dos sanitários das residências das famílias integrantes do grupo Vero Sapore. Iconha, ES. 2006. 13% Fossa Séptica 25% 62% Rio Quintal Figura 18: Destino do esgoto da Cozinha/Área das residências das famílias integrantes do grupo GAOI. Iconha, ES. 2006. 17% 33% Rio Quintal Sumidouro 50% Figura 19: Destino do esgoto da Cozinha/Área das residências das famílias integrantes do grupo Vero Sapore. Iconha, ES. 2006. 70 Em termos de construções na propriedade, possuem a própria casa, com garagem, que aproveitam para armazenar algumas ferramentas, paiol, moinho de café e alguns (30%), engenho de farinha. As ferramentas de trabalho são: enxada, foice, facão, enxadão, serrote, serrinha de poda para o cafezal. Para a fabricação dos produtos da agroindústria, os integrantes do GAOI possuem eletrodomésticos citados abaixo, já os do Vero Sapore possuem uma pequena agroindústria, com forno industrial, inclusive. Para condução e serviços possuem moto ou jipe/pick-up ou “aranha” (veículo adaptado). Quanto aos eletrodomésticos, todos possuem televisão, rádio, geladeira, fogão à gás, liquidificador, ventilador e ferro elétrico, variando em número, de acordo com o tamanho da família. Só aqueles próximos ao centro urbano (12%) possuem telefone fixo. Outros (79%) possuem telefones celulares, mas com difícil sinalização. Cerca de 21% das famílias possuem computador (Figuras 20 e 21). Computador Chuvceiro elétrico Tel Celular Aparelhos Tel fixo Batedeira Freezer Antena Parabólica Vídeo DVD 0 2 4 6 8 10 No de famílias Figura 20: Variedade de Eletrodomésticos possuídos pelas famílias integrantes do grupo GAOI. Iconha, ES. 2006. 71 Computador Chuvceiro elétrico Tel Celular Aparelhos Tel fixo Batedeira Freezer Antena Parabólica Vídeo DVD 0 2 4 6 8 No de fam ílias Figura 21: Variedade de Eletrodomésticos possuídos pelas famílias integrantes do grupo Vero Sapore. Iconha, ES. 2006. 5.5 Comercialização dos Produtos Os principais locais de comercialização dos grupos são Vitória (Barro Vermelho), Vila Velha (Praia da Costa) e Iconha (Figuras 22 e 23). O GAOI não possui transporte próprio para sua produção quando o destino é Vitória ou Vila Velha, fretando um veículo para transportar seus produtos. Já o Vero Sapore utiliza um veículo (Kombi) adquirido pelo grupo. 7% 36% Vitória Vila Velha Iconha 50% 7% Piúma Figura 22: Local de comercialização dos produtos das famílias integrantes do grupo GAOI. Iconha, ES. 2006. 72 4% 32% 32% Vitória Vila Velha Iconha 32% Piúma Figura 23: Local de comercialização dos produtos das famílias integrantes do grupo Vero Sapore. Iconha, ES. 2006. O que gera maior rendimento para as famílias é a venda de seus produtos nas feiras orgânicas (em Vitória e Vila Velha, aos sábados pela manhã), porém somente 75% participam delas. Do GAOI, por exemplo, somente as famílias A e C participavam. Cerca de 80% dos integrantes do Vero Sapore também conseguem vender para um atravessador de produtos orgânicos, uma rede de supermercados do município de Aracruz e lanchonetes e quiosques de Piúma (cana-de-açúcar para caldo e côco verde). Apenas 17% do GAOI vendem para rede de supermercados de Vitória. Uma família do GAOI abastece barracas da “beira da rodovia” (BR 101) com banana e doce caseiro à base de cana-de-açúcar, côco e mamão. Também vendem parte de suas produções para atravessadores da região e municípios vizinhos, com preço de produto convencional, principalmente o café (variedade conillon da espécie Coffea canephora), que não possui muita aceitação no mercado de orgânico, pela heterogeneidade dos grãos verdes e maduros durante a colheita. No Centro de Iconha, aos sábados pela manhã, 58% participam da feira (própria para produtores familiares), porém, pouco estimulados, em função do baixo movimento. As pessoas da região preferem comprar os hortifrutigranjeiros nos supermercados, segundo as famílias entrevistadas. Associadas a este fato, também devem ser consideradas a estrutura precária das barracas e a pouca variabilidade de produtos ofertados pelos feirantes. O GAOI havia entrado recentemente nesta feira, e as mulheres (que participam em maior número) se mostraram bem entusiasmadas com as vendas. Na feira de Iconha, participam em torno de 5 barracas, sendo uma do Vero Sapore, com revezamento de vendedores de acordo com o sábado, outra do GAOI – que por sinal era a barraca com melhor estrutura e apresentação na feira. Havia uma família integrante do 73 GAOI que vendia seus produtos numa barraca separada e participava daquela feira há mais tempo que o GAOI propriamente dito. Essa família não participava das feiras de Vitória e Vila Velha. As culturas que lhes oferecem maior renda sempre são o café e/ou a banana, um porque consegue ser vendido de uma única vez, após a colheita, e outra porque colhiam o ano inteiro, com uma pequena queda durante a estação fria (Figuras 24 e 25). As mais problemáticas são aquelas que por algum desequilíbrio são atacadas por pragas/doenças (por exemplo, o côco com o “besouro” e a laranja com a “ferrugem”). Cerca de 30% consideram a cultura do café mais trabalhosa por exigir maior mão-de-obra na manutenção. Banana 14% Banana e café 14% 58% Café 14% Agroindústria e banana Figura 24: Porcentagem das rendas obtidas pelas famílias integrantes do grupo GAOI. Iconha, ES. 2006. 17% Banana Agroindústria 17% 66% Frutas em geral Figura 25: Porcentagem das rendas obtidas pelas famílias integrantes do grupo Vero Sapore. Iconha, ES. 2006. 74 Segundo os relatos, a agroindústria não oferece um grande retorno financeiro, mas mesmo assim as mulheres que participam, o fazem com empolgação. Segundo elas, seria uma renda complementar. A presidente do Vero Sapore, indicou como a maior importância dos produtos da agroindústria a diversidade que eles representam nas bancas de exposição das feiras, funcionando como um atrativo por “chamar atenção dos clientes”, que acabam numa compra levando um produto ou outro. Os pães, esfihas e alguns bolos e pastas tinham saída rápida; porém, os biscoitos e brevidades, nem tanto. Considerando a quantidade produzida por um agricultor familiar, é muito difícil, ou quase impossível, que ele, sozinho, detenha ou domine as condições que se fazem necessárias para que consiga superar a dependência em relação ao atravessador. Para a maioria dos agricultores familiares, um dos únicos caminhos para desenvolver um mínimo de autonomia na comercialização de sua produção é criar um processo de vendas em coletivo (COSTA, 2003). Assim sendo, uma atuação com base nos princípios da Agroecologia exige a construção de processos que fortaleçam a organização social dos beneficiários e sua articulação entre si e com os consumidores urbanos (PAULUS; MULLER; BARCELLOS, 2000). Grande parte da produção obtida por muitas das famílias entrevistadas era vendida através dos canais convencionais de comercialização. Menos de 40% comercializam a maioria de seus produtos agrícolas como sendo orgânicos. Aqueles agricultores familiares orgânicos demonstraram que a comercialização é o principal problema. Notou-se que as precárias condições de produção e de competição no mercado impõem, atualmente, aos agricultores familiares a necessidade de procurarem diversificar as fontes de renda familiar. Para estabilizarem suas condições de vida, eles recorrem à realização simultânea de atividades rurais e urbanas – membros da família com emprego urbano, pequenos comércios; diversificam as atividades familiares – artesanatos, conservas caseiras, turismo rural, entre outros. Observa-se ainda a busca de associações para fortalecimento de sua posição nos mercados; a luta para obter aposentadoria para membros da família – importante fonte de estabilização da renda familiar rural; e, por fim, a diversificação produtiva e a busca de produções agroecológicas, orgânicas e naturais, estas associadas a nichos de mercado e à onda ambientalista contemporânea. 