Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana
LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3
SLG 14 – Práticas escritas na escola: letramento e representação.
PROCESSOS DE REMISSÃO TEXTUAL EM REDAÇÕES DE VESTIBULAR:
A REFERENCIAÇÃO NOMINAL E PRONOMINAL
Maria Valíria Aderson de Mello VARGAS1
RESUMO: Discutem-se, neste trabalho, algumas formas de remissão textual que
ocorrem, em redações de vestibular, por meio do uso de expressões referenciais
nominais e pronominais, anafóricas ou catafóricas, que rotulam sequências linguísticas
do texto, transformando-as em objetos-de-discurso e, assim, possibilitando a progressão
temática. Busca-se, por exemplo, verificar, com base no modo como esses segmentos
linguísticos se articulam e remetem uns aos outros nos textos dos vestibulandos, em que
medida revelam o intuito de orientar o leitor a construir sentidos, a alcançar
determinadas conclusões e informações armazenadas no que se convencionou chamar
memória discursiva. Procura-se, assim, examinar se, nessas redações, se manifestam as
condições específicas para promover a interação, apropriadas à situação de produção
dos textos. Parte-se da idéia de que um texto somente alcançará uma totalidade de
sentido se os segmentos que o compõem relacionarem-se entre si de acordo com certas
condições que regem uma produção efetiva de linguagem. Considera-se também que o
texto deve revelar um plano ou estratégia de ação, uma organização que permitirá ao
leitor a construção compartilhada de sentido. Desse modo, busca-se, sobretudo,
averiguar se os procedimentos de referenciação revelados nos textos produzidos em
situação de exame vestibular decorrem das condições específicas de produção da
modalidade escrita que se dão no âmbito escolar.
PALAVRAS-CHAVE: processos de remissão textual; referenciação; referências
nominais e pronominais; redações de vestibular.
Introdução
De acordo com a perspectiva pragmático-enunciativa da Linguística Textual,
amplamente demonstrada, por exemplo, por Koch (2006), a coerência não se constitui
mera propriedade ou qualidade do texto, mas consiste num fenômeno muito mais
amplo, já que se constrói, numa determinada situação, entre o texto e seus
interlocutores, em função de uma série de fatores de ordem linguística, cognitiva,
sociocultural e interacional. Essas idéias propiciam a discussão de questões que dizem
1
Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de Letras
Clássicas e Vernáculas; Universidade Cruzeiro do Sul, Programa de Mestrado em Lingüística.
Rua Joaquim Guarani, 533, CEP 04707-061, São Paulo-SP, Brasil, [email protected]
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respeito ao processamento sociocognitivo do texto, como, por exemplo, a referenciação,
a inferenciação, a mobilização de conhecimentos prévios, o conhecimento partilhado.
A questão da referenciação textual, já bastante explorada por estudiosos como
Mondada, Dubois, van Dijk, Koch, Marcuschi, envolve a construção dos chamados
“objetos-de-discurso”, entre os quais se situam a anáfora associativa e as operações de
nominalização e suas funções. O pressuposto básico dessas pesquisas, de acordo com
Koch (2006, p. XV), é que a referenciação se caracteriza como “atividade discursiva”: a
referência é definida, acima de tudo, como um problema relacionado às operações
efetuadas pelos sujeitos, à medida que o discurso se desenvolve e constrói os “objetos”
a que faz remissão (“objetos-de-discurso”), ao mesmo tempo em que é tributário dessa
construção. O mais importante, enfim, não é a relação que se estabelece entre as
palavras e as coisas, e sim as relações que se revelam no âmbito social, interativo, de
acordo com as intenções e às ações dos sujeitos envolvidos nesse processo.
As formas de referenciação, ou seja, os procedimentos de remissão que se
realizam no texto devem, portanto, ser vistos como escolhas do sujeito em função de um
querer-dizer. Ao mesmo tempo, deve-se considerar que a interpretação das expressões
referenciais anafóricas – nominais ou pronominais – não se limita a localizar no texto
uma sequência linguística anteriormente enunciada, mas, sim, alguma informação
situada no que se convencionou chamar memória discursiva.
