UNPA – Educação e transformações contemporâneas Para pensar de outros modos “Mas teremos disponíveis as palavras certas para nomear tantas situações novas?” “Temos de procurar as novas categorias que podem tornar inteligíveis as destruições e subversões, mas também as iniciativas que vivemos.” “As ideias mais difundidas num passado recente já nada nos explicam e soam oco.” Alain Touraine (Pensar de outro modo) Extremo 1 Extremo 2 Toda manhã, por mais de 200 dias por ano, os alunos chegavam à escola de elite sul-coreana, onde eu ensinava inglês, às 7:40. Os professores e tutores infantis os esperavam na entrada para verificar seus cabelos (comprimento e estilo; permanente e tintura eram proibidos) e uniformes (camisetas para dentro, saia na altura dos joelhos e sapatos formais). Depois, eles subiam as escadas para as suas salas, onde esfregavam o chão, escovavam as mesas, limpavam as janelas e jogavam o lixo fora. A jornada escolar começava às 8:00 horas, tinham um intervalo de 10 minutos, uma pausa para o almoço de 50 minutos e 1 hora para o jantar às 17 horas. (John Rogers, Herald Tribune, 20/3/2012) UNPA – Educação e transformações contemporâneas Para pensar de outros modos “Mas teremos disponíveis as palavras certas para nomear tantas situações novas?” “Temos de procurar as novas categorias que podem tornar inteligíveis as destruições e subversões, mas também as iniciativas que vivemos.” “As ideias mais difundidas num passado recente já nada nos explicam e soam oco.” Alain Touraine (Pensar de outro modo) UNPA – Educação e transformações contemporâneas Mas será que dispomos de novos termos para caracterizar tantas situações novas? Isso exige de nós um duplo esforço: 1º - tentar formular o mais coerente e claramente possível as formas de pensamento capazes de nos explicar nossa situação e nossas condutas; 2º - voltar ao passado e criticar as representações da vida social cuja influência predominante nos impediu, por muito tempo, de fazer penetrar uma maior clareza nas realidades sociais. As ideias que, num passado recente, foram as mais difundidas não nos esclarecem mais nada; soam vazias e nada mais fazem do que alargar o fosso que separa o mundo político e social do mundo intelectual (Touraine, Alain. Pensar outramente. Petrópolis: Vozes, pp. 9, 12, 13) [email protected] UNPA – Educação e transformações contemporâneas Um roteiro possível - De onde se fala Em termos filosóficos: Estudos Foucaultianos Em termos sociológicos: Zygmunt Bauman Em termos institucionais: PPG-Edu/UFRGS – GEPCPós/CNPq - Sobre o que se fala Contemporaneidade e novas subjetividades - Por que se fala O “estar preparado” - O caminho desta fala Bases conceituais: Sujeito – Modernidade – Contemporaneidade Topoi: Liquidez – Volatilidade e Descarte – Presentificação – Performatividade – Vazio e Endividamento – Imaterialidade – Precariado – Despolitização/repolitização [email protected] UNPA – Educação e transformações contemporâneas Sujeito como invenção moderna Sujeito a-histórico (desde sempre aí) X sujeito histórico A relação entre sujeito e objeto como invenção moderna O sujeito tem sempre uma dimensão reflexiva (o sujeito se faz como um objeto de si mesmo: sub-jectāre – colocar debaixo e colocar para cima) O sujeito é sempre um duplo, culturalmente construído Tecnologias de subjetivação (reflexivas: ver-se, narrar-se, julgar-se) UNPA – Educação e transformações contemporâneas Modernidade A Modernidade, de modo muito resumido e simplificado, pode ser entendida menos como um período histórico e mais como uma “forma de vida” marcada pela fé na razão/racionalidade, no progresso e no modelo de Homem e sociedade “inventados” pelo Iluminismo europeu, no século XVIII. Idade Média Modernidade Contemporaneidade crises novos cenários novos atores [email protected] Contemporâneo / Pós-moderno / Hipermoderno Talvez tudo o que possamos