75 5.6 Assistência Técnica Percebeu-se que os integrantes dos grupos sentem necessidade de uma assistência técnica mais efetiva e participativa em termos de ensino com os tratos culturais e manejo de pragas e doenças de suas culturas. Atualmente recebem assistência técnica da INCAPER-ES e da SEMAR, sendo que esta última recentemente havia contratado um técnico para lidar com produtores orgânicos, exclusivamente. É política da gestão atual da Prefeitura de Iconha fortalecer a agricultura familiar, dando ênfase a agricultura orgânica. Fica claro que a descentralização do poder na elaboração das políticas de desenvolvimento sustentável é um aspecto importante, e que o desenvolvimento local e regional ganha força no processo de descentralização (MENEGETTI, 200-), pois possibilita uma participação mais efetiva dos agricultores e suas instituições. O desenvolvimento local também permite, de forma mais efetiva, que se trabalhe com a diversidade ecossistêmica, biológica, cultural, com análises das diferentes disciplinas e tipos de saberes, incluindo o dos próprios agricultores familiares. No Brasil, em geral, as experiências de promoção da Agroecologia vêm sendo forjadas com pouca participação do Estado e dos grupos que dominam política e economicamente os rumos do desenvolvimento da agricultura. Nesta última década tal participação vem crescendo de forma gradativa e assistemática a partir de iniciativas isoladas de alguns governos municipais e estaduais (ALMEIDA; PETERSEN; CORDEIRO, 2001), como pode ser verificado no Município de Iconha, no Estado do Espírito Santo. À medida que a sociedade civil avança no processo de organização, formulando demandas para a pesquisa, certamente maior número de projetos deve ser desenvolvido. Algumas instituições oficiais de pesquisa, como a INCAPER-ES, têm conduzido projetos visando desenvolver e adaptar tecnologias para a agricultura orgânica (ALMEIDA, 2000). 5.7 Sistemas de Produção No geral, a transição de “convencional” para sistema orgânico foi relativamente fácil, pois sendo produtores familiares, de baixo poder aquisitivo, já não faziam grandes usos de 76 produtos químicos em suas propriedades. Aliado a isto, culturalmente, os mais velhos nunca foram a favor da utilização, principalmente dos “venenos” (agrotóxicos). Mesmo assim, apesar da facilidade com a transição, todos relataram que suas horas de trabalho aumentaram por conta da exigência no manejo orgânico de maior mão-de-obra, principalmente para “fazer o controle do mato”. Apenas 29% relataram que o aumento das horas de trabalho foi conseqüência da queda do preço da banana, durante os últimos anos, o que os levou a trabalhar mais para obter a mesma renda de antes, ou a maior carga horária ocorreu porque começaram a trabalhar direto com o público, além de produzir. Membros do Vero Sapore citaram a importância do contato direto com seus clientes através das feiras orgânicas: “eles se tornam nossos amigos e patrocinadores, além de levantar nossa auto-estima quando dizem que somos muito importantes por produzir alimentos mais saudáveis pra eles além de contribuir com a preservação do meio ambiente, enquanto eles só sabem poluir (...)”. Em contrapartida, apesar da mão-de-obra ter aumentado àquelas propriedades usam menos energia fóssil do que as fazendas convencionais. Parece que as propriedades com sistema orgânico de produção geralmente exigem mais mão-de-obra para suas operações do que as fazendas convencionais, mas há exceções. Exigências de mão-de-obra em propriedades orgânicas dependem em grande parte de quão eficientemente são controlados os inços (ervas espontâneas), insetos e doenças, através de métodos mecânicos ou não químicos. Se inúmeras capinas manuais ou outros tipos de trabalho manual forem necessários, então os sistemas orgânicos são mais intensivos em mão-de-obra do que os sistemas convencionais (USDA, 1984). Em termos de pecuária, nenhuma família possui ainda um sistema orgânico de produção animal; são todos sistemas familiares, caipiras, nos quais os animais são alimentados com restos de comida, cascas de frutas, legumes e verduras, restos culturais e bem pouco, a ração convencional (Figuras 26 e 27). Galinhas e porcos, “confinados”; e gado de leite e corte, em pastagem. 77 6 5 4 No de 3 fam ílias 2 1 0 Gado de corte Gado Galinha de leite Suíno Es pé cie s Figura 26: Número de famílias integrantes do grupo GAOI x Tipo de criação animal. Iconha, ES. 2006. 3 2,5 2 No de 1,5 famílias 1 0,5 0 Gado Galinha de leite Suíno Peixe Pato Cavalo Espécies Figura 27: Número de famílias integrantes do grupo Vero Sapore x Tipo de criação animal. Iconha, ES. 2006. 78 Tanto um grupo quanto o outro possui como culturas principais o café e a banana. A renda secundária provém das frutas, hortaliças e da agroindústria. Cerca de 30% das famílias comercializam as culturas de subsistência, como o feijão, arroz, aipim e milho. As frutas são bastante variadas: laranja, acerola, abacate, manga, coco, abacaxi, goiaba, jambo, jabuticaba, limão, cacau, abiu, cupuaçu, cajá, caju, entre outras (Figuras 28 e 29), sem esquecer a cana-deaçúcar, uma gramínea. Cerca de 77% já haviam sido produtores convencionais, tendo realizado a conversão nos últimos 8 anos, em média. Mesmo assim, quando utilizavam herbicidas e fertilizantes químicos de alta solubilidade, minimizavam o uso, já pelo alto custo, já porque sempre souberam que “fazia mal à saúde”. Alguns (42%) nunca fizeram uso de agrotóxico, mas já haviam tido contato com os fertilizantes; outros (37%) só haviam utilizado os herbicidas para iniciar as plantações de café e banana, que são perenes. E quando perguntados por que mudaram para “orgânico”, a maioria respondeu que, primeiro, porque o cultivo convencional é caro, e, segundo, porque “estava fazendo mal a saúde”, considerando que nenhum utilizava os EPI (Equipamentos de Proteção Individual) indicados. Nas famílias entrevistadas não foi relatado problemas de saúde que pudessem estar vinculados diretamente ao uso inapropriado daquelas substâncias tóxicas; existiam, porém, crianças apresentando problemas de má formação no aparelho urinário ou alergia, e relataram sintomas característicos de intoxicação (dor de cabeça, mal-estar, vista turva), quando da aplicação daqueles produtos. Na comunidade de Campinho, foi relatada pelos integrantes do Vero Sapore a existência de grande número de produtores convencionais com câncer de pele. As culturas perenes têm sido mantidas sempre na mesma área, existindo com isso bananais com mais de 30 anos naquela região. E mesmo assim, relataram que a produtividade tem sido mantida na maioria das culturas, e que em algumas até aumentou depois da conversão de sistemas de produção, conseqüência do uso de cobertura morta, principalmente. O problema maior tem sido mesmo com o café, que sentiu muito a falta da adubação química, mas, é bom notar, por ter sido plantado, geralmente, nas áreas com solos mais pobres, pois preferiram plantar a banana nos melhores solos. Ou seja: o empobrecimento da terra agricultável, com a carência de nutrientes, já representava um problema preexistente à conversão e, com boa razão, se atribui à modalidade sistêmica convencional de cultivo. 