Desse modo, amplia-se o conceito de coerência, na medida em que, ao lado de
fatores sintático-semânticos, passa-se a considerar uma série de fatores de ordem
pragmática e contextual. É essa nova dimensão do fenômeno da coerência, em estreita
relação com a questão da referenciação, que se propôs como norteadora da análise de
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uma série de redações do vestibular da Universidade de São Paulo, realizado em janeiro
de 2007. Tal questão compôs um conjunto de temas desenvolvidos por um grupo de
estudiosos com certa experiência no processo de seleção da universidade.
Observando-se, como primeiro passo, os princípios de construção textual do
sentido, sobretudo a referenciação e a coerência, na leitura de um conjunto de cem
textos2, constatou-se uma série de inadequações no modo como ocorrem nos textos os
procedimentos de referenciação: os relatores de sentido (principalmente as conjunções e
os elementos circunstanciais) em geral não se prestam a relacionar as ações a
propriedades específicas do texto; em grande parte das redações, o enunciador não
realiza atividades linguístico-cognitivas, que revelariam o intuito de garantir a
compreensão e estimular, facilitar ou causar a aceitação daquilo que enuncia; a maioria
dos textos não se configura como ação social, determinada por regras sociais, em que a
ação verbal deve ser orientada para parceiros da comunicação. Em grande parte desses
textos, enfim, a língua não é utilizada como um instrumento para a realização de ações
verbais, na medida em que neles não se revela um plano/estratégia de ação, tampouco a
necessária hierarquia entre os atos de fala, que permitiriam ao leitor a construção
compartilhada do sentido do texto.
Grande parte dos vestibulandos limitou-se a dar respostas às perguntas que
compunham a proposta de redação3, pouco inovando e arriscando-se minimamente a
2
Os textos foram distribuídos em quatro categorias, de acordo com a procedência dos alunos. Categoria I:
ensino público sem cursinho; cat. II: ensino particular sem cursinho; cat. III: ensino público com
cursinho; cat. IV: ensino particular com cursinho. Procedeu-se assim para verificar se há diferenças
significativas entre os textos de alunos da escola pública e da particular
3
A proposta consistiu na apresentação de trechos de textos de Cícero (Da amizade), de Montaigne (Da
amizade) e de letras de canções de Fernando Brant e Milton Nascimento (Canção da América) e de
Caetano Veloso (Língua) e da seguinte instrução: A amizade tem sido objeto de reflexões e elogios de
pensadores e artistas de todas as épocas. Os trechos sobre esse tema, aqui reproduzidos, pertencem a um
pensador da Antiguidade Clássica (Cícero), a um pensador do século XVI (Montaigne) e a compositores
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expor seus pontos de vista sobre o tema proposto. Constatou-se, enfim, que a maioria
dos textos não atendeu ao que prescrevia o “manual do candidato”: A redação deverá
ser, obrigatoriamente, uma dissertação, na qual se espera que o candidato demonstre
capacidade de mobilizar conhecimentos e opiniões, de argumentar coerentemente e de
expressar-se com clareza e adequação gramatical.
Nota-se, além disso, que muitos textos reproduzem modelos de organização
aplicados em treinamentos; são esvaziados de sentido, de reflexão, de provocações, e
incapazes de suscitar discussões interessantes, embora muitas vezes apresentem
adequação nos procedimentos de referenciação. Pouco se revela, nas redações, a noção
adequada de realidade, ou seja, não se manifesta nos textos um sujeito capaz de interagir
sociocognitivamente com o mundo. Em geral, não se manifesta um compromisso com o
contexto em que se dá a produção do texto. São comuns as pressuposições falsas de
conhecimento partilhado, responsáveis pelo processamento inadequado do sentido por
parte do interlocutor e pelo prejuízo na construção da coerência.