dizer com algum grau de segurança é o que o pós-moderno não é. Certamente não é um termo que designa uma teoria sistemática ou uma filosofia compreensiva. Nem se refere a um sistema de ideias ou conceitos no sentido convencional; nem é uma palavra que denota um movimento social ou cultural unificado. Tudo o que podemos dizer é que ele é complexo e multiforme, que resiste a uma explanação redutiva e simplista. (Usher & Edwards, Postmodernism and education, 1994, p. 7) Problemas de nomenclatura Os nomes dados ao momento atual variam em função dos critérios usados para caracterizar o que veio antes - a própria Modernidade Pós-Modernidade (J.-F. Lyotard) Hipermodernidade, Era do Vazio (G. Lipovetsky) Neomodernidade (S. P. Rouanet) Modernidade Líquida (Z. Bauman) Modernidade Tardia (A. Giddens) Modernidade Reflexiva (U. Beck) Modernidade Avançada Contemporaneidade – é uma palavra mais temporal e menos comprometida com a caracterização da Modernidade... Topoi do Contemporâneo Liquidez (fluidez, flexibilidade, impermanência) Volatilidade (descarte, hiperconsumo, comprismo) Colapso do tempo (presentificação) adultez precoce infância não-realizada adultez não-realizada Performatividade (aparência, espetacularização) Topoi Vazio (existencial) e endividamento Imaterialidade Precariado Vida administrável (Ford) (Gates e Job) (compulsório ou facultativo) vida gestionável Individualismo Desencanto despolitização ou repolitização [email protected] Novo vocabulário, novas ênfases, novos mitos Competição: superação, novos desafios Adaptação: tradução > tradição docilidade flexibilidade, resiliência Multidão A massa é uma aparição tão enigmática quanto universal que, de repente, está lá onde antes nada havia. Algumas pessoas podem estar reunidas, cinco, dez ou doze. Nada foi anunciado, nada esperado. De repente, fica tudo preto de gente. (Elias Canetti. Massa e poder) Império Novo vocabulário, novas ênfases, novos mitos Novas geometrias: paredes redes nomadismo e ênfase nos não-lugares disciplina controle (controlatos) Celebração da diferença: diferentes, sim; porém iguais... Segurança perigo risco (perigo calculável) Novo vocabulário, novas ênfases, novos mitos assepsia geral politicamente correto (de mendigo a cidadão em situação de morador de rua) Comunitarismo sociedade comunidade Infomania equalização entre informação, conhecimento e sabedoria multiculturalismo (exacerbado) autoempresariamento Alguns autores . . . Michel Foucault Zygmund Bauman Alain Touraine Anthony Giddens Gilles Deleuze Cornelius Castoriadis David Harvey Richard Sennett Antonio Negri Gilles Lipovetsky Jean-François Lyotard Giorgio Agamben Gert Biesta Peter Sloterdijk Ulrich Beck Gianni Vattimo Charles Lemert Nikolas Rose Hanna Arendt Paul Virilio Michel Wieviorka Michael Hardt Octavio Ianni Jean Baudrillard Robert Castel Paolo Virno Para pensar de outros modos O pensar de outros modos “exige de nós um duplo esforço: 1º - tentar formular o mais coerente e claramente possível as formas de pensamento capazes de nos explicar nossa situação e nossas condutas; 2º - voltar ao passado e criticar as representações da vida social cuja influência predominante nos impediu, por muito tempo, de fazer penetrar uma maior clareza nas realidades sociais.” Alain Touraine (Pensar de outro modo) Para pensar de outros modos A radicalização do “pensar de outros modos” 1. colocar-se fora do arco platônico 2. dar as costas às metanarrativas iluministas 3. assumir apenas o a priori histórico 4. afinar-se com o neopragmatismo Para pensar de outros modos 1. colocar-se fora do arco platônico Dar as costas à doutrina dual de Platão Compreender a alegoria da caverna (República e Timeus) como um recurso heurístico e não como uma verdade revelada “A verdade é deste mundo” (Foucault) Esquecer a transcendência Dar outro estatuto à Filosofia “Mas o que é filosofar