79 quiabo quiabo maracujá mar acujá manga manga mamão mamão limão limão laranja lar anja jambo jambo jabut icaba jabut icaba goiaba goiaba f eijão f eijão cupuaçu cupuaçu côco côco cana cana cajú cajú cajá cajá caf é caf é cacau cacau banana banana aipim aipim acerola acer ola abiu abiu abacaxi abacaxi abacat e abacat e 0 2 4 6 8 N úme r o de f a mí l i a s Figura 28: Culturas trabalhadas pelas 0 1 2 3 4 5 N úme r o de f a mí l i a s Figura 29: Culturas trabalhadas pelas famílias integrantes do grupo famílias integrantes do grupo GAOI. Iconha, ES. 2006. Vero Sapore.Iconha, ES.2006 Apesar da manutenção da produtividade, alguns (57%) relataram que o solo vinha apresentando maior necessidade de adubação, justificando “que com o passar do tempo a terra vai ficando fraca”, porque “antes a terra era nova” ou simplesmente porque “sempre é bom dar uma ajudinha pra terra”. As famílias que utilizavam há mais tempo o sistema orgânico de produção, mostraram saber que nas áreas em que já haviam aplicado o composto, por exemplo, 80 com o tempo haveria menor necessidade de adubação, por conta da reestruturação física e melhoria das propriedades química e biológica do solo. É preciso observar que um sistema orgânico de produção não é obtido somente na troca de insumos químicos por insumos orgânicos/biológicos/ecológicos. Requer o comprometimento do setor produtivo com o sentido holístico da produção agrícola, onde o uso eficiente dos recursos naturais não renováveis, a manutenção da biodiversidade, a proteção do meio ambiente, o desenvolvimento econômico, bem como, a qualidade da vida do homem estejam igualmente contemplados (ALMEIDA, 2000). 5.8 Relação com o Ambiente Em apenas uma das propriedades visitadas, foi constatado problema com erosão, mesmo assim em uma área pequena, que estava em processo de recuperação, por ter sido pasto. Em nenhuma das outras propriedades havia solo descoberto. Cerca de 90% dos entrevistados já havia perdido a lavoura alguma vez, pelo menos parcialmente. Sempre por alguma intempérie (vento ou chuva forte, estiagem muito grande). Muitos (55%) reclamaram que “o sol tá mais quente no verão” e que diminuiu a freqüência de chuvas. Em relação a desequilíbrio ambiental, todos reclamaram do maruim, uma praga que ultimamente tem atacado as pessoas em várias regiões do país, estando em estudo por pesquisadores da FIOCRUZ – Fundação Instituto Oswaldo Cruz (FIOCRUZ, 2005). Alguns reclamaram do desmatamento e uso indiscriminado de agrotóxicos pelos vizinhos. Na comunidade de Campinho, 30% das famílias reclamaram de formigas. Nas propriedades visitadas, um dos pontos mais interessantes foi o relato, do reaparecimento de várias espécies de pássaros que há muito não eram vistos, assim como de micos e outros pequenos mamíferos. O que leva a crer que possivelmente a microbiota anfibionte e invertebrados dos solos também aumentaram, considerando que estão todos num mesmo sistema, participando do mesmo reequilíbrio. Todos possuem matas em suas propriedades, grande parte fruto de reflorestamento, procurando sempre cobrir os topos de morro ou regiões mais altas. Em termos de área, elas ocupam cerca de 20 % da propriedade (3,4 ha para o GAOI e 1,5 ha para o Vero Sapore). Lenha seca e madeira para manutenção de cercas são o que retiram das matas, quando retiram. A idéia de reflorestamento no município surgiu com a ajuda de um trabalho assistido pela Associação de 81 Programas em Tecnologias Alternativas – APTA. A preservação de matas no topo dos morros e cochilhas (área de pequena declividade onde é feita a agricultura) protege contra o impacto físico, reduz a velocidade com que a chuva rola na encosta, aumenta a absorção de água (que regula o lençol freático) e o acúmulo de matéria orgânica no solo, favorecendo no macroconjunto o equilíbrio climático (MENEGAZ, 199-) (Figura 30). Figura 30: Manutenção de mata em topo de morro. Iconha, ES. 2006. As nascentes que utilizam possuem matas em seu entorno, ou então, estão em fase de revegetação (Figura 31), aproveitando área para plantarem algumas frutíferas, inclusive. A água é abundante na região, com a existência de inúmeras nascentes, mas em grande parte dos cursos d’água falta mata ciliar, pois a maioria dos proprietários da região ainda adotam o sistema convencional de produção. 82 Figura 31: Nascente apresentando pequena área de vegetação em seu entorno. Região em revegetação. Iconha, ES. 2006. Todos notam diferença na paisagem da região, relatando, por exemplo, a maior presença de matas, apesar do aumento no número de moradores do entorno. Antes, havia mais pasto na região de Morro da Palha. Já em Campinho, acham que aumentou o número de pastos, apesar de os proprietários estarem tentando preservar/reflorestar os topos de morro. De acordo com relatos, “diminuiu muito o plantio, principalmente de subsistência. Diminuiu muito a quantidade de gente aqui, o pessoal novo não quer trabalhar na roça (...)”. O que é Fato é que as paisagens das propriedades inseridas no sistema orgânico de produção se diferem em muito daquelas ditas modernizadas, as quais são facilmente reconhecíveis pela monotonia das monoculturas (ALMEIDA; PETERSEN; CORDEIRO, 2001). Quanto ao sistema de produção, o manejo se diferencia bastante do modelo químicomecanizado. Nas culturas perenes, basea-se, principalmente na limpeza para estimular rebrota, e às vezes aplicação de compostagem, esterco ou MB-4 (formas de adubação utilizadas). Cerca de 90% das famílias também utilizam adubação verde, com leguminosas como amendoim forrageiro (Arachis pintoi) (Figura 32), tefrósia (Tephrosia candida), galáctia (Galactia striata), guandu (Cajanus cajan), mucuna (Mucuna pruriens), feijão-de-porco (Canavalia ensiformis) e/ou gliricídia (Gliricidia sepium). O uso de forrageira e culturas de cobertura nos sistemas de agricultura orgânica podem também reduzir as perdas potenciais de nutrientes por escoamento (USDA, 1984). 