Deve-se esclarecer que o referido grupo de estudiosos não visava, com a
pesquisa, apenas a apontar os problemas, muitos deles já bem diagnosticados, mas, sim,
a fazer chegar, de algum modo, ao professor os resultados alcançados e discutir com ele
possíveis alternativas de trabalho com a escrita em sala de aula. Essa segunda intenção
concretiza-se, aos poucos, na medida em que esses estudiosos agregam-se a linhas de
pesquisa de programas de graduação e de pós-graduação, orientam trabalhos de
da música popular brasileira contemporânea. Você considera adequadas as idéias neles expressas? Elas
são atuais, isto é, você julga que elas têm validade no mundo de hoje? O que sua própria experiência lhe
diz sobre esse assunto? Tendo em conta tais questões, além de outras que julgue pertinentes, redija uma
dissertação em prosa, argumentando de modo a expor seu ponto de vista sobre o assunto.
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iniciação científica, mestrados e doutorados e trocam experiências em eventos
científicos.
No presente trabalho, conforme já se afirmou, procura-se mostrar alguns
processos de remissão textual que se revelam nas redações, em especial, as expressões
referenciais – nominais e pronominais –, anafóricas ou catafóricas, e suas respectivas
funções. Considera-se, aqui, que as descrições nominais (nominalização) implicam
“certas escolhas entre uma multiplicidade de formas de caracterizar o referente que
serão feitas, em cada contexto, segundo a proposta de sentido do produtor do texto”
(KOCH, 2005, p. 35). Assim, analisam-se as remissões que ocorrem por meio das
expressões referenciais, tanto as que rotulam sequências lingüísticas do texto,
transformando-as em objetos-de-discurso e, assim, possibilitando a progressão textual,
quanto as que se realizam por meio da pronominalização. Busca-se verificar, por
exemplo, com base no modo como esses segmentos linguísticos se encadeiam e
remetem uns aos outros, em que medida as expressões nominais remissivas utilizadas
pelos vestibulandos orientam o leitor a construir sentidos, a alcançar determinadas
conclusões.
Nessa busca, é possível identificar as pressuposições de conhecimento
partilhado, responsáveis pelo processamento de sentido e pela construção da coerência.
Procura-se verificar em que medida se criam, nas redações, as condições específicas
para reger a interação, apropriadas à situação de produção dos textos. Parte-se da idéia
de que um texto somente alcançará uma totalidade de sentido se os segmentos que o
compõem relacionarem-se entre si de acordo com certas condições que regem uma
produção efetiva de linguagem. Também se considera o pressuposto de que o texto deve
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revelar um plano ou estratégia de ação, uma organização, que permitirá ao leitor a
construção compartilhada de sentido.
Assim, busca-se também verificar se o trabalho com as referências nas redações
desenvolve-se de maneira a concorrer para a aceitabilidade do texto, para a eficiência de
sua atuação sobre os interlocutores. Nesse sentido, observa-se, por exemplo, que grande
parte dos vestibulandos não é capaz de estabelecer os limites necessários entre as duas
modalidades – oral e escrita – da linguagem. Evidenciam-se, dessa forma, a falta de
domínio das características de um texto argumentativo/ expositivo/ dissertativo, a
ausência de reflexão linguística e a falta de treinamento para a adequação dos usos da
linguagem a situações específicas de comunicação.
Por outro lado, é preciso reconhecer que as condições específicas de produção da
modalidade escrita que se dão no âmbito escolar influenciam a manipulação dos
processos de referenciação levada a efeito nos textos produzidos em situação de exame
vestibular.
Cabe esclarecer que não se procedeu nesta pesquisa a uma análise quantitativa
de dados, uma vez que o objetivo principal consistiu em verificar, de modo geral, os
modos como ocorrem os processos de referenciação nas redações. Optou-se por
apresentar alguns exemplos, selecionados de acordo com as questões específicas que se
decidiu examinar.
Conclui-se, provisoriamente, que não há diferenças significativas entre os textos
dos quatro grupos de redações estabelecidos para a análise. A grande maioria dos
vestibulandos – sejam os egressos da escola pública, sejam os da escola particular manifesta as mesmas inadequações ao promoverem a referenciação em seus textos.