hoje em dia — quero dizer, a atividade filosófica — senão o trabalho crítico do pensamento sobre o próprio pensamento? [Eu pergunto] se ela não consiste, ao invés de legitimar aquilo que já se sabe, num empreendimento de saber como e até que ponto seria possível pensar de outro modo? ” (Foucault) Para pensar de outros modos 2. Dar as costas às metanarrativas iluministas Não se trata tanto de argumentar contra as metanarrativas iluministas, mas sim de desnaturalizá-las, mostrar seu caráter contingente (são datadas e localizadas, culturalmente inventadas) e deixá-las de lado ou para trás. Também não se trata de não tomar partido, de não assumir juízos de valor, mas sim de não começarmos nossas análises tomando um juízo como dado e autodemonstrado. Praticar a hipercrítica Minha opinião é que nem tudo é ruim, mas tudo é perigoso, o que não significa exatamente o mesmo que ruim. Se tudo é perigoso, então temos sempre algo a fazer. Portanto, minha posição não conduz à apatia, mas ao hiperativismo pessimista. (Foucault, Sobre a genealogia da ética). Para pensar de outros modos 3. Assumir apenas o a priori histórico Todas as forças que, em alguma época, foram consideradas motores da história foram descobertas depois como tendo sido produzidas historicamente, ou seja, a partir da história. Todas as minhas análises são contra a ideia de necessidades universais na existência humana. Elas mostram a arbitrariedade e qual espaço de liberdade podemos ainda desfrutar e como muitas mudanças podem ainda ser feitas. (Michel Foucault) O mundo é contingente. “Teima” em não ser nem necessário nem dialético. Para pensar de outros modos 4. Afinar-se com o neopragmatismo Os 3 nãos... não ao fundacionismo não há ganchos no céu nem âncoras na terra; ex.: multiculturalismo radical não ao essencialismo não há nada não-relacional; ex.: a pergunta “que é mesmo isso?” não faz sentido não ao representacionismo/realismo - a linguagem primordialmente não representa, mas cria/institui aquilo que fala - não interessa o que estiver fora do entendimento humano ex.: realidade = materialidade + sentido (atribuído pela linguagem) Para pensar de outros modos 4. Afinar-se com o neopragmatismo O mundo não está à espera de uma descrição; ele se faz na própria descrição que o descreve mostrar rigidez ≠ noção teoria (coisa) ≠ rigor provar ≠ exatidão ≠ conceito ≠ teorização (ação) Não há leitura isenta (desinteressada ou neutra) Não há descrição isenta (desinteressada ou neutra) Foucault para pensar de outros modos dominações... • Poder Não como “coisa” que se possua, mas como uma ação sobre ações e tão mais econômico (efetivo, eficaz, eficiente) quanto mais estiver sustentado em “correias” de saber. A vontade de poder/potência está na base da vontade de saber. O poder tem uma racionalidade interna à sua própria ação. O poder implica consentimento com sentimento, de modo que na sua forma idealizada não dá lugar à resistência. Ex.: no limite, a sedução. • Violência Também pode ser uma ação sobre ações, mas sempre é diretamente sobre um corpo, sem se preocupar com a economia. A violência tem uma racionalidade externa à sua própria ação; para quem sofre a sua ação, ela é irracional. A violência implica resistência e até mesmo conta com e precisa da resistência. Ex.: no limite, o estupro. Dois conceitos importantes subjetividade — em termos de como cada um se vê e age como um duplo em si mesmo: como sujeito e como objeto de si identidade — em termos de como cada sujeito se identifica ou liga (ou não se identifica ou liga) com os outros sujeitos e, em função disso, se compreende e atua no interior de uma cada vez mais complexa trama social Sujeito como invenção moderna Sujeito a-histórico (desde sempre aí) X sujeito histórico A relação entre sujeito e objeto como invenção moderna O sujeito tem sempre uma dimensão reflexiva (o sujeito se faz como