Vende-se a miséria!
Ana Carolina Amaral
E para a felicidade de todos nós, brasileiros, e portanto, amantes de futebol, nada
melhor do que receber a Copa do Mundo em casa. Porém, para isso, não podemos deixar
que nossos queridos e amados estrangeiros sejam mal recebidos e levem consigo uma
imagem negativa do nosso país, mundo afora.
Espetacularização.
Por muito tempo, as favelas carregaram preconceitos e noções negativas, mas,
felizmente, isso é passado. Agora, a Cidade Maravilhosa, que sempre atraiu turistas à praia
de Copacabana e ao Cristo Redentor, garante-lhes a oportunidade de um novo espetáculo,
que chega a parecer fictício de tão gritantes as diferenças entre a realidade de um negrinho,
pobre, do morro, e de um branco, americano ou europeu. Agora, você poderá acordar no
horário que bem entender, levantar em seu ritmo, tomar um café da manhã digno de
rainha, sair de seu hotel de luxo e ir aos morros cariocas, fotografar crianças brincando sob
o lixo e ainda prestar solidariedade a eles, afinal, não é todos os dias que essas pessoas,
socialmente e espacialmente excluídas, têm o privilégio de entrar em contato com pessoas
tão superiores como você. Nota-se um brilho nos olhos dos turistas ao encarar e fotografar
aquela miséria, que por tanto tempo foi motivo de tanta curiosidade a eles. Nada melhor
do que observar a miséria alheia, para aprender a valorizar mais sua vida, o fato de você ter
o pão de cada dia, um teto e até um simples par de sapatos.
Legítimo.
Mesmo quando aquela manhã ainda mal havia nascido, aqueles pretos, pobres e
miseráveis já estavam de pé rumo aos seus trabalhos. No período em que você acabara de
chegar no morro, pouquíssimo tempo depois de você acordar, próximo ao horário do
almoço, estes já haviam descido 788 degraus para chegar ao início da favela. Pegaram um
trem e dois ônibus para chegar ao trabalho. Ficaram uma hora esperando o primeiro
transporte passar e, como se não fosse suficiente, mais duas e meia em pé, feito sardinha no
primeiro ônibus, e mais duas horas e meia no segundo. No momento que você ainda
sonhava, eles já estavam lá, vendendo sua força de trabalho, única coisa que estes têm para
oferecer para sustentar seus filhos. Como se não bastasse viver nas favelas, em condições
precárias e sem coleta de lixo, os miseráveis agora devem lidar com o turismo nas favelas,
que, devido a diversos fatores, como a pacificação de diversos morros cariocas, como o
Santa Marta, por exemplo, vem sendo uma prática crescente. O conjunto destas
precariedades, presentes na realidade dos moradores do Santa Marta, significa para estes a
limitação do direito à cidade.
Direito à cidade, para todos?
Enquanto isso, uma madame sonha com um mundo mais justo, nos quais esses
tipinhos de pessoas não ocupassem, ou melhor dizendo, invadissem suas propriedades.
Nada mais justo do que acumular imóveis e aguardar que estes se valorizem, enquanto o
mendigo implora tostões para conseguir migalhas de pães.
Invasão.
Sonha também que, quem sabe um dia, sua filha possa ir ao shopping center, se divertir
com suas amigas, sem a possibilidade de pretinhos invadirem o espaço de seu lazer. Nada
mais justo que um mundo onde quem detém de terras e poder aquisitivo possa negar a
cidade e tudo aquilo que lhes lembra aquela mediocridade que é a pobreza.
Incômodo.
Mas sonha também, por mais contraditório que fosse, em ver aquela pobreza de perto,
afinal, seus empregados, por mais inferiores que estes, inegavelmente, fossem, eram boa
gente e diziam ser felizes. Quer ver aquelas pessoas e fazer-lhes o bem, pela sua simples
presença naquele território, pela sua solidariedade em sair de seu espaço, de seu conforto e
ir naquele lixão a céu aberto e inclusive dar moedinhas a um pobretão, se necessário.