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Pressupõe-se que eventuais quantificações levariam à conclusão de que raríssimos são
os textos em que os procedimentos de referenciação e coerência textual ocorrem de
modo razoavelmente adequado.
Amostras da análise
Para a análise dos procedimentos de remissão textual − considerados, aqui, os
usos de expressões referenciais (anafóricas e catafóricas) nominais e pronominais −,
parte-se do pressuposto de que, ao produzir o texto, o enunciador realiza atividades
linguístico-cognitivas, que revelam o intuito de garantir a compreensão e estimular,
facilitar ou causar a aceitação do que enuncia.
Mostram-se abaixo exemplos dos diferentes modos de realizar essas atividades
linguístico-cognitivas, observados nas redações e devidamente identificados de acordo
com a idade do candidato e com a categoria de classificação.
Um porto seguro, essa é a melhor palavra para se definir um amigo,
Pode ser seu pai, mãe vizinho, colega de trabalho ou de estudos e
pode ser também aquela pessoa que você terá filhos e viverá a vida
inteira do lado dela, difícil de saber. [20 anos, cat. IV]
A expressão “um porto seguro”, que se constitui num “rótulo” (FRANCIS,
2003)4, não tem, no trecho, o papel organizador que se estenderia ao período seguinte;
também não tem o poder, conforme se esperaria, de orientar o interlocutor para
determinadas conclusões. Percebe-se que não há compatibilidade entre as idéias dos
dois períodos. O rótulo, nesse caso, não imprime, ao enunciado em que se insere, nem
4
Francis (2003: p. 191) define os rótulos, geralmente metafóricos, como “um dos principais meios pelos
quais os grupos nominais são usados para conectar e organizar o discurso escrito”.
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ao texto como um todo, uma orientação argumentativa compatível com a proposta
enunciativa de seu produtor. A expressão não promove, portanto, a progressão textual.
Observem-se estes outros exemplos:
E, de novo, o sentimento de amizade volta, em meio às situações
caóticas provocadas pela natureza ou pelo homem. É tema e fato nas
rodas de pessoas que se sentem mais confortadas ao derramar as
lágrimas nos braços de um amigo: o tesouro dos deuses. [26 anos,
cat.I]
Nota-se que a referenciação, nesse trecho de redação, um dos raros textos da
amostra considerado razoavelmente adequado, o processo de nominalização (“um
amigo: o tesouro dos deuses.”) marca-se por um forte grau de exageração (“derramar
lágrimas nos braços de um amigo”), que contrasta com a necessária objetividade do
texto dissertativo. O vestibulando revela o domínio da estruturação sintática, mas utiliza
expressões esvaziadas de sentido, marcadas pelo lugar-comum.
“Amigo: alguém que sabe tudo sobre nós e nos ama mesmo assim”.
Essa frase, que circula na Internet, cartões e letras de música, não
poderia ser mais verídica, no entanto, muitas vezes desejamos e
procuramos algo diferente, que seria o amigo ideal.
O amigo ideal é aquele que nunca vai nos deixar de lado ou nos
prejudicar; vai rir e chorar conosco, nos apoiar nas horas difíceis e
nos fazer sentir que não precisamos de nada além deles. Infelizmente,
a vida mostra que não há pessoas perfeitas a esse ponto. [16 anos, cat.
II]
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A nominalização, nesse caso, já se processa no interior da citação que dá início
ao trecho. O rótulo “amigo” estabelece-se numa construção apositiva. Ao proceder, em
seguida, à remissão anafórica (“Essa frase...”), o candidato não consegue expressar
exatamente o que pensa. Por um lado, o uso indevido do elemento coesivo sequencial
“no entanto”, cuja função é estabelecer uma contraposição de idéias, causa certo
estranhamento, pois não há oposição entre a afirmação anterior (“Essa frase ... não
poderia se mais verídica”) e o desejo e a busca do amigo ideal. Por outro lado, o
processo de nominalização, que ocorre na descrição do amigo ideal, situa-o no mesmo
plano da descrição nominal que abre o primeiro parágrafo do trecho. Revela-se,
portanto, um alto grau de incoerência na construção do sentido.