83 Figura 32: Adubação verde utilizando amendoim forrageiro (Arachis pintoi) associado com abacaxi. Iconha, ES. 2006. As árvores frutíferas também sofrem podas, não tão freqüentes, mas na medida da necessidade. A horta recebe maior atenção, por se tratar de cultura mais sensível, pois verduras necessitam de regas constantes, realizadas através de mangueiras domésticas ou regadores. Cerca de 16% utilizam sistema de irrigação com bicos aspersores. A água é sempre proveniente de nascente. Em áreas não irrigadas, o regime de chuvas é o principal fator a determinar os sistemas de cultivo e, por esse motivo, os agricultores os definem segundo a quantidade e a distribuição das chuvas. Deste modo, nas áreas com pouca umidade, os agricultores preferem espécies resistentes à seca (como o guandu, batata doce, mandioca, milho, milheto e sorgo) e as técnicas de manejo enfatizam a cobertura do solo (como a aplicação de cobertura morta), para evitar a evaporação e o escoriamento superficial (ALTIERI, 2002). As técnicas de manejo e proteção de solo são baseadas no consórcio, cobertura morta, sistemas agroflorestais (SAF’s) e policultivos. Alguns (58%) praticam o plantio direto quando na semeadura de leguminosas, como a tefrósia, bastante utilizada na adubação verde, na região de Campinho, pelos integrantes do Vero Sapore. Sabem da importância da curva de nível em plantações realizadas nas áreas declivosas e, com efeito, sempre tentavam segui-la. De acordo com Altieri (2002), Almeida, Petersen e Cordeiro (2001) e Paulus, Muller e Barcellos (2000), os consórcios e as combinações de variedades fornecem proteção e garantia 84 contra os ataques, possivelmente devastadores, das pragas e doenças (Figura 33). O sombreamento promovido pela cobertura vegetal pode inibir o crescimento da vegetação espontânea e reduzir ao mínimo a necessidade de controlá-la. Além disso, as práticas de manejo, como a aplicação de cobertura morta, modificações na data de plantio e na permanência das plantas na mesma área, o uso de variedades resistentes e de inseticidas botânicos e/ou repelentes, podem reduzir ao mínimo a interferência das pragas. Figura 33: Consórcio de banana com café. Iconha, ES. 2006. Segundo Santos, Miranda e Tourinho (2004), os SAF’s são definidos como sistemas de uso da terra que envolvem a integração de árvores ou outras espécies perenes lenhosas com cultivos agrícolas e/ou pecuária, visando a obter, como resultado dessa associação, a racionalização e o melhor aproveitamento do uso dos recursos naturais envolvidos no sistema de produção. Sabe-se que nos sistemas de agricultura tradicional é visível a queda gradual da produtividade das culturas anuais e/ou perenes, reflexo da perda de fertilidade do solo gerada pelo declínio do teor de matéria orgânica e pela deficiência de ciclagem de nutrientes no solo. Com isso, a utilização de espécies nativas, principalmente leguminosas arbóreas ou arbustivas, como forma de melhorar a fertilidade natural dos solos, tem sido uma prática bastante comum nas regiões tropicais (VIEIRA; FEISTAUER; SILVA, 2003) (Figura 34). 85 Figura 34: Área de integração de espécies nativas (imbaúba, angelim) com cultivo agrícola (café). Iconha, ES. 2006. O policultivo é uma estratégia tradicional que promove uma dieta diversificada, estabilidade de produção, redução dos riscos, diminuição da incidência de insetos e doenças, eficiência no uso da mão-de-obra, intensificação da produção com recursos limitados e o aumento da rentabilidade com baixos níveis de tecnologia (FRANCIS et al., 197632; HARWOOD, 1979a33 apud ALTIERI, 2002) (Figura 35). Os sistemas de policultivo oferecem muitas vantagens sobre a monocultura, como se demonstra a seguir (RUTHEMBERG, 197134; ALTIERI, 198335; FRANCIS, 198636; apud ALTIERI, op. cit.; LIEBMAN, 2002). 32 FRANCIS, C. A.; FLOR, C. A.; TEMPLE, S. R. Adapting varieties for intercropped systems in the tropics. In: PAPEENDICK, R. I.; SANCHEZ, P. A.; TRIPLETT, G. B. (eds.). Multiple Cropping. Wisconsin: Publ. 27. Amer. Soc. Agron.; p. 235-54, 1976. 33 HARWOOD, R. R. Small farm development: understanding and improving farming systems in the humid tropics. Boulder: Westview Press, 1979a. 34 RUTHEMBERG, H. Farming systems of the tropics. London: Oxford Univ. Press, 1971. 35 ALTIERI, M. A. The question of small development: who teaches whom? Agriculture Ecosystems Environment, v.9, p.40-405, 1983. 36 FRANCIS, C. A. (ed.). Multiple cropping systems. New York: MacMillan, 1986. 86 Figura 35: Área de policultivo: côco, abacaxi, banana, goiaba. Iconha, ES. 2006. Com relação à produtividade total por hectare, em geral, é maior que a produção de uma monocultura, inclusive quando individualmente a produtividade de cada componente do policultivo é reduzida. Há uma utilização eficiente dos recursos naturais, através da combinação de espécies que utilizam de forma mais eficiente a luz, a água e os nutrientes pelo fato de ter diferentes alturas, estruturas de parte aérea e necessidades nutricionais. Diz-se que combinações de culturas de longa duração, levam vantagens quando os nutrientes são limitantes. Deste modo, nos policultivos de plantas perenes com anuais, os nutrientes perdidos pelas culturas anuais são rapidamente absorvidos pelas perenes. Por outro lado, a tendência de certas culturas em “roubar” nutriente é contrabalanceada pela adição enriquecedora de matéria orgânica ao solo por outras culturas (como as leguminosas) que fazem parte do consórcio. Quanto à disponibilidade de nitrogênio, nos consórcios cereais/leguminosa, o nitrogênio fixado pela leguminosa fica disponível para o cereal, o que melhora a qualidade nutricional do consórcio. Ocorre a diminuição das pragas e doenças, pois as mesmas não conseguem se disseminar tão rapidamente nas policulturas, em função das diferenças entre as culturas na susceptibilidade ao ataque de insetos e agentes patogênicos, em presença da grande quantidade e eficácia dos inimigos naturais. Os sistemas de culturas diversificadas podem aumentar as oportunidades para os inimigos naturais e, conseqüentemente, melhorar o controle biológico das pragas. Dois terços dos estudos sobre os efeitos da diversidade de cultura sobre as pragas, mostraram que a população de insetos nocivos diminuiu nos sistemas diversificados, em 87 comparação com a monocultura correspondente. Em muitos casos isso foi devido à abundância e eficácia dos inimigos naturais. Também ocorre a diminuição da vegetação espontânea através do sombreamento proporcionado pela cobertura dos policultivos, reduzindo assim a necessidade e o custo do seu controle. Sem contar a garantia contra perdas da produção, especialmente nas áreas propensas a geadas, inundações ou secas. Desse modo, quando uma das culturas do consórcio sofre um dano no inicio do crescimento, as outras podem compensar esta perda. Finalmente, os policultivos proporcionam uma cobertura do solo eficaz e reduzem as perdas de umidade. Aumentam as oportunidades para a comercialização e asseguram um abastecimento estável para uma série de produtos, sem muito investimento em armazenamento, aumentando assim o êxito na comercialização e distribuindo os custos de mão-de-obra. Em se tratando do plantio direto, este é uma forma