Missão cumprida.
Mas afinal, será que assim como o rico se incomoda com o pobre invadindo seu espaço
de lazer, o pobre, por sua vez, não deve se incomodar com o rico fotografando cada detalhe
de sua privacidade, de seu cotidiano, de acúmulos, não de propriedades, mas de lixo,
acúmulo de miséria, acúmulo de pobreza e de discriminação? Quanta ingenuidade, mas é
claro que não! Afinal, é direito do rico ir onde este bem entender. O rico tem dinheiro, o
rico tem poder e, se tem isso, é por mérito, o preto e pobre que deixasse de ser vagabundo,
levantasse do sofá e ralasse como os ricos para merecerem esses direitos iguais que essas classes
baixas tanto insistem.
Pretos. Pobres. Vagabundos. Miseráveis. Quase como sinônimos no nosso país.
No Rio de Janeiro, as favelas se construíram nos morros, negando o controle,
saneamento e a cidade idealizada pelo capital, no qual dia e noite são impostas mudanças
para que este se beneficie. As “favelas inscreveram no espaço, não somente a afirmação da
necessidade imperativa da proximidade entre moradia e o trabalho, mas também a resistência
da população às transformações da modernização." (Vaz). Quando se vai deixando o universo
pertencente ao capital e aproximando-se dos morros cariocas, as ruas e calçadas largas e
asfaltadas tornam-se íngremes e de paralelepípedo e o crescimento vertical nas ruas, que
abriga diversos moradores em andares distintos nos prédios de luxo, é substituído por
inúmeros amontoados de casebres, que concentram-se nas favelas.
E mesmo na realidade cinzenta dos moradores mais miseráveis, sim, na realidade dos
favelados, em que a discriminação da cidade metia os pés pelas mãos, ultrapassando seus
limites espaciais e se penetrando não só nas orelhas, mas na alma de cada morador, ainda
encontravam-se aqueles que encontrassem motivos para não deixar que seus batimentos
cardíacos cessassem.
Até pouquíssimo tempo atrás, antes de sabermos que o destino nos guardava a
felicidade de ter em menos de um quinquênio a sede da Copa e das Olimpíadas, o tráfico
de drogas e a imagem de violência serviam quase como sinônimo para as favelas. A Favela
Santa Marta, localizada próxima ao bairro de Botafogo, na Zona Sul do Rio de Janeiro,
abriga cerca de 6000 moradores e foi pacificada em dezembro de 2008. Ou seja, desde esse
ano, o Santa Marta, assim como 231 outras favelas, como constam nos dados do Governo,
possuem uma ocupação militar regular nas áreas que eram dominadas pelo tráfico de
drogas e que contam com sedes dentro da própria favela.
A pacificação das favelas é algo que tem seus dois lados da moeda, mas, ao analisarmos
os discursos da grande maioria dos moradores, é impossível negar que com a pacificação
das favelas, houve uma série de políticas prejudiciais na vida destes. Houve o aumento do
turismo nas favelas, ações que produzem uma imagem, isso é, uma visão superficial da
favela, mas não benefícios aos moradores e algo os incomodou muito, o desejo da polícia e
do governo pela remoção das moradias do “pico”.
Antes da pacificação, o Morro Santa Marta sofreu um processo de urbanização, afinal,
em pleno ano de Copa do Mundo, é evidente que mais pessoas virão para o Brasil,
aumentando a nossa economia e o turismo, e com isso, muitas casas que eram de madeira,
por exemplo, tornaram-se de concreto, mas as regiões do pico do morro, mais distantes e
que poucos turistas veem, não passaram por tal processo. O Governo, com o discurso de
que havia risco de queda, que já foi comprovado ser mentira, queria retirar o pico do morro
e consequente a isso, essa parte dele não passou pelo processo de urbanização e é uma das
áreas mais desvalorizadas da favela. As casas nos picos não podem ser reformadas e essa é
uma medida que deixa claro o interesse em deixar essas moradias em condições precárias,
para que os moradores saiam eles mesmos dali. No passado, o discurso utilizado para que
os moradores fossem expulsos dos centros cariocas era devido à falta de higiene dos
cortiços. Hoje, o motivo de tirar-se o pico do morro é consequente ao (inexistente) risco
de queda.