um objeto de si mesmo: sub-jectāre – colocar debaixo e colocar para cima) O sujeito é sempre um duplo, culturalmente construído Tecnologias de subjetivação (reflexivas: ver-se, narrar-se, julgar-se) Foucault para pensar de outros modos conduções... • Governo Governo (gouverne, em francês) refere-se a uma instância administrativa, hierarquizada, quase sempre centralizada e muitas vezes burocrática. Ex.: o governo de uma nação, o lugar (físico e simbólico) ocupado pelo(s) governante(s). • Governamento Governamento (gouvernement, em francês) refere-se à ação de governar, isso é, de um/uns conduzir os outro(s). Aqui, a etimologia revela-se muito útil, na medida em que conduzir deriva de cum + ducĕre = levar com (a aquiescência e até cooperação do outro). Governa melhor (mais economicamente) o governante que conta com a colaboração do(s) governado(s). Ex.: o governamento que cada um de nós é capaz de exercer sobre os demais. Foucault para pensar de outros modos Foucault para pensar de outros modos • Educação Como ação ou processo de acolhimento e de condução dos recémchegados a uma cultura. kwel < colligo, colligěre < colher, acolher, cultivar, cultura, cultuar, dar colo, colonizar, colônia, inquilino... deuk < duco, ducěre < duque, conduzir, introduzir, produzir, traduzir, induzir, educar... Assim, a educação é uma forma de acolhimento e colonização... • Escola Como maquinaria (conjunto de máquinas) educacional de: - sequestro e governamento - produção e reprodução (material, simbólica, de subjetividades etc.) Na oficina de Foucault As ideias e os conceitos não estão num armazém à nossa espera; ambos são invenções do pensamento, para pensar. As noções são ferramentas provisórias. Os conceitos são ferramentas permanentes. Pensar a marteladas. A “fidelidade infiel” não religiosidade, mas “vontade de verdade”; assim, no lugar do divino/sagrado, apenas o profano. Ferramentas & atmosfera (éthos) Num 1º momento, a Modernidade se constituiu num imenso esforço de dessacralização das práticas e do pensamento. Mas, na medida em que a lógica da soberania precisa do sagrado, logo esse foi contrabandeado de volta e reinstalado, dissimuladamente, na Pedagogia e na Ciência modernas (Segunda Modernidade). Assim, a Pedagogia nasceu como uma prática inovadora (discursiva e não-discursiva), dentro de um movimento reacionário, em que foi reposta e ressignificada a articulação do (neo)platonismo com elementos da tradição judaico cristã. Na oficina de Foucault A Pedagogia moderna neoplatonismo Pedagogia moderna confluências trad. judaico-cristãs Na oficina de Foucault As 7 pragas da Pedagogia Moderna transcendentalismo finalismo catastrofismo denuncismo salvacionismo prometeísmo metodologismo prescritivismo reducionismo messianismo Situação da Razão Política no pensamento de Foucault - A sempre problemática periodização . Mesmo assim. . . - Os 3 domínios: ser-saber – HL (1961), NC, PC, AS arqueologia ser-poder – HL, OD (1970), VP (1975) Cursos no Col. de France genealogia ser-consigo – HL, HS (1976 a 1984) Cursos no Col. de France arqueogenealogia, anarqueologia Os cursos de Foucault no Collège de France Questões a observar: Caráter dos Cursos O exercício de prestação de contas Cursos como pensamento em movimento Variedade e profundidade das fontes trabalhadas Clareza e logicidade das exposições A constante preocupação didática Os cursos de Foucault no Collège de France Grupo 1 Núcleo: história moderna das disciplinas, da norma e do biopoder 1970-1971 (Vontade de saber) até 1974-1975 (Os anormais) Grupo 2 Núcleo: Política, biopolítica, governamentalidade 1975-1976 (Em defesa da sociedade) até 1979-1980 (Do governo dos vivos) Grupo 3 Núcleo: governamento de si e dos outros, ética e subjetivação 1980-1981 (Subjetividade e verdade) até 1983-1984 (A coragem da verdade) ano 1971 1972 1973 1974 1975 1976 1977 1978 1979 1980 