de se evitar a aração, que em regiões de menor latitude como o Brasil expõe o solo a altas temperaturas, comprometendo suas qualidades biológicas e físico-químicas. As chuvas torrenciais, típicas dos trópicos, sobretudo no período de preparo dos solos, ao se precipitarem na terra desnuda provocariam sérios processos erosivos (ALMEIDA, 2001). O período de descanso ou pousio (HECHT, 198937 apud OLIVEIRA, 2002) e rotação de cultura nas propriedades são medidas conservacionistas mais utilizadas nas culturas de subsistência, já relacionadas. Sendo o período e descanso para o milho, feijão e aipim cerca de 1 a 2 anos. As perdas de nutrientes, contribuindo para a poluição do ambiente, parecem ser menores com a agricultura orgânica do que com a convencional, onde as terras não são protegidas adequadamente por práticas conservacionistas. Estas perdas são minimizadas pelo uso de fontes orgânicas de nutrientes, fontes inorgânicas de nutrientes de solubilidade limitada, e o uso de práticas que controlam o escoamento, a lixiviação e a erosão do solo (USDA, 1984; GLIESSMAN, 2005). Então, verificou-se que nos agroecossistemas visitados os componentes básicos são: (1) a cobertura vegetal como medida eficiente de conservação do solo e da água, proporcionada através do emprego de práticas de plantio direto, cobertura morta, cultivos de cobertura, por exemplo; (2) a utilização regular de matéria orgânica através de materiais como o esterco e o 37 HECHT, S. B. A evolução do pensamento agroecológico. In: ALTIERI, M. A. Agroecologia: as bases científicas da agricultura alternativa. Rio de Janeiro: PTA/FASE, 1989. p.25-41. 88 composto e da promoção da atividade biológica do solo; (3) a utilização de mecanismos de reciclagem de nutrientes, através do uso da rotação de culturas, de sistemas integrados (vegetais/animais) com o uso de leguminosas; (4) o controle de pragas; através da maior atividade dos agentes de controle biológico, obtida com a introdução e/ou conservação dos inimigos naturais. Todos esses são considerados, por Altieri e Rosset (1995), componentes de um agroecossistema sustentável Comparando-se a abordagem agroecológica com as tecnologias convencionais, podem ser ressaltadas as vantagens dos sistemas integrados de produção agroecologicamente planejados. Entre elas estão a redução da vulnerabilidade aos problemas de pragas, doenças e vegetação espontânea; menor dependência de insumos industrializados; menor demanda de capital; e maior eficiência do uso da terra, com o uso dos consórcios, por exemplo. Em geral, as tecnologias agroecológicas são viáveis tanto economicamente – reduzindo os custos de produção ao tomar como base os recursos do local – quanto ecologicamente - promovendo uma estruturação biológica eficiente que mantém o funcionamento do sistema. Os produtores que utilizam este modelo podem ter como base os recursos biológicos naturais e as fontes de insumos locais, ao invés dos insumos industrializados, o que resulta em consideráveis benefícios socioeconômicos, sanitários e ambientais. 5.9 Dificuldades Atuais O GAOI citou a necessidade da construção de um espaço próprio para sua agroindústria, e o Vero Sapore a necessidade de melhorar as instalações da sua. Mas, as maiores dificuldades que os produtores familiares orgânicos do GAOI e do Vero Sapore têm encontrado, referem-se, principalmente, à comercialização. Reclamaram da distância para venderem seus produtos, dos gastos com o frete e das estradas ruins. Citaram a falta de valorização do produto orgânico no município, e a dificuldade que era vender seus produtos obtendo pagamento à vista na feira de Iconha, ES. Dentro desta perspectiva, a Prefeitura de Iconha está implantando o sistema de “valefeira” para estimular seus funcionários a comprarem na feira de Iconha, estimulando e valorizando a agricultura familiar e orgânica do município. 89 5.10 Perspectivas Como perspectivas, os agricultores familiares esperam uma maior divulgação da Agricultura Orgânica, dentro e fora do município, bem como uma maior valorização do produtor orgânico, melhorando o mercado para seus produtos. Gostariam também que não houvesse a presença de atravessadores para a agricultura familiar. E que pudessem comercializar seus produtos dentro do próprio município, vendendo, por exemplo, para merenda escolar e melhorando a feira de Iconha, em havendo maior divulgação e melhor estrutura. Segundo Azevedo (2003), a introdução de alimentos de origem orgânica na merenda escolar dos sistemas públicos estaduais e municipais de educação se configura atualmente como uma das mais promissoras iniciativas no sentido de incentivar a produção familiar orgânica e revitalizar o rural a partir do urbano. Outros projetos multidisciplinares podem ser desenvolvidos: a implantação de alimentos orgânicos nas redes públicas hospitalares e nos sistemas carcerários; projetos de sensibilização dos consumidores urbanos e de capacitação para a área de saúde, através de palestras e cursos, educação nutricional e ambiental em escolas particulares e instituições públicas e privadas, o impulso a associações e cooperativas de consumidores orgânicos, o desenvolvimento de campanhas de incentivo ao consumo de alimentos orgânicos que esclareçam o consumidor, o desenvolvimento de uma rede de marketing educacional que veicule corretamente as vantagens do consumo de alimentos orgânicos locais. 5.11 Impressões Parece que existem algumas limitações potenciais que servem de obstáculos ao desenvolvimento da agricultura orgânica na região estudada, e que podem ser comuns a outras regiões do país. Essas limitações estão relacionadas principalmente a fatores econômicos e de comunicação. A primeira limitação, relacionada a fatores econômicos, seria a demanda atual para alimentos produzidos organicamente, que de certa forma é limitada, fazendo com que grande 90 parte da produção, senão a sua totalidade seja comercializada através dos canais convencionais. Um segundo ponto que pode ser destacado seria a deficiência de um processo de comercialização, existindo falta de estratégias bem-desenvolvidas de mercado alternativo disponível para os produtores orgânicos, bem como a falta de programas de reconhecimento dos alimentos orgânicos. Ocasionada, principalmente, pela dispersão geográfica de produtores orgânicos, há uma elevação do custo do transporte e comercialização. Outro fator são as perdas econômicas durante a transição da agricultura convencional para a orgânica, que requer de três a cinco anos, às vezes com rendimentos significativamente mais baixos. Também devem ser considerados o aumento de mão-de-obra, que pode representar um acréscimo nas horas de trabalho/dia, bem como aumento de custo quando numa necessidade de contratar pessoas de fora. Sem contar a falta de crédito e financiamento, porquanto muitos agricultores orgânicos (ou possíveis de o serem) declararam ter dificuldades em convencer as autoridades creditícias de que a agricultura orgânica pode ser uma atividade economicamente viável. Em relação aos problemas de comunicação, eles devem ser considerados, pois é reduzido o número de pesquisas e informações publicadas sobre a agricultura orgânica em formatos disponíveis para auxiliar os agricultores orgânicos a resolverem os problemas que encontram no desenvolvimento e implantação de métodos de produção orgânica. 