Está difícil encontrar valores que ainda reinam em meio a tantas
controvérsias. Mesmo assim, em contraste a esta realidade, existe
algo que atravessou a linha dos tempos e até hoje encontramos sua
presença nítida no ser humano: a amizade. [20 anos, cat. III]
O processo de referenciação no texto acima se dá por meio da remissão
anafórica e catafórica. O antecedente “valores” é substituído, na sequência, pelas
expressões “algo” e “a amizade”. Esta, na verdade, é o que se quer definir. Cria-se uma
espécie de orientação do argumento para uma conclusão. Esse procedimento alcançaria
o efeito supostamente pretendido de realçar a amizade, caso a seleção lexical não fosse
tão precária. Nota-se a fragilidade da argumentação tanto por meio das inadequações
que se revelam na organização sintática – que se inicia com uma marca de oralidade
(“Está difícil”), quanto pela seleção lexical precária – os próprios termos da
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referenciação (“valores” e “algo”) e as respectivas nominalizações oracionais (“que
ainda reinam” e “que atravessou a linha dos tempos”) são esvaziados de sentido.
Observe-se o procedimento de nomeação no exemplo seguinte:
Isto é amizade: aproveitar a oportunidade e não deixá-la escapar
como uma pena em dia de tempestade. E se conseguir agarrá-la, está
feito, não tem como escapar novamente. [20 anos, cat. IV]
Esse tipo de construção apositiva é muito frequente nas redações. Cria-se um
foco de referência (“Isto é amizade:”...) em relação ao aposto oracional que especifica o
nome genérico mencionado anteriormente. Novamente, a referenciação é adequada,
porém a argumentação é muito frágil em decorrência da seleção lexical precária e da
influência de expressões próprias da oralidade (“conseguir agarrá-la; “está feito”; “não
tem como escapar novamente”).
Compare-se o procedimento de referenciação acima com o de outro trecho de
uma redação considerada razoavelmente adequada:
Ninguém vive sozinho, ou melhor, até vive, mas não pode gozar de
alguns dos prazeres da vida tanto quanto os que podem compartilhar
suas emoções com amigos sinceros e cultivam a amizade verdadeira.
Entende-se por amizade verdadeira a que é alimentada por
sentimentos positivos, como o companheirismo, que pode se fazer
presente em bons e maus momentos. A segurança de que seremos
amparados, confortados e aconselhados, diante de problemas difíceis
da vida, assim como a sincera satisfação e alegria que amigos
exprimem por nós em batalhas vencidas e desejos conquistados
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somente existem nesse tipo de amizade, que é a menos comum. [21
anos, cat. IV]
No exemplo acima, a retomada da expressão “amizade verdadeira” consiste na
busca de dar um estatuto de referente ou de objeto de discurso à expressão, que, ao ser
retomada, dá início, no trecho, a uma predicação secundária. Aproveita-se a expressão
referencial para predicar diversas informações sobre o objeto que ele designa. Esse tipo
de predicação adquire o valor, portanto, de um comentário, uma explicação; trata-se de
um recurso para desenvolver a estruturação do texto. A mudança de parágrafo aponta
para esse valor mais cognitivo do termo, para um ponto de vista prospectivo. É,
portanto, uma referenciação adequada, porém um exame mais atento do trecho revela a
fragilidade da argumentação.
É bem interessante o modo como se dá a referenciação neste outro exemplo:
A amizade é um alicerce universal para socorrer os momentos
maquiavélicos da vida. O homem necessita de um verdadeiro amigo,
para que este auxilie a encontrar o estopim da felicidade.