1981 1982 1983 1984 curso f e A vontade de saber x x p obs. Teorias e instituições penais A sociedade punitiva X O poder psiquiátrico X X X Os anormais X X X Em defesa da sociedade x x x Segurança, território e população x x x Nascimento da biopolítica x x x Título original: É preciso defender a sociedade — Do governo dos vivos x Subjetividade e verdade x Hermenêutica do sujeito x O governo de si e dos outros A coragem da verdade x x x x x x Excertos. Edição organizada por Nildo Avelino x x Conhecido como O governo de si e dos outros I x conhecido como O governo de si e dos outros II Governamentalidade, Biopolítica e Educação Soberania e governamentalidade A questão política central sempre é como governar os homens Numa perspectiva histórica do Ocidente, essa questão mostra-se em 3 fases que seguem 3 “modelos” distintos: Modelo da Soberania Estado de Justiça (I. Média até séc. XVI), baseado num sistema de código legal Modelo da Disciplina Estado Administrativo (séc. XVII e XVIII), baseado em tecn. Disciplinares. As disciplinas regulam e têm, no seu horizonte, a autorregulação. Modelo da Segurança Estado de Governo (séc. XIX e XX), baseado em dispos. de segurança O Estado de Governo requer o atingimento da autorregulação. Governamentalidade, Biopolítica e Educação A governamentalidade Para compreender o conceito de governamentalidade, é preciso conhecer sua gênese a partir da pastoral cristã medieval e do esgotamento do “modelo príncipe” (cuja função primordial sempre foi a de conservar o território). Pastorado cristão Na tradição oriental hebraica, o pastor não se ocupa do território, mas de suas ovelhas, as conduzindo, alimentando e protegendo, conhecendo cada uma em sua individualidade (omnes et singulatim), vigiando-as e salvando-as. O pastorado hebraico é de caráter nômade. Na tradição cristã, essas tarefas se mantêm, mas se sedentarizam e se institucionalizam (na Igreja: ekklēsia = a assembleia ou reunião dos pastores + ovelhas). Governamentalidade, Biopolítica e Educação A governamentalidade Deslocamento do pastorado e articulação com o declínio do “modelo príncipe” No séc. XVIII, o pastorado cristão se articula com o declínio da lógica principesca (que se tornou cada vez menos econômica frente às explosões e dispersões populacionais) e se expande para o campo político. Nessa articulação, a ênfase no território dá lugar à ênfase nos indivíduos. O Imperial dá lugar ao Estatal: “Roma, enfim, desaparece” (Foucault, STP). O grande problema político deixa de ser a legitimidade do soberano e passa a ser o conhecimento e o desenvolvimento das forças do Estado. Isso implica a criação de um novo ente (a população) e de um novo saber acerca desse novo ente (a Estatística). Essas são as condições de possibilidade para a criação da Economia Política, um tipo de saber que é capaz de sustentar as intervenções no campo da Economia e das populações. O soberano é mandado para casa, mas permanece a lógica da soberania, agora deslocada para um novo registro: o Estado Moderno. Governamentalidade, Biopolítica e Educação A governamentalidade Não há substituições tout court, mas de uma articulação triangular: disciplinas população governamento soberania “Devemos compreender as coisas não em termos de substituição de uma sociedade de soberania por uma sociedade disciplinar e desta por uma sociedade de governo. Trata-se de um triângulo: soberania—disciplina—gestão governamental, que tem na população seu alvo principal e nos dispositivos de segurança seus mecanismos essenciais.” (Foucault, A governamentalidade) Governamentalidade, Biopolítica e Educação A governamentalidade Com esse neologismo, Foucault designa 3 “coisas”: 1. Conjunto de práticas, instituições, saberes, que tem por alvo a população, como principal saber a Economia Política e como instrumento principal os dispositivos de segurança. 