91 6 CONCLUSÃO O GAOI e o Vero Sapore são grupos de pequenos produtores familiares, com sistemas de produção voltados pra a agricultura orgânica. Mesmo não estando todos devidamente certificados, já produzem de forma mais conscienciosa, não utilizando agrotóxicos ou fertilizantes químicos em seus produtos, e adotando práticas conservacionistas para a manutenção da biodiversidade, do solo e qualidade das águas, tais como: (1) preservação das matas e revegetação das regiões mais altas das propriedades; (2) preservação de mata ciliar em nascentes e olhos d’água, bem como revegetação daquelas que ainda não possuem este tipo de proteção; (3) consorciamento de espécies; (4) utilização de cobertura morta, SAF’s e policultivos; (5) utilização de compostagem, adubação verde e fertilizantes de baixa solubilidade. Tanto um grupo quanto o outro possui pessoas que podem ser consideradas “articuladoras”, tentando fazer a todo tempo que o grupo não se desestimule, e favorecendo questões de logística e suporte. Também foi evidenciado que não é homogêneo o grau de preocupação com a qualidade ambiental em todos os integrantes dos grupos, havendo ainda muitas pessoas que não estão convencidas de que a produção orgânica de alimentos pode trazer uma boa renda, garantindo a produtividade das culturas. Talvez por ser um pouco mais antigo e se caracterizar por um movimento de resistência da cultura italiana (européia), os integrantes do Vero Sapore se mostraram como um grupo com uma organização mais desenvolvida, lidando com maior eqüidade questões relacionadas principalmente à comercialização dos produtos. Ficou evidente que a ascensão dos agricultores familiares ao progresso econômico e social depende de significativas e profundas reformas na propriedade da terra, no acesso aos benefícios das políticas governamentais e no reconhecimento da cidadania plena daqueles trabalhadores. E que não basta a opção pela agricultura familiar com caráter orgânico de produção; é também necessária uma crítica profunda ao padrão tecnológico dominante. 92 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS Se o objetivo for, realmente, eliminar os principais problemas ambientais de alcance global no mundo de hoje, são dois os primeiros passos que a humanidade deve dar. Por um lado, substituir a cultura consumista e a economia de desperdício do mundo industrializado e dos setores de elevadas rendas dos países subdesenvolvidos por um modo de vida que, sem sacrificar, no essencial, seus atuais níveis materiais, tenda para o uso mais racional dos recursos e para a significativa redução da agressividade contra o meio ambiente. Por outro lado, realizar uma mudança radical nas condições socioeconômicas do Terceiro Mundo e, portanto, nas condições de vida das grandes massas depauperadas. Urge transformar o atual sistema de relações econômicas internacionais e das estruturas econômicas sociais, que, na maioria dos países subdesenvolvidos, favorecem a existência das numerosas camadas de famintos, doentes, despossuídos e ignorantes (RUZ, 1992). Não se tem mais dúvidas de que o modelo da Revolução Verde tem sido um instrumento da fragilização e da expropriação da agricultura familiar. E, certeza se tem de que a modernização do setor rural no Terceiro Mundo, salvo poucas exceções, não foi acompanhada da modificação da estrutura agrária, que é um fator determinante na questão da sustentabilidade econômica, social e ambiental da pequena produção familiar. Considerando as colocações de Petersen (1997), pode-se dizer que deve existir o planejamento e promoção de estratégias que enfatizem os métodos e procedimentos para se atingir o desenvolvimento sustentável em termos socioambientais, caracterizados pela satisfação das necessidades humanas (começando com aquelas dos mais carentes), distribuição eqüânime de terras, melhorias na qualidade de vida e aumento da autoconfiança regional. No setor da agricultura, deve-se objetivar: a) aumento das terras cultiváveis e da produtividade do trabalho para a satisfação das necessidades alimentares e aumento da renda do homem rural; 93 b) introdução de uma racionalidade ecológica para minimizar o uso de produtos químicos, incrementar os programas de conservação do solo e das bacias hidrográficas, planejar de acordo com a capacidade do solo de região e promover o eficiente e ecológico uso da água, das florestas e outros recursos não renováveis; c) coordenação de políticas agrícolas/ambientais em relação às políticas tributárias e de fixação de preços, agrária, de distribuição e avaliação de recursos, assistência técnica, entre outros, de modo que os recursos naturais possam ser incluídos nos programas de desenvolvimento; d) promoção da autonomia das comunidades locais e da participação ativa dos moradores na elaboração de políticas relativas às mudanças técnicas e investimentos econômicos e sociais nas áreas rurais. O estímulo a estas modificações se dá, inclusive, através da agricultura orgânica, que entre os movimentos de agricultura alternativa, é a corrente mais difundida (ASSIS, 2002), sendo reconhecida pelo mercado como sinônimo ou protótipo de todas as demais alternâncias. Nem sempre são seguidos princípios agroecológicos neste sistema de produção, o que seria ideal para a promoção da agricultura familiar. Sendo que os limites teóricos da agroecologia se adequam mais facilmente à realidade dos pequenos produtores, na medida em que este possui estruturas de produção diversificadas e com um nível de complexidade desejado, sem prejuízo das atividades de supervisão e controle do processo de trabalho. As políticas voltadas para a difusão de modelos alternativos de produção, baseados em princípios agroecológicos, devem ser construídas a partir da articulação das decisões locais e das demandas sociais. Assim, para o caso brasileiro, são necessárias políticas que propiciem incremento e distribuição da renda e dos meios de produção a contingentes maiores da população que carecem de inclusão social no cenário atual (ASSIS, op. cit.). Estes sistemas alternativos devem contribuir para o desenvolvimento rural sustentável e para a igualdade social. Para que isso ocorra, os mecanismos políticos devem incentivar a substituição do capital pelo trabalho, reduzir os níveis de mecanização e os tamanhos desmesurados das propriedades, diversificar a produção agrícola e enfatizar as iniciativas controladas pelos trabalhadores e/ou a participação de agricultores no processo de desenvolvimento. As reformas sociais nesta linha terão os benefícios adicionais do aumento da oferta de empregos e redução da dependência dos produtores em relação ao crédito, às indústrias e aos governos. 