A amizade influência a efêmera passagem da vida do homem. A
privação disto resulta padecimento intrínseco do ser humano. A
axiologia da felicidade é encontrada além do amor. A amizade tem
poder de apreciar momentos excelsos, que nem um outro
relacionamento possa alcançar. Os segredos e confissões que são
divididas pelo amigo é o que supre a dor humana. [20 anos, cat. II]
Percebe-se que o uso de certas palavras, incomuns ao vocabulário de um jovem
de 20 anos, utilizadas na referenciação da amizade (“alicerce universal”, “axiologia da
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felicidade”) e na construção de outros sintagmas nominais (“momentos maquiavélicos
da vida”, “o estopim da felicidade”, “a efêmera passagem da vida do homem”,
“padecimento intrínseco do ser humano”, “momentos excelsos”) revela a intenção de
impressionar a banca e não a busca de causar a reflexão, de partilhar a construção de
sentido com o interlocutor.
Considere-se, ainda, este outro exemplo:
A amizade realmente deve ser um presente da vida, não existe
sentimento mais completo, nem o amor, pois a amizade te dá
segurança, não aceita ciúmes, não vê condição social, física, nem cor
de pele, nada. A amizade existe por ela só, é uma sensação de
complementação, ela é atemporal. [37 anos, cat. I]
O processo de nominalização levado a efeito em “A amizade... um presente da
vida... sentimento mais completo... uma sensação de complementação... atemporal” não
se configura como uma busca efetiva de exposição de argumentos para a defesa de um
ponto de vista sobre a amizade. Não se opera o que Koch (2005, p. 37) denomina
recategorização dos objetos de discurso, ou seja, não se dá a reconstrução adequada a
atender propósitos bem definidos do falante/escritor. O elemento circunstancial de
modo (realmente) que, em seu sentido denotativo, expressa certeza, não deveria ser
usado para modificar a forma verbal “deve ser”, que indica incerteza. A expressão
“realmente” parece marcar uma réplica aos trechos da proposta de redação. Também o
uso inadequado do pronome pessoal “te” não se estabelece no trecho como elemento
coesivo referencial de 2ª pessoa. O sujeito parece falar de si e consigo mesmo. Trata-se
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de um elemento de indeterminação com funcionamento inclusivo em relação ao
destinatário e ao remetente.
Observe-se o exemplo a seguir.
Amizade é ter com quem conversar nas horas e momentos mais
inoportunos. Desabafar sem medo de ser censurado. Encontrar abrigo
em um caloroso abraço. É não cansar de se ver, mesmo se for várias
vezes ao dia. É chorar despreucupadamente pelas coisas mais tolas. É
saber respeitar os defeitos e limitações do próximo. E acima de tudo,
amizade é encontrar no olhar ao mesmo tempo respeito e
cumplicidade. [20 anos, cat. IV]
A referenciação nesse trecho consiste numa exposição desorganizada de visões e
opiniões que não promovem a progressão textual, a construção de um todo significativo,
coerente. O trecho revela uma acentuada distância do mundo da cognição, o qual,
conforme Francis (2003, p. 209), é espelhado no modo do discurso, “e as visões e
opiniões que defendemos são frequentemente vistas em termos do modo como são
expressas”. Percebe-se que não há plano/estratégia de ação, ou seja, a necessária
organização dos argumentos, que permitiria ao leitor proceder a uma construção
compartilhada de sentido do texto. As ideias que se expõem em cada frase não se
articulam devidamente para a expressão adequada do que se pretende dizer.
Revela-se, no trecho acima e também no exemplo abaixo, um sujeito que fala
para si, que não considera o momento da escrita do texto como uma ação social,
determinada por regras sociais, em que a ação verbal deveria ser orientada para
parceiros da comunicação.
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Ter amigos sempre foi uma necessidade humana e talvez a maior
prova disso seja a existência dos idiomas.
Nossos idiomas existem porque fazemos amigos e queremos nos
comunicar com eles, se assim não fosse qual o sentido de uma língua
para quem vive solitário?