2. Uma determinada disposição política em que um novo tipo de poder (de governamento) se sobressai acima das disciplinas e da soberania e que levou ao desenvolvimento de uma série de aparelhos específicos de governamento e de um conjunto de novos saberes. 3. O resultado de um processo histórico, ao longo do qual o Estado de Justiça medieval (passando pelo Estado Administrativo dos séculos XV a XVII) foi pouco a pouco governamentalizado. Mais tarde, nas Conferências de Vermont: “Governamentalidade é o encontro entre as técnicas de dominação exercidas sobre os outros e as técnicas de si. (Foucault, Tecnologias do eu)” Governamentalidade, Biopolítica e Educação A governamentalidade “Governamentalidade é o encontro entre as técnicas de dominação exercidas sobre os outros e as técnicas de si. (Foucault, Tecnologias do eu)” Governamentalidade, Biopolítica e Educação Governamentalidade e Estado Moderno O Estado Moderno “não é simplesmente uma das formas ou um dos lugares — ainda que seja o mais importante — de exercício do poder, mas que, de um certo modo, todos os outros tipos de relações de poder a ele se referem. Porém, não porque cada um dele derive. Mas, antes, porque se produziu uma estatização contínua das relações de poder. Poderíamos dizer que as relações de poder foram progressivamente governamentalizadas”. (Foucault, O sujeito e o poder) Assim, o Estado é o grande locus que, na Modernidade, enfeixa os fluxos sociais de dominação, por onde passam praticamente todas as relações de poder. Se o Estado é hoje o que é, é graças a essa governamentalidade, ao mesmo tempo interior e exterior ao Estado. São as táticas de governo que permitem definir, a cada instante, o que deve ou não competir ao Estado, o que é público ou privado, o que é ou não estatal. (Foucault, A governamentalidade) Governamentalidade, Estado Moderno & Educação Governamentalidade, Biopolítica e Educação PPG-Educação/UFRGS – 2014-1 Programa e cronograma: – Introdução. Contemporaneidade. Dia 7 de abril — Para pensar de outros modos. Na oficina de Michel Foucault. Situação da Razão Política nos Estudos Foucaultianos. Dias 7 e 8 de abril — Lógica da soberania, lógica da governamentalidade e nascimento dos Estados Modernos. O papel da educação escolar: universalização e obrigatoriedade; igualdade e estratificação. Dia 8 de abril — Breve histórico dos conceitos de biopoder e biopolítica. População, biopolítica e normalização. A governamentalidade como grade de inteligibilidade da segurança, do liberalismo e dos neoliberalismos. Do imperativo do consumo e horror stati dos liberais ao imperativo da competição e servĭtus stati dos neoliberais. Dia 9 de abril — A Educação como braço do Estado a serviço do neoliberalismo no Brasil contemporâneo. O novo vocabulário: diferença, inclusão, competição, avaliação, volatilidade, flexibilização, performatividade, virtuosismo, endividamento, incompletude e inacabamento, presentificação, precariedade e precariado. Dispositivos e processos contemporâneos de subjetivação. Dias 10 e 11 de abril [email protected] Governamentalidade, Biopolítica e Educação Biopolítica Com essa palavra, Foucault designa os modos pelos quais se tenta, desde o séc. XVIII, racionalizar os problemas da prática governamental, a partir dos fenômenos que se dão nos seres vivos quando tomados em seu conjunto populacional: saúde, natalidade, mortalidade, dinâmica espacial, higiene, etc. A noção de biopoder já está presente no poder disciplinar. Mas o conceito de biopolítica só vai surgir com a emergência da população (séc. XVIII). Biopolítica e população são correlatos. É com a emergência da biopolítica que, no século XVIII, se inverte a lógica do “deixar viver, fazer morrer” para a lógica do “fazer viver, deixar morrer”. É nessa chave que Foucault compreende o “racismo de Estado” como uma forma negativa de promover a vida de um grupo, às