94 Desta forma, para uma difusão ampliada de modelos alternativos de produção baseados em princípios agroecológicos, fundamentados em mecanismos de política pública (agrícola e ambiental), é preciso influir no comportamento social, econômico e político da sociedade. É necessário perceber não a presença humana como causa dos problemas ambientais da agricultura, mas sim sua atividade inadequada, a qual como está deve ser coibida, ou seja, modificada na sua forma de usar os recursos naturais. Isto, porém, deve ser feito, com a participação ativa da comunidade local, que deve ser informada sobre formas alternativas de coexistência racional entre o homem e o ambiente, ao mesmo tempo em que deve ter seus valores culturais respeitados. Preconiza-se, portanto, que o desenvolvimento rural sustentável deve ser implementado em base local e regional, na medida que é nessas instâncias que se pode contrapor alguma espécie de controle social legitimamente instituído à capacidade de influência do grande capital. Porém deve-se impedir que o fortalecimento do poder local revigore o poder conservador das classes dominantes locais, com seus quistos de influências, privilégios e favorecimentos ou proveito próprio. Assim, faz-se necessário que estas formas de controle social estejam articuladas entre si, de modo a garantir que essas bases locais, nas quais se desenvolveram, preservem sua autonomia. É necessário, pois, valorizar as relações políticas e econômicas nos espaços locais, de forma que estas assumam maior peso na condução de projetos próprios de desenvolvimento, com base nas oportunidades e limitações específicas de cada local. Isso aponta para uma nova perspectiva geopolítica e geoeconômica que revalorize o local (microrregiões, municípios, comunidades) como o locus privilegiado sobre o qual incidirão políticas voltadas para um desenvolvimento que atentem para a combinação dos critérios ambientais com os critérios socioeconômicos. Há a necessidade de se priorizarem os mercados locais e regionais, buscando-se a aproximação de produtores e consumidores, sendo fundamental a criação de diferentes e criativas formas e espaços de organização e articulação entre ambos. É importante ressaltar que o consumo vem sendo entendido como uma vertente de ação política, aliando o interesse das pessoas em se alimentar melhor à compreensão de que estão contribuindo para o fortalecimento da agricultura familiar. Dessa forma, promove-se o consumo responsável e consciente, dando origem a novas formas de relacionamento entre quem produz e quem consome, delineando os contornos de um mercado mais justo e solidário (ALMEIDA, 2003). Corroborando esta idéia, a aproximação entre produtores, comerciantes e consumidores locais, ao revelar interesses comuns, amplia o espectro de pessoas envolvidas e comprometidas com a proposta de desenvolvimento agrícola sustentável. Principalmente 95 quando considera que o processo de adoção de sistemas agroecológicos de produção não pode ser visto como dependente exclusivamente da decisão do agricultor, devendo ser levado em consideração o contexto sóciopolítico em que o processo ocorre. Assim, considera-se que o desenvolvimento rural sustentável depende fundamentalmente de decisões políticas, que procurem, através do uso coordenado de instrumentos de política agrícola e ambiental, estimular a adoção pelos agricultores de modelos agroecológicos de produção, internalizando no sistema econômico os danos à natureza provocados pela atividade humana inadequada. O que somente será possível com uma firmeza de propósitos da ação do poder público (duradoura e integrada em seus diferentes níveis), associada ao envolvimento efetivo da sociedade na construção de soluções, especialmente a nível local, para os problemas ambientais provocados pela agricultura convencional. É óbvio que estas transformações propostas podem entrar em conflito com a visão capitalista ocidental ou neoliberal do desenvolvimento agrícola moderno. Pode-se argumentar, por exemplo, que a maior mecanização reduz os custos de produção ou que é necessária em áreas onde a mão-de-obra adequada não é disponível, e que a produção diversificada cria problemas para a mecanização. Outra preocupação é se as tecnologias sustentáveis serão capazes de produzir em quantidade suficiente para alimentar todos os habitantes do planeta. Essas críticas podem ser válidas, se analisadas dentro da atual estrutura econômica. Mas são menos válidas se for reconhecido que os agroecossistemas sustentáveis representam transformações profundas, com grandes implicações sociais e políticas. Entende-se aqui que a maior parte dos problemas atuais e futuros de má nutrição e de fome são causados, principalmente, pelos modelos de distribuição e baixo acesso aos alimentos; causados pela pobreza, e não por limitações agronômicas ou pelo tipo de tecnologia usado na produção de alimentos (ALTIERI, 2002). Os processos até hoje alcançados na implementação da agricultura sustentável em todo o mundo revelam escalas relativamente ainda muito pequenas. O que se conseguiu – basicamente no nível comunitário – representa o que foi possível fazer apesar das políticas públicas governamentais vigentes. De fato, em que pesem algumas exceções, as políticas agrícolas nos diferentes países estão marcadamente orientadas para estimular o agronegócio, ou seja, uma agricultura fortemente articulada ao setor financeiro e industrial e voltada para a maximização dos lucros a curto prazo, altamente dependente de insumos, tecnologias e conhecimentos externos, concentradora de terra e capital, socialmente excludente e ambientalmente predatória. A maioria dos instrumentos das políticas agrícolas nacionais, 96 constitui, nessas condições, um poderoso desestímulo à sustentabilidade (ALMEIDA; PETERSEN; CORDEIRO, 2001). Segundo Bracagioli (2003) o redirecionamento das políticas públicas, nesse sentido, é crucial. Alguns dos elementos desse redirecionamento, em suas grandes linhas, podem ser destacados por meio de quatro objetivos gerais: “ 1 - Renovar a pesquisa, o ensino e a educação rural, favorecendo o viés agroecológico e estimulando o aproveitamento das potencialidades específicas do território brasileiro, como a abundância de energia solar, biomassa e biodiversidade. A pesquisa agroflorestal é de grande importância nesse campo, pois permite harmonizar as práticas agrícolas com os biomas nativos que ainda dominam grande parte do espaço nacional. 