Não podemos simplesmente nascer e começar a viver sozinhos,
independentes, sem amigos. Desde o primeiro momento de vida já
necessitamos de ajuda dos nossos primeiros amigos, os pais, e logo
precisamos da ajuda de muitos outros. [21 anos, cat. I]
Afirma-se, no início do trecho acima, que a existência dos idiomas é a prova de
que o homem sempre precisou de amigos. No segundo parágrafo, amplia-se um pouco
essa idéia, com o argumento de que os idiomas são usados na comunicação com os
amigos. Sem discutir o equívoco subliminar dessa reflexão, o que mais chama a atenção
é o fato de que, nos parágrafos seguintes, até o final do texto, essa idéia é totalmente
esquecida, ou seja, foi utilizada sem nenhum objetivo, sem nenhum propósito de
convencimento do interlocutor.
O processo de nominalização presente em “Ter amigos sempre foi uma
necessidade humana...” não se constitui numa realização lexical efetiva no contexto,
nem demanda do interlocutor a capacidade de interpretação e troca de conhecimentos.
É muito comum a indefinição do interlocutor em grande parte dos textos. Essa
indefinição se manifesta por meio do uso de “você”, “a gente”, e de pronomes em
primeira pessoa do singular ou do plural. São inúmeros os exemplos. Observem-se os
dois que se seguem:
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Amigo é aquele que te entende, que te aconselha, que te ouve, que te
elogia mas que também dá bronca quando necessário, aquele que está
disposto a ficar em casa com você em pleno sábado a noite
simplesmente porque você sofreu uma desilusão amorosa e está
precisando de um ombro para chorar, é aquele que conhece sua
família e já se sente parte dela, uma pessoa assim realmente merece
ser chamado amigo.(...)
Amigo irmão, amigo de escola, amigo de trabalho, seja lá qual for a
denominação desejada, o que importa é ser amigo. Amar e respeitar a
outra pessoa como a nós mesmos, pois só com amizade e união
conseguiremos levar o mundo para frente. [19 anos, cat. I]
Enfim, amigo é um presente de Deus, um anjo enviado para nos
proteger sempre. Se você possui um e é anjo de alguém, não deixe
esses momentos acabarem nunca. [17 anos, cat. I]
Além dos problemas já apontados nos outros exemplos (seleção lexical precária,
apelos a lugares-comuns, usos inadequados dos pronomes) nota-se, nos exemplos
acima, a irrefletida interlocução com o leitor, um tom de aconselhamento, distante da
necessária objetividade que deve marcar o texto dissertativo.
A falta de objetividade é também acentuada nos exemplos abaixo. Os candidatos
usam indevidamente a primeira pessoa, muitas vezes num tom panfletário ou de
aconselhamento, exprimindo desejos pessoais. Instaura-se o “outro”, com quem o
sujeito, em determinado momento, passa a falar, mas essa presença do interlocutor
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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana
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SLG 14 – Práticas escritas na escola: letramento e representação.
(“confie em seu amigo”; “tente aumentar a quantidade de amigos que tem”) não se
caracteriza como uma chamada, de fato, à interação ou à troca de conhecimentos.
...por isso confie mais em seu amigo e tente aumentar a quantidade de
amigos que tem, sem deixar de lado a qualidade que eles possuem.
Espero, que isto mude, que as pessoas possam sentir a amizade
em seus corpos, que transmitam isto para aqueles que não querem,
que não gostam de ter amigos. [17 anos, cat. I]
A amizade é um sentimento tão nobre que chega a ser superior ao
amor, pois contenta-se em oferecer mesmo que nada em troca possa
receber.
Feliz é quem tem um amigo, um confidente com quem contar, para
dividir as tristezas, as alegrias, as vitórias e as derrotas. [25 anos, cat. I]
Percebe-se que os candidatos não sustentam minimamente uma ideia sobre a
amizade. As frases são esvaziadas de sentido, a seleção lexical é marcada pelo lugarcomum e pelo tom panfletário (“Feliz é quem tem um amigo...”).
O exemplo abaixo é extraído de um dos textos considerados razoavelmente
adequados quanto à referenciação e à coerência:
Numa sociedade tão egoísta e competitiva, na qual nossos colegas de
escola são também nossos concorrentes a uma das tão disputadas
vagas do vestibular; na qual nossos colegas de trabalho concorrem
conosco por uma promoção para um cargo melhor, é difícil saber
quem são os verdadeiros amigos. A dificuldade em identificar uma
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amizade leal nos impede de ter a felicidade de possuir um grande
amigo. (21 anos, cat. III]
No trecho seguinte, pouco se revela também a noção adequada de realidade, ou
seja, não se manifesta um sujeito capaz de interagir sociocognitivamente com o mundo.