Como percebe-se, mudam-se os discursos, mudam-se os tempos, mas o conflito entre
cidade do cidadão e do capital permanece com o mesmo vencedor, o capital. Apesar do que
o governo diz, é evidente que o motivo da retirada do pico do morro seria uma maquiagem
e embelezamento das favelas. Além disso, criou-se um movimento com militantes que são
contra essa remoção e organizam uma série de manifestações. No pico do morro, há varias
faixas e pinturas com conotação política, que se posicionam contra a remoção e em busca
de paz.
Antes do Santa Marta ser pacificado, Michael Jackson gravou seu videoclipe "They
Don't Care About Us", neste morro e foi instituída uma estátua do astro pop em uma laje
no morro, que, junto à pacificação do Santa Marta, incentivou ainda mais atividade turística
nas favelas e faz com que muitos visitem o morro apenas para fotografá-lo, realizando uma
visita superficial. Desse modo, nota-se cada vez mais que a sensação de segurança que devia
ser proporcionada aos moradores das favelas pelas Unidades de Polícia Pacificadora
permitem, na verdade, que os turistas sintam-se mais tranquilos para subir os morros e
invadir a privacidade dos moradores do Santa Marta.
O Estado governa para as classes médias e assim reprime a política das classes baixas.
Junto ao Governo, a loja de tintas Coral decidiu pintar a fachada de algumas casas na
favela, novamente, sem a consulta dos moradores. Ao olhar externamente a favela, ela de
fato parece apresentar melhores condições, mas isso apenas externamente, pois eles não
confeccionaram nenhuma melhoria no interior das moradias e que fossem trazer, realmente,
benefícios aos moradores. Além disso, se não realizarem manutenções e repintarem as
fachadas de tempos em tempos, provavelmente elas ficarão em condições muito precárias,
pois eles realizaram uma pintura com diversos tons de tintas em uma mesma fachada e o
orçamento dos moradores não é suficiente para se dar ao luxo de comprarem diversos tons
de tintas e, assim, as tintas se desgastarão rapidamente. Essa ação foi, de fato, para maquiar
o Morro Santa Marta e um indício disso é que apenas a fachada das casas foram pintadas,
enquanto suas laterais não e as casas pintadas localizam-se no início do morro e em outra
região muito visitada do morro, onde localiza-se a estátua de Michael Jackson.
Enquanto o preto dorme, é certo que este sonha com a conquista do seu espaço na
cidade, o direito de seus filhos estudarem e que estes possam ser sustentados. Sonha com
um teto, mais do que com uma fachada colorida, com seu direito à cidade.
Diferença.
Sheilla, moradora da favela desde que se conhece como gente, é negra, com cabelos
curtos e cacheados e apesar de toda a dificuldade e discriminação que ela já passou, estampa
um enorme sorriso em seu rosto, de orelha a orelha. Estudou turismo e nos apresentou a
favela. Nota-se que o convívio entre vizinhos é algo muito forte nas favelas e diferentemente
das regiões externas à favela, nas quais cada vez mais nos apartamos, praticamente todos se
conhecem por ali, inclusive pelo nome. Ela desgosta dos Favelas Tours, pois os gringos não
compreendem a favela de fato e não saem da sua zona de conforto. Através desses tours, os
estrangeiros e pessoas de classe média e alta apenas se infiltram em um território
completamente distinto dos que estes diariamente frequentam, sem buscar compreendê-lo,
no entanto, fazendo questão de registrar cada centímetro daquela realidade miserável. Além
disso, eles não interagem com os moradores e não os respeitam, apenas consomem os eventos
das classes mais baixas e confeccionam uma visita, como em um zoológico humano. Antes
de entrarmos na favela, recebemos uma série de recomendações para que respeitássemos a
privacidade das pessoas em suas casas e não fotografássemos menores de idade, no entanto,
caso estivéssemos nos Favelas Tours, não nos recomendariam que não fossem tiradas fotos
de menores de idade e de pessoas e suas casas sem que peça autorização, o que é desrespeitoso.