2- Estimular, mediante políticas sociais, econômicas e fiscais, o desenvolvimento da agricultura familiar de base agroecológica, associando a reforma agrária com um novo planejamento estratégico em favor do desenvolvimento regional, da segurança alimentar e da melhoria da qualidade de vida. 3- Estimular, mediante políticas sociais, econômicas e fiscais, além dos estímulos de mercado que cada vez se farão mais evidentes, a mudança tecnológica e social na agricultura empresarial, no sentido de reduzir ao máximo seu impacto ambiental e aprimorar seu papel como empregadora de mão-de-obra. 4- Estimular políticas de gestão territorial que promovam uma apropriação social mais equilibrada do espaço geográfico brasileiro, diminuindo a desigualdade entre regiões e classes, estimulando o revigoramento demográfico e socioeconômico do meio rural e garantindo a continuidade das fontes de água e biodiversidade que constituem a grande riqueza do espaço brasileiro.” Diante desse quadro em que se reproduz a agricultura familiar e tendo o processo educativo como o maior ativo transformador em uma sociedade, o desenho de propostas de educação (PERACI, 2002) para a agricultura familiar deve ser um instrumento de reflexão crítica, contribuindo para novas relações políticas, econômicas e sociais, que desenvolva a capacidade de analise da realidade de seu entorno, identificando oportunidades e potencialidades no marco de reprodução de sua vida, família e atividade econômica. O desenho ou formulação de propostas educacionais deve ainda elaborar esquemas de transformação, para agir coletivamente com convicção e consistência em seus propósitos. Trata-se da valorização dos saberes que os sujeitos possuem, segundo a qual todo ser humano tem conhecimentos, ninguém ignora tudo, ao mesmo tempo em que ninguém sabe tudo (FREIRE, 1999). A valorização dos conhecimentos deve possibilitar a apropriação do saber 97 sistematizado, oportunizando que a cultura dos grupos sociais seja reapropriada, fazendo recuperar a auto-imagem e as identidades desses grupos sociais, num verdadeiro resgate de valores autênticos, não alienados. Nesse sentido, as instituições de ensino e pesquisa têm importante papel, pois haverá necessidade de reformulação de toda a base teórica da agricultura, com incorporação dos parâmetros e indicadores de sustentabilidade. A pesquisa agropecuária deverá ter uma abordagem interdisciplinar, a fim de tratar das inter-relações entre os processos da agricultura e do meio ambiente, devendo, não ter apenas preocupação com a eficiência tecnológica, mas também com os efeitos das tecnologias nos ciclos biogeoquímicos e nos processos naturais. Deve tratar também dos efeitos sociais dessas tecnologias, tanto no setor produtivo rural, como nos diferentes elos da cadeia agroeconômica. Finalizando, precisa-se afirmar – e confirmar – que a emergência de um novo paradigma de desenvolvimento da agricultura brasileira (ALMEIDA; PETERSEN; CORDEIRO, 2001) não se efetivará sem que sejam cumpridas algumas condições essenciais relacionadas à pesquisa cientifica, ao ensino das ciências agrárias, à compatibilidade das políticas macroeconômica e agrícola, à reforma agrária e ao fortalecimento da agricultura familiar, bem como à indispensável criação de instrumentos eficazes e diversificados de políticas públicas em apoio à conversão ecológica dos sistemas produtivos, com vistas voltadas para a sistematização já posta em prática, promissoramente, em diminuta escala no âmbito familiar. 98 8 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, D. L. et al. Agricultura orgânica: instrumento para a sustentabilidade dos sistemas de produção e valoração de produtos agropecuários. Seropédica: Embrapa Agrobiologia, 2000. 22p. (Embrapa Agrobiologia. Documentos, 122). ALMEIDA, S. 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Quanto tempo leva para chegar? Qual a sua atividade de lazer? Tem religião? [ ] Não [ ] Sim. Qual? 3. Construções, saneamento e bens Quais as construções existentes em sua propriedade? Tipo de construção da casa: Quantos cômodos possui? [ ]sala [ ] quartos [ ] cozinha [ ] banheiro [ ]varanda [ ] área de serviço De onde vem a água utilizada em sua casa? Recebe algum tipo de tratamento? Já foi feito algum tipo de análise da água? [ ] Não [ ] Sim. Qual/Onde? Destino do esgoto? [ ] Fossa Séptica [ ] Sumidouro [ ]Outro O que você faz com o lixo da cozinha? E do banheiro? Quais/Quantos os eletrodomésticos existentes em sua casa? [ ] televisão [ ] dvd [ ] vídeo cassete [ ] rádio [ ] antena parabólica [ ] geladeira [ ] fogão à gás [ ] freezer [ ] liquidificador [ ] microondas [ ] batedeira [ ] ventilador [ ] ferro elétrico [ ]tel fixo [ ] tel celular [ ] chuveiro elétrico [ ] outros Você gosta da sua casa? Você gosta de morar aqui? 107 4. Máquinas, equipamentos e insumos Quais as máquinas e equipamentos utilizados na sua atividade produtiva, inclusive agroindústria? O transporte da sua produção é feito com veículo próprio? [ ] Sim. Qual? [ ] Não. Como é feito? Tem havido necessidade em aumentar a quantidade de insumos ultimamente? [ ] Não [ ] Sim. Quais os produtos? 5. Sistema de produção/comercialização Quais as culturas com que você trabalha durante o ano? Alguma é irrigada? Qual o sistema utilizado? A água utilizada para a irrigação vem do rio ou nascente? Quais as criações animais? [ ] gado de leite [ ] galinha [ ]suíno Qual (is) é (são) orgânico? De que se alimentam? Você recebe algum tipo de assistência técnica? [ ] Sim. De quem? [ ] Não. Gostaria de receber? Qual o período de descanso dado a terra após a colheita? Você já experimentou algum sistema de produção diferente do atual? [ ] Sim. Qual? Por que não continuou? [ ] Não. Por que? Qual a cultura que lhe oferece maior renda? Qual a considerada mais problemática? E a agroindústria? Pra quem você vende? Qual o local de comercialização? [ ] Vitória [ ] Vila Velha [ ] Iconha Você acha que suas horas de trabalho na lavoura aumentaram, diminuíram ou permanecem a mesma do que há alguns anos atrás? Quantos anos você vêm cultivando as mesmas lavouras? Tem sido sempre na mesma área? [ ] Sim. O rendimento vem se alterando para melhor ou pior? [ ] Não. Por quê? 6. A utilização dos recursos naturais e suas implicações Quais são as técnicas de plantio? [ ] plantio direto [ morta [ ] agrofloresta Qual o manejo das culturas perenes? ] em curva de nível [ ] consórcio [ ] cobertura O solo de sua propriedade vem apresentando [ ] maior ou [ ] menor necessidade de adubação? Você sabe porquê? 108 Tem ocorrido problemas de erosão na sua propriedade? [ ] Não [ ] Sim. Vem se acentuando? Você já perdeu a lavoura alguma vez? [ ] Sim Como? Existem matas na sua propriedade? [ ] Não [ ] Sim. Onde estão localizadas? Qual a área? [ ] Não O que você retira da mata? As nascentes e os rios que você utiliza possuem matas no seu entorno? [ ] Sim [ ] Não Você tem notado alguma diferença no clima da região nos últimos anos? [ ] Sim. Qual? [ ] Não Tem notado algum desequilíbrio ambiental na região nos últimos anos? Qual? Alguém, da sua família apresenta ou vem apresentando problemas de saúde? [ ] Não [ ] Sim. Qual (is)? Você tem notado alguma diferença na paisagem da sua região? [ ] Não [ ] Sim, Onde e qual? 7. Alternativas Você pensa em mudar o seu sistema de produção? [ ] Não [ ] Sim. Para qual? Você acha que a região oferece outras condições de trabalho sem ser a da agricultura? [ ] Não [ ] Sim. Qual? Você pensa em mudar o seu ramo de trabalho? [ ] Não [ ] Sim. Qual? 8. Renda familiar Possui outra fonte de renda sem ser da atividade agropecuária? [ ] Não [ ] Sim. Qual? [ ] até 350 [ ] 350-700 [ ] 700-1000 [ ]1000-1500 [ ] 1500-2000 [ ] acima de 2000 9. Outras observações e comentários do entrevistado 109 10 ANEXO 110