custas dos outros. Biopolítica é o conjunto de disposições racionais do biopoder, cujo objetivo é a segurança da população, em termos de sua distribuição e existência. Governamentalidade, Biopolítica e Educação População, biopolítica, normalização É no século XVIII que se dá a “invenção” da população, da biopolítica e do liberalismo, tendo o Estado como elemento aglutinador e organizador. A população deslocou o modelo familiar que pautava o governamento e levou a uma nova definição de economia: não mais como um conjunto racional de medidas da casa (oikos), mas da população. Daí, o surgimento da Economia Política como um novo conjunto de saberes. O conceito de população tem 2 faces: a) espacial: densidade demográfica, distribuição territorial etc. b) existencial: condições e relações de coexistência, taxas populacionais População & Educação . . . Governamentalidade, Biopolítica e Educação População, biopolítica, normalização A “invenção” da norma trouxe todo um conjunto de práticas e saberes que permitiram o conhecimento da população em níveis cada vez mais acurados, microfísicos, de modo a facilitar a intervenção e aumentar a segurança do/no Estado. Para compreender o poder na Contemporaneidade, é preciso abandonar os registros da soberania e da lei e examinar como e em que níveis atua o poder. Foucault argumenta que atualmente é pela norma que o poder atua mais incisiva e economicamente. E, ao invés de reprimir uma suposta natureza individual já dada, o poder da norma constitui, forma, modela nossos eus. Na Modernidade: Disciplina – biopoder sobre os indivíduos (individualizante) norma Biopolítica – biopoder sobre a população (coletivizante) Governamentalidade, Biopolítica e Educação Norma, normatização, normalização, normação A norma engloba os normais e os anormais, ou seja, todos estão (ou estão colocados) na norma, sob o domínio da norma. O anormal está na norma. A norma regula a vida dos indivíduos e, ao mesmo tempo, das populações. Assim, vivemos numa sociedade normatizada e de normalização (mas não normalizada). Normatizar – estabelecer normas Normalizar – proceder a medidas de colocar todos nas faixas de normalidade, definida a partir da própria população. Típica das sociedades de segurança. Assim, no sentido foucaultiano, a Filosofia é uma longa luta contra a norma, de antinormalização. Normação – típica das sociedades disciplinares, em que a norma é prédefinida. As sociedades de normalização são, cada vez mais, sociedades medicalizadas. Eugenismo/racismo de Estado e psicanálise são as duas faces de uma mesma moeda. lei ≠ norma Governamentalidade, Biopolítica e Educação O novo vocabulário Diferença - O pós-moderno “descobriu” que tudo é diferença. A diferença é; tudo é diferença. - O que chamamos de igualdade ou mesmidade são invenções epistemológicas que contornam ou diminuem a dispersão e possibilitam pensar. Assim, inventamos critérios de semelhança e agrupamos os semelhantes, a fim de fugirmos da dispersão e facilitarmos a memória. - A escola moderna inventou o currículo como o grande artefato que coloca ordem na diferença: seleciona, agrupa, hierarquiza, normatiza, compara e avalia. Diversidade - Diversidade é o nome ou atributo que se dá para uma realidade em que tudo se mostra como diferença. - Para a Modernidade, a diversidade é um ruído que atrapalha o ideal de pureza; ela se manifesta como curiosidade, exotismo, carnavalização. - Para o pós-moderno, a diversidade é a manifestação de uma materialidade que é pura diferença. Governamentalidade, Biopolítica e Educação Liberalismo e neoliberalismo Economia sob a “lógica da equivalência”: Liberais do séc XVIII – liberdade de intercâmbio, pois a verdade é o (ou está no) mercado. Por isso, o horror ao Estado (horror stati) – Adam Smith Liberais do séc. XX – liberdade de intercâmbio, pois a verdade é o (ou está no) consumo. Ainda o