A amizade verdadeira é doce, é terna, é conscientemente um amor
puro e inabalável, um sentimento com troca recíproca desse amor
indelével que não tem denotação de um romance embora muitas
vezes amigos descubram-se apaixonados. Nesse caso um sentimento
tão grande como esse laço entre dois amigos tem que ser
absolutamente mais forte para superar um não como resposta e até
mesmo o fim do romance, deixando permanecer a amizade. [21 anos,
cat. IV]
Considerações finais
Conforme já se afirmou, revela-se, em grande parte das redações analisadas, a
incapacidade do candidato de proceder aos dois movimentos responsáveis pela
estruturação do texto – o da retrospecção e o da prospecção. O uso indevido dos
recursos coesivos é determinante no prejuízo da progressão referencial, pois não se dá a
necessária reconstrução de objetos do discurso previamente introduzidos, que daria
origem às cadeias referenciais e coesivas adequadas no texto.
Em muitos casos, o aluno procura revelar certa imagem de desenvolvimento
ordenado do texto; busca construí-lo segundo as exigências próprias de coesão e
argumentação, mas o texto que produz denuncia a ausência de familiaridade com uma
prática efetiva da escrita.
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Os fracassos apontados têm origem, certamente, em uma falsa imagem das
especificidades da escrita. Pressupõe-se que isso se deve, especificamente, aos limites
das concepções da escrita que são consagrados na escola. Ali, escrever significa
reproduzir uma atividade que existe exclusivamente em função do próprio ambiente
escolar.
Assim, o efeito mais evidente dos problemas aqui apresentados é a pronunciada
distância que se estabelece entre o valor do desempenho escrito e o valor de uso da
linguagem, da instauração de um processo significativo. O aluno, diante do papel em
branco, não é capaz de compreender que ali se encontra uma chance de dizer, de
mostrar, de esclarecer, de divertir ou divertir-se, de partilhar conhecimentos.
As inadequações encontradas nas redações mostram que não se instauram nos
textos sujeitos capazes de interagir socialmente; pelo contrário, manifesta-se, em grande
parte dos textos, o aluno e sua responsabilidade escolar de empreender uma tarefa, uma
“lição de casa”.
Os textos produzidos pelos vestibulandos comprovam que a escola, tanto a
pública quanto a particular, não tem cumprido seu papel, uma vez que esses alunos não
revelam o domínio da concepção adequada de texto como instrumento ou estratégia da
comunicação ou da interação social; ao contrário, revelam a ausência de orientação, de
prática de texto. A escola, portanto, não forma alunos capazes de produzir textos
adequados à comunicação ou à interação social.
Não basta, conforme já se disse aqui, diagnosticar os problemas. É indispensável
envolver, na busca de possíveis soluções, os próprios professores que atuam na sala de
aula. Imprescindível também é o investimento na formação eficiente dos futuros
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profissionais, seja nos cursos de graduação, de pós-graduação e de especialização, seja
na troca de ideias e de experiências em grupos de pesquisa e nos mais variados
encontros científicos.
Referências bibliográficas
FRANCIS, G. (2003) Rotulação do discurso: Um aspecto da coesão lexical de grupos
nominais. In CAVALCANTE, M.M.; RODRIGUES, B.B. & CIULLA, A. (orgs.)
Referenciação. S.Paulo: Contexto, pp. 191-228.
KOCH, I.G.V. (2006) Introdução à Lingüística Textual. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes.
____________ (2005) Referenciação e orientação argumentativa. In MORATO, E.M.
& BENTES, A.C. (orgs.) Referenciação e discurso. S.Paulo: Contexto, pp. 33-52.3
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processos de remissão textual em relações de vestibular