Desse modo, vemos a favela como lugar da contradição entre interesses da classe
pobre, que são aqueles que vivem na favela, e da classe dominante, que a visita e,
infelizmente, mesmo no espaço que aos miseráveis pertencem, as classes dominantes é
quem têm seus interesses privilegiados e atendidos e, assim, o turismo nas favelas surge
como forma de espetacularização da pobreza.
E como diz a música de Criolo, "Covarde são quem tem tudo de bom/ E fornece o mau,
pra favela morrer." Covardes, somos todos nós, que desfrutamos de nossos privilégios e
oportunidades e nos damos por satisfeitos por isso. Covardes somos nós, que assistimos
sorridentes à Copa, sem questionarmos se vale mesmo à pena desabrigar tantas famílias
para ser hexacampeão. Covardes somos nós, que não percebemos que os desejos da FIFA
não são beneficiar o povo brasileiro, diminuir as taxas de desemprego e sim "inserir o Rio de
Janeiro nos circuitos da economia global e projetá-la ao exterior, como nos pontos em que sugere
ser 'o maior polo turístico do hemisfério sul e a sede de conferências mundiais. Ou seja, trata-se
do mesmo discurso enaltecido nos anos 90 da necessidade de integrar a cidade ao mercado global
e transformá-la em objeto de consumo principalmente para turistas e conferencistas (...)”
(Bianchi e Filho).
Renato Russo já dizia que nas favelas, no senado havia sujeira para todo lado, por
ninguém respeitar a constituição, mas todos acreditarem no futuro da nação e então
indagava “Que país é esse?”. No passado, poderia dizer que é o Brasil, mas hoje não o
reconheço mais. Assim como os edifícios vêm se tornando uma obra sem sujeito, nas quais
quem os construiu não se enxerga mais nessa posição e aqueles que constroem casas são sem
teto, o Brasil vem se tornando um país que se interessa mais a atender o interesse de poucos
e agradar os gringos. Assim, o capital vai se sobrepondo à vida, se necessário, passando com
uma máquina de demolição em cima de tudo ou todos aqueles que possam atrapalhá-lo em
sua reprodução de lucro.
Está na hora de nos conscientizarmos, do povo heroico se unir e nós, juntos, fazermos
com que o penhor dessa igualdade, de fato, exista, pois, infelizmente, ainda será necessária
muita luta para que haja o mínimo de igualdade nesse país, afinal, desde que a República
foi proclamada, os interesses públicos estão longe de ser os que são privilegiados e atendidos.
Está na hora de desligarmos nossas televisões torcendo pela seleção canarinho, na luta pelo
hexa e nos ligarmos na realidade, naquela luta que realmente importa, por aqueles que não
têm o que comer, vestir e nem onde dormir. Como disse Fiell, repper e morador do Santa
Marta, “Quem não se movimenta, não sente as correntes que os prendem”. Está na hora de
deixarmos de sermos covardes. Lute. Movimente-se.
“Dominando a vida urbana, a indústria produziu o mundo da mercadoria, submetendo
toda a sociedade a sua lógica reprodutiva fora do ambiente de trabalho" (Fani). Com os "Favelas
Tours", vende-se a miséria!
Bibliografia:
• Texto "Rio 2016: Contradições e interesses na Barcelona Tropical", Ana Paula Theodoro Bianchi e Carlos
Alberto Penha Filho
• Livro "Cidade Contemporânea", Ana Fani Alessandri Carlos
• Texto "Dos Dos cortiços às favelas e aos edifícios de apartamentos - a modernização da moradia no Rio de
Janeiro", Lilian Fessler Vaz
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ana carolina - Escola da Vila