horror stati. Economia soba a “lógica da desigualdade” Neoliberais do séc. XX – liberdade de concorrência, pois a verdade é a (ou está na) competição. Por isso, não mais o horror stati, mas a servidão do Estado ao mercado (servĭtus stati). Dado que a competição será tão mais efetiva quanto mais livre for e quanto mais gente dela participar, todos são bem-vindos: é preciso que todos participem do “jogo”. Para isso, o Estado se faz necessário: incluindo e registrando os jogadores, organizando os cenários do jogo. “O mercado, ou antes, a concorrência pura (que é a própria essência do mercado) só pode aparecer se for produzida; e produzida por uma governamentalidade ativa”. (Foucault, NB, p. 164-165) Governamentalidade, Biopolítica e Educação Liberalismo e neoliberalismo Se, para os liberais, o ambiente sociocultural deve ser livre e espontâneo, exterior às ações dos governos e ao Estado (laissez-faire), para os neoliberais tal ambiente deve ser dirigido e modelado pelos governos e pelo Estado, aos quais caberá produzir a liberdade. Por isso, “o neoliberalismo constantemente produz e consome liberdade. A própria liberdade transforma-se em mais um objeto de consumo” (Veiga-Neto, GNE-FFP, p. 39) E, na medida em que cabe ao Estado dirigir e modelar os cenários, será preciso lançar mão de práticas e instituições que executem tal tarefa. A maquinaria escolar mais uma vez é convocada para dar conta das demandas do Estado: caberá à Educação (especialmente escolarizada, mas também no âmbito das pedagogias culturais) tanto colocar cada vez mais jogadores no jogo quanto ensinar todos a jogar (segundo suas competências, interesses etc., mas de modo ainda e sempre estratificado). Trata-se de um jogo no qual todos perdem (econômica ou existencialmente). Governamentalidade, Biopolítica e Educação Liberalismo e neoliberalismo Neoliberalismo alemão Na reconstrução da Alemanha pós-guerra (1948), a Economia não deve combater o Estado, mas orientá-lo, dirigi-lo, a fim de evitar os erros que ele pode cometer (e cometeu, na Alemanha nazista, por exemplo). Em termos da Filosofia Política, a Economia coloca-se acima do Estado, para que possa subjugá-lo e, por fim, colocá-lo a serviço dos interesses dela mesma (assumindo, dissimuladamente, a transcendentalidade do mercado). Neoliberalismo norte-americano/estadounidense anarcoliberalismo Nasce como oposição ao Estado de Bem-Estar Social, aos perigos do socialismo/socialização, do militarismo norte-americano e ao keynesianismo. O neoliberalismo norte-americano é mais do que uma forma de a Economia se conduzir frente ao Estado (e vice-versa): é uma forma de vida, uma forma de a Economia se relacionar com o Estado e seus cidadãos, que “está na alma” de todos e de cada um em particular, tendo a liberdade como imperativo maior. Governamentalidade, Biopolítica e Educação Um paradoxo e a sua tensão Ideal da homogeneidade (estratificada) Para a escola numa episteme que assume a mesmidade, a diferença e o diferente são o problema X tensão Ideal da heterogeneidade Para a escola numa episteme que assume a radicalidade da diferença, a mesmidade e o mesmo são o problema O paradoxo: Como conciliar/transferir o ideal de uma episteme para uma outra episteme que lhe é contrária (justamente nessa idealização)? Governamentalidade, Biopolítica e Educação A tensão essencial da Pedagogia Contemporânea Na escola moderna, a dominação é verticalizada, em nome do contrato social. A inclusão é conformadora, mesmo que feita em nome do Humanismo; a inclusão nivela e homogeneiza (ainda que em estratos diferentes), promovendo a fusão cultural. X Na escola contemporânea, as dominações são horizontalizadas, entre grupos que querem marcar suas diferenças (tribos, comunidades etc.). A inclusão é a garantia de um espaço de trocas que permitam a manutenção da diversidade